Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869

Allan Kardec

Você está em: Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869


Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869

Contendo

Os fatos de manifestação de Espíritos, bem como todas as notícias relativas ao Espiritismo.
O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e do mundo invisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a natureza do homem e seu futuro.
A história do Espiritismo na antiguidade; suas relações com o magnetismo e o sonambulismo; a explicação de lendas e crenças populares, da mitologia de todos os países, etc.

Publicada sob a direção
do sr. Allan Kardec.

Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente.
A potência da causa inteligente se dá em razão da grandeza do efeito.








Janeiro

Aos nossos correspondentes

Decisão do Círculo da Moral Espírita de Toulouse, a propósito do projeto de constituição.

Por ocasião do projeto de constituição que publicamos no último número da Revista, recebemos numerosas cartas de felicitações e testemunhos de simpatia que nos tocaram profundamente. Na impossibilidade de responder a cada um em particular, rogamos aos nossos honrados correspondentes a bondade de aceitar coletivamente os agradecimentos que lhes dirigimos através da Revista.

Sentimo-nos feliz, sobretudo por ver que o objetivo e o alcance desse projeto foram compreendidos e que nossas intenções não foram desprezadas. Todos viram nele a realização daquilo que desejávamos há muito tempo: uma garantia de estabilidade para o futuro, assim como as primeiras balizas de uma união entre os espíritas, união que lhes faltou até hoje, apoiada numa organização que, prevendo as dificuldades eventuais, assegure a unidade dos princípios sem imobilizar a Doutrina.

De todas as adesões que recebemos, citaremos apenas uma, porque é a expressão de um pensamento coletivo, e porque a fonte de onde ela emana lhe dá, de certo modo, um caráter oficial. É a decisão do conselho do Círculo da Moral Espírita de Toulouse, regularmente e legalmente constituído. Publicamo-la como testemunho de nossa gratidão aos membros do Círculo, movido nesta circunstância por um impulso espontâneo de devotamento à causa e, além disso, para responder aos votos que a respeito nos expressaram.

Resumo da ata do conselho administrativo do Círculo da Moral Espírita de Toulouse

A respeito da exposição feita por seu presidente, da constituição transitória dada ao Espiritismo por seu fundador e definida pelos preliminares publicados no número da Revista Espírita de 1º de dezembro corrente, o conselho vota, por unanimidade, agradecimentos ao Sr. Allan Kardec, como expressão de seu profundo reconhecimento por essa nova prova de devotamento à Doutrina da qual ele é fundador, e faz votos pela realização desse sublime projeto, que considera como o digno coroamento da obra do mestre, do mesmo modo que vê na instituição da comissão central a cúpula do edifício chamada a dirigir permanentemente os benefícios do Espiritismo para a Humanidade inteira.

Considerando que é dever de todo adepto sincero concorrer, na medida de seus recursos, para a criação do capital necessário a essa constituição, e desejando facilitar a cada membro do Círculo da Moral Espírita o meio de contribuir para isso, decide:

Que a subscrição ficará aberta no secretariado do Círculo até 15 de março próximo, e que a soma apurada nesse período será enviada ao Sr. Allan Kardec para ser depositada na Caixa Geral do Espiritismo.

Conferida e certificada conforme a minuta, por nós, secretário abaixo assinado,

CHÊNE, secretário adjunto.


Estatística do Espiritismo

Uma enumeração exata dos espíritas seria coisa impossível, como já dissemos, por uma razão muito simples, é que o Espiritismo não é nem uma associação, nem uma congregação; seus aderentes não estão inscritos em nenhum registro oficial. É bem sabido que não se poderia avaliar a quantidade pelo número e pela importância das sociedades, frequentadas apenas por uma minoria ínfima. O Espiritismo é uma opinião que não exige qualquer profissão de fé, e pode estender-se ao todo ou a parte dos princípios da Doutrina. Basta simpatizar com a ideia para ser espírita. Ora, não sendo essa qualidade conferida por nenhum ato material, e não implicando senão obrigações morais, não existe qualquer base fixa para determinar o número dos adeptos com precisão. Não se pode estimá-lo senão aproximadamente, pelas relações e pela maior ou menor facilidade com que a ideia se propaga. Esse número aumenta dia a dia, numa proporção considerável; é um fato positivo, reconhecido pelos próprios adversários; a oposição diminui, prova evidente de que a ideia encontra mais numerosas simpatias.

Ademais, compreende-se que é apenas pelo conjunto, e não pela situação das localidades consideradas isoladamente, que se pode basear uma apreciação, pois há em cada localidade elementos mais ou menos favoráveis, em razão do estado particular dos espíritos e também das resistências mais ou menos influentes que aí se exercem; mas essa situação é variável, porque uma localidade que se tenha mostrado refratária durante vários anos, de repente se torna um foco. Quando os elementos de apreciação tiverem adquirido mais precisão, será possível fazer um mapa colorido, em relação à difusão das ideias espíritas, como foi feito para a instrução. Enquanto isso, pode-se afirmar, sem exagero, que, em suma, o número dos adeptos centuplicou em dez anos, malgrado as manobras empregadas para abafar a ideia e contrariamente às previsões de todos aqueles que se vangloriavam de tê-la enterrado. Isto é um fato consumado, do qual é preciso que os antagonistas tomem conhecimento.

Só falamos aqui dos que aceitam o Espiritismo com conhecimento de causa, depois de tê-lo estudado, e não daqueles que, bem mais numerosos ainda, nos quais estas ideias estão em estado de intuição, e para os quais falta apenas definirem suas crenças com mais precisão e dar-lhes um nome, para serem espíritas confessos. É um fato sobejamente comprovado que se verifica todos os dias, sobretudo de algum tempo para cá, que as ideias espíritas parecem inatas numa porção de indivíduos que jamais ouviram falar de Espiritismo. Não se pode dizer que tenham sofrido alguma influência nem que seguiram o impulso de um grupo. Que os adversários expliquem, se puderem, esses pensamentos que nascem fora e paralelamente ao Espiritismo! Não seria, certamente, um sistema preconcebido no cérebro de um homem que poderia ter produzido um tal resultado. Não há prova mais evidente de que essas ideias estão na Natureza, nem melhor garantia de sua vulgarização no futuro e de sua perpetuidade. Deste ponto de vista pode-se dizer que pelo menos três quartos da população de todos os países possuem o germe das crenças espíritas, pois são encontrados entre aqueles mesmos que lhe fazem oposição. Na maioria, a oposição vem da ideia falsa que fazem do Espiritismo; não o conhecendo, em geral, senão pelas ridículas descrições que dele fez a crítica malévola ou interessada em desacreditá-lo, eles recusam com razão a qualificação de espíritas. Certamente, se o Espiritismo se assemelhasse aos grotescos retratos que dele fizeram; se ele se compusesse das crenças e práticas absurdas que tiveram o prazer de atribuir-lhe, seríamos o primeiro a repudiar o título de espírita. Quando, pois, essas mesmas pessoas souberem que a Doutrina não é senão a coordenação e o desenvolvimento de suas próprias aspirações e de seus pensamentos íntimos, aceitá-la-ão. São incontestavelmente futuros espíritas, mas, por enquanto, não os incluímos em nossas estimativas.

Se é impossível uma estatística numérica, há outra, talvez mais instrutiva, e para a qual existem elementos que nos fornecem as nossas relações e a nossa correspondência; é a proporção relativa dos espíritas segundo as profissões, a posição social, as nacionalidades, as crenças religiosas, etc., levando em conta o fato que certas profissões, como os oficiais ministeriais, por exemplo, são em número limitado, ao passo que outras, como os industriais e os que vivem de rendimentos, são em número indefinido. Guardada a proporção, pode-se ver quais são as categorias nas quais o Espiritismo encontrou, até hoje, mais aderentes. Em algumas a proporção pôde ser estabelecida em porcentagem, com muita precisão, sem contudo pretender que tenha um rigor matemático; as outras categorias foram simplesmente classificadas em razão do número de adeptos que elas forneceram, começando pelas mais numerosas, de que a correspondência e a lista de assinantes da Revista podem fornecer os elementos. O quadro seguinte é resultado do levantamento de mais de dez mil observações.

Constatamos o fato, sem procurar nem discutir a causa dessa diferença, o que, não obstante, poderia ser assunto para um estudo interessante.


Proporção relativa dos Espíritas



I. ─ Em relação às nacionalidades: - Não existe, por assim dizer, nenhum país civilizado da Europa e da América onde não haja espíritas. Eles são mais numerosos nos Estados Unidos da América do Norte. Seu número aí é calculado, por uns, em quatro milhões, o que já é muito, e por outros em dez milhões. Esta última cifra evidentemente é exagerada, porque compreenderia mais de um terço da população, o que não é provável. Na Europa a cifra pode ser avaliada em um milhão, e a França figura com seiscentos mil. Pode-se estimar o número dos espíritas do mundo inteiro em seis ou sete milhões. Mesmo que fosse a metade, a História não oferece nenhum exemplo de uma doutrina que em menos de quinze anos tivesse reunido tal número de adeptos disseminados por toda a superfície do globo. Se aí incluíssemos os espíritas inconscientes, isto é, os que só o são por intuição, e mais tarde se tornarão espíritas de fato, só na França poder-se-iam contar vários milhões.


Do ponto de vista da difusão das ideias espíritas e da facilidade com que são aceitas, os principais países da Europa podem ser classificados como se segue: 1º França. ─ 2º Itália. ─ 3º Espanha. ─ 4º Rússia. ─ 5º Alemanha. ─ 6º Bélgica. ─ 7º Inglaterra. ─ 8º Suécia e Dinamarca. ─ 9º Grécia. ─ 10º Suíça.


II. ─ Em relação ao sexo: 70% homens e 30% mulheres.


III. ─ Em relação à idade: de 30 a 70 anos, máximo; de 20 a 30, médio; de 70 a 80, mínimo.


IV. ─ Em relação à instrução: O grau de instrução é muito fácil de avaliar pela correspondência. Instrução cuidada, 30%; simples letrados, 30%; instrução superior, 20%; ─ semiletrados, 10%; ─ iletrados, 6%; ─ sábios oficiais, 4%.


V. ─ Em relação às ideias religiosas: católicos romanos, livres-pensadores, não ligados ao dogma, 50%; ─ católicos gregos, 15%; ─ judeus, 10%; ─ protestantes liberais, 10%; ─ católicos ligados aos dogmas, 10%; ─ protestantes ortodoxos, 3%; ─ muçulmanos, 2%.


VI. ─ Em relação à fortuna: mediocridade, 60%; ─ fortunas médias, 20%; ─ indigência 15%; ─ grandes fortunas, 5%.


VII. ─ Em relação ao estado moral, abstração feita da fortuna: aflitos, 60%; ─ sem inquietude, 30%; ─ felizes do mundo, 10%; ─ sensualistas, 0.


VIII. Em relação à classe social: Sem poder estabelecer qualquer proporção nesta categoria, é notório que o Espiritismo conta entre os seus aderentes vários soberanos e príncipes regentes; membros de famílias soberanas e um grande número de personagens tituladas. Em geral, é nas classes médias que o Espiritismo conta mais adeptos. Na Rússia é mais ou menos exclusivamente na nobreza e na alta aristocracia. Na França o Espiritismo se propagou na pequena burguesia e na classe operária.


IX. ─ Estado militar, segundo o grau: l.º ─ tenentes e subtenentes; 2.º ─ suboficiais; 3.º ─ capitães; 4.º ─ coronéis; 5.º ─ médicos e cirurgiões; 6.º ─ generais; 7.º ─ guardas municipais; 8.º ─ soldados da guarda; 9.º ─ soldados de linha. OBSERVAÇÃO; Os tenentes e subtenentes espíritas estão quase todos na ativa; entre os capitães há cerca de metade na ativa e outra metade na reserva; os coronéis, médicos, cirurgiões e generais, em sua maioria estão na reserva.


X. ─ Marinha: 1º. ─ marinha militar; 2º. ─ marinha mercante.


XI. ─ Profissões liberais e funções diversas. Agrupamo-los em dez categorias, classificadas segunda a proporção dos aderentes que elas forneceram ao Espiritismo: 1.º ─ Médicos homeopatas. ─ Magnetistas[1] 2.º ─ Engenheiros. ─ Professores: diretores e diretoras de internatos. ─ Professores livres. 3.º ─ Cônsules. ─ Padres católicos. 4.º ─ Pequenos empregados. ─ Músicos. ─ Artistas líricos. ─ Artistas dramáticos. 5.º ─ Meirinhos. ─ Comissários de polícia. 6.º ─ Médicos alopatas. ─ Homens de letras. ─ Estudantes. 7.º ─ Magistrados. ─ Altos funcionários. ─ Professores oficiais e de liceus. ─ Pastores protestantes. 8.º ─ Jornalistas. ─ Pintores. ─ Arquitetos. ─ Cirurgiões. 9.º ─ Notários. ─ Advogados. ─ Procuradores. ─ Agentes de negócios. 10.º ─ Agentes de câmbio. ─ Banqueiros.


XII. ─ Profissões industriais, manuais e comerciais, igualmente grupadas em dez categorias. 1º ─ Alfaiates. ─ Costureiras. 2º ─ Mecânicos. ─ Empregados de estradas de ferro. 3º ─ Tecelões. ─ Pequenos negociantes. ─ Porteiros. 4º ─ Farmacêuticos. ─ Fotógrafos. ─ Relojoeiros. ─ Viajantes comerciais. 5º ─ Plantadores. ─ Sapateiros. 6º ─ Padeiros. ─ Açougueiros. ─ Salsicheiros. 7º ─ Marceneiros. ─ Tipógrafos. 8º ─ Grandes industriais e chefes de estabelecimentos. 9º ─ Livreiros. ─ Impressores. 10º ─ Pintores de casas. ─ Pedreiros. ─ Serralheiros. ─ Merceeiros. ─ Domésticos.


Deste levantamento resultam as seguintes consequências:


1.º ─ Que há espíritas em todos os graus da escala social.


2.º ─ Que há mais homens que mulheres espíritas. É certo que nas famílias divididas por suas crenças, no tocante ao Espiritismo, há mais maridos contrariados pela opinião das esposas do que mulheres pela dos maridos. Não é menos evidente que, em todas as reuniões espíritas, os homens são maioria. É portanto erradamente que a crítica pretendeu que a Doutrina recruta principalmente entre as mulheres, em virtude da sua inclinação para o maravilhoso. É precisamente o contrário, porquanto essa inclinação para o maravilhoso e para o misticismo em geral as torna mais refratárias que os homens; essa predisposição faz com que elas aceitem mais facilmente a fé cega, que dispensa qualquer exame, ao passo que o Espiritismo, não admitindo senão a fé raciocinada, exige reflexão e a dedução filosófica para ser bem compreendido, para o que a educação estreita dada às mulheres torna-as menos aptas que os homens. Aquelas que sacodem o jugo imposto à sua razão e ao seu desenvolvimento intelectual, muitas vezes caem num excesso contrário; elas tornam-se o que chamam de mulheres fortes e são de uma incredulidade mais tenaz.
3.º ─ Que a grande maioria dos espíritas se acha entre as pessoas esclarecidas e não entre as ignorantes. Por toda parte o Espiritismo se propagou de alto a baixo da escala social, e em parte alguma se desenvolveu primeiro nas camadas inferiores.


4.º ─ Que a aflição e a infelicidade predispõem às crenças espíritas, em consequência das consolações que elas proporcionam. É a razão pela qual, na maioria das categorias, a proporção dos espíritas está na razão da inferioridade hierárquica, porque é aí que há mais privações e sofrimento, ao passo que os titulares das posições superiores em geral pertencem à classe dos satisfeitos; daí há que excluir o estado militar, onde os simples soldados figuram em último lugar.


5.º ─ Que o Espiritismo encontra mais fácil acesso entre os incrédulos em matéria religiosa do que entre os que têm uma fé consolidada.


6.º ─ Enfim, que depois dos fanáticos, os mais refratários às ideias espíritas são os sensualistas e as pessoas cujos únicos pensamentos estão concentrados nas posses e nos prazeres materiais, seja qual for a classe a que pertençam, o que independe do grau de instrução.


Em resumo, o Espiritismo é acolhido como um benefício pelos que ele ajuda a suportar o fardo da vida, e é repelido ou desdenhado por aqueles a quem prejudicaria no gozo da vida. Partindo deste princípio, facilmente se explica a posição que ocupam, no quadro, certas categorias de indivíduos, malgrado as luzes que são uma condição de sua posição social. Pelo caráter, os gostos, os hábitos, o gênero de vida das pessoas, pode-se julgar antecipadamente sua aptidão para assimilar as ideias espíritas. Em alguns a resistência é uma questão de amor-próprio, que segue quase sempre o grau do saber. Quando esse saber os fez conquistar uma certa posição social que os põe em evidência, eles não querem concordar que podiam ter-se enganado e que outros podem ter visto melhor. Oferecer provas a certas pessoas é oferecer-lhes o que elas mais temem. Com medo de achá-las, eles tapam os olhos e os ouvidos, preferindo negar a priori e abrigar-se atrás de sua infalibilidade, de que estão muito convencidas, digam-lhes o que disserem.


É mais difícil compreender a posição que ocupam, nesta classificação, certas profissões industriais. Pergunta-se, por exemplo, por que os alfaiates aí ocupam a primeira posição, enquanto livreiros e impressores, profissões bem mais intelectuais, estão quase na última. É um fato constatado há muito tempo e do qual ainda não percebemos a causa.


Se, no levantamento acima, em vez de não abranger senão os espíritas de fato, tivéssemos considerado os espíritas inconscientes, aqueles nos quais essas ideias estão no estado de intuição e que fazem Espiritismo sem o saber, várias categorias certamente teriam sido classificadas diversamente: por exemplo, os literatos, os poetas, os artistas, numa palavra, todos os homens de imaginação e de inspiração, os crentes de todos os cultos estariam, sem dúvida nenhuma, no primeiro lugar. Certos povos, nos quais as crenças espíritas de certo modo são inatas, também ocupariam outra posição. Eis por que essa classificação não poderia ser absoluta, e modificarse-á com o tempo.


Os médicos homeopatas estão à frente das profissões liberais porque, com efeito, é aquela que, guardadas as proporções, conta nas suas fileiras o maior número de adeptos do Espiritismo: em cem médicos espíritas, há pelo menos oitenta homeopatas. Isto se deve ao fato que o próprio princípio de sua medicação os conduz ao espiritualismo. Os materialistas são muito raros entre eles, se é que existem, ao passo que são numerosos entre os alopatas. Melhor que estes últimos, eles compreenderam o Espiritismo, porque acharam nas propriedades fisiológicas do perispírito, unido ao princípio material e ao princípio espiritual, a razão de ser de seu sistema. Pelo mesmo motivo, os espíritas puderam, melhor que outros, compreender os efeitos desse modo de tratamento. Sem serem exclusivos a respeito da homeopatia, e sem rejeitar a alopatia, eles compreenderam a sua racionalidade e a sustentaram contra ataques injustos. Achando novos defensores entre os espíritas, os homeopatas não tiveram a inabilidade de lhes atirar pedras.


Se os magnetistas figuram na primeira linha, logo após os homeopatas, malgrado a oposição persistente e por vezes acerba de alguns, é que os oponentes não formam senão uma pequeníssima minoria ao lado da massa dos que são, pode-se dizer, espíritas por intuição. O magnetismo e o Espiritismo são, com efeito, duas ciências gêmeas, que se completam e se explicam uma pela outra, e, das duas, a que não quer imobilizar-se não pode chegar ao seu complemento sem se apoiar na sua congênere; isoladas uma da outra, detêm-se num impasse; são reciprocamente como a Física e a Química, a Anatomia e a Fisiologia. A maioria dos magnetistas compreende de tal modo por intuição a relação íntima que deve existir entre as duas coisas, que geralmente se prevalecem de seus conhecimentos em magnetismo como meio de introdução junto aos espíritas.


Em todos os tempos os magnetistas estiveram divididos em dois campos: os espiritualistas e os fluidistas. Estes últimos, muito menos numerosos, pelo menos fazendo abstração do princípio espiritual, quando não o negam absolutamente, atribuindo tudo à ação do fluido material, estão, por conseguinte, em oposição de princípios com os espíritas. Ora, é de notar que, se nenhum magnetistas é espírita, todos os espíritas, sem exceção, admitem o magnetismo. Em todas as circunstâncias eles se fizeram seus defensores e baluartes. Eles devem ter-se admirado de encontrar adversários mais ou menos malévolos nesses mesmos cujas fileiras acabavam de reforçar; que, depois de terem sido, durante mais de meio século, vítimas de ataques, de troças e de perseguições de toda espécie, por sua vez atirem pedras, sarcasmos e por vezes injúrias aos colaboradores que lhes chegam e comecem a pesar na balança, por seu número.


Ademais, como dissemos, essa oposição está longe de ser geral, muito pelo contrário; pode-se afirmar, sem se afastar da verdade, que ela não chega a mais de 2% a 3% da totalidade dos magnetistas. Ela é muito menor ainda entre os da província e do estrangeiro do que de Paris.


[1] O Vocábulo magnetizador desperta a ideia de ação; o de magnetista uma ideia de adesão. O magnetizador é o que exerce por profissão ou outra coisa. Pode-se ser magnetista sem ser magnetizador. Dir-se-á; um magnetizador experimentado e um magnetista convicto.


O Espiritismo do ponto de vista católico

Extraído do Jornal le Voyageur de Commerce de 22 de novembro de 1868[1]

Algumas páginas sinceras sobre o Espiritismo, escritas por um homem de boa-fé, não poderiam ser inúteis nesta época, e talvez seja tempo de se fazer justiça e luz sobre uma questão que, embora contando hoje no mundo inteligente adeptos numerosos, não tem sido menos relegada ao domínio do absurdo e do impossível por espíritos levianos, imprudentes e pouco preocupados com o desmentido que o futuro lhes pode dar.

Seria curioso interrogar hoje esses pretensos sábios que, do alto de seu orgulho e de sua ignorância decretavam, ainda há pouco, com um soberbo desdém, a loucura desses homens gigantes que procuravam novas aplicações para o vapor e a eletricidade. Felizmente a morte lhes poupou essas humilhações.

Para fixar claramente a nossa situação, faremos ao leitor uma profissão de fé em algumas linhas:

Espírita, Avatar, Paul d’Apremont provam-nos incontestavelmente o talento de Théophile Gautier, esse poeta a quem o maravilhoso sempre atraiu; estes livros encantadores são pura imaginação e seria erro neles procurar outra coisa; o Sr. Home era um prestidigitador hábil;os irmãos Davenport, chantagistas desajeitados.

Todos aqueles que quiseram fazer do Espiritismo um negócio de especulação dependem, em nossa opinião, da polícia correcional ou do tribunal de justiça, e eis por quê: Se o Espiritismo não existe, são impostores passíveis da penalidade infringida pelo abuso de confiança; ao contrário, se ele existe, é com a condição de ser a coisa sagrada por excelência, a mais majestosa manifestação da divindade. Se admitíssemos que o homem, passando sobre o túmulo, pudesse de pé firme penetrar na outra vida, corresponder-se com os mortos e ter assim a única prova irrecusável ─ porque seria material ─ da imortalidade da alma, não seria um sacrilégio entregar a charlatães o direito de profanar o mais santo dos mistérios e violar, sob a proteção dos magistrados, o segredo eterno dos túmulos? O bom-senso, a moral, a própria segurança dos cidadãos exigem imperiosamente que esses novos ladrões sejam expulsos do templo, e que nossos teatros e nossas praças públicas sejam fechados a esses falsos profetas que lançam nos espíritos fracos um terror de que a loucura muitas vezes é a consequência.

Isto posto, entremos no âmago da questão.

Ao ver as escolas modernas, que fazem tumulto em torno de certos princípios fundamentais e de certezas conquistadas, é fácil compreender que o século da dúvida e do desencorajamento em que vivemos está presa de vertigem e cegueira.

Entre todos esses dogmas, o mais agitado foi, sem contestação, o da imortalidade da alma.

Com efeito, tudo se resume nisto: é a questão por excelência, é o homem todo inteiro, é o seu presente, é o seu futuro; é a sanção da vida, é a esperança da morte; é a ela que vêm ligar-se todos os grandes princípios da existência de Deus, da alma, da religião revelada.

Admitida esta verdade, não é mais a vida que nos deve inquietar, mas o termo da vida; os prazeres se apagam para dar lugar ao dever; o corpo não é mais nada, a alma é tudo; o homem desaparece e só Deus brilha em sua eterna imensidade.

Então, a grande palavra da vida, a única, é a morte, ou melhor, a nossa transformação. Sendo chamados a passar pela Terra como fantasmas, é para esse horizonte que se entreabre do outro lado que devemos lançar o olhar; viajantes de alguns dias, é ao partir que convém nos informemos sobre o objetivo de nossa peregrinação, que perguntemos à vida o segredo da eternidade, que assentemos as balizas do nosso caminho e que, passageiros da morte à vida, sustentemos com mão firme o fio que atravessa o abismo.

Disse Pascal; “A imortalidade da alma é uma coisa que nos importa tanto e que nos toca tão profundamente, que é preciso haver perdido todo o sentimento para não nos interessarmos em saber o que ela é. Todas as nossas ações, todos os nossos pensamentos devem tomar caminhos tão diferentes, conforme houver ou não bens eternos a esperar, que é impossível fazer uma manobra com senso e raciocínio se não nos pautarmos pela visão desse plano, que deve ser o nosso primeiro objetivo.”

Em todas as épocas o homem teve por patrimônio comum a noção da imortalidade da alma e procurou apoiar em provas essa ideia consoladora. Ele acreditou achá-la nos usos e costumes dos diversos povos, nos relatos dos historiadores, nos cantos dos poetas. Sendo anterior a todo sacerdote, a todo legislador, a todo escritor, não tendo saído de nenhuma seita, de nenhuma escola, e existindo nos povos bárbaros como nas nações civilizadas, de onde viria ela senão de Deus, que é a verdade?

Ah! Essas provas que o medo do nada criou não são senão esperanças de um futuro construído sobre um areal incerto, sobre areia movediça, e as deduções da lógica mais cerrada jamais chegarão à altura de uma demonstração matemática.

Esta prova material, irrecusável, justa como um princípio divino e como uma adição ao mesmo tempo, acha-se inteira no Espiritismo e não poderia encontrar-se alhures. Considerando-a deste ponto de vista elevado, como uma âncora de misericórdia, como a suprema tábua de salvação, compreende-se facilmente o número de adeptos que este novo altar plenamente católico agrupou em torno de seus degraus, porque não há que se enganar, é aí e não alhures que se deve procurar a origem do sucesso que essas novas doutrinas criaram junto a homens que brilham no primeiro plano da eloquência sagrada ou profana, e cujos nomes têm uma merecida notoriedade nas ciências e nas letras.

Que é, pois, o Espiritismo?

Na sua definição mais ampla, o Espiritismo é a facilidade que possuem certos indivíduos de entrar em relação, através de um intermediário, ou médium, que não passa de um instrumento em suas mãos, com o Espírito de pessoas mortas que habitam um outro mundo. Esse sistema, que se apoia, dizem os crentes, num grande número de testemunhos, oferece uma singular sedução, menos pelos resultados do que por suas promessas.

Nesta ordem de ideias, o sobrenatural não é mais um limite, a morte não é mais uma barreira, o corpo não é mais um obstáculo à alma, que dele se desembaraça após a vida, como, durante a vida, dela se desembaraça momentaneamente, no sonho. Na morte, o Espírito está livre; se for puro, eleva-se para as esferas que nos são desconhecidas; se impuro, erra em volta da Terra, põe-se em comunicação com o homem, que trai, engana e corrompe. Os espíritas não creem nos bons Espíritos. O clero, de acordo com o texto da Bíblia, não crê igualmente senão nos maus, e os encontra nesta passagem. “Tomai cuidado, porque o demônio ronda em torno de vós e vos espreita como um leão buscando sua presa, quaerens quem devoret.”

Assim, o Espiritismo não é uma descoberta moderna. Jesus expulsava os demônios do corpo dos possessos, e Diodoro de Sicília fala dos fantasmas; os deuses lares dos romanos, seus Espíritos familiares, que eram, pois?

Mas, então, por que repelir com prevenção e sem exame um sistema, certamente perigoso do ponto de vista da razão humana, mas cheio de esperanças e consolações? A brucínia sabiamente administrada é um dos nossos mais poderosos remédios; por que é um violento veneno em mãos inábeis, há uma razão para proscrevê-la do Códex?

O Sr. Baguenault de Puchesse, um filósofo e um cristão, de cujo livro faço numerosos empréstimos, porque suas ideias são as minhas, diz, no seu belo livro Immortalité, a propósito do Espiritismo: “Suas práticas inauguram um sistema completo que compreende o presente e o futuro, que traça os destinos do homem, abre-lhe as portas da outra vida e o introduz no mundo sobrenatural. A alma sobrevive ao corpo, pois aparece e se mostra após a dissolução dos elementos que o compõem. O princípio espiritual se desprende, persiste e, por seus atos, afirma sua existência. A partir daí o materialismo é condenado pelos fatos; a vida de alémtúmulo se torna um fato certo e como que palpável; o sobrenatural assim se impõe à Ciência e, submetendo-se ao seu exame, não lhe permite mais repeli-lo teoricamente e declará-lo, em princípio, impossível.”

O livro que assim fala do Espiritismo é dedicado a uma das luzes da Igreja, a um dos mestres da Academia Francesa, um dos luminares das letras contemporâneas, que respondeu:

“Um belo livro, sobre um grande assunto, publicado pelo presidente de nossa Academia de Santa Cruz, será uma honra para vós e para toda a nossa Academia. Talvez não possais escolher uma questão mais alta nem mais importante a estudar na hora presente... Permiti-me, pois, senhor e muito caro amigo, vos oferecer, pelo belo livro que dedicais à nossa Academia e pelo bom exemplo que nos dais, todas as minhas felicitações e todos os meus agradecimentos, com a homenagem de meu religioso e profundo devotamento.

“FÉLIX, Bispo de Orléans.

“Orléans, 28 de março de 1864”


O artigo é assinado por Robert de Salles.

Evidentemente o autor não conhece o Espiritismo senão de maneira incompleta, como o provam certas passagens de seu artigo, entretanto, considera-o como coisa muito séria e, salvo poucas exceções, os espíritas não poderão senão aplaudir o conjunto de suas reflexões. Ele está em erro sobretudo ao dizer que os espíritas não creem nos bons Espíritos, e também na definição que dá como a mais ampla expressão do Espiritismo. É, diz ele, a faculdade que possuem certos indivíduos, de entrar em relação com o Espírito de pessoas mortas.

A mediunidade, ou faculdade de comunicar-se com os Espíritos não constitui o fundo do Espiritismo, sem o que, para ser espírita, seria preciso ser médium. A mediunidade não passa de um acessório, um meio de observação, e não a ciência, que está toda inteira na doutrina filosófica. O Espiritismo não está mais enfeudado na mediunidade do que a Astronomia numa luneta, e a prova disto é que se pode fazer Espiritismo sem médiuns, como se fez Astronomia muito tempo antes de haver telescópios. A diferença consiste em que, no primeiro caso, se faz ciência teórica, ao passo que a mediunidade é o instrumento que permite assentar a teoria sobre a experiência. Se o Espiritismo estivesse circunscrito à faculdade mediúnica, sua importância seria singularmente diminuída e, para muita gente, reduzir-se-ia a fatos mais ou menos curiosos.

Lendo esse artigo, pergunta-se se o autor crê ou não no Espiritismo, porquanto ele não o expõe, de certo modo, senão como uma hipótese, mas como uma hipótese digna da mais séria atenção. Se for uma verdade, diz ele, é uma coisa sagrada por excelência, que não deve ser tratada senão com respeito, e cuja exploração só mereceria ser desrespeitada e perseguida com toda a severidade.

Não é a primeira vez que esta ideia é emitida, mesmo pelos adversários do Espiritismo, e é de notar que é sempre o lado pelo qual a crítica julgou pôr a Doutrina em erro, atendo-se aos abusos do tráfico a que deu ocasião; é que ela sente que este seria o lado vulnerável, pelo qual poderia acusá-la de charlatanismo, motivo pelo qual a malevolência se encarniça em ligá-la aos charlatães, ledores da sorte e outros exploradores da mesma espécie, esperando, por esse meio, ludibriar e lhe tirar o caráter de dignidade e de gravidade que constitui a sua força. O ataque aos Davenport, que tinham julgado poder impunemente pôr os Espíritos em desfile nos palcos, prestou um imenso serviço. Em sua ignorância do verdadeiro caráter do Espiritismo, a crítica de então julgou feri-lo de morte, ao passo que não desacreditou senão os abusos contra os quais todos os espíritas sinceros sempre protestaram.

Seja qual for a crença do autor, e malgrado os erros contidos em seu artigo, devemos felicitar-nos por nele ver a questão tratada com a gravidade que o assunto comporta. A imprensa raramente tem ouvido falar dele num sentido tão sério, mas há começo para tudo.



[1] Le Voyageur de Commerce sai todos os domingos. - Escritório; bairro Saint-Honoré, 3. Preço: 22 francos por ano; 12 francos por semestre; 6,50 francos por trimestre. Pelo fato de ter publicado o artigo que será lido, que é a expressão do pensamento do autor, nada prejulgamos quanto às simpatias pelo Espiritismo, porquanto só o conhecemos por este número que tiveram a bondade de nos enviar.

Processo das envenenadoras de Marselha

O nome do Espiritismo achou-se incidentalmente envolvido neste caso deplorável. Um dos acusados, o ervanário Joye, disse ter-se ocupado com o fato, e que interrogava os Espíritos. Isto prova que ele fosse espírita e que se possa algo inferir contra a Doutrina? Sem dúvida, os que querem desacreditá-la não deixarão de aí buscar um pretexto para acusação, mas, se as diatribes da malevolência até hoje não deram resultado, é que sempre foram falsas, como aqui é o caso. Para saber se o Espiritismo incorre numa responsabilidade qualquer nesta circunstância, o meio é muito simples; é inquirir-se, com boa-fé, não entre os adversários, mas na própria fonte, o que ele prescreve e o que ele condena. Não há nada secreto; seus ensinamentos estão à plena luz e cada um os pode controlar. Se, pois, os livros da Doutrina não encerram senão instruções de natureza a levar ao bem; se eles condenam de maneira explícita e formal todos os atos desse homem, as práticas a que ele se entregou, o papel ignóbil e ridículo que atribui aos Espíritos, é que ele não colheu as suas inspirações. Não há um homem imparcial que não concorde e não declare o Espiritismo fora de questão nesse episódio.

O Espiritismo só reconhece como adeptos aqueles que põem em prática os seus ensinamentos, isto é, que trabalham a sua própria melhora moral, porque é esse o sinal característico do verdadeiro espírita. Ele não é mais responsável pelos atos daqueles a quem agrada dizer-se espíritas, do que a verdadeira Ciência pelo charlatanismo dos escamoteadores que se intitulam professores de Física, e a sã religião pelos abusos cometidos em seu nome.

