Janeiro
Por ocasião do projeto de constituição que publicamos no último número da Revista, recebemos numerosas cartas de felicitações e testemunhos de simpatia que nos tocaram profundamente. Na impossibilidade de responder a cada um em particular, rogamos aos nossos honrados correspondentes a bondade de aceitar coletivamente os agradecimentos que lhes dirigimos através da Revista.
Sentimo-nos feliz, sobretudo por ver que o objetivo e o alcance desse projeto foram compreendidos e que nossas intenções não foram desprezadas. Todos viram nele a realização daquilo que desejávamos há muito tempo: uma garantia de estabilidade para o futuro, assim como as primeiras balizas de uma união entre os espíritas, união que lhes faltou até hoje, apoiada numa organização que, prevendo as dificuldades eventuais, assegure a unidade dos princípios sem imobilizar a Doutrina.
De todas as adesões que recebemos, citaremos apenas uma, porque é a expressão de um pensamento coletivo, e porque a fonte de onde ela emana lhe dá, de certo modo, um caráter oficial. É a decisão do conselho do Círculo da Moral Espírita de Toulouse, regularmente e legalmente constituído. Publicamo-la como testemunho de nossa gratidão aos membros do Círculo, movido nesta circunstância por um impulso espontâneo de devotamento à causa e, além disso, para responder aos votos que a respeito nos expressaram.
Resumo da ata do conselho administrativo do Círculo da Moral Espírita de Toulouse
A respeito da exposição feita por seu presidente, da constituição transitória dada ao Espiritismo por seu fundador e definida pelos preliminares publicados no número da Revista Espírita de 1º de dezembro corrente, o conselho vota, por unanimidade, agradecimentos ao Sr. Allan Kardec, como expressão de seu profundo reconhecimento por essa nova prova de devotamento à Doutrina da qual ele é fundador, e faz votos pela realização desse sublime projeto, que considera como o digno coroamento da obra do mestre, do mesmo modo que vê na instituição da comissão central a cúpula do edifício chamada a dirigir permanentemente os benefícios do Espiritismo para a Humanidade inteira.
Considerando que é dever de todo adepto sincero concorrer, na medida de seus recursos, para a criação do capital necessário a essa constituição, e desejando facilitar a cada membro do Círculo da Moral Espírita o meio de contribuir para isso, decide:
Que a subscrição ficará aberta no secretariado do Círculo até 15 de março próximo, e que a soma apurada nesse período será enviada ao Sr. Allan Kardec para ser depositada na Caixa Geral do Espiritismo.
Conferida e certificada conforme a minuta, por nós, secretário abaixo assinado,
CHÊNE, secretário adjunto.
Ademais, compreende-se que é apenas pelo conjunto, e não pela situação das localidades consideradas isoladamente, que se pode basear uma apreciação, pois há em cada localidade elementos mais ou menos favoráveis, em razão do estado particular dos espíritos e também das resistências mais ou menos influentes que aí se exercem; mas essa situação é variável, porque uma localidade que se tenha mostrado refratária durante vários anos, de repente se torna um foco. Quando os elementos de apreciação tiverem adquirido mais precisão, será possível fazer um mapa colorido, em relação à difusão das ideias espíritas, como foi feito para a instrução. Enquanto isso, pode-se afirmar, sem exagero, que, em suma, o número dos adeptos centuplicou em dez anos, malgrado as manobras empregadas para abafar a ideia e contrariamente às previsões de todos aqueles que se vangloriavam de tê-la enterrado. Isto é um fato consumado, do qual é preciso que os antagonistas tomem conhecimento.
Só falamos aqui dos que aceitam o Espiritismo com conhecimento de causa, depois de tê-lo estudado, e não daqueles que, bem mais numerosos ainda, nos quais estas ideias estão em estado de intuição, e para os quais falta apenas definirem suas crenças com mais precisão e dar-lhes um nome, para serem espíritas confessos. É um fato sobejamente comprovado que se verifica todos os dias, sobretudo de algum tempo para cá, que as ideias espíritas parecem inatas numa porção de indivíduos que jamais ouviram falar de Espiritismo. Não se pode dizer que tenham sofrido alguma influência nem que seguiram o impulso de um grupo. Que os adversários expliquem, se puderem, esses pensamentos que nascem fora e paralelamente ao Espiritismo! Não seria, certamente, um sistema preconcebido no cérebro de um homem que poderia ter produzido um tal resultado. Não há prova mais evidente de que essas ideias estão na Natureza, nem melhor garantia de sua vulgarização no futuro e de sua perpetuidade. Deste ponto de vista pode-se dizer que pelo menos três quartos da população de todos os países possuem o germe das crenças espíritas, pois são encontrados entre aqueles mesmos que lhe fazem oposição. Na maioria, a oposição vem da ideia falsa que fazem do Espiritismo; não o conhecendo, em geral, senão pelas ridículas descrições que dele fez a crítica malévola ou interessada em desacreditá-lo, eles recusam com razão a qualificação de espíritas. Certamente, se o Espiritismo se assemelhasse aos grotescos retratos que dele fizeram; se ele se compusesse das crenças e práticas absurdas que tiveram o prazer de atribuir-lhe, seríamos o primeiro a repudiar o título de espírita. Quando, pois, essas mesmas pessoas souberem que a Doutrina não é senão a coordenação e o desenvolvimento de suas próprias aspirações e de seus pensamentos íntimos, aceitá-la-ão. São incontestavelmente futuros espíritas, mas, por enquanto, não os incluímos em nossas estimativas.
Se é impossível uma estatística numérica, há outra, talvez mais instrutiva, e para a qual existem elementos que nos fornecem as nossas relações e a nossa correspondência; é a proporção relativa dos espíritas segundo as profissões, a posição social, as nacionalidades, as crenças religiosas, etc., levando em conta o fato que certas profissões, como os oficiais ministeriais, por exemplo, são em número limitado, ao passo que outras, como os industriais e os que vivem de rendimentos, são em número indefinido. Guardada a proporção, pode-se ver quais são as categorias nas quais o Espiritismo encontrou, até hoje, mais aderentes. Em algumas a proporção pôde ser estabelecida em porcentagem, com muita precisão, sem contudo pretender que tenha um rigor matemático; as outras categorias foram simplesmente classificadas em razão do número de adeptos que elas forneceram, começando pelas mais numerosas, de que a correspondência e a lista de assinantes da Revista podem fornecer os elementos. O quadro seguinte é resultado do levantamento de mais de dez mil observações.
Constatamos o fato, sem procurar nem discutir a causa dessa diferença, o que, não obstante, poderia ser assunto para um estudo interessante.
Do ponto de vista da difusão das ideias espíritas e da facilidade com que são aceitas, os principais países da Europa podem ser classificados como se segue: 1º França. ─ 2º Itália. ─ 3º Espanha. ─ 4º Rússia. ─ 5º Alemanha. ─ 6º Bélgica. ─ 7º Inglaterra. ─ 8º Suécia e Dinamarca. ─ 9º Grécia. ─ 10º Suíça.
II. ─ Em relação ao sexo: 70% homens e 30% mulheres.
III. ─ Em relação à idade: de 30 a 70 anos, máximo; de 20 a 30, médio; de 70 a 80, mínimo.
IV. ─ Em relação à instrução: O grau de instrução é muito fácil de avaliar pela correspondência. Instrução cuidada, 30%; simples letrados, 30%; instrução superior, 20%; ─ semiletrados, 10%; ─ iletrados, 6%; ─ sábios oficiais, 4%.
V. ─ Em relação às ideias religiosas: católicos romanos, livres-pensadores, não ligados ao dogma, 50%; ─ católicos gregos, 15%; ─ judeus, 10%; ─ protestantes liberais, 10%; ─ católicos ligados aos dogmas, 10%; ─ protestantes ortodoxos, 3%; ─ muçulmanos, 2%.
VI. ─ Em relação à fortuna: mediocridade, 60%; ─ fortunas médias, 20%; ─ indigência 15%; ─ grandes fortunas, 5%.
VII. ─ Em relação ao estado moral, abstração feita da fortuna: aflitos, 60%; ─ sem inquietude, 30%; ─ felizes do mundo, 10%; ─ sensualistas, 0.
