* Esta manifestação está no livro O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, capítulo VII, sob o título Espíritos endurecidos. — Oude é um antigo reino da Índia, cuja capital é Aódia (em inglês Luknow), entre o Ganges e o Himalaia. (N. da Eq. Rev.)
Nota. Nestas conversas suprimiremos, daqui por diante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.
1. Que sensação experimentastes ao deixar a vida terrena?
— Não poderei dizer. Experimento ainda uma perturbação.
2. Sois feliz?
— Não.
3. Por que não sois feliz?
— Tenho saudades da vida… não sei… experimento uma dor pungente. A vida ter-me-ia livrado disso… gostaria que meu corpo se levantasse do sepulcro.
4. Lamentais não terdes sido enterrada em vosso país, e sim entre os cristãos?
— Sim. A terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.
5. Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?
— Foram muito mesquinhas: eu era rainha e nem todos dobraram os joelhos diante de mim… Deixai-me… Obrigam-me a falar… Não quero que saibais o que agora sou… Fui rainha, notai bem.
6. Respeitamos a vossa hierarquia e vos pedimos que respondais para nos instruirmos. Pensais que um dia vosso filho recuperará os domínios paternos?
— Por certo meu sangue reinará, pois é digno disso.
7. Ligais à reintegração de vosso filho ao trono de Oude a mesma importância de quando vivíeis?
— Meu sangue não pode ser confundido com a multidão.
8. Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?
— O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.
9. Que pensais do futuro reservado àquele país?
— A Índia será grande entre as nações.
10. Não foi possível escrever no atestado de óbito o lugar de vosso nascimento. Podereis dizer-nos agora?
— Nasci do mais nobre sangue da Índia. Creio que nasci em Delhi.
11. Vós, que vivestes nos esplendores do luxo e cercada de honras, que pensais agora?
— Elas me eram devidas.
12. A classe que ocupastes na Terra vos confere uma posição mais elevada no mundo onde hoje estais?
— Sou sempre rainha… Que me mandem escravas para me servirem!… Não sei, parece que não se preocupam comigo aqui… Entretanto eu sou sempre eu.
13. Pertencíeis à religião muçulmana ou a uma religião indiana?
— Muçulmana; mas eu era grande demais para me ocupar de Deus.
14. Que diferença notais entre a religião que professáveis e a religião cristã, quanto à felicidade futura do homem?
— A religião cristã é absurda, pois considera a todos como irmãos.
15. Qual a vossa opinião sobre Maomé?
— Não era filho de rei.
16. Ele tinha uma missão divina?
— Que me importa isso?
17. Qual a vossa opinião sobre o Cristo?
— O filho de carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.
18. Que pensais do costume muçulmano de subtrair as mulheres aos olhares dos homens?
— Penso que as mulheres foram feitas para dominar. Eu era mulher.
19. Alguma vez invejastes a liberdade de que desfrutam as mulheres da Europa?
— Não. Que me importava a sua liberdade? Elas são servidas de joelhos?
20. Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?
— Que me importam as mulheres? Se me falasses de rainhas!…
21. Recordai-vos de ter tido outras existências na Terra, antes desta que acabais de deixar?
— Devo ter sido sempre rainha.
22. Por que viestes tão prontamente ao nosso apelo?
— Eu não o queria; fui forçada… Pensais que me dignaria a responder? Quem sois vós junto de mim?
23. Quem vos obrigou a vir?
— Não sei… Entretanto, aqui não deve haver ninguém maior do que eu.
24. Em que lugar aqui vos encontrais?
— Perto de Ermance.
25. Sob que forma aqui estais?
— Sou sempre rainha… Pensais que eu haja deixado de o ser? Sois pouco respeitoso… Sabei que às rainhas se fala de outra maneira.
26. Por que não vos podemos ver?
— Eu não quero.
27. Se pudéssemos ver-vos, seria com os vossos vestidos, ornatos e joias?
— Certamente!
28. Como é que tendo deixado tudo isso, vosso Espírito conservou a aparência, sobretudo de vossas vestes e joias?
— Elas não me deixaram… Sou sempre tão bela quanto era… Não sei que ideia fazeis de mim! É verdade que nunca me vistes.
29. Que impressão vos causa estardes em nosso meio?
— Se eu pudesse, não estaria aqui. Tratais-me com tão pouco respeito! Não quero que me tratem assim… Chamai-me Majestade, do contrário não responderei mais.
30. Vossa Majestade compreendia a língua francesa?
— Por que não? Eu sabia tudo.
31. Gostaria Vossa Majestade de responder em inglês?
— Não… Não me deixareis tranquila?… Quero ir embora… Deixai-me. Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?… Sou rainha e não escrava.
32. Pedimos apenas a bondade de responder ainda a duas ou três perguntas.
Resposta de São Luís, que estava presente:
— Deixai-a, pobre transviada! Tende piedade de sua cegueira. Que ela vos sirva de exemplo! Não sabeis quanto sofre o seu orgulho.
Observação. Esta conversa oferece vários ensinamentos. Evocando esta grandeza decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas muito profundas, dado o tipo de educação das mulheres daquele país. Pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um mais verdadeiro sentimento da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas terrenas. Longe disto, nela as ideias terrenas conservavam toda a sua força: é o orgulho, que nada perde de suas ilusões; que luta contra sua própria fraqueza e que, na verdade, deve sofrer muito na sua impotência. Na previsão de respostas de natureza completamente diferentes, tínhamos preparado diversas perguntas que perderam a significação. As respostas foram tão diferentes daquilo que esperávamos, como também as pessoas presentes, que não poderíamos ver nelas a influência de um pensamento estranho. Elas têm, entretanto, um cunho tão característico de personalidade, que demonstram claramente a identidade do Espírito que se manifestou.
Com razão a gente se admira de ver Lemaire, o homem degradado e manchado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de Além-Túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação muito exata da situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja posição social poderia ter nela desenvolvido o senso moral, as ideias terrenas não sofreram qualquer modificação. Parece fácil explicar a razão dessa anomalia. Por mais degradado que fosse, Lemaire vivia no meio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido sobre sua natureza grosseira; sem o perceber, havia absorvido alguns raios da luz que o cercava e essa luz fez nascer nele pensamentos abafados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir.
A situação é completamente outra com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a falta absoluta de cultura intelectual, tudo devia ter contribuído para manter em todo o seu vigor as ideias de que se imbuíra na infância. Nada pôde modificar essa natureza primitiva sobre a qual os preconceitos mantiveram todo o seu império.