Diz a acusação, a propósito de Joye; “Foi encontrado em sua casa um registro que dá a ideia de seu caráter e de suas ocupações. Segundo ele, cada página teria sido escrita conforme o ditado dos Espíritos, e é cheio de ardentes suspiros por Jesus Cristo. Em cada página fala-se de Deus e os santos são invocados. Ao lado, por assim dizer, há notas que podem dar uma ideia das operações habituais do ervanário;

“Para espiritismo, 4,25 francos. ─ Doentes, 6 francos ─ Cartas, 2 francos ─

Malefícios, 10 francos ─ Exorcismos, 4 francos ─ Bagueta divinatória, 10 francos ─ Malefícios por tiragem da sorte, 60 francos” e muitas outras designações, entre as quais se encontram malefícios para náuseas, e que terminam por esta menção: “Em janeiro fiz 226 francos. Os outros meses foram menos frutuosos.”

Alguém já viu em obras da Doutrina Espírita a apologia de semelhantes práticas, bem como qualquer coisa que seja de natureza a provocá-las? Ao contrário, nelas não se vê que a Doutrina repudia toda solidariedade com a magia, a feitiçaria, as maquinações, os cartomantes, os adivinhos, os ledores do futuro, e todos os que fazem profissão do comércio com os Espíritos, pretendendo tê-los às suas ordens e a tanto por sessão?

Se Joye tivesse sido espírita, de início já teria olhado como uma profanação fazer intervirem os Espíritos em semelhantes circunstâncias. Ele teria sabido, além disso, que os Espíritos não estão às ordens de ninguém, e que eles não vêm nem em obediência a voz de comando, nem pela influência de qualquer sinal cabalístico; que os Espíritos são as almas dos homens que viveram na Terra ou em outros mundos, nossos pais, nossos amigos, nossos contemporâneos ou nossos antepassados; que eles foram homens como nós, e que depois de nossa morte seremos Espíritos como eles; que os gnomos, duendes, trasgos, demônios, são criações de pura fantasia e só existem na imaginação; que os Espíritos são livres, mais livres que quando estavam encarnados, e que pretender submetê-los aos nossos caprichos e à nossa vontade, fazê-los agir e falar conforme nosso desejo, para o nosso divertimento ou por nosso interesse, é uma ideia quimérica; que eles vêm quando querem, da maneira que querem e a quem lhes convém; que o objetivo providencial das comunicações com os Espíritos é nossa instrução e nossa melhora moral, e não de ajudar-nos nas coisas materiais da vida, que podemos fazer ou encontrar por nós mesmos, e ainda menos de servir à cupidez; enfim, que, em razão de sua própria natureza e do respeito que devemos às almas dos que viveram, é tão irracional quanto imoral ter escritório de consulta e exibição dos Espíritos. Ignorar estas coisas é ignorar o á-bê-cê do Espiritismo, e quando a crítica o confunde com a cartomancia, a quiromancia, os exorcismos, as práticas de feitiçaria, os malefícios, os encantamentos, etc., ela prova que ignora todos os seus princípios. Ora, negar ou condenar uma doutrina que não se conhece, é faltar à lógica mais elementar; é emprestar-lhe ou fazê-la dizer precisamente o contrário do que ela diz; é calúnia ou parcialidade.

Considerando-se que Joye misturava em seus processos o nome de Deus, de Jesus e a invocação dos santos, também podia muito bem a eles misturar o nome do Espiritismo, o que não depõe mais contra a Doutrina do que o seu simulacro de devoção depõe contra a sã religião. Portanto, ele não era mais espírita porque interrogava supostos Espíritos do que as mulheres Lamberte e Dye eram verdadeiramente piedosas porque queimavam velas para a Boa-Mãe, Nossa Senhora da Guarda, para o êxito de seus envenenamentos. Ademais, se ele fosse espírita, nem mesmo lhe teria tido a ideia de servir para a perpetração do mal por intermédio de uma doutrina cuja primeira lei é o amor ao próximo, e que tem por divisa: Fora da caridade não há salvação. Se se imputasse ao Espiritismo a incitação a semelhantes atos, poder-se-ia, sob a mesma justificativa, responsabilizar a religião.

A propósito, eis algumas reflexões da Opinion Nationale de 8 de dezembro:



O jornal Monde acusa o Siècle, os maus jornais, as más reuniões, os maus livros, de cumplicidade no caso das envenenadoras de Marselha.

“Lemos com dolorosa curiosidade os debates desse estranho caso, mas não vimos em parte alguma que o feiticeiro Joye ou a feiticeira Lamberte tenham sido assinantes do Siècle, do Avenir ou da Opinion. Um só jornal foi encontrado na casa de Joye; era um número do Diable, journal de l‘enfer. As viúvas que figuram nesse amável processo estão muito longe de ser livres-pensadoras. Elas acendem velas à boa Virgem, para obter de Nossa Senhora a graça de envenenar tranquilamente os seus maridos. Encontra-se nesse negócio toda a velha bagagem da Idade Média: ossos de defuntos colhidos no cemitério, disfarces que não passam de feitiços do tempo da rainha Margot. Todas essas senhoras foram educadas, não nas escolas Elisa Lemonnier, mas entre as boas irmãs. Juntai às superstições católicas as superstições modernas, espiritismo e outras charlatanices. Foi o absurdo que conduziu essas senhoras ao crime. É assim que na Espanha, perto da foz do Ebro, vê-se na montanha uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Ladrões.

“Semeai a superstição e colhereis o crime. Por isto pedimos que se semeie a ciência. ‘Esclarecei a cabeça do povo, disse Victor Hugo, e não tereis mais necessidade de cortá-la’.

“J. Labbé.”

O argumento de que os acusados não eram assinantes de certos jornais não tem valor, pois se sabe que não é preciso ser assinante de um jornal para lê-lo, sobretudo nessa classe de indivíduos.

O Opinion Nationale poderia, pois, achar-se nas mãos de alguns dentre eles, sem que se pudesse nada concluir contra o jornal. O que teria ele dito se Joye tivesse pretendido ter-se inspirado nas doutrinas dessa folha? Teria respondido: Lede-a, e vede se nela encontrais uma única palavra própria a excitar as más paixões. O padre Verger certamente tinha o Evangelho em casa; ademais, por sua condição, ele devia estudá-lo. Pode-se dizer que foi o Evangelho que o impeliu a assassinar o Arcebispo de Paris? Foi o Evangelho que armou o braço de Ravaillac e o de Jacques Clément? Quem acendeu as fogueiras da Inquisição? E contudo, foi em nome do Evangelho que todos esses crimes foram cometidos.

Diz o autor do artigo: “Semeai a superstição e colhereis o crime.” Ele tem razão, mas o que está errado é confundir o abuso de uma coisa com a própria coisa. Se quiséssemos suprimir tudo aquilo de que se pode abusar, muito pouco escaparia à proscrição, sem excetuar a imprensa. Certos reformadores assemelham-se aos homens que desejam cortar uma boa árvore porque tem alguns frutos bichados.

Ele acrescenta: “É por isto que pedimos que se semeie a Ciência.” Ele ainda tem razão, porque a Ciência é um elemento de progresso, mas ela basta para a moralização completa? Não se veem homens porem o seu saber a serviço de suas más paixões? Lapommeraie não era um homem instruído, um médico diplomado, desfrutando um certo crédito e, ademais, um homem da Sociedade? Dava-se o mesmo com Castaing e tantos outros. Pode-se, pois, abusar da Ciência. Há que se concluir daí que a Ciência é coisa má? E porque um médico falhou, a falta deve estender-se sobre todo o corpo médico? Por que, pois, imputar ao Espiritismo a de um homem a quem aprouve dizer-se espírita e não era? A primeira coisa, antes de lançar um argumento qualquer, era inquirir se ele teria encontrado na Doutrina Espírita máximas de natureza a justificar os seus atos. Por que a Ciência Médica não é solidária com o crime de Lapommeraie? Porque ele não colheu nos princípios dessa Ciência a iniciação ao crime. Ele empregou para o mal os recursos que ela fornece para o bem. Entretanto, ele era mais médico do que Joye era espírita. É o caso de aplicar o ditado: “Quando se quer matar seu cão, diz-se que está com raiva.”

A instrução é indispensável, ninguém o contesta, mas sem a moralização, não é senão um instrumento muitas vezes improdutivo para aquele que não sabe regular o seu uso para o bem. Instruir as massas sem moralizá-las é pôr em suas mãos uma ferramenta sem ensinar a utilizá-la, porque a moralização que se dirige ao coração não segue necessariamente a instrução que só se dirige à inteligência. Aí está a experiência para prová-lo. Mas como moralizar as massas? É o de que menos se ocuparam, e não será certamente nutrindo-as com a ideia de que não há Deus, nem alma, nem esperança, porque nem todos os sofismas do mundo demonstrarão que o homem que crê que para ele tudo começa e acaba com o corpo tenha mais fortes razões para esforçar-se por se melhorar, do que aquele que compreende a solidariedade que existe entre o passado, o presente e o futuro. Entretanto, é essa crença no niilismo que uma certa escola de supostos reformadores pretende impor à Humanidade como o elemento por excelência do progresso moral.

Citando Victor Hugo, o autor esquece, ou melhor, nem mesmo imagina que este tenha muitas vezes afirmado sua crença nos princípios espíritas fundamentais. É verdade que não é Espiritismo à maneira de Joye, mas quando não se sabe, é fácil confundir-se.

Por mais lamentável que seja o abuso que foi feito do nome do Espiritismo neste assunto, nenhum espírita se abalou com o que pudesse resultar para a Doutrina. É que, com efeito, sendo sua moral inatacável, ela não podia ser atingida. A experiência prova, ao contrário, que não há uma só das circunstâncias que envolveram o nome do Espiritismo que não tenha sido em seu proveito, aumentando-lhe o número de adeptos, porque o exame que a repercussão provoca só lhe pode ser vantajoso. É de notar, não obstante, que neste caso, com poucas exceções, a imprensa se absteve de qualquer comentário a respeito do Espiritismo. Há alguns anos ela teria aberto colunas por dois meses e não teria deixado de apresentar Joye como um dos grandes sacerdotes da Doutrina. Igualmente pudemos notar que nem o presidente da Corte, nem o procurador geral, no seu requisitório, insistiram sobre essa circunstância e dela não tiraram qualquer indução. Só o advogado de Joye fez seu papel de defensor como pôde.




O Espiritismo em toda parte

Lamartine

Entre as oscilações do céu e do navio,

Ao embalar das ondas enormes e lentas,

Vê-se que o homem dobra um Cabo das Tormentas,

E passa, no negror da noite em tempestade,

O trópico agitado de outra Humanidade.

O Siècle, de 20 de maio último, citava estes versos a propósito de um artigo sobre a crise comercial. Que têm eles de espíritas? perguntarão. Não se trata de almas, nem de Espíritos. Com mais razão poder-se-ia perguntar que relação eles têm com o fundo do artigo no qual foram enquadrados, tratando da tributação de mercadorias. Eles têm muito mais a ver com o Espiritismo, porque é, sob uma outra forma, o pensamento expresso pelos Espíritos sobre o futuro que se prepara; é, numa linguagem ao mesmo tempo sublime e concisa, o anúncio de convulsões que a Humanidade terá que sofrer para a sua regeneração e que, de todos os lados, os Espíritos nos fazem pressentir como iminentes. Tudo se resume neste pensamento profundo: Uma outra Humanidade, imagem da Humanidade transformada, do novo mundo moral substituindo o velho mundo que se esboroa. Os primeiros indícios dessas modificações já se fazem sentir, razão pela qual os Espíritos nos repetem em todos os tons que os tempos são chegados. O Sr. Lamartine aí fez uma verdadeira profecia, cuja realização começamos a ver.


Etienne de Jouy (Da academia francesa)

Lê-se o que se segue no tomo XVI das obras completas do Sr. de Jouy, intitulado: Misturas, página 99. É um diálogo entre Madame de Staël, morta, e o Sr. Duque de Broglie vivo.

O Sr. de Broglie:Que vejo! Será possível?

Madame de Staël: ─ Meu caro Victor, não vos alarmeis, e sem me interrogar sobre um prodígio cuja causa nenhum ser vivo poderia penetrar, gozai comigo de um momento de felicidade que a nós ambos proporciona esta aparição noturna. Vedes que há laços que a própria morte não poderia partir. A suave concordância de sentimentos, de vistas, de opiniões, forma a cadeia que liga a vida perecível à vida imortal e que impede que o que esteve longamente unido seja separado para sempre.

O Sr. de Broglie: ─ Creio que eu poderia explicar esta feliz simpatia pela concordância intelectual.

Madame de Staël: ─ Eu vos peço que nada expliquemos. Não tenho mais tempo a perder. Essas relações de amor que sobrevivem aos órgãos materiais não me deixam alheia aos sentimentos dos objetos de minhas mais ternas afeições. Meus filhos vivem; eles honram e amam a minha memória, bem o sei, mas é a isso que se limitam minhas presentes relações com a Terra. A noite da tumba envolve todo o resto.

No mesmo tomo, páginas 83 e seguintes, há outro diálogo, onde são trazidos a cena vários personagens históricos, revelando sua existência e o papel que representaram em vidas sucessivas.

O correspondente que nos dirige esta nota acrescenta:

“Eu acredito, como vós, que o melhor meio de trazer à doutrina que proclamamos, bom número de recalcitrantes, é fazê-los ver que o que eles veem como um ogro pronto a devorá-los, ou como uma ridícula palhaçada, não é senão o que nasceu, apenas pela meditação nos destinos do homem, no cérebro dos pensadores sérios de todas as idades.”

O Sr. de Jouy escrevia no começo deste século. Suas obras completas foram publicadas em 1823, em 27 volumes in 8º, pela casa Didot.



Silvio Pellico



Extraído de Minhas Prisões, por Sílvio Pellico, Cap. XLV e XLVI.

“Semelhante estado era uma verdadeira doença. Não sei se devo dizer uma espécie de sonambulismo. Parecia-me que havia em mim dois homens: um que queria escrever continuadamente, outro que queria fazer outra coisa...

“Durante essas noites horríveis, por vezes minha imaginação se exaltava a tal ponto que, bem desperto, me parecia ouvir, em minha prisão, ora gemidos, ora risos abafados. Desde a infância jamais tinha acreditado em feiticeiros nem em Espíritos, e agora esses gemidos e esses risos me espantavam. Eu não sabia como explicá-los; era forçado a duvidar se eu não era joguete de alguma força desconhecida e malfazeja.

“Várias vezes, trêmulo, tomei da luz e verifiquei se alguém não estaria escondido debaixo da cama para se divertir comigo. Quando estava à mesa, ora me parecia que alguém me puxava pela roupa, ora que mexiam num livro que caía no chão, ora também pensava que uma pessoa, atrás de mim, soprava para apagar a luz. Então, erguendo-me precipitadamente, eu olhava em meu redor; andava desconfiado e perguntava para mim mesmo se eu estava louco ou em plena razão, porque, em meio a tudo quanto experimentava, eu não sabia mais distinguir a realidade da ilusão, e exclamava com angústia; Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?

“Uma vez, havendo me deitado antes da aurora, estava certo de haver posto o lenço debaixo do travesseiro. Depois de um momento de apatia, despertei como de costume e pareceu-me que me estrangulavam. Senti meu pescoço bem apertado. Coisa estranha! Ele estava envolto no meu lenço, fortemente amarrado por vários nós! Eu teria jurado não haver dado esses nós, nem mesmo haver tocado no lenço desde que o pusera sob o travesseiro. Era preciso que o tivesse feito sonhando ou num acesso de delírio, sem guardar a mínima lembrança. Mas eu não podia crê-lo, e, a partir de então, todas as noites temia ser estrangulado.”

Se alguns destes fatos podem ser atribuídos a uma imaginação superexcitada pelo sofrimento, outros há que realmente parecem provocados por agentes invisíveis, e não se deve esquecer que Sílvio Pellico não acreditava nisso. Essa causa não lhe podia vir à mente e, na impossibilidade de entendê-la, o que se passava à sua volta enchia-o de terror. Hoje que seu Espírito está desprendido do véu da matéria, ele percebe as causas, não só desses fatos, mas das diversas peripécias de sua vida; ele reconhece como justo o que antes lhe parecia injusto. Deu a sua explicação na comunicação seguinte, solicitada a propósito.

(Sociedade de Paris, 18 de outubro de 1867.)



Como é grande e poderoso esse Deus que os humanos apequenam sem cessar querendo defini-lo, e como as mesquinhas paixões que lhe atribuímos para compreendê-lo são uma prova de nossa fraqueza e de nosso pouco adiantamento! Um Deus vingador! Um Deus juiz! Um Deus carrasco! Não, tudo isto só existe na imaginação humana, incapaz de compreender o infinito. Que louca temeridade querer definir Deus! Ele é o incompreensível e o indefinível, e nós só podemos inclinar-nos sob sua mão poderosa, sem procurar compreender e analisar sua natureza. Os fatos aí estão para provar que ele existe! Estudemos os fatos e, por meio deles, remontemos de causa em causa tão longe quanto possamos ir, mas não nos lancemos à causa das causas senão quando possuirmos inteiramente as causas secundárias e quando compreendermos todos os efeitos!...

Sim, as leis do Eterno são imutáveis! Hoje elas ferem o culpado, como sempre o feriram, conforme a natureza das faltas cometidas e proporcionalmente a essas faltas. Elas ferem de maneira inexorável, e são seguidas de consequências morais, não fatais, mas inevitáveis. A pena de talião é um fato e a palavra da antiga lei: “Olho por olho, dente por dente”, cumpre-se em todo o seu rigor. Não só o orgulhoso é humilhado, mas ele é ferido em seu orgulho da mesma maneira que feriu os outros. O juiz iníquo se vê condenar injustamente; o déspota torna-se oprimido!

Sim, eu governei os homens. Fi-los dobrar-se sob um jugo de ferro; eu os feri em suas afeições e em sua liberdade, e mais tarde, por minha vez, tive que me dobrar ao opressor; fui privado de minhas afeições e de minha liberdade!

Mas como o opressor da véspera pode tornar-se o liberal de amanhã? A coisa é das mais simples e a observação dos fatos que se passam aos vossos olhos deveria vos dar a chave. Não vedes, no curso de uma só existência, uma mesma personalidade, alternadamente dominadora e dominada? E não acontece que, se ela governa despoticamente no primeiro caso, é, no segundo, uma das que mais energicamente lutam contra o despotismo?

A mesma coisa acontece de uma existência a outra. Isto não é uma regra sem exceção, mas geralmente os que são, em aparência, os mais convictos liberais, foram outrora os mais ardentes partidários do poder, e isto se compreende, porque é lógico que os que longamente estavam habituados a reinar sem contestação e a satisfazer sem entraves os seus menores caprichos, sejam os que mais sofram a opressão, e os mais ardentes para sacudir o jugo.

O despotismo e os seus excessos, por uma consequência admirável das leis de Deus, arrastam necessariamente aqueles que os exercem a um amor imoderado da liberdade, e esses dois excessos, gastando-se reciprocamente, trazem inevitavelmente a calma e a moderação.

Tais são, a propósito do desejo que exprimistes, as explicações que creio útil vos dar. Ficarei feliz se elas forem de natureza a vos satisfazer.

SILVIO PELLICO.




Variedades

O avarento da rua do forno


O Petite Presse de 19 de novembro de 1868 transcreveu do jornal le Droit o fato seguinte:

“Numa miserável água-furtada da Rua do Four-Saint-Germain, vivia pobremente um indivíduo de certa idade, chamado P... Ele não recebia ninguém, e fazia sua própria comida, muito mais frugal que a de um anacoreta. Vestindo roupas sórdidas, ele dormia numa enxerga ainda mais sórdida. De magreza extrema, parecia ressecado pelas privações de todo gênero e era julgado em geral vítima da mais profunda pobreza.

“Entrementes, um cheiro fétido tinha começado a espalhar-se na casa. Aumentava de intensidade e acabou atingindo um pequeno restaurante do pavimento térreo, a ponto de a freguesia reclamar.

“Então procuraram diligentemente a causa do mau cheiro, e acabaram descobrindo que provinha do alojamento ocupado pelo tal P...

“Essa descoberta suscitou a lembrança de que ele há tempos não era visto e, temendo lhe houvesse acontecido uma desgraça, apressaram-se em avisar o comissário de polícia do bairro.

“Imediatamente a autoridade foi ao local e mandou um serralheiro abrir a porta. Mas assim que quiseram entrar no quarto, quase sufocaram e tiveram que afastar-se imediatamente. Só depois de ter deixado por algum tempo entrar o ar exterior é que puderam entrar e fazer constatações com as necessárias precauções.

“Um triste espetáculo se ofereceu ao comissário e ao médico que o acompanhava. Estendido sobre o leito, o corpo do tal P... encontrava-se em estado de completa putrefação. Ele estava coberto de varejeiras, e milhares de vermes roíam as carnes, que caíam aos pedaços.

“O estado de decomposição não permitiu reconhecer exatamente a causa da morte, que ocorrera há muito tempo, mas a ausência de qualquer traço de violência permitiu deduzir que fora devida a uma causa natural, como uma apoplexia ou uma congestão cerebral. Ademais, encontraram num móvel cerca de 35.000 francos, em dinheiro, ações, obrigações industriais e valores diversos.

“Depois das formalidades normais, apressaram-se em retirar os restos humanos e desinfetar o local. O dinheiro e os valores foram lacrados pela Justiça.”

Tendo sido evocado na Sociedade de Paris, esse homem deu a seguinte comunicação:

(Sociedade de Paris, 20 de novembro de 1868 – Médium: Sr. Rul) Perguntais por que me deixei morrer de fome, quando possuía um tesouro. 35.000 francos, com efeito, é uma fortuna! Ai de mim, senhores! Sois muito instruídos sobre o que se passa em torno de vós, para não compreenderdes que eu sofria provações, e meu fim diz claramente que fali. Com efeito, numa existência anterior eu tinha lutado com energia contra a pobreza que eu não tinha dominado senão por prodígios de atividade, de energia e de perseverança. Vinte vezes estive a ponto de me ver privado do fruto de meu trabalho. Assim, não fui terno para com os pobres que eu enxotava quando se apresentavam em minha casa. Eu reservava tudo quanto ganhava para a minha família, minha mulher e meus filhos.

Escolhi para provação, nesta nova existência, ser sóbrio, moderado nos gastos, e partilhar minha fortuna com os pobres, meus irmãos deserdados.

Mantive a palavra? Vedes o contrário, porque fui muito sóbrio, temperante, mais que temperante, mas não fui caridoso.

Meu fim infeliz não foi senão o começo de meus sofrimentos, mais duros, mais penosos neste momento, quando vejo com os olhos do Espírito. Assim, não teria tido a coragem de me apresentar a vós, se não me tivessem assegurado que sois bons e compassivos com a desgraça. Venho pedir que oreis por mim. Aliviai meus sofrimentos, vós que conheceis os meios de tornar o sofrimento menos pungente. Orai por vosso irmão que sofre e que deseja voltar a sofrer muito mais ainda.

Piedade, meu Deus! Piedade para o ser fraco que faliu; e vós, senhores, compaixão por vosso irmão, que se recomenda às vossas preces.

O Avarento da Rua do Forno.


Suicídio por obsessão

Lê-se no Droit:



“O Sr. Jean-Baptiste Sadoux, fabricante de canoas em Joinville-le-Pont, percebeu ontem um jovem que, depois de ter vagado durante algum tempo sobre a ponte, subiu no parapeito e se atirou ao Marne. Imediatamente ele foi em seu socorro e, ao cabo de sete minutos, retirou-o. Mas a asfixia já era completa e todas as tentativas para reanimar aquele infeliz foram infrutíferas.

“Uma carta encontrada com ele permitiu que fosse reconhecido como o Sr. Paul D..., de vinte e dois anos, residente na Rua Sedaine, em Paris. Essa carta, dirigida pelo suicida ao seu pai, era extremamente tocante. Ele pedia perdão por abandoná-lo e dizia que há dois anos era dominado por uma ideia terrível, por uma irresistível vontade de se destruir. Acrescentava que lhe parecia ouvir fora da vida uma voz que o chamava sem descanso e, a despeito de todos os esforços, não podia impedir de ir para ela. Encontraram, também, no bolso do paletó, uma corda nova, na qual tinha sido feito um laço corredio. Depois do exame médico-legal, o corpo foi entregue à família.”

A obsessão aqui está bem evidente, e o que não está menos evidente é que o fato nada tem a ver com o Espiritismo, nova prova de que esse mal não é inerente à crença. Mas se o Espiritismo não tem nada a ver com este caso, só ele pode dar a sua explicação. Eis a instrução dada a respeito por um dos nossos Espíritos habituais, da qual ressalta que, malgrado o arrastamento a que o jovem cedeu para a sua infelicidade, ele não sucumbiu à fatalidade. Ele tinha o seu livre-arbítrio e, com mais vontade, poderia ter resistido. Se tivesse sido espírita, teria compreendido que a voz que o solicitava não poderia ser senão de um mau Espírito e as consequências terríveis de um instante de fraqueza.

(Paris, Grupo Desliens, 20 de dezembro de 1868 – Médium: Sr. Nivard) A voz dizia: Vem! Vem! Mas teria sido ineficaz essa voz do tentador, se a ação direta do Espírito não se tivesse feito sentir. O pobre suicida era chamado e impelido. Por quê? Seu passado era a causa da situação dolorosa em que se achava.

Ele apegava-se à vida e temia a morte. No entanto, nesse apelo incessante que ouvia, pergunto eu, ele encontrou força? Não, ele hauriu a fraqueza que o perdeu. Ele venceu os temores, porque esperava no fim encontrar do outro lado da vida o repouso que o lado de cá lhe negava. Ele se enganou, pois o repouso não veio. As trevas o cercam, a consciência lhe censura o ato de fraqueza e o Espírito que o arrastou gargalha ao seu redor e o criva de motejos constantes. O cego não o vê, mas escuta a voz que lhe repete: Vem! Vem! e que depois zomba de suas torturas.

A causa deste caso de obsessão está no passado, como acabo de dizer. O próprio obsessor foi impelido ao suicídio por esse que ele acaba de empurrar para o abismo. Era sua mulher na existência anterior, e tinha sofrido consideravelmente com o deboche e as brutalidades de seu marido. Muito fraca para aceitar a situação que lhe era dada, com resignação e coragem, buscou na morte um refúgio contra os seus males. Ela vingou-se depois, sabeis como. Entretanto, o ato desse infeliz não era fatal. Ele tinha aceito os riscos da tentação; ela era necessária ao seu adiantamento, porque só ela poderia fazer desaparecer a mancha que havia conspurcado sua existência anterior. Ele tinha aceito os seus riscos, com a esperança de ser mais forte, e se havia enganado: sucumbiu. Recomeçará mais tarde? Resistirá? Dele dependerá.

Rogai a Deus por ele, a fim de que lhe dê a calma e a resignação de que tanto necessita, a coragem e a força para não falir nas provas que tiver de suportar mais tarde.

LOUIS NIVARD.





Dissertações espíritas

As artes e o Espiritismo

(Paris, grupo Desliens, 25 de novembro de 1868 - Médium: Sr. Desliens)

Porventura já contou alguma época maior número de poetas, pintores, escultores, literatos, artistas de todos os gêneros? Houve jamais uma época em que a poesia, a pintura, a escultura, fosse que arte fosse, tenha sido acolhida com mais desdém? Tudo está no marasmo, e nada, a não ser o que se liga diretamente à fúria positivista do século, tem chance de ser apreciado favoravelmente.

Sem dúvida ainda há alguns amigos do belo, do grande, do verdadeiro, mas, ao lado, quantos profanadores, quer entre os executantes, quer entre os amadores! Não há mais pintores; só há fazedores! Não é a glória que se persegue; ela vem a passos muito lentos para a nossa geração de pessoas apressadas. Ver o renome e a auréola do talento a coroar uma existência em seu declínio, que é isto? Uma quimera, boa ao menos para os artistas do passado! Então eles tinham tempo para viver; hoje temos apenas o de gozar! Agora é preciso chegar, e prontamente, à fortuna. É preciso fazer um nome por uma feitura original, pela intriga, por todos os meios mais ou menos confessáveis com que a civilização cumula os povos que atingem um progresso imenso para o futuro ou uma decadência sem remissão.

Que importa se a celebridade conquistada desaparece com tanta rapidez quanto a existência do efêmero! Que importa a brevidade do brilho!... É uma eternidade se esse tempo bastou para adquirir fortuna, a chave dos prazeres e do dolce far niente!

É a luta corajosa com a provação que faz o talento; a luta com a fortuna o enerva e o mata!

Tudo cai, periclita, porque não há mais crença!

Pensais que o pintor crê em si mesmo? Sim, por vezes chega a isso, mas em geral não crê senão cegamente, senão no entusiasmo do público, e o aproveita até que um novo capricho venha transportar alhures a torrente de favores que nele penetrava!

Como fazer quadros religiosos ou mitológicos que sensibilizem e comovam, quando desapareceram as ideias que eles representam?

Tem-se talento, esculpe-se o mármore, dá-se-lhe a forma humana. Mas é sempre uma pedra fria e insensível; não há vida! Belas formas, mas não a centelha que cria a imortalidade.

Os mestres da Antiguidade fizeram deuses, porque acreditavam nesses deuses. Os escultores atuais, que neles não creem, fazem apenas homens. Mas venha a fé, mesmo que ilógica e sem um objetivo sério; ela gerará obras-primas, e se a razão os guiar, não haverá limites que ela não possa atingir! Campos imensos, completamente inexplorados, abrem-se à juventude atual, diante de todos aqueles que poderoso sentimento de convicção impele numa direção, seja ela qual for. Literatura, Arquitetura, Pintura, História, tudo receberá do aguilhão espírita o novo batismo de fogo necessário para dar energia e vitalidade à sociedade expirante, porque ela terá insculpido no coração daqueles que a aceitarem, um ardente amor pela Humanidade e uma fé inquebrantável em seu destino.

Um artista, DUCORNET.


A música espírita

(Paris, grupo Desliens, 9 de dezembro de 1868 – Médium: Sr. Desliens.)

Recentemente, na sede da Sociedade Espírita de Paris, o presidente deu-me a honra de perguntar minha opinião sobre o estado atual da música e sobre as modificações que a ela poderia trazer a influência das crenças espíritas. Se não atendi imediatamente a esse benévolo e simpático apelo, crede, senhores, que só uma causa maior motivou a minha abstenção.

Os músicos, ah! são homens como os outros, talvez mais homens, e, a esse título, eles são falíveis e pecadores. Não fui isento de fraquezas, e se Deus me deu vida longa, a fim de me dar tempo de me arrepender, a embriaguez do sucesso, a complacência dos amigos, a adulação dos cortesãos muitas vezes me tiraram os meios. Um maestro é uma potência, neste mundo onde o prazer representa tão grande papel. Aquele cuja arte consiste em seduzir o ouvido, em enternecer o coração, vê muitas ciladas criadas sob seus passos e nelas cai, o infeliz! Ele embriaga-se com a embriaguez dos outros; os aplausos lhe tapam os ouvidos e ele vai direito ao abismo, sem procurar um ponto de apoio para resistir ao arrastamento.

Contudo, a despeito de meus erros, eu tinha fé em Deus. Eu cria na alma que vibrava em mim, e, desprendida de sua caixa sonora, ela prontamente se reconheceu em meio às harmonias da criação e confundiu sua prece com aquelas que se elevavam da Natureza ao infinito, da criatura ao ser incriado!...

Estou feliz pelo sentimento que provocou minha vinda entre os espíritas, porque foi a simpatia que a ditou, e se a princípio a curiosidade me atraiu, é ao meu reconhecimento que deveis minha apreciação da pergunta que foi feita. Eu lá estava, pronto para falar, crendo tudo saber, quando meu orgulho, caindo, desvelou minha ignorância. Fiquei mudo e escutei. Voltei, instruí-me e, quando às palavras acerca da verdade emitidas por vossos instrutores se juntaram a reflexão e a meditação, eu disse para mim mesmo: O grande maestro Rossini, o criador de tantas obras-primas, segundo os homens, ah! não fez senão debulhar algumas das pérolas menos perfeitas do escrínio musical criado pelo mestre dos maestros. Rossini juntou notas, compôs melodias, provou a taça que contém todas as harmonias; ele roubou algumas centelhas do fogo sagrado, mas esse fogo sagrado, nem ele criou, nem os outros! ─ Nós nada inventamos; nós copiamos do grande livro da Natureza e a multidão aplaude quando não deformamos muito a partitura.

Uma dissertação sobre a música celeste!... Quem poderia encarregar-se disso? Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono com essa arte encantadora? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia captar as suas nuanças variadas ao infinito?... Quem possui a esse ponto o sentimento da harmonia?... Não, o homem não foi feito para tais condições!... Mais tarde!... Muito mais tarde!...

Enquanto se espera, talvez eu venha em breve satisfazer o vosso desejo e vos dar minha apreciação sobre o estado atual da música e vos dizer das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá aí introduzir.

Hoje ainda é muito cedo. O assunto é vasto, já o estudei, mas ele ainda está fora do meu alcance. Quando dele eu for senhor, se tal for possível, ou melhor, quando tiver entrevisto tanto quanto me permitir o estado do meu espírito, eu vos satisfarei. Ainda um pouco de tempo. Se só um músico pode bem falar da música do futuro, deve fazê-lo como mestre, e Rossini não quer falar como aprendiz.

ROSSINI.


Obsessões simuladas



Esta comunicação nos foi dada a propósito de uma senhora que deveria vir pedir conselhos para uma obsessão, e a respeito da qual tínhamos julgado que deveríamos previamente aconselhar-nos com os Espíritos.

“A piedade pelos que sofrem não deve excluir a prudência, e poderia ser uma imprudência estabelecer relações com todos os que se apresentam a vós, sob o império de uma obsessão real ou fingida. É ainda uma prova pela qual deverá passar o Espiritismo, e que lhe servirá para se desembaraçar de todos aqueles que, por sua natureza, embaraçariam o seu caminho. Troçaram, ridicularizaram os espíritas; quiseram amedrontar aqueles a quem a curiosidade atrai para vós, colocando-vos sob o patrocínio satânico. Nada disto teve êxito. Antes de se render, querem assestar uma última bateria que, como todas as outras, resultará em vosso proveito. Não mais podendo acusar-vos de contribuir para o aumento da alienação mental, enviar-vos-ão verdadeiros obsedados, diante dos quais esperam que fracasseis, e obsedados simulados, que vos será impossível curar de um mal imaginário. Tudo isto não retardará nenhum pouco o vosso progresso, mas com a condição de agir com prudência e de aconselhar aqueles que se ocupam dos tratamentos obsessionais a consultarem os seus guias, não só sobre a natureza do mal, mas sobre a realidade das obsessões que eles poderão ter que combater. Isto é importante, e aproveito a ideia que vos foi sugerida, de antes pedir um conselho, para vos recomendar a agir sempre assim no futuro.

“Quanto a essa senhora, ela é sincera e realmente sofredora, mas atualmente nada há que fazer por ela, senão aconselhá-la a pedir, pela prece, a calma e a resignação para suportar corajosamente a sua prova. Não são instruções dos Espíritos que lhe são necessárias; seria mesmo prudente afastá-la de toda ideia de correspondência com eles, e aconselhá-la a entregar-se totalmente aos cuidados da medicina oficial.”

Doutor DEMEURE.