VIII. Em relação à classe social: Sem poder estabelecer qualquer proporção nesta categoria, é notório que o Espiritismo conta entre os seus aderentes vários soberanos e príncipes regentes; membros de famílias soberanas e um grande número de personagens tituladas. Em geral, é nas classes médias que o Espiritismo conta mais adeptos. Na Rússia é mais ou menos exclusivamente na nobreza e na alta aristocracia. Na França o Espiritismo se propagou na pequena burguesia e na classe operária.
IX. ─ Estado militar, segundo o grau: l.º ─ tenentes e subtenentes; 2.º ─ suboficiais; 3.º ─ capitães; 4.º ─ coronéis; 5.º ─ médicos e cirurgiões; 6.º ─ generais; 7.º ─ guardas municipais; 8.º ─ soldados da guarda; 9.º ─ soldados de linha. OBSERVAÇÃO; Os tenentes e subtenentes espíritas estão quase todos na ativa; entre os capitães há cerca de metade na ativa e outra metade na reserva; os coronéis, médicos, cirurgiões e generais, em sua maioria estão na reserva.
X. ─ Marinha: 1º. ─ marinha militar; 2º. ─ marinha mercante.
XI. ─ Profissões liberais e funções diversas. Agrupamo-los em dez categorias, classificadas segunda a proporção dos aderentes que elas forneceram ao Espiritismo: 1.º ─ Médicos homeopatas. ─ Magnetistas[1] 2.º ─ Engenheiros. ─ Professores: diretores e diretoras de internatos. ─ Professores livres. 3.º ─ Cônsules. ─ Padres católicos. 4.º ─ Pequenos empregados. ─ Músicos. ─ Artistas líricos. ─ Artistas dramáticos. 5.º ─ Meirinhos. ─ Comissários de polícia. 6.º ─ Médicos alopatas. ─ Homens de letras. ─ Estudantes. 7.º ─ Magistrados. ─ Altos funcionários. ─ Professores oficiais e de liceus. ─ Pastores protestantes. 8.º ─ Jornalistas. ─ Pintores. ─ Arquitetos. ─ Cirurgiões. 9.º ─ Notários. ─ Advogados. ─ Procuradores. ─ Agentes de negócios. 10.º ─ Agentes de câmbio. ─ Banqueiros.
XII. ─ Profissões industriais, manuais e comerciais, igualmente grupadas em dez categorias. 1º ─ Alfaiates. ─ Costureiras. 2º ─ Mecânicos. ─ Empregados de estradas de ferro. 3º ─ Tecelões. ─ Pequenos negociantes. ─ Porteiros. 4º ─ Farmacêuticos. ─ Fotógrafos. ─ Relojoeiros. ─ Viajantes comerciais. 5º ─ Plantadores. ─ Sapateiros. 6º ─ Padeiros. ─ Açougueiros. ─ Salsicheiros. 7º ─ Marceneiros. ─ Tipógrafos. 8º ─ Grandes industriais e chefes de estabelecimentos. 9º ─ Livreiros. ─ Impressores. 10º ─ Pintores de casas. ─ Pedreiros. ─ Serralheiros. ─ Merceeiros. ─ Domésticos.
Deste levantamento resultam as seguintes consequências:
1.º ─ Que há espíritas em todos os graus da escala social.
2.º ─ Que há mais homens que mulheres espíritas. É certo que nas famílias divididas por suas crenças, no tocante ao Espiritismo, há mais maridos contrariados pela opinião das esposas do que mulheres pela dos maridos. Não é menos evidente que, em todas as reuniões espíritas, os homens são maioria. É portanto erradamente que a crítica pretendeu que a Doutrina recruta principalmente entre as mulheres, em virtude da sua inclinação para o maravilhoso. É precisamente o contrário, porquanto essa inclinação para o maravilhoso e para o misticismo em geral as torna mais refratárias que os homens; essa predisposição faz com que elas aceitem mais facilmente a fé cega, que dispensa qualquer exame, ao passo que o Espiritismo, não admitindo senão a fé raciocinada, exige reflexão e a dedução filosófica para ser bem compreendido, para o que a educação estreita dada às mulheres torna-as menos aptas que os homens. Aquelas que sacodem o jugo imposto à sua razão e ao seu desenvolvimento intelectual, muitas vezes caem num excesso contrário; elas tornam-se o que chamam de mulheres fortes e são de uma incredulidade mais tenaz.
3.º ─ Que a grande maioria dos espíritas se acha entre as pessoas esclarecidas e não entre as ignorantes. Por toda parte o Espiritismo se propagou de alto a baixo da escala social, e em parte alguma se desenvolveu primeiro nas camadas inferiores.
4.º ─ Que a aflição e a infelicidade predispõem às crenças espíritas, em consequência das consolações que elas proporcionam. É a razão pela qual, na maioria das categorias, a proporção dos espíritas está na razão da inferioridade hierárquica, porque é aí que há mais privações e sofrimento, ao passo que os titulares das posições superiores em geral pertencem à classe dos satisfeitos; daí há que excluir o estado militar, onde os simples soldados figuram em último lugar.
5.º ─ Que o Espiritismo encontra mais fácil acesso entre os incrédulos em matéria religiosa do que entre os que têm uma fé consolidada.
6.º ─ Enfim, que depois dos fanáticos, os mais refratários às ideias espíritas são os sensualistas e as pessoas cujos únicos pensamentos estão concentrados nas posses e nos prazeres materiais, seja qual for a classe a que pertençam, o que independe do grau de instrução.
Em resumo, o Espiritismo é acolhido como um benefício pelos que ele ajuda a suportar o fardo da vida, e é repelido ou desdenhado por aqueles a quem prejudicaria no gozo da vida. Partindo deste princípio, facilmente se explica a posição que ocupam, no quadro, certas categorias de indivíduos, malgrado as luzes que são uma condição de sua posição social. Pelo caráter, os gostos, os hábitos, o gênero de vida das pessoas, pode-se julgar antecipadamente sua aptidão para assimilar as ideias espíritas. Em alguns a resistência é uma questão de amor-próprio, que segue quase sempre o grau do saber. Quando esse saber os fez conquistar uma certa posição social que os põe em evidência, eles não querem concordar que podiam ter-se enganado e que outros podem ter visto melhor. Oferecer provas a certas pessoas é oferecer-lhes o que elas mais temem. Com medo de achá-las, eles tapam os olhos e os ouvidos, preferindo negar a priori e abrigar-se atrás de sua infalibilidade, de que estão muito convencidas, digam-lhes o que disserem.
É mais difícil compreender a posição que ocupam, nesta classificação, certas profissões industriais. Pergunta-se, por exemplo, por que os alfaiates aí ocupam a primeira posição, enquanto livreiros e impressores, profissões bem mais intelectuais, estão quase na última. É um fato constatado há muito tempo e do qual ainda não percebemos a causa.
Se, no levantamento acima, em vez de não abranger senão os espíritas de fato, tivéssemos considerado os espíritas inconscientes, aqueles nos quais essas ideias estão no estado de intuição e que fazem Espiritismo sem o saber, várias categorias certamente teriam sido classificadas diversamente: por exemplo, os literatos, os poetas, os artistas, numa palavra, todos os homens de imaginação e de inspiração, os crentes de todos os cultos estariam, sem dúvida nenhuma, no primeiro lugar. Certos povos, nos quais as crenças espíritas de certo modo são inatas, também ocupariam outra posição. Eis por que essa classificação não poderia ser absoluta, e modificarse-á com o tempo.
Os médicos homeopatas estão à frente das profissões liberais porque, com efeito, é aquela que, guardadas as proporções, conta nas suas fileiras o maior número de adeptos do Espiritismo: em cem médicos espíritas, há pelo menos oitenta homeopatas. Isto se deve ao fato que o próprio princípio de sua medicação os conduz ao espiritualismo. Os materialistas são muito raros entre eles, se é que existem, ao passo que são numerosos entre os alopatas. Melhor que estes últimos, eles compreenderam o Espiritismo, porque acharam nas propriedades fisiológicas do perispírito, unido ao princípio material e ao princípio espiritual, a razão de ser de seu sistema. Pelo mesmo motivo, os espíritas puderam, melhor que outros, compreender os efeitos desse modo de tratamento. Sem serem exclusivos a respeito da homeopatia, e sem rejeitar a alopatia, eles compreenderam a sua racionalidade e a sustentaram contra ataques injustos. Achando novos defensores entre os espíritas, os homeopatas não tiveram a inabilidade de lhes atirar pedras.
