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Fevereiro
Estatística do Espiritismo
Apreciação do Jornal La Solidarite [1]
O jornal La Solidarité de 15 de janeiro de 1869 analisa a estatística do Espiritismo, que publicamos no nosso número precedente; se critica algumas de suas cifras, sentimo-nos feliz por sua adesão ao conjunto do trabalho, que aprecia nestes termos:
“Lamentamos não poder reproduzir, por falta de espaço, as reflexões muito sábias que o Sr. Allan Kardec acrescenta a essa estatística. Limitar-nos-emos a constatar com ele que há espíritas em todos os graus da escala social; que a grande maioria dos espíritas se acha entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes; que o Espiritismo se propagou por toda parte, de alto a baixo na escala social; que a aflição e a infelicidade são os grandes recrutadores do Espiritismo, em consequência das consolações e das esperanças que ele dá aos que choram e lamentam; que o Espiritismo encontra mais fácil acesso entre os incrédulos em matéria religiosa que entre as pessoas que têm uma fé fixa; enfim, que, depois dos fanáticos, os mais refratários às ideias espíritas são as criaturas cujos pensamentos estão todos concentrados na posse e nos prazeres materiais, seja qual for a sua condição.”
É um fato de capital importância e que se constata por toda parte, que “a grande maioria dos espíritas se acha entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes”. Em face deste fato material, como fica a acusação de estupidez, ignorância, loucura, inépcia, lançada tão esturdiamente contra os espíritas pela malevolência?
Propagando-se de alto a baixo da escala, o Espiritismo prova, além disso, que as classes favorecidas compreendem a influência moralizadora sobre as massas, porquanto elas se esforçam por nele penetrar. É que, com efeito, os exemplos que se tem sob os olhos, embora parciais e ainda isolados, demonstram de maneira peremptória que o espírito do proletariado seria muito outro se estivesse imbuído dos princípios da Doutrina Espírita.
A principal objeção do Solidarité, e ela é muito séria, refere-se ao número de espíritas do mundo inteiro. Eis o que ele diz a esse respeito:
“Engana-se muito a Revista Espírita quando estima em apenas seis ou sete milhões o número de espíritas para o mundo inteiro. Evidentemente ela se esquece de contar a Ásia.
“Se pelo termo espírita entendem-se as pessoas que creem na vida de alémtúmulo e nas relações dos vivos com a alma das pessoas mortas, há que contá-los por centenas de milhões. A crença nos Espíritos existe em todos os seguidores do budismo, e pode-se dizer que ela constitui o fundo de todas as religiões do extremo Oriente. Ela é geral sobretudo na China. As três antigas seitas que desde tanto tempo dividem as populações no Médio Império, creem nos manes, nos Espíritos, e professam o seu culto. ─ Pode-se mesmo dizer que este é para elas um terreno comum. Os adoradores do Tao e de Fo aí se encontram com os seguidores do filósofo Confúcio.
“Os sacerdotes da seita de Lao-Tseu, e particularmente os Tao-Tse, ou doutores da Razão, devem às práticas espíritas uma grande parte de sua influência sobre as populações. Esses religiosos interrogam os Espíritos e obtêm respostas escritas que não têm mais nem menos valor que as dos nossos médiuns. São conselhos e avisos considerados como dados aos vivos pelo Espírito de um morto. Aí se encontram revelações de segredos unicamente conhecidos por quem interroga, algumas vezes predições que se realizam ou não, mas que são de natureza a chocar os assistentes e estimular muito os seus desejos, para que se encarreguem de realizar, eles próprios, o oráculo.
“Essa correspondência é obtida por processos que não diferem muito dos processos dos nossos espíritas, mas que, entretanto, devem ser mais aperfeiçoados, se considerarmos a longa experiência dos operadores que os praticam tradicionalmente.
“Eis como nos são descritos por uma testemunha ocular, o Sr. D..., que mora na China há muito tempo e se familiarizou com a língua do país.
“Uma vara de pescar de 50 a 60 centímetros é sustentada pelas extremidades por duas pessoas, das quais uma é o médium e a outra o interrogante. No meio dessa haste é lacrada ou amarrada uma pequena bagueta da mesma madeira, muito parecida com um lápis, pelo tamanho e grossura. Abaixo desse pequeno aparelho é espalhada uma camada de areia, ou uma caixa com milho miúdo. Deslizando maquinalmente sobre a areia ou o milho, a bagueta traça caracteres. À medida que se formam, esses caracteres são lidos e reproduzidos imediatamente num papel, por um letrado presente à sessão. Daí resultam frases e escritos mais ou menos longos, mais ou menos interessantes, mas tendo sempre um valor lógico.
“Se se acredita nos Tao-Tse, esses processos vêm do próprio Lao-Tseu. Ora, se, segundo a História, Lao-Tseu viveu no sexto século antes de Jesus Cristo, é bom lembrar que, conforme a lenda, ele é como o Verbo dos cristãos, anterior ao começo e contemporâneo da grande não-entidade, como se exprimem os doutores da Razão.
“Vê-se que o Espiritismo remonta a uma belíssima antiguidade.
“Isto não prova que ele é verdadeiro? ─ Não, sem dúvida, mas se basta que uma crença seja antiga para ser venerável, e ser forte pelo número de seus partidários para ser respeitada, não conheço outra que tenha mais títulos ao respeito e à veneração dos meus contemporâneos.”
Desnecessário dizer que aderimos completamente a essa retificação, e nos sentimos feliz que ela emane de uma fonte estranha, porque isto prova que não procuramos carregar as tintas do quadro. Nossos leitores apreciarão, como nós, a maneira pela qual esse jornal, que se recomenda por seu caráter sério, encara o Espiritismo. Vê-se que, de sua parte, é uma apreciação que tem fundamento. Sabíamos que as ideias espíritas estão muito espalhadas nos povos do extremo Oriente, e se não as tínhamos feito entrar nas estatísticas, é que, em nossa avaliação, não nos propusemos apresentar, conforme dissemos, senão o movimento do Espiritismo moderno, reservando-nos para fazer mais tarde um estudo especial sobre a anterioridade dessas ideias. Agradecemos muito sinceramente ao autor do artigo por nos haver precedido.
Em outro momento ele diz:
“Cremos que esta incerteza (sobre o número real dos espíritas, sobretudo na França) inicialmente se deve à ausência de declarações positivas por parte dos adeptos; depois ao estado flutuante das crenças. Existe ─ e poderíamos citar em Paris numerosos exemplos ─ uma multidão de pessoas que creem no Espiritismo e que não se gabam disso.”
Isto é perfeitamente justo; assim, só falamos dos espíritas de fato, porquanto, como dissemos, se considerássemos os espíritas por intuição, somente na França eles se contariam por milhões, mas preferimos ficar abaixo e não acima da verdade, para não sermos tachados de exagero. Contudo, é preciso que o acréscimo seja muito sensível, para que certos adversários o tenham levado a cifras hiperbólicas, como o autor da brochura Le Budget du Spiritisme, que vendo sem dúvida os espíritas com lente de aumento, em 1863 os avaliava em vinte milhões apenas na França. (Revista Espírita de junho de 1863).
A propósito da proporção dos sábios oficiais, na categoria do grau de instrução, diz o autor: “Gostaríamos muito de ver a olho nu esses 4% de sábios oficiais; 40.000 para a Europa e 24.000 só para a França. São muitos sábios, e ainda oficiais. 6% de iletrados não é nada.”
A crítica seria fundada se, como supõe o autor, se tratasse de 4% sobre o número aproximado de 600.000 espíritas na França, o que, efetivamente, faria 24.000. Com efeito seria muito, pois se teria dificuldade em encontrar essa cifra de sábios oficiais em toda a população da França. Em tal base, o cálculo evidentemente seria ridículo e o mesmo poder-se-ia dizer dos iletrados. Essa avaliação, portanto, não tem o objetivo de estabelecer o número efetivo dos sábios oficiais espíritas, mas a proporção relativa em que se encontram em relação aos diversos graus de instrução, entre os quais eles estão em minoria. Em outras categorias limitamo-nos a uma simples classificação, sem avaliação numérica em porcentagem. Quando empregamos este último processo, foi para tornar mais evidente a proporção.
Para melhor definir o nosso pensamento, diremos que por sábios oficiais não entendemos todos aqueles cujo saber é constatado por um diploma, mas unicamente os que ocupam posição oficial, como membros de Academias, professores de Faculdades, etc., que assim se acham em mais evidência, e cujos nomes, por esse motivo, os fazem autoridades nas ciências. Sob este ponto de vista, um doutor em Medicina pode ser muito sábio, sem ser um sábio oficial.
A posição oficial influi muito sobre a maneira de encarar certas coisas. Como prova disto citaremos o exemplo de um distinto médico falecido há vários anos, que conhecemos pessoalmente. Ele era, então, grande partidário do Magnetismo, sobre o qual havia escrito, e foi isto que nos pôs em contato com ele. Aumentando a sua reputação, ele conquistou sucessivamente várias posições oficiais. À medida que subia, baixava seu fervor pelo Magnetismo, tanto que, ao chegar ao topo da escala, ele caiu abaixo de zero, pois renegou abertamente suas antigas convicções. Considerações da mesma natureza podem explicar a posição de certas classes no que concerne ao Espiritismo.
As categorias dos aflitos, das criaturas sem inquietude, dos felizes do mundo, dos sensualistas, fornecem ao autor do artigo a seguinte reflexão:
“É pena que isto seja pura fantasia. Nada de sensualistas, compreende-se; Espiritismo e materialismo se excluem. Sessenta aflitos em cem espíritas ainda se compreende. É para estes que choram que as relações com um mundo melhor são preciosas. Mas trinta pessoas sem inquietude em cem, é demais! Se o Espiritismo operasse tais milagres, faria muitas outras conquistas. Fá-las-ia sobretudo entre os felizes do mundo, que são também, quase sempre, os mais inquietos e os mais atormentados.”
Há aqui um erro manifesto, pois pareceria que esse resultado é devido ao Espiritismo, ao passo que é ele que colhe, nessas categorias, mais ou menos adeptos, conforme as predisposições que aí encontra. Estas cifras significam apenas que ele encontra mais adeptos entre os aflitos; um pouco menos entre as pessoas sem inquietude, mas ainda menos entre os felizes do mundo, e nenhum entre os sensualistas.
Inicialmente é preciso entender-se quanto às palavras. Materialismo e sensualismo não são sinônimos e nem sempre caminham lado a lado, pois se veem pessoas, espiritualistas por profissão e por dever, que são muito sensuais, ao passo que há materialistas muito moderados em sua maneira de viver. O materialismo muitas vezes não é para eles senão uma opinião que abraçaram em falta de outra mais racional. Eis por que, quando reconhecem que o Espiritismo enche o vazio feito em sua consciência pela incredulidade, aceitam-no felizes. Ao contrário, os sensualistas são os mais refratários.
Uma coisa muito bizarra é que o Espiritismo encontra mais resistência entre os panteístas em geral do que entre os que são francamente materialistas. Sem dúvida isto é devido a que o panteísta quase sempre cria um sistema, possui algo, ao passo que o materialista nada tem, e esse vazio o inquieta.
Por felizes do mundo entendemos os que passam como tais aos olhos da multidão, porque se podem permitir largamente todos os gozos da vida. É verdade que muitas vezes são eles os mais inquietos e os mais atormentados. Mas por quê? Pelas preocupações que lhes causam a fortuna e a ambição. Ao lado dessas preocupações incessantes, das ansiedades da perda ou do ganho, da confusão dos negócios para uns, dos prazeres para outros, resta-lhes muito pouco tempo para se ocupar com o futuro. Não podendo ter paz de alma senão com a condição de renunciar ao que constitui o objetivo de sua cobiça, o Espiritismo pouco os afeta, filosoficamente falando. Com exceção das penas do coração, que não poupam a ninguém, a não ser os egoístas, os tormentos da vida estão quase sempre, para aqueles, nas decepções da vaidade, do desejo de possuir, de brilhar, de mandar. Assim, pode-se dizer que eles se atormentam a si mesmos.
A calma, a tranquilidade, ao contrário, encontram-se mais particularmente nas posições modestas, quando assegurado o bem-estar da vida. Aí há muito pouca ou nenhuma ambição; contentam-se com o que têm, sem se atormentarem por enriquecer, correndo os riscos aleatórios da agiotagem ou da especulação. É a esses que denominamos sem inquietude, relativamente falando; por menor que seja a elevação de seu pensamento, de boa vontade eles se ocupam de coisas sérias; o Espiritismo lhes oferece um atraente assunto de meditação, e eles o aceitam mais facilmente do que aqueles a quem o turbilhão do mundo suscita uma febre contínua.
Tais são os motivos dessa classificação que, como se vê, não é tão fantasista quanto supõe o autor do artigo. Nós lhe agradecemos por nos ter fornecido ocasião de apontar erros que outros poderiam ter cometido, por não termos sido bastante explícito.
Em nossa estatística, omitimos duas funções importantes por sua natureza, e porque contam um número bastante grande de adeptos sinceros e devotados. São os prefeitos e os juízes de paz, que estão na quinta classe, com os meirinhos e os comissários de polícia.
Uma outra omissão, contra a qual reclamaram com justiça e que insistem para que a reparemos, é a dos poloneses, na categoria dos povos. Ela é perfeitamente fundada, porquanto o Espiritismo conta, nessa nação, numerosos e fervorosos adeptos, desde o início. Como classe, a Polônia vem em quinto lugar, entre a Rússia e a Alemanha.
Para completar a nomenclatura, teria sido preciso incluir outros países, como, por exemplo, a Holanda, que viria após a Inglaterra; Portugal, depois da Grécia; as Províncias danubianas, onde há muitos espíritas, mas sobre as quais não temos dados bastante positivos para lhes assinalar a classe. Quanto à Turquia, a quase totalidade dos adeptos é composta de franceses, italianos e gregos.
Uma classificação mais racional e mais exata do que pelas regiões territoriais, seria pelas raças ou nacionalidades, que não estão confinadas por limites circunscritos e levam a toda parte por onde se espalham, sua maior ou menor aptidão para assimilar as ideias espíritas. Deste ponto de vista, numa mesma região, por vezes, haveria que fazer diversas distinções.