OBSERVAÇÃO: Não é só contra as obsessões simuladas que é prudente se pôr em guarda, mas contra os pedidos de comunicações de todas as naturezas, evocações, conselhos de saúde etc., que poderiam ser armadilhas feitas à boa-fé, de que a malevolência poderia servir-se. Convém, pois, não aceder aos pedidos dessa natureza, senão com conhecimento de causa, e em relação a pessoas conhecidas ou devidamente recomendadas. Os adversários do Espiritismo veem com pesar o desenvolvimento que ele adquire, contrariamente às suas previsões. Eles aguardam e provocam ocasiões de pilhá-lo em falta, quer para acusá-lo, quer para expô-lo ao ridículo. Em semelhante caso, é melhor pecar por excesso de circunspecção do que por imprevidência.

ALLAN KARDEC.






Fevereiro

Estatística do Espiritismo

Apreciação do Jornal La Solidarite [1]

O jornal La Solidarité de 15 de janeiro de 1869 analisa a estatística do Espiritismo, que publicamos no nosso número precedente; se critica algumas de suas cifras, sentimo-nos feliz por sua adesão ao conjunto do trabalho, que aprecia nestes termos:

“Lamentamos não poder reproduzir, por falta de espaço, as reflexões muito sábias que o Sr. Allan Kardec acrescenta a essa estatística. Limitar-nos-emos a constatar com ele que há espíritas em todos os graus da escala social; que a grande maioria dos espíritas se acha entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes; que o Espiritismo se propagou por toda parte, de alto a baixo na escala social; que a aflição e a infelicidade são os grandes recrutadores do Espiritismo, em consequência das consolações e das esperanças que ele dá aos que choram e lamentam; que o Espiritismo encontra mais fácil acesso entre os incrédulos em matéria religiosa que entre as pessoas que têm uma fé fixa; enfim, que, depois dos fanáticos, os mais refratários às ideias espíritas são as criaturas cujos pensamentos estão todos concentrados na posse e nos prazeres materiais, seja qual for a sua condição.”

É um fato de capital importância e que se constata por toda parte, que “a grande maioria dos espíritas se acha entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes”. Em face deste fato material, como fica a acusação de estupidez, ignorância, loucura, inépcia, lançada tão esturdiamente contra os espíritas pela malevolência?

Propagando-se de alto a baixo da escala, o Espiritismo prova, além disso, que as classes favorecidas compreendem a influência moralizadora sobre as massas, porquanto elas se esforçam por nele penetrar. É que, com efeito, os exemplos que se tem sob os olhos, embora parciais e ainda isolados, demonstram de maneira peremptória que o espírito do proletariado seria muito outro se estivesse imbuído dos princípios da Doutrina Espírita.

A principal objeção do Solidarité, e ela é muito séria, refere-se ao número de espíritas do mundo inteiro. Eis o que ele diz a esse respeito:

“Engana-se muito a Revista Espírita quando estima em apenas seis ou sete milhões o número de espíritas para o mundo inteiro. Evidentemente ela se esquece de contar a Ásia.

“Se pelo termo espírita entendem-se as pessoas que creem na vida de alémtúmulo e nas relações dos vivos com a alma das pessoas mortas, há que contá-los por centenas de milhões. A crença nos Espíritos existe em todos os seguidores do budismo, e pode-se dizer que ela constitui o fundo de todas as religiões do extremo Oriente. Ela é geral sobretudo na China. As três antigas seitas que desde tanto tempo dividem as populações no Médio Império, creem nos manes, nos Espíritos, e professam o seu culto. ─ Pode-se mesmo dizer que este é para elas um terreno comum. Os adoradores do Tao e de Fo aí se encontram com os seguidores do filósofo Confúcio.

“Os sacerdotes da seita de Lao-Tseu, e particularmente os Tao-Tse, ou doutores da Razão, devem às práticas espíritas uma grande parte de sua influência sobre as populações. Esses religiosos interrogam os Espíritos e obtêm respostas escritas que não têm mais nem menos valor que as dos nossos médiuns. São conselhos e avisos considerados como dados aos vivos pelo Espírito de um morto. Aí se encontram revelações de segredos unicamente conhecidos por quem interroga, algumas vezes predições que se realizam ou não, mas que são de natureza a chocar os assistentes e estimular muito os seus desejos, para que se encarreguem de realizar, eles próprios, o oráculo.

“Essa correspondência é obtida por processos que não diferem muito dos processos dos nossos espíritas, mas que, entretanto, devem ser mais aperfeiçoados, se considerarmos a longa experiência dos operadores que os praticam tradicionalmente.

“Eis como nos são descritos por uma testemunha ocular, o Sr. D..., que mora na China há muito tempo e se familiarizou com a língua do país.

“Uma vara de pescar de 50 a 60 centímetros é sustentada pelas extremidades por duas pessoas, das quais uma é o médium e a outra o interrogante. No meio dessa haste é lacrada ou amarrada uma pequena bagueta da mesma madeira, muito parecida com um lápis, pelo tamanho e grossura. Abaixo desse pequeno aparelho é espalhada uma camada de areia, ou uma caixa com milho miúdo. Deslizando maquinalmente sobre a areia ou o milho, a bagueta traça caracteres. À medida que se formam, esses caracteres são lidos e reproduzidos imediatamente num papel, por um letrado presente à sessão. Daí resultam frases e escritos mais ou menos longos, mais ou menos interessantes, mas tendo sempre um valor lógico.

“Se se acredita nos Tao-Tse, esses processos vêm do próprio Lao-Tseu. Ora, se, segundo a História, Lao-Tseu viveu no sexto século antes de Jesus Cristo, é bom lembrar que, conforme a lenda, ele é como o Verbo dos cristãos, anterior ao começo e contemporâneo da grande não-entidade, como se exprimem os doutores da Razão.

“Vê-se que o Espiritismo remonta a uma belíssima antiguidade.

“Isto não prova que ele é verdadeiro? ─ Não, sem dúvida, mas se basta que uma crença seja antiga para ser venerável, e ser forte pelo número de seus partidários para ser respeitada, não conheço outra que tenha mais títulos ao respeito e à veneração dos meus contemporâneos.”

Desnecessário dizer que aderimos completamente a essa retificação, e nos sentimos feliz que ela emane de uma fonte estranha, porque isto prova que não procuramos carregar as tintas do quadro. Nossos leitores apreciarão, como nós, a maneira pela qual esse jornal, que se recomenda por seu caráter sério, encara o Espiritismo. Vê-se que, de sua parte, é uma apreciação que tem fundamento. Sabíamos que as ideias espíritas estão muito espalhadas nos povos do extremo Oriente, e se não as tínhamos feito entrar nas estatísticas, é que, em nossa avaliação, não nos propusemos apresentar, conforme dissemos, senão o movimento do Espiritismo moderno, reservando-nos para fazer mais tarde um estudo especial sobre a anterioridade dessas ideias. Agradecemos muito sinceramente ao autor do artigo por nos haver precedido.

Em outro momento ele diz:

“Cremos que esta incerteza (sobre o número real dos espíritas, sobretudo na França) inicialmente se deve à ausência de declarações positivas por parte dos adeptos; depois ao estado flutuante das crenças. Existe ─ e poderíamos citar em Paris numerosos exemplos ─ uma multidão de pessoas que creem no Espiritismo e que não se gabam disso.”

Isto é perfeitamente justo; assim, só falamos dos espíritas de fato, porquanto, como dissemos, se considerássemos os espíritas por intuição, somente na França eles se contariam por milhões, mas preferimos ficar abaixo e não acima da verdade, para não sermos tachados de exagero. Contudo, é preciso que o acréscimo seja muito sensível, para que certos adversários o tenham levado a cifras hiperbólicas, como o autor da brochura Le Budget du Spiritisme, que vendo sem dúvida os espíritas com lente de aumento, em 1863 os avaliava em vinte milhões apenas na França. (Revista Espírita de junho de 1863).

A propósito da proporção dos sábios oficiais, na categoria do grau de instrução, diz o autor: “Gostaríamos muito de ver a olho nu esses 4% de sábios oficiais; 40.000 para a Europa e 24.000 só para a França. São muitos sábios, e ainda oficiais. 6% de iletrados não é nada.”

A crítica seria fundada se, como supõe o autor, se tratasse de 4% sobre o número aproximado de 600.000 espíritas na França, o que, efetivamente, faria 24.000. Com efeito seria muito, pois se teria dificuldade em encontrar essa cifra de sábios oficiais em toda a população da França. Em tal base, o cálculo evidentemente seria ridículo e o mesmo poder-se-ia dizer dos iletrados. Essa avaliação, portanto, não tem o objetivo de estabelecer o número efetivo dos sábios oficiais espíritas, mas a proporção relativa em que se encontram em relação aos diversos graus de instrução, entre os quais eles estão em minoria. Em outras categorias limitamo-nos a uma simples classificação, sem avaliação numérica em porcentagem. Quando empregamos este último processo, foi para tornar mais evidente a proporção.

Para melhor definir o nosso pensamento, diremos que por sábios oficiais não entendemos todos aqueles cujo saber é constatado por um diploma, mas unicamente os que ocupam posição oficial, como membros de Academias, professores de Faculdades, etc., que assim se acham em mais evidência, e cujos nomes, por esse motivo, os fazem autoridades nas ciências. Sob este ponto de vista, um doutor em Medicina pode ser muito sábio, sem ser um sábio oficial.

A posição oficial influi muito sobre a maneira de encarar certas coisas. Como prova disto citaremos o exemplo de um distinto médico falecido há vários anos, que conhecemos pessoalmente. Ele era, então, grande partidário do Magnetismo, sobre o qual havia escrito, e foi isto que nos pôs em contato com ele. Aumentando a sua reputação, ele conquistou sucessivamente várias posições oficiais. À medida que subia, baixava seu fervor pelo Magnetismo, tanto que, ao chegar ao topo da escala, ele caiu abaixo de zero, pois renegou abertamente suas antigas convicções. Considerações da mesma natureza podem explicar a posição de certas classes no que concerne ao Espiritismo.

As categorias dos aflitos, das criaturas sem inquietude, dos felizes do mundo, dos sensualistas, fornecem ao autor do artigo a seguinte reflexão:

“É pena que isto seja pura fantasia. Nada de sensualistas, compreende-se; Espiritismo e materialismo se excluem. Sessenta aflitos em cem espíritas ainda se compreende. É para estes que choram que as relações com um mundo melhor são preciosas. Mas trinta pessoas sem inquietude em cem, é demais! Se o Espiritismo operasse tais milagres, faria muitas outras conquistas. Fá-las-ia sobretudo entre os felizes do mundo, que são também, quase sempre, os mais inquietos e os mais atormentados.”

Há aqui um erro manifesto, pois pareceria que esse resultado é devido ao Espiritismo, ao passo que é ele que colhe, nessas categorias, mais ou menos adeptos, conforme as predisposições que aí encontra. Estas cifras significam apenas que ele encontra mais adeptos entre os aflitos; um pouco menos entre as pessoas sem inquietude, mas ainda menos entre os felizes do mundo, e nenhum entre os sensualistas.

Inicialmente é preciso entender-se quanto às palavras. Materialismo e sensualismo não são sinônimos e nem sempre caminham lado a lado, pois se veem pessoas, espiritualistas por profissão e por dever, que são muito sensuais, ao passo que há materialistas muito moderados em sua maneira de viver. O materialismo muitas vezes não é para eles senão uma opinião que abraçaram em falta de outra mais racional. Eis por que, quando reconhecem que o Espiritismo enche o vazio feito em sua consciência pela incredulidade, aceitam-no felizes. Ao contrário, os sensualistas são os mais refratários.

Uma coisa muito bizarra é que o Espiritismo encontra mais resistência entre os panteístas em geral do que entre os que são francamente materialistas. Sem dúvida isto é devido a que o panteísta quase sempre cria um sistema, possui algo, ao passo que o materialista nada tem, e esse vazio o inquieta.

Por felizes do mundo entendemos os que passam como tais aos olhos da multidão, porque se podem permitir largamente todos os gozos da vida. É verdade que muitas vezes são eles os mais inquietos e os mais atormentados. Mas por quê? Pelas preocupações que lhes causam a fortuna e a ambição. Ao lado dessas preocupações incessantes, das ansiedades da perda ou do ganho, da confusão dos negócios para uns, dos prazeres para outros, resta-lhes muito pouco tempo para se ocupar com o futuro. Não podendo ter paz de alma senão com a condição de renunciar ao que constitui o objetivo de sua cobiça, o Espiritismo pouco os afeta, filosoficamente falando. Com exceção das penas do coração, que não poupam a ninguém, a não ser os egoístas, os tormentos da vida estão quase sempre, para aqueles, nas decepções da vaidade, do desejo de possuir, de brilhar, de mandar. Assim, pode-se dizer que eles se atormentam a si mesmos.

A calma, a tranquilidade, ao contrário, encontram-se mais particularmente nas posições modestas, quando assegurado o bem-estar da vida. Aí há muito pouca ou nenhuma ambição; contentam-se com o que têm, sem se atormentarem por enriquecer, correndo os riscos aleatórios da agiotagem ou da especulação. É a esses que denominamos sem inquietude, relativamente falando; por menor que seja a elevação de seu pensamento, de boa vontade eles se ocupam de coisas sérias; o Espiritismo lhes oferece um atraente assunto de meditação, e eles o aceitam mais facilmente do que aqueles a quem o turbilhão do mundo suscita uma febre contínua.

Tais são os motivos dessa classificação que, como se vê, não é tão fantasista quanto supõe o autor do artigo. Nós lhe agradecemos por nos ter fornecido ocasião de apontar erros que outros poderiam ter cometido, por não termos sido bastante explícito.

Em nossa estatística, omitimos duas funções importantes por sua natureza, e porque contam um número bastante grande de adeptos sinceros e devotados. São os prefeitos e os juízes de paz, que estão na quinta classe, com os meirinhos e os comissários de polícia.

Uma outra omissão, contra a qual reclamaram com justiça e que insistem para que a reparemos, é a dos poloneses, na categoria dos povos. Ela é perfeitamente fundada, porquanto o Espiritismo conta, nessa nação, numerosos e fervorosos adeptos, desde o início. Como classe, a Polônia vem em quinto lugar, entre a Rússia e a Alemanha.

Para completar a nomenclatura, teria sido preciso incluir outros países, como, por exemplo, a Holanda, que viria após a Inglaterra; Portugal, depois da Grécia; as Províncias danubianas, onde há muitos espíritas, mas sobre as quais não temos dados bastante positivos para lhes assinalar a classe. Quanto à Turquia, a quase totalidade dos adeptos é composta de franceses, italianos e gregos.

Uma classificação mais racional e mais exata do que pelas regiões territoriais, seria pelas raças ou nacionalidades, que não estão confinadas por limites circunscritos e levam a toda parte por onde se espalham, sua maior ou menor aptidão para assimilar as ideias espíritas. Deste ponto de vista, numa mesma região, por vezes, haveria que fazer diversas distinções.

A comunicação seguinte foi dada num grupo de Paris, a propósito da classe que ocupam os alfaiates entre as profissões industriais.

(Paris, 6 de janeiro de 1869. Grupo Desliens. Médium: Sr. Leymarie)

Criastes categorias, caro mestre, à frente das quais colocastes certas profissões. Sabeis o que, em nossa opinião, arrasta certas pessoas a se fazerem espíritas? São as mil perseguições que elas sofrem em suas profissões. Os primeiros de que falais devem ter ordem, economia, cuidado, gosto, ser um pouco artistas, e depois ainda ser pacientes, saber esperar, escutar, sorrir e saudar com certa elegância; mas, após todas essas pequenas convenções, mais sérias do que se pensa, ainda é preciso calcular, organizar seu caixa pelas dívidas e haveres, e sofrer, sofrer continuamente.

Em contato com homens de todas as classes, comentando os lamentos, as confidências, os enganos, os rostos falsos, eles aprendem muito! Levando essa vida múltipla, sua inteligência se abre por comparação; seu espírito se fortalece pela decepção e pelo sofrimento, e eis por que certas corporações compreendem e aplaudem todos os progressos. Elas gostam do teatro francês, da bela arquitetura, do desenho, da Filosofia; amam a liberdade e todas as suas consequências. Sempre à frente e na mira do que consola e faz esperar, elas se dão ao Espiritismo, que para elas é uma força, uma promessa ardente, uma verdade que engrandece o sacrifício e, mais do que acreditais, a parte cotada como a nº 1 vive de sacrifícios.

SONNET.


____________________________________________________
[1] La Solidarité sai duas vezes por mês. Preço; 10 francos por ano. Paris. Livraria das Ciências Sociais, Rua des Saint-Pères, 13.



Poder do ridículo

Lendo um jornal, encontramos esta frase proverbial: Na França o ridículo sempre mata. Isto nos sugeriu as seguintes reflexões:

Por que na França, antes que alhures? É que aqui, mais que alhures, o espírito, ao mesmo tempo fino, cáustico e jovial, apreende logo de saída o lado alegre ou ridículo das coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por assim dizer farejao; descobre-o onde outros não o percebiam e o põe em relevo com habilidade. Mas o espírito francês quer, antes de tudo, o bom gosto, a urbanidade até na troça; ele ri de boa vontade de uma pilhéria fina, delicada, sobretudo espirituosa, ao passo que as caricaturas de mau gosto, a crítica pesada, grosseira, causticante, semelhante à pata do urso ou ao soco do rústico, lhe repugnam, porque ele tem uma repulsa instintiva pela trivialidade.

Talvez digam que certos fatos modernos parecem desmentir essas qualidades. Haveria muito a dizer sobre as causas deste desvio, que não deixa de ser muito real, mas que é apenas parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter nacional, como demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, en passant, que esses acontecimentos que surpreendem as pessoas de bom gosto, em grande parte, são devidos à curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas, escutai a multidão à saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo, resume-se nestas palavras: É desagradável, contudo viemos, apenas para poder dizer que vimos uma excentricidade. Lá não voltam, mas, esperando que a multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso está feito, e é tudo o que pedem. Dáse o mesmo em certos eventos supostamente literários.

A aptidão do espírito francês para captar o lado cômico das coisas faz do ridículo uma verdadeira potência, maior na França do que em outros países, mas é certo dizer que sempre mata?

É preciso distinguir o que se pode chamar de ridículo intrínseco, isto é, inerente à própria coisa, e o ridículo extrínseco, vindo de fora e derramado sobre uma coisa. Sem dúvida este último pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o que é vulnerável; quando ataca as coisas que não dão margem, desliza sem alcançá-las. A mais grotesca caricatura de uma estátua irrepreensível nada tira de seu mérito e não a faz decair na opinião, pois cada um pode apreciá-la.

O ridículo não tem força senão quando fere com precisão, quando ressalta com espírito e finura os defeitos reais; é então que ele mata; mas quando cai no falso, absolutamente não mata, ou melhor, ele se mata. Para que o adágio acima seja completamente verdadeiro, seria preciso dizer: “Na França o ridículo sempre mata o que é ridículo. O que realmente é verdadeiro, bom e belo jamais é ridículo. Se ridicularizarmos uma personalidade notoriamente respeitável, como, por exemplo, o cura Vianney, inspiraremos repulsa, mesmo aos incrédulos, tanto é verdade que o que é respeitável em si mesmo é sempre respeitado pela opinião pública.

Como nem todos têm o mesmo gosto nem a mesma maneira de ver, o que é verdadeiro, bom e belo para uns, pode não ser para outros. Então quem será o juiz? O ser coletivo que se chama todo mundo, e contra cujas decisões em vão protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser momentaneamente desviadas pela crítica ignorante, malévola ou inconsciente, mas não as massas, cujas opiniões sempre acabam triunfando. Se a maioria dos convivas num banquete gosta de um prato, por mais que digais que é ruim, não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.

Isto nos explica por que o ridículo, derramado em profusão sobre o Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não foi por não ter sido revirado em todos os sentidos, transfigurado, desnaturado, grotescamente ridicularizado por seus antagonistas. Contudo, após dez anos de encarniçada agressão, ele está mais forte do que nunca. É porque ele é como a estátua de que falamos há pouco.

Em definitivo, sobre o que se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito do Espiritismo? No que realmente apresenta o flanco à crítica: os abusos, as excentricidades, as exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os aspectos, as práticas absurdas, que são apenas a sua paródia, de que o Espiritismo sério jamais tomou a defesa, mas que, ao contrário, tem sempre desautorizado. Assim, o ridículo não feriu, e não pôde morder senão o que era ridículo na maneira pela qual certas pessoas pouco esclarecidas concebem o Espiritismo. Se ele ainda não matou inteiramente esses abusos, deu-lhes um golpe mortal, e era de justiça.

Portanto, o Espiritismo verdadeiro só ganhou desembaraçando-se da chaga de seus parasitas, e foram os seus inimigos que disso se encarregaram. Quanto à Doutrina propriamente dita, é de notar que ela quase sempre ficou fora do debate. Contudo, é a parte principal, a alma da causa. Seus adversários bem compreenderam que o ridículo não podia atingi-la; eles sentiram que a fina lâmina da troça espirituosa deslizaria sobre a couraça, por isso a atacaram com o tacape da injúria grosseira e o soco do rústico, mas com tão pouco sucesso.

Desde o princípio, o Espiritismo pareceu a certos indivíduos à cata de intrigas, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos tocados pela pureza de sua moral do que pelas chances que aí entreviam, meteram-se sob a égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São os que podem ser chamados espíritas de circunstância.

Que teria acontecido a esta doutrina se ela não tivesse usado toda a sua influência para frustrar e desacreditar as manobras da exploração? Teríamos visto os charlatães pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega daquilo que há de mais sagrado: o respeito aos mortos com a pretensa arte dos feiticeiros, adivinhos, tiradores de cartas, ledores da sorte, suprindo os Espíritos pela fraude, quando estes não vêm. Logo teríamos visto as manifestações levadas para os palcos, truncadas pelos passes de escamoteação; gabinetes de consultas espíritas anunciados publicamente e revendidos, como agências de emprego, conforme a importância da clientela, como se a faculdade mediúnica pudesse ser transmitida como uma quotaparte de uma empresa.

Por seu silêncio, que teria sido uma aprovação tácita, a Doutrina ter-se-ia tornado solidária com esses abusos, diremos mais, cúmplice deles. Então a crítica estaria em condições favoráveis, porque poderia, com razão, ter atacado a Doutrina que, por sua tolerância, teria assumido a responsabilidade do ridículo e, por conseguinte, da justa reprovação lançada sobre os abusos; talvez tivesse ela levado mais de um século para erguer-se desse malogro. Seria preciso não compreender o caráter do Espiritismo e, ainda menos, seus verdadeiros interesses, para crer que tais auxiliares pudessem ser úteis à sua propagação e fossem próprios para torná-lo considerado como uma coisa santa e respeitável.

Estigmatizando a exploração, como fizemos, temos a certeza de haver preservado a Doutrina de um verdadeiro perigo, perigo maior que a má vontade de seus antagonistas confessos, porque isso resultaria em seu descrédito. Ela ter-lhe-ia, por isso mesmo, oferecido um lado vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus princípios. Não ignoramos que contra nós suscitamos a animosidade dos exploradores e que nos afastamos de seus partidários, mas, que importa? Nosso dever é arvorar a causa da Doutrina e não os interesses deles, e esse dever nós cumpriremos com perseverança e firmeza, até o fim.

Não era pouca coisa lutar contra a invasão do charlatanismo, num século como este, sobretudo um charlatanismo secundado, por vezes suscitado pelos mais implacáveis inimigos do Espiritismo, porque, depois de haver fracassado pelos argumentos, eles compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o ridículo.

Por isto, o mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo, a fim de desacreditá-lo na opinião pública.

Todos os espíritas sinceros compreenderam o perigo que assinalamos e nos secundaram em nossos esforços, reagindo por seu lado contra as tendências que ameaçavam desenvolver-se. Não são alguns casos de manifestações, supondo-os reais, dados como espetáculo, como aperitivo à minoria, que dão verdadeiros prosélitos ao Espiritismo, porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita. Os próprios incrédulos são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente se comunicam, não será para servirem de comparsas ou parceiros a tanto por sessão; eis por que riem deles. Eles acham ridículo que nessas cenas se misturem nomes respeitáveis, e estão cheios de razão. Para uma pessoa que seja levada ao Espiritismo por essa via, sempre supondo um fato real, haverá cem que serão desviadas, sem mais querer ouvir dele falar. A impressão será outra nos meios onde nada de equívoco pode suscitar suspeitas à sinceridade, à boa-fé e ao desinteresse, onde a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se daí não saem convencidos, pelo menos não levam a ideia de uma charlatanice.

O Espiritismo, portanto, nada tem a ganhar, e só poderia perder apoiando-se na exploração, ao passo que os exploradores é que se beneficiariam. Seu futuro não está na crença de um indivíduo em tal ou qual caso de manifestação; está inteirinho no ascendente que ele conquistar pela moralidade. Foi por esse caminho que ele triunfou e continuará triunfando sobre as manobras de seus adversários. Sua força está no seu caráter moral, e isso ninguém lhe arrebatará.

O Espiritismo entra numa fase solene, mas na qual ainda terá que sustentar grandes lutas. É necessário, pois, que seja forte por si mesmo e, para ser forte, é preciso que seja respeitável. Cabe aos seus adeptos dedicados fazer que ele seja respeitado, inicialmente pregando-o, pessoalmente, pela palavra e pelo exemplo, e depois, em nome da Doutrina, desaprovando tudo quanto possa prejudicar a consideração de que ele deve ser cercado. É assim que ele poderá desafiar as intrigas, a troça e o ridículo.


Um caso de loucura causada pelo medo do diabo

Numa cidadezinha da antiga Borgonha, que nos abstemos de citar, mas que, se necessário, poderíamos declinar, existe um pobre velho que a fé espírita sustenta em sua miséria, vivendo minguadamente da venda ambulante de bugigangas pelas localidades vizinhas. É um homem bom, compassivo, que presta serviços sempre que se oferece ocasião, e certamente acima de sua posição pela elevação de seus pensamentos. O Espiritismo lhe deu a fé em Deus e na imortalidade, a coragem e a resignação.

Um dia, num de seus giros, encontrou uma jovem viúva, mãe de várias crianças que, após a morte de seu marido que ela adorava, perdida de desespero e vendo-se sem recursos, perdeu a razão completamente. Atraído pela simpatia para essa grande dor, ele procurou ver essa mulher infeliz, a fim de julgar se o seu estado era irremediável. A miséria em que a encontrou redobrou sua compaixão. Entretanto, também ele pobre, só lhe podia dar consolo.

A um de nossos colegas da Sociedade de Paris que o conhecia e tinha ido vê-lo, disse ele:

“Eu a vi várias vezes; um dia eu lhe disse, em tom de persuasão, que aquele que ela lamentava não estava irremediavelmente perdido; que ele estava perto dela, embora ela não o visse, e que eu podia, se ela quisesse, fazê-lo conversar com ela. A estas palavras, seu rosto pareceu abrir-se e um raio de esperança brilhou em seus olhos apagados.

“─ Não me enganais? perguntou ela. Ah! Se isto pudesse ser verdade!

“Sendo bom médium escrevente, obtive na sessão uma curta comunicação de seu marido, que lhe causou suave satisfação. Vim vê-la várias vezes, e todas as vezes seu marido conversava com ela por meu intermédio. Ela o interrogava e ele respondia de maneira a não lhe deixar nenhuma dúvida sobre a sua presença, porque lhe falava de coisas que eu mesmo ignorava; ele a encorajava, a exortava à resignação e lhe assegurava que um dia iriam encontrar-se.

“Pouco a pouco, sob o império dessa doce emoção e desses pensamentos consoladores, a calma voltou à sua alma, sua razão lhe voltava a olhos vistos e, ao cabo de alguns meses, ela estava completamente curada e pôde entregar-se ao trabalho, que deveria alimentá-la e aos seus filhos.

“Essa cura fez grande sensação entre os camponeses da aldeia. Assim, tudo ia bem. Agradeci a Deus por me haver permitido tirar essa infeliz das garras do desespero; também agradeci aos bons Espíritos por sua assistência, pois todo mundo sabia que essa cura tinha sido produzida pelo Espiritismo, e eu me alegrava. Mas eu tinha o cuidado de lhes dizer que nisso nada havia de sobrenatural, e lhes explicava o melhor que podia os princípios da sublime Doutrina que dá tanta consolação e que já fez tão grande número de pessoas felizes.

“Essa cura inesperada perturbou vivamente o padre da região. Ele visitou a viúva, que tinha abandonado completamente a partir do início da sua moléstia. Ele soube, por ela, como e por intermédio de quem haviam ela e os filhos recuperado a saúde; que agora tinha a certeza que não estava separada do marido; que a alegria que sentia, a confiança que isto lhe dava na bondade de Deus, a fé em que estava animada tinham sido a principal causa de seu restabelecimento.

“Ai de mim! Todo o bem no qual eu havia posto tanta perseverança em produzir ia ser destruído. O cura fez a infeliz viúva ir à sacristia; começou por lançar a dúvida em sua alma; depois a fez crer que eu era um súdito de Satã; que eu não agia senão em seu nome, e que ela estava agora em seu poder. Agiu tão bem que a pobre mulher, que teria tido necessidade dos maiores cuidados, enfraquecida por tantas emoções, recaiu num estado pior que da primeira vez. Hoje por toda parte ela só vê diabos, demônios e o inferno. Sua loucura é completa e devem levá-la a um hospício de alienados.”

O que havia causado a primeira loucura daquela mulher? O desespero. O que lhe havia restaurado a razão? As consolações do Espiritismo. O que a fez recair numa loucura incurável? O fanatismo, o medo do diabo e do inferno. Este fato dispensa qualquer comentário. Como se vê, o clero fez mal em pretender, como tem feito em muitos escritos e sermões, que o Espiritismo leva à loucura, quando, com justiça, se lhe pode devolver o argumento. Alias, aí estão as estatísticas oficiais para provar que a exaltação das ideias religiosas entram em parte notável nos casos de loucura. Antes de jogar pedra em alguém, seria prudente ver se ela não poderá cair sobre si mesmo.

Que impressão esse fato deve produzir na população daquela aldeia? Certamente não será em favor da causa sustentada pelo senhor cura, porque o resultado material é evidente. Se ele pensa em recrutar prosélitos pela crença no diabo, engana-se redondamente, e é triste ver a Igreja fazer dessa crença uma pedra angular da fé. (Ver A Gênese segundo o Espiritismo, cap. XVII, 27).


Um Espírito que julga sonhar

Várias vezes têm sido vistos Espíritos que ainda se julgam vivos, porque seu corpo fluídico lhes parece tangível como seu corpo material. Eis um deles, numa posição pouco comum: não se julgando morto, tem consciência de sua intangibilidade; mas como em vida era profundamente materialista, em crença e em gênero de vida, imagina que sonha, e tudo quanto lhe foi dito não pode arrancá-lo do erro, tão persuadido está que tudo acaba com o corpo. Era um homem de muito espírito, escritor distinto, que designaremos pelo nome de Luís. Ele fazia parte do grupo de celebridades que partiram em dezembro último para o mundo dos Espíritos. Há alguns anos veio à nossa casa, onde testemunhou diversos casos de mediunidade. Ele aqui viu principalmente um sonâmbulo, que lhe deu evidentes provas de lucidez em coisas que lhe eram inteiramente pessoais, mas nem por isto se convenceu da existência de um princípio espiritual.

Numa sessão do grupo do Sr. Desliens, a 22 de dezembro, veio espontaneamente comunicar-se por um dos médiuns, Sr. Leymarie, sem que ninguém tivesse pensado nele. Tinha morrido há oito dias. Eis o que fez escrever:

“Que sonho singular!... Sinto-me arrastado por um turbilhão, cuja direção não compreendo... Alguns amigos que eu julgava mortos convidaram-me para um passeio, e ei-nos arrastados. Para onde vamos?... Olha! Que brincadeira esquisita! A um grupo espírita!... Ah! Que farsa engraçada, ver essa boa gente conscienciosamente reunida!... Eu conhecia uma dessas figuras... Onde o vi? Não sei... (Era o Sr. Desliens, que se achava na sessão acima mencionada). Talvez em casa desse bravo Allan Kardec, que uma vez me quis provar que eu tinha uma alma, fazendo-me apalpar a imortalidade. Mas em vão apelaram aos Espíritos, às almas, tudo falhou; como nos jantares muito preparados, todos os pratos servidos foram errados e bem errados. Entretanto eu não desconfiava da boa-fé do grão-sacerdote. Julgo-o um homem honesto, mas uma orgulhosa vítima dos Espíritos da assim chamada erraticidade.

“Eu vos ouvi, senhores e senhoras, e vos apresento meus profundos respeitos. Escreveis, ao que me parece, e vossas mãos ágeis sem dúvida vão transcrever o pensamento dos invisíveis!... Espetáculo inocente!... Sonho insensato este meu! Eis um que escreve o que digo a mim mesmo... Mas absolutamente não sois divertidos, nem mesmo meus amigos, que têm rostos compassivos como os vossos. (Os Espíritos dos que haviam morrido antes dele, e que ele julga ver em sonho).

“Eh! Por certo é uma estranha mania deste valente povo francês! Tiraram-lhe de uma vez a instrução, a lei, o direito, a liberdade de pensar e de escrever, e esse bravo povo mergulha nas visões e nos sonhos. Dorme acordado esse país das Gálias e é maravilhoso vê-lo agir!

“Entretanto, ei-los em busca de um problema insolúvel, condenado pela Ciência, pelos pensadores, pelos trabalhadores!... Falta-lhes instrução... A ignorância é a lei de Loyola largamente aplicada... Eles têm à sua frente todas as liberdades; podem atingir todos os abusos, destruí-los, enfim tornar-se seu senhor, senhor viril, econômico, sério, legal, e, como crianças nos cueiros, falta-lhes a religião, um papa, um cura, a primeira comunhão, o batismo, as andadeiras em tudo e sempre. Faltam chupetas a essas crianças grandes, e os grupos espíritas e espiritualistas lhas dão.

“Ah! Se na verdade houvesse um átimo de verdade em vossas elucubrações, mas haveria para um materialista matéria para o suicídio!... Olhai! Eu vivi largamente; eu desprezei a carne, revoltei-a; ri dos deveres de família, de amizade. Apaixonado, usei e abusei de todas as volúpias, e isto com a convicção que obedecia às atrações da matéria, única lei verdadeira em vossa Terra, e isto eu renovarei ao meu despertar, com a mesma fúria, o mesmo ardor, a mesma habilidade. Tomarei a um amigo, a um vizinho, sua mulher, sua filha ou sua pupila, pouco importa, desde que, estando mergulhado nas delícias da matéria, rendo homenagem a essa divindade, senhora de todas as ações humanas.

“Mas, e se eu estivesse enganado?... Se tivesse deixado passar a verdade?... Se, realmente, houvesse outras vidas anteriores e existências sucessivas após a morte?... Se o Espírito fosse uma personalidade vivaz, eterna, progressiva, rindo da morte, retemperando-se no que chamamos provação?... Então haveria um Deus de justiça e de bondade?... Eu seria um miserável... e a escola materialista, culpada do crime de lesa-nação, teria tentado decapitar a verdade, a razão!... Eu seria, ou antes, nós seríamos profundos celerados, refinados supostos liberais!... Oh! Então, se estivésseis com a verdade, eu daria um tiro nos miolos ao despertar, tão certo quanto me chamo...”

