Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Música do espaço



Extraído de uma carta de um jovem a um de seus amigos, guarda de Paris: “Mulhouse, 27 de março de 1868.

“Há cerca de cinco anos ─ eu não tinha senão dezoito anos e ignorava até o nome do Espiritismo ─ fui testemunha e objeto de um fenômeno estranho do qual só me dei conta há alguns meses, depois de haver lido O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. Esse fenômeno consistia numa música invisível que se fazia ouvir no ambiente da sala, e acompanhava o meu violino, no qual tomava lições naquela época. Não era uma sucessão de sons, como os que eu produzia no meu instrumento, mas acordes perfeitos cuja harmonia era tocante; dir-se-ia uma harpa tocada com delicadeza e sentimento. Algumas vezes éramos umas doze pessoas reunidas e, sem exceção, todos ouvíamos. Mas se alguém vinha escutar por pura curiosidade, tudo cessava, e desde que o curioso partia, o efeito se produzia imediatamente. Lembrome que o recolhimento contribuía muito para a intensidade dos sons. O que havia de singular é que isto só acontecia entre cinco e oito horas da tarde. Entretanto, um domingo, um órgão da Barbária passava diante da casa, cerca de uma hora da tarde, e tocava uma ária que me deixou atento; logo a música invisível se fez ouvir na sala, acompanhando aquela ária.

“Nesses momentos, eu experimentava uma agitação nervosa que me fatigava sensivelmente e até me fazia sofrer; era como uma espécie de inquietude; ao mesmo tempo, todo o meu corpo irradiava um calor que se fazia sentir a cerca de 10 centímetros.

“Depois que li O Livro dos Médiuns experimentei escrever; uma força quase irresistível levava minha mão da esquerda para a direita num movimento febril, acompanhado de grande agitação nervosa; mas ainda não tracei senão caracteres ininteligíveis.”

Tendo-nos sido mostrada esta carta, escrevemos ao jovem, pedindo algumas explicações complementares. Eis as respostas às perguntas que lhe dirigimos, e que farão prejulgar facilmente as perguntas.

1.º ─ O fato passou-se em Mulhouse, não em meu quarto, mas na sala onde eu me exercitava mais ordinariamente, situada numa casa vizinha, em companhia de dois amigos, dos quais um tocava flauta e outro, violino; este último era o que me dava lições. Ele não se produziu em nenhum outro lugar.

2.º ─ Era necessário que eu tocasse; e se, por vezes, eu parava muito tempo, vários sons e algumas vezes diversos acordes eram ouvidos, como para me convidar a continuar. Entretanto, no dia em que essa música se produziu acompanhando um órgão da Barbária eu não estava tocando;

3.º ─ Essa música tinha um caráter muito acentuado para poder ser notada[1]; não tive a ideia de fazê-lo;

4.º ─ Ela parecia vir de um ponto bem determinado, mas que viajava constantemente na sala; fixava-se durante alguns instantes, de sorte que se podia apontar com o dedo o lugar de onde provinha, mas quando nesse lugar se procurava descobrir o segredo, logo ela mudava de lugar e se fixava noutro, ou se fazia ouvir em diferentes lugares;

5.º ─ Esse efeito durou cerca de três meses, a partir de fevereiro de 1862. Eis como cessou:

Um dia estávamos reunidos, meu patrão, um outro empregado e eu; falávamos de uma coisa e outra, quando meu patrão, sem preâmbulo, me fez esta pergunta:

─ Credes nos fantasmas?

─ Não, respondi-lhe eu.

Ele continuou a me interrogar e eu me decidi a lhe contar o que se passava. Ele me escutava com muita admiração; quando terminei, ele bateu-me no ombro, dizendo:

─ Falarão de vós.

Falou disto a um médico, que dizem muito sábio em Física, e que lhe explicou o fato, dizendo que eu era um sensitivo, um magnetizado. Procurando dar-se conta da coisa, meu patrão veio um dia encontrar-me em meu quarto e mandou-me tocar. Obedeci e a música invisível se fez ouvir durante alguns segundos, muito distintamente para mim, vagamente para o patrão e os assistentes. O patrão aí se posicionou de todas as maneiras possíveis, sem nada mais obter.

No domingo seguinte voltei ao quarto; era aquele onde a música tinha sido ouvida acompanhando o órgão da Barbária, sem que eu tocasse. Foi a última vez; desde então nada de semelhante se produziu.

OBSERVAÇÃO: Antes de atribuir um fato à intervenção dos Espíritos, há que estudar cuidadosamente todas as suas circunstâncias. Aquele de que se trata aqui tem todos os caracteres de uma manifestação; é provável que tenha sido produzido por algum Espírito simpático ao jovem, com o objetivo de trazê-lo às ideias espíritas e de chamar a atenção de outras pessoas para esta espécie de fenômenos. Mas, então, perguntarão, por que esse efeito não se produziu de maneira mais retumbante? Por que, sobretudo, cessou bruscamente? Os Espíritos não têm que dar contas de todos os motivos que os levam a agir. Mas deve-se supor que tivessem julgado o que se passou suficiente para a impressão que queriam produzir. Ademais, a cessação do fenômeno no exato momento em que queriam a sua continuação, deveria ter como resultado provar que a vontade do jovem nada tinha a ver com o fato, e que não havia charlatanice. Essa música era ouvida pelas pessoas presentes, excluído qualquer efeito de ilusão ou de imaginação, bem como de uma história para distrair; além disso, o jovem, não tendo então nenhuma noção do Espiritismo, não se pode supor que sofresse a influência de ideias preconcebidas; só após vários anos é que ele pôde compreender o fenômeno. Inúmeras pessoas estão no mesmo caso. O Espiritismo lhes traz à memória casos esquecidos que elas consideravam alucinação, e dos quais podem, daí por diante, se dar conta. Os fenômenos espontâneos são o que se pode chamar de Espiritismo experimental natural.



[1] Notação é o conjunto de sinais convencionais que simbolizam os sons de uma obra musical. (N. do revisor)


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