A comunicação seguinte foi dada num grupo de Paris, a propósito da classe que ocupam os alfaiates entre as profissões industriais.
(Paris, 6 de janeiro de 1869. Grupo Desliens. Médium: Sr. Leymarie)
Criastes categorias, caro mestre, à frente das quais colocastes certas profissões. Sabeis o que, em nossa opinião, arrasta certas pessoas a se fazerem espíritas? São as mil perseguições que elas sofrem em suas profissões. Os primeiros de que falais devem ter ordem, economia, cuidado, gosto, ser um pouco artistas, e depois ainda ser pacientes, saber esperar, escutar, sorrir e saudar com certa elegância; mas, após todas essas pequenas convenções, mais sérias do que se pensa, ainda é preciso calcular, organizar seu caixa pelas dívidas e haveres, e sofrer, sofrer continuamente.
Em contato com homens de todas as classes, comentando os lamentos, as confidências, os enganos, os rostos falsos, eles aprendem muito! Levando essa vida múltipla, sua inteligência se abre por comparação; seu espírito se fortalece pela decepção e pelo sofrimento, e eis por que certas corporações compreendem e aplaudem todos os progressos. Elas gostam do teatro francês, da bela arquitetura, do desenho, da Filosofia; amam a liberdade e todas as suas consequências. Sempre à frente e na mira do que consola e faz esperar, elas se dão ao Espiritismo, que para elas é uma força, uma promessa ardente, uma verdade que engrandece o sacrifício e, mais do que acreditais, a parte cotada como a nº 1 vive de sacrifícios.
SONNET.
“Lamentamos não poder reproduzir, por falta de espaço, as reflexões muito sábias que o Sr. Allan Kardec acrescenta a essa estatística. Limitar-nos-emos a constatar com ele que há espíritas em todos os graus da escala social; que a grande maioria dos espíritas se acha entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes; que o Espiritismo se propagou por toda parte, de alto a baixo na escala social; que a aflição e a infelicidade são os grandes recrutadores do Espiritismo, em consequência das consolações e das esperanças que ele dá aos que choram e lamentam; que o Espiritismo encontra mais fácil acesso entre os incrédulos em matéria religiosa que entre as pessoas que têm uma fé fixa; enfim, que, depois dos fanáticos, os mais refratários às ideias espíritas são as criaturas cujos pensamentos estão todos concentrados na posse e nos prazeres materiais, seja qual for a sua condição.”
É um fato de capital importância e que se constata por toda parte, que “a grande maioria dos espíritas se acha entre pessoas esclarecidas e não entre os ignorantes”. Em face deste fato material, como fica a acusação de estupidez, ignorância, loucura, inépcia, lançada tão esturdiamente contra os espíritas pela malevolência?
Propagando-se de alto a baixo da escala, o Espiritismo prova, além disso, que as classes favorecidas compreendem a influência moralizadora sobre as massas, porquanto elas se esforçam por nele penetrar. É que, com efeito, os exemplos que se tem sob os olhos, embora parciais e ainda isolados, demonstram de maneira peremptória que o espírito do proletariado seria muito outro se estivesse imbuído dos princípios da Doutrina Espírita.
A principal objeção do Solidarité, e ela é muito séria, refere-se ao número de espíritas do mundo inteiro. Eis o que ele diz a esse respeito:
“Engana-se muito a Revista Espírita quando estima em apenas seis ou sete milhões o número de espíritas para o mundo inteiro. Evidentemente ela se esquece de contar a Ásia.
“Se pelo termo espírita entendem-se as pessoas que creem na vida de alémtúmulo e nas relações dos vivos com a alma das pessoas mortas, há que contá-los por centenas de milhões. A crença nos Espíritos existe em todos os seguidores do budismo, e pode-se dizer que ela constitui o fundo de todas as religiões do extremo Oriente. Ela é geral sobretudo na China. As três antigas seitas que desde tanto tempo dividem as populações no Médio Império, creem nos manes, nos Espíritos, e professam o seu culto. ─ Pode-se mesmo dizer que este é para elas um terreno comum. Os adoradores do Tao e de Fo aí se encontram com os seguidores do filósofo Confúcio.
“Os sacerdotes da seita de Lao-Tseu, e particularmente os Tao-Tse, ou doutores da Razão, devem às práticas espíritas uma grande parte de sua influência sobre as populações. Esses religiosos interrogam os Espíritos e obtêm respostas escritas que não têm mais nem menos valor que as dos nossos médiuns. São conselhos e avisos considerados como dados aos vivos pelo Espírito de um morto. Aí se encontram revelações de segredos unicamente conhecidos por quem interroga, algumas vezes predições que se realizam ou não, mas que são de natureza a chocar os assistentes e estimular muito os seus desejos, para que se encarreguem de realizar, eles próprios, o oráculo.
“Essa correspondência é obtida por processos que não diferem muito dos processos dos nossos espíritas, mas que, entretanto, devem ser mais aperfeiçoados, se considerarmos a longa experiência dos operadores que os praticam tradicionalmente.
“Eis como nos são descritos por uma testemunha ocular, o Sr. D..., que mora na China há muito tempo e se familiarizou com a língua do país.
“Uma vara de pescar de 50 a 60 centímetros é sustentada pelas extremidades por duas pessoas, das quais uma é o médium e a outra o interrogante. No meio dessa haste é lacrada ou amarrada uma pequena bagueta da mesma madeira, muito parecida com um lápis, pelo tamanho e grossura. Abaixo desse pequeno aparelho é espalhada uma camada de areia, ou uma caixa com milho miúdo. Deslizando maquinalmente sobre a areia ou o milho, a bagueta traça caracteres. À medida que se formam, esses caracteres são lidos e reproduzidos imediatamente num papel, por um letrado presente à sessão. Daí resultam frases e escritos mais ou menos longos, mais ou menos interessantes, mas tendo sempre um valor lógico.
“Se se acredita nos Tao-Tse, esses processos vêm do próprio Lao-Tseu. Ora, se, segundo a História, Lao-Tseu viveu no sexto século antes de Jesus Cristo, é bom lembrar que, conforme a lenda, ele é como o Verbo dos cristãos, anterior ao começo e contemporâneo da grande não-entidade, como se exprimem os doutores da Razão.
“Vê-se que o Espiritismo remonta a uma belíssima antiguidade.
“Isto não prova que ele é verdadeiro? ─ Não, sem dúvida, mas se basta que uma crença seja antiga para ser venerável, e ser forte pelo número de seus partidários para ser respeitada, não conheço outra que tenha mais títulos ao respeito e à veneração dos meus contemporâneos.”
Desnecessário dizer que aderimos completamente a essa retificação, e nos sentimos feliz que ela emane de uma fonte estranha, porque isto prova que não procuramos carregar as tintas do quadro. Nossos leitores apreciarão, como nós, a maneira pela qual esse jornal, que se recomenda por seu caráter sério, encara o Espiritismo. Vê-se que, de sua parte, é uma apreciação que tem fundamento. Sabíamos que as ideias espíritas estão muito espalhadas nos povos do extremo Oriente, e se não as tínhamos feito entrar nas estatísticas, é que, em nossa avaliação, não nos propusemos apresentar, conforme dissemos, senão o movimento do Espiritismo moderno, reservando-nos para fazer mais tarde um estudo especial sobre a anterioridade dessas ideias. Agradecemos muito sinceramente ao autor do artigo por nos haver precedido.
Em outro momento ele diz:
“Cremos que esta incerteza (sobre o número real dos espíritas, sobretudo na França) inicialmente se deve à ausência de declarações positivas por parte dos adeptos; depois ao estado flutuante das crenças. Existe ─ e poderíamos citar em Paris numerosos exemplos ─ uma multidão de pessoas que creem no Espiritismo e que não se gabam disso.”
Isto é perfeitamente justo; assim, só falamos dos espíritas de fato, porquanto, como dissemos, se considerássemos os espíritas por intuição, somente na França eles se contariam por milhões, mas preferimos ficar abaixo e não acima da verdade, para não sermos tachados de exagero. Contudo, é preciso que o acréscimo seja muito sensível, para que certos adversários o tenham levado a cifras hiperbólicas, como o autor da brochura Le Budget du Spiritisme, que vendo sem dúvida os espíritas com lente de aumento, em 1863 os avaliava em vinte milhões apenas na França. (Revista Espírita de junho de 1863).
A propósito da proporção dos sábios oficiais, na categoria do grau de instrução, diz o autor: “Gostaríamos muito de ver a olho nu esses 4% de sábios oficiais; 40.000 para a Europa e 24.000 só para a França. São muitos sábios, e ainda oficiais. 6% de iletrados não é nada.”
A crítica seria fundada se, como supõe o autor, se tratasse de 4% sobre o número aproximado de 600.000 espíritas na França, o que, efetivamente, faria 24.000. Com efeito seria muito, pois se teria dificuldade em encontrar essa cifra de sábios oficiais em toda a população da França. Em tal base, o cálculo evidentemente seria ridículo e o mesmo poder-se-ia dizer dos iletrados. Essa avaliação, portanto, não tem o objetivo de estabelecer o número efetivo dos sábios oficiais espíritas, mas a proporção relativa em que se encontram em relação aos diversos graus de instrução, entre os quais eles estão em minoria. Em outras categorias limitamo-nos a uma simples classificação, sem avaliação numérica em porcentagem. Quando empregamos este último processo, foi para tornar mais evidente a proporção.
Para melhor definir o nosso pensamento, diremos que por sábios oficiais não entendemos todos aqueles cujo saber é constatado por um diploma, mas unicamente os que ocupam posição oficial, como membros de Academias, professores de Faculdades, etc., que assim se acham em mais evidência, e cujos nomes, por esse motivo, os fazem autoridades nas ciências. Sob este ponto de vista, um doutor em Medicina pode ser muito sábio, sem ser um sábio oficial.
A posição oficial influi muito sobre a maneira de encarar certas coisas. Como prova disto citaremos o exemplo de um distinto médico falecido há vários anos, que conhecemos pessoalmente. Ele era, então, grande partidário do Magnetismo, sobre o qual havia escrito, e foi isto que nos pôs em contato com ele. Aumentando a sua reputação, ele conquistou sucessivamente várias posições oficiais. À medida que subia, baixava seu fervor pelo Magnetismo, tanto que, ao chegar ao topo da escala, ele caiu abaixo de zero, pois renegou abertamente suas antigas convicções. Considerações da mesma natureza podem explicar a posição de certas classes no que concerne ao Espiritismo.
As categorias dos aflitos, das criaturas sem inquietude, dos felizes do mundo, dos sensualistas, fornecem ao autor do artigo a seguinte reflexão:
“É pena que isto seja pura fantasia. Nada de sensualistas, compreende-se; Espiritismo e materialismo se excluem. Sessenta aflitos em cem espíritas ainda se compreende. É para estes que choram que as relações com um mundo melhor são preciosas. Mas trinta pessoas sem inquietude em cem, é demais! Se o Espiritismo operasse tais milagres, faria muitas outras conquistas. Fá-las-ia sobretudo entre os felizes do mundo, que são também, quase sempre, os mais inquietos e os mais atormentados.”
Há aqui um erro manifesto, pois pareceria que esse resultado é devido ao Espiritismo, ao passo que é ele que colhe, nessas categorias, mais ou menos adeptos, conforme as predisposições que aí encontra. Estas cifras significam apenas que ele encontra mais adeptos entre os aflitos; um pouco menos entre as pessoas sem inquietude, mas ainda menos entre os felizes do mundo, e nenhum entre os sensualistas.
Inicialmente é preciso entender-se quanto às palavras. Materialismo e sensualismo não são sinônimos e nem sempre caminham lado a lado, pois se veem pessoas, espiritualistas por profissão e por dever, que são muito sensuais, ao passo que há materialistas muito moderados em sua maneira de viver. O materialismo muitas vezes não é para eles senão uma opinião que abraçaram em falta de outra mais racional. Eis por que, quando reconhecem que o Espiritismo enche o vazio feito em sua consciência pela incredulidade, aceitam-no felizes. Ao contrário, os sensualistas são os mais refratários.
Uma coisa muito bizarra é que o Espiritismo encontra mais resistência entre os panteístas em geral do que entre os que são francamente materialistas. Sem dúvida isto é devido a que o panteísta quase sempre cria um sistema, possui algo, ao passo que o materialista nada tem, e esse vazio o inquieta.
Por felizes do mundo entendemos os que passam como tais aos olhos da multidão, porque se podem permitir largamente todos os gozos da vida. É verdade que muitas vezes são eles os mais inquietos e os mais atormentados. Mas por quê? Pelas preocupações que lhes causam a fortuna e a ambição. Ao lado dessas preocupações incessantes, das ansiedades da perda ou do ganho, da confusão dos negócios para uns, dos prazeres para outros, resta-lhes muito pouco tempo para se ocupar com o futuro. Não podendo ter paz de alma senão com a condição de renunciar ao que constitui o objetivo de sua cobiça, o Espiritismo pouco os afeta, filosoficamente falando. Com exceção das penas do coração, que não poupam a ninguém, a não ser os egoístas, os tormentos da vida estão quase sempre, para aqueles, nas decepções da vaidade, do desejo de possuir, de brilhar, de mandar. Assim, pode-se dizer que eles se atormentam a si mesmos.
A calma, a tranquilidade, ao contrário, encontram-se mais particularmente nas posições modestas, quando assegurado o bem-estar da vida. Aí há muito pouca ou nenhuma ambição; contentam-se com o que têm, sem se atormentarem por enriquecer, correndo os riscos aleatórios da agiotagem ou da especulação. É a esses que denominamos sem inquietude, relativamente falando; por menor que seja a elevação de seu pensamento, de boa vontade eles se ocupam de coisas sérias; o Espiritismo lhes oferece um atraente assunto de meditação, e eles o aceitam mais facilmente do que aqueles a quem o turbilhão do mundo suscita uma febre contínua.
Tais são os motivos dessa classificação que, como se vê, não é tão fantasista quanto supõe o autor do artigo. Nós lhe agradecemos por nos ter fornecido ocasião de apontar erros que outros poderiam ter cometido, por não termos sido bastante explícito.