Na sessão da Sociedade de Paris, de 8 de janeiro, o mesmo Espírito vem manifestar-se de novo, não pela escrita, mas pela palavra, servindo-se do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo.Ele falou durante uma hora, e foi uma cena das mais curiosas, porque o médium tomou a sua pose, seus gestos, sua voz e sua linguagem, a ponto de ser facilmente reconhecido pelos que o haviam conhecido. A conversa foi recolhida com cuidado e fielmente reproduzida, mas sua extensão não permite publicá-la. Ademais, não foi senão o desenvolvimento de sua tese. A todas as objeções e perguntas que lhe foram feitas, ele pretendeu tudo explicar pelo estado de sonho e, naturalmente, perdeu-se num dédalo de sofismas. Ele próprio lembrou os principais episódios da sessão a que aludira na sua comunicação escrita, e disse:

─ Eu bem tinha razão de dizer que tudo havia falhado. Olha! Eis a prova. Eu tinha feito esta pergunta: Há um Deus? Então, todos os vossos pretensos Espíritos responderam afirmativamente. Vedes que estavam à margem da verdade e não sabem mais do que vós.

Uma pergunta, entretanto, o embaraçou muito, assim procurou constantemente escapatórias para dela fugir. Foi esta:

─ O corpo pelo qual nos falais não é o vosso, pois é magro, e o vosso era gordo. Onde está o vosso verdadeiro corpo? Ele não está aqui, pois não estais em vossa casa. Quando a gente sonha, fica no próprio leito. Ide, pois, ver em vosso leito se o vosso corpo lá está e dizei-nos: Como podeis aqui estar sem o vosso corpo?

Encostado na parede por estas reiteradas perguntas, às quais apenas respondia pelas palavras: “Efeitos bizarros dos sonhos”, acabou dizendo: “Bem, vejo que me queríeis despertar. Deixai-me.” Desde então crê sonhar sempre.

Numa outra reunião, um Espírito fez sobre este fenômeno a seguinte comunicação:

“Eis aqui uma substituição de pessoa, um disfarce. O Espírito encarnado recebe a liberdade ou cai na inação. Digo inação, isto é, a contemplação do que se passa. Ele está na posição de um homem que momentaneamente empresta o seu cômodo e assiste às diversas cenas que aí são representadas com auxílio de seus móveis. Se prefere gozar da liberdade, ele pode, a menos que tenha interesse em ficar como espectador.

“Não é raro que um Espírito atue e fale com o corpo de outro; deveis compreender a possibilidade desse fenômeno, quando sabeis que o Espírito pode retirar-se com o seu perispírito para mais ou menos longe de seu envoltório corporal. Quando isto acontece sem que nenhum Espírito aproveite para tomar o lugar, há catalepsia. Quando um Espírito deseja aí entrar para agir e tomar por um instante sua parte na encarnação, ele une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse contato e dá movimento à máquina. Mas os movimentos, a voz, não são mais os mesmos, porque os fluidos perispirituais não mais afetam o sistema nervoso da mesma maneira que o verdadeiro ocupante.

“Essa ocupação jamais pode ser definitiva; para isto, seria necessária a desagregação absoluta do primeiro perispírito, o que determinaria a morte forçosamente. Ela não pode ser de longa duração, porque o novo perispírito, não tendo sido unido a esse corpo desde a formação deste, nele não tem raízes; não tendo sido modelado por esse corpo, ele não é adequado ao jogo dos órgãos; o Espírito intruso aí não está numa posição normal; ele é incomodado em seus movimentos, razão pela qual deixa essa vestimenta de empréstimo, porque dela não mais necessita.

“Quanto à posição particular do Espírito em questão, ele não veio voluntariamente ao corpo de que se serviu para falar; foi atraído pelo próprio Espírito de Morin, que quis desfrutar o seu embaraço; o outro, porque cedeu ao secreto desejo de se exibir, ainda e sempre, como cético e trocista, aproveitou a ocasião que se lhe apresentava. O papel um tanto ridículo que representou, por assim dizer malgrado seu, usando sofismas para explicar sua posição, é uma espécie de humilhação, cujo amargor sentirá ao despertar, e que lhe será proveitosa.”

OBSERVAÇÃO: O despertar desse Espírito não poderá deixar de dar lugar a instrutivas observações. Como vimos, em vida ele era um tipo de materialista sensualista; jamais teria aceito o Espiritismo. Os homens dessa categoria buscam as consolações da vida nos prazeres materiais; eles não são da escola de Büchner pelo estudo, mas, porque essa doutrina liberta do constrangimento imposto pela espiritualidade, ela deve, em sua opinião, estar certa. Para eles o Espiritismo não é um benefício, mas um estorvo; não há provas que possam dobrar sua obstinação; eles repelem-nas, menos por convicção do que por medo de que seja uma verdade.


Um Espírito que se julga proprietário

Em casa de um dos membros da Sociedade de Paris que faz reuniões espíritas, desde algum tempo vinham bater à porta, e quando iam abrir, não encontravam ninguém. Os toques de campainha eram dados com força e como que por alguém que estivesse determinado a entrar. Tendo sido tomadas todas as precauções para se assegurar de que o fato não era devido a uma causa acidental, nem à malevolência, concluiu-se que devia ser uma manifestação. Num dia de sessão o dono da casa pediu ao visitante invisível a bondade de se dar a conhecer e dizer o que desejava. Eis as duas comunicações que deu:

I

(Paris, 22 de dezembro de 1868)

“Agradeço-vos, senhor, o amável convite para tomar a palavra e, considerando que me encorajais, vencerei minha timidez para vos externar meu desejo francamente.

“Para começar, devo dizer que nem sempre fui rico. Nasci pobre, e se triunfei, devo-o a mim só. Não vos direi, como tantos outros, que cheguei a Paris com uma mão na frente e outra atrás; é uma velha lenda que não mais convence; mas eu tinha ardor, e o espírito especulador por excelência. Quando menino, se eu emprestava três bolas, a pessoa que tomava emprestado tinha que devolver quatro. Negociava com tudo o que tinha e ficava feliz ao ver pouco a pouco engrossar o meu tesouro. É verdade que circunstâncias infelizes me despojaram várias vezes; eu era fraco; outros mais fortes apoderaram-se do meu ganho e eu tinha que recomeçar tudo. Mas eu era perseverante.

“Pouco a pouco deixei a infância; minhas ideias cresceram. Menino, tinha explorado os camaradas; moço, explorava os companheiros de oficina. Eu fazia carretos; era amigo de todo mundo, mas cobrava pelo meu trabalho e pela minha amizade. “Ele é agradável, diziam, mas não se lhe deve falar em dar.” He! he! É assim que se faz. Ide, pois, ver esses belos filhos de hoje, que gastam tudo o que possuem no jogo e no café! Eles arruínam-se e se endividam, de alto a baixo da escala. Eu deixava que os outros corressem como loucos, aos trancos e barrancos; eu andava lenta e prudentemente. Assim cheguei ao porto e adquiri uma fortuna considerável.

“Era feliz. Tinha mulher e filhos. Ela, um pouco vaidosa, os outros, gastadores. Pensava que com a idade tudo isto desapareceria. Mas não. Entretanto eu os contive muito tempo pelas rédeas. Mas um dia fiquei doente. Chamaram o médico, que fez muito mal à minha bolsa. Depois... perdi o discernimento...

“Quando recuperei a razão, tudo ia lindamente! Minha mulher recebia visitas; meus filhos tinham carruagens, cavalos, criados, secretário, que sei eu! Todo um exército voraz que se atirou sobre o meu pobre patrimônio, tão penosamente adquirido, para consumi-lo.

“Entretanto, logo percebi que a desordem estava organizada; não gastavam senão as rendas, mas as gastavam largamente. Eram bastante ricos; não tinham mais necessidade de capitalizar como o bom velho; era preciso gozar e não entesourar... E eu ficava de boca aberta, sem saber o que dizer, porque se erguia a voz, não era escutado; eles fingiam não me ver. Desde então sou uma nulidade; os criados não me enxotam ainda, embora a minha roupa não seja compatível com o luxo dos cômodos, mas não prestam atenção em mim. Sento-me, levanto-me, esbarro nos visitantes, detenho os criados. Parece que nada sentem. Contudo, tenho vigor, espero, e vós podeis testemunhá-lo, vós que me ouvistes tocar. Creio que é de propósito; sem dúvida querem tornar-me louco para se livrarem de mim.

“Tal era minha situação, quando vim visitar uma das minhas casas, velho hábito que ainda conservo, embora eu não seja mais o dono. Vi construir tudo. Foram os meus escudos que pagaram tudo; e eu gosto dessas casas, cuja renda enriquece meus filhos ingratos.

“Assim, cá estava eu em visita, quando soube que espíritas aqui se reuniam. Isto me interessou. Inquiri sobre o Espiritismo e soube que os espíritas pretendiam explicar todas as coisas. Como minha situação me parece pouco clara, não me aborreceria se recebesse, a respeito, o conselho dos Espíritos. Não sou nem incrédulo nem curioso; desejo ver e crer, ser esclarecido, e se vós me reconduzirdes à posição de governar tudo em minha casa, palavra de proprietário, não subirei o vosso aluguel enquanto viver.”


II

(Paris, 29 de dezembro de 1868)

“Dizeis que estou morto? Mas pensais bem no que dizeis?... Pretendeis que meus filhos não me veem, nem me escutam. Mas vós me vedes e me escutais, porque conversais comigo; porque abris a porta quando toco; porque interrogais e eu respondo... Escutai, eu percebo o que acontece; sois menos fortes do que eu pensava, e como os vossos Espíritos nada podem dizer, quereis embrulhar-me, fazendo-me duvidar de minha razão... Tomais-me por uma criança? Se eu houvesse morrido, seria um Espírito como eles e os veria, mas não vejo nenhum e ainda não me pusestes em contato com eles.

“Há, entretanto, uma coisa que me intriga. Dizei-me, pois, por que escreveis tudo o que digo? Por acaso quereis trair-me? Dizem que os espíritas são loucos; pensais, talvez, em dizer a meus filhos que me ocupo de Espiritismo e, assim, lhes dar meios de me interditar?

“Mas ele escreve, escreve!... Ainda não acabei de pensar e logo as minhas ideias estão no papel... Tudo isto não está claro!... O que é certo é que vejo, falo, respiro, ando, subo as escadas e, graças a Deus, percebo que é no número cinco que morais... Não é caridoso brincar assim com as penas dos outros. Eu respiro; e não posso mais, e pretendem fazer-me crer que não tenho mais corpo?... Eu sinto bem a minha asma, acredito! ... Quanto àqueles que me disseram que isto era o Espiritismo, então! mas são pessoas como vós; minhas conhecidas, que eu tinha perdido de vista e que encontrei depois da minha doença!

“Oh! Mas é estranho!... Oh! Por exemplo, eu não existo mais; absolutamente não existo mais!... Mas, parece-me... Oh! Minha memória que vai... sim... não... mas sim... Eu estou louco, palavra... Eu falei com pessoas que julgava mortas e enterradas há oito ou dez anos... Caramba! Eu assisti aos enterros; eu fiz negócios com os herdeiros!... Realmente é estranho!... E elas falam! Elas andam... Elas conversam!... Elas sentem o seu reumatismo!... Elas falam da chuva e do bom tempo... Elas tomam do meu rapé e apertam-me a mão!

“Mas, então, eu!... Não, não, não é possível! Eu não estou morto! Não se morre assim, sem perceber... Ainda estive no cemitério, justamente no fim de minha doença... era um parente... meu filho estava de luto... minha mulher lá não estava, mas ela chorava... Eu o acompanhei, esse pobre querido... Mas quem era, então? Na verdade não sei... Que perturbação estranha me agita!... Seria eu?... Mas não, porque eu acompanhava o corpo, e não podia estar no túmulo... Estar lá, e lá embaixo!... e contudo!... como tudo isto é estranho!... que novelo embaraçado!... Não me digais nada; quero procurar sozinho; vós me perturbaríeis... Deixai-me; eu voltarei...

Decididamente parece que sou um fantasma!... Oh! que coisa singular!”

OBSERVAÇÃO: Este Espírito está na mesma situação que o precedente, no sentido que um e outro ainda se julgam neste mundo; mas há entre eles a diferença que um se julga de posse de seu corpo carnal, ao passo que o outro tem consciência de seu estado espiritual, mas imagina que sonha. Este último, sem a menor dúvida, está mais próximo da verdade, contudo, será o último a voltar de seu erro. O exproprietário certamente estava muito apegado aos bens materiais, mas a sua avareza e os hábitos de economia um pouco sórdida provam que não levava vida sensual. Além disso, ele não é decididamente incrédulo; ele não rejeita a espiritualidade. Ao contrário, Luís a teme; o que ele lamenta não é a ausência da fortuna que gastava em vida, mas os prazeres que tal gasto lhe permitia. Não podendo admitir que sobrevive ao seu corpo, crê sonhar; compraz-se nessa ideia, na esperança de voltar à vida mundana; nela ele se aferra por todos os sofismas que sua imaginação lhe pode sugerir. Portanto, ele ficará nesse estado porque quer, até que a evidência lhe venha abrir os olhos. Qual deles sofrerá mais ao despertar? A resposta é fácil: um apenas ficará mediocremente surpreendido, o outro ficará apavorado.


Visão de Pergolesi

Tem sido contado muitas vezes, e todos conhecem o estranho caso da morte de Mozart, cujo Requiem tão célebre foi a última e incontestável obra-prima. A crer numa tradição napolitana, muito antiga e muito respeitável, muito tempo antes de Mozart, fatos não menos misteriosos e não menos interessantes teriam precedido, senão determinado, a morte prematura de um grande mestre: Pergolesi.

Essa tradição eu a ouvi da própria boca de um velho camponês de Nápoles, essa terra das artes e das recordações. Ele a recebera de seus avós e, no seu culto ao ilustre mestre, do qual falava, tinha o cuidado de nada alterar no relato.

Eu o imitarei e vos direi fielmente o que ele me contou. Disse-me ele:

“Conheceis a pequena cidade de Casoria, a poucos quilômetros de Nápoles. Foi lá que em 1704 Pergolesi veio à luz.

“Desde a mais tenra idade revelou-se o artista do futuro. Quando sua mãe, como o fazem todas as nossas, cantarolava junto dele as lendas rimadas de nossa terra, para adormecer il bambino, ou, segundo a ingênua expressão das amas napolitanas, a fim de chamar para junto do berço os anjinhos do sono (angelini del sonno), diz-se que o menino, em vez de fechar os olhos, os arregalava, fixos e brilhantes; suas mãozinhas se agitavam e pareciam aplaudir; aos gritos alegres que escapavam de seu peito arquejante, dir-se-ia que essa alma, apenas surgida, já estremecia aos primeiros ecos de uma arte que um dia deveria cativá-la inteiramente.

“Aos oito anos, Nápoles o admirava como um prodígio, e durante mais de vinte anos a Europa inteira aplaudiu o seu talento e as suas obras. Ele fez a arte musical dar um passo imenso. Por assim dizer, lançou o germe de uma era nova, que em breve deveria produzir os mestres que se chamam Mozart, Méhul, Beethoven, Haydn e os outros. Numa palavra, a glória cobria a sua fronte com a mais brilhante auréola.

“E, contudo, dir-se-ia que sobre essa fronte pairava, errante, uma nuvem de melancolia, fazendo-a curvar-se para a terra. De vez em quando o olhar profundo do artista erguia-se para o céu, como que para aí procurar alguma coisa, um pensamento, uma inspiração.

“Quando o interrogavam, respondia que uma vaga inspiração enchia a sua alma; que no fundo de si mesmo ouvia como que os ecos incertos de um canto do céu que o arrastava e o elevava, mas que ele não podia captar, e que, semelhante a um pássaro cujas asas demasiado fracas não podem, à sua vontade, elevá-lo no espaço, ele caía na terra, sem ter podido acompanhar essa suave inspiração.

“Nesse combate, pouco a pouco a alma se esgotava; na mais bela idade da vida, pois então tinha apenas trinta e dois anos, Pergolesi parecia já ter sido tocado pelo dedo da morte. Seu gênio fecundo parecia ter-se tornado estéril; sua saúde minguava dia a dia; em vão seus amigos lhe procuravam a causa e ele próprio não podia descobri-la.

“Foi nesse estado penoso e estranho que ele passou o inverno de 1735 para 1736.

“Sabeis com que piedade aqui celebramos, ainda em nossos dias, malgrado o afrouxamento da fé, os tocantes aniversários da morte do Cristo. A semana em que a Igreja o relembra a seus filhos é realmente, para nós, uma semana santa. Assim, reportando-vos à época de fé em que vivia Pergolesi, podeis imaginar com que fervor o povo acorria em massa às igrejas, para meditar as cenas enternecedoras do drama sangrento do Calvário.

“Na sexta-feira santa, Pergolesi acompanhou a multidão. Aproximando-se do templo, parecia-lhe que uma calma, de há muito por ele desconhecida, se fazia em sua alma, e quando transpôs a porta principal, sentiu-se como que envolto numa nuvem ao mesmo tempo espessa e luminosa. Em breve nada mais viu; um silêncio profundo se fez ao seu redor; depois, ante os seus olhos admirados, e em meio à nuvem na qual até então lhe parecia ter sido levado, viu desenharem-se os traços puros e divinos de uma virgem, inteiramente vestida de branco; ele a viu pousar seus dedos etéreos no teclado de um órgão, e ouviu um concerto longínquo de vozes melodiosas que insensivelmente dele se aproximavam. A melodia que essas vozes repetiam o enchia de encantamento, mas não lhe era desconhecida; parecia-lhe que esse canto não era senão aquele do qual não tinha podido perceber senão vagos ecos; essas vozes eram exatamente aquelas que há longos meses lançavam a perturbação em sua alma, e que agora lhe traziam uma felicidade sem par. Sim, esse canto, essas vozes eram precisamente o sonho que ele havia perseguido; o pensamento, a inspiração que inutilmente tinha procurado por tanto tempo.

“Mas, enquanto sua alma, arrebatada no êxtase, bebia a largos sorvos as harmonias simples e celestes desse concerto angélico, sua mão, movida como que por uma força misteriosa, se agitava no espaço e parecia traçar, malgrado seu, as notas que traduziam os sons que o ouvido escutava.

“Pouco a pouco as vozes se afastaram, a visão desapareceu, a nuvem se extinguiu e Pergolesi, abrindo os olhos, viu, escrito por sua mão, no mármore do templo, esse canto de uma simplicidade sublime que devia imortalizá-lo, o Stabat Mater, que desde esse dia o mundo cristão inteiro repete e admira.

“O artista ergueu-se, saiu do templo, calmo, feliz, e não mais inquieto e agitado. Mas, nesse dia, uma nova aspiração se apoderou dessa alma de artista. Ela ouvira o canto dos anjos, o concerto dos céus. As vozes humanas e os concertos terrenos não mais lhe podiam bastar. Essa sede ardente, impulso de um vasto gênio, acabava de esgotar o sopro de vida que lhe restava, e foi assim que aos trinta e três anos, na exaltação, na febre, ou melhor, no amor sobrenatural de sua arte, Pergolesi encontrou a morte.”

Esta é a narração de meu napolitano. Não passa, disse eu, de uma tradição. Não defendo a sua autenticidade e a história talvez não a confirme em todos os pontos, mas é demasiado tocante para que não nos deleitemos com o seu relato.

ERNEST LE NORDEZ.

(Petit Moniteur de 12 de dezembro de1868.)

Bibliografia


A guerra empreendida sob Luís XIV contra os calvinistas, ou Tremedores das Cevenas, é, sem contradita, um dos mais tristes episódios e dos mais comovedores da história da França, talvez menos notável do ponto de vista puramente militar, que renovou as atrocidades muito comuns nas guerras religiosas, do que pelos inumeráveis casos de sonambulismo espontâneo, êxtase, dupla vista, previsões e outros fenômenos do mesmo gênero, que se produziram durante todo o curso dessa infeliz cruzada. Esses fatos, que então eram considerados sobrenaturais, sustentavam a coragem dos calvinistas, encurralados nas montanhas, como feras, ao mesmo tempo que eram considerados como possessos do diabo, por uns, e como iluminados, por outros. Tendo sido uma das causas que provocaram e alimentaram a perseguição, eles representam, nesse episódio, o papel principal, e não acessório. Mas como os historiadores poderiam apreciá-los, quando lhes faltavam todos os elementos necessários para se esclarecerem sobre sua natureza e sua realidade? Eles não puderam senão desnaturá-los e apresentá-los sob um falso ângulo.

Só os novos conhecimentos fornecidos pelo magnetismo e pelo Espiritismo poderiam lançar luz sobre a questão. Ora, como não se pode falar com conhecimento de causa sobre o que não se compreende, ou sobre o que se tem interesse em dissimular, esses conhecimentos eram tão necessários para, sobre o assunto, fazer um trabalho completo e isento de preconceitos, quanto o eram a Geologia e a Astronomia para comentar a Gênese.

Demonstrando a verdadeira causa desses fenômenos, e provando que eles não se afastam da ordem natural, esses conhecimentos lhes devolveram seu verdadeiro caráter. Eles dão, também, a chave dos fenômenos do mesmo gênero que se produziram em muitas outras circunstâncias, e permitem separar o possível do exagero legendário.

Juntando ao talento de escritor e aos conhecimentos de historiador, um estudo sério e prático do Espiritismo e do magnetismo, o Sr. Bonnemère encontra-se nas melhores condições para tratar com conhecimento de causa e com imparcialidade o objetivo que empreendeu. A ideia espírita mais de uma vez contribuiu para obras de fantasia, mas é a primeira vez que o Espiritismo figura nominalmente e como elemento de controle numa obra histórica séria; é assim que, pouco a pouco, ele toma sua posição no mundo, e que se cumprem as previsões dos Espíritos.

A obra do Sr. Bonnemère só aparecerá de 5 a 10 de fevereiro, mas como algumas provas nos foram mostradas, delas extraímos as passagens seguintes, que temos a satisfação de reproduzir por antecipação. Contudo, suprimimos as notas indicativas das peças de apoio. Acrescentaremos que ela se distingue das obras sobre o mesmo assunto por documentos novos que ainda não haviam sido publicados na França, de modo que pode ser considerada como a mais completa.

Assim, ela é recomendável por mais de um motivo à atenção dos nossos leitores, que poderão julgá-la pelos fragmentos abaixo:

“O mundo jamais viu algo semelhante a esta guerra das Cevenas. Deus, os homens e os demônios se puseram à parte; os corpos e os Espíritos entraram em luta e, de maneira muito diversa da do Antigo Testamento, os profetas guiavam aos combates os guerreiros que pareciam, eles próprios, deslumbrados além das condições ordinárias da vida.

“Os céticos e os trocistas acham mais fácil negar; a Ciência derrotada teme comprometer-se, desvia os olhos e se recusa a pronunciar-se. Mas como não há fatos históricos mais incontestáveis do que estes, como não há fatos que tenham sido atestados por tão grande número de testemunhas, a troça, as razões para não aceitar não podem ser admitidas por mais tempo. Foi diante do sério povo inglês que juridicamente se recolheram os depoimentos, pelas mais solenes formas, ditados por protestantes refugiados, e eles foram publicados em Londres, em 1707, quando a lembrança de todas essas coisas ainda estava viva em todas as memórias, e os desmentidos poderiam tê-las esmagado sob o seu número, se tivessem sido falsas.

“Queremos falar do Teatro sagrado das Cevenas, ou Relato das diversas maravilhas novamente operadas nessa parte do Languedoc, do qual vamos fazer longas citações.

“Os estranhos fenômenos que aí se acham relatados não buscavam, para se produzir, nem a sombra nem o mistério; eles se manifestavam diante dos intendentes, diante dos generais, diante dos bispos, como diante dos ignorantes e dos pobres de espírito. Era testemunha quem quisesse e tivesse podido estudá-los, se o tivesse desejado.

“Em 25 de setembro de 1704, escrevia Villars a Chamillard:

Eu vi, nesse gênero, coisas em que jamais teria acreditado, se elas não se tivessem passado aos meus olhos; uma cidade inteira, cujas mulheres todas pareciam possuídas do diabo. Elas tremiam e profetizavam publicamente nas ruas. Mandei prender vinte das piores, uma das quais teve a esperteza de tremer e profetizar em minha frente. Mandei prendê-la para exemplo e recolher as outras em hospitais.”

“Tais processos estavam em uso sob Luís XIV, e mandar prender uma pobre mulher porque uma força desconhecida a constrangia a dizer diante de um marechal de França coisas que lhe não agradavam, podia então ser uma maneira de agir que a ninguém revoltava, tanto era simples e natural e nos hábitos do tempo. Hoje é preciso ter coragem de enfrentar a dificuldade e lhe buscar soluções menos brutais e mais probantes.

“Não cremos nem no maravilhoso nem nos milagres. Vamos, pois, explicar naturalmente, da melhor forma que pudermos, esse grave problema histórico até hoje deixado sem solução. Vamos fazê-lo buscando ajuda das luzes que o magnetismo e o Espiritismo hoje põem à nossa disposição, sem pretender, contudo, a ninguém impor essas crenças.

“É lamentável que não possamos consagrar senão algumas linhas a isso que, compreende-se, exigiria um volume de desenvolvimentos. Diremos apenas, para tranquilizar os espíritos tímidos, que isto em nada choca as ideias cristãs; não necessitamos como prova senão destes dois versículos do Evangelho de São Mateus:

Quando, pois, vos entregarem nas mãos dos governadores e dos reis, não vos preocupeis como lhes haveis de falar, nem com o que lhes haveis de dizer, porque o que lhes deveis dizer vos será dado na mesma hora;

Porque não sois vós que falais, mas o espírito de vosso Pai que fala em vós. (Mat. X: 19 e 20).”

“Deixamos aos comentadores o cuidado de decidir qual é, ao certo, esse espírito de nosso Pai que, em dados momentos, se substitui ao nosso, fala em nosso lugar e nos inspira. Talvez possamos dizer que toda geração que desaparece é o pai e a mãe da que lhe sucede, e que os melhores entre os que parecem não mais existir se elevam rapidamente, quando desembaraçados dos entraves do corpo material, e vêm ocupar os órgãos daqueles de seus filhos que julgam dignos de lhes servir de intérpretes, e que pagarão caro, um dia, pelo mau uso que tiverem feito das faculdades preciosas que lhes são delegadas.

“O magnetismo desperta, superexcita e desenvolve em certos sonâmbulos o instinto que a Natureza deu a todos os seres para a sua cura, e que nossa civilização incompleta abafou em nós, para substituí-lo pelas falsas luzes da Ciência.

“O sonâmbulo natural põe o seu sonho em ação, eis tudo. Ele nada toma dos outros, nada pode por eles.

“O sonâmbulo fluídico, ao contrário, aquele no qual o contato do fluido do magnetizador provoca um estado bizarro, sente-se imperiosamente atormentado pelo desejo de aliviar os seus irmãos. Ele vê o mal, ou vem indicar-lhe o remédio.

“O sonâmbulo inspirado, que por vezes pode ser, ao mesmo tempo, fluídico, é o mais ricamente dotado, e nele a inspiração se mantém nas esferas elevadas, quando ela se manifesta espontaneamente. Só ele é um revelador; só nele reside o progresso, porque só ele é o eco, o instrumento dócil de um Espírito diferente do seu, e mais adiantado.

“O fluido é um ímã que atrai os mortos bem-amados para os que ficam. Ele se desprende abundantemente dos inspirados, e vai despertar a atenção dos seres que partiram antes, e que lhes são simpáticos. Estes, por seu lado, depurados e esclarecidos por uma vida melhor, julgam melhor e conhecem melhor essas naturezas primitivas, honestas, passivas, que lhes podem servir de intermediárias na ordem dos fatos que julgam útil revelar-lhes.

“No século passado eram chamados extáticos. Hoje são médiuns.

“O Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um ser invisível se põe em comunicação com outro dotado de uma organização particular que o torna apto a receber os pensamentos daqueles que viveram e a escrevê-los, quer por um impulso mecânico inconsciente imprimido à mão, quer por transmissão direta à inteligência dos médiuns.

“Se quisermos por um momento dar algum crédito a estas ideias, compreenderemos sem esforço que as almas indignadas desses mártires que o grande rei imolava às centenas diariamente, vinham velar sobre os seres queridos dos quais tinham sido violentamente separadas; que elas os haviam sustentado, guiado, consolado em meio às suas provações, inspirado por seu espírito; que lhes haviam anunciado por antecipação ─ o que aconteceu muitas vezes ─ os perigos que os ameaçavam.

“Só um pequeno número era verdadeiramente inspirado. O desprendimento fluídico que deles saía, como de certos seres superiores e privilegiados, agia sobre essa multidão profundamente perturbada que os rodeava, mas sem poder desenvolver, na maioria, entre eles, outra coisa senão os fenômenos grosseiros e largamente falíveis da alucinação. Inspirados e alucinados, todos tinham a pretensão de profetizar, mas estes últimos emitiam uma porção de erros, em meio dos quais não se podia mais discernir as verdades que o Espírito realmente soprava aos primeiros. Essa massa de alucinados por sua vez reagia sobre os inspirados e lançava a perturbação no meio de suas manifestações...

“Diz o Padre Pluquet que eram necessários recursos extraordinários, prodígios, para sustentar a fé dos restos dispersos do Protestantismo. Eles explodiram de todos os lados entre os reformados, durante os quatro primeiros anos que se seguiram à revogação do Edito de Nantes. Ouviram-se nos ares, nas cercanias dos lugares onde outrora tinha havido templos, vozes tão perfeitamente semelhantes aos cantos dos salmos, tais como os cantam os protestantes, que não podiam ser tomados por outra coisa. Essa melodia era celeste e essas vozes angélicas cantavam os salmos segundo as versões de Clément Marot e de Théodore de Bèze. Essas vozes foram ouvidas em Béarn, nas Cevenas, em Vassy, etc. Ministros fugitivos foram escoltados por essa divina salmodia e até a trombeta não os abandonou senão depois que eles transpuseram as fronteiras do reino. Jurieu reuniu com cuidado os testemunhos dessas maravilhas e daí concluiu que ‘Deus, tendo feito bocas no meio dos ares, era uma censura indireta que a Providência fazia aos protestantes de França por se terem calado muito facilmente’. Ele ousou predizer que em 1689 o Calvinismo seria restabelecido na França... Jurieu dissera: ‘O Espírito do Senhor estará convosco. Ele falará pela boca das crianças e das mulheres, em vez de vos abandonar.’

“Foi mais que o necessário para que os protestantes perseguidos se pusessem a ver as mulheres e as crianças pondo-se a profetizar.

“Um homem mantinha em casa, numa vidraria oculta no topo da montanha de Pevrat, no Delfinado, uma verdadeira escola de profecia. Era um velho gentilhomem, chamado Du Serre, nascido na aldeia de Dieu-le-Fit. Aqui as origens são um pouco obscuras. Dizem que ele tinha sido iniciado, em Genebra, nas práticas de uma arte misteriosa cujo segredo era transmitido a um pequeno número de pessoas. Reunindo em sua casa rapazes e algumas moças cuja natureza impressionável e nervosa ele sem dúvida havia observado, submetia-os previamente a jejuns austeros; agia poderosamente sobre sua imaginação, para eles estendia as mãos como que para lhes impor o Espírito de Deus, soprava sobre suas frontes e os fazia cair como inanimados à sua frente, com os olhos fechados, adormecidos, os membros tensos pela catalepsia, insensíveis à dor, não vendo e não ouvindo mais nada do que se passava ao seu redor, mas pareciam escutar vozes interiores que lhes falavam, e ver espetáculos esplêndidos, cujas maravilhas contavam, porque, nesse estado bizarro, eles falavam e escreviam; depois, voltando ao seu estado ordinário, eles não se lembravam mais de nada do que tinham feito, do que tinham dito, do que tinham escrito.

“Eis o que Brueys conta desses ‘pequenos profetas adormecidos’, como ele os chama. Aí encontramos os processos, hoje bem conhecidos, do magnetismo, e quem quiser poderá, em muitas circunstâncias, reproduzir os milagres do velho gentilhomem vidreiro...

“Em 1701 houve uma nova explosão de profetas. Eles choviam do céu, brotavam da terra e, das montanhas de Lozère até às margens do Mediterrâneo. Contavam-se aos milhares. Os católicos haviam tomado os filhos dos calvinistas. Deus se serviu dos filhos para protestar contra essa prodigiosa iniquidade. O governo do grande rei só conhecia a violência. Prendiam em massa, ao acaso, esses profetas-meninos; açoitavam impiedosamente os menores, queimavam as plantas dos pés dos maiores. Nada se fez, e havia mais de trezentos nas prisões de Uzès, quando a Faculdade de Montpellier recebeu ordem de se transportar àquela cidade para examinar o seu estado. Após maduras reflexões, a douta Faculdade os declarou ‘atingidos de fanatismo.’

“Essa bela solução da ciência oficial, que hoje ainda não poderia dizer muito mais sobre o assunto, não pôs termo à onda transbordante de inspirações. Bâville então publicou uma ordenação (setembro de 1701) para tornar os pais responsáveis pelo fanatismo de seus filhos.

“Puseram soldados à vontade nas casas de todos quantos não haviam podido desviar seus filhos desse perigoso oficio e os condenaram a penas arbitrárias. Assim, tudo repercutia os lamentos e clamores desses pais infortunados. A violência foi levada tão longe que, para dela se livrarem, houve várias pessoas que denunciaram seus próprios filhos, ou os entregaram aos intendentes e aos magistrados, dizendo: ‘Ei-los, nós nos desobrigamos; vós mesmos fazei-os, se possível, perder a vontade de profetizar’.

“Vãos esforços! Prendiam, torturaram os corpos, mas o Espírito ficava livre e os profetas se multiplicavam. Em novembro retiraram mais de duzentos das Cevenas ‘que condenaram a servir ao rei, uns nos seus exércitos, outros nas galés’ (Corte de Gébelin). Houve execuções capitais, que não pouparam nem mesmo as mulheres. Em Montpellier enforcaram uma profetisa de Vivarais, porque saía sangue de seus olhos e de seu nariz, que ela chamava de lágrimas de sangue que chorava sobre os infortúnios de seus correligionários, sobre os crimes de Roma e dos papistas...

“Uma surda irritação, uma onda de cólera há muito contida rugia em todas as gargantas ao término desses vinte anos de intoleráveis iniquidades. A paciência das vítimas não diminuía a fúria dos carrascos. Pensaram, enfim, em conter a força pela força.

“Era, sem dúvida, diz Brueys, um espetáculo muito extraordinário e muito novo; via-se marcharem as forças armadas para combaterem pequenos exércitos de profetas.” (t. 1, pág. 156).