Se os magnetistas figuram na primeira linha, logo após os homeopatas, malgrado a oposição persistente e por vezes acerba de alguns, é que os oponentes não formam senão uma pequeníssima minoria ao lado da massa dos que são, pode-se dizer, espíritas por intuição. O magnetismo e o Espiritismo são, com efeito, duas ciências gêmeas, que se completam e se explicam uma pela outra, e, das duas, a que não quer imobilizar-se não pode chegar ao seu complemento sem se apoiar na sua congênere; isoladas uma da outra, detêm-se num impasse; são reciprocamente como a Física e a Química, a Anatomia e a Fisiologia. A maioria dos magnetistas compreende de tal modo por intuição a relação íntima que deve existir entre as duas coisas, que geralmente se prevalecem de seus conhecimentos em magnetismo como meio de introdução junto aos espíritas.
Em todos os tempos os magnetistas estiveram divididos em dois campos: os espiritualistas e os fluidistas. Estes últimos, muito menos numerosos, pelo menos fazendo abstração do princípio espiritual, quando não o negam absolutamente, atribuindo tudo à ação do fluido material, estão, por conseguinte, em oposição de princípios com os espíritas. Ora, é de notar que, se nenhum magnetistas é espírita, todos os espíritas, sem exceção, admitem o magnetismo. Em todas as circunstâncias eles se fizeram seus defensores e baluartes. Eles devem ter-se admirado de encontrar adversários mais ou menos malévolos nesses mesmos cujas fileiras acabavam de reforçar; que, depois de terem sido, durante mais de meio século, vítimas de ataques, de troças e de perseguições de toda espécie, por sua vez atirem pedras, sarcasmos e por vezes injúrias aos colaboradores que lhes chegam e comecem a pesar na balança, por seu número.
Ademais, como dissemos, essa oposição está longe de ser geral, muito pelo contrário; pode-se afirmar, sem se afastar da verdade, que ela não chega a mais de 2% a 3% da totalidade dos magnetistas. Ela é muito menor ainda entre os da província e do estrangeiro do que de Paris.
[1] O Vocábulo magnetizador desperta a ideia de ação; o de magnetista uma ideia de adesão. O magnetizador é o que exerce por profissão ou outra coisa. Pode-se ser magnetista sem ser magnetizador. Dir-se-á; um magnetizador experimentado e um magnetista convicto.
Seria curioso interrogar hoje esses pretensos sábios que, do alto de seu orgulho e de sua ignorância decretavam, ainda há pouco, com um soberbo desdém, a loucura desses homens gigantes que procuravam novas aplicações para o vapor e a eletricidade. Felizmente a morte lhes poupou essas humilhações.
Para fixar claramente a nossa situação, faremos ao leitor uma profissão de fé em algumas linhas:
Espírita, Avatar, Paul d’Apremont provam-nos incontestavelmente o talento de Théophile Gautier, esse poeta a quem o maravilhoso sempre atraiu; estes livros encantadores são pura imaginação e seria erro neles procurar outra coisa; o Sr. Home era um prestidigitador hábil;os irmãos Davenport, chantagistas desajeitados.
Todos aqueles que quiseram fazer do Espiritismo um negócio de especulação dependem, em nossa opinião, da polícia correcional ou do tribunal de justiça, e eis por quê: Se o Espiritismo não existe, são impostores passíveis da penalidade infringida pelo abuso de confiança; ao contrário, se ele existe, é com a condição de ser a coisa sagrada por excelência, a mais majestosa manifestação da divindade. Se admitíssemos que o homem, passando sobre o túmulo, pudesse de pé firme penetrar na outra vida, corresponder-se com os mortos e ter assim a única prova irrecusável ─ porque seria material ─ da imortalidade da alma, não seria um sacrilégio entregar a charlatães o direito de profanar o mais santo dos mistérios e violar, sob a proteção dos magistrados, o segredo eterno dos túmulos? O bom-senso, a moral, a própria segurança dos cidadãos exigem imperiosamente que esses novos ladrões sejam expulsos do templo, e que nossos teatros e nossas praças públicas sejam fechados a esses falsos profetas que lançam nos espíritos fracos um terror de que a loucura muitas vezes é a consequência.
Isto posto, entremos no âmago da questão.
Ao ver as escolas modernas, que fazem tumulto em torno de certos princípios fundamentais e de certezas conquistadas, é fácil compreender que o século da dúvida e do desencorajamento em que vivemos está presa de vertigem e cegueira.
Entre todos esses dogmas, o mais agitado foi, sem contestação, o da imortalidade da alma.
Com efeito, tudo se resume nisto: é a questão por excelência, é o homem todo inteiro, é o seu presente, é o seu futuro; é a sanção da vida, é a esperança da morte; é a ela que vêm ligar-se todos os grandes princípios da existência de Deus, da alma, da religião revelada.
Admitida esta verdade, não é mais a vida que nos deve inquietar, mas o termo da vida; os prazeres se apagam para dar lugar ao dever; o corpo não é mais nada, a alma é tudo; o homem desaparece e só Deus brilha em sua eterna imensidade.
Então, a grande palavra da vida, a única, é a morte, ou melhor, a nossa transformação. Sendo chamados a passar pela Terra como fantasmas, é para esse horizonte que se entreabre do outro lado que devemos lançar o olhar; viajantes de alguns dias, é ao partir que convém nos informemos sobre o objetivo de nossa peregrinação, que perguntemos à vida o segredo da eternidade, que assentemos as balizas do nosso caminho e que, passageiros da morte à vida, sustentemos com mão firme o fio que atravessa o abismo.
Disse Pascal; “A imortalidade da alma é uma coisa que nos importa tanto e que nos toca tão profundamente, que é preciso haver perdido todo o sentimento para não nos interessarmos em saber o que ela é. Todas as nossas ações, todos os nossos pensamentos devem tomar caminhos tão diferentes, conforme houver ou não bens eternos a esperar, que é impossível fazer uma manobra com senso e raciocínio se não nos pautarmos pela visão desse plano, que deve ser o nosso primeiro objetivo.”
Em todas as épocas o homem teve por patrimônio comum a noção da imortalidade da alma e procurou apoiar em provas essa ideia consoladora. Ele acreditou achá-la nos usos e costumes dos diversos povos, nos relatos dos historiadores, nos cantos dos poetas. Sendo anterior a todo sacerdote, a todo legislador, a todo escritor, não tendo saído de nenhuma seita, de nenhuma escola, e existindo nos povos bárbaros como nas nações civilizadas, de onde viria ela senão de Deus, que é a verdade?
Ah! Essas provas que o medo do nada criou não são senão esperanças de um futuro construído sobre um areal incerto, sobre areia movediça, e as deduções da lógica mais cerrada jamais chegarão à altura de uma demonstração matemática.
Esta prova material, irrecusável, justa como um princípio divino e como uma adição ao mesmo tempo, acha-se inteira no Espiritismo e não poderia encontrar-se alhures. Considerando-a deste ponto de vista elevado, como uma âncora de misericórdia, como a suprema tábua de salvação, compreende-se facilmente o número de adeptos que este novo altar plenamente católico agrupou em torno de seus degraus, porque não há que se enganar, é aí e não alhures que se deve procurar a origem do sucesso que essas novas doutrinas criaram junto a homens que brilham no primeiro plano da eloquência sagrada ou profana, e cujos nomes têm uma merecida notoriedade nas ciências e nas letras.
Que é, pois, o Espiritismo?
Na sua definição mais ampla, o Espiritismo é a facilidade que possuem certos indivíduos de entrar em relação, através de um intermediário, ou médium, que não passa de um instrumento em suas mãos, com o Espírito de pessoas mortas que habitam um outro mundo. Esse sistema, que se apoia, dizem os crentes, num grande número de testemunhos, oferece uma singular sedução, menos pelos resultados do que por suas promessas.
Nesta ordem de ideias, o sobrenatural não é mais um limite, a morte não é mais uma barreira, o corpo não é mais um obstáculo à alma, que dele se desembaraça após a vida, como, durante a vida, dela se desembaraça momentaneamente, no sonho. Na morte, o Espírito está livre; se for puro, eleva-se para as esferas que nos são desconhecidas; se impuro, erra em volta da Terra, põe-se em comunicação com o homem, que trai, engana e corrompe. Os espíritas não creem nos bons Espíritos. O clero, de acordo com o texto da Bíblia, não crê igualmente senão nos maus, e os encontra nesta passagem. “Tomai cuidado, porque o demônio ronda em torno de vós e vos espreita como um leão buscando sua presa, quaerens quem devoret.”
Assim, o Espiritismo não é uma descoberta moderna. Jesus expulsava os demônios do corpo dos possessos, e Diodoro de Sicília fala dos fantasmas; os deuses lares dos romanos, seus Espíritos familiares, que eram, pois?
Mas, então, por que repelir com prevenção e sem exame um sistema, certamente perigoso do ponto de vista da razão humana, mas cheio de esperanças e consolações? A brucínia sabiamente administrada é um dos nossos mais poderosos remédios; por que é um violento veneno em mãos inábeis, há uma razão para proscrevê-la do Códex?
O Sr. Baguenault de Puchesse, um filósofo e um cristão, de cujo livro faço numerosos empréstimos, porque suas ideias são as minhas, diz, no seu belo livro Immortalité, a propósito do Espiritismo: “Suas práticas inauguram um sistema completo que compreende o presente e o futuro, que traça os destinos do homem, abre-lhe as portas da outra vida e o introduz no mundo sobrenatural. A alma sobrevive ao corpo, pois aparece e se mostra após a dissolução dos elementos que o compõem. O princípio espiritual se desprende, persiste e, por seus atos, afirma sua existência. A partir daí o materialismo é condenado pelos fatos; a vida de alémtúmulo se torna um fato certo e como que palpável; o sobrenatural assim se impõe à Ciência e, submetendo-se ao seu exame, não lhe permite mais repeli-lo teoricamente e declará-lo, em princípio, impossível.”
O livro que assim fala do Espiritismo é dedicado a uma das luzes da Igreja, a um dos mestres da Academia Francesa, um dos luminares das letras contemporâneas, que respondeu:
“Um belo livro, sobre um grande assunto, publicado pelo presidente de nossa Academia de Santa Cruz, será uma honra para vós e para toda a nossa Academia. Talvez não possais escolher uma questão mais alta nem mais importante a estudar na hora presente... Permiti-me, pois, senhor e muito caro amigo, vos oferecer, pelo belo livro que dedicais à nossa Academia e pelo bom exemplo que nos dais, todas as minhas felicitações e todos os meus agradecimentos, com a homenagem de meu religioso e profundo devotamento.
“FÉLIX, Bispo de Orléans.”
“Orléans, 28 de março de 1864”
A mediunidade, ou faculdade de comunicar-se com os Espíritos não constitui o fundo do Espiritismo, sem o que, para ser espírita, seria preciso ser médium. A mediunidade não passa de um acessório, um meio de observação, e não a ciência, que está toda inteira na doutrina filosófica. O Espiritismo não está mais enfeudado na mediunidade do que a Astronomia numa luneta, e a prova disto é que se pode fazer Espiritismo sem médiuns, como se fez Astronomia muito tempo antes de haver telescópios. A diferença consiste em que, no primeiro caso, se faz ciência teórica, ao passo que a mediunidade é o instrumento que permite assentar a teoria sobre a experiência. Se o Espiritismo estivesse circunscrito à faculdade mediúnica, sua importância seria singularmente diminuída e, para muita gente, reduzir-se-ia a fatos mais ou menos curiosos.
Lendo esse artigo, pergunta-se se o autor crê ou não no Espiritismo, porquanto ele não o expõe, de certo modo, senão como uma hipótese, mas como uma hipótese digna da mais séria atenção. Se for uma verdade, diz ele, é uma coisa sagrada por excelência, que não deve ser tratada senão com respeito, e cuja exploração só mereceria ser desrespeitada e perseguida com toda a severidade.
Não é a primeira vez que esta ideia é emitida, mesmo pelos adversários do Espiritismo, e é de notar que é sempre o lado pelo qual a crítica julgou pôr a Doutrina em erro, atendo-se aos abusos do tráfico a que deu ocasião; é que ela sente que este seria o lado vulnerável, pelo qual poderia acusá-la de charlatanismo, motivo pelo qual a malevolência se encarniça em ligá-la aos charlatães, ledores da sorte e outros exploradores da mesma espécie, esperando, por esse meio, ludibriar e lhe tirar o caráter de dignidade e de gravidade que constitui a sua força. O ataque aos Davenport, que tinham julgado poder impunemente pôr os Espíritos em desfile nos palcos, prestou um imenso serviço. Em sua ignorância do verdadeiro caráter do Espiritismo, a crítica de então julgou feri-lo de morte, ao passo que não desacreditou senão os abusos contra os quais todos os espíritas sinceros sempre protestaram.
Seja qual for a crença do autor, e malgrado os erros contidos em seu artigo, devemos felicitar-nos por nele ver a questão tratada com a gravidade que o assunto comporta. A imprensa raramente tem ouvido falar dele num sentido tão sério, mas há começo para tudo.
[1] Le Voyageur de Commerce sai todos os domingos. - Escritório; bairro Saint-Honoré, 3. Preço: 22 francos por ano; 12 francos por semestre; 6,50 francos por trimestre. Pelo fato de ter publicado o artigo que será lido, que é a expressão do pensamento do autor, nada prejulgamos quanto às simpatias pelo Espiritismo, porquanto só o conhecemos por este número que tiveram a bondade de nos enviar.
O Espiritismo só reconhece como adeptos aqueles que põem em prática os seus ensinamentos, isto é, que trabalham a sua própria melhora moral, porque é esse o sinal característico do verdadeiro espírita. Ele não é mais responsável pelos atos daqueles a quem agrada dizer-se espíritas, do que a verdadeira Ciência pelo charlatanismo dos escamoteadores que se intitulam professores de Física, e a sã religião pelos abusos cometidos em seu nome.
Diz a acusação, a propósito de Joye; “Foi encontrado em sua casa um registro que dá a ideia de seu caráter e de suas ocupações. Segundo ele, cada página teria sido escrita conforme o ditado dos Espíritos, e é cheio de ardentes suspiros por Jesus Cristo. Em cada página fala-se de Deus e os santos são invocados. Ao lado, por assim dizer, há notas que podem dar uma ideia das operações habituais do ervanário;
“Para espiritismo, 4,25 francos. ─ Doentes, 6 francos ─ Cartas, 2 francos ─
Malefícios, 10 francos ─ Exorcismos, 4 francos ─ Bagueta divinatória, 10 francos ─ Malefícios por tiragem da sorte, 60 francos” e muitas outras designações, entre as quais se encontram malefícios para náuseas, e que terminam por esta menção: “Em janeiro fiz 226 francos. Os outros meses foram menos frutuosos.”
Alguém já viu em obras da Doutrina Espírita a apologia de semelhantes práticas, bem como qualquer coisa que seja de natureza a provocá-las? Ao contrário, nelas não se vê que a Doutrina repudia toda solidariedade com a magia, a feitiçaria, as maquinações, os cartomantes, os adivinhos, os ledores do futuro, e todos os que fazem profissão do comércio com os Espíritos, pretendendo tê-los às suas ordens e a tanto por sessão?
Se Joye tivesse sido espírita, de início já teria olhado como uma profanação fazer intervirem os Espíritos em semelhantes circunstâncias. Ele teria sabido, além disso, que os Espíritos não estão às ordens de ninguém, e que eles não vêm nem em obediência a voz de comando, nem pela influência de qualquer sinal cabalístico; que os Espíritos são as almas dos homens que viveram na Terra ou em outros mundos, nossos pais, nossos amigos, nossos contemporâneos ou nossos antepassados; que eles foram homens como nós, e que depois de nossa morte seremos Espíritos como eles; que os gnomos, duendes, trasgos, demônios, são criações de pura fantasia e só existem na imaginação; que os Espíritos são livres, mais livres que quando estavam encarnados, e que pretender submetê-los aos nossos caprichos e à nossa vontade, fazê-los agir e falar conforme nosso desejo, para o nosso divertimento ou por nosso interesse, é uma ideia quimérica; que eles vêm quando querem, da maneira que querem e a quem lhes convém; que o objetivo providencial das comunicações com os Espíritos é nossa instrução e nossa melhora moral, e não de ajudar-nos nas coisas materiais da vida, que podemos fazer ou encontrar por nós mesmos, e ainda menos de servir à cupidez; enfim, que, em razão de sua própria natureza e do respeito que devemos às almas dos que viveram, é tão irracional quanto imoral ter escritório de consulta e exibição dos Espíritos. Ignorar estas coisas é ignorar o á-bê-cê do Espiritismo, e quando a crítica o confunde com a cartomancia, a quiromancia, os exorcismos, as práticas de feitiçaria, os malefícios, os encantamentos, etc., ela prova que ignora todos os seus princípios. Ora, negar ou condenar uma doutrina que não se conhece, é faltar à lógica mais elementar; é emprestar-lhe ou fazê-la dizer precisamente o contrário do que ela diz; é calúnia ou parcialidade.
Considerando-se que Joye misturava em seus processos o nome de Deus, de Jesus e a invocação dos santos, também podia muito bem a eles misturar o nome do Espiritismo, o que não depõe mais contra a Doutrina do que o seu simulacro de devoção depõe contra a sã religião. Portanto, ele não era mais espírita porque interrogava supostos Espíritos do que as mulheres Lamberte e Dye eram verdadeiramente piedosas porque queimavam velas para a Boa-Mãe, Nossa Senhora da Guarda, para o êxito de seus envenenamentos. Ademais, se ele fosse espírita, nem mesmo lhe teria tido a ideia de servir para a perpetração do mal por intermédio de uma doutrina cuja primeira lei é o amor ao próximo, e que tem por divisa: Fora da caridade não há salvação. Se se imputasse ao Espiritismo a incitação a semelhantes atos, poder-se-ia, sob a mesma justificativa, responsabilizar a religião.
A propósito, eis algumas reflexões da Opinion Nationale de 8 de dezembro:
“O jornal Monde acusa o Siècle, os maus jornais, as más reuniões, os maus livros, de cumplicidade no caso das envenenadoras de Marselha.
“Lemos com dolorosa curiosidade os debates desse estranho caso, mas não vimos em parte alguma que o feiticeiro Joye ou a feiticeira Lamberte tenham sido assinantes do Siècle, do Avenir ou da Opinion. Um só jornal foi encontrado na casa de Joye; era um número do Diable, journal de l‘enfer. As viúvas que figuram nesse amável processo estão muito longe de ser livres-pensadoras. Elas acendem velas à boa Virgem, para obter de Nossa Senhora a graça de envenenar tranquilamente os seus maridos. Encontra-se nesse negócio toda a velha bagagem da Idade Média: ossos de defuntos colhidos no cemitério, disfarces que não passam de feitiços do tempo da rainha Margot. Todas essas senhoras foram educadas, não nas escolas Elisa Lemonnier, mas entre as boas irmãs. Juntai às superstições católicas as superstições modernas, espiritismo e outras charlatanices. Foi o absurdo que conduziu essas senhoras ao crime. É assim que na Espanha, perto da foz do Ebro, vê-se na montanha uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Ladrões.
“Semeai a superstição e colhereis o crime. Por isto pedimos que se semeie a ciência. ‘Esclarecei a cabeça do povo, disse Victor Hugo, e não tereis mais necessidade de cortá-la’.
“J. Labbé.”
O argumento de que os acusados não eram assinantes de certos jornais não tem valor, pois se sabe que não é preciso ser assinante de um jornal para lê-lo, sobretudo nessa classe de indivíduos.
O Opinion Nationale poderia, pois, achar-se nas mãos de alguns dentre eles, sem que se pudesse nada concluir contra o jornal. O que teria ele dito se Joye tivesse pretendido ter-se inspirado nas doutrinas dessa folha? Teria respondido: Lede-a, e vede se nela encontrais uma única palavra própria a excitar as más paixões. O padre Verger certamente tinha o Evangelho em casa; ademais, por sua condição, ele devia estudá-lo. Pode-se dizer que foi o Evangelho que o impeliu a assassinar o Arcebispo de Paris? Foi o Evangelho que armou o braço de Ravaillac e o de Jacques Clément? Quem acendeu as fogueiras da Inquisição? E contudo, foi em nome do Evangelho que todos esses crimes foram cometidos.
Diz o autor do artigo: “Semeai a superstição e colhereis o crime.” Ele tem razão, mas o que está errado é confundir o abuso de uma coisa com a própria coisa. Se quiséssemos suprimir tudo aquilo de que se pode abusar, muito pouco escaparia à proscrição, sem excetuar a imprensa. Certos reformadores assemelham-se aos homens que desejam cortar uma boa árvore porque tem alguns frutos bichados.
Ele acrescenta: “É por isto que pedimos que se semeie a Ciência.” Ele ainda tem razão, porque a Ciência é um elemento de progresso, mas ela basta para a moralização completa? Não se veem homens porem o seu saber a serviço de suas más paixões? Lapommeraie não era um homem instruído, um médico diplomado, desfrutando um certo crédito e, ademais, um homem da Sociedade? Dava-se o mesmo com Castaing e tantos outros. Pode-se, pois, abusar da Ciência. Há que se concluir daí que a Ciência é coisa má? E porque um médico falhou, a falta deve estender-se sobre todo o corpo médico? Por que, pois, imputar ao Espiritismo a de um homem a quem aprouve dizer-se espírita e não era? A primeira coisa, antes de lançar um argumento qualquer, era inquirir se ele teria encontrado na Doutrina Espírita máximas de natureza a justificar os seus atos. Por que a Ciência Médica não é solidária com o crime de Lapommeraie? Porque ele não colheu nos princípios dessa Ciência a iniciação ao crime. Ele empregou para o mal os recursos que ela fornece para o bem. Entretanto, ele era mais médico do que Joye era espírita. É o caso de aplicar o ditado: “Quando se quer matar seu cão, diz-se que está com raiva.”
A instrução é indispensável, ninguém o contesta, mas sem a moralização, não é senão um instrumento muitas vezes improdutivo para aquele que não sabe regular o seu uso para o bem. Instruir as massas sem moralizá-las é pôr em suas mãos uma ferramenta sem ensinar a utilizá-la, porque a moralização que se dirige ao coração não segue necessariamente a instrução que só se dirige à inteligência. Aí está a experiência para prová-lo. Mas como moralizar as massas? É o de que menos se ocuparam, e não será certamente nutrindo-as com a ideia de que não há Deus, nem alma, nem esperança, porque nem todos os sofismas do mundo demonstrarão que o homem que crê que para ele tudo começa e acaba com o corpo tenha mais fortes razões para esforçar-se por se melhorar, do que aquele que compreende a solidariedade que existe entre o passado, o presente e o futuro. Entretanto, é essa crença no niilismo que uma certa escola de supostos reformadores pretende impor à Humanidade como o elemento por excelência do progresso moral.
Citando Victor Hugo, o autor esquece, ou melhor, nem mesmo imagina que este tenha muitas vezes afirmado sua crença nos princípios espíritas fundamentais. É verdade que não é Espiritismo à maneira de Joye, mas quando não se sabe, é fácil confundir-se.
Por mais lamentável que seja o abuso que foi feito do nome do Espiritismo neste assunto, nenhum espírita se abalou com o que pudesse resultar para a Doutrina. É que, com efeito, sendo sua moral inatacável, ela não podia ser atingida. A experiência prova, ao contrário, que não há uma só das circunstâncias que envolveram o nome do Espiritismo que não tenha sido em seu proveito, aumentando-lhe o número de adeptos, porque o exame que a repercussão provoca só lhe pode ser vantajoso. É de notar, não obstante, que neste caso, com poucas exceções, a imprensa se absteve de qualquer comentário a respeito do Espiritismo. Há alguns anos ela teria aberto colunas por dois meses e não teria deixado de apresentar Joye como um dos grandes sacerdotes da Doutrina. Igualmente pudemos notar que nem o presidente da Corte, nem o procurador geral, no seu requisitório, insistiram sobre essa circunstância e dela não tiraram qualquer indução. Só o advogado de Joye fez seu papel de defensor como pôde.
O Espiritismo em toda parte
O Siècle, de 20 de maio último, citava estes versos a propósito de um artigo sobre a crise comercial. Que têm eles de espíritas? perguntarão. Não se trata de almas, nem de Espíritos. Com mais razão poder-se-ia perguntar que relação eles têm com o fundo do artigo no qual foram enquadrados, tratando da tributação de mercadorias. Eles têm muito mais a ver com o Espiritismo, porque é, sob uma outra forma, o pensamento expresso pelos Espíritos sobre o futuro que se prepara; é, numa linguagem ao mesmo tempo sublime e concisa, o anúncio de convulsões que a Humanidade terá que sofrer para a sua regeneração e que, de todos os lados, os Espíritos nos fazem pressentir como iminentes. Tudo se resume neste pensamento profundo: Uma outra Humanidade, imagem da Humanidade transformada, do novo mundo moral substituindo o velho mundo que se esboroa. Os primeiros indícios dessas modificações já se fazem sentir, razão pela qual os Espíritos nos repetem em todos os tons que os tempos são chegados. O Sr. Lamartine aí fez uma verdadeira profecia, cuja realização começamos a ver.
O Sr. de Broglie: ─ Que vejo! Será possível?
Madame de Staël: ─ Meu caro Victor, não vos alarmeis, e sem me interrogar sobre um prodígio cuja causa nenhum ser vivo poderia penetrar, gozai comigo de um momento de felicidade que a nós ambos proporciona esta aparição noturna. Vedes que há laços que a própria morte não poderia partir. A suave concordância de sentimentos, de vistas, de opiniões, forma a cadeia que liga a vida perecível à vida imortal e que impede que o que esteve longamente unido seja separado para sempre.
O Sr. de Broglie: ─ Creio que eu poderia explicar esta feliz simpatia pela concordância intelectual.
Madame de Staël: ─ Eu vos peço que nada expliquemos. Não tenho mais tempo a perder. Essas relações de amor que sobrevivem aos órgãos materiais não me deixam alheia aos sentimentos dos objetos de minhas mais ternas afeições. Meus filhos vivem; eles honram e amam a minha memória, bem o sei, mas é a isso que se limitam minhas presentes relações com a Terra. A noite da tumba envolve todo o resto.
No mesmo tomo, páginas 83 e seguintes, há outro diálogo, onde são trazidos a cena vários personagens históricos, revelando sua existência e o papel que representaram em vidas sucessivas.
O correspondente que nos dirige esta nota acrescenta:
“Eu acredito, como vós, que o melhor meio de trazer à doutrina que proclamamos, bom número de recalcitrantes, é fazê-los ver que o que eles veem como um ogro pronto a devorá-los, ou como uma ridícula palhaçada, não é senão o que nasceu, apenas pela meditação nos destinos do homem, no cérebro dos pensadores sérios de todas as idades.”
O Sr. de Jouy escrevia no começo deste século. Suas obras completas foram publicadas em 1823, em 27 volumes in 8º, pela casa Didot.
Silvio Pellico
“Semelhante estado era uma verdadeira doença. Não sei se devo dizer uma espécie de sonambulismo. Parecia-me que havia em mim dois homens: um que queria escrever continuadamente, outro que queria fazer outra coisa...
“Durante essas noites horríveis, por vezes minha imaginação se exaltava a tal ponto que, bem desperto, me parecia ouvir, em minha prisão, ora gemidos, ora risos abafados. Desde a infância jamais tinha acreditado em feiticeiros nem em Espíritos, e agora esses gemidos e esses risos me espantavam. Eu não sabia como explicá-los; era forçado a duvidar se eu não era joguete de alguma força desconhecida e malfazeja.
“Várias vezes, trêmulo, tomei da luz e verifiquei se alguém não estaria escondido debaixo da cama para se divertir comigo. Quando estava à mesa, ora me parecia que alguém me puxava pela roupa, ora que mexiam num livro que caía no chão, ora também pensava que uma pessoa, atrás de mim, soprava para apagar a luz. Então, erguendo-me precipitadamente, eu olhava em meu redor; andava desconfiado e perguntava para mim mesmo se eu estava louco ou em plena razão, porque, em meio a tudo quanto experimentava, eu não sabia mais distinguir a realidade da ilusão, e exclamava com angústia; Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?
“Uma vez, havendo me deitado antes da aurora, estava certo de haver posto o lenço debaixo do travesseiro. Depois de um momento de apatia, despertei como de costume e pareceu-me que me estrangulavam. Senti meu pescoço bem apertado. Coisa estranha! Ele estava envolto no meu lenço, fortemente amarrado por vários nós! Eu teria jurado não haver dado esses nós, nem mesmo haver tocado no lenço desde que o pusera sob o travesseiro. Era preciso que o tivesse feito sonhando ou num acesso de delírio, sem guardar a mínima lembrança. Mas eu não podia crê-lo, e, a partir de então, todas as noites temia ser estrangulado.”
Se alguns destes fatos podem ser atribuídos a uma imaginação superexcitada pelo sofrimento, outros há que realmente parecem provocados por agentes invisíveis, e não se deve esquecer que Sílvio Pellico não acreditava nisso. Essa causa não lhe podia vir à mente e, na impossibilidade de entendê-la, o que se passava à sua volta enchia-o de terror. Hoje que seu Espírito está desprendido do véu da matéria, ele percebe as causas, não só desses fatos, mas das diversas peripécias de sua vida; ele reconhece como justo o que antes lhe parecia injusto. Deu a sua explicação na comunicação seguinte, solicitada a propósito.
(Sociedade de Paris, 18 de outubro de 1867.)
Como é grande e poderoso esse Deus que os humanos apequenam sem cessar querendo defini-lo, e como as mesquinhas paixões que lhe atribuímos para compreendê-lo são uma prova de nossa fraqueza e de nosso pouco adiantamento! Um Deus vingador! Um Deus juiz! Um Deus carrasco! Não, tudo isto só existe na imaginação humana, incapaz de compreender o infinito. Que louca temeridade querer definir Deus! Ele é o incompreensível e o indefinível, e nós só podemos inclinar-nos sob sua mão poderosa, sem procurar compreender e analisar sua natureza. Os fatos aí estão para provar que ele existe! Estudemos os fatos e, por meio deles, remontemos de causa em causa tão longe quanto possamos ir, mas não nos lancemos à causa das causas senão quando possuirmos inteiramente as causas secundárias e quando compreendermos todos os efeitos!...
Sim, as leis do Eterno são imutáveis! Hoje elas ferem o culpado, como sempre o feriram, conforme a natureza das faltas cometidas e proporcionalmente a essas faltas. Elas ferem de maneira inexorável, e são seguidas de consequências morais, não fatais, mas inevitáveis. A pena de talião é um fato e a palavra da antiga lei: “Olho por olho, dente por dente”, cumpre-se em todo o seu rigor. Não só o orgulhoso é humilhado, mas ele é ferido em seu orgulho da mesma maneira que feriu os outros. O juiz iníquo se vê condenar injustamente; o déspota torna-se oprimido!
Sim, eu governei os homens. Fi-los dobrar-se sob um jugo de ferro; eu os feri em suas afeições e em sua liberdade, e mais tarde, por minha vez, tive que me dobrar ao opressor; fui privado de minhas afeições e de minha liberdade!
Mas como o opressor da véspera pode tornar-se o liberal de amanhã? A coisa é das mais simples e a observação dos fatos que se passam aos vossos olhos deveria vos dar a chave. Não vedes, no curso de uma só existência, uma mesma personalidade, alternadamente dominadora e dominada? E não acontece que, se ela governa despoticamente no primeiro caso, é, no segundo, uma das que mais energicamente lutam contra o despotismo?
A mesma coisa acontece de uma existência a outra. Isto não é uma regra sem exceção, mas geralmente os que são, em aparência, os mais convictos liberais, foram outrora os mais ardentes partidários do poder, e isto se compreende, porque é lógico que os que longamente estavam habituados a reinar sem contestação e a satisfazer sem entraves os seus menores caprichos, sejam os que mais sofram a opressão, e os mais ardentes para sacudir o jugo.
O despotismo e os seus excessos, por uma consequência admirável das leis de Deus, arrastam necessariamente aqueles que os exercem a um amor imoderado da liberdade, e esses dois excessos, gastando-se reciprocamente, trazem inevitavelmente a calma e a moderação.
Tais são, a propósito do desejo que exprimistes, as explicações que creio útil vos dar. Ficarei feliz se elas forem de natureza a vos satisfazer.
SILVIO PELLICO.
Variedades
O avarento da rua do forno
O Petite Presse de 19 de novembro de 1868 transcreveu do jornal le Droit o fato seguinte:
“Numa miserável água-furtada da Rua do Four-Saint-Germain, vivia pobremente um indivíduo de certa idade, chamado P... Ele não recebia ninguém, e fazia sua própria comida, muito mais frugal que a de um anacoreta. Vestindo roupas sórdidas, ele dormia numa enxerga ainda mais sórdida. De magreza extrema, parecia ressecado pelas privações de todo gênero e era julgado em geral vítima da mais profunda pobreza.
“Entrementes, um cheiro fétido tinha começado a espalhar-se na casa. Aumentava de intensidade e acabou atingindo um pequeno restaurante do pavimento térreo, a ponto de a freguesia reclamar.
“Então procuraram diligentemente a causa do mau cheiro, e acabaram descobrindo que provinha do alojamento ocupado pelo tal P...
“Essa descoberta suscitou a lembrança de que ele há tempos não era visto e, temendo lhe houvesse acontecido uma desgraça, apressaram-se em avisar o comissário de polícia do bairro.
“Imediatamente a autoridade foi ao local e mandou um serralheiro abrir a porta. Mas assim que quiseram entrar no quarto, quase sufocaram e tiveram que afastar-se imediatamente. Só depois de ter deixado por algum tempo entrar o ar exterior é que puderam entrar e fazer constatações com as necessárias precauções.
“Um triste espetáculo se ofereceu ao comissário e ao médico que o acompanhava. Estendido sobre o leito, o corpo do tal P... encontrava-se em estado de completa putrefação. Ele estava coberto de varejeiras, e milhares de vermes roíam as carnes, que caíam aos pedaços.
“O estado de decomposição não permitiu reconhecer exatamente a causa da morte, que ocorrera há muito tempo, mas a ausência de qualquer traço de violência permitiu deduzir que fora devida a uma causa natural, como uma apoplexia ou uma congestão cerebral. Ademais, encontraram num móvel cerca de 35.000 francos, em dinheiro, ações, obrigações industriais e valores diversos.
“Depois das formalidades normais, apressaram-se em retirar os restos humanos e desinfetar o local. O dinheiro e os valores foram lacrados pela Justiça.”
Tendo sido evocado na Sociedade de Paris, esse homem deu a seguinte comunicação:
(Sociedade de Paris, 20 de novembro de 1868 – Médium: Sr. Rul) Perguntais por que me deixei morrer de fome, quando possuía um tesouro. 35.000 francos, com efeito, é uma fortuna! Ai de mim, senhores! Sois muito instruídos sobre o que se passa em torno de vós, para não compreenderdes que eu sofria provações, e meu fim diz claramente que fali. Com efeito, numa existência anterior eu tinha lutado com energia contra a pobreza que eu não tinha dominado senão por prodígios de atividade, de energia e de perseverança. Vinte vezes estive a ponto de me ver privado do fruto de meu trabalho. Assim, não fui terno para com os pobres que eu enxotava quando se apresentavam em minha casa. Eu reservava tudo quanto ganhava para a minha família, minha mulher e meus filhos.
Escolhi para provação, nesta nova existência, ser sóbrio, moderado nos gastos, e partilhar minha fortuna com os pobres, meus irmãos deserdados.
Mantive a palavra? Vedes o contrário, porque fui muito sóbrio, temperante, mais que temperante, mas não fui caridoso.
Meu fim infeliz não foi senão o começo de meus sofrimentos, mais duros, mais penosos neste momento, quando vejo com os olhos do Espírito. Assim, não teria tido a coragem de me apresentar a vós, se não me tivessem assegurado que sois bons e compassivos com a desgraça. Venho pedir que oreis por mim. Aliviai meus sofrimentos, vós que conheceis os meios de tornar o sofrimento menos pungente. Orai por vosso irmão que sofre e que deseja voltar a sofrer muito mais ainda.
Piedade, meu Deus! Piedade para o ser fraco que faliu; e vós, senhores, compaixão por vosso irmão, que se recomenda às vossas preces.
O Avarento da Rua do Forno.
“O Sr. Jean-Baptiste Sadoux, fabricante de canoas em Joinville-le-Pont, percebeu ontem um jovem que, depois de ter vagado durante algum tempo sobre a ponte, subiu no parapeito e se atirou ao Marne. Imediatamente ele foi em seu socorro e, ao cabo de sete minutos, retirou-o. Mas a asfixia já era completa e todas as tentativas para reanimar aquele infeliz foram infrutíferas.
“Uma carta encontrada com ele permitiu que fosse reconhecido como o Sr. Paul D..., de vinte e dois anos, residente na Rua Sedaine, em Paris. Essa carta, dirigida pelo suicida ao seu pai, era extremamente tocante. Ele pedia perdão por abandoná-lo e dizia que há dois anos era dominado por uma ideia terrível, por uma irresistível vontade de se destruir. Acrescentava que lhe parecia ouvir fora da vida uma voz que o chamava sem descanso e, a despeito de todos os esforços, não podia impedir de ir para ela. Encontraram, também, no bolso do paletó, uma corda nova, na qual tinha sido feito um laço corredio. Depois do exame médico-legal, o corpo foi entregue à família.”
A obsessão aqui está bem evidente, e o que não está menos evidente é que o fato nada tem a ver com o Espiritismo, nova prova de que esse mal não é inerente à crença. Mas se o Espiritismo não tem nada a ver com este caso, só ele pode dar a sua explicação. Eis a instrução dada a respeito por um dos nossos Espíritos habituais, da qual ressalta que, malgrado o arrastamento a que o jovem cedeu para a sua infelicidade, ele não sucumbiu à fatalidade. Ele tinha o seu livre-arbítrio e, com mais vontade, poderia ter resistido. Se tivesse sido espírita, teria compreendido que a voz que o solicitava não poderia ser senão de um mau Espírito e as consequências terríveis de um instante de fraqueza.
(Paris, Grupo Desliens, 20 de dezembro de 1868 – Médium: Sr. Nivard) A voz dizia: Vem! Vem! Mas teria sido ineficaz essa voz do tentador, se a ação direta do Espírito não se tivesse feito sentir. O pobre suicida era chamado e impelido. Por quê? Seu passado era a causa da situação dolorosa em que se achava.
Ele apegava-se à vida e temia a morte. No entanto, nesse apelo incessante que ouvia, pergunto eu, ele encontrou força? Não, ele hauriu a fraqueza que o perdeu. Ele venceu os temores, porque esperava no fim encontrar do outro lado da vida o repouso que o lado de cá lhe negava. Ele se enganou, pois o repouso não veio. As trevas o cercam, a consciência lhe censura o ato de fraqueza e o Espírito que o arrastou gargalha ao seu redor e o criva de motejos constantes. O cego não o vê, mas escuta a voz que lhe repete: Vem! Vem! e que depois zomba de suas torturas.
A causa deste caso de obsessão está no passado, como acabo de dizer. O próprio obsessor foi impelido ao suicídio por esse que ele acaba de empurrar para o abismo. Era sua mulher na existência anterior, e tinha sofrido consideravelmente com o deboche e as brutalidades de seu marido. Muito fraca para aceitar a situação que lhe era dada, com resignação e coragem, buscou na morte um refúgio contra os seus males. Ela vingou-se depois, sabeis como. Entretanto, o ato desse infeliz não era fatal. Ele tinha aceito os riscos da tentação; ela era necessária ao seu adiantamento, porque só ela poderia fazer desaparecer a mancha que havia conspurcado sua existência anterior. Ele tinha aceito os seus riscos, com a esperança de ser mais forte, e se havia enganado: sucumbiu. Recomeçará mais tarde? Resistirá? Dele dependerá.
Rogai a Deus por ele, a fim de que lhe dê a calma e a resignação de que tanto necessita, a coragem e a força para não falir nas provas que tiver de suportar mais tarde.
LOUIS NIVARD.
Dissertações espíritas
Sem dúvida ainda há alguns amigos do belo, do grande, do verdadeiro, mas, ao lado, quantos profanadores, quer entre os executantes, quer entre os amadores! Não há mais pintores; só há fazedores! Não é a glória que se persegue; ela vem a passos muito lentos para a nossa geração de pessoas apressadas. Ver o renome e a auréola do talento a coroar uma existência em seu declínio, que é isto? Uma quimera, boa ao menos para os artistas do passado! Então eles tinham tempo para viver; hoje temos apenas o de gozar! Agora é preciso chegar, e prontamente, à fortuna. É preciso fazer um nome por uma feitura original, pela intriga, por todos os meios mais ou menos confessáveis com que a civilização cumula os povos que atingem um progresso imenso para o futuro ou uma decadência sem remissão.
Que importa se a celebridade conquistada desaparece com tanta rapidez quanto a existência do efêmero! Que importa a brevidade do brilho!... É uma eternidade se esse tempo bastou para adquirir fortuna, a chave dos prazeres e do dolce far niente!
É a luta corajosa com a provação que faz o talento; a luta com a fortuna o enerva e o mata!
Tudo cai, periclita, porque não há mais crença!
Pensais que o pintor crê em si mesmo? Sim, por vezes chega a isso, mas em geral não crê senão cegamente, senão no entusiasmo do público, e o aproveita até que um novo capricho venha transportar alhures a torrente de favores que nele penetrava!
Como fazer quadros religiosos ou mitológicos que sensibilizem e comovam, quando desapareceram as ideias que eles representam?
Tem-se talento, esculpe-se o mármore, dá-se-lhe a forma humana. Mas é sempre uma pedra fria e insensível; não há vida! Belas formas, mas não a centelha que cria a imortalidade.
Os mestres da Antiguidade fizeram deuses, porque acreditavam nesses deuses. Os escultores atuais, que neles não creem, fazem apenas homens. Mas venha a fé, mesmo que ilógica e sem um objetivo sério; ela gerará obras-primas, e se a razão os guiar, não haverá limites que ela não possa atingir! Campos imensos, completamente inexplorados, abrem-se à juventude atual, diante de todos aqueles que poderoso sentimento de convicção impele numa direção, seja ela qual for. Literatura, Arquitetura, Pintura, História, tudo receberá do aguilhão espírita o novo batismo de fogo necessário para dar energia e vitalidade à sociedade expirante, porque ela terá insculpido no coração daqueles que a aceitarem, um ardente amor pela Humanidade e uma fé inquebrantável em seu destino.
Um artista, DUCORNET.
Os músicos, ah! são homens como os outros, talvez mais homens, e, a esse título, eles são falíveis e pecadores. Não fui isento de fraquezas, e se Deus me deu vida longa, a fim de me dar tempo de me arrepender, a embriaguez do sucesso, a complacência dos amigos, a adulação dos cortesãos muitas vezes me tiraram os meios. Um maestro é uma potência, neste mundo onde o prazer representa tão grande papel. Aquele cuja arte consiste em seduzir o ouvido, em enternecer o coração, vê muitas ciladas criadas sob seus passos e nelas cai, o infeliz! Ele embriaga-se com a embriaguez dos outros; os aplausos lhe tapam os ouvidos e ele vai direito ao abismo, sem procurar um ponto de apoio para resistir ao arrastamento.
Contudo, a despeito de meus erros, eu tinha fé em Deus. Eu cria na alma que vibrava em mim, e, desprendida de sua caixa sonora, ela prontamente se reconheceu em meio às harmonias da criação e confundiu sua prece com aquelas que se elevavam da Natureza ao infinito, da criatura ao ser incriado!...
Estou feliz pelo sentimento que provocou minha vinda entre os espíritas, porque foi a simpatia que a ditou, e se a princípio a curiosidade me atraiu, é ao meu reconhecimento que deveis minha apreciação da pergunta que foi feita. Eu lá estava, pronto para falar, crendo tudo saber, quando meu orgulho, caindo, desvelou minha ignorância. Fiquei mudo e escutei. Voltei, instruí-me e, quando às palavras acerca da verdade emitidas por vossos instrutores se juntaram a reflexão e a meditação, eu disse para mim mesmo: O grande maestro Rossini, o criador de tantas obras-primas, segundo os homens, ah! não fez senão debulhar algumas das pérolas menos perfeitas do escrínio musical criado pelo mestre dos maestros. Rossini juntou notas, compôs melodias, provou a taça que contém todas as harmonias; ele roubou algumas centelhas do fogo sagrado, mas esse fogo sagrado, nem ele criou, nem os outros! ─ Nós nada inventamos; nós copiamos do grande livro da Natureza e a multidão aplaude quando não deformamos muito a partitura.
Uma dissertação sobre a música celeste!... Quem poderia encarregar-se disso? Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono com essa arte encantadora? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia captar as suas nuanças variadas ao infinito?... Quem possui a esse ponto o sentimento da harmonia?... Não, o homem não foi feito para tais condições!... Mais tarde!... Muito mais tarde!...
Enquanto se espera, talvez eu venha em breve satisfazer o vosso desejo e vos dar minha apreciação sobre o estado atual da música e vos dizer das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá aí introduzir.
Hoje ainda é muito cedo. O assunto é vasto, já o estudei, mas ele ainda está fora do meu alcance. Quando dele eu for senhor, se tal for possível, ou melhor, quando tiver entrevisto tanto quanto me permitir o estado do meu espírito, eu vos satisfarei. Ainda um pouco de tempo. Se só um músico pode bem falar da música do futuro, deve fazê-lo como mestre, e Rossini não quer falar como aprendiz.
ROSSINI.
Obsessões simuladas
“A piedade pelos que sofrem não deve excluir a prudência, e poderia ser uma imprudência estabelecer relações com todos os que se apresentam a vós, sob o império de uma obsessão real ou fingida. É ainda uma prova pela qual deverá passar o Espiritismo, e que lhe servirá para se desembaraçar de todos aqueles que, por sua natureza, embaraçariam o seu caminho. Troçaram, ridicularizaram os espíritas; quiseram amedrontar aqueles a quem a curiosidade atrai para vós, colocando-vos sob o patrocínio satânico. Nada disto teve êxito. Antes de se render, querem assestar uma última bateria que, como todas as outras, resultará em vosso proveito. Não mais podendo acusar-vos de contribuir para o aumento da alienação mental, enviar-vos-ão verdadeiros obsedados, diante dos quais esperam que fracasseis, e obsedados simulados, que vos será impossível curar de um mal imaginário. Tudo isto não retardará nenhum pouco o vosso progresso, mas com a condição de agir com prudência e de aconselhar aqueles que se ocupam dos tratamentos obsessionais a consultarem os seus guias, não só sobre a natureza do mal, mas sobre a realidade das obsessões que eles poderão ter que combater. Isto é importante, e aproveito a ideia que vos foi sugerida, de antes pedir um conselho, para vos recomendar a agir sempre assim no futuro.
“Quanto a essa senhora, ela é sincera e realmente sofredora, mas atualmente nada há que fazer por ela, senão aconselhá-la a pedir, pela prece, a calma e a resignação para suportar corajosamente a sua prova. Não são instruções dos Espíritos que lhe são necessárias; seria mesmo prudente afastá-la de toda ideia de correspondência com eles, e aconselhá-la a entregar-se totalmente aos cuidados da medicina oficial.”
Doutor DEMEURE.
OBSERVAÇÃO: Não é só contra as obsessões simuladas que é prudente se pôr em guarda, mas contra os pedidos de comunicações de todas as naturezas, evocações, conselhos de saúde etc., que poderiam ser armadilhas feitas à boa-fé, de que a malevolência poderia servir-se. Convém, pois, não aceder aos pedidos dessa natureza, senão com conhecimento de causa, e em relação a pessoas conhecidas ou devidamente recomendadas. Os adversários do Espiritismo veem com pesar o desenvolvimento que ele adquire, contrariamente às suas previsões. Eles aguardam e provocam ocasiões de pilhá-lo em falta, quer para acusá-lo, quer para expô-lo ao ridículo. Em semelhante caso, é melhor pecar por excesso de circunspecção do que por imprevidência.
ALLAN KARDEC.