Em nossa estatística, omitimos duas funções importantes por sua natureza, e porque contam um número bastante grande de adeptos sinceros e devotados. São os prefeitos e os juízes de paz, que estão na quinta classe, com os meirinhos e os comissários de polícia.
Uma outra omissão, contra a qual reclamaram com justiça e que insistem para que a reparemos, é a dos poloneses, na categoria dos povos. Ela é perfeitamente fundada, porquanto o Espiritismo conta, nessa nação, numerosos e fervorosos adeptos, desde o início. Como classe, a Polônia vem em quinto lugar, entre a Rússia e a Alemanha.
Para completar a nomenclatura, teria sido preciso incluir outros países, como, por exemplo, a Holanda, que viria após a Inglaterra; Portugal, depois da Grécia; as Províncias danubianas, onde há muitos espíritas, mas sobre as quais não temos dados bastante positivos para lhes assinalar a classe. Quanto à Turquia, a quase totalidade dos adeptos é composta de franceses, italianos e gregos.
Uma classificação mais racional e mais exata do que pelas regiões territoriais, seria pelas raças ou nacionalidades, que não estão confinadas por limites circunscritos e levam a toda parte por onde se espalham, sua maior ou menor aptidão para assimilar as ideias espíritas. Deste ponto de vista, numa mesma região, por vezes, haveria que fazer diversas distinções.
A comunicação seguinte foi dada num grupo de Paris, a propósito da classe que ocupam os alfaiates entre as profissões industriais.
(Paris, 6 de janeiro de 1869. Grupo Desliens. Médium: Sr. Leymarie)
Criastes categorias, caro mestre, à frente das quais colocastes certas profissões. Sabeis o que, em nossa opinião, arrasta certas pessoas a se fazerem espíritas? São as mil perseguições que elas sofrem em suas profissões. Os primeiros de que falais devem ter ordem, economia, cuidado, gosto, ser um pouco artistas, e depois ainda ser pacientes, saber esperar, escutar, sorrir e saudar com certa elegância; mas, após todas essas pequenas convenções, mais sérias do que se pensa, ainda é preciso calcular, organizar seu caixa pelas dívidas e haveres, e sofrer, sofrer continuamente.
Em contato com homens de todas as classes, comentando os lamentos, as confidências, os enganos, os rostos falsos, eles aprendem muito! Levando essa vida múltipla, sua inteligência se abre por comparação; seu espírito se fortalece pela decepção e pelo sofrimento, e eis por que certas corporações compreendem e aplaudem todos os progressos. Elas gostam do teatro francês, da bela arquitetura, do desenho, da Filosofia; amam a liberdade e todas as suas consequências. Sempre à frente e na mira do que consola e faz esperar, elas se dão ao Espiritismo, que para elas é uma força, uma promessa ardente, uma verdade que engrandece o sacrifício e, mais do que acreditais, a parte cotada como a nº 1 vive de sacrifícios.
SONNET.
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[1]
La Solidarité sai duas vezes por mês. Preço; 10 francos por ano. Paris. Livraria das Ciências Sociais, Rua des
Saint-Pères, 13.
Poder do ridículo
Lendo um jornal, encontramos esta frase proverbial: Na França o ridículo sempre mata. Isto nos sugeriu as seguintes reflexões:
Por que na França, antes que alhures? É que aqui, mais que alhures, o espírito, ao mesmo tempo fino, cáustico e jovial, apreende logo de saída o lado alegre ou ridículo das coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por assim dizer farejao; descobre-o onde outros não o percebiam e o põe em relevo com habilidade. Mas o espírito francês quer, antes de tudo, o bom gosto, a urbanidade até na troça; ele ri de boa vontade de uma pilhéria fina, delicada, sobretudo espirituosa, ao passo que as caricaturas de mau gosto, a crítica pesada, grosseira, causticante, semelhante à pata do urso ou ao soco do rústico, lhe repugnam, porque ele tem uma repulsa instintiva pela trivialidade.
Talvez digam que certos fatos modernos parecem desmentir essas qualidades. Haveria muito a dizer sobre as causas deste desvio, que não deixa de ser muito real, mas que é apenas parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter nacional, como demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, en passant, que esses acontecimentos que surpreendem as pessoas de bom gosto, em grande parte, são devidos à curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas, escutai a multidão à saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo, resume-se nestas palavras: É desagradável, contudo viemos, apenas para poder dizer que vimos uma excentricidade. Lá não voltam, mas, esperando que a multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso está feito, e é tudo o que pedem. Dáse o mesmo em certos eventos supostamente literários.
A aptidão do espírito francês para captar o lado cômico das coisas faz do ridículo uma verdadeira potência, maior na França do que em outros países, mas é certo dizer que sempre mata?
É preciso distinguir o que se pode chamar de ridículo intrínseco, isto é, inerente à própria coisa, e o ridículo extrínseco, vindo de fora e derramado sobre uma coisa. Sem dúvida este último pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o que é vulnerável; quando ataca as coisas que não dão margem, desliza sem alcançá-las. A mais grotesca caricatura de uma estátua irrepreensível nada tira de seu mérito e não a faz decair na opinião, pois cada um pode apreciá-la.
O ridículo não tem força senão quando fere com precisão, quando ressalta com espírito e finura os defeitos reais; é então que ele mata; mas quando cai no falso, absolutamente não mata, ou melhor, ele se mata. Para que o adágio acima seja completamente verdadeiro, seria preciso dizer: “Na França o ridículo sempre mata o que é ridículo.” O que realmente é verdadeiro, bom e belo jamais é ridículo. Se ridicularizarmos uma personalidade notoriamente respeitável, como, por exemplo, o cura Vianney, inspiraremos repulsa, mesmo aos incrédulos, tanto é verdade que o que é respeitável em si mesmo é sempre respeitado pela opinião pública.
Como nem todos têm o mesmo gosto nem a mesma maneira de ver, o que é verdadeiro, bom e belo para uns, pode não ser para outros. Então quem será o juiz? O ser coletivo que se chama todo mundo, e contra cujas decisões em vão protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser momentaneamente desviadas pela crítica ignorante, malévola ou inconsciente, mas não as massas, cujas opiniões sempre acabam triunfando. Se a maioria dos convivas num banquete gosta de um prato, por mais que digais que é ruim, não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.
Isto nos explica por que o ridículo, derramado em profusão sobre o Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não foi por não ter sido revirado em todos os sentidos, transfigurado, desnaturado, grotescamente ridicularizado por seus antagonistas. Contudo, após dez anos de encarniçada agressão, ele está mais forte do que nunca. É porque ele é como a estátua de que falamos há pouco.
Em definitivo, sobre o que se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito do Espiritismo? No que realmente apresenta o flanco à crítica: os abusos, as excentricidades, as exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os aspectos, as práticas absurdas, que são apenas a sua paródia, de que o Espiritismo sério jamais tomou a defesa, mas que, ao contrário, tem sempre desautorizado. Assim, o ridículo não feriu, e não pôde morder senão o que era ridículo na maneira pela qual certas pessoas pouco esclarecidas concebem o Espiritismo. Se ele ainda não matou inteiramente esses abusos, deu-lhes um golpe mortal, e era de justiça.
Portanto, o Espiritismo verdadeiro só ganhou desembaraçando-se da chaga de seus parasitas, e foram os seus inimigos que disso se encarregaram. Quanto à Doutrina propriamente dita, é de notar que ela quase sempre ficou fora do debate. Contudo, é a parte principal, a alma da causa. Seus adversários bem compreenderam que o ridículo não podia atingi-la; eles sentiram que a fina lâmina da troça espirituosa deslizaria sobre a couraça, por isso a atacaram com o tacape da injúria grosseira e o soco do rústico, mas com tão pouco sucesso.
Desde o princípio, o Espiritismo pareceu a certos indivíduos à cata de intrigas, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos tocados pela pureza de sua moral do que pelas chances que aí entreviam, meteram-se sob a égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São os que podem ser chamados espíritas de circunstância.
Que teria acontecido a esta doutrina se ela não tivesse usado toda a sua influência para frustrar e desacreditar as manobras da exploração? Teríamos visto os charlatães pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega daquilo que há de mais sagrado: o respeito aos mortos com a pretensa arte dos feiticeiros, adivinhos, tiradores de cartas, ledores da sorte, suprindo os Espíritos pela fraude, quando estes não vêm. Logo teríamos visto as manifestações levadas para os palcos, truncadas pelos passes de escamoteação; gabinetes de consultas espíritas anunciados publicamente e revendidos, como agências de emprego, conforme a importância da clientela, como se a faculdade mediúnica pudesse ser transmitida como uma quotaparte de uma empresa.
Por seu silêncio, que teria sido uma aprovação tácita, a Doutrina ter-se-ia tornado solidária com esses abusos, diremos mais, cúmplice deles. Então a crítica estaria em condições favoráveis, porque poderia, com razão, ter atacado a Doutrina que, por sua tolerância, teria assumido a responsabilidade do ridículo e, por conseguinte, da justa reprovação lançada sobre os abusos; talvez tivesse ela levado mais de um século para erguer-se desse malogro. Seria preciso não compreender o caráter do Espiritismo e, ainda menos, seus verdadeiros interesses, para crer que tais auxiliares pudessem ser úteis à sua propagação e fossem próprios para torná-lo considerado como uma coisa santa e respeitável.
Estigmatizando a exploração, como fizemos, temos a certeza de haver preservado a Doutrina de um verdadeiro perigo, perigo maior que a má vontade de seus antagonistas confessos, porque isso resultaria em seu descrédito. Ela ter-lhe-ia, por isso mesmo, oferecido um lado vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus princípios. Não ignoramos que contra nós suscitamos a animosidade dos exploradores e que nos afastamos de seus partidários, mas, que importa? Nosso dever é arvorar a causa da Doutrina e não os interesses deles, e esse dever nós cumpriremos com perseverança e firmeza, até o fim.
Não era pouca coisa lutar contra a invasão do charlatanismo, num século como este, sobretudo um charlatanismo secundado, por vezes suscitado pelos mais implacáveis inimigos do Espiritismo, porque, depois de haver fracassado pelos argumentos, eles compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o ridículo.
Por isto, o mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo, a fim de desacreditá-lo na opinião pública.
Todos os espíritas sinceros compreenderam o perigo que assinalamos e nos secundaram em nossos esforços, reagindo por seu lado contra as tendências que ameaçavam desenvolver-se. Não são alguns casos de manifestações, supondo-os reais, dados como espetáculo, como aperitivo à minoria, que dão verdadeiros prosélitos ao Espiritismo, porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita. Os próprios incrédulos são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente se comunicam, não será para servirem de comparsas ou parceiros a tanto por sessão; eis por que riem deles. Eles acham ridículo que nessas cenas se misturem nomes respeitáveis, e estão cheios de razão. Para uma pessoa que seja levada ao Espiritismo por essa via, sempre supondo um fato real, haverá cem que serão desviadas, sem mais querer ouvir dele falar. A impressão será outra nos meios onde nada de equívoco pode suscitar suspeitas à sinceridade, à boa-fé e ao desinteresse, onde a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se daí não saem convencidos, pelo menos não levam a ideia de uma charlatanice.
O Espiritismo, portanto, nada tem a ganhar, e só poderia perder apoiando-se na exploração, ao passo que os exploradores é que se beneficiariam. Seu futuro não está na crença de um indivíduo em tal ou qual caso de manifestação; está inteirinho no ascendente que ele conquistar pela moralidade. Foi por esse caminho que ele triunfou e continuará triunfando sobre as manobras de seus adversários. Sua força está no seu caráter moral, e isso ninguém lhe arrebatará.
O Espiritismo entra numa fase solene, mas na qual ainda terá que sustentar grandes lutas. É necessário, pois, que seja forte por si mesmo e, para ser forte, é preciso que seja respeitável. Cabe aos seus adeptos dedicados fazer que ele seja respeitado, inicialmente pregando-o, pessoalmente, pela palavra e pelo exemplo, e depois, em nome da Doutrina, desaprovando tudo quanto possa prejudicar a consideração de que ele deve ser cercado. É assim que ele poderá desafiar as intrigas, a troça e o ridículo.
Por que na França, antes que alhures? É que aqui, mais que alhures, o espírito, ao mesmo tempo fino, cáustico e jovial, apreende logo de saída o lado alegre ou ridículo das coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por assim dizer farejao; descobre-o onde outros não o percebiam e o põe em relevo com habilidade. Mas o espírito francês quer, antes de tudo, o bom gosto, a urbanidade até na troça; ele ri de boa vontade de uma pilhéria fina, delicada, sobretudo espirituosa, ao passo que as caricaturas de mau gosto, a crítica pesada, grosseira, causticante, semelhante à pata do urso ou ao soco do rústico, lhe repugnam, porque ele tem uma repulsa instintiva pela trivialidade.
Talvez digam que certos fatos modernos parecem desmentir essas qualidades. Haveria muito a dizer sobre as causas deste desvio, que não deixa de ser muito real, mas que é apenas parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter nacional, como demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, en passant, que esses acontecimentos que surpreendem as pessoas de bom gosto, em grande parte, são devidos à curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas, escutai a multidão à saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo, resume-se nestas palavras: É desagradável, contudo viemos, apenas para poder dizer que vimos uma excentricidade. Lá não voltam, mas, esperando que a multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso está feito, e é tudo o que pedem. Dáse o mesmo em certos eventos supostamente literários.
A aptidão do espírito francês para captar o lado cômico das coisas faz do ridículo uma verdadeira potência, maior na França do que em outros países, mas é certo dizer que sempre mata?
É preciso distinguir o que se pode chamar de ridículo intrínseco, isto é, inerente à própria coisa, e o ridículo extrínseco, vindo de fora e derramado sobre uma coisa. Sem dúvida este último pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o que é vulnerável; quando ataca as coisas que não dão margem, desliza sem alcançá-las. A mais grotesca caricatura de uma estátua irrepreensível nada tira de seu mérito e não a faz decair na opinião, pois cada um pode apreciá-la.