“Espetáculo estranho, com efeito, porque os mais perigosos entre esses pequenos profetas defendiam-se a pedradas, refugiados em alturas inacessíveis. Mas na maioria das vezes eles não tentavam nem mesmo defender a própria vida. Quando as tropas avançavam para atacá-los, eles marchavam atrevidamente contra elas, soltando brados: ‘Tartará! Tartará! Para trás, Satã!’ Dizia-se que eles acreditavam que a palavra tartará, como um exorcismo, devia pôr os inimigos em fuga; que eles próprios eram invulneráveis, ou que ressuscitariam ao cabo de três dias, se viessem a sucumbir na luta. Suas ilusões não duravam muito nesses vários pontos, e em breve opuseram aos católicos armas mais eficazes.

“Em dois encontros na montanha de Chailaret, não longe de Saint-Genieys mataram algumas centenas, prenderam um bom número, e o resto pareceu dispersarse. Bâville julgava os cativos, mandava prender alguns e enviava o resto para as galés; e como nada disso parecia absolutamente desencorajar os reformados, continuaram a procurar as reuniões do deserto, a estrangular impiedosamente os que se rendiam, sem que estes pensassem ainda em opor uma séria resistência a seus carrascos. Segundo o depoimento de uma profetisa chamada Isabel Charras, consignado no Teatro sagrado de Cevenas, esses infelizes mártires voluntários entregavam-se, previamente advertidos pelas revelações dos extáticos, à sorte que os aguardava. Lemos ali:

O chamado Jean Héraut, nosso vizinho, e quatro ou cinco de seus filhos com ele, tinham inspirações. Os dois mais novos tinham, um sete anos, o outro cinco e meio, quando receberam o dom. Eu os vi muitas vezes em seus êxtases. Um outro vizinho nosso, chamado Marliant, também tinha dois filhos e três filhas no mesmo estado. A mais velha era casada. Estando grávida de cerca de oito meses, foi a uma assembleia, em companhia de seus irmãos e irmãs, levando com ela o filhinho de sete anos. Ali foi massacrada com o dito menino, um de seus irmãos e uma das irmãs. O irmão que não foi morto ficou ferido, mas se curou, e a mais nova das irmãs foi deixada como morta, debaixo de corpos massacrados, sem ter sido ferida. A outra irmã foi levada ainda viva para a casa do pai, mas morreu dos ferimentos, alguns dias depois. Eu não estava na assembleia, mas vi o espetáculo desses mortos e desses feridos.”

“O que há de mais notável é que todos esses mártires tinham sido avisados pelo Espírito do que lhes devia acontecer. Eles tinham-no dito a seu pai, dele se despedindo e pedindo sua bênção, na mesma tarde em que saíram de casa para ir à assembleia que devia realizar-se na noite seguinte. Quando o pai viu todas essas lamentáveis ocorrências, não sucumbiu à sua dor, mas, ao contrário, disse com piedosa resignação: ‘O Senhor o deu, o Senhor o tirou; que o nome do Senhor seja bendito!’ Foi do irmão, do genro, dos dois filhos feridos e de toda a família que eu soube que tudo isto tinha sido predito.”

EUGÈNE BONNEMÈRE.


________________________________________________
[1] Um volume in-12, 3,50 francos; pelo correio, 4 francos. Paris, Livreiros Décembre-Allonier.






Março

A carne é fraca

Estudo fisiológico e moral

Há inclinações viciosas que evidentemente são mais inerentes ao espírito, porque têm a ver mais com a moral do que com o físico; outras mais parecem consequência do organismo e, por este motivo, a gente se julga menos responsável. Tais são as predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.

Está hoje perfeitamente reconhecido pelos filósofos espiritualistas que os órgãos cerebrais correspondentes às diversas aptidões devem o seu desenvolvimento à atividade do espírito; que esse desenvolvimento é, assim, um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a bossa da música, mas tem a bossa da música porque seu espírito é músico (Revista de julho de 1860 e abril de 1862).

Se a atividade do espírito reage sobre o cérebro, deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. Assim, o espírito é o artífice de seu próprio corpo, por assim dizer, modela-o, a fim de apropriá-lo às suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Assim sendo, a perfeição do corpo nas raças adiantadas seria o resultado do trabalho do espírito que aperfeiçoa o seu utensílio à medida que aumentam as suas faculdades. (A Gênese segundo o Espiritismo, cap. XI, Gênese Espiritual).

Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou de outros fluidos. É assim, por exemplo, que o glutão sente vir a saliva, ou, como se diz vulgarmente, vir água à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o alimento que pode superexcitar o órgão do paladar, pois não há contato; é, portanto, o espírito, cuja sensualidade é despertada, que age pelo pensamento sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro Espírito, a visão daquele prato nada produz. Dá-se o mesmo em todas as cobiças, todos os desejos provocados pela visão. A diversidade das emoções não pode ser compreendida, numa porção de casos, senão pela diversidade das qualidades do espírito. Tal é a razão pela qual uma pessoa sensível facilmente derrama lágrimas; não é a abundância das lágrimas que dá a sensibilidade ao espírito, mas a sensibilidade do espírito que provoca a abundante secreção de lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo modelou-se sob esta disposição normal do espírito, como se modelou sob a do espírito glutão.

Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um espírito irascível deve levar ao temperamento bilioso, de onde se segue que um homem não é colérico porque é bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. Assim acontece com todas as outras disposições instintivas; um espírito mole e indolente deixará o seu organismo num estado de atonia em relação com o seu caráter, ao passo que, se ele for ativo e enérgico, dará ao seu sangue, aos seus nervos, qualidades bem diferentes. A ação do espírito sobre o físico é de tal modo evidente, que por vezes se veem graves desordens orgânicas produzidas por efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: A emoção lhe fez subir o sangue, não é assim despida de sentido quanto se podia crer. Ora, o que pôde alterar o sangue senão as disposições morais do espírito?

Este efeito é sensível sobretudo nas grandes dores, nas grandes alegrias, nos grandes pavores, cuja reação pode chegar a causar a morte. Vemos pessoas que morrem do medo de morrer. Ora, que relação existe entre o corpo do indivíduo e o objeto que causa pavor, objeto que, muitas vezes, não tem qualquer realidade? Diz-se que é o efeito da imaginação; seja, mas o que é a imaginação senão um atributo, um modo de sensibilidade do espírito? Parece difícil atribuir à imaginação, aos músculos e aos nervos, pois então não compreenderíamos por que esses músculos e esses nervos não têm imaginação sempre; por que não a têm após a morte; por que o que nuns causa um pavor mortal, noutros excita a coragem.

Seja qual for a sutileza que usemos para explicar os fenômenos morais exclusivamente pelas propriedades da matéria, cairemos inevitavelmente num impasse, no fundo do qual se percebe, com toda a evidência, e como única solução possível, o ser espiritual independente, para quem o organismo não é senão um meio de manifestação, como o piano é o instrumento das manifestações do pensamento do músico. Assim como o músico afina o seu piano, pode-se dizer que o Espírito afina o seu corpo para pô-lo no diapasão de suas disposições morais.

É realmente curioso ver o materialismo falar incessantemente da necessidade de elevar a dignidade do homem, quando se esforça para reduzi-lo a um pedaço de carne que apodrece e desaparece sem deixar qualquer vestígio; de reivindicar para si a liberdade como um direito natural, quando o transforma num mecanismo, marchando como um boneco, sem responsabilidade por seus atos.

Com o ser espiritual independente, preexistente e sobrevivente ao corpo, a responsabilidade é absoluta. Ora, para a maioria, o primeiro, o principal móvel da crença no niilismo, é o pavor que causa essa responsabilidade, fora da lei humana, e à qual crê escapar fechando os olhos. Até hoje essa responsabilidade nada tinha de bem definido; não era senão um medo vago, fundado, há que reconhecer, em crenças nem sempre admissíveis pela razão. O Espiritismo a demonstra como uma realidade patente, efetiva, sem restrição, como uma consequência natural da espiritualidade do ser. Eis por que certas pessoas temem o Espiritismo, que as perturbaria em sua quietude, erguendo à sua frente o temível tribunal do futuro. Provar que o homem é responsável por todos os seus atos é provar a sua liberdade de ação, e provar a sua liberdade é revelar a sua dignidade. A perspectiva da responsabilidade fora da lei humana é o mais poderoso elemento moralizador: é o objetivo ao qual conduz o Espiritismo pela força das coisas.

Portanto, conforme as observações fisiológicas que precedem, podemos admitir que o temperamento é, pelo menos em parte, determinado pela natureza do espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico evidentemente influi sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal-estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode, então, ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.

Escusar-se de suas más ações com a fraqueza da carne não é senão um subterfúgio para eximir-se da responsabilidade. A carne não é fraca senão porque o espírito é fraco, o que derruba a questão e deixa ao espírito a responsabilidade de todos os seus atos. A carne, que não tem nem pensamento nem vontade, jamais prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e voluntarioso. É o espírito que dá à carne as qualidades correspondentes aos instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. Liberto dos instintos da bestialidade, o espírito modela um corpo que não é mais um tirano para as suas aspirações à espiritualidade de seu ser; então o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive para comer.

A responsabilidade moral dos atos da vida, portanto, permanece íntegra. Mas, diz a razão que as consequências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito, pois quanto mais esclarecido ele for, menos escusável será, porque, com a inteligência e o senso moral, nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. O selvagem, ainda vizinho da animalidade, que cede ao instinto do animal, comendo o seu semelhante, é, sem contradita, menos culpável que o homem civilizado que comete uma simples injustiça.

Esta lei ainda encontra sua aplicação na Medicina e dá a razão do seu insucesso em certos casos. Considerando-se que o temperamento é um efeito, e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo podem ser paralisados pelas disposições morais do espírito que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, pois, sobre a causa primeira que devemos agir; se se consegue mudar as disposições morais do espírito, o temperamento modificar-se-á por si mesmo, sob o império de uma vontade diferente ou, pelo menos, a ação do tratamento médico será ajudada, em vez de ser tolhida. Se possível, dai coragem ao poltrão, e vereis cessarem os efeitos fisiológicos do medo. Dá-se o mesmo com as outras disposições.

Mas, perguntarão, pode o médico do corpo fazer-se médico da alma? Está em suas atribuições fazer-se moralizador de seus doentes? Sim, sem dúvida, em certos limites; é mesmo um dever que um bom médico jamais negligencia, desde o instante que vê no estado da alma um obstáculo ao restabelecimento da saúde do corpo. O essencial é aplicar o remédio moral com tato, prudência e convenientemente, conforme as circunstâncias. Deste ponto de vista, sua ação é forçosamente circunscrita, porque, além de ele ter sobre o seu doente apenas uma ascendência moral, em certa idade é difícil uma transformação do caráter. É, pois, à educação, e sobretudo à primeira educação, que incumbem os cuidados dessa natureza. Quando a educação, desde o berço, for dirigida nesse sentido; quando nos aplicarmos em abafar, em seus germes, as imperfeições morais, como fazemos com as imperfeições físicas, o médico não mais encontrará no temperamento um obstáculo contra o qual a sua ciência muitas vezes é impotente.

Como se vê, é todo um estudo, mas um estudo completamente estéril, enquanto não levarmos em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. Participação incessantemente ativa do elemento espiritual nos fenômenos da vida, tal é a chave da maior parte dos problemas contra os quais se choca a Ciência. Quando ela levar em consideração a ação desse princípio, verá abrir-se à sua frente horizontes completamente novos. É a demonstração desta verdade que o Espiritismo traz.


Apóstolos do Espiritismo na Espanha

Ciudad-Real, fevereiro de 1869 -

Ao Senhor Allan Kardec

Caro Senhor,

Os espíritas que compunham o círculo da cidade de Andujar, hoje disseminados pela vontade de Deus para a propagação da verdadeira doutrina, vos saúdam fraternalmente.

Ínfimos pelo talento, grandes pela fé, propomo-nos sustentar, tanto pela imprensa quanto pela palavra, tanto em público quanto em particular, a Doutrina Espírita, porque é a mesma que Jesus pregou, quando veio à Terra para a redenção da Humanidade.

A Doutrina Espírita, chamada a combater o materialismo, a fazer prevalecer a divina palavra, a fim de que o espírito do Evangelho não seja mais truncado por ninguém; a preparar o caminho da igualdade e da fraternidade, necessita hoje, na Espanha, de apóstolos e de mártires. Se não podemos ser os primeiros, seremos os últimos. Estamos prontos para o sacrifício.

Lutaremos sós ou reunidos com os que professam a nossa doutrina. Os tempos são chegados. Não percamos, por indecisão ou por medo, a recompensa que está reservada aos que sofrem e são perseguidos pela justiça.

Nosso grupo era composto de seis pessoas, sob a direção espiritual do Espírito de Fénelon. Nosso médium era Francisco Perez Blanca, e os outros: Pablo Medina, Luis Gonzalez, Francisco Marti, José Gonzalez e Manuel Gonzalez.

Depois de haver espalhado a semente em Andujar, estamos hoje em diferentes cidades: León, Sevilha, Salamanca, etc., onde cada um de nós trabalha na propagação da Doutrina, o que consideramos como nossa missão.

Seguindo os conselhos de Fénelon, vamos publicar um jornal espírita. Desejando ilustrá-lo com extratos tirados das obras que publicastes, pedimos que nos concedais permissão. Além disso, sentir-nos-íamos muito felizes com a vossa benévola cooperação e, para tal fim, pomos à vossa disposição as colunas do nosso jornal.

Agradecendo-vos antecipadamente, rogamos saudar, em nosso nome, os nossos irmãos da Sociedade de Paris.

E vós, caro Senhor, recebei o fraternal abraço de vossos irmãos.

Por todos,

MANUEL GONZALEZ SORIANO.


Já tivemos muitas ocasiões de dizer que a Espanha contava numerosos adeptos, sinceros, devotados e esclarecidos. Aqui já não é mais devotamento, é abnegação; não uma abnegação irrefletida, mas calma, fria, como a do soldado que marcha para o combate, dizendo: “Custe-me o que custar, cumprirei o meu dever.” Não é essa coragem que chameja como um fogo de palha e se extingue ao primeiro alarme; que, antes de agir, calcula cuidadosamente o que pode perder ou ganhar; é o devotamento daquele que põe o interesse de todos acima do interesse pessoal.

O que teria ocorrido às grandes ideias que fizeram o mundo progredir, se só tivessem encontrado defensores egoístas, devotados em palavras desde que nada tivessem a perder, mas se dobrando ante um olhar de ameaça e o medo de comprometer algumas parcelas de seu bem-estar? As ciências, as artes, a indústria, o patriotismo, as religiões, as filosofias tiveram seus apóstolos e seus mártires. O Espiritismo também é uma grande ideia regeneradora; ele acaba de nascer; ele ainda não está completo, e já encontra corações devotados até a abnegação, até o sacrifício, devotamentos às vezes obscuros, que não buscam nem a glória nem o brilho, mas que, por agirem numa pequena esfera, são mais meritórios ainda, porque são moralmente mais desinteressados.

Contudo, em todas as causas, os devotamentos em plena luz são necessários, porque eletrizam as massas. Certamente não está distante o tempo em que o Espiritismo terá também seus grandes defensores que, desafiando os sarcasmos, os preconceitos e a perseguição, hastearão a sua bandeira com a firmeza que dá a consciência de fazer uma coisa útil; apoiá-lo-ão com a autoridade de seu nome e de seu talento, e seu exemplo arrastará a multidão dos tímidos, que prudentemente ainda se põem à margem.

Nossos irmãos da Espanha iniciam a caminhada; cingem os rins e aprestam-se para a luta. Que recebam as nossas felicitações e as de seus irmãos em crença de todos os países, pois entre os espíritas não há distinção de nacionalidades. Seus nomes serão inscritos com honra ao lado dos corajosos pioneiros aos quais a posteridade deverá um tributo de reconhecimento por terem sido os primeiros a pagar com suas pessoas, e contribuído para a ereção do edifício.

Dir-se-á que o devotamento consiste em tomar o bastão de viagem para ir pregar pelo mundo a todas as pessoas? Não, por certo; em qualquer lugar onde estejamos, podemos ser úteis. O verdadeiro devotamento consiste em tirar o melhor partido de sua posição, pondo a serviço da causa, o mais utilmente possível e com discernimento, as forças físicas e morais que a Providência concedeu a cada um.

A dispersão desses senhores não é um fato de sua vontade. Reunidos, no início, pela natureza de suas funções, estas os chamaram a vários pontos da Espanha. Longe de se desencorajarem por esse isolamento, eles compreenderam que, ficando unidos por pensamento e pela ação, poderiam fincar a bandeira em vários centros, e que assim sua separação reverteria em proveito da vulgarização da ideia.

Assim se deu num regimento francês, onde um certo número de oficiais tinha formado grupos, dos mais sérios e melhor organizados que vimos. Animados de um zelo esclarecido e de um devotamento a toda prova, de início seu objetivo era instruir-se a fundo nos princípios da Doutrina, depois exercitar-se na palavra, impondo-se a obrigação de tratar, em rodízio, uma questão, para se familiarizarem na controvérsia. Fora do círculo, eles pregavam pela palavra e pelo exemplo, mas com prudência e moderação; não procurando fazer propaganda a qualquer preço, tornavam-na mais útil. O regimento, tendo mudado sua sede, foi repartido por várias cidades. Assim o grupo se dispersou materialmente, mas, sempre unido em intenções, continuou sua obra em pontos diferentes.


O Espiritismo por toda parte

Extraído dos jornais ingleses

Um dos nossos correspondentes de Londres nos transmite a seguinte notícia:

“O jornal inglês The Builder (O Construtor), órgão dos arquitetos, muito estimado por seu caráter prático e retidão de seus julgamentos, tratou incidentemente, em várias ocasiões, de questões atinentes ao Espiritismo. Em seus artigos ele aborda mesmo as manifestações de nossos dias, sobre as quais o autor faz uma apreciação do seu ponto de vista.

“O Espiritismo também foi abordado em algumas das últimas notícias da Revista Antropológica de Londres; aí se declara que o fato da intervenção ostensiva dos Espíritos, em certos fenômenos, é muito bem verificado para ser posto em dúvida. Aí se fala do envoltório corporal do homem como de uma grosseira vestimenta apropriada ao seu estado atual, que se considera como o mais baixo escalão do reino hominal; esse reino, apesar de ser o coroamento da animalidade do planeta, não é senão um esboço do corpo glorioso, leve, purificado e luminoso que a alma deve revestir no futuro, à medida que a raça humana se desenvolve e se aperfeiçoa.

“Ainda não é, acrescenta o correspondente, a doutrina homogênea e coerente da escola espírita francesa, mas dela muito se aproxima, e me pareceu interessante como indício do movimento das ideias no senso espírita deste lado do estreito. Entretanto, falta-lhes direção; eles navegam à deriva nesse mundo novo que se abre ante a Humanidade, e não é de admirar que nele a gente se perca por falta de um guia. Não temos dúvidas que, se as obras da Doutrina fossem traduzidas para o inglês, reuniriam numerosos partidários, firmando as ideias ainda incertas.

“A. BLACKWELL.”


CHARLES FOURIER

Numa obra intitulada: Charles Fourier, sua vida e suas obras, por Pellarin, encontra-se uma carta de Fourier ao Sr. Muiron, datada de 3 de dezembro de 1826, pela qual ele prevê os futuros fenômenos do Espiritismo.

Ela é assim concebida:

“Parece que os Srs. C. e P. renunciaram ao seu trabalho sobre o magnetismo. Eu apostaria que não fazem valer o argumento fundamental: é que, se tudo está ligado no universo, devem existir meios de comunicação entre as criaturas do outro mundo e deste; quero dizer: comunicações de faculdades, participação temporária ou acidental das faculdades dos extramundanos ou defuntos, e não comunicação com eles. Essa participação não se pode dar em vigília, mas apenas num estado misto, como o sono ou outro. Os magnetizadores encontraram esse estado? Eu o ignoro! Mas, em princípio, sei que deve existir.”

Fourier escrevia isto em 1826, a propósito dos fenômenos sonambúlicos; ele não podia ter qualquer ideia dos meios de comunicação direta descobertos vinte e cinco anos mais tarde, e não concebia a sua possibilidade senão num estado de desprendimento, que de certo modo aproximasse os dois mundos; mas nem por isso deixava de ter a convicção do fato principal, o da existência dessas relações.

Sua crença sobre um outro ponto capital, o da reencarnação na Terra, é ainda mais preciso quando ele diz: Um mau rico poderá voltar para mendigar à porta do castelo do qual foi proprietário. É o princípio da expiação terrena nas existências sucessivas, em tudo semelhante ao que ensina o Espiritismo, conforme os exemplos fornecidos por essas mesmas relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Graças a tais relações, esse princípio de justiça, que não existia no pensamento de Fourier senão no estado de teoria ou de probabilidade tornou-se uma verdade patente.



PROFISSÃO DE FÉ DE UM FOURIERISTA


A seguinte passagem é extraída de uma nova obra intitulada Cartas a meu irmão sobre as minhas crenças religiosas, por Math. Briancourtpor Math. Briancourt: [1]

“Creio num só Deus todo-poderoso, justo e bom, tendo por corpo a luz, por membros a totalidade dos astros ordenados em série hierárquica.

“Creio que Deus designa a todos os seus membros, grandes e pequenos, uma função a cumprir no desenvolvimento da vida universal que é a sua vida, reservando a inteligência para aqueles membros que ele associa a si mesmo no governo do mundo.

“Creio que os membros inteligentes do último grau, as Humanidades, têm por tarefa a gestão dos astros que habitam e sobre os quais têm missão de fazer reinar a ordem, a paz e a justiça.

“Creio que as criaturas cumprem suas funções satisfazendo às suas necessidades que Deus adapta exatamente às exigências das funções; e como, em sua bondade, ele liga o prazer à satisfação das necessidades, creio que toda criatura, realizando a sua tarefa, é tão feliz quanto comporta a sua natureza, e que os sofrimentos são tanto mais vivos quanto mais ele se afasta da realização de sua tarefa.

“Creio que a Humanidade terrena em breve terá adquirido os conhecimentos e o material que lhe são indispensáveis para cumprir sua alta função, e que, em consequência, o dia da felicidade geral aqui na Terra não tardará muito a surgir.

“Creio que a inteligência dos seres racionais dispõe de dois corpos, um formado de substâncias visíveis aos nossos olhos, outro de matérias mais sutis e invisíveis chamadas aromas.

Creio que, com a morte de seu corpo visível, esses seres continuam a viver num mundo aromal, onde encontram a recompensa exata de suas obras boas ou más; em seguida, após um tempo mais ou menos longo, retomam um corpo material para abandoná-lo novamente à decomposição, e assim por diante.

“─ Creio que as inteligências que crescem cumprindo exatamente as suas funções vão animar seres cada vez mais elevados na divina hierarquia, até que entrem, no fim dos tempos, no seio de Deus, de onde saíram, que se unam à sua inteligência e partilhem de sua vida aromal.”

Com uma tal profissão de fé, compreende-se que os fourieristas e espíritas possam dar-se as mãos.


________________________________________________
[1] 1 vol. in-18. Livraria de Ciências Sociais.









Variedades

Senhorita de Chilly

Lê-se na Petite Presse, de 11 de fevereiro de 1869:

“O Sr. de Chilly, simpático diretor do Odéon, tão cruelmente provado pela morte quase fulminante de sua filha única, está ameaçado de uma nova dor. Sua sobrinha, Senhorita Artus, filha do antigo regente da orquestra do Ambigu-Comique, está neste momento, por assim dizer, às portas do túmulo. A propósito, o Figaro relata esta triste e tocante história:

Agonizante, a Senhorita Chilly deu um pequeno anel a essa prima cuja vida está hoje tão cruelmente ameaçada e lhe disse: ─ Toma-o; tu mo devolverás!

Estas palavras feriram a imaginação da pobre menina? Eram elas a expressão dessa dupla vista atribuída à morte? Entrementes, alguns dias após os funerais da Senhorita de Chilly, sua jovem prima caía doente.”

“O que o Figaro não diz é que, em seus últimos momentos, a pobre morta, que se agarrava à vida com toda a energia do seus belos dezoito anos, gritava de seu leito de dor à sua prima que se fundia em lágrimas num canto do quarto, teatro de sua agonia:

“─ Não! Eu não quero morrer! Não quero partir sozinha! Virás comigo! Eu te espero! Eu te espero! Tu não te casarás!

“Que espetáculo e que angústias para essa infortunada Senhorita Artus, cujo casamento, aliás, se preparava no momento mesmo em que a Senhorita de Chilly se acamava para não mais se erguer!”

Sim, certamente, estas palavras são a expressão da dupla vista atribuída à morte, cujos exemplos não são raros. Quantas pessoas tiveram pressentimentos desse gênero antes de morrer! Dirão que elas representam uma comédia? Que os niilistas expliquem esses fenômenos, se puderem! Se a inteligência não fosse senão uma propriedade da matéria, e devesse extinguir-se com esta, como explicar a recrudescência da atividade dessa mesma inteligência, as faculdades novas, por vezes transcendentes, que se manifestam tantas vezes no momento mesmo em que o organismo se dissolve, em que o último suspiro será exalado? Isto não prova que algo sobrevive ao corpo? Foi dito centenas de vezes que a alma independente se revela a cada instante, sob mil formas e em condições de tal modo evidentes que é preciso fechar voluntariamente os olhos para não vê-la.


Aparição de um filho vivo a sua mãe

O fato seguinte é relatado por um jornal de medicina de Londres e reproduzido pelo Journal de Rouen, de 22 de dezembro de 1868:

“Na semana passada, o Sr. Samuel W..., um dos principais empregados do Banco, teve que ausentar-se de uma reunião para a qual tinha sido convidado com sua senhora, pois se achava muito indisposto. Chegou em casa com uma febre violenta. Procuraram o médico, mas este tinha sido chamado a uma cidade próxima e só voltaria tarde da noite.

“A Senhora Samuel decidiu esperar o médico à cabeceira do seu marido.

Embora com uma febre ardente, o doente dormia tranquilamente. Um pouco tranquilizada, vendo que seu marido não sofria, a Sra. Samuel não lutou contra o sono e por sua vez adormeceu.

“Por volta das três horas ela ouviu tocar a campainha da porta principal. Deixou a poltrona precipitadamente, tomou um castiçal e desceu ao salão.

“Lá esperava ver entrar o médico. Aberta a porta do salão, ao invés do médico ela viu entrar seu filho Edward, um rapaz de doze anos que estudava num colégio perto de Windsor. Estava pálido e tinha a cabeça envolta em largo penso branco.

“─ Esperavas o médico para o papai, não? perguntou ele abraçando a mãe. Mas papai está melhor. Ele não tem nada mesmo, e levantará amanhã. Sou eu que necessito de um bom médico. Trata de chamá-lo já, porque o do colégio não entende muito da coisa...

“Imobilizada de medo, a Sra. Samuel teve forças para tocar a sineta. Chegou a criada de quarto. Encontrou a patroa no meio do salão, imóvel, com o castiçal na mão. O som de sua voz despertou a Sra. Samuel. Ela tinha sido presa de uma visão, de um sonho, chamemos como quisermos. Lembrava-se de tudo e repetiu à camareira o que tinha julgado ouvir. Depois exclamou chorando: ‘Deve ter acontecido uma desgraça a meu filho!’

“Chegou o médico tão esperado. Examinou o Sr. Samuel. A febre tinha quase desaparecido. Afirmou que tinha sido apenas uma febre nervosa, que seguia o seu curso e acabaria em algumas horas.

“Depois destas palavras tranquilizadoras, a mãe narrou ao médico o que lhe havia acontecido uma hora antes. O profissional, por incredulidade ou talvez por vontade de ir repousar, aconselhou a Sra. Samuel a não ligar importância a esses fantasmas. Contudo, teve que ceder aos rogos, às angústias da mãe e acompanhá-la a Windsor.

“Ao romper do dia chegaram ao colégio. A Sra. Samuel pediu notícias de seu filho; responderam que ele estava na enfermaria desde a véspera. O coração da pobre mãe apertou-se; o médico ficou desconfiado.

“Apressaram-se em visitar o menino. Ele havia sofrido grande ferimento na testa, brincando no jardim. Haviam-lhe prestado os primeiros cuidados. Apenas o curativo estava mal feito. Entretanto, a ferida nada tinha de perigoso.

“Eis o fato em todos os seus detalhes; soubemo-lo por pessoas dignas de fé. Dupla vista ou sonho, devemos de qualquer maneira considerá-lo como um fato pouco comum.”

Como se vê, a ideia da dupla vista ganha terreno. Ela ganha crédito fora do Espiritismo, como a pluralidade das existências, o perispírito, etc. Tanto é verdade que o Espiritismo chega por mil caminhos e se implanta sob todas as formas, até mesmo por conta dos cuidados daqueles que não o querem.

A possibilidade do fato acima é evidente e seria supérfluo discuti-la. É um sonho ou efeito da dupla vista? A Sra. Samuel dormia e, ao despertar, lembra-se do que viu; era, pois, um sonho; mas um sonho que traz a imagem de uma atualidade tão precisa, que é verificada quase imediatamente, não é um produto da imaginação: É uma visão muito real. Há ao mesmo tempo dupla vista ou visão espiritual, porque é bem certo que não foi com os olhos do corpo que a mãe viu o seu filho. De um lado e do outro houve desprendimento da alma. Foi a alma da mãe que foi para o filho, ou a do filho que veio para a mãe? As circunstâncias tornam este último caso mais provável, porque na outra hipótese a mãe teria visto o filho na enfermaria.

Alguém que só conhece o Espiritismo muito superficialmente, mas admite perfeitamente a possibilidade de certas manifestações, perguntava como é que o filho, que estava em seu leito, tinha podido apresentar-se à mãe com as suas roupas. “Concebo, dizia ele, a aparição pelo fato do desprendimento da alma, mas não compreenderia que os objetos puramente materiais, como roupas, tenham a propriedade de transportar para longe uma parte quintessenciada de sua substância, o que suporia uma vontade.”

Respondemos que as roupas, tanto quanto o corpo material do jovem, ficaram em seu lugar. Após uma curta explicação sobre os fenômenos de criações fluídicas, acrescentamos que o Espírito do jovem apresentou-se em casa de sua mãe com o corpo fluídico ou perispiritual. Sem ter tido o desígnio premeditado de vestir as roupas, sem ter feito este raciocínio: “Minhas roupas de pano ali estão; não posso vesti-las; há que fabricar roupas fluídicas que terão a sua aparência”, bastou-lhe pensar em sua roupa habitual, na que teria usado em circunstâncias comuns, para que esse pensamento desse ao seu perispírito as aparências dessa mesma roupa. Pela mesma razão ele teria podido apresentar-se com a roupa de dormir, se tal tivesse sido o seu pensamento. Para si mesmo essa aparência ter-se-ia tornado uma espécie de realidade; ele tinha apenas uma imperfeita consciência de seu estado fluídico e, assim como certos Espíritos ainda se julgam no mundo, ele julgava vir à casa da mãe em carne e osso, pois a beijou como de costume.

As formas exteriores que revestem os Espíritos que se tomam visíveis, são, pois, verdadeiras criações fluídicas, muitas vezes inconscientes. A roupa, os sinais particulares, os ferimentos, os defeitos físicos, os objetos que usa são o reflexo de seu próprio pensamento no envoltório perispiritual.

─ Mas, então, diz o nosso interlocutor, é toda uma ordem de ideias novas; há nisso tudo um mundo, e esse mundo está em nosso meio; muitas coisas se explicam; as relações entre mortos e vivos se compreendem.

─ Sem dúvida nenhuma, e é ao conhecimento desse mundo, que nos interessa por tantos motivos, que o Espiritismo conduz. Esse mundo se revela por uma multidão de fatos que são desprezados, por falta de compreensão de sua causa.


Um testamento nos Estados Unidos



“No Estado do Maine, nos Estados Unidos, uma senhora pleiteava a nulidade de um testamento de sua mãe. Ela dizia que, membro de uma Sociedade Espírita, sua mãe tinha escrito suas últimas vontades sob o ditado de uma mesa girante.

“O juiz declarou que a lei não proibia as consultas às mesas girantes, e as cláusulas do testamento foram mantidas.”

Ainda não chegamos a tanto na Europa. Assim, o jornal francês que relata o fato, precede-o desta exclamação: São fortes esses americanos! Entenda-se: São bobos!

Pense o que pensar o autor desta reflexão crítica, esses americanos poderão questionar, sobre certos pontos, se a velha Europa ainda se arrastará por muito tempo na trilha dos velhos preconceitos. O movimento progressivo da Humanidade partiu do Oriente e pouco a pouco se propagou pelo Ocidente. Já teria ele transposto o Atlântico e plantado a sua bandeira no novo continente, deixando a Europa na retaguarda, como a Europa deixou a Índia? Isto é uma lei, e o ciclo do progresso já teria dado várias voltas no mundo? O fato seguinte poderia fazê-lo supor:

Emancipação da mulher nos Estados Unidos

Escrevem de Yankton, cidade de Dakota, nos Estados Unidos, que a legislação desse território acaba de adotar, por grande maioria, um decreto do Sr. Enos Stutsman, que concede às mulheres o direito de voto e de elegibilidade. (Siècle, 15 de janeiro de 1869).

Quarta-feira, 29 de julho, a Sra. Alexandrine Bris prestou, perante a Faculdade de Ciências de Paris, um exame de bacharelado em ciências. Ela foi recebida com quatro bolas brancas, sucesso raro que lhe valeu as felicitações por parte do presidente, ratificadas por toda a assistência.

O Temps assegura que a Sra. Bris deve inscrever-se na Faculdade de Medicina, visando o doutorado. (Grand Moniteur, 6 de agosto de 1868).

Disseram-nos que a Sra. Bris é americana. Conhecemos duas senhoritas de Nova Iorque, irmãs de Miss B..., membro da Sociedade Espírita de Paris, que têm diploma de doutor e exercem a Medicina exclusivamente para mulheres e crianças.

Nós ainda não chegamos lá.


Emancipação da mulher nos Estados Unidos

Escrevem de Yankton, cidade de Dakota, nos Estados Unidos, que a legislação desse território acaba de adotar, por grande maioria, um decreto do Sr. Enos Stutsman, que concede às mulheres o direito de voto e de elegibilidade. (Siècle, 15 de janeiro de 1869).

Quarta-feira, 29 de julho, a Sra. Alexandrine Bris prestou, perante a Faculdade de Ciências de Paris, um exame de bacharelado em ciências. Ela foi recebida com quatro bolas brancas, sucesso raro que lhe valeu as felicitações por parte do presidente, ratificadas por toda a assistência.

O Temps assegura que a Sra. Bris deve inscrever-se na Faculdade de Medicina, visando o doutorado. (Grand Moniteur, 6 de agosto de 1868).

Disseram-nos que a Sra. Bris é americana. Conhecemos duas senhoritas de Nova Iorque, irmãs de Miss B..., membro da Sociedade Espírita de Paris, que têm diploma de doutor e exercem a Medicina exclusivamente para mulheres e crianças.

Nós ainda não chegamos lá.


Miss Nichol, médium de transporte



Nestes últimos dias o hotel dos Deux-Mondes, da Rua d’Antin, foi teatro de sessões sobrenaturais dadas pela célebre médium Nichol, apenas em presença de alguns iniciados.

A Sra. Nichol vai a Roma submeter ao exame do Santo Padre a sua faculdade extraordinária, que consiste em fazer cair chuva de flores. É o que se chama um médium de transporte (Jornal Paris, 15 de janeiro de 1869).

A Sra. Nichol é de Londres, onde goza de certa reputação como médium. Assistimos a algumas de suas experiências, numa sessão íntima, há mais de um ano, e confessamos que deixaram muito a desejar. É verdade que somos um tanto quanto cético a respeito de certas manifestações e um tanto exigente quanto às condições em que se produzem, não que ponhamos em dúvida a boa-fé dessa senhora. Dizemos apenas que aquilo que vimos não nos pareceu de natureza a convencer os incrédulos.

Desejamos-lhe boa sorte junto ao Santo Padre, porquanto ela não terá trabalho em convencê-lo da realidade dos fenômenos que hoje são abertamente confessados pelo clero (Ver a obra intitulada Dos Espíritos e suas relações com o mundo visível, pelo padre Triboulet[1]. Mas duvidamos muito que ela chegue a fazê-lo reconhecer oficialmente que não são obra do diabo.

Roma é uma terra malsã para os médiuns que não fazem milagres segundo a Igreja. Lembramos que em 1864 o Sr. Home, que ia à Roma, não para exercer a sua faculdade, mas unicamente para estudar escultura, teve que ceder à injunção que lhe foi feita de deixar a cidade em vinte e quatro horas (Revista de fevereiro de 1864).

[1] 1 volume in 8º. Preço: 5 francos.



As árvores mal-assombradas da Ilha Maurícia

As últimas notícias que recebemos da Ilha Maurício constatam que o estado dessa infeliz região segue exatamente as fases anunciadas (Revista de julho de 1867 e novembro de 1868). Além disso, elas contêm um fato notável, que forneceu assunto a uma importante instrução na Sociedade de Paris.

“Os calores do verão, diz o nosso correspondente, trouxeram a terrível febre, mais frequente, mais tenaz do que nunca. Minha casa tornou-se uma espécie de hospital, e eu passo o tempo a me tratar e tratar do próximo. É verdade que a mortalidade não é tão grande, mas, depois dos horríveis sofrimentos que nos causa cada acesso, experimentamos uma perturbação geral que desenvolve em nós novas doenças: as faculdades se alteram pouco a pouco; os sentidos, sobretudo a visão e a audição, são particularmente afetados. Entretanto, nossos bons Espíritos, perfeitamente de acordo em suas comunicações com as vossas, nos anunciam o fim próximo da epidemia, mas a ruína e a decadência dos ricos, o que, aliás, já começa.

“Aproveito o pouco tempo disponível para vos dar os detalhes que prometi, sobre os fenômenos de que minha casa tem sido teatro. As pessoas às quais ela pertencia antes de mim, despreocupadas e negligentes, conforme o uso da terra, tinham-na deixado cair quase em ruínas, e fui obrigado a fazer grandes reformas. O jardim, transformado num matagal, estava cheio dessas grandes árvores da Índia, chamadas multiplicadoras, cujas raízes, saídas do alto dos galhos, descem até o solo, onde se implantam e formam, ora troncos enormes, superpondo-se uns aos outros, ora galerias muito extensas.

“Essas árvores têm reputação muito má na região, onde passam por ser assombradas por maus Espíritos. Sem consideração por seus supostos habitantes misteriosos, como absolutamente não eram do meu gosto e enchiam inutilmente o jardim, mandei abatê-las. Desde esse momento tornou-se-nos quase impossível um dia de repouso na casa. Seria preciso ser realmente espírita para continuar a habitála. A cada instante ouvíamos batidas por todos os lados, portas abrindo-se e fechando-se, móveis mexendo-se, suspiros, palavras confusas; muitas vezes, também, ouvíamos que andavam pelos quartos vazios. Os operários que reparavam a casa foram muitas vezes perturbados por esses ruídos estranhos mas, como era dia, não se apavoravam muito, pois essas manifestações são muito frequentes na região. Tivemos que fazer muitas preces, evocar esses Espíritos, doutriná-los, e eles só respondiam por injúrias e ameaças e não cessavam seu barulho.

“Nessa época tínhamos uma reunião por semana, mas não podeis imaginar todas as traquinagens que nos foram feitas para perturbar e interromper as sessões. Ora as comunicações eram interceptadas, ora os médiuns experimentavam sofrimentos que os constrangiam à inação.

“Parece que os frequentadores da casa eram muito numerosos e muito maus para serem moralizados, porque não o conseguimos, e fomos obrigados a cessar as reuniões, onde nada podíamos obter. Só um nos quis escutar e se recomendar às nossas preces. Era um pobre português, chamado Gulielmo, que se supunha vítima das criaturas com as quais tinha cometido não sei que maldade, e que o retinham lá, dizia ele, para sua punição. Tomei informações e soube que, efetivamente, um marinheiro português com esse nome tinha sido um dos locatários da casa, e que tinha morrido.

“A febre chegou; os ruídos tornaram-se menos frequentes, mas não cessaram; aliás, acabamos por nos habituar. Reuníamo-nos ainda, mas a doença impedia que as sessões prosseguissem normalmente. Tenho cuidado para que sejam feitas tanto quanto possível no jardim, pois notamos que na casa as boas comunicações são mais difíceis de obter e que nesses dias somos mais atormentados, sobretudo à noite.”

A questão dos lugares assombrados é um fato constatado; os barulhos e perturbações são coisas conhecidas, mas certas árvores terão um poder atrativo particular? Na circunstância de que se trata, existe uma relação qualquer entre a destruição dessas árvores e os fenômenos que se seguiram imediatamente? A crença popular teria aqui alguma realidade? É sobre isso que a instrução abaixo parece dar uma explicação lógica, até mais ampla confirmação.

(Sociedade de Paris, 19 de fevereiro de 1869)

Todas as lendas, sejam quais forem, por mais ridículas e pouco fundamentadas que pareçam, repousam numa base real, numa verdade incontestável, demonstrada pela experiência, mas amplificada e desnaturada pela tradição. Diz-se que certas plantas são boas para expulsar os maus Espíritos; outras podem provocar a possessão; certos arbustos são mais particularmente assombrados. Tudo isto é verdadeiro, de fato, isoladamente. Um fato ocorreu, uma manifestação especial justificou esse dito, e a massa supersticiosa apressou-se em generalizá-lo. É a história de um homem que pôs um ovo. A coisa corre em segredo de boca em boca e se amplia até tomar as proporções de uma lei incontestável, e essa lei que não existe é aceita em razão das aspirações para o desconhecido, para o extranatural da generalidade dos homens.

As multiplicadoras foram, sobretudo em Maurício, e são ainda, pontos de referência para as reuniões da noite; acomodam-se junto ao tronco, respiram o ar à sua volta, abrigam-se sob sua folhagem.

Ora, os homens, ao desencarnar, sobretudo quando estão em certa inferioridade, conservam seus hábitos materiais; eles frequentam os lugares de que gostavam quando encarnados; aí se reúnem e aí ficam; eis por que há lugares mais particularmente assombrados. Aí não vêm os primeiros Espíritos que chegam, mas os Espíritos que os frequentaram em vida. As multiplicadoras não são, pois, mais propícias à habitação dos Espíritos inferiores do que qualquer outro abrigo. O costume as designa aos fantasmas de Maurício, como certos castelos, certas clareiras das florestas alemãs, certos lagos são mais particularmente assombrados pelos Espíritos, na Europa.

Se forem perturbados esses Espíritos, ainda inteiramente materializados, e que, na sua maioria, se julgam vivos, eles se irritam e tendem a se vingar, a disputar com os que os privaram de seu abrigo, daí as manifestações de que essa senhora e muitos outros tiveram que se queixar.

Em geral, sendo a população mauriciana inferior, do ponto de vista moral, a desencarnação não pode fazer do espaço senão um viveiro de Espíritos muito pouco desmaterializados, ainda marcados por todos os seus hábitos terrenos, e que continuam, ainda que Espíritos, a viver como se fossem homens. Eles privam da tranquilidade e do sono aqueles que os privam de sua habitação predileta, eis tudo. A natureza do abrigo, seu aspecto lúgubre, nada têm que ver com isso; é simplesmente uma questão de bem-estar. Desalojam-nos e eles se vingam. Materiais por essência, eles se vingam materialmente, batendo nas paredes, lamentando-se, manifestando seu descontentamento sob todas as formas.

Que os mauricianos se depurem e progridam, e voltarão ao espaço com tendências de outra natureza, e as multiplicadoras perderão a faculdade de abrigar os fantasmas.

CLÉLIE DUPLANTIER.


Conferências sobre o Espiritismo

Sob o título O Espiritismo ante a Ciência tinha sido anunciada uma conferência pública, pelo Sr. Chevillard, na sala da Avenida dos Capucines para o dia 30 de janeiro último. Em que sentido devia falar o orador? É o que todo mundo ignorava.

O anúncio parecia prometer uma discussão ex-professo de todas as partes da questão. Contudo, o orador fez abstração completa da parte mais essencial, aquela que efetivamente constitui o Espiritismo: a parte filosófica e moral, sem a qual seguramente o Espiritismo não estaria hoje implantado em todas as partes do mundo, e não contaria seus adeptos por milhões. Desde 1855 já se abandonavam as mesas girantes; certamente se a isto se tivesse limitado o Espiritismo, há muito tempo não se falaria mais dele; sua rápida propagação data do momento em que nele se viu algo de sério e de útil, em que se entreviu um objetivo humanitário.

O orador limitou-se, então, ao exame de alguns fenômenos materiais, porque nem mesmo falou dos fenômenos espontâneos tão numerosos que se produzem fora de toda crença espírita. Ora, anunciar que se vai tratar de uma questão tão vasta, tão complexa nas suas aplicações e nas suas consequências e deter-se em alguns pontos de superfície, é absolutamente como se, sob o nome de Curso de Literatura, um professor se limitasse a explicar o alfabeto.

Talvez o Sr. Chevillard tenha dito para si mesmo: “Para que falar da doutrina filosófica? Considerando-se que essa doutrina se apoia na intervenção dos Espíritos, quando eu tiver provado que tal intervenção não existe, todo o resto esboroar-se-á.”

Quantos, antes do Sr. Chevillard, se gabaram de haver desferido o último golpe no Espiritismo, sem falar no inventor do famoso músculo que range, o doutor Jobert (de Lamballe) que mandava sem piedade todos os espíritas para o hospício e que, dois anos mais tarde, ele próprio morria numa casa de alienados! Contudo, malgrado todos esses fanfarrões, ferindo a punhal e espada, que pareciam não ter mais o que falar para reduzi-lo a pó, o Espiritismo viveu, cresceu e vive sempre, mais forte, mais vivaz do que nunca! Eis um fato que tem o seu valor. Quando uma ideia resiste a tantos ataques, é que algo mais existe.

Não se viram outrora cientistas esforçando-se por demonstrar que o movimento da Terra era impossível? E sem ir muito longe, este século não nos mostrou uma ilustre corporação declarar que a aplicação do vapor à navegação era uma quimera? Um livro curioso para ser editado seria a coletânea dos erros oficiais da Ciência. Isto é simplesmente para chegar à conclusão que quando uma coisa é verdadeira, ela avança a despeito de tudo, malgrado a opinião contrária dos sábios. Ora, se o Espiritismo avançou, apesar dos argumentos opostos pela alta e baixa ciência, há uma presunção em seu favor.

O Sr. Jobert (de Lamballe) tratava sem cerimônia todos os espíritas de charlatães e escroques. Há que render justiça ao Sr. Chevillard, que não os condena senão por se enganarem quanto à causa. Ademais, epítetos indecorosos, além de nada provarem, sempre denotam uma falta de cortesia, e teriam ficado muito deslocados num auditório onde necessariamente deveriam encontrar-se muitos espíritas. O púlpito evangélico é menos escrupuloso. Aí disseram muitas vezes: “Fugi dos espíritas como da peste e expulsai-os,” o que prova que o Espiritismo é alguma coisa, pois o temem, e porque não se dão tiros de canhão contra moscas.

O Sr. Chevillard não nega os fatos; ao contrário, ele os admite, pois os constatou. Apenas os explica à sua maneira. Traz ele pelo menos um argumento novo em apoio à sua tese? Pode-se julgar.

“Cada homem, diz ele, possui uma quantidade maior ou menor de eletricidade animal, que constitui o fluido nervoso. Esse fluido se desprende sob o império da vontade, do desejo de fazer mover uma mesa; ele penetra a mesa e a mesa se move; as pancadas na mesa não passam de descargas elétricas, provocadas pela concentração do pensamento.” Escrita mecânica: a mesma explicação.

Mas como explicar as pancadas nas paredes, sem a participação da vontade, na casa de pessoas que não sabem o que é o Espiritismo, ou nele não acreditam? Superabundância de eletricidade, que se desprende espontaneamente e produz descargas.

E as comunicações inteligentes? Reflexo do pensamento do médium.

E quando o médium obtém, pela tiptologia ou pela escrita, coisas que ele ignora? Sempre se sabe alguma coisa, e se não for o pensamento do médium, poderá ser o dos outros.

E quando um médium escreve inconscientemente coisas que lhe são pessoalmente desagradáveis, é o seu próprio pensamento? Deste fato, assim como de muitos outros, ele não cogita. Entretanto, uma teoria não pode ser verdadeira senão com a condição de resolver todas as fases de um problema. Se um só fato escapar à explicação, é que ela é falsa ou incompleta. Ora, de quantos fatos esta é impotente para dar a solução! Desejaríamos muito saber como o Sr. Chevillard explicaria, por exemplo, os fatos relatados acima, concernentes à Senhorita de Chilly, a aparição do jovem Edward Samuel, todos os incidentes do que se passou na Ilha Maurício. Como explicaria ele, pelo desprendimento da eletricidade, a escrita em pessoas que não sabem escrever? Pelo reflexo do pensamento, o caso daquela criada que escreveu, diante de toda uma sociedade: “Eu roubo a minha patroa?”

Em resumo, o Sr. Chevillard reconhece a existência dos fenômenos, o que já é alguma coisa, mas nega a intervenção dos Espíritos. Quanto à sua teoria, ela não oferece absolutamente nada de novo; é a repetição do que tem sido dito nos últimos quinze anos, sob todas as formas, sem que a ideia tenha prevalecido. Seria ele mais feliz que os seus predecessores? É o que o futuro provará.

É realmente curioso ver os expedientes a que recorrem os que querem tudo explicar sem os Espíritos! Em vez de irem direto ao que se apresenta diante deles na mais simples das formas, eles vão procurar causas tão embrulhadas, tão complicadas, que só para eles são inteligíveis. Eles deveriam, no mínimo, para completar sua teoria, dizer em que, na sua opinião, se tornam os Espíritos dos homens após a morte, pois isto interessa a todo mundo, e provar como é que esses Espíritos não podem manifestar-se aos vivos. É o que até agora ninguém fez, ao passo que o Espiritismo prova como eles podem fazê-lo.

Mas tudo isto é necessário. É preciso que todos esses sistemas se esgotem e mostrem sua impotência. Ademais, é fato notório que toda essa repercussão dada ao Espiritismo, todas as circunstâncias que o puseram em evidência, sempre lhe foram proveitosas; e, o que é digno de destaque, é que quanto mais violentos foram os ataques, mais ele progrediu. Não será necessário a todas as grandes ideias o batismo da perseguição, não bastasse o da zombaria? E por que ele não o vitimou? A razão é muito simples: É porque, fazendo-o dizer o contrário do que ele diz, apresentando-o oposto ao que ele é, corcunda quando é ereto, ele só terá a ganhar num exame sério e consciencioso, e aqueles que quiseram feri-lo, sempre golpearam à margem da verdade. (Vide Revista de fevereiro de 1869, Poder do ridículo).

Ora, quanto mais negras forem as cores sob as quais o apresentam, mais excitam a curiosidade. O partido que se aferrou em dizer que é o diabo fez muito bem, porque, entre os que ainda não tiveram ocasião de ver o diabo, muitos ficaram bem satisfeitos ao saber como ele é, e não o acharam tão negro como haviam dito. Dizei que numa praça de Paris há um monstro horrível que vai empestar toda a cidade, e todo mundo acorrerá para vê-lo. Não se viram autores mandarem publicar nos jornais, críticas contra as suas próprias obras, unicamente para que delas falassem? Tal foi o resultado das diatribes furibundas contra o Espiritismo. Elas provocaram o desejo de conhecê-lo e serviram-no mais do que o prejudicaram.

Falar do Espiritismo, não importa em que sentido, é fazer propaganda em seu proveito. Aí está a experiência para prová-lo. Deste ponto de vista, podemos felicitar-nos pela conferência do Sr. Chevillard. Mas, apressemo-nos em dizer, em louvor ao orador, que ele se fechou numa polêmica decente, leal e de bom gosto. Ele emitiu a sua opinião: é direito seu e, embora não seja a nossa, não temos de que nos lamentar. Mais tarde, sem dúvida nenhuma, quando chegar o momento oportuno, o Espiritismo também terá os seus oradores simpáticos. Apenas lhes recomendaremos que não caiam no erro dos adversários, isto é, que estudem a questão a fundo, a fim de não falar senão com perfeito conhecimento de causa.




Dissertações espíritas

A música e as harmonias celestes

Continuação: vide o nº de janeiro, último, p. 30

(Paris, grupo Desliens, 5 de janeiro de 1869 - Médium: Sr. Desliens)


Senhores, tendes razão de me lembrar minha promessa, porque o tempo, que passa tão rapidamente no mundo do espaço, tem minutos eternos para aquele que o sofre sob o amplexo da provação! Há alguns dias, algumas semanas, eu contava como vós; cada dia acrescentava toda uma série de vicissitudes às vicissitudes já suportadas, e a taça se ia enchendo piano, piano.

Ah! Não sabeis quanto o renome de grande homem é difícil de suportar! Não desejeis a glória; não sejais conhecidos: sede úteis. A popularidade tem os seus espinhos e, mais de uma vez, vi-me ferido pelas carícias demasiado brutais da multidão.

Hoje, a fumaça do incenso não mais me inebria. Pairo sobre as mesquinharias do passado, e é um horizonte sem limites que se estende ante a minha insaciável curiosidade. Assim, as horas caem aos punhados na ampulheta secular, e procuro sempre, sempre estudo sem jamais contar o tempo decorrido.

Sim, eu vos prometi. Mas quem pode gabar-se de cumprir uma promessa, quando os elementos necessários para cumpri-la pertencem ao futuro? O poderoso do mundo, ainda sob o bafejo da adulação dos cortesãos, pôde querer enfrentar o problema corpo a corpo; mas não era mais de uma luta fictícia que se travava aqui; não havia mais bravos, brilhantes aclamações para me encorajar e superar minha fraqueza. Era, e é ainda, um trabalho sobre-humano a que me entreguei. É contra ele que luto sempre, e, se espero triunfar, não obstante não posso dissimular o meu esgotamento. Estou vencido... em apuros!... Repouso antes de explorar de novo, mas, se hoje não posso falar-vos do que será o futuro, talvez possa apreciar o presente: ser crítico, depois de ter sido criticado. Vós me julgareis e não me aprovareis se eu não for justo, o que tentarei fazer, evitando personalismos.

Por que, então, tantos músicos e tão poucos artistas? Tantos compositores e tão poucas verdades musicais? Ah! É que não há, como se pensa, imaginação que a Arte possa criar; não há outro mestre e outro criador senão a verdade. Sem ela não há nada, ou só há uma arte de contrabando, pedras falsas, contrafação. O pintor pode criar a ilusão e mostrar branco onde não pôs senão uma mistura de cores sem nome; as oposições das nuanças criam uma aparência, e foi assim, por exemplo, que Horace Vernet pôde fazer parecer de um branco brilhante um magnífico cavalo baio.

Mas a nota só tem um som. O encadeamento dos sons não produz uma harmonia, uma verdade, senão quando as ondas sonoras se fazem o eco de outra verdade. Para ser músico não é necessário nada além de alinhar notas sobre um pentagrama, de maneira a conservar a justeza das relações musicais; só assim se consegue produzir ruídos agradáveis; mas é o sentimento que nasce da pena do verdadeiro artista, é ele que canta, que chora, que ri... Ele assovia na folhagem com o vento tempestuoso; ele salta com a vaga espumante; ele ruge com o tigre furioso!... Mas para dar uma alma à música, para fazê-la chorar, rir, uivar, é preciso que ele próprio tenha experimentado esses diferentes sentimentos, de dor, de alegria, de cólera!

É com o sorriso nos lábios e a incredulidade no coração que personificais um mártir cristão? Será um cético do amor que fará um Romeu, uma Julieta? É um vivedor despreocupado que criará a Margarida de Fausto? Não! É necessária a paixão por inteiro para aquele que faz vibrar a paixão!... E eis por que, quando se preenchem tantas folhas, as obras são tão raras e as verdades excepcionais; é que não se crê, é que a alma não vibra. O som que se escuta é o do ouro que tine, do vinho que crepita!... A inspiração é a mulher que exibe uma beleza mentirosa; e como não possuímos senão defeitos e virtudes fingidas, não produzimos senão um verniz, uma maquiagem musical. Raspai a superfície e logo encontrareis a pedra.

ROSSINI.

(17 de janeiro de 1869 - Médium: Sr. Nivard)

O silêncio que guardei sobre a pergunta que me dirigiu o mestre da Doutrina Espírita foi explicado. Era conveniente, antes de abordar este assunto difícil, recolher-me, lembrar-me, e condensar os elementos que me estavam à mão. Eu não tinha que estudar música, tinha apenas que classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar uma ideia de minha concepção sobre a harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, está terminado, e estou pronto para submetê-lo à apreciação dos espíritas.

A harmonia é difícil de definir. Muitas vezes confundem-na com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas e das vibrações dos instrumentos ao reproduzirem esse arranjo. Mas a harmonia não é isto, como a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: ela é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação, e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui o efeito é superior à causa. Assim se dá com a harmonia. Ela resulta de um arranjo musical; é um efeito igualmente superior à causa: a causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é tangível.

Pode-se conceber a luz sem chama e compreender a harmonia sem música. A alma é apta a perceber a harmonia fora de todo concurso de instrumentação, como é apta a ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que a alma possui. Quanto mais desenvolvido esse sentido, melhor ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma; ela é percebida em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; nós as possuímos em razão dos esforços feitos para adquiri-las. Se comparo a luz e a harmonia, é para melhor me fazer compreender, e também porque essas duas sublimes satisfações da alma são filhas de Deus, e, por consequência, são irmãs.

A harmonia do espaço é tão complexa, tem tantos graus que eu conheço, e muitos mais ainda que me são ocultos no éter infinito, que aquele que estiver colocado a uma certa altura de percepções, é como que tomado de admiração ao contemplar essas harmonias diversas, que constituiriam, se fossem reunidas, a mais insuportável cacofonia, ao passo que, ao contrário, percebidas separadamente, elas constituem a harmonia particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus inferiores; levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia que desagrada um Espírito de percepções sutis, deslumbra um Espírito de percepções grosseiras; e quando ao Espírito inferior é dado deleitar-se nas delícias das harmonias superiores, ele é colhido pelo êxtase e a prece o penetra; o encantamento o arrasta às esferas elevadas do mundo moral; ele vive uma vida superior à sua e desejaria continuar a viver sempre assim. Mas, quando a harmonia cessa de invadi-lo, ele desperta, ou, se preferirem, ele adormece; em todo caso, volta à realidade de sua situação, e nos lamentos que deixa escapar por ter descido se exala uma prece ao Eterno, pedindo forças para subir. É para ele um grande motivo de emulação.

Não tentarei dar a explicação dos efeitos musicais que produz o Espírito agindo sobre o éter. O que é certo é que o Espírito produz os sons que quer, e que ele não pode querer o que não sabe. Ora, então, aquele que compreende muito, que tem a harmonia em si, que dela está saturado, que goza, ele próprio, o seu sentido íntimo, esse nada impalpável, essa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e quer. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que ele traz em si se concretiza, por assim dizer; ela se exala terna e suave como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou rebenta como o raio, ou se lamenta como a brisa; ela é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; ela é entrecortada como um soluço, ou uniforme como a relva; ela é agitada como uma catarata, ou calma como um lago; ela murmura como um regato ou estruge como uma torrente. Ora tem a agreste aspereza das montanhas, ora a frescura de um oásis; é sucessivamente triste e melancólica como a noite, animada e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe e protetora como o pai; é desordenada como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando ela chega a este último termo, confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao deslumbramento aquele que a produz ou a concebe.

Oh! Comparação! Comparação! Por que se é obrigado a empregar-te? Por que dobrar-se às tuas necessidades degradantes e tomar à Natureza tangível, imagens grosseiras para fazer conceber a sublime harmonia em que se deleita o Espírito? E ainda, a despeito das comparações, não se pode dar a compreender essa abstração, que é um sentimento, quando ela é causa, e uma sensação quando ela se torna um efeito?

O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o Espírito que tem a quitação intelectual; um e outro gozam constantemente da propriedade inalienável que conquistaram. O Espírito inteligente, que ensina sua ciência aos que ignoram, experimenta a felicidade de ensinar, porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz ressoar no éter os acordes da harmonia que nele está, experimenta a felicidade de ver satisfeitos os que o escutam.

A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira o deslumbra, a segunda o esclarece, a terceira o eleva. Possuídas em sua plenitude, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as contendes! Descei às nossas trevas e clareai a nossa marcha; mostrai-nos o caminho que tomastes, para que sigamos as vossas pegadas!

E quando penso que esses Espíritos cuja existência posso compreender são seres finitos, átomos, em face do Senhor universal e eterno, minha razão fica confusa, pensando na grandeza de Deus e da felicidade infinita que ele goza em si mesmo, pelo simples fato de sua pureza infinita, porquanto tudo o que a criatura adquire não é senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplender pela virtude, que deve então produzir a fonte eterna e infinita de onde foi tirada? Se o Espírito, ser criado, chega a tirar de sua pureza tanta felicidade, que ideia se deve fazer da que o Criador tira de sua pureza absoluta? Eterno problema!

O compositor que concebe a harmonia e a traduz na grosseira linguagem chamada música, concretiza a ideia e escreve-a. O artista apreende a forma e toma do instrumento que lhe deve permitir exprimir a ideia. O ar posto em atividade pelo instrumento leva-a ao ouvido, que a transmite à alma do ouvinte. Mas o compositor foi impotente para exprimir inteiramente a harmonia que concebia, por falta de uma linguagem suficiente; por sua vez, o executante não compreendeu toda a ideia escrita, e o instrumento indócil de que ele se serve não lhe permite traduzir tudo quanto ele compreendeu. O ouvido é ferido pelo ar grosseiro que o cerca, e a alma recebe, enfim, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia nascida na alma do maestro.

A ideia do maestro era o seu sentimento íntimo. Embora deturpada pelos agentes de instrumentação e de percepção, contudo produz sensações nos que escutam a sua tradução; essas sensações são a harmonia. A música as produziu; elas são efeitos desta última. A música foi posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. O sentimento, no compositor, é a harmonia; a sensação, no ouvinte, também é harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Ela a dá mais ou menos deturpada, conforme seja mais ou menos bem executada; o refletor envia melhor ou pior a luz, conforme ele seja mais ou menos brilhante e polido; o médium exprime mais ou menos os pensamentos do Espírito, conforme seja mais ou menos flexível.

E agora que a harmonia está bem compreendida em sua significação; que se sabe que ela é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que existe entre a harmonia da Terra e a do espaço.

Entre vós tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós, tudo é sutil. Vós tendes o ar, nós temos o éter. Tendes o órgão que obstrui e vela; em nós a percepção é direta e nada a vela. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós, ele fala sem intermediário e na língua que exprime todas as concepções. Entretanto, essas harmonias têm a mesma fonte, como a luz da Lua tem a mesma fonte que é o Sol; assim como a luz da Lua é reflexo da do Sol, harmonia da Terra não passa de reflexo da harmonia do espaço.

A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento. Não se compreende senão quando se possui, e não se possui senão quando se adquiriu.

O homem que é alegre não pode explicar sua alegria; o que é medroso não pode explicar seu medo. Eles podem relatar os fatos que provocam esses sentimentos, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos ficam sem explicação. O fato que causa a alegria de um, nada produzirá em outro; o objeto que ocasiona o medo em um, produzirá a coragem no outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários. Isto não se dá em Física, mas se dá em Metafísica. Isto se dá porque o sentimento é propriedade da alma, e as almas diferem entre si em sensibilidade, em impressionabilidade, em liberdade.

A música, que é a causa secundária da harmonia percebida, penetra e transporta um e deixa o outro frio e indiferente. É que o primeiro está em estado de receber a impressão produzida pela harmonia e o segundo num estado contrário; ele escuta o ar que vibra, mas não compreende a ideia que ele lhe traz. Este chega ao aborrecimento e adormece; aquele ao entusiasmo e chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado que aquele que ela não pode penetrar; sua alma está mais apta para sentir; ela desprende-se mais facilmente e a harmonia a ajuda a se desprender; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral. Disto deve-se concluir que a música é essencialmente moralizadora, porque leva a harmonia às almas e a harmonia as eleva e as engrandece.

A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é reconhecida por todo mundo, mas a razão dessa influência geralmente é ignorada. Sua explicação está inteiramente neste fato: A harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe em um certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que é privado desse sentimento a ele é trazido gradativamente; também ele acaba por se deixar penetrar e arrastar ao mundo ideal, onde ele esquece, por um instante, os grosseiros prazeres que prefere à divina harmonia.

E agora, se considerarmos que a harmonia emana do conceito do Espírito, deduziremos que se a música exerce uma influência feliz sobre a alma, a alma, que a concebe, também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a paixão do bem, do belo, do grande, e que adquiriu harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais encouraçadas e de comovê-las. Se o compositor é terra a terra, como expressará a virtude que ele desdenha, o belo que ele ignora e o grande que ele não compreende? Suas composições serão o reflexo de seus gostos sensuais, de sua leviandade, de sua despreocupação. Elas serão ora licenciosas, ora obscenas, ora cômicas e ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirem, e os perverterão, em vez de melhorá-los.

O Espiritismo, moralizando os homens, exercerá uma grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que comunicarão suas virtudes, fazendo ouvir suas composições.

As pessoas rirão menos e chorarão mais; a hilaridade abrirá espaço para a emoção; a feiúra dará lugar à beleza e o cômico à grandeza.

Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo tiver preparado para receber facilmente a harmonia sentirão, ouvindo música séria, um verdadeiro encanto. Eles desdenharão a música frívola e licenciosa que se apodera das massas. Quando o grotesco e o obsceno forem substituídos pelo belo e pelo bem, desaparecerão os compositores dessa ordem, porque, sem ouvintes, eles nada ganharão, e é para ganhar que se conspurcam.

Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música! Como não seria assim? Seu advento mudará a Arte, depurando-a. Sua fonte é divina, sua força o conduzirá por toda parte onde houver homens para amar, para se elevar e para compreender. Ele tornar-se-á o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas lhe pedirão suas inspirações, e ele lhas fornecerá, porque ele é rico, porque ele é inesgotável.

O Espírito do maestro Rossini, em nova existência, virá continuar a arte que ele considera como o primeiro estágio de todas. O Espiritismo será o seu símbolo e o inspirador de suas composições.

ROSSINI.



A mediunidade e a inspiração

(Paris, grupo Desliens, 16 de fevereiro de 1869)


Sob suas formas variadas ao infinito, a mediunidade abarca a Humanidade inteira, como um feixe ao qual ninguém poderá escapar. Cada um, estando em contato diário, saiba-o ou não, queira-o ou se revolte, com inteligências livres, não há um homem que possa dizer: Não fui, não sou ou não serei médium. Sob a forma intuitiva, modo de comunicação ao qual vulgarmente se deu o nome de voz da consciência, cada um está em relação com várias influências espirituais, que aconselham num ou noutro sentido, e muitas vezes simultaneamente, o bem puro, absoluto; acomodações com o interesse; o mal em toda a sua nudez.

O homem evoca essas vozes; elas respondem ao seu apelo, e ele escolhe, mas escolhe entre essas diversas inspirações e o seu próprio sentimento.

Os inspiradores são amigos invisíveis; como os amigos da Terra, são sérios ou volúveis, interesseiros ou verdadeiramente guiados pela afeição.

Nós os consultamos ou eles aconselham espontaneamente, mas, como os conselhos dos amigos da Terra, seus conselhos são ouvidos ou rejeitados; por vezes provocam um resultado contrário ao que se espera; muitas vezes não produzem qualquer efeito. ─ Que concluir daí? Não que o homem esteja sob o poder de uma mediunidade incessante, mas que ele obedece livremente à própria vontade, modificada por avisos que jamais podem, no estado normal, ser imperativos.

Quando o homem faz mais do que ocupar-se com os mínimos detalhes de sua existência, e quando se trata de trabalhos que ele veio realizar mais especialmente, de provas decisivas que ele deve suportar, ou de obras destinadas à instrução e à elevação geral, as vozes da consciência não se fazem mais somente e simplesmente conselheiras, mas atraem o Espírito para certos assuntos, provocam certos estudos e colaboram na obra, fazendo ressoar certos escaninhos cerebrais pela inspiração. Eis aqui uma obra a dois, a três, a dez, a cem, se quiserdes; mas se cem nela tomaram parte, só um pode e deve assiná-la, porque só um a fez e é o responsável por ela!

Que é uma obra, afinal de contas, seja qual for? Jamais é uma criação; é sempre uma descoberta. O homem nada faz, tudo descobre. É preciso não confundir estes dois termos. Inventar, no seu verdadeiro sentido, é pôr à luz uma lei existente, um conhecimento até então desconhecido, mas posto em germe no berço do Universo. Aquele que inventa levanta a ponta do véu que oculta a verdade, mas não cria a verdade. Para inventar é preciso procurar e procurar muito; é preciso compulsar livros, cavar no fundo das inteligências, pedir a um a Mecânica, a outro a Geometria, a um terceiro o conhecimento das relações musicais, a outro ainda as leis históricas, e do todo fazer algo de novo, de interessante, de não imaginado.

Aquele que for explorar os recantos das bibliotecas, que ouviu falarem os mestres, que perscrutou a Ciência, a Filosofia, a Arte, a Religião, da Antiguidade mais remota até os nossos dias, é o médium da Arte, da História, da Filosofia e da Religião? É ele o médium dos tempos passados, quando por sua vez escreve? Não, porque não conta os outros, mas ensinou outros a contar, e ele enriquece os seus relatos com tudo o que lhe é pessoal.

Por muito tempo o músico ouviu a toutinegra e o rouxinol, antes de inventar a música; Rossini escutou a Natureza antes de traduzi-la para o mundo civilizado. É ele o médium do rouxinol e da toutinegra? Não, ele compõe e escreve. Ele escutou o Espírito que lhe veio cantar as melodias do Céu; ele ouviu o Espírito que clamou a paixão ao seu ouvido; ele ouviu gemerem a virgem e a mãe, deixando cair, em pérolas harmoniosas, sua prece sobre a cabeça do filho. O amor e a poesia, a liberdade, o ódio, a vingança e numerosos Espíritos que possuem esses sentimentos diversos, cada um por sua vez cantou sua partitura ao seu lado. Ele as escutou e as estudou, no mundo e na inspiração, e de um e outro fez as suas obras. Mas ele não era médium, como não o é o médico que ouve os doentes contando o que sofrem, e que dá um nome às suas doenças. A mediunidade despendeu suas horas como qualquer outro, mas fora desses momentos muito curtos para a sua glória, o que ele fez, fez apenas à custa dos estudos colhidos dos homens e dos Espíritos.

Assim sendo, é-se médium de todos; é-se o médium da Natureza, médium da verdade, e médium muito imperfeito, porque muitas vezes ela aparece de tal modo desfigurada pela tradução, que é irreconhecível e desconhecida.

HALÉVY.



Erratum

Número de fevereiro de 1869. No artigo “Bibliografia – História dos calvinistas das Cevenas”, leia-se: opuseram aos católicos armas...

No mesmo artigo, no penúltimo parágrafo, leia-se; “E a mais nova das irmãs foi deixada como morta, debaixo de corpos massacrados, sem ter sido ferida. A outra irmã foi levada ainda viva para a casa do pai, mas morreu dos ferimentos, alguns dias depois.”





Abril

Aviso muito importante.

A partir de 1.º de abril, o escritório de assinaturas e de expedição da Revista espírita se transfere para a sede da Livraria Espírita, Rua de Lille, 7.

A partir da mesma data, a sede da redação e o domicílio pessoal do Sr. Allan Kardec ficam na Avenida e Villa Ségur, 39, atrás dos Inválidos.

A Sociedade Espírita de Paris provisoriamente fará suas sessões no local da Livraria, na Rua de Lille, 7.

Livraria espírita.

Há algum tempo tínhamos anunciado o projeto de publicação de um catálogo minucioso das obras que interessam ao Espiritismo, e a intenção de juntá-lo, como suplemento, a um dos números da Revista. Nesse ínterim, tendo sido o projeto da criação de uma casa especial para as obras desse gênero concebido e executado por uma sociedade de espíritas, demos-lhe o nosso trabalho, que foi completado à vista de seu novo destino.

Tendo reconhecido a incontestável utilidade dessa fundação e a solidez das bases em que ela está apoiada, não hesitamos em dar-lhe nosso apoio moral.

Eis em que termos ela está anunciada no topo do catálogo que remetemos aos nossos assinantes com o presente número:

“O interesse cada vez maior atribuído aos estudos psicológicos em geral, e em particular o desenvolvimento que as ideias espíritas vêm tomando há alguns anos, fizeram sentir a utilidade de uma casa especial para a concentração dos documentos concernentes a essas matérias. Fora das obras fundamentais da doutrina Espírita, existe um grande número de livros, tanto antigos quanto modernos, úteis ao complemento desses estudos, e que são ignorados, ou sobre os quais faltam informações necessárias para obtê-los. Visando a preencher esta lacuna foi fundada a Livraria Espírita.

“A Livraria Espírita não é uma empresa comercial. Ela foi criada por uma sociedade de espíritas, com vistas aos interesses da doutrina, e renuncia, pelo contrato que os liga, a qualquer especulação pessoal.

“Ela é administrada por um gerente, simples mandatário, e todos os lucros apurados no balanço anual serão por ele lançados na caixa geral do Espiritismo.

“Essa caixa é provisoriamente administrada pelo gerente da Livraria, sob a supervisão da sociedade fundadora. Em consequência, receberá os fundos de qualquer procedência, enviados para esse destino, terá uma contabilidade exata e operará a movimentação até o momento em que as circunstâncias determinarem o seu emprego"

Profissão de fé espírita americana

Reproduzimos do Salut, de Nova Orleans, a declaração de princípios aprovada na quinta convenção nacional, ou assembleia dos delegados dos espíritas das diversas partes dos Estados Unidos. A comparação das crenças, sobre essas matérias, entre o que se chama a escola americana e a escola europeia, é uma coisa de grande importância, de que cada um poderá convencer-se.

Declaração de princípios

O espiritualismo nos ensina:

1. ─ Que o homem tem uma natureza espiritual, bem como uma natureza corporal; ou antes, que o homem verdadeiro é um Espírito que tem uma forma orgânica composta de materiais sublimados, que representa uma estrutura correspondente à do corpo material.

2. ─ Que o homem, como Espírito, é imortal. Tendo reconhecido que sobrevive a essa mudança chamada morte, pode-se razoavelmente supor que sobreviverá a todas as vicissitudes futuras.

3. ─ Que há um mundo, ou estado espiritual, com suas realidades substanciais, tanto objetivas quanto subjetivas.

4. ─ Que o processo da morte física não transforma, de nenhum modo essencial, a constituição mental ou o caráter moral daquele que a experimenta, pois, se assim não fosse, sua identidade seria destruída.

5. ─ Que a felicidade ou a infelicidade, tanto no estado espiritual quanto neste, não depende de um decreto arbitrário ou de uma lei especial, mas antes, do caráter, das aspirações e do grau de harmonia ou conformidade do indivíduo com a lei divina e universal.

6. ─ Segue-se que a experiência e os conhecimentos adquiridos desde esta vida se tornam as bases sobre as quais começa a vida nova.

7. ─ Considerando-se que o crescimento, sob certos aspectos, é a lei do ser humano na vida presente, e que aquilo que se chama a morte não é, na realidade, senão o nascimento para uma outra condição de existência que conserva todas as vantagens adquiridas na experiência desta vida, daí se pode inferir que o crescimento, o desenvolvimento, a expansão ou a progressão são o destino infinito do espírito humano.

8. ─ Que o mundo espiritual não está afastado de nós, mas que está perto, que nos rodeia ou está entremeado ao nosso presente estado de existência, e, consequentemente, que estamos constantemente sob a vigilância dos seres espirituais.

9. ─ Que, tendo em vista que os indivíduos passam constantemente da vida terrestre para a vida espiritual, em todos os graus de desenvolvimento intelectual e moral, o estado espiritual compreende todos os graus de caracteres, do mais baixo ao mais elevado.

10. ─ Que, considerando-se que o céu e o inferno, ou a felicidade e a infelicidade, dependem antes dos sentimentos íntimos que das circunstâncias exteriores, há tantas gradações para cada um quantas as nuanças de caracteres, e cada indivíduo gravita em seu próprio lugar, por uma lei natural de afinidade. Podemos dividi-los em sete graus gerais ou esferas, mas estas devem compreender as variedades indefinidas, ou uma “infinidade de moradas”, correspondentes aos caracteres diversos dos indivíduos, pois cada ser goza de tanta felicidade quanto lhe permite o seu caráter.

11. ─ Que as comunicações do mundo dos Espíritos, quer sejam recebidas por impressão mental, por inspiração, ou por qualquer outra maneira, não são, necessariamente, verdades infalíveis, mas, ao contrário, se ressentem inevitavelmente das imperfeições da inteligência das quais emanam e da via pelas quais elas chegam; e que, ainda, são suscetíveis de receber uma falsa interpretação daqueles a quem são dirigidas.

12. ─ Segue-se que nenhuma comunicação inspirada, atualmente ou no passado (sejam quais forem as pretensões que possam ou tenham podido ser apresentadas quanto à sua fonte), tem uma autoridade mais ampla que a de retratar a verdade à consciência individual, porquanto esta última é o padrão final a que se devem reportar para o julgamento de todos os ensinamentos inspirados ou espirituais.

13. ─ Que a inspiração, ou a afluência das ideias e sugestões vindas do mundo espiritual, não é um milagre dos tempos passados, mas um fato perpétuo, o método constante da economia divina para a elevação da raça humana.

14. ─ Que todos os seres angélicos ou demoníacos que se manifestaram ou que se imiscuíram nos negócios dos homens no passado, eram simples Espíritos humanos desencarnados, em diversos graus de progressão.

15. ─ Que todos os milagres autênticos (assim chamados) dos tempos passados, tais como a ressurreição dos que estavam mortos em aparência, a cura das moléstias pela imposição das mãos ou outros meios igualmente simples, o contato inofensivo com venenos, o movimento de objetos materiais sem concurso visível, etc., etc., foram produzidos em harmonia com as leis universais e, por conseguinte, podem repetir-se em todos os tempos, sob condições favoráveis.

16. ─ Que as causas de todo fenômeno ─ as fontes da vida, da inteligência e do amor ─ devem ser procuradas no domínio interior e espiritual, e não no domínio exterior e material.

17. ─ Que o encadeamento das causas tende inevitavelmente a remontar e a avançar para um Espírito infinito, que é não só um princípio formador (a sabedoria), mas uma fonte de afeição (o amor), ─ que assim sustenta a dupla relação do parentesco, do pai e da mãe, de todas as inteligências finitas que, entretanto, são unidas por laços filiais.

18. ─ Que o homem, a título de filho desse Pai infinito, é sua mais alta representação nesta esfera de seres, sendo o homem perfeito a mais completa personificação da “plenitude do Pai” que podemos contemplar, e que cada homem, em virtude desse parentesco, é, ou tem em seus refolhos íntimos, um germe de divindade, uma porção incorruptível da essência divina que o leva constantemente ao bem, e que, com o tempo, ultrapassará todas as imperfeições inerentes à condição rudimentar ou terrena, e triunfará sobre todo o mal.

19. ─ Que o mal é a falta mais ou menos grande de harmonia com esse princípio íntimo ou divino, portanto, quer se chame Cristianismo, Espiritualismo, Religião, Filosofia; quer se reconheça o “Espírito Santo”, a Bíblia, ou a inspiração espiritual e celeste, tudo quanto ajuda o homem a submeter à sua natureza interna o que em si há de mais exterior e a torná-lo harmonioso com ela, é um meio de triunfar sobre o mal. Eis, pois, a base da crença dos espíritas americanos. Se não é a da totalidade, é, ao menos, a da maioria. Essa crença não é mais o resultado de um sistema preconcebido nesse país do que o Espiritismo na França. Ninguém a imaginou; viuse, observou-se e tiraram-se conclusões. Lá, como aqui, não se partiu da hipótese dos Espíritos para explicar os fenômenos, mas dos fenômenos, como efeito, chegouse aos Espíritos como causa, pela observação. Eis uma circunstância capital que os detratores se obstinam em não levar em conta. Porque trazem consigo, com o pensamento, o desejo de não encontrarem os Espíritos, eles imaginam que os espíritas deveriam ter tomado seu ponto de partida na ideia preconcebida dos Espíritos, e que a imaginação os fez vê-los por toda parte. Como é, então, que tantas pessoas que neles não acreditavam se renderam à evidência? Há milhares de exemplos, na América, como aqui. Muitos, ao contrário, passaram pela hipótese que o Sr. Chevillard julga ter inventado, e a ela não renunciaram senão depois de haverem reconhecido a sua impotência para tudo explicar. Ainda uma vez, não se chegou à afirmação dos Espíritos senão depois de haver experimentado todas as outras soluções.

Já pudemos notar as relações e as diferenças existentes entre as duas escolas, e para os que não se apegam às palavras, mas vão ao fundo das ideias, a diferença se reduz a pouca coisa. Não se tendo copiado estas duas escolas, tal coincidência é um fato muito notável. Assim, eis dos lados do Atlântico milhões de pessoas que observam um fenômeno e chegam ao mesmo resultado. É verdade que o Sr. Chevillard ainda não tinha passado por lá para opor o seu veto e dizer àqueles milhões de criaturas, entre as quais há bom número que não passa por tolos: “Estais todos enganados; só eu possuo a chave desses estranhos fenômenos, e eu vou dar ao mundo a sua solução definitiva”.

Para tornar a comparação mais fácil, vamos tomar a profissão de fé americana, artigo por artigo, e pôr em paralelo o que diz, sobre cada uma das proposições aí formuladas, a doutrina do Livro dos Espíritos, publicado em 1857, e que, ademais, está desenvolvida em outras obras fundamentais.

Um resumo mais completo é encontrado no cap. II de O que é o Espiritismo?

1. O homem possui uma alma ou espírito, princípio inteligente, no qual residem o pensamento, a vontade, o senso moral, e do qual o corpo não é senão o envoltório material. O espírito é o ser principal, preexistente e sobrevivente ao corpo, que não passa de acessório temporário. Quer durante a vida carnal, quer depois de te-la deixado, o espírito é revestido de um corpo fluídico ou perispírito, que reproduz a forma do corpo material.

2. O espírito é imortal; só o corpo é perecível.

3. Desprendidos do corpo carnal, os Espíritos constituem o mundo invisível ou espiritual que nos rodeia e em cujo meio vivemos. As transformações fluídicas produzem imagens e objetos tão reais para os Espíritos, eles próprios fluídicos, quão reais são as imagens e os objetos terrestres para os homens, que são materiais. Tudo é relativo em cada um desses dois mundos. (Vide A Gênese segundo o Espiritismo, capítulo dos fluidos e das criações fluídicas).

4. A morte do corpo nada muda na natureza do Espírito, que conserva as aptidões intelectuais e morais adquiridas durante a vida terrestre.

5. O Espírito leva em si mesmo os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade; é feliz ou infeliz em razão do seu grau de depuração moral; ele sofre por suas próprias imperfeições, cujas consequências naturais suporta, sem que a punição seja uma condenação especial e individual. A infelicidade do homem na Terra provém da inobservância das leis divinas. Quando ele conformar os seus atos e as suas instituições sociais a essas leis, será tão feliz quanto o comporta a sua natureza corporal.

6. Nada do que o homem adquire durante a vida terrena em conhecimentos e perfeições morais para ele é perdido; ele é, na vida futura, aquilo que se fez na vida presente.

7. O progresso é a lei universal, em virtude da qual o Espírito progride indefinidamente.

8. Os Espíritos estão em meio a nós; rodeiam-nos, veem-nos, escutam-nos e participam, em certa medida, das ações dos homens.

9. Não sendo senão as almas dos homens, são encontrados Espíritos em todos os graus de saber e de ignorância, de bondade e de perversidade que existem na Terra.

10. Segundo a crença vulgar, o céu e o inferno são lugares circunscritos de recompensas e punições. Segundo o Espiritismo, levando os Espíritos em si mesmos os elementos de sua felicidade ou de seus sofrimentos, são felizes ou infelizes em qualquer parte onde se encontrem; as palavras céu e inferno não passam de figuras que caracterizam um estado de felicidade ou de desgraça. Há, por assim dizer, tantos graus entre os Espíritos quantas as nuanças nas aptidões intelectuais e morais. Não obstante, se considerarmos os caracteres mais marcantes, podemos agrupá-los em nove classes ou categorias principais, que podemos dividir ao infinito, sem que essa classificação nada tenha de absoluto. (O Livro dos Espíritos, item 100. Escala espírita). À medida que os Espíritos avançam na perfeição, habitam mundos cada vez mais adiantados fisicamente e moralmente. Sem dúvida é o que entendia Jesus por estas palavras: “Na casa de meu Pai há muitas moradas.” (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. III).

11. Os Espíritos podem manifestar-se aos homens de diversas maneiras: pela inspiração, pela palavra, pela vista, pela escrita, etc. É um erro crer que os Espíritos tenham a ciência infusa; seu saber, no espaço como na Terra, está subordinado ao seu grau de adiantamento, e há Espíritos que, sobre certas coisas, sabem menos que os homens. Suas comunicações estão em relação com os seus conhecimentos e, por isto mesmo, não poderiam ser infalíveis. O pensamento do Espírito pode, além disso, ser alterado pelo meio que ele atravessa para se manifestar. Aos que perguntam para que servem as comunicações dos Espíritos, já que eles não sabem mais que os homens, respondemos que eles servem, em primeiro lugar, para provar que os Espíritos existem e, por consequência, a imortalidade da alma; em segundo lugar, para nos mostrar onde eles estão, o que eles são, o que fazem, em que condições são felizes ou infelizes na vida futura; em terceiro lugar, para destruir os preconceitos vulgares sobre a natureza dos Espíritos e o estado das almas após a morte, coisas estas que não seriam por nós conhecidas sem a comunicação com o mundo invisível.

12. As comunicações dos Espíritos são opiniões pessoais, que não devem ser aceitas cegamente. Em nenhuma circunstância deve o homem abrir mão de seu próprio julgamento e de seu livre-arbítrio. Seria dar prova de ignorância e de leviandade aceitar como verdades absolutas tudo quanto vem dos Espíritos, pois eles dizem o que sabem. Cabe-nos submeter seus ensinamentos ao controle da lógica e da razão.

13. Sendo as comunicações a consequência do incessante contato dos Espíritos e dos homens, elas se deram em todos os tempos; estão na ordem das leis da Natureza e nada têm de miraculoso, seja qual for a forma sob a qual se apresentem. Pondo em contato o mundo material e o espiritual, essas comunicações tendem à elevação do homem, provando-lhe que a Terra não é para ele nem o começo, nem o fim de todas as coisas, e que ele tem outros destinos.

14. Os seres designados sob o nome de anjos ou de demônios não são criações especiais, distintas da Humanidade. Os anjos são Espíritos que saíram da Humanidade e chegaram à perfeição. Os demônios são Espíritos ainda imperfeitos, mas que melhorarão. Seria contrário à justiça e à bondade de Deus ter criado seres perpetuamente votados ao mal, incapazes de voltar ao bem, e outros privilegiados, isentos de qualquer trabalho para chegar à perfeição e à felicidade. Segundo o Espiritismo, Deus não concede favores nem privilégios para nenhuma de suas criaturas; todos os Espíritos têm um mesmo ponto de partida e a mesma rota a percorrer, para chegarem, pelo trabalho, à perfeição e à felicidade. Alguns chegaram: são os anjos ou Espíritos Puros; outros ainda estão para trás: são os Espíritos imperfeitos. (Vide A Gênese, capítulos dos Anjos e dos Demônios).[1]

15. O Espiritismo não admite os milagres, no sentido teológico da palavra, visto que, segundo ele, nada se realiza fora das leis da Natureza. Certos fatos, supondo-os autênticos, só foram reputados miraculosos porque se ignoravam as suas causas naturais. O caráter do milagre é ser excepcional e insólito. Quando um fato se reproduz espontaneamente ou facultativamente, é que ele está subordinado a uma lei, e então já não é um milagre. Os fenômenos de dupla vista, de aparições, de presciência, de curas pela imposição das mãos, e todos os efeitos designados sob o nome de manifestações físicas estão neste caso. (Vide, para o desenvolvimento completo desta questão, a segunda parte de A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo).

16. Todas as faculdades intelectuais e morais têm sua fonte no princípio espiritual, e não no princípio material.

17. Depurando-se, o Espírito do homem tende a aproximar-se da Divindade, princípio e fim de todas as coisas.

18. A alma humana, emanação divina, traz em si o germe ou princípio do bem, que é o seu objetivo final, e deve fazê-la triunfar das imperfeições inerentes ao seu estado de inferioridade na Terra.

19. Tudo o que tende a elevar o homem, a desprender sua alma dos braços da matéria, seja sob a forma filosófica ou sob a forma religiosa, é um elemento de progresso que o aproxima do bem, ajudando-o a triunfar de seus maus instintos. Todas as religiões conduzem a esse objetivo, por meios mais ou menos eficazes e racionais, conforme o grau de adiantamento dos homens, para o uso dos quais elas foram feitas.


Em que o Espiritismo americano difere, então, do Espiritismo europeu? Seria porque um se chama Espiritualismo e o outro Espiritismo? Questão pueril de palavras, sobre a qual seria supérfluo insistir. De um e do outro lado a coisa é vista de um ponto muito elevado para semelhante futilidade. Talvez ainda difiram em alguns pontos de forma e de detalhes, muito insignificantes, que se devem mais aos usos e costumes de cada país do que ao fundo da Doutrina. O essencial é que haja concordância sobre os pontos fundamentais, e é o que ressalta, com evidência, da comparação acima.

Ambos reconhecem o progresso indefinido da alma como a lei essencial do futuro; ambos admitem a pluralidade das existências sucessivas nos mundos cada vez mais avançados. A única diferença consiste em que o Espiritismo europeu admite essa pluralidade de existências na Terra, até que o Espírito tenha atingido aqui o grau de adiantamento intelectual e moral que comporta este globo, após o que o deixa por outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos. De acordo sobre a ideia principal, eles não diferem, portanto, senão quanto a um dos modos de aplicação. Poderá estar aí uma causa de antagonismo entre criaturas que perseguem um grande objetivo humanitário?

Ademais, o princípio da reencarnação na Terra não é peculiar no Espiritismo europeu; era um ponto fundamental da doutrina druídica; em nossos dias, antes do Espiritismo, esse princípio foi proclamado por ilustres filósofos, tais como Dupont de Nemours, Charles Fourier, Jean Reynaud, etc. Faríamos uma lista interminável de escritores de todas as nações, poetas, romancistas e outros que o proclamaram em suas obras; nos Estados Unidos citaremos Benjamin Franklin e a Sra. Beecher Stowe, autora de A Cabana do Pai Tomás.

Assim, não somos o seu criador nem o seu inventor. Hoje ele tende a tomar lugar na Filosofia moderna, fora do Espiritismo, como única solução possível e racional para uma porção de problemas psicológicos e morais até agora inexplicáveis. Não é aqui o lugar de discutir essa questão, para cujo desenvolvimento remetemos à introdução de O Livro dos Espíritos, e ao capítulo IV de O Evangelho segundo o Espiritismo. De duas, uma: esse princípio é verdadeiro, ou não é. Se é verdadeiro, é uma lei, e como toda lei da Natureza, não são as opiniões contrárias de alguns homens que o impedirão de ser uma verdade e de ser aceito.

Já explicamos muitas vezes as causas que se haviam oposto à sua introdução no Espiritismo americano; essas causas desaparecem dia a dia, e é do nosso conhecimento que já encontra numerosas simpatias naquele país. Além disto, o programa acima dele não fala. Se ele não é proclamado, também não é contestado. Podemos mesmo dizer que ele ressalta implicitamente, como consequência forçada de certas afirmações.

Em suma, como se vê, a maior barreira que separa os espíritas dos dois continentes é o Oceano, através do qual eles podem perfeitamente dar-se as mãos.

O que faltou aos Estados Unidos foi um centro de ação para coordenar os princípios. Não existe, a bem dizer, corpo metódico de doutrina; havemos de convir que ali se encontram ideias muito justas e de alto alcance, mas sem ligação. É opinião de todos os americanos que tivemos ocasião de ver, e é confirmado por um relato feito numa das convenções em Cleveland, em 1867, de onde extraímos as seguintes passagens:

“Na opinião de vossa comissão, o que hoje se chama Espiritualismo é um caos onde a verdade mais pura está incessantemente misturada aos erros mais grosseiros. Uma das coisas que mais servirão para o adiantamento da nova Filosofia será o hábito de empregar bons métodos de observação. Recomendamos aos nossos irmãos e irmãs uma atenção levada ao escrúpulo em toda esta parte do Espiritualismo. Nós os induzimos, também, a desconfiar das aparências e a nem sempre tomar por um estado extático, ou por uma agitação vinda do mundo espiritual, disposições de alma que podem ter sua origem na desordem dos órgãos, e em particular nas moléstias dos nervos e do fígado, ou em qualquer outra excitação completamente independente da ação dos Espíritos.

“Cada um dos membros da comissão já teve uma experiência muito longa desses fenômenos; há dez a quinze anos, todos já tínhamos sido testemunhas de fatos cuja origem extraterrestre não podia ser posta em dúvida, e que se impunham à razão. Mas todos estávamos igualmente convencidos de que uma grande parte do que se dá à multidão como manifestações espiritualistas são muito simplesmente habilidades manuais mais ou menos bem executadas por impostores que disto se servem para explorar a credulidade pública.

“As observações que acabamos de fazer a propósito das habilidades qualificadas de manifestações se aplicam por inteiro a todos os supostos médiuns que se recusam a fazer suas experiências em outro lugar que não seja um quarto escuro: os Davenport, Fays, Eddies, Ferrises, Church, miss Vanwie e outros, que pretendem fazer coisas materialmente impossíveis, e se dão como instrumentos dos Espíritos, sem trazer a menor prova em apoio às suas operações. Depois de uma atenta investigação da matéria, temos obrigação de declarar que a obscuridade não é uma condição indispensável à produção dos fenômenos; que ela é como tal reclamada apenas pelos impostores, e que não tem outra utilidade senão favorecer as suas trapaças. Em consequência, aconselhamos às pessoas que se ocupam de Espiritualismo, a renunciar à evocação dos Espíritos no escuro.

“Criticando uma prática que pode ser substituída sem esforço por modos de experimentação infinitamente mais probantes, não pretendemos infligir uma censura aos médiuns que a utilizam de boa-fé, mas denunciar à opinião pública os charlatães que exploram uma coisa digna de todo o respeito. Queremos defender os verdadeiros médiuns, e livrar a nossa gloriosa causa das imposturas que a desonram.

“Nós acreditamos nas manifestações físicas; elas são indispensáveis ao progresso do Espiritualismo. São provas simples e claras que ferem, desde o início, aqueles a quem não cegam os preconceitos; elas são um ponto de partida para chegar à compreensão das manifestações de uma ordem mais elevada; o caminho que conduziu a maior parte dos espiritualistas americanos do ateísmo ou da dúvida ao conhecimento da imortalidade da alma.” (Extraído do New-York Herald, de 10 de setembro de 1867).



[1] No original consta: A Gênese, no entanto, acreditamos que a referência correta seria O Céu e o Inferno, capítulos dos Anjos e dos Demônios. (N. do Revisor)

As conferências do Sr. Chevillard

Apreciadas pelo Jornal Paris

Lê-se no jornal Paris, de 7 de março de 1869, a propósito das conferências do Sr. Chevillard, sobre o Espiritismo:

“Recordam-se da celeuma causada há alguns anos, no mundo, pelo fenômeno das mesas girantes.

“Não havia família que não possuísse sua mesinha animada, nem círculo que não tivesse os seus Espíritos familiares; marcava-se dia para fazer a mesinha girar, como se marcava encontro para uma festinha dançante. Um instante de curiosidade pública (reavivada pelo clero a amedrontar as almas timoratas pelo espectro abominável de Satã) não conheceu mais limites e as mesas estalavam, faziam barulho, dançavam, do subsolo à mansarda, com uma obediência das mais meritórias.

“Pouco a pouco a febre caiu, fez-se silêncio, a moda encontrou outros divertimentos, quem sabe? Sem dúvida os quadros vivos.

“Mas, afastando-se, a multidão deixava imóveis alguns cabeças-duras, apesar de tudo presos a essas manifestações singulares. Insensivelmente uma espécie de laço misterioso se estendia, correndo de um a outro. Os isolados da véspera reapareciam no dia seguinte; em breve uma vasta associação não fazia mais, desses grupos esparsos, senão uma única família, marchando, sob a divisa de uma crença comum, à procura da verdade pelo Espiritismo.

“Parece que neste momento o exército conta bastantes soldados aguerridos para que lhes deem as honras do combate. O Sr. Chevillard, depois de haver apresentado a solução DEFINITIVA do problema espírita, não hesitou em prosseguir o seu assunto numa nova conferência: As ilusões do Espiritismo.

“Por outro lado, o Sr. Desjardin, depois de ter falado dos inovadores em Medicina, ameaça bater, em futuro próximo, as teorias espíritas. Sem dúvida os crentes responderão que os Espíritos não poderão encontrar uma melhor ocasião para se afirmar. É pois um despertar, uma luta que se trava.

“Hoje os espíritas são mais numerosos na Europa do que se supõe. Contam-se por milhões, sem falar dos que creem e não se gabam. O exército recruta todos os dias novos adeptos. Que há de admirável? Não são cada vez mais numerosos os que choram e pedem nas comunicações de um mundo melhor, a esperança no futuro?

“A discussão sobre este assunto parece que deve ser séria. É interessante tomar algumas notas desde o primeiro dia.

“O Sr. Chevillard é generoso; ele não nega os fatos; ─ ele atesta a boa-fé dos médiuns com os quais foi posto em contato; não sente qualquer embaraço em declarar que ele próprio produziu os fenômenos de que fala. Testemunha que os espíritas jamais se encontraram em semelhante festa, e não deixarão de tirar partido de tais concessões, ─ se podem opor ao Sr. Chevillard outra coisa senão a sinceridade de sua convicção.

“Não nos cabe responder, mas apenas separar desse conjunto de fatos umas tantas leis magnéticas que compõem a teoria do conferencista. ‘As vibrações da mesa, diz ele, são produzidas pelo pensamento interno voluntário do médium, ajudado pelo desejo dos assistentes crédulos, sempre numerosos.’ Assim se acha formalmente indicado o fluido nervoso ou vital com o qual o Sr. Chevillard estabelece a solução definitiva do problema espírita. ‘Todo fato espírita, acrescenta ele mais adiante, é uma sucessão de movimentos produzidos sobre um objeto inanimado por um magnetismo inconsciente.’

“Enfim, resumindo todo o seu sistema numa fórmula abstrata, ele afirma que “A ideia da ação voluntária mecânica se transmite, pelo fluido nervoso, do cérebro até o objeto inanimado que executa a ação na qualidade de órgão ligado pelo fluido ao ser que quer, quer seja a ligação por contato, quer à distância; mas o ser não tem a percepção de seu ato, porque não o executa por esforço muscular”.

“Esses três exemplos bastam para indicar uma teoria, que, aliás, não temos que discutir, e sobre a qual talvez tenhamos que voltar mais tarde. Mas, lembrando-nos de uma lição do Sr. E. Caro, na Sorbonne, naturalmente censuraríamos ao Sr.

Chevillard o próprio título de sua conferência. Terá ele, para começar, perguntado se nessas questões que escapam ao controle, à prova matemática ─ que não podem ser julgadas senão por dedução ─ a pesquisa das causas primeiras não é incompatível com as fórmulas da Ciência?

“O Espiritismo deixa uma larga margem à liberdade de raciocínio para poder depender da Ciência propriamente dita. Os fatos que se constatam, sem dúvida maravilhosos, mas sempre idênticos, escapam a todo controle, e a convicção não pode nascer senão da multiplicidade das observações.

“A causa, digam o que disserem os iniciados, permanece um mistério para o homem que friamente pesa esses fenômenos estranhos, e os crentes ficam reduzidos a fazer votos para que, mais cedo ou mais tarde, uma circunstância fortuita rompa esse véu que aos nossos olhos oculta os grandes problemas da vida, e nos mostre radioso o deus desconhecido.”

PAGÈS DE NOYEZ.

Demos a nossa apreciação sobre o alcance das conferências do Sr. Chevillard no número precedente, e seria supérfluo refutar uma teoria que, como dissemos, nada tem de novo, não importando como pense o autor. Que ele tenha seu sistema sobre a causa das manifestações, é direito seu; que o creia justo, é muito natural; mas que tenha a pretensão de dar, só ele, a solução definitiva do problema, é dizer que só a ele é dado proferir a última palavra dos segredos da Natureza, e que depois dele nada mais há para ver, nem nada para descobrir. Qual é o sábio que já pronunciou o nec plus ultra nas ciências? Há coisas que se podem pensar, mas nem sempre é correto proclamar muito alto.

Ademais, não vimos nenhum espírita inquietar-se com a pretensa descoberta do Sr. Chevillard; todos, ao contrário, fazem votos para que ele continue a sua aplicação até os últimos limites, sem omitir nenhum dos fenômenos que lhe possam opor; quereríamos, sobretudo, vê-lo resolver definitivamente estas duas questões:

Em que se tornam os Espíritos dos homens após a morte?

Em virtude de que lei esses mesmos Espíritos, que agitavam a matéria durante a vida do corpo, não podem mais agitá-la depois da morte e manifestar-se aos vivos?

Se o Sr. Chevillard admite que o Espírito é distinto da matéria e sobrevive ao corpo, deve admitir que o corpo é o instrumento do Espírito nos diferentes atos da vida; que ele obedeça a vontade do Espírito. Desde que admita que, pela transmissão do fluido elétrico, as mesas, os lápis e outros objetos se tornem apêndices do corpo e obedeçam, assim, ao pensamento do Espírito encarnado, por que, por uma corrente elétrica análoga, não poderiam eles obedecer ao pensamento de um Espírito desencarnado?

Entre os que admitem a realidade dos fenômenos, quatro hipóteses foram emitidas sobre sua causa, a saber: 1º A ação exclusiva do fluido nervoso, elétrico, magnético ou qualquer outro; 2º O reflexo do pensamento dos médiuns e dos assistentes, nas manifestações inteligentes; 3º A intervenção dos demônios; 4º A continuidade das relações dos Espíritos humanos desprendidos da matéria, com o mundo corporal.

Essas quatro proposições, desde a origem do Espiritismo foram preconizadas e discutidas sob todas as formas, em numerosos escritos, por homens de um valor incontestável. Então não faltou a luz da discussão. Como é que, desses diversos sistemas, o dos Espíritos encontrou mais simpatias; que só ele prevaleceu e é hoje o único admitido pela imensa maioria dos observadores em todos os países do mundo; que todos os argumentos de seus adversários, após mais de quinze anos, dele não puderam triunfar, se eles são a expressão da verdade?

É ainda uma questão interessante a resolver.


A criança elétrica

Vários jornais reproduziram o seguinte fato:

A aldeia de Saint-Urbain, nos limites de Loire e do Ardèche, está toda inquieta. Escrevem-nos que ali se passam coisas estranhas. Uns as imputam ao diabo, outros aí veem o dedo de Deus, marcando com o selo da predestinação uma de suas criaturas privilegiadas.

Eis, em duas palavras, de que se trata, diz o Memorial de la Loire:

“Há uns quinze dias nasceu nesta aldeia uma criança que desde a sua entrada no mundo manifestou as mais admiráveis virtudes, as mais singulares propriedades, diriam os sábios. Logo depois de batizada, tornou-se impalpável e intangível! Intangível, não como a sensitiva, mas à maneira de uma garrafa de Leyde carregada de eletricidade, que não se pode tocar sem sentir uma viva comoção. Além do mais, ela é luminosa! De todas as suas extremidades se desprendem, por momentos, eflúvios brilhantes, que a fazem assemelhar-se a uma lucíola.

“À medida que o bebê se desenvolve e se fortalece, esses curiosos fenômenos se acentuam com mais energia e intensidade. Até se produzem novos. Conta-se, por exemplo, que em certos dias, quando se aproxima das mãos e dos pés do menino algum objeto de pequeno volume, como uma colher, uma faca, uma taça, mesmo um prato, os utensílios são tomados de um frêmito e de uma vibração sutis, que nada pode explicar.

“É particularmente à tarde e à noite que esses fatos extraordinários se acentuam, quer em estado de sono, quer em vigília. Por vezes, então ─ e aqui está um prodígio ─ o berço parece encher-se de uma claridade esbranquiçada, semelhante a essas belas fosforescências que tomam as águas do mar na esteira dos navios, e que a Ciência ainda não explicou perfeitamente.

“Contudo, o menino não parece absolutamente incomodado com as manifestações de que sua minúscula pessoa é o misterioso teatro. Ele mama, dorme, passa muito bem e nem é menos chorão nem mais impaciente do que os seus semelhantes. Ele tem dois irmãozinhos de quatro a cinco anos, que nasceram e vivem à maneira dos mais vulgares pequerruchos.

“Acrescentemos que os pais, valentes agricultores, o marido chegando aos quarenta e a mulher aos trinta, são os esposos menos elétricos e luminosos do mundo. Eles só brilham pela honestidade e pelo cuidado com que criam sua pequena família.

“Chamaram o cura da comuna vizinha, que declarou, após um longo exame, não compreender absolutamente nada disso; depois o cirurgião, que apalpou, reapalpou, tocou de novo, auscultou e percutiu o paciente, sem querer pronunciar-se claramente sobre o caso, mas que prepara um relatório científico à Academia, do qual se falará no mundo médico.

“Um malandro da região, e os há em toda a parte, farejando uma boa especulaçãozinha, propôs alugar o menino à razão de 200 francos por mês, ‘para mostrá-lo nas feiras’. É um belo negócio para os pais. Mas naturalmente o pai e a mãe querem acompanhar um filho tão precioso ─ a 2 francos por dia ─ e esta condição ainda impede a conclusão do negócio.

“O correspondente que nos dá esses estranhos detalhes nos certifica, ‘sob palavra de honra’, que eles são a mais exata expressão da verdade e que ele teve o cuidado de fazer subscrever sua carta ‘pelos quatro maiores proprietários da região.’”

Certamente nenhum Espírita verá neste fato algo de sobrenatural nem miraculoso. É um fenômeno puramente físico, uma variante, quanto à forma, do que apresentam as pessoas ditas elétricas. Sabe-se que certos animais, como o peixeelétrico e o gimnoto, têm propriedades análogas.

Eis a instrução dada a respeito por um dos guias instrutores da Sociedade de Paris:

“Como vos temos dito com frequência, os mais singulares fenômenos se multiplicam dia a dia, para atrair a atenção da Ciência. O menino em questão é, pois, um instrumento, mas não foi escolhido para esse efeito senão em razão da situação criada em seu passado. Por excêntrico que seja, em aparência, um fenômeno qualquer, produzido num encarnado, tem sempre como causa imediata a situação intelectual e moral desse encarnado e uma relação com seus antecedentes, pois todas as existências são solidárias. Sem dúvida é um assunto de estudo para os que o testemunham, mas secundariamente. É sobretudo para aquele que dele é objeto, uma provação ou uma expiação. Há, pois, o fato material, que é do campo da Ciência, e a causa moral, que pertence ao Espiritismo.

“Mas, perguntareis, como semelhante estado pode ser uma provação para um menino dessa idade? Para o menino, certamente não, mas para o Espírito, que não tem idade, a provação é certa.

“Achando-se, como encarnado, numa situação excepcional, cercado de uma auréola física que não passa de uma máscara, mas que pode passar aos olhos de certa gente por um sinal de santidade ou de predestinação, o Espírito, desprendido durante o sono, se orgulha da impressão que produz. Era um taumaturgo de uma espécie particular que passou sua última existência a brincar de pessoa santa, em meio aos prodígios que se tinha exercitado a realizar, e que quis continuar seu papel nesta existência. Para atrair o respeito e a veneração, ele quis nascer, como menino, em condições excepcionais. Se viver, será um falso profeta do futuro, e não será o único.

“Quanto ao fenômeno em si mesmo, é certo que terá pouca duração. A Ciência deve, pois, apressar-se, se quiser estudá-lo de visu. Mas ela nada fará, temerosa de encontrar dificuldades embaraçosas. Ela contentar-se-á em considerar o menino como um peixe-elétrico humano.”

Dr. MOREL LAVALLÉE.


Um cura médium curador

Um dos nossos assinantes do Departamento dos Hautes-Alpes escreve-nos o seguinte:

“Há algum tempo se fala muito, no vale do Queyras, de um padre que, sem estudos médicos, cura uma porção de pessoas de várias afecções. Há muito tempo que age assim, e dizem que augustas pessoas o consultaram, quando era chefe de outra paróquia nos Basses-Alpes. Suas curas tinham repercutido, e dizem que, por punição, ele foi mandado como cura em La Chalpe, comuna vizinha de Abriès, na fronteira do Piemonte. Lá continuou a ser útil à Humanidade, aliviando e curando, como no passado.

“Para os espíritas isto nada tem de admirável. Se vos falo do caso é porque no vale do Queyras, como alhures, ele faz muito alvoroço. Como todos os médiuns curadores sérios, ele nunca aceita nada. S. M. a Imperatriz herdeira da Rússia, ao que dizem, ter-lhe-ia oferecido várias notas de banco, que ele recusou, pedindo-lhe que as pusesse na caixa de esmolas, se as quisesse dar para a sua igreja.

“Um outro indivíduo um dia escorregou uma moeda de vinte francos entre os seus papéis; quando ele percebeu, fe-lo voltar sob pretexto de novas indicações a lhe dar e lhe devolveu o dinheiro.

“Uma porção de pessoas fala dessas curas de visu; outras não acreditam. Sei do fato através de pessoas que são as menos favoráveis.

“Tinham denunciado o cura por exercício ilegal da Medicina; dois policiais se apresentaram em sua casa para levá-lo à autoridade. Ele lhes disse: ‘Eu vos seguirei, mas aguardai um instante, por favor, porque não comi. Almoçai comigo e me vigiareis.’ Durante o repasto, ele disse a um dos policiais:

“─ Estais doente.

“─ Doente? Agora, nem tanto. Há três meses, não nego.

“─ Ora! Sei o que tendes, e se quiserdes, posso curar-vos já, se fizerdes o que eu disser.

“Conversaram e a proposta foi aceita.

“O cura mandou suspender o policial pelos pés, de modo que as mãos ficassem no chão e o sustentassem; colocou sob sua cabeça uma tigela de leite quente e lhe administrou o que se chama uma fumigação de leite. Ao cabo de alguns minutos, uma cobrinha, dizem uns, um grande verme, segundo outros, caiu na vasilha. Reconhecido, o policial pôs a cobra numa garrafa e conduziu o cura ao magistrado, ao qual explicou o seu caso. Como consequência disso, o cura foi posto em liberdade.

“Eu teria desejado muito ver esse cura, acrescenta o nosso correspondente, mas a neve em nossas montanhas tornam os caminhos muito difíceis nesta estação; sou obrigado a me contentar com as informações que vos transmito. A conclusão de tudo isto é que esta faculdade se desenvolve e os exemplos se multiplicam. Na comuna que vos cito, e em nosso vale, isto produz um grande efeito. Como sempre, uns dizem charlatão, outros demônio; outros feiticeiro, mas os fatos aí estão, e não perdi a ocasião para declarar minha maneira de pensar, explicando que os fatos desse gênero nada têm de sobrenatural nem de diabólico, como se tem visto milhares de exemplos, desde os tempos mais remotos, e que é um modo de manifestação do poder de Deus, sem que haja derrogação de suas leis eternas.”


Variedades

Os milagres de Bois-D'Haine




Le Progrès thérapeutique, jornal de Medicina, em seu número de 1º de março de 1869, dá conta de um fenômeno bizarro, tornado objeto de curiosidade pública no burgo de Bois-d’Haine, na Bélgica. Trata-se de uma jovem de 18 anos que todas as sextas-feiras, de 1h30min às 4h30min cai num estado de êxtase cataléptico; nesse estado ela fica deitada, braços estendidos, um pé sobre o outro, na posição de Jesus na cruz.

A insensibilidade e a rigidez dos membros foram constatadas por diversos médicos. Durante a crise, cinco feridas se abrem nos lugares exatos onde se localizaram as do Cristo, e deixam minar sangue verdadeiro. Depois da crise, o sangue para de correr, as chagas se fecham e são cicatrizadas em 24 horas. Durante os acessos, diz o doutor Beaucourt, autor do artigo, o reverendo Pe. Séraphin, presente às sessões, graças ao ascendente que ele tem sobre a doente, tem o poder de despertá-la de seu êxtase. Ele acrescenta: “Todo homem que não for ateu deve, para ser lógico, admitir que aquele que estabeleceu as leis admiráveis, tanto físicas quanto fisiológicas que regem a Natureza, também pode, à vontade, suspender ou mudar momentaneamente uma ou várias dessas leis.”

Como se vê, é um milagre em regra, e uma repetição do milagre das estigmatizadas. Como os milagres segundo a Igreja não são do campo do Espiritismo, julgamos supérfluo levar mais longe a busca das causas do fenômeno, e isto tanto mais quanto outro jornal disse, depois, que o bispo da diocese tinha interditado toda exibição.


O despertar do Sr. Louis



No número precedente publicamos o relato do estado singular de um Espírito que julgava sonhar. Enfim, ele despertou e o anunciou espontaneamente, na comunicação seguinte:

(Sociedade de Paris, 12 de fevereiro de 1869 – Médium, Sr. Leymarie)


Decididamente, senhores, malgrado meu, é preciso que eu abra os olhos e os ouvidos; é preciso que eu escute e veja. Por mais que negue, que declare que sois maníacos, muito corajosos, mas muito inclinados aos vossos devaneios, às ilusões, é necessário, confesso-o, a despeito dos meus ditos, que eu finalmente saiba que não mais sonho. Quanto a isto, estou certo, mas completamente certo. Venho à vossa casa todas às sextas-feiras, dia de reunião e, à força de ouvir repetir, quis saber se esse famoso sonho se prolongará indefinidamente. O amigo Jobard encarregou-se de me edificar a respeito, e isto com provas fundamentadas.

Não pertenço mais à Terra; estou morto; vi o luto dos meus, o pesar dos amigos, o contentamento de alguns invejosos, e agora venho ver-vos. Meu corpo não me seguiu; está mesmo lá, no seu recanto, no meio do adubo humano; e, com ou sem apelo, hoje venho a vós, não mais com despeito, mas com o desejo e a convicção de me esclarecer. Tenho perfeito discernimento; vejo o que fui; percorro com Jobard distâncias imensas, portanto, eu vivo, eu concebo, eu combino, eu possuo a minha vontade e meu livre-arbítrio, assim, nem tudo morre. Não éramos, pois, uma agregação inteligente de moléculas, e todas as salmodias sobre a inteligência da matéria não passavam de frases vazias e sem consistência.

Ah! Crede, senhores, se meus olhos se abrem, entrevejo uma verdade nova, e não é sem sofrimentos, sem revoltas, sem retornos amargos!

É, pois, muito verdadeiro! O Espírito permanece! Fluido inteligente, ele pode, sem a matéria, viver sua vida própria, etérea, e segundo a vossa expressão: semimaterial. Por vezes, entretanto, eu me pergunto se o sonho bizarro que eu tinha há mais de um mês não continua com essas peripécias novas, inauditas; mas o raciocínio frio, impassível de Jobard força-me a mão, e quando resisto, ele ri e se delicia em me confundir e, todo contente, cumula-me de epigramas e ditos alegres! Por mais que me rebele e me revolte, há que obedecer à verdade.

O Desnoyers da Terra, o autor de Jean-Paul Choppard ainda está em vida, e seu pensamento ardente abarca outros horizontes. Outrora ele era liberal e terra a terra, ao passo que agora aborda e abraça problemas desconhecidos, maravilhosos; e, ante essas novas apreciações, senhores, tende a bondade de perdoar minhas expressões um tanto levianas, porque, se eu não tinha razão completamente, bem poderíeis estar um pouco errados.

Vou refletir, reconhecer-me definitivamente, e se o resultado de minhas pesquisas sérias me conduzir às vossas ideias, há que esperar, não será mais para me queimar o cérebro.

Até outra vez, senhores.

LOUIS DESNOYERS.



O mesmo Espírito deu espontaneamente a comunicação seguinte, a propósito da morte de Lamartine:

(Sociedade de Paris, 5 de março de 1869 – Médium: Sr. Leymarie)


Sim, senhores, nós morremos mais ou menos esquecidos; pobres seres, vivemos confiantes nos órgãos que transmitem os nossos pensamentos. Queremos a vida com suas exuberâncias, fazemos uma multidão de projetos. Neste mundo o nosso trajeto é ter tido sua repercussão e, chegada a última hora, todo esse alvoroço, todo esse barulhinho, nossa altivez, nosso egoísmo, nosso labor, tudo é engolido na massa. É uma gota d’água no oceano humano.

Lamartine era um grande e nobre Espírito, cavalheiresco, entusiasta, um verdadeiro mestre na acepção da palavra, um diamante muito puro, bem lapidado. Ele era belo, grande; ele tinha o olhar, ele tinha o gesto do predestinado; ele sabia pensar, escrever; ele sabia falar; ele era um inspirado, um transformador!... Poeta, mudou o impulso da Literatura, emprestando-lhe suas asas prodigiosas; homem, ele governou um povo, uma revolução, e suas mãos se retiraram puras do contato com o poder.

Ninguém mais que ele foi amado, acariciado, bendito, adorado; e quando vieram os cabelos brancos, quando o desencorajamento tomava o belo velho, o lutador dos grandes dias, não lhe perdoaram mais um instante de desfalecimento. A própria França que estava em desfalecimento esbofeteou o poeta, o grande homem; ela quis apequená-lo, a esse lutador de duas revoluções, e o esquecimento, repito, parecia enterrar essa grande e magnânima figura! Ele está morto e bem morto, pois o acolhi no além-túmulo, com todos os que o tinham apreciado e estimado, malgrado o ostracismo, do qual a juventude das escolas fazia uma arma contra ele.

Ele estava transfigurado, sim, senhores, transfigurado por ver a dor de ter visto os que o tinham tanto amado recusar-lhe o devotamento que, entretanto, ele não soube nunca recusar em outros tempos, ao passo que os vencedores lhe estendiam as mãos. O poeta havia se tornado filósofo, e esse pensador amadurecia sua alma dolorida, para a grande prova. Ele via melhor; ele pressentia tudo, tudo o que esperais, senhores, e tudo o que eu não esperava.

Mais que ele, eu sou um vencido; vencido pela morte, vencido em vida pela necessidade, esse inimigo insaciável que nos inquieta como um roedor; e muito mais vencido hoje, porque venho inclinar-me ante a verdade.

Ah! Se para a França hoje reluz uma grande verdade; se a França de 89, se a mãe de tantos gênios desaparecidos recomeça a sentir que um de seus mais caros filhos, o bom, o nobre Lamartine desapareceu, hoje sinto que para ele nada está morto; sua lembrança está por toda a parte; as ondas sonoras de tantas lembranças emocionam o mundo. Ele era imortal entre vós, mas muito mais ainda entre nós, onde está realmente transfigurado. Seu Espírito resplandece, e Deus pode receber o grande desconhecido. De agora em diante Lamartine pode abarcar os mais vastos horizontes e cantar os hinos grandiosos que o seu grande coração havia sonhado. Ele pode preparar o vosso futuro, meus amigos, e acelerar conosco as etapas humanitárias. Mais do que nunca, ele poderá ver desenvolver-se em vós esse ardente amor de instrução, de progresso, de liberdade e de associação, que são os elementos do futuro. A França é uma iniciadora; ela sabe o que pode. Ela quererá, ousará, quando sua juba poderosa tiver sacudido o formigueiro que vive às custas de sua virilidade e de sua grandeza.

Poderei eu, como ele, ganhar minha auréola e tornar-me resplandecente de felicidade, ver-me regenerar por vossa crença, cuja grandeza hoje compreendo? Por vós, Deus me marcou como uma ovelha desgarrada. Obrigado, senhores. Ao contato dos mortos tão lamentados, sinto-me viver e em breve direi convosco na mesma prece: A morte é a auréola; a morte é a vida.

LOUIS DESNOYERS.




OBSERVAÇÃO: Uma senhora, membro da Sociedade, que conhecia particularmente o Sr. Lamartine e tinha assistido aos seus últimos momentos, acabara de dizer que depois de sua morte sua fisionomia se havia literalmente transfigurado, que ela não tinha mais a decrepitude da velhice. É a essa circunstância que o Espírito faz alusão.




Dissertações espíritas

Lamartine

(Sociedade espírita de Paris, 14 de março de 1869 - Médium: Sr. Leymarie)

Um amigo, um grande poeta, escrevia-me em dolorosa circunstância: “Ela é sempre vossa companheira, invisível, mas presente; perdestes a mulher, mas não a alma! Caro amigo, vivamos nos mortos!” Pensamento consolador, salutar, que reconforta na luta e faz pensar incessantemente nesta sucessão ascendente da matéria, nesta unidade na concepção de tudo o que é, neste maravilhoso e incomparável obreiro que, para a continuidade do progresso, liga o Espírito a esta matéria, por sua vez espiritualizada pela presença do elemento superior.

Não, minha bem-amada, não perdi tua alma, que vivia gloriosa, cintilante de todas as claridades do mundo invisível. Minha vida é um protesto vivo contra o flagelo ameaçador do ceticismo em suas múltiplas formas.

Ninguém, mais que eu, afirmou energicamente a personalidade divina e acreditou na personalidade humana, defendendo a liberdade. Se o sentimento do infinito estava desenvolvido em mim; se a presença divina palpita em páginas entusiásticas, é que eu devia desbravar a minha senda; é que eu vivia da presença de Deus, e essa fonte, jorrando incessantemente, sempre me fez crer no bem, no belo, na retidão, no devotamento, na honra do indivíduo e, mais ainda, na honra da nação, essa individualidade condensada. É que minha companheira era uma natureza de escol, forte e terna. Junto dela, compreendi a natureza da alma e suas íntimas relações com a estátua de carne, essa maravilha! Assim, meus estudos eram espiritualizados, por consequência fecundos e rápidos, voltando-se incessantemente para as formas do belo e a paixão das letras. Casei a ciência com o pensamento, para que, em mim, a Filosofia pudesse servir-se desses dois preciosos instrumentos poéticos.

Por vezes minha forma era abstrata e não estava ao alcance de todos; mas os pensadores sérios a adotaram; todos os grandes espíritos de meu tempo me abriram suas fileiras. A ortodoxia católica me olhava como uma ovelha fugindo do rebanho do pastor romano, sobretudo quando, levado pelos acontecimentos, partilhei a responsabilidade de uma revolução gloriosa.

Arrastado um momento pelas aspirações populares, por esse poderoso sopro de ideias comprimidas, eu não era mais o homem das grandes situações; eu tinha terminado a minha jornada e, para mim, no relógio do tempo, soavam as horas de lassidão e desencorajamento. Vi o meu calvário, e enquanto Lamartine o subia penosamente, os filhos desta França tão amada lhe cuspiam no rosto, sem respeito aos seus cabelos brancos, o ultraje, o desafio, a injúria.

Prova solene, senhores, na qual a alma se retempera e se retifica, porque o esquecimento é a morte, e a morte na Terra é o comércio com Deus, esse distribuidor judicioso de todas as forças!

Morri como cristão; tinha nascido na Igreja e parto diante dela! Há um ano, eu tinha uma profunda intuição. Falava pouco, mas viajava sem cessar pelas planícies etéreas, onde tudo se refunde sob o olhar do Senhor dos mundos; o problema da vida se desenrolava majestosamente, gloriosamente. Compreendi o pensamento de Swedenborg e da escola dos teósofos, de Fourier, de Jean Reynaud, de Henri Martin, de Victor Hugo, e o Espiritismo, que me era familiar, embora em contradição com os meus preconceitos e o meu nascimento, preparava-me para o desligamento, para a partida. A transição não foi penosa; como o pólen de uma flor, meu Espírito, levado por um turbilhão, encontrou a planta irmã. Como vós, eu a chamo de erraticidade, e para me fazer amar essa irmã desejada, minha mãe, minha esposa bem-amada, uma multidão de amigos e de invisíveis me cercavam como uma auréola luminosa. Mergulhado nesse fluido benéfico, meu Espírito se asserenava, como o corpo desse viajor do deserto que, após uma longa viagem sob um céu de chumbo e fogo, encontraria um banho generoso para seu corpo, uma fonte límpida e fresca para a sua sede ardente.

Alegrias inefáveis do céu sem limites, concertos de todas as harmonias, moléculas que repercutis os acordes da ciência divina, calor vivificante de suas impressões sem nome que a língua humana não poderia decifrar, bem-estar novo, renascimento, completa elasticidade, elétrica profundeza das certezas, similitudes das leis, calma cheia de grandeza, esferas que encerrais as Humanidades, oh! sede bem-vindas, emoções previstas, aumentadas indefinidamente de radiações do infinito!

Permutai vossas ideias, espíritas que acreditais em nós. Estudai nas fontes sempre novas do nosso ensino; firmai-vos, e que cada membro da família seja um apóstolo que fale, marche e se conduza com vontade, com a certeza de que não dais nada ao desconhecido. Sabei muito para que vossa inteligência se eleve. A ciência humana, reunida à ciência dos vossos auxiliares invisíveis, mas luminosos, vos fará senhores do futuro. Expulsareis a sombra para vir a nós, isto é, à luz, a Deus.

ALPHONSE DE LAMARTINE.


Charles Fourier

Um discípulo de Charles Fourier, que ao mesmo tempo é espírita, ultimamente nos dirigiu uma evocação com o pedido de solicitar uma resposta, se fosse possível, a fim de se esclarecer sobre certas questões. Tendo-nos parecido ambas instrutivas, transcrevemo-las a seguir.

(Paris, Grupo Desliens, 9 de março de 1869) “Irmão Fourier,

“Do alto da esfera ultramundana, se teu Espírito me pode ver e ouvir, eu te peço comunicar-te comigo, a fim de me fortalecer na convicção que tua admirável teoria dos quatro movimentos fez nascer em mim sobre a lei da harmonia universal, ou de me desenganar se tiveste a infelicidade, tu mesmo, de te enganares. ─ A ti, cujo gênio incomparável parece ter levantado a cortina que ocultava a Natureza, e cujo Espírito deve ser mais lúcido ainda do que era no mundo material, eu te peço que me digas se reconheces, no mundo dos Espíritos, como na Terra, que haja desmoronamento da ordem natural estabelecida por Deus, em nossa organização social; se as atrações passionais são realmente a alavanca de que Deus se serve para conduzir o homem ao seu verdadeiro destino; se a analogia é um meio seguro para descobrir a verdade.

“Peço-te que me digas, também, o que pensas das sociedades cooperativas que germinam de todos os lados na superfície do nosso globo. Se teu Espírito pode ler no pensamento do homem sincero, tu deves saber que a dúvida o torna infeliz; eis por que te suplico, de tua morada de além-túmulo, a bondade de fazer tudo quanto dependa de ti para me convencer.

“Recebe, nosso irmão, a certeza do respeito que devo à tua memória, e de minha maior veneração.”

J. G.

Resposta. ─ “É uma pergunta muito séria, caro irmão em crença, indagar de um homem se ele se enganou, quando um certo número de anos se passaram desde que ele expôs o sistema que melhor satisfazia às suas aspirações para o desconhecido! Enganei-me?... Quem não se enganou quando quis, apenas com as suas forças, levantar o véu que lhe ocultava o fogo sagrado?! Prometeu fez homens com esse fogo, mas a lei do progresso condenou esses homens às lutas físicas e morais. Eu fiz um sistema, destinado, como todos os sistemas, a viver um tempo, depois a transformar-se, a associar-se a novos elementos mais verdadeiros. Como vedes, há ideias como homens. Desde que elas nasceram, elas não morrem: elas se transformam. Grosseiras de início, envoltas na ganga da linguagem, encontram sucessivamente artesãos que as talham e as vão polindo cada vez mais, até que esse eixo informe se tenha tornado o diamante de brilho vivo, a pedra preciosa por excelência.

“Busquei conscienciosamente e achei muito. Apoiando-me nos princípios adquiridos, fiz avançar alguns passos o pensamento inteligente e regenerador. O que descobri era verdadeiro em princípio; falseei-o, ao querer aplicá-lo. Quis criar a série, estabelecer harmonias, mas essas séries, essas harmonias não necessitavam de criador; elas existiam desde o começo; eu não podia senão perturbá-las, querendo estabelecê-las sobre as pequenas bases de minha concepção, quando Deus lhes havia dado o Universo por laboratório gigantesco.

“Meu mais sério título, aquele que ignoram e talvez mais desdenhem, é ter partilhado com Jean Reynaud, Ballanche, Joseph de Maîstre e muitos outros, o pressentimento da verdade; é ter sonhado com essa regeneração humana pela provação, essa sucessão de existências reparadoras, essa comunicação do mundo livre e do mundo encadeado à matéria, que tendes a felicidade de tocar com o dedo. Nós tínhamos previsto e vós realizais o nosso sonho. Eis os nossos maiores títulos de glória, os únicos que, de minha parte, estimo e dos quais me lembro.

“Duvidais, dizeis vós, meu amigo! Tanto melhor, porque aquele que duvida verdadeiramente, procura, e aquele que procura, encontra. Procurai, pois, e se não depende senão de mim pôr a convicção em vossas mãos, contai com o meu concurso devotado. Mas escutai um conselho de amigo, que pus em prática em minha vida e no qual sempre me dei bem: “Se quiserdes uma demonstração séria de uma lei universal, buscai a sua aplicação individual. Quereis a verdade? Buscai-a em vós mesmo, e na observação dos fatos de vossa própria vida. Todos os elementos de prova aí estão. Que aquele que quer saber se examine, e encontrará.

“CH. FOURIER.”





Bibliografia

Há uma vida futura?

Opiniões diversas sobre este assunto, colhidas e ordenadas por um Fantasma[1].

Para a maioria, não importando a vida futura, uma demonstração se torna de certo modo supérflua, porque é mais ou menos como se quiséssemos provar que o Sol se ergue todas as manhãs. Entretanto, como há cegos que não veem o Sol se levantar, é bom saber como se lhes pode provar; ora, é a tarefa que empreendeu o Fantasma, autor deste livro. Esse Fantasma é um ilustre engenheiro, que conhecemos pela reputação, por outras obras filosóficas que trazem o seu nome; mas como ele julgou apropriado neste não apor o seu nome, não nos julgamos com o direito de cometer uma indiscrição, embora saibamos que ele não faz qualquer mistério sobre suas crenças.

Este livro prova, mais uma vez, que a Ciência não conduz fatalmente ao materialismo, e que um matemático pode ser um firme crente em Deus, na alma, na vida futura e em todas as suas consequências.

Não é uma simples profissão de fé, mas uma demonstração digna de um matemático, por sua lógica cerrada e irresistível. Não é, também, uma dissertação árida e dogmática, mas uma polêmica orientada sob a forma de conversação familiar, na qual o pró e o contra são imparcialmente discutidos.

Conta o autor que, assistindo ao enterro de um de seus amigos, em caminho pôs-se a conversar com vários convidados. A circunstância e as emoções da cerimônia levaram a conversa para a sorte do homem após a morte. A princípio ela se travou com um niilista, ao qual ele resolveu demonstrar a realidade da vida futura por argumentos encadeados com uma arte admirável, e sem chocá-lo ou feri-lo, conduzi-lo naturalmente às suas ideias.

Junto ao túmulo são pronunciados dois discursos sobre a questão do futuro, num sentido diametralmente oposto, e produzem impressões diferentes. No retorno, novos interlocutores se juntam aos dois primeiros; eles concordam em se reunir na casa de um deles, e lá se trava uma polêmica séria, na qual as diversas opiniões fazem valer as razões sobre as quais se apoiam.

Este livro, cuja leitura é atraente, tem todo o atrativo de uma história, e toda a profundeza de uma tese filosófica. Acrescentaremos que, entre os princípios que preconiza, não encontramos um só em contradição com a Doutrina Espírita, na qual o autor deve ter-se inspirado.

A necessidade da reencarnação para o progresso, sua evidência, sua concordância com a justiça de Deus, a expiação e a reparação pelo reencontro dos que se prejudicaram numa precedente existência, ali são demonstradas com uma clareza absoluta. Vários exemplos citados provam que o esquecimento do passado, na vida de relação, é um benefício da Providência, e que esse esquecimento momentâneo não impede de tirar proveito da experiência do passado, visto que a alma se recorda nos momentos de desprendimento.

Eis, em poucas palavras, um dos fatos contados por um dos interlocutores e que, diz ele, lhe é pessoal.

Ele era aprendiz numa grande fábrica. Por sua conduta, inteligência e caráter, conquistara a estima e a amizade do patrão que, em consequência, o associou à sua casa. Vários fatos, dos quais agora não se dá conta, nele provam a percepção e a intuição das coisas durante o sono; essa faculdade até lhe serviu para prevenir um acidente que poderia ter consequências desastrosas para a fábrica.

A filha do patrão, encantadora menina de oito anos, lhe testemunha afeição e se diverte com ele; mas, cada vez que ela se aproxima, ele experimenta um frio glacial e uma repulsa instintiva; seu contato lhe faz mal. Pouco a pouco, entretanto, tal sentimento se abranda, depois se extingue. Mais tarde ele a desposa. Ela é boa, afetuosa, previdente e a união é muito feliz.

Uma noite ele teve um sonho horrível. Ele se via na sua precedente encarnação; sua mulher se havia conduzido de maneira indigna e tinha sido a causa de sua morte e, coisa estranha! ele não podia separar a ideia dessa mulher da de sua atual esposa; parecia-lhe que se tratava da mesma pessoa. Abalado por essa visão ao despertar, ficou triste; pressionado pela mulher para lhe dizer a causa, decidiu-se a contar-lhe o pesadelo. “É singular, disse ela, tive um sonho semelhante, e eu é que era a culpada.” As circunstâncias fazem com que ambos reconheçam não estarem unidos pela primeira vez. O marido compreende a repulsa que tinha por sua esposa, quando ela era menina; a mulher redobra de cuidados para apagar seu passado; mas ela já está perdoada, porque a reparação se deu e a união continua a ser próspera.

Daí a conclusão que esses dois seres se encontravam novamente unidos, um para reparar, o outro para perdoar; que se eles tivesses tido a lembrança do passado, ter-se-iam afastado e teriam perdido o benefício, um da reparação, o outro do perdão.

Para dar uma ideia exata do interesse desse livro, seria preciso citá-lo por inteiro. Limitar-nos-emos à passagem seguinte:

“Vós me perguntais se creio na vida futura, dizia-me um velho general; se nós, os soldados, cremos! E como quereis que não seja assim, a menos que sejamos um tríplice animal? Em que quereis que pensemos na véspera de um combate, de um assalto, que tudo prenuncia que deve ser mortífero?... Depois de ter dito adeus, em pensamento, aos seres queridos que estamos ameaçados de deixar, voltamos instintivamente aos ensinos maternos que nos mostraram uma vida futura na qual os seres simpáticos se reencontram. Colhemos nessas lembranças um redobramento de coragem que nos faz enfrentar os maiores perigos, conforme o nosso temperamento, com calma ou com um certo entusiasmo e, mais vezes ainda, com um arrebatamento, uma alegria, que são os traços característicos do exército francês.

“Afinal de contas, nós somos descendentes desses bravos gauleses, cuja crença na vida futura era tão grande, que tomavam emprestadas grandes somas para reembolsar numa outra existência. Vou mais longe; estou persuadido de que somos sempre esses filhos da velha Gália que, entre o tempo de César e o nosso, atravessaram um grande número de existências, em cada uma das quais conquistaram um grau mais elevado nas falanges terrenas.”

Este livro será lido com proveito pelos mais firmes crentes, porque aí colherão novos argumentos para refutar seus adversários.



[1] I vol. in-12. 3 francos.



A alma


Este livro tende para o mesmo objetivo do precedente: a demonstração da alma, da vida futura, da pluralidade das existências, mas sob uma forma mais didática, mais científica, posto que sempre clara e inteligível para todo mundo. A refutação do materialismo e, em particular, das doutrinas de Büchner e de Maleschott, aí ocupa largo espaço, e não é a parte menos interessante nem a menos instrutiva, pela irresistível lógica dos argumentos. A doutrina desses dois escritores, de um incontestável talento, e que pretendem explicar todos os fenômenos morais só pelas forças da matéria, teve muita repercussão na Alemanha e, por consequência, na França; ela naturalmente foi aclamada com entusiasmo pelos materialistas, felizes por aí encontrarem a sanção às suas ideias; ela recrutou partidários sobretudo entre a juventude das escolas, que delas se valem para se libertar, em nome da aparente legalidade de uma filosofia, do que impõe freio à crença em Deus e na imortalidade.

O autor se ocupa em reduzir ao seu justo valor os sofismas sobre os quais se apoia essa filosofia; demonstra as desastrosas consequências que ela teria para a Sociedade, se algum dia viesse a prevalecer, e sua incompatibilidade com toda doutrina moral. Embora ela quase não seja conhecida senão em determinada esfera, uma refutação de certo modo popular é muito útil, a fim de premunir os que pudessem deixar-se seduzir pelos argumentos especiosos que ela invoca. Estamos persuadidos de que, entre as pessoas que a preconizam, algumas recuariam se tivessem compreendido toda a sua extensão.

Ainda que não fosse senão deste ponto de vista, a obra do Sr. Dyonis mereceria sérios encorajamentos, porque é um campeão enérgico para a causa do Espiritualismo, que é também a do Espiritismo, ao qual se vê que o autor não é estranho. Mas a isso não se limita a tarefa que ele se impôs; ele encara a questão da alma de maneira ampla e completa; ele é um desses que admitem o seu progresso indefinido, através da animalidade, da humanidade e além da humanidade. Talvez, sob certas aspectos, seu livro encerre algumas proposições um pouco aventurosas, mas que é bom trazer à luz, a fim de que sejam amadurecidas pela discussão.

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita justificar a nossa apreciação por algumas citações. Limitar-nos-emos à seguinte passagem, e a dizer que os que lerem este livro não perderão seu tempo:

“Se examinamos os seres que se sucederam nos períodos geológicos, notamos que há progresso nos indivíduos dotados sucessivamente de vida, e que o último chegado, o homem, é uma prova irrecusável desse desenvolvimento moral, pelo dom da inteligência transmissível que ele foi o primeiro a receber, e o único de todos os animais.

“Esta perfectibilidade da alma, oposta à imperfectibilidade da matéria nos leva a pensar que a alma humana não é a primeira expressão da alma, mas apenas a última expressão até aqui. Em outros termos, que a alma progrediu desde a primeira manifestação da vida, passando alternativamente pelas plantas, os animálculos, os animais e o homem, para se elevar ainda, por meio de criações de uma ordem superior que os nossos sentidos imperfeitos não nos permitem compreender, mas que a lógica dos fatos nos leva a admitir. A lei de progresso, que seguimos nos desenvolvimentos físicos dos animais sucessivos, existiria, pois, igualmente, e principalmente, em seu desenvolvimento moral.”


____________________________________________________
[1] 1 volume in 12; 3,50 francos.




Sociedades e jornais espíritas no estrangeiro

A abundância das matérias nos obriga a adiar para o próximo número o relatório de duas sociedades espíritas constituídas em bases sérias, por estatutos impressos, mui sabiamente concebidos: uma em Sevilha, na Espanha, a outra em Florença, na Itália.

Falaremos igualmente de dois novos jornais espíritas que nos limitaremos a anunciar a seguir.

El Espiritismo (O Espiritismo); 12 páginas in-4º, saindo duas vezes por mês, desde 1.º de março, em Sevilha, Calle de Genova, 51. ─ Preço por trimestre: Sevilha, 5 reales; províncias, 6 reales; estrangeiro, 10 reales.

II Veggente (O Vidente), jornal magnético-espírita hebdomadário; quatro páginas in-4º; publicado em Florença, via Pietra Piana, 40. ─ Preço: 4,50 francos por ano. Por seis meses, 2,50 francos.


Erratum

Número de março de 1869, pág. 93, linha 31, em vez de: concerto do Espírito, leia-se: conceito do Espírito[1].

ALLAN KARDEC.



[1] A correção foi feita no devido lugar. Nota do tradutor.



TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados