Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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O ESPÍRITO BATEDOR DE BERGZABERN[1]

(SEGUNDO ARTIGO)

Extraímos as passagens que se seguem de uma nova brochura alemã, publicada em 1853 pelo Sr. Blanck, redator do jornal de Bergzabern, sobre o Espírito batedor de que falamos em nosso número de maio.

Os fenômenos extraordinários ali relatados, cuja autenticidade não poderia ser posta em dúvida, provam que, no particular, nada temos a invejar da América.

Observa-se no relato o cuidado meticuloso com que os fatos foram registrados. Fora desejável que, em casos semelhantes, houvesse sempre a mesma atenção e a mesma prudência.

Sabe-se hoje que os fenômenos desse gênero não resultam de um estado patológico; antes denotam uma excessiva sensibilidade, sempre fácil de excitar, nas pessoas em quem se manifestam. O estado patológico não é a causa eficiente; pode, entretanto, ser-lhe consecutivo. Em casos análogos, a mania de experimentação mais de uma vez tem causado acidentes graves, que teriam sido evitados se se houvesse deixado a natureza agir por si mesma. Em nossa Instrução prática sobre as manifestações espíritas[2] encontram-se os conselhos necessários para tais casos.

Acompanhemos o relatório do Sr. Blanck.

“Os leitores de nossa primeira brochura intitulada Os Espíritos batedores viram que as manifestações de Filipina Sänger têm um caráter enigmático e extraordinário. Relatamos esses fatos maravilhosos desde o seu começo até o momento em que a menina foi levada ao médico real do cantão. Vamos examinar agora o que se passou desde então.

Quando a menina deixou a casa do Dr. Bentner e regressou ao lar, as batidas e arranhaduras recomeçaram na casa dos Sänger. Até aquele momento, e mesmo depois da sua cura completa, as manifestações foram mais marcantes e mudaram de natureza[3]. No mês de novembro de 1852, o Espírito começou a assoviar; a seguir ouvia-se um ruído comparável ao de uma roda de carrinho de mão que girasse sobre o eixo seco e enferrujado, mas, de tudo isso, o mais extraordinário, incontestavelmente, foi a derrubada de móveis no quarto de Filipina, desordem essa que durou quinze dias.

Parece-me necessária uma ligeira descrição do lugar.

O quarto tem cerca de 18 pés de comprimento por 8 de largura e a ele se chega pela sala de estar. A porta de comunicação entre as duas peças fica à direita. O leito da menina estava colocado à direita; ao meio havia um armário e no canto, à esquerda, a mesa de trabalho de Sänger, na qual há duas cavidades circulares, cobertas por duas tampas.

Na tarde em que começou o rebuliço, a Sra. Sänger e sua filha mais velha, Francisca, estavam sentadas na primeira peça, junto a uma mesa e se ocupavam em descascar vagens. De repente caiu a seus pés um pequeno fuso, atirado do quarto de dormir. Elas ficaram muito assustadas, tanto mais quanto sabiam que não se encontrava ninguém no quarto, além de Filipina, então mergulhada em sono profundo. Além disso, o fuso fora lançado do lado esquerdo, embora se achasse na prateleira do pequeno armário, colocado à direita. Se tivesse sido atirado do leito, teria sido interceptado pela porta. Era, pois, evidente que a menina nada tinha a ver com o caso. Enquanto a família Sänger externava a sua surpresa com o acontecimento, algo caiu da mesa no soalho: era um retalho de pano que antes estava mergulhado numa bacia com água. Ao lado do fuso jazia também uma cabeça de cachimbo, cuja outra metade tinha ficado sobre a mesa. O que tornava a coisa ainda mais incompreensível era que a porta do armário onde estava o fuso, antes de ser atirado, achava-se fechada; que a água da bacia não tinha sido agitada e nem uma só gota tinha caído sobre a mesa. De repente, a menina, sempre adormecida, grita da cama: “Pai! saia! Ele atira! Saiam! Ele atiraria em você também. Eles obedeceram à ordem e assim que passaram à primeira peça, a cabeça do cachimbo foi atirada com muita força, mas não se quebrou. Uma régua que Filipina usava na escola seguiu o mesmo caminho. O pai, a mãe e a filha mais velha olhavam-se com espanto. Enquanto imaginavam a decisão a tomar, uma grande plaina do Sr. Sänger e um grande pedaço de madeira foram atirados do banco de carpinteiro para o outro quarto. Sobre a mesa de trabalho, as tampas estavam em seus lugares, mas, apesar disto, os objetos cobertos por elas também tinham sido jogados longe. Na mesma noite, os travesseiros da cama foram lançados sobre um armário e a colcha atirada contra a porta.

Num outro dia, tinham posto aos pés da menina, debaixo das cobertas, um ferro de engomar de cerca de seis libras. Logo ele foi atirado para a primeira sala; o cabo havia sido tirado e foi encontrado sobre uma poltrona, no quarto.

Testemunhamos as cadeiras colocadas a três pés da cama serem derrubadas; as janelas serem abertas, quando antes estavam bem fechadas, e isto assim que viramos as costas para entrar na sala. De outra feita, duas cadeiras foram transportadas para cima da cama, sem desarranjar as cobertas.

No dia 7 de outubro, a janela havia sido hermeticamente fechada, diante da qual fora estendido um pano branco. Assim que deixamos o quarto, foram dados golpes repetidos e com tanta violência que tudo estremeceu e as pessoas que passavam na rua fugiram apavoradas. Corremos para o quarto. A janela estava aberta, o pano atirado sobre o pequeno armário ao lado, as cobertas da cama e o travesseiro no chão, as cadeiras de pernas para o ar e a menina no leito, abrigada apenas pela camisola. Durante catorze dias a senhora Sänger não fez outra coisa senão refazer a cama.

Uma vez tinham deixado uma harmônica sobre uma cadeira. Ouviram-se sons. Entrando precipitadamente no quarto, encontraram, como sempre, a menina tranquila em seu leito. O instrumento estava sobre a cadeira, mas já não tocava.

Uma noite, ao sair do quarto da filha, Sänger recebeu nas costas, de arremesso, a almofada de uma cadeira. De outras vezes era um par de chinelos velhos, sapatos que estavam debaixo da cama, ou tamancos que lhe iam ao encontro.

Muitas vezes sopravam a vela acesa, sobre a mesa de trabalho.

As pancadas e arranhaduras se alternavam com essa demonstração do mobiliário. A cama parecia movimentada por mão invisível. À ordem de: “Balance a cama” ou “Nine a criança”, a cama ia e vinha, num e noutro sentido, com ruído; à ordem de “Alto!” ela parava. Nós, que vimos, podemos afirmar que quatro homens se sentaram na cama e, sem conseguirem paralisar o movimento, foram erguidos junto com o móvel.

Ao fim de catorze dias cessou o rebuliço dos móveis e as manifestações foram substituídas por outras.

Na noite de 26 de outubro achavam-se no quarto, entre outras pessoas, os Srs. Luís Soëhnée, licenciado em direito, e o capitão Simon, ambos de Wissembourg, bem como o Sr. Sievert, de Bergzabern. Nesse momento, Filipina Sänger encontrava-se mergulhada em sono magnético[4]. O Sr. Sievert apresentou-lhe um papel contendo cabelos, para ver o que ela faria com eles. Ela abriu o embrulho, sem entretanto descobrir os cabelos; aplicou-os sobre as pálpebras fechadas; afastou-os como que para examiná-los à distância e disse: “Eu bem queria saber o que está neste embrulho... São cabelos de uma senhora que não conheço... Se ela quiser vir, que venha... Não posso convidá-la, pois não a conheço.” Ela não respondeu às perguntas dirigidas pelo Sr. Sievert, mas, tendo colocado o papel na palma da mão, a estendia e virava, e o papel continuava suspenso. Depois o colocou na ponta do indicador e durante muito tempo fez a mão descrever um semicírculo, dizendo: “Não caia!” e o papel ficava na ponta do dedo. Depois, à ordem de “Agora caia!” ele se destacou, sem que ela tivesse feito o menor movimento para lhe determinar a queda. Súbito, voltando-se para a parede, disse: “Agora quero pregar-te à parede.” E ali colocou o papel que ficou colado durante aproximadamente 5 a 6 minutos, depois do que o retirou. Um exame minucioso do papel e da parede não permitiu descobrir nenhuma causa da aderência. Parece-nos um dever advertir que o quarto estava perfeitamente iluminado, o que permitia verificar todas essas particularidades com exatidão.

Na noite seguinte deram-lhe outros objetos: chaves, moedas, cigarreiras, relógios, anéis de ouro e de prata. Todos, sem exceção, ficavam suspensos à sua mão. Notou-se que a prata aderia mais facilmente que as outras substâncias, pois houve dificuldade em retirar-lhe as moedas e tal operação causou-lhe dor.

Um dos mais curiosos fatos nesse gênero foi o seguinte: Sábado, 11 de novembro, um oficial presente deu-lhe sua espada com o talabarte, no todo pesando 4 libras; constatou-se que tudo ficou suspenso ao dedo da médium, balançando-se durante muito tempo. O que não é menos singular é que todos esses objetos, fosse qual fosse a matéria, também ficavam suspensos. Tal propriedade magnética comunicava-se, por simples contato das mãos, às pessoas susceptíveis da transmissão do fluido. Disto tivemos vários exemplos.

Um capitão, o cavaleiro de Zentner, então servindo na guarnição de Bergzabern, testemunhou esses fenômenos e teve a ideia de colocar uma bússola perto da menina, para observar as variações. Na primeira tentativa a agulha fez um desvio de 15º, mas nas outras ficou imóvel, embora a menina a segurasse numa das mãos, acariciando-a com a outra. Esta experiência provou que tais fenômenos não se poderiam explicar pela ação do fluido mineral, mesmo porque a atração magnética não se exerce indiferentemente sobre todos os corpos.

Habitualmente, quando a pequena sonâmbula se dispunha a começar a sessão, chamava para o quarto todas as pessoas presentes. Ela dizia apenas: “Venham! venham!” ou então “Deem! deem!” Muitas vezes só se tranquilizava quando todos, sem exceção, estavam junto ao seu leito. Então pedia com solicitude e impaciência um objeto qualquer e, assim que lho entregavam, este se ligava a seus dedos. Frequentemente acontecia que dez, doze ou mais pessoas estivessem presentes e cada uma lhe apresentasse vários objetos. Durante a sessão, ela não admitia que lhe tomassem nenhum deles. Parecia preferir os relógios: abria-os com muita habilidade, examinava o movimento, fechava-os e os colocava próximo, para examinar outra coisa. Por fim, devolvia a cada um o que lhe havia sido entregue. Examinava os objetos com os olhos fechados e jamais lhes confundia o dono. Se alguém estendesse a mão para receber o que lhe não pertencia, ela o repelia. Como explicar essa distribuição múltipla e sem erros a tão grande número de pessoas? Em vão se tentaria que fizesse o mesmo com os olhos abertos. Terminada a sessão e retiradas as pessoas estranhas, recomeçavam as pancadas e arranhaduras, momentaneamente interrompidas.

Acrescente-se que a menina não queria que ninguém ficasse aos pés da cama, junto ao armário, onde o espaço entre os móveis era apenas de cerca de um pé. Se alguém aí se colocasse, afastava-o por meio de gestos. Se teimassem, ela demonstrava uma grande inquietação e com gestos imperiosos mandava que saíssem do lugar. Uma vez advertiu aos assistentes de que jamais ocupassem aquele lugar proibido, porque, dizia, não queria que sobreviesse uma desgraça a alguém. Este aviso foi tão peremptório que ninguém o esqueceu daí por diante.

Depois de algum tempo, às batidas e arranhaduras juntou-se um zumbido comparável ao som produzido por uma corda grossa de contrabaixo; uma espécie de assovio se misturava a esse zumbido. Se alguém pedisse uma marcha ou uma dança, logo era atendido o seu desejo: o músico invisível mostrava-se muito complacente.

Por meio das arranhaduras, chamava nominalmente as pessoas da casa ou os estranhos presentes. Todos compreendiam facilmente a quem era dirigido o apelo. A esse chamado, a pessoa designada respondia sim, para dar a entender que sabia tratar-se dela mesma. Então era executado, em sua homenagem, um trecho de música que por vezes provocava cenas cômicas. Se outra que não a pessoa indicada respondesse sim, o raspador fazia compreender por um não, expresso a seu modo, que nada lhe tinha a dizer naquele momento.

Estes fatos se produziram pela primeira vez na noite de l0 de novembro, e continuaram até o presente.

Eis como procedia o Espírito batedor para designar as pessoas:

Há muitas noites se havia notado que, ao fazer um pedido para que fizesse tal ou qual coisa, ele respondia por um golpe seco ou por uma arranhadura prolongada. Assim que o golpe era dado, o batedor começava a executar aquilo que se desejava; quando, ao contrário, ele arranhava, não satisfazia ao pedido. Então um médico teve a ideia de tomar o primeiro ruído por um sim e o segundo por um não, e desde então essa interpretação sempre se confirmou. Notou-se também que por uma série de arranhões mais ou menos fortes o Espírito exigia certas coisas das pessoas presentes. À custa de atenção e observando a maneira por que se produzia o ruído, pôde-se compreender a intenção do batedor. Assim, por exemplo, o velho Sänger contou que certa manhã, ainda pela madrugada, ouvira ruídos modulados de certa maneira. Embora de início não tivesse ligado a eles nenhum significado, notou que não cessavam enquanto se achasse na cama, pelo que entendeu o sentido: “Levanta-te!” Foi assim que pouco a pouco se familiarizaram com essa linguagem, e que por certos sinais se podia saber quais eram as pessoas designadas.

Chegou o aniversário do dia em que o Espírito batedor se havia manifestado pela primeira vez: muitas mudanças se haviam operado no estado de Filipina Sänger. Continuavam as pancadas, as arranhaduras e o zumbido, mas a todas essas manifestações juntou-se um grito especial, que ora parecia de um ganso, ora de um papagaio ou de qualquer outra ave grande. Ao mesmo tempo ouvia-se uma espécie de repicar na parede, semelhante ao ruído produzido pelas bicadas de um pássaro. Nesse período Filipina falava muito durante o sono e sobretudo parecia preocupada com um certo animal, semelhante a um papagaio, que ficava ao pé do leito, gritando e dando bicadas na parede. Quando desejávamos ouvir o papagaio, ele soltava gritos agudos. Várias perguntas foram feitas, tendo como resposta gritos do mesmo gênero; algumas pessoas pediram que dissesse Kakatoès, e foi ouvida distintamente a palavra Kakatoès, como se pronunciada pela própria ave[5]. Silenciaremos sobre fatos menos interessantes, limitando-nos a relatar aquilo que há de mais importante, no que diz respeito às modificações sobrevindas ao estado físico da menina.

Algum tempo antes do Natal as manifestações se renovaram com mais energia: os golpes e as arranhaduras tornaram-se mais violentos e duravam mais tempo. Mais agitada que de costume, muitas vezes Filipina pedia para não dormir em sua cama, mas na dos pais; ela rolava no seu leito, clamando: “Não posso mais ficar aqui; vou sufocar; eles vão encerrar-me na parede; socorro!” e a calma só se restabelecia quando a transportavam para outra cama. Apenas aí se encontrava, ouviam-se no alto pancadas muito fortes, como se viessem do sótão e como se um carpinteiro martelasse o vigamento. Por vezes eram mesmo tão fortes que abalavam a casa; as janelas eram sacudidas e as pessoas presentes sentiam o solo tremer sob os pés; outras vezes pancadas semelhantes eram dadas na parede, perto da cama. As perguntas eram, como de hábito, respondidas pelas pancadas, sempre alternadas com as arranhaduras.

Os fatos que se seguem, não menos curiosos, reproduziram-se inúmeras vezes:

Quando havia cessado o ruído e a menina repousava em sua caminha, com frequência a víamos prosternar-se, juntar as mãos, de olhos fechados, virar a cabeça para todos os lados, às vezes para a direita e às vezes para a esquerda, como se algo de extraordinário tivesse atraído sua atenção. Um amável sorriso então aparecia em seus lábios. Dir-se-ia que se dirigisse a alguém: estendia as mãos e pelo gesto depreendia-se que apertava as mãos de amigos e conhecidos. Também se via, depois de cenas tais, recair na sua atitude súplice, juntar novamente as mãos, curvar a cabeça até tocar as cobertas, depois endireitar-se e derramar lágrimas. Então suspirava e parecia orar com grande fervor. Nesses momentos seu rosto se transformava: ficava pálida e adquiria a expressão de uma mulher de 24 a 25 anos. Por vezes tal estado durava cerca de meia hora, durante a qual só dizia ah! ah! Pancadas, arranhaduras, zumbidos e gritos cessavam até que ela despertasse. Então o batedor novamente se fazia ouvir, procurando executar árias alegres, a fim de dissipar a penosa impressão deixada na assistência. Ao despertar, a menina achava-se muito abatida; apenas podia levantar os braços, e os objetos que lhe eram apresentados não ficavam mais suspensos em seus dedos.

Curiosos para saber o que experimentara, interrogaram-na várias vezes. Somente após reiterados pedidos foi que se decidiu a contar que tinha visto conduzir e crucificar o Cristo no Gólgota; que a dor das santas mulheres prosternadas ao pé da cruz e a crucificação lhe haviam produzido uma impressão indescritível. Também tinha visto uma porção de mulheres e de virgens vestidas de preto e mocinhas com longos vestidos brancos percorrendo em procissão as ruas de bonita cidade e, por fim, viu-se transportada a uma vasta igreja onde assistiu a um serviço fúnebre.

Em pouco tempo o estado de Filipina Sänger mudou a ponto de causar apreensão quanto à sua saúde, porque, estando desperta, divagava e sonhava em voz alta. Não reconhecia os pais nem a irmã nem qualquer outra pessoa. A esse estado veio juntar-se uma completa surdez, que persistiu durante quinze dias.

Não podemos silenciar sobre o que se passou nesse lapso de tempo.

A surdez de Filipina manifestou-se de meio-dia às três horas, e ela mesma declarou que ficaria surda por algum tempo e que ficaria doente. O que há de singular é que por vezes recobrava a audição durante cerca de meia hora, com o que se mostrava contente. Ela própria predizia o momento em que ensurdeceria e em que recuperaria a audição. Uma vez, entre outras, anunciou que à noite, às oito e meia, ouviria claramente durante meia hora. Com efeito, à hora predita voltou a ouvir, o que durou até as nove horas.

Durante a surdez, os traços se lhe alteravam: o rosto tomava uma expressão de estupidez, que perdia assim que voltava ao estado normal. Nada então a impressionava. Ela ficava sentada, olhando os presentes fixamente e sem reconhecê-los. Ninguém podia fazer-se compreender senão por sinais, aos quais em geral não respondia, limitando-se a fitar os olhos na pessoa que lhe dirigia a palavra. Uma vez agarrou pelo braço um dos presentes e lhe perguntou, enquanto o empurrava: Quem és tu? Nessa situação ficava por vezes mais de hora e meia imobilizada na cama. Seus olhos meio abertos paravam num ponto qualquer; de vez em quando giravam à direita e à esquerda, depois voltavam ao mesmo ponto. Toda a sensibilidade parecia então embotada: o pulso apenas batia e quando se colocava uma luz diante de seus olhos, não fazia nenhum movimento. Dir-se-ia morta.

Aconteceu uma tarde, durante a surdez que, estando deitada, pediu uma lousa e um giz. Então escreveu: “Às onze horas direi alguma coisa, mas exijo que fiquem tranquilos e silenciosos.” Depois destas palavras acrescentou cinco sinais semelhantes à escrita latina, mas que nenhum dos presentes pôde decifrar. Escreveram na lousa que ninguém compreendia aqueles sinais. Em resposta, ela acrescentou: “Não é que não possais ler!” E, mais embaixo: “Não é alemão. É uma língua estranha.” Em seguida, virando a ardósia, escreveu do outro lado: “Francisca” (sua irmã mais velha) “sentar-se-á à mesa e escreverá o que eu ditar.” Acompanhou as palavras por cinco sinais semelhantes aos primeiros e entregou a ardósia. Notando que os sinais não eram ainda compreendidos, pediu novamente a lousa e acrescentou: “São ordens particulares.”

Um pouco antes das onze horas, disse: “Ficai tranquilos. Que todos se sentem e prestem atenção!” e, ao soarem as onze, caiu no leito e entrou em sono magnético habitual. Alguns instantes depois, começou a falar, e isto durou, ininterruptamente, cerca de meia hora. Entre outras coisas declarou que durante o ano em curso produzir-se-iam fatos que ninguém poderia compreender e que seriam infrutíferas todas as tentativas feitas para explicá-los.

Durante a surdez da jovem Sänger renovaram-se algumas vezes o rebuliço dos móveis, o inexplicável abrir das janelas, o apagar das luzes sobre a mesa de trabalho. Aconteceu, uma noite, que dois bonés que estavam pendurados num cabide do quarto de dormir foram atirados sobre a mesa do outro quarto e entornaram uma xícara cheia de leite, espalhando-o pelo chão. As pancadas desferidas na cama eram tão violentas que ela se deslocou de seu lugar; outras vezes até a cama se desmontava ruidosamente, sem que, entretanto, se tivessem ouvido as pancadas.

Como ainda houvesse pessoas incrédulas ou que atribuíam essas ocorrências a uma brincadeira da menina que, em sua opinião, batia e arranhava com os pés ou com as mãos, apesar de que os fatos tivessem sido verificados por mais de cem testemunhas e se tivesse constatado que a menina mantinha os braços estendidos sobre as cobertas enquanto se produziam os ruídos, o Cap. Zentner imaginou um meio de convencê-las. Mandou vir da caserna dois cobertores muito grossos, os quais foram postos um sobre o outro, e ambos envolveram o colchão e os lençóis da cama; os cobertores eram muito felpudos, de modo que seria impossível neles produzir o menor ruído por simples atrito. Vestindo uma leve camisa e uma camisola de dormir, Filipina foi posta debaixo das cobertas e, apenas agasalhada, os golpes e arranhaduras se produziram como dantes, ora na madeira da cama, ora no armário vizinho, segundo o que tinham a exprimir.

Acontece muitas vezes que quando alguém cantarola ou assobia uma ária qualquer, o batedor a acompanha e os sons que se percebem parecem vir de dois, três ou quatro instrumentos: ouve-se ao mesmo tempo arranhar, bater, assobiar e roncar, conforme o ritmo da ária cantada. Muitas vezes, também, o batedor pede a um dos assistentes que cante uma canção. Designa-o pelo processo já nosso conhecido e quando a pessoa compreende que é a si mesma que o Espírito se dirige, por sua vez pergunta ao Espírito se quer que cante esta ou aquela canção. A resposta é dada por sim ou não. Ao cantar a ária indicada, ouve-se um acompanhamento perfeito de zumbidos e assobios. Depois de uma canção alegre, muitas vezes o Espírito pedia o hino Grande Deus, nós te louvamos ou a canção de Napoleão I. Se lhe pedíssemos para tocar sozinho esta última ou qualquer outra, ele a executava do começo ao fim.

Assim iam as coisas na casa de Sänger, quer de dia, quer de noite, durante o sono da menina ou quando em vigília, até o dia 4 de março de 1853, data em que as manifestações entraram em outra fase. Esse dia foi marcado por um fato ainda mais extraordinário que os precedentes.”

(continua no próximo número).

OBSERVAÇÃO: Os leitores hão de perdoar a extensão dada a estes curiosos detalhes. Pensamos, entretanto, que a continuação será lida com não menor interesse. Queremos fazer notar que os fatos não nos vêm de além-mar, cuja distância é um argumento, apesar de tudo, para certos cépticos. Eles não vêm nem mesmo de além Reno, pois se passaram em nossas fronteiras, quase sob nossos olhos e há seis anos apenas.

Como se vê, Filipina Sänger era uma médium natural muito complexa. Além da influência que exercia sobre os fenômenos bem conhecidos de ruídos e de movimentos, era uma sonâmbula extática. Ela conversava com os seres incorpóreos que via; ao mesmo tempo via os assistentes e lhes dirigia a palavra, mas nem sempre lhes respondia, o que prova que em certos momentos achava-se isolada. Para aqueles que conhecem os efeitos da emancipação da alma, as visões que descrevemos nada possuem que não possa ser facilmente explicado. É provável que, nesses momentos de êxtase, o Espírito da menina se visse transportado para qualquer lugar distante, onde assistiria, talvez em recordação, a uma cerimônia religiosa. Podemos admirar-nos da lembrança que trazia ao despertar, mas o fato não é insólito. Aliás, podemos notar que a lembrança era confusa e que se tornava necessário insistir muito para provocá-la.

Se observarmos atentamente o que se passava durante a surdez, reconheceremos sem dificuldade um estado cataléptico. Como a surdez era apenas temporária, é evidente que não causava alterações nos órgãos respectivos. O mesmo se dava com a obliteração das faculdades mentais, o que nada tinha de patológico, de vez que, em dado momento, tudo voltava ao estado normal. Esta espécie de estupidez aparente era devida a um mais completo desprendimento da alma, cujas excursões eram feitas com maior liberdade e não deixavam aos sentidos mais do que a vida orgânica. Imagine-se o efeito desastroso que teria produzido um tratamento terapêutico em semelhantes condições! A cada momento podem produzir-se fenômenos do mesmo gênero. Neste caso, não poderemos senão recomendar muita circunspecção. Uma imprudência pode comprometer a saúde e até a própria vida.



[1] ─ Para que o leitor não fique confuso diante de alguns senões nestes dois artigos e ainda no seguinte, versando sobre o mesmo assunto, queremos esclarecer.

Quanto ao primeiro artigo:

I ─ No original encontramos, de referência a um médico, as grafias Beutner e Bentner. Parece tratar-se de um erro tipográfico. Por mais conforme à língua alemã, preferimos a grafia Bentner.

II ─ O nome da família onde ocorreram os fenômenos aparece como Sänger depois como Senges. O certo deve ser Sänger ou Saenger, que significa cantor. Este, como muitos nomes semelhantes (adjetivos e adjetivos substantivos) derivam-se de uma forma verbal, tomando terminação er, que significa o agente da ação expressa pelo verbo, mas determinam uma alteração na vogal tônica do radical. Ex.: singea (cantar) sang (cantava); sänger (cantor). No alemão moderno, o trema sobre o a, o o e o u é substituído por um e. Assim, pode escrever-se Saenger. Preferimos, no caso, a forma antiga.

III ─ Não há declaração do nome do médium. O texto se refere a uma criança de onze anos. Traduzimos por menino, rapaz ou outra forma masculina porque, conquanto no original lêssemos enfant, que é forma epicena, os adjetivos que o acompanham estão sempre no masculino. Assim, lá está enfant... agé, endormi, avancé etc. É possível que o lapso de quem traduziu esse primeiro artigo do alemão para o francês se explique pelo emprego original da voz das kind (a criança) que é neutra em alemão, podendo ser aplicada a ambos os sexos.

Entretanto o segundo artigo começa com uma referência à volta da criança da casa do Dr. Bentner para o seu próprio lar; aí a voz enfant é empregada no feminino: l’enfant fut conduite; mais adiante há uma referência à cura de la jeune fille e seu nome é declinado ─ Philippine Senger ─ conforme a grafia francesa.

Tudo, pois, leva a crer que houve um equívoco cometido pela pessoa que traduziu o primeiro artigo do alemão para o francês.

No terceiro artigo, que sairá no próximo número, há uma nota no rodapé, página 183 do original, com um agradecimento ao Sr. Alfred Pireaux, funcionário dos correios, pela tradução dessa interessante brochura. Como, porém, se vê claramente no início do segundo artigo, o relato é extraído de uma nova brochura alemã, cuja citação é continuada no terceiro. Está visto, pois, que havia uma primeira brochura e, assim, o lapso quanto ao nome do médium não se deve ao tradutor citado linhas acima, nem à nossa versão brasileira, já corrigida neste volume.

Para finalizar: o médium foi a menina Filipina Sänger, de onze anos, e não um seu irmão, pois, no texto dos artigos segundo e terceiro, o único Sänger masculino que é citado é papá Sänger. (N. do T.)


[2] Este livrinho de Kardec foi abolido pelo autor, assim que lançou O Livro dos Médiuns. (N. do T.)


[3] Teremos ocasião de falar da indisposição da criança. Como, porém, após a sua cura, reproduziram-se os mesmos efeitos, temos uma prova evidente de que eles não dependiam de seu estado de saúde.


[4] Uma sonâmbula de Paris se havia posto em contato com a jovem Filipina e, desde então, esta caía espontaneamente em sonambulismo. Nessa ocasião passa­vam-se fatos notáveis, que relataremos de outra feita. (Nota do tradutor francês).


[5] Variedade de papagaio do arquipélago indiano, caracterizado por um topete de penas amarelas que se eriçam, em forma de crista. O nome kakatua ou kakatoa é onomatopaico: deriva-se do próprio grito da ave que, como as nossas araras, o repetem continuamente.


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