O ridículo não tem força senão quando fere com precisão, quando ressalta com espírito e finura os defeitos reais; é então que ele mata; mas quando cai no falso, absolutamente não mata, ou melhor, ele se mata. Para que o adágio acima seja completamente verdadeiro, seria preciso dizer: “Na França o ridículo sempre mata o que é ridículo.” O que realmente é verdadeiro, bom e belo jamais é ridículo. Se ridicularizarmos uma personalidade notoriamente respeitável, como, por exemplo, o cura Vianney, inspiraremos repulsa, mesmo aos incrédulos, tanto é verdade que o que é respeitável em si mesmo é sempre respeitado pela opinião pública.
Como nem todos têm o mesmo gosto nem a mesma maneira de ver, o que é verdadeiro, bom e belo para uns, pode não ser para outros. Então quem será o juiz? O ser coletivo que se chama todo mundo, e contra cujas decisões em vão protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser momentaneamente desviadas pela crítica ignorante, malévola ou inconsciente, mas não as massas, cujas opiniões sempre acabam triunfando. Se a maioria dos convivas num banquete gosta de um prato, por mais que digais que é ruim, não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.
Isto nos explica por que o ridículo, derramado em profusão sobre o Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não foi por não ter sido revirado em todos os sentidos, transfigurado, desnaturado, grotescamente ridicularizado por seus antagonistas. Contudo, após dez anos de encarniçada agressão, ele está mais forte do que nunca. É porque ele é como a estátua de que falamos há pouco.
Em definitivo, sobre o que se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito do Espiritismo? No que realmente apresenta o flanco à crítica: os abusos, as excentricidades, as exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os aspectos, as práticas absurdas, que são apenas a sua paródia, de que o Espiritismo sério jamais tomou a defesa, mas que, ao contrário, tem sempre desautorizado. Assim, o ridículo não feriu, e não pôde morder senão o que era ridículo na maneira pela qual certas pessoas pouco esclarecidas concebem o Espiritismo. Se ele ainda não matou inteiramente esses abusos, deu-lhes um golpe mortal, e era de justiça.
Portanto, o Espiritismo verdadeiro só ganhou desembaraçando-se da chaga de seus parasitas, e foram os seus inimigos que disso se encarregaram. Quanto à Doutrina propriamente dita, é de notar que ela quase sempre ficou fora do debate. Contudo, é a parte principal, a alma da causa. Seus adversários bem compreenderam que o ridículo não podia atingi-la; eles sentiram que a fina lâmina da troça espirituosa deslizaria sobre a couraça, por isso a atacaram com o tacape da injúria grosseira e o soco do rústico, mas com tão pouco sucesso.
Desde o princípio, o Espiritismo pareceu a certos indivíduos à cata de intrigas, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos tocados pela pureza de sua moral do que pelas chances que aí entreviam, meteram-se sob a égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São os que podem ser chamados espíritas de circunstância.
Que teria acontecido a esta doutrina se ela não tivesse usado toda a sua influência para frustrar e desacreditar as manobras da exploração? Teríamos visto os charlatães pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega daquilo que há de mais sagrado: o respeito aos mortos com a pretensa arte dos feiticeiros, adivinhos, tiradores de cartas, ledores da sorte, suprindo os Espíritos pela fraude, quando estes não vêm. Logo teríamos visto as manifestações levadas para os palcos, truncadas pelos passes de escamoteação; gabinetes de consultas espíritas anunciados publicamente e revendidos, como agências de emprego, conforme a importância da clientela, como se a faculdade mediúnica pudesse ser transmitida como uma quotaparte de uma empresa.
Por seu silêncio, que teria sido uma aprovação tácita, a Doutrina ter-se-ia tornado solidária com esses abusos, diremos mais, cúmplice deles. Então a crítica estaria em condições favoráveis, porque poderia, com razão, ter atacado a Doutrina que, por sua tolerância, teria assumido a responsabilidade do ridículo e, por conseguinte, da justa reprovação lançada sobre os abusos; talvez tivesse ela levado mais de um século para erguer-se desse malogro. Seria preciso não compreender o caráter do Espiritismo e, ainda menos, seus verdadeiros interesses, para crer que tais auxiliares pudessem ser úteis à sua propagação e fossem próprios para torná-lo considerado como uma coisa santa e respeitável.
Estigmatizando a exploração, como fizemos, temos a certeza de haver preservado a Doutrina de um verdadeiro perigo, perigo maior que a má vontade de seus antagonistas confessos, porque isso resultaria em seu descrédito. Ela ter-lhe-ia, por isso mesmo, oferecido um lado vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus princípios. Não ignoramos que contra nós suscitamos a animosidade dos exploradores e que nos afastamos de seus partidários, mas, que importa? Nosso dever é arvorar a causa da Doutrina e não os interesses deles, e esse dever nós cumpriremos com perseverança e firmeza, até o fim.
Não era pouca coisa lutar contra a invasão do charlatanismo, num século como este, sobretudo um charlatanismo secundado, por vezes suscitado pelos mais implacáveis inimigos do Espiritismo, porque, depois de haver fracassado pelos argumentos, eles compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o ridículo.
Por isto, o mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo, a fim de desacreditá-lo na opinião pública.
Todos os espíritas sinceros compreenderam o perigo que assinalamos e nos secundaram em nossos esforços, reagindo por seu lado contra as tendências que ameaçavam desenvolver-se. Não são alguns casos de manifestações, supondo-os reais, dados como espetáculo, como aperitivo à minoria, que dão verdadeiros prosélitos ao Espiritismo, porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita. Os próprios incrédulos são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente se comunicam, não será para servirem de comparsas ou parceiros a tanto por sessão; eis por que riem deles. Eles acham ridículo que nessas cenas se misturem nomes respeitáveis, e estão cheios de razão. Para uma pessoa que seja levada ao Espiritismo por essa via, sempre supondo um fato real, haverá cem que serão desviadas, sem mais querer ouvir dele falar. A impressão será outra nos meios onde nada de equívoco pode suscitar suspeitas à sinceridade, à boa-fé e ao desinteresse, onde a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se daí não saem convencidos, pelo menos não levam a ideia de uma charlatanice.
O Espiritismo, portanto, nada tem a ganhar, e só poderia perder apoiando-se na exploração, ao passo que os exploradores é que se beneficiariam. Seu futuro não está na crença de um indivíduo em tal ou qual caso de manifestação; está inteirinho no ascendente que ele conquistar pela moralidade. Foi por esse caminho que ele triunfou e continuará triunfando sobre as manobras de seus adversários. Sua força está no seu caráter moral, e isso ninguém lhe arrebatará.
O Espiritismo entra numa fase solene, mas na qual ainda terá que sustentar grandes lutas. É necessário, pois, que seja forte por si mesmo e, para ser forte, é preciso que seja respeitável. Cabe aos seus adeptos dedicados fazer que ele seja respeitado, inicialmente pregando-o, pessoalmente, pela palavra e pelo exemplo, e depois, em nome da Doutrina, desaprovando tudo quanto possa prejudicar a consideração de que ele deve ser cercado. É assim que ele poderá desafiar as intrigas, a troça e o ridículo.
Um caso de loucura causada pelo medo do diabo
Numa cidadezinha da antiga Borgonha, que nos abstemos de citar, mas que, se necessário, poderíamos declinar, existe um pobre velho que a fé espírita sustenta em sua miséria, vivendo minguadamente da venda ambulante de bugigangas pelas localidades vizinhas. É um homem bom, compassivo, que presta serviços sempre que se oferece ocasião, e certamente acima de sua posição pela elevação de seus pensamentos. O Espiritismo lhe deu a fé em Deus e na imortalidade, a coragem e a resignação.
Um dia, num de seus giros, encontrou uma jovem viúva, mãe de várias crianças que, após a morte de seu marido que ela adorava, perdida de desespero e vendo-se sem recursos, perdeu a razão completamente. Atraído pela simpatia para essa grande dor, ele procurou ver essa mulher infeliz, a fim de julgar se o seu estado era irremediável. A miséria em que a encontrou redobrou sua compaixão. Entretanto, também ele pobre, só lhe podia dar consolo.
A um de nossos colegas da Sociedade de Paris que o conhecia e tinha ido vê-lo, disse ele:
“Eu a vi várias vezes; um dia eu lhe disse, em tom de persuasão, que aquele que ela lamentava não estava irremediavelmente perdido; que ele estava perto dela, embora ela não o visse, e que eu podia, se ela quisesse, fazê-lo conversar com ela. A estas palavras, seu rosto pareceu abrir-se e um raio de esperança brilhou em seus olhos apagados.
“─ Não me enganais? perguntou ela. Ah! Se isto pudesse ser verdade!
“Sendo bom médium escrevente, obtive na sessão uma curta comunicação de seu marido, que lhe causou suave satisfação. Vim vê-la várias vezes, e todas as vezes seu marido conversava com ela por meu intermédio. Ela o interrogava e ele respondia de maneira a não lhe deixar nenhuma dúvida sobre a sua presença, porque lhe falava de coisas que eu mesmo ignorava; ele a encorajava, a exortava à resignação e lhe assegurava que um dia iriam encontrar-se.
“Pouco a pouco, sob o império dessa doce emoção e desses pensamentos consoladores, a calma voltou à sua alma, sua razão lhe voltava a olhos vistos e, ao cabo de alguns meses, ela estava completamente curada e pôde entregar-se ao trabalho, que deveria alimentá-la e aos seus filhos.
“Essa cura fez grande sensação entre os camponeses da aldeia. Assim, tudo ia bem. Agradeci a Deus por me haver permitido tirar essa infeliz das garras do desespero; também agradeci aos bons Espíritos por sua assistência, pois todo mundo sabia que essa cura tinha sido produzida pelo Espiritismo, e eu me alegrava. Mas eu tinha o cuidado de lhes dizer que nisso nada havia de sobrenatural, e lhes explicava o melhor que podia os princípios da sublime Doutrina que dá tanta consolação e que já fez tão grande número de pessoas felizes.
“Essa cura inesperada perturbou vivamente o padre da região. Ele visitou a viúva, que tinha abandonado completamente a partir do início da sua moléstia. Ele soube, por ela, como e por intermédio de quem haviam ela e os filhos recuperado a saúde; que agora tinha a certeza que não estava separada do marido; que a alegria que sentia, a confiança que isto lhe dava na bondade de Deus, a fé em que estava animada tinham sido a principal causa de seu restabelecimento.
“Ai de mim! Todo o bem no qual eu havia posto tanta perseverança em produzir ia ser destruído. O cura fez a infeliz viúva ir à sacristia; começou por lançar a dúvida em sua alma; depois a fez crer que eu era um súdito de Satã; que eu não agia senão em seu nome, e que ela estava agora em seu poder. Agiu tão bem que a pobre mulher, que teria tido necessidade dos maiores cuidados, enfraquecida por tantas emoções, recaiu num estado pior que da primeira vez. Hoje por toda parte ela só vê diabos, demônios e o inferno. Sua loucura é completa e devem levá-la a um hospício de alienados.”
O que havia causado a primeira loucura daquela mulher? O desespero. O que lhe havia restaurado a razão? As consolações do Espiritismo. O que a fez recair numa loucura incurável? O fanatismo, o medo do diabo e do inferno. Este fato dispensa qualquer comentário. Como se vê, o clero fez mal em pretender, como tem feito em muitos escritos e sermões, que o Espiritismo leva à loucura, quando, com justiça, se lhe pode devolver o argumento. Alias, aí estão as estatísticas oficiais para provar que a exaltação das ideias religiosas entram em parte notável nos casos de loucura. Antes de jogar pedra em alguém, seria prudente ver se ela não poderá cair sobre si mesmo.
Que impressão esse fato deve produzir na população daquela aldeia? Certamente não será em favor da causa sustentada pelo senhor cura, porque o resultado material é evidente. Se ele pensa em recrutar prosélitos pela crença no diabo, engana-se redondamente, e é triste ver a Igreja fazer dessa crença uma pedra angular da fé. (Ver A Gênese segundo o Espiritismo, cap. XVII, 27).
Um dia, num de seus giros, encontrou uma jovem viúva, mãe de várias crianças que, após a morte de seu marido que ela adorava, perdida de desespero e vendo-se sem recursos, perdeu a razão completamente. Atraído pela simpatia para essa grande dor, ele procurou ver essa mulher infeliz, a fim de julgar se o seu estado era irremediável. A miséria em que a encontrou redobrou sua compaixão. Entretanto, também ele pobre, só lhe podia dar consolo.
A um de nossos colegas da Sociedade de Paris que o conhecia e tinha ido vê-lo, disse ele:
“Eu a vi várias vezes; um dia eu lhe disse, em tom de persuasão, que aquele que ela lamentava não estava irremediavelmente perdido; que ele estava perto dela, embora ela não o visse, e que eu podia, se ela quisesse, fazê-lo conversar com ela. A estas palavras, seu rosto pareceu abrir-se e um raio de esperança brilhou em seus olhos apagados.
“─ Não me enganais? perguntou ela. Ah! Se isto pudesse ser verdade!
“Sendo bom médium escrevente, obtive na sessão uma curta comunicação de seu marido, que lhe causou suave satisfação. Vim vê-la várias vezes, e todas as vezes seu marido conversava com ela por meu intermédio. Ela o interrogava e ele respondia de maneira a não lhe deixar nenhuma dúvida sobre a sua presença, porque lhe falava de coisas que eu mesmo ignorava; ele a encorajava, a exortava à resignação e lhe assegurava que um dia iriam encontrar-se.
“Pouco a pouco, sob o império dessa doce emoção e desses pensamentos consoladores, a calma voltou à sua alma, sua razão lhe voltava a olhos vistos e, ao cabo de alguns meses, ela estava completamente curada e pôde entregar-se ao trabalho, que deveria alimentá-la e aos seus filhos.
“Essa cura fez grande sensação entre os camponeses da aldeia. Assim, tudo ia bem. Agradeci a Deus por me haver permitido tirar essa infeliz das garras do desespero; também agradeci aos bons Espíritos por sua assistência, pois todo mundo sabia que essa cura tinha sido produzida pelo Espiritismo, e eu me alegrava. Mas eu tinha o cuidado de lhes dizer que nisso nada havia de sobrenatural, e lhes explicava o melhor que podia os princípios da sublime Doutrina que dá tanta consolação e que já fez tão grande número de pessoas felizes.
“Essa cura inesperada perturbou vivamente o padre da região. Ele visitou a viúva, que tinha abandonado completamente a partir do início da sua moléstia. Ele soube, por ela, como e por intermédio de quem haviam ela e os filhos recuperado a saúde; que agora tinha a certeza que não estava separada do marido; que a alegria que sentia, a confiança que isto lhe dava na bondade de Deus, a fé em que estava animada tinham sido a principal causa de seu restabelecimento.
“Ai de mim! Todo o bem no qual eu havia posto tanta perseverança em produzir ia ser destruído. O cura fez a infeliz viúva ir à sacristia; começou por lançar a dúvida em sua alma; depois a fez crer que eu era um súdito de Satã; que eu não agia senão em seu nome, e que ela estava agora em seu poder. Agiu tão bem que a pobre mulher, que teria tido necessidade dos maiores cuidados, enfraquecida por tantas emoções, recaiu num estado pior que da primeira vez. Hoje por toda parte ela só vê diabos, demônios e o inferno. Sua loucura é completa e devem levá-la a um hospício de alienados.”
O que havia causado a primeira loucura daquela mulher? O desespero. O que lhe havia restaurado a razão? As consolações do Espiritismo. O que a fez recair numa loucura incurável? O fanatismo, o medo do diabo e do inferno. Este fato dispensa qualquer comentário. Como se vê, o clero fez mal em pretender, como tem feito em muitos escritos e sermões, que o Espiritismo leva à loucura, quando, com justiça, se lhe pode devolver o argumento. Alias, aí estão as estatísticas oficiais para provar que a exaltação das ideias religiosas entram em parte notável nos casos de loucura. Antes de jogar pedra em alguém, seria prudente ver se ela não poderá cair sobre si mesmo.
Que impressão esse fato deve produzir na população daquela aldeia? Certamente não será em favor da causa sustentada pelo senhor cura, porque o resultado material é evidente. Se ele pensa em recrutar prosélitos pela crença no diabo, engana-se redondamente, e é triste ver a Igreja fazer dessa crença uma pedra angular da fé. (Ver A Gênese segundo o Espiritismo, cap. XVII, 27).
Um Espírito que julga sonhar
Várias vezes têm sido vistos Espíritos que ainda se julgam vivos, porque seu corpo fluídico lhes parece tangível como seu corpo material. Eis um deles, numa posição pouco comum: não se julgando morto, tem consciência de sua intangibilidade; mas como em vida era profundamente materialista, em crença e em gênero de vida, imagina que sonha, e tudo quanto lhe foi dito não pode arrancá-lo do erro, tão persuadido está que tudo acaba com o corpo. Era um homem de muito espírito, escritor distinto, que designaremos pelo nome de Luís. Ele fazia parte do grupo de celebridades que partiram em dezembro último para o mundo dos Espíritos. Há alguns anos veio à nossa casa, onde testemunhou diversos casos de mediunidade. Ele aqui viu principalmente um sonâmbulo, que lhe deu evidentes provas de lucidez em coisas que lhe eram inteiramente pessoais, mas nem por isto se convenceu da existência de um princípio espiritual.
Numa sessão do grupo do Sr. Desliens, a 22 de dezembro, veio espontaneamente comunicar-se por um dos médiuns, Sr. Leymarie, sem que ninguém tivesse pensado nele. Tinha morrido há oito dias. Eis o que fez escrever:
“Que sonho singular!... Sinto-me arrastado por um turbilhão, cuja direção não compreendo... Alguns amigos que eu julgava mortos convidaram-me para um passeio, e ei-nos arrastados. Para onde vamos?... Olha! Que brincadeira esquisita! A um grupo espírita!... Ah! Que farsa engraçada, ver essa boa gente conscienciosamente reunida!... Eu conhecia uma dessas figuras... Onde o vi? Não sei... (Era o Sr. Desliens, que se achava na sessão acima mencionada). Talvez em casa desse bravo Allan Kardec, que uma vez me quis provar que eu tinha uma alma, fazendo-me apalpar a imortalidade. Mas em vão apelaram aos Espíritos, às almas, tudo falhou; como nos jantares muito preparados, todos os pratos servidos foram errados e bem errados. Entretanto eu não desconfiava da boa-fé do grão-sacerdote. Julgo-o um homem honesto, mas uma orgulhosa vítima dos Espíritos da assim chamada erraticidade.
“Eu vos ouvi, senhores e senhoras, e vos apresento meus profundos respeitos. Escreveis, ao que me parece, e vossas mãos ágeis sem dúvida vão transcrever o pensamento dos invisíveis!... Espetáculo inocente!... Sonho insensato este meu! Eis um que escreve o que digo a mim mesmo... Mas absolutamente não sois divertidos, nem mesmo meus amigos, que têm rostos compassivos como os vossos. (Os Espíritos dos que haviam morrido antes dele, e que ele julga ver em sonho).
“Eh! Por certo é uma estranha mania deste valente povo francês! Tiraram-lhe de uma vez a instrução, a lei, o direito, a liberdade de pensar e de escrever, e esse bravo povo mergulha nas visões e nos sonhos. Dorme acordado esse país das Gálias e é maravilhoso vê-lo agir!
“Entretanto, ei-los em busca de um problema insolúvel, condenado pela Ciência, pelos pensadores, pelos trabalhadores!... Falta-lhes instrução... A ignorância é a lei de Loyola largamente aplicada... Eles têm à sua frente todas as liberdades; podem atingir todos os abusos, destruí-los, enfim tornar-se seu senhor, senhor viril, econômico, sério, legal, e, como crianças nos cueiros, falta-lhes a religião, um papa, um cura, a primeira comunhão, o batismo, as andadeiras em tudo e sempre. Faltam chupetas a essas crianças grandes, e os grupos espíritas e espiritualistas lhas dão.
“Ah! Se na verdade houvesse um átimo de verdade em vossas elucubrações, mas haveria para um materialista matéria para o suicídio!... Olhai! Eu vivi largamente; eu desprezei a carne, revoltei-a; ri dos deveres de família, de amizade. Apaixonado, usei e abusei de todas as volúpias, e isto com a convicção que obedecia às atrações da matéria, única lei verdadeira em vossa Terra, e isto eu renovarei ao meu despertar, com a mesma fúria, o mesmo ardor, a mesma habilidade. Tomarei a um amigo, a um vizinho, sua mulher, sua filha ou sua pupila, pouco importa, desde que, estando mergulhado nas delícias da matéria, rendo homenagem a essa divindade, senhora de todas as ações humanas.
“Mas, e se eu estivesse enganado?... Se tivesse deixado passar a verdade?... Se, realmente, houvesse outras vidas anteriores e existências sucessivas após a morte?... Se o Espírito fosse uma personalidade vivaz, eterna, progressiva, rindo da morte, retemperando-se no que chamamos provação?... Então haveria um Deus de justiça e de bondade?... Eu seria um miserável... e a escola materialista, culpada do crime de lesa-nação, teria tentado decapitar a verdade, a razão!... Eu seria, ou antes, nós seríamos profundos celerados, refinados supostos liberais!... Oh! Então, se estivésseis com a verdade, eu daria um tiro nos miolos ao despertar, tão certo quanto me chamo...”
Na sessão da Sociedade de Paris, de 8 de janeiro, o mesmo Espírito vem manifestar-se de novo, não pela escrita, mas pela palavra, servindo-se do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo.Ele falou durante uma hora, e foi uma cena das mais curiosas, porque o médium tomou a sua pose, seus gestos, sua voz e sua linguagem, a ponto de ser facilmente reconhecido pelos que o haviam conhecido. A conversa foi recolhida com cuidado e fielmente reproduzida, mas sua extensão não permite publicá-la. Ademais, não foi senão o desenvolvimento de sua tese. A todas as objeções e perguntas que lhe foram feitas, ele pretendeu tudo explicar pelo estado de sonho e, naturalmente, perdeu-se num dédalo de sofismas. Ele próprio lembrou os principais episódios da sessão a que aludira na sua comunicação escrita, e disse:
─ Eu bem tinha razão de dizer que tudo havia falhado. Olha! Eis a prova. Eu tinha feito esta pergunta: Há um Deus? Então, todos os vossos pretensos Espíritos responderam afirmativamente. Vedes que estavam à margem da verdade e não sabem mais do que vós.
Uma pergunta, entretanto, o embaraçou muito, assim procurou constantemente escapatórias para dela fugir. Foi esta:
─ O corpo pelo qual nos falais não é o vosso, pois é magro, e o vosso era gordo. Onde está o vosso verdadeiro corpo? Ele não está aqui, pois não estais em vossa casa. Quando a gente sonha, fica no próprio leito. Ide, pois, ver em vosso leito se o vosso corpo lá está e dizei-nos: Como podeis aqui estar sem o vosso corpo?
Encostado na parede por estas reiteradas perguntas, às quais apenas respondia pelas palavras: “Efeitos bizarros dos sonhos”, acabou dizendo: “Bem, vejo que me queríeis despertar. Deixai-me.” Desde então crê sonhar sempre.
Numa outra reunião, um Espírito fez sobre este fenômeno a seguinte comunicação:
“Eis aqui uma substituição de pessoa, um disfarce. O Espírito encarnado recebe a liberdade ou cai na inação. Digo inação, isto é, a contemplação do que se passa. Ele está na posição de um homem que momentaneamente empresta o seu cômodo e assiste às diversas cenas que aí são representadas com auxílio de seus móveis. Se prefere gozar da liberdade, ele pode, a menos que tenha interesse em ficar como espectador.
“Não é raro que um Espírito atue e fale com o corpo de outro; deveis compreender a possibilidade desse fenômeno, quando sabeis que o Espírito pode retirar-se com o seu perispírito para mais ou menos longe de seu envoltório corporal. Quando isto acontece sem que nenhum Espírito aproveite para tomar o lugar, há catalepsia. Quando um Espírito deseja aí entrar para agir e tomar por um instante sua parte na encarnação, ele une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse contato e dá movimento à máquina. Mas os movimentos, a voz, não são mais os mesmos, porque os fluidos perispirituais não mais afetam o sistema nervoso da mesma maneira que o verdadeiro ocupante.
“Essa ocupação jamais pode ser definitiva; para isto, seria necessária a desagregação absoluta do primeiro perispírito, o que determinaria a morte forçosamente. Ela não pode ser de longa duração, porque o novo perispírito, não tendo sido unido a esse corpo desde a formação deste, nele não tem raízes; não tendo sido modelado por esse corpo, ele não é adequado ao jogo dos órgãos; o Espírito intruso aí não está numa posição normal; ele é incomodado em seus movimentos, razão pela qual deixa essa vestimenta de empréstimo, porque dela não mais necessita.
“Quanto à posição particular do Espírito em questão, ele não veio voluntariamente ao corpo de que se serviu para falar; foi atraído pelo próprio Espírito de Morin, que quis desfrutar o seu embaraço; o outro, porque cedeu ao secreto desejo de se exibir, ainda e sempre, como cético e trocista, aproveitou a ocasião que se lhe apresentava. O papel um tanto ridículo que representou, por assim dizer malgrado seu, usando sofismas para explicar sua posição, é uma espécie de humilhação, cujo amargor sentirá ao despertar, e que lhe será proveitosa.”
OBSERVAÇÃO: O despertar desse Espírito não poderá deixar de dar lugar a instrutivas observações. Como vimos, em vida ele era um tipo de materialista sensualista; jamais teria aceito o Espiritismo. Os homens dessa categoria buscam as consolações da vida nos prazeres materiais; eles não são da escola de Büchner pelo estudo, mas, porque essa doutrina liberta do constrangimento imposto pela espiritualidade, ela deve, em sua opinião, estar certa. Para eles o Espiritismo não é um benefício, mas um estorvo; não há provas que possam dobrar sua obstinação; eles repelem-nas, menos por convicção do que por medo de que seja uma verdade.
Numa sessão do grupo do Sr. Desliens, a 22 de dezembro, veio espontaneamente comunicar-se por um dos médiuns, Sr. Leymarie, sem que ninguém tivesse pensado nele. Tinha morrido há oito dias. Eis o que fez escrever:
“Que sonho singular!... Sinto-me arrastado por um turbilhão, cuja direção não compreendo... Alguns amigos que eu julgava mortos convidaram-me para um passeio, e ei-nos arrastados. Para onde vamos?... Olha! Que brincadeira esquisita! A um grupo espírita!... Ah! Que farsa engraçada, ver essa boa gente conscienciosamente reunida!... Eu conhecia uma dessas figuras... Onde o vi? Não sei... (Era o Sr. Desliens, que se achava na sessão acima mencionada). Talvez em casa desse bravo Allan Kardec, que uma vez me quis provar que eu tinha uma alma, fazendo-me apalpar a imortalidade. Mas em vão apelaram aos Espíritos, às almas, tudo falhou; como nos jantares muito preparados, todos os pratos servidos foram errados e bem errados. Entretanto eu não desconfiava da boa-fé do grão-sacerdote. Julgo-o um homem honesto, mas uma orgulhosa vítima dos Espíritos da assim chamada erraticidade.
“Eu vos ouvi, senhores e senhoras, e vos apresento meus profundos respeitos. Escreveis, ao que me parece, e vossas mãos ágeis sem dúvida vão transcrever o pensamento dos invisíveis!... Espetáculo inocente!... Sonho insensato este meu! Eis um que escreve o que digo a mim mesmo... Mas absolutamente não sois divertidos, nem mesmo meus amigos, que têm rostos compassivos como os vossos. (Os Espíritos dos que haviam morrido antes dele, e que ele julga ver em sonho).
“Eh! Por certo é uma estranha mania deste valente povo francês! Tiraram-lhe de uma vez a instrução, a lei, o direito, a liberdade de pensar e de escrever, e esse bravo povo mergulha nas visões e nos sonhos. Dorme acordado esse país das Gálias e é maravilhoso vê-lo agir!
“Entretanto, ei-los em busca de um problema insolúvel, condenado pela Ciência, pelos pensadores, pelos trabalhadores!... Falta-lhes instrução... A ignorância é a lei de Loyola largamente aplicada... Eles têm à sua frente todas as liberdades; podem atingir todos os abusos, destruí-los, enfim tornar-se seu senhor, senhor viril, econômico, sério, legal, e, como crianças nos cueiros, falta-lhes a religião, um papa, um cura, a primeira comunhão, o batismo, as andadeiras em tudo e sempre. Faltam chupetas a essas crianças grandes, e os grupos espíritas e espiritualistas lhas dão.
“Ah! Se na verdade houvesse um átimo de verdade em vossas elucubrações, mas haveria para um materialista matéria para o suicídio!... Olhai! Eu vivi largamente; eu desprezei a carne, revoltei-a; ri dos deveres de família, de amizade. Apaixonado, usei e abusei de todas as volúpias, e isto com a convicção que obedecia às atrações da matéria, única lei verdadeira em vossa Terra, e isto eu renovarei ao meu despertar, com a mesma fúria, o mesmo ardor, a mesma habilidade. Tomarei a um amigo, a um vizinho, sua mulher, sua filha ou sua pupila, pouco importa, desde que, estando mergulhado nas delícias da matéria, rendo homenagem a essa divindade, senhora de todas as ações humanas.
“Mas, e se eu estivesse enganado?... Se tivesse deixado passar a verdade?... Se, realmente, houvesse outras vidas anteriores e existências sucessivas após a morte?... Se o Espírito fosse uma personalidade vivaz, eterna, progressiva, rindo da morte, retemperando-se no que chamamos provação?... Então haveria um Deus de justiça e de bondade?... Eu seria um miserável... e a escola materialista, culpada do crime de lesa-nação, teria tentado decapitar a verdade, a razão!... Eu seria, ou antes, nós seríamos profundos celerados, refinados supostos liberais!... Oh! Então, se estivésseis com a verdade, eu daria um tiro nos miolos ao despertar, tão certo quanto me chamo...”
Na sessão da Sociedade de Paris, de 8 de janeiro, o mesmo Espírito vem manifestar-se de novo, não pela escrita, mas pela palavra, servindo-se do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo.Ele falou durante uma hora, e foi uma cena das mais curiosas, porque o médium tomou a sua pose, seus gestos, sua voz e sua linguagem, a ponto de ser facilmente reconhecido pelos que o haviam conhecido. A conversa foi recolhida com cuidado e fielmente reproduzida, mas sua extensão não permite publicá-la. Ademais, não foi senão o desenvolvimento de sua tese. A todas as objeções e perguntas que lhe foram feitas, ele pretendeu tudo explicar pelo estado de sonho e, naturalmente, perdeu-se num dédalo de sofismas. Ele próprio lembrou os principais episódios da sessão a que aludira na sua comunicação escrita, e disse:
─ Eu bem tinha razão de dizer que tudo havia falhado. Olha! Eis a prova. Eu tinha feito esta pergunta: Há um Deus? Então, todos os vossos pretensos Espíritos responderam afirmativamente. Vedes que estavam à margem da verdade e não sabem mais do que vós.
Uma pergunta, entretanto, o embaraçou muito, assim procurou constantemente escapatórias para dela fugir. Foi esta:
─ O corpo pelo qual nos falais não é o vosso, pois é magro, e o vosso era gordo. Onde está o vosso verdadeiro corpo? Ele não está aqui, pois não estais em vossa casa. Quando a gente sonha, fica no próprio leito. Ide, pois, ver em vosso leito se o vosso corpo lá está e dizei-nos: Como podeis aqui estar sem o vosso corpo?
Encostado na parede por estas reiteradas perguntas, às quais apenas respondia pelas palavras: “Efeitos bizarros dos sonhos”, acabou dizendo: “Bem, vejo que me queríeis despertar. Deixai-me.” Desde então crê sonhar sempre.
Numa outra reunião, um Espírito fez sobre este fenômeno a seguinte comunicação:
“Eis aqui uma substituição de pessoa, um disfarce. O Espírito encarnado recebe a liberdade ou cai na inação. Digo inação, isto é, a contemplação do que se passa. Ele está na posição de um homem que momentaneamente empresta o seu cômodo e assiste às diversas cenas que aí são representadas com auxílio de seus móveis. Se prefere gozar da liberdade, ele pode, a menos que tenha interesse em ficar como espectador.
“Não é raro que um Espírito atue e fale com o corpo de outro; deveis compreender a possibilidade desse fenômeno, quando sabeis que o Espírito pode retirar-se com o seu perispírito para mais ou menos longe de seu envoltório corporal. Quando isto acontece sem que nenhum Espírito aproveite para tomar o lugar, há catalepsia. Quando um Espírito deseja aí entrar para agir e tomar por um instante sua parte na encarnação, ele une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse contato e dá movimento à máquina. Mas os movimentos, a voz, não são mais os mesmos, porque os fluidos perispirituais não mais afetam o sistema nervoso da mesma maneira que o verdadeiro ocupante.
“Essa ocupação jamais pode ser definitiva; para isto, seria necessária a desagregação absoluta do primeiro perispírito, o que determinaria a morte forçosamente. Ela não pode ser de longa duração, porque o novo perispírito, não tendo sido unido a esse corpo desde a formação deste, nele não tem raízes; não tendo sido modelado por esse corpo, ele não é adequado ao jogo dos órgãos; o Espírito intruso aí não está numa posição normal; ele é incomodado em seus movimentos, razão pela qual deixa essa vestimenta de empréstimo, porque dela não mais necessita.
“Quanto à posição particular do Espírito em questão, ele não veio voluntariamente ao corpo de que se serviu para falar; foi atraído pelo próprio Espírito de Morin, que quis desfrutar o seu embaraço; o outro, porque cedeu ao secreto desejo de se exibir, ainda e sempre, como cético e trocista, aproveitou a ocasião que se lhe apresentava. O papel um tanto ridículo que representou, por assim dizer malgrado seu, usando sofismas para explicar sua posição, é uma espécie de humilhação, cujo amargor sentirá ao despertar, e que lhe será proveitosa.”
OBSERVAÇÃO: O despertar desse Espírito não poderá deixar de dar lugar a instrutivas observações. Como vimos, em vida ele era um tipo de materialista sensualista; jamais teria aceito o Espiritismo. Os homens dessa categoria buscam as consolações da vida nos prazeres materiais; eles não são da escola de Büchner pelo estudo, mas, porque essa doutrina liberta do constrangimento imposto pela espiritualidade, ela deve, em sua opinião, estar certa. Para eles o Espiritismo não é um benefício, mas um estorvo; não há provas que possam dobrar sua obstinação; eles repelem-nas, menos por convicção do que por medo de que seja uma verdade.
Um Espírito que se julga proprietário
Em casa de um dos membros da Sociedade de Paris que faz reuniões espíritas, desde algum tempo vinham bater à porta, e quando iam abrir, não encontravam ninguém. Os toques de campainha eram dados com força e como que por alguém que estivesse determinado a entrar. Tendo sido tomadas todas as precauções para se assegurar de que o fato não era devido a uma causa acidental, nem à malevolência, concluiu-se que devia ser uma manifestação. Num dia de sessão o dono da casa pediu ao visitante invisível a bondade de se dar a conhecer e dizer o que desejava. Eis as duas comunicações que deu:
I
(Paris, 22 de dezembro de 1868)
I
(Paris, 22 de dezembro de 1868)
“Agradeço-vos, senhor, o amável convite para tomar a palavra e, considerando que me encorajais, vencerei minha timidez para vos externar meu desejo francamente.
“Para começar, devo dizer que nem sempre fui rico. Nasci pobre, e se triunfei, devo-o a mim só. Não vos direi, como tantos outros, que cheguei a Paris com uma mão na frente e outra atrás; é uma velha lenda que não mais convence; mas eu tinha ardor, e o espírito especulador por excelência. Quando menino, se eu emprestava três bolas, a pessoa que tomava emprestado tinha que devolver quatro. Negociava com tudo o que tinha e ficava feliz ao ver pouco a pouco engrossar o meu tesouro. É verdade que circunstâncias infelizes me despojaram várias vezes; eu era fraco; outros mais fortes apoderaram-se do meu ganho e eu tinha que recomeçar tudo. Mas eu era perseverante.
“Pouco a pouco deixei a infância; minhas ideias cresceram. Menino, tinha explorado os camaradas; moço, explorava os companheiros de oficina. Eu fazia carretos; era amigo de todo mundo, mas cobrava pelo meu trabalho e pela minha amizade. “Ele é agradável, diziam, mas não se lhe deve falar em dar.” He! he! É assim que se faz. Ide, pois, ver esses belos filhos de hoje, que gastam tudo o que possuem no jogo e no café! Eles arruínam-se e se endividam, de alto a baixo da escala. Eu deixava que os outros corressem como loucos, aos trancos e barrancos; eu andava lenta e prudentemente. Assim cheguei ao porto e adquiri uma fortuna considerável.
“Era feliz. Tinha mulher e filhos. Ela, um pouco vaidosa, os outros, gastadores. Pensava que com a idade tudo isto desapareceria. Mas não. Entretanto eu os contive muito tempo pelas rédeas. Mas um dia fiquei doente. Chamaram o médico, que fez muito mal à minha bolsa. Depois... perdi o discernimento...
“Quando recuperei a razão, tudo ia lindamente! Minha mulher recebia visitas; meus filhos tinham carruagens, cavalos, criados, secretário, que sei eu! Todo um exército voraz que se atirou sobre o meu pobre patrimônio, tão penosamente adquirido, para consumi-lo.
“Entretanto, logo percebi que a desordem estava organizada; não gastavam senão as rendas, mas as gastavam largamente. Eram bastante ricos; não tinham mais necessidade de capitalizar como o bom velho; era preciso gozar e não entesourar... E eu ficava de boca aberta, sem saber o que dizer, porque se erguia a voz, não era escutado; eles fingiam não me ver. Desde então sou uma nulidade; os criados não me enxotam ainda, embora a minha roupa não seja compatível com o luxo dos cômodos, mas não prestam atenção em mim. Sento-me, levanto-me, esbarro nos visitantes, detenho os criados. Parece que nada sentem. Contudo, tenho vigor, espero, e vós podeis testemunhá-lo, vós que me ouvistes tocar. Creio que é de propósito; sem dúvida querem tornar-me louco para se livrarem de mim.
“Tal era minha situação, quando vim visitar uma das minhas casas, velho hábito que ainda conservo, embora eu não seja mais o dono. Vi construir tudo. Foram os meus escudos que pagaram tudo; e eu gosto dessas casas, cuja renda enriquece meus filhos ingratos.
“Assim, cá estava eu em visita, quando soube que espíritas aqui se reuniam. Isto me interessou. Inquiri sobre o Espiritismo e soube que os espíritas pretendiam explicar todas as coisas. Como minha situação me parece pouco clara, não me aborreceria se recebesse, a respeito, o conselho dos Espíritos. Não sou nem incrédulo nem curioso; desejo ver e crer, ser esclarecido, e se vós me reconduzirdes à posição de governar tudo em minha casa, palavra de proprietário, não subirei o vosso aluguel enquanto viver.”
“Para começar, devo dizer que nem sempre fui rico. Nasci pobre, e se triunfei, devo-o a mim só. Não vos direi, como tantos outros, que cheguei a Paris com uma mão na frente e outra atrás; é uma velha lenda que não mais convence; mas eu tinha ardor, e o espírito especulador por excelência. Quando menino, se eu emprestava três bolas, a pessoa que tomava emprestado tinha que devolver quatro. Negociava com tudo o que tinha e ficava feliz ao ver pouco a pouco engrossar o meu tesouro. É verdade que circunstâncias infelizes me despojaram várias vezes; eu era fraco; outros mais fortes apoderaram-se do meu ganho e eu tinha que recomeçar tudo. Mas eu era perseverante.
“Pouco a pouco deixei a infância; minhas ideias cresceram. Menino, tinha explorado os camaradas; moço, explorava os companheiros de oficina. Eu fazia carretos; era amigo de todo mundo, mas cobrava pelo meu trabalho e pela minha amizade. “Ele é agradável, diziam, mas não se lhe deve falar em dar.” He! he! É assim que se faz. Ide, pois, ver esses belos filhos de hoje, que gastam tudo o que possuem no jogo e no café! Eles arruínam-se e se endividam, de alto a baixo da escala. Eu deixava que os outros corressem como loucos, aos trancos e barrancos; eu andava lenta e prudentemente. Assim cheguei ao porto e adquiri uma fortuna considerável.
“Era feliz. Tinha mulher e filhos. Ela, um pouco vaidosa, os outros, gastadores. Pensava que com a idade tudo isto desapareceria. Mas não. Entretanto eu os contive muito tempo pelas rédeas. Mas um dia fiquei doente. Chamaram o médico, que fez muito mal à minha bolsa. Depois... perdi o discernimento...
“Quando recuperei a razão, tudo ia lindamente! Minha mulher recebia visitas; meus filhos tinham carruagens, cavalos, criados, secretário, que sei eu! Todo um exército voraz que se atirou sobre o meu pobre patrimônio, tão penosamente adquirido, para consumi-lo.
“Entretanto, logo percebi que a desordem estava organizada; não gastavam senão as rendas, mas as gastavam largamente. Eram bastante ricos; não tinham mais necessidade de capitalizar como o bom velho; era preciso gozar e não entesourar... E eu ficava de boca aberta, sem saber o que dizer, porque se erguia a voz, não era escutado; eles fingiam não me ver. Desde então sou uma nulidade; os criados não me enxotam ainda, embora a minha roupa não seja compatível com o luxo dos cômodos, mas não prestam atenção em mim. Sento-me, levanto-me, esbarro nos visitantes, detenho os criados. Parece que nada sentem. Contudo, tenho vigor, espero, e vós podeis testemunhá-lo, vós que me ouvistes tocar. Creio que é de propósito; sem dúvida querem tornar-me louco para se livrarem de mim.
“Tal era minha situação, quando vim visitar uma das minhas casas, velho hábito que ainda conservo, embora eu não seja mais o dono. Vi construir tudo. Foram os meus escudos que pagaram tudo; e eu gosto dessas casas, cuja renda enriquece meus filhos ingratos.
“Assim, cá estava eu em visita, quando soube que espíritas aqui se reuniam. Isto me interessou. Inquiri sobre o Espiritismo e soube que os espíritas pretendiam explicar todas as coisas. Como minha situação me parece pouco clara, não me aborreceria se recebesse, a respeito, o conselho dos Espíritos. Não sou nem incrédulo nem curioso; desejo ver e crer, ser esclarecido, e se vós me reconduzirdes à posição de governar tudo em minha casa, palavra de proprietário, não subirei o vosso aluguel enquanto viver.”
II
(Paris, 29 de dezembro de 1868)
(Paris, 29 de dezembro de 1868)
“Dizeis que estou morto? Mas pensais bem no que dizeis?... Pretendeis que meus filhos não me veem, nem me escutam. Mas vós me vedes e me escutais, porque conversais comigo; porque abris a porta quando toco; porque interrogais e eu respondo... Escutai, eu percebo o que acontece; sois menos fortes do que eu pensava, e como os vossos Espíritos nada podem dizer, quereis embrulhar-me, fazendo-me duvidar de minha razão... Tomais-me por uma criança? Se eu houvesse morrido, seria um Espírito como eles e os veria, mas não vejo nenhum e ainda não me pusestes em contato com eles.
“Há, entretanto, uma coisa que me intriga. Dizei-me, pois, por que escreveis tudo o que digo? Por acaso quereis trair-me? Dizem que os espíritas são loucos; pensais, talvez, em dizer a meus filhos que me ocupo de Espiritismo e, assim, lhes dar meios de me interditar?
“Mas ele escreve, escreve!... Ainda não acabei de pensar e logo as minhas ideias estão no papel... Tudo isto não está claro!... O que é certo é que vejo, falo, respiro, ando, subo as escadas e, graças a Deus, percebo que é no número cinco que morais... Não é caridoso brincar assim com as penas dos outros. Eu respiro; e não posso mais, e pretendem fazer-me crer que não tenho mais corpo?... Eu sinto bem a minha asma, acredito! ... Quanto àqueles que me disseram que isto era o Espiritismo, então! mas são pessoas como vós; minhas conhecidas, que eu tinha perdido de vista e que encontrei depois da minha doença!
“Oh! Mas é estranho!... Oh! Por exemplo, eu não existo mais; absolutamente não existo mais!... Mas, parece-me... Oh! Minha memória que vai... sim... não... mas sim... Eu estou louco, palavra... Eu falei com pessoas que julgava mortas e enterradas há oito ou dez anos... Caramba! Eu assisti aos enterros; eu fiz negócios com os herdeiros!... Realmente é estranho!... E elas falam! Elas andam... Elas conversam!... Elas sentem o seu reumatismo!... Elas falam da chuva e do bom tempo... Elas tomam do meu rapé e apertam-me a mão!
“Mas, então, eu!... Não, não, não é possível! Eu não estou morto! Não se morre assim, sem perceber... Ainda estive no cemitério, justamente no fim de minha doença... era um parente... meu filho estava de luto... minha mulher lá não estava, mas ela chorava... Eu o acompanhei, esse pobre querido... Mas quem era, então? Na verdade não sei... Que perturbação estranha me agita!... Seria eu?... Mas não, porque eu acompanhava o corpo, e não podia estar no túmulo... Estar lá, e lá embaixo!... e contudo!... como tudo isto é estranho!... que novelo embaraçado!... Não me digais nada; quero procurar sozinho; vós me perturbaríeis... Deixai-me; eu voltarei...
Decididamente parece que sou um fantasma!... Oh! que coisa singular!”
OBSERVAÇÃO: Este Espírito está na mesma situação que o precedente, no sentido que um e outro ainda se julgam neste mundo; mas há entre eles a diferença que um se julga de posse de seu corpo carnal, ao passo que o outro tem consciência de seu estado espiritual, mas imagina que sonha. Este último, sem a menor dúvida, está mais próximo da verdade, contudo, será o último a voltar de seu erro. O exproprietário certamente estava muito apegado aos bens materiais, mas a sua avareza e os hábitos de economia um pouco sórdida provam que não levava vida sensual. Além disso, ele não é decididamente incrédulo; ele não rejeita a espiritualidade. Ao contrário, Luís a teme; o que ele lamenta não é a ausência da fortuna que gastava em vida, mas os prazeres que tal gasto lhe permitia. Não podendo admitir que sobrevive ao seu corpo, crê sonhar; compraz-se nessa ideia, na esperança de voltar à vida mundana; nela ele se aferra por todos os sofismas que sua imaginação lhe pode sugerir. Portanto, ele ficará nesse estado porque quer, até que a evidência lhe venha abrir os olhos. Qual deles sofrerá mais ao despertar? A resposta é fácil: um apenas ficará mediocremente surpreendido, o outro ficará apavorado.
“Há, entretanto, uma coisa que me intriga. Dizei-me, pois, por que escreveis tudo o que digo? Por acaso quereis trair-me? Dizem que os espíritas são loucos; pensais, talvez, em dizer a meus filhos que me ocupo de Espiritismo e, assim, lhes dar meios de me interditar?
“Mas ele escreve, escreve!... Ainda não acabei de pensar e logo as minhas ideias estão no papel... Tudo isto não está claro!... O que é certo é que vejo, falo, respiro, ando, subo as escadas e, graças a Deus, percebo que é no número cinco que morais... Não é caridoso brincar assim com as penas dos outros. Eu respiro; e não posso mais, e pretendem fazer-me crer que não tenho mais corpo?... Eu sinto bem a minha asma, acredito! ... Quanto àqueles que me disseram que isto era o Espiritismo, então! mas são pessoas como vós; minhas conhecidas, que eu tinha perdido de vista e que encontrei depois da minha doença!
“Oh! Mas é estranho!... Oh! Por exemplo, eu não existo mais; absolutamente não existo mais!... Mas, parece-me... Oh! Minha memória que vai... sim... não... mas sim... Eu estou louco, palavra... Eu falei com pessoas que julgava mortas e enterradas há oito ou dez anos... Caramba! Eu assisti aos enterros; eu fiz negócios com os herdeiros!... Realmente é estranho!... E elas falam! Elas andam... Elas conversam!... Elas sentem o seu reumatismo!... Elas falam da chuva e do bom tempo... Elas tomam do meu rapé e apertam-me a mão!
“Mas, então, eu!... Não, não, não é possível! Eu não estou morto! Não se morre assim, sem perceber... Ainda estive no cemitério, justamente no fim de minha doença... era um parente... meu filho estava de luto... minha mulher lá não estava, mas ela chorava... Eu o acompanhei, esse pobre querido... Mas quem era, então? Na verdade não sei... Que perturbação estranha me agita!... Seria eu?... Mas não, porque eu acompanhava o corpo, e não podia estar no túmulo... Estar lá, e lá embaixo!... e contudo!... como tudo isto é estranho!... que novelo embaraçado!... Não me digais nada; quero procurar sozinho; vós me perturbaríeis... Deixai-me; eu voltarei...
Decididamente parece que sou um fantasma!... Oh! que coisa singular!”
OBSERVAÇÃO: Este Espírito está na mesma situação que o precedente, no sentido que um e outro ainda se julgam neste mundo; mas há entre eles a diferença que um se julga de posse de seu corpo carnal, ao passo que o outro tem consciência de seu estado espiritual, mas imagina que sonha. Este último, sem a menor dúvida, está mais próximo da verdade, contudo, será o último a voltar de seu erro. O exproprietário certamente estava muito apegado aos bens materiais, mas a sua avareza e os hábitos de economia um pouco sórdida provam que não levava vida sensual. Além disso, ele não é decididamente incrédulo; ele não rejeita a espiritualidade. Ao contrário, Luís a teme; o que ele lamenta não é a ausência da fortuna que gastava em vida, mas os prazeres que tal gasto lhe permitia. Não podendo admitir que sobrevive ao seu corpo, crê sonhar; compraz-se nessa ideia, na esperança de voltar à vida mundana; nela ele se aferra por todos os sofismas que sua imaginação lhe pode sugerir. Portanto, ele ficará nesse estado porque quer, até que a evidência lhe venha abrir os olhos. Qual deles sofrerá mais ao despertar? A resposta é fácil: um apenas ficará mediocremente surpreendido, o outro ficará apavorado.
Visão de Pergolesi
Tem sido contado muitas vezes, e todos conhecem o estranho caso da morte de Mozart, cujo Requiem tão célebre foi a última e incontestável obra-prima. A crer numa tradição napolitana, muito antiga e muito respeitável, muito tempo antes de Mozart, fatos não menos misteriosos e não menos interessantes teriam precedido, senão determinado, a morte prematura de um grande mestre: Pergolesi.
Essa tradição eu a ouvi da própria boca de um velho camponês de Nápoles, essa terra das artes e das recordações. Ele a recebera de seus avós e, no seu culto ao ilustre mestre, do qual falava, tinha o cuidado de nada alterar no relato.
Eu o imitarei e vos direi fielmente o que ele me contou. Disse-me ele:
“Conheceis a pequena cidade de Casoria, a poucos quilômetros de Nápoles. Foi lá que em 1704 Pergolesi veio à luz.
“Desde a mais tenra idade revelou-se o artista do futuro. Quando sua mãe, como o fazem todas as nossas, cantarolava junto dele as lendas rimadas de nossa terra, para adormecer il bambino, ou, segundo a ingênua expressão das amas napolitanas, a fim de chamar para junto do berço os anjinhos do sono (angelini del sonno), diz-se que o menino, em vez de fechar os olhos, os arregalava, fixos e brilhantes; suas mãozinhas se agitavam e pareciam aplaudir; aos gritos alegres que escapavam de seu peito arquejante, dir-se-ia que essa alma, apenas surgida, já estremecia aos primeiros ecos de uma arte que um dia deveria cativá-la inteiramente.
“Aos oito anos, Nápoles o admirava como um prodígio, e durante mais de vinte anos a Europa inteira aplaudiu o seu talento e as suas obras. Ele fez a arte musical dar um passo imenso. Por assim dizer, lançou o germe de uma era nova, que em breve deveria produzir os mestres que se chamam Mozart, Méhul, Beethoven, Haydn e os outros. Numa palavra, a glória cobria a sua fronte com a mais brilhante auréola.
“E, contudo, dir-se-ia que sobre essa fronte pairava, errante, uma nuvem de melancolia, fazendo-a curvar-se para a terra. De vez em quando o olhar profundo do artista erguia-se para o céu, como que para aí procurar alguma coisa, um pensamento, uma inspiração.
“Quando o interrogavam, respondia que uma vaga inspiração enchia a sua alma; que no fundo de si mesmo ouvia como que os ecos incertos de um canto do céu que o arrastava e o elevava, mas que ele não podia captar, e que, semelhante a um pássaro cujas asas demasiado fracas não podem, à sua vontade, elevá-lo no espaço, ele caía na terra, sem ter podido acompanhar essa suave inspiração.
“Nesse combate, pouco a pouco a alma se esgotava; na mais bela idade da vida, pois então tinha apenas trinta e dois anos, Pergolesi parecia já ter sido tocado pelo dedo da morte. Seu gênio fecundo parecia ter-se tornado estéril; sua saúde minguava dia a dia; em vão seus amigos lhe procuravam a causa e ele próprio não podia descobri-la.
“Foi nesse estado penoso e estranho que ele passou o inverno de 1735 para 1736.
“Sabeis com que piedade aqui celebramos, ainda em nossos dias, malgrado o afrouxamento da fé, os tocantes aniversários da morte do Cristo. A semana em que a Igreja o relembra a seus filhos é realmente, para nós, uma semana santa. Assim, reportando-vos à época de fé em que vivia Pergolesi, podeis imaginar com que fervor o povo acorria em massa às igrejas, para meditar as cenas enternecedoras do drama sangrento do Calvário.
“Na sexta-feira santa, Pergolesi acompanhou a multidão. Aproximando-se do templo, parecia-lhe que uma calma, de há muito por ele desconhecida, se fazia em sua alma, e quando transpôs a porta principal, sentiu-se como que envolto numa nuvem ao mesmo tempo espessa e luminosa. Em breve nada mais viu; um silêncio profundo se fez ao seu redor; depois, ante os seus olhos admirados, e em meio à nuvem na qual até então lhe parecia ter sido levado, viu desenharem-se os traços puros e divinos de uma virgem, inteiramente vestida de branco; ele a viu pousar seus dedos etéreos no teclado de um órgão, e ouviu um concerto longínquo de vozes melodiosas que insensivelmente dele se aproximavam. A melodia que essas vozes repetiam o enchia de encantamento, mas não lhe era desconhecida; parecia-lhe que esse canto não era senão aquele do qual não tinha podido perceber senão vagos ecos; essas vozes eram exatamente aquelas que há longos meses lançavam a perturbação em sua alma, e que agora lhe traziam uma felicidade sem par. Sim, esse canto, essas vozes eram precisamente o sonho que ele havia perseguido; o pensamento, a inspiração que inutilmente tinha procurado por tanto tempo.
“Mas, enquanto sua alma, arrebatada no êxtase, bebia a largos sorvos as harmonias simples e celestes desse concerto angélico, sua mão, movida como que por uma força misteriosa, se agitava no espaço e parecia traçar, malgrado seu, as notas que traduziam os sons que o ouvido escutava.
“Pouco a pouco as vozes se afastaram, a visão desapareceu, a nuvem se extinguiu e Pergolesi, abrindo os olhos, viu, escrito por sua mão, no mármore do templo, esse canto de uma simplicidade sublime que devia imortalizá-lo, o Stabat Mater, que desde esse dia o mundo cristão inteiro repete e admira.
“O artista ergueu-se, saiu do templo, calmo, feliz, e não mais inquieto e agitado. Mas, nesse dia, uma nova aspiração se apoderou dessa alma de artista. Ela ouvira o canto dos anjos, o concerto dos céus. As vozes humanas e os concertos terrenos não mais lhe podiam bastar. Essa sede ardente, impulso de um vasto gênio, acabava de esgotar o sopro de vida que lhe restava, e foi assim que aos trinta e três anos, na exaltação, na febre, ou melhor, no amor sobrenatural de sua arte, Pergolesi encontrou a morte.”
Esta é a narração de meu napolitano. Não passa, disse eu, de uma tradição. Não defendo a sua autenticidade e a história talvez não a confirme em todos os pontos, mas é demasiado tocante para que não nos deleitemos com o seu relato.
ERNEST LE NORDEZ.
(Petit Moniteur de 12 de dezembro de1868.)
Essa tradição eu a ouvi da própria boca de um velho camponês de Nápoles, essa terra das artes e das recordações. Ele a recebera de seus avós e, no seu culto ao ilustre mestre, do qual falava, tinha o cuidado de nada alterar no relato.
Eu o imitarei e vos direi fielmente o que ele me contou. Disse-me ele:
“Conheceis a pequena cidade de Casoria, a poucos quilômetros de Nápoles. Foi lá que em 1704 Pergolesi veio à luz.
“Desde a mais tenra idade revelou-se o artista do futuro. Quando sua mãe, como o fazem todas as nossas, cantarolava junto dele as lendas rimadas de nossa terra, para adormecer il bambino, ou, segundo a ingênua expressão das amas napolitanas, a fim de chamar para junto do berço os anjinhos do sono (angelini del sonno), diz-se que o menino, em vez de fechar os olhos, os arregalava, fixos e brilhantes; suas mãozinhas se agitavam e pareciam aplaudir; aos gritos alegres que escapavam de seu peito arquejante, dir-se-ia que essa alma, apenas surgida, já estremecia aos primeiros ecos de uma arte que um dia deveria cativá-la inteiramente.
“Aos oito anos, Nápoles o admirava como um prodígio, e durante mais de vinte anos a Europa inteira aplaudiu o seu talento e as suas obras. Ele fez a arte musical dar um passo imenso. Por assim dizer, lançou o germe de uma era nova, que em breve deveria produzir os mestres que se chamam Mozart, Méhul, Beethoven, Haydn e os outros. Numa palavra, a glória cobria a sua fronte com a mais brilhante auréola.
“E, contudo, dir-se-ia que sobre essa fronte pairava, errante, uma nuvem de melancolia, fazendo-a curvar-se para a terra. De vez em quando o olhar profundo do artista erguia-se para o céu, como que para aí procurar alguma coisa, um pensamento, uma inspiração.
“Quando o interrogavam, respondia que uma vaga inspiração enchia a sua alma; que no fundo de si mesmo ouvia como que os ecos incertos de um canto do céu que o arrastava e o elevava, mas que ele não podia captar, e que, semelhante a um pássaro cujas asas demasiado fracas não podem, à sua vontade, elevá-lo no espaço, ele caía na terra, sem ter podido acompanhar essa suave inspiração.
“Nesse combate, pouco a pouco a alma se esgotava; na mais bela idade da vida, pois então tinha apenas trinta e dois anos, Pergolesi parecia já ter sido tocado pelo dedo da morte. Seu gênio fecundo parecia ter-se tornado estéril; sua saúde minguava dia a dia; em vão seus amigos lhe procuravam a causa e ele próprio não podia descobri-la.
“Foi nesse estado penoso e estranho que ele passou o inverno de 1735 para 1736.
“Sabeis com que piedade aqui celebramos, ainda em nossos dias, malgrado o afrouxamento da fé, os tocantes aniversários da morte do Cristo. A semana em que a Igreja o relembra a seus filhos é realmente, para nós, uma semana santa. Assim, reportando-vos à época de fé em que vivia Pergolesi, podeis imaginar com que fervor o povo acorria em massa às igrejas, para meditar as cenas enternecedoras do drama sangrento do Calvário.
“Na sexta-feira santa, Pergolesi acompanhou a multidão. Aproximando-se do templo, parecia-lhe que uma calma, de há muito por ele desconhecida, se fazia em sua alma, e quando transpôs a porta principal, sentiu-se como que envolto numa nuvem ao mesmo tempo espessa e luminosa. Em breve nada mais viu; um silêncio profundo se fez ao seu redor; depois, ante os seus olhos admirados, e em meio à nuvem na qual até então lhe parecia ter sido levado, viu desenharem-se os traços puros e divinos de uma virgem, inteiramente vestida de branco; ele a viu pousar seus dedos etéreos no teclado de um órgão, e ouviu um concerto longínquo de vozes melodiosas que insensivelmente dele se aproximavam. A melodia que essas vozes repetiam o enchia de encantamento, mas não lhe era desconhecida; parecia-lhe que esse canto não era senão aquele do qual não tinha podido perceber senão vagos ecos; essas vozes eram exatamente aquelas que há longos meses lançavam a perturbação em sua alma, e que agora lhe traziam uma felicidade sem par. Sim, esse canto, essas vozes eram precisamente o sonho que ele havia perseguido; o pensamento, a inspiração que inutilmente tinha procurado por tanto tempo.
“Mas, enquanto sua alma, arrebatada no êxtase, bebia a largos sorvos as harmonias simples e celestes desse concerto angélico, sua mão, movida como que por uma força misteriosa, se agitava no espaço e parecia traçar, malgrado seu, as notas que traduziam os sons que o ouvido escutava.
“Pouco a pouco as vozes se afastaram, a visão desapareceu, a nuvem se extinguiu e Pergolesi, abrindo os olhos, viu, escrito por sua mão, no mármore do templo, esse canto de uma simplicidade sublime que devia imortalizá-lo, o Stabat Mater, que desde esse dia o mundo cristão inteiro repete e admira.
“O artista ergueu-se, saiu do templo, calmo, feliz, e não mais inquieto e agitado. Mas, nesse dia, uma nova aspiração se apoderou dessa alma de artista. Ela ouvira o canto dos anjos, o concerto dos céus. As vozes humanas e os concertos terrenos não mais lhe podiam bastar. Essa sede ardente, impulso de um vasto gênio, acabava de esgotar o sopro de vida que lhe restava, e foi assim que aos trinta e três anos, na exaltação, na febre, ou melhor, no amor sobrenatural de sua arte, Pergolesi encontrou a morte.”
Esta é a narração de meu napolitano. Não passa, disse eu, de uma tradição. Não defendo a sua autenticidade e a história talvez não a confirme em todos os pontos, mas é demasiado tocante para que não nos deleitemos com o seu relato.
ERNEST LE NORDEZ.
(Petit Moniteur de 12 de dezembro de1868.)
Bibliografia
A guerra empreendida sob Luís XIV contra os calvinistas, ou Tremedores das Cevenas, é, sem contradita, um dos mais tristes episódios e dos mais comovedores da história da França, talvez menos notável do ponto de vista puramente militar, que renovou as atrocidades muito comuns nas guerras religiosas, do que pelos inumeráveis casos de sonambulismo espontâneo, êxtase, dupla vista, previsões e outros fenômenos do mesmo gênero, que se produziram durante todo o curso dessa infeliz cruzada. Esses fatos, que então eram considerados sobrenaturais, sustentavam a coragem dos calvinistas, encurralados nas montanhas, como feras, ao mesmo tempo que eram considerados como possessos do diabo, por uns, e como iluminados, por outros. Tendo sido uma das causas que provocaram e alimentaram a perseguição, eles representam, nesse episódio, o papel principal, e não acessório. Mas como os historiadores poderiam apreciá-los, quando lhes faltavam todos os elementos necessários para se esclarecerem sobre sua natureza e sua realidade? Eles não puderam senão desnaturá-los e apresentá-los sob um falso ângulo.
Só os novos conhecimentos fornecidos pelo magnetismo e pelo Espiritismo poderiam lançar luz sobre a questão. Ora, como não se pode falar com conhecimento de causa sobre o que não se compreende, ou sobre o que se tem interesse em dissimular, esses conhecimentos eram tão necessários para, sobre o assunto, fazer um trabalho completo e isento de preconceitos, quanto o eram a Geologia e a Astronomia para comentar a Gênese.
Demonstrando a verdadeira causa desses fenômenos, e provando que eles não se afastam da ordem natural, esses conhecimentos lhes devolveram seu verdadeiro caráter. Eles dão, também, a chave dos fenômenos do mesmo gênero que se produziram em muitas outras circunstâncias, e permitem separar o possível do exagero legendário.
Juntando ao talento de escritor e aos conhecimentos de historiador, um estudo sério e prático do Espiritismo e do magnetismo, o Sr. Bonnemère encontra-se nas melhores condições para tratar com conhecimento de causa e com imparcialidade o objetivo que empreendeu. A ideia espírita mais de uma vez contribuiu para obras de fantasia, mas é a primeira vez que o Espiritismo figura nominalmente e como elemento de controle numa obra histórica séria; é assim que, pouco a pouco, ele toma sua posição no mundo, e que se cumprem as previsões dos Espíritos.
A obra do Sr. Bonnemère só aparecerá de 5 a 10 de fevereiro, mas como algumas provas nos foram mostradas, delas extraímos as passagens seguintes, que temos a satisfação de reproduzir por antecipação. Contudo, suprimimos as notas indicativas das peças de apoio. Acrescentaremos que ela se distingue das obras sobre o mesmo assunto por documentos novos que ainda não haviam sido publicados na França, de modo que pode ser considerada como a mais completa.
Assim, ela é recomendável por mais de um motivo à atenção dos nossos leitores, que poderão julgá-la pelos fragmentos abaixo:
“O mundo jamais viu algo semelhante a esta guerra das Cevenas. Deus, os homens e os demônios se puseram à parte; os corpos e os Espíritos entraram em luta e, de maneira muito diversa da do Antigo Testamento, os profetas guiavam aos combates os guerreiros que pareciam, eles próprios, deslumbrados além das condições ordinárias da vida.
“Os céticos e os trocistas acham mais fácil negar; a Ciência derrotada teme comprometer-se, desvia os olhos e se recusa a pronunciar-se. Mas como não há fatos históricos mais incontestáveis do que estes, como não há fatos que tenham sido atestados por tão grande número de testemunhas, a troça, as razões para não aceitar não podem ser admitidas por mais tempo. Foi diante do sério povo inglês que juridicamente se recolheram os depoimentos, pelas mais solenes formas, ditados por protestantes refugiados, e eles foram publicados em Londres, em 1707, quando a lembrança de todas essas coisas ainda estava viva em todas as memórias, e os desmentidos poderiam tê-las esmagado sob o seu número, se tivessem sido falsas.
“Queremos falar do Teatro sagrado das Cevenas, ou Relato das diversas maravilhas novamente operadas nessa parte do Languedoc, do qual vamos fazer longas citações.
“Os estranhos fenômenos que aí se acham relatados não buscavam, para se produzir, nem a sombra nem o mistério; eles se manifestavam diante dos intendentes, diante dos generais, diante dos bispos, como diante dos ignorantes e dos pobres de espírito. Era testemunha quem quisesse e tivesse podido estudá-los, se o tivesse desejado.
“Em 25 de setembro de 1704, escrevia Villars a Chamillard:
“Eu vi, nesse gênero, coisas em que jamais teria acreditado, se elas não se tivessem passado aos meus olhos; uma cidade inteira, cujas mulheres todas pareciam possuídas do diabo. Elas tremiam e profetizavam publicamente nas ruas. Mandei prender vinte das piores, uma das quais teve a esperteza de tremer e profetizar em minha frente. Mandei prendê-la para exemplo e recolher as outras em hospitais.”
“Tais processos estavam em uso sob Luís XIV, e mandar prender uma pobre mulher porque uma força desconhecida a constrangia a dizer diante de um marechal de França coisas que lhe não agradavam, podia então ser uma maneira de agir que a ninguém revoltava, tanto era simples e natural e nos hábitos do tempo. Hoje é preciso ter coragem de enfrentar a dificuldade e lhe buscar soluções menos brutais e mais probantes.
“Não cremos nem no maravilhoso nem nos milagres. Vamos, pois, explicar naturalmente, da melhor forma que pudermos, esse grave problema histórico até hoje deixado sem solução. Vamos fazê-lo buscando ajuda das luzes que o magnetismo e o Espiritismo hoje põem à nossa disposição, sem pretender, contudo, a ninguém impor essas crenças.
“É lamentável que não possamos consagrar senão algumas linhas a isso que, compreende-se, exigiria um volume de desenvolvimentos. Diremos apenas, para tranquilizar os espíritos tímidos, que isto em nada choca as ideias cristãs; não necessitamos como prova senão destes dois versículos do Evangelho de São Mateus:
“Quando, pois, vos entregarem nas mãos dos governadores e dos reis, não vos preocupeis como lhes haveis de falar, nem com o que lhes haveis de dizer, porque o que lhes deveis dizer vos será dado na mesma hora;
“Porque não sois vós que falais, mas o espírito de vosso Pai que fala em vós. (Mat. X: 19 e 20).”
“Deixamos aos comentadores o cuidado de decidir qual é, ao certo, esse espírito de nosso Pai que, em dados momentos, se substitui ao nosso, fala em nosso lugar e nos inspira. Talvez possamos dizer que toda geração que desaparece é o pai e a mãe da que lhe sucede, e que os melhores entre os que parecem não mais existir se elevam rapidamente, quando desembaraçados dos entraves do corpo material, e vêm ocupar os órgãos daqueles de seus filhos que julgam dignos de lhes servir de intérpretes, e que pagarão caro, um dia, pelo mau uso que tiverem feito das faculdades preciosas que lhes são delegadas.
“O magnetismo desperta, superexcita e desenvolve em certos sonâmbulos o instinto que a Natureza deu a todos os seres para a sua cura, e que nossa civilização incompleta abafou em nós, para substituí-lo pelas falsas luzes da Ciência.
“O sonâmbulo natural põe o seu sonho em ação, eis tudo. Ele nada toma dos outros, nada pode por eles.
“O sonâmbulo fluídico, ao contrário, aquele no qual o contato do fluido do magnetizador provoca um estado bizarro, sente-se imperiosamente atormentado pelo desejo de aliviar os seus irmãos. Ele vê o mal, ou vem indicar-lhe o remédio.
“O sonâmbulo inspirado, que por vezes pode ser, ao mesmo tempo, fluídico, é o mais ricamente dotado, e nele a inspiração se mantém nas esferas elevadas, quando ela se manifesta espontaneamente. Só ele é um revelador; só nele reside o progresso, porque só ele é o eco, o instrumento dócil de um Espírito diferente do seu, e mais adiantado.
“O fluido é um ímã que atrai os mortos bem-amados para os que ficam. Ele se desprende abundantemente dos inspirados, e vai despertar a atenção dos seres que partiram antes, e que lhes são simpáticos. Estes, por seu lado, depurados e esclarