Origem da crença nos demônios.
A crença num poder superior é instintiva nos homens; é encontrada, sob diferentes formas, em todas as idades do mundo. Mas se, no grau de adiantamento intelectual a que chegaram hoje, discutem ainda sobre a natureza e os atributos desse poder, quão mais imperfeitas deviam ser suas noções sobre esse assunto na infância da humanidade!
Quanto mais o homem se aproxima do estado natural, mais o instinto domina nele, tal como se pode ver ainda nos povos selvagens e bárbaros de nossos dias; o que mais o preocupa, ou melhor, o que o ocupa exclusivamente é a satisfação das necessidades materiais, porque não tem outras. O único sentido que pode torná-lo acessível aos gozos puramente morais desenvolve-se apenas com o tempo e gradualmente; a alma tem sua infância, sua adolescência e sua virilidade, como o corpo humano; mas, para atingir a virilidade que a torna apta a compreender as coisas abstratas, quantas evoluções tem ela que percorrer na humanidade! Quantas existências deve realizar!
Sem remontar às primeiras eras, olhemos à nossa volta as pessoas do campo, e perguntemo-nos que sentimentos de admiração despertam nelas o esplendor do sol nascente, a abóbada estrelada, o gorjeio dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, os prados coloridos de flores! Para elas, o sol se levanta porque está habituado, e, desde que dê suficiente calor para amadurecer as colheitas e não demasiado para queimá-las, é tudo o que pedem; se olham o céu, é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte; que os pássaros cantem ou não, é-lhes indiferente, desde que eles não lhes comam o grão; às melodias do rouxinol preferem o cacarejo das galinhas e o grunhido de seus porcos; o que pedem aos riachos claros ou lamacentos é não secarem e não causarem inundação; aos prados, dar-lhes boa erva, com ou sem flores: é tudo o que desejam, digamos mais, tudo o que elas compreendem da natureza, porém já estão longe dos homens primitivos!
Durante muito tempo o homem não compreendeu senão o bem e o mal físicos; o sentimento do bem moral e do mal moral assinalou um progresso na inteligência humana; somente então o homem entreviu a espiritualidade, e compreendeu que o poder sobre-humano está fora do mundo visível, e não nas coisas materiais. Isso foi obra de algumas inteligências de elite, mas que não puderam, contudo, ultrapassar certos limites.
5. O duplo princípio do bem e do mal foi, durante longos séculos e sob diferentes nomes, a base de todas as crenças religiosas. Foi personificado sob os nomes de Oromaz e de Arimã entre os persas, de Jeová e de Satã entre os hebreus. Mas, como todo soberano deve ter ministros, todas as religiões admiram poderes secundários, gênios bons ou maus. Os pagãos personificaram-nos sob uma multidão de individualidades tendo cada qual atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes, e às quais deram o nome geral de deuses. Os cristãos e os muçulmanos receberam dos hebreus os anjos e os demônios.
6. A doutrina dos demônios tem, portanto, sua origem na antiga crença nos dois princípios do bem e do mal. Temos que examiná-la aqui apenas do ponto de vista cristão, e ver se ela está em relação com o conhecimento mais exato que temos hoje em dia dos atributos da Divindade.
Estes atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos, a moral, tudo está em relação com a ideia mais ou menos exata, mais ou menos elevada que se faz de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência íntima de Deus é ainda um mistério para nossa inteligência, compreendemo-lo porém melhor do que nunca, graças aos ensinamentos do Cristo. O Cristianismo, de acordo nisso com a razão, ensina-nos que:
Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.
Assim como está dito em outra parte (cap. VI, “Penas eternas): “Se se retirasse a menor parcela de um único dos atributos de Deus, não se teria mais Deus, porque poderia existir um ser mais perfeito.” Esses atributos, em sua mais absoluta plenitude, são então o critério de todas as religiões, a medida da verdade de cada um dos princípios que elas ensinam. Para que um desses princípios seja verdadeiro, é preciso que ele não prejudique nenhuma das perfeições de Deus. Vejamos se é o caso da doutrina vulgar dos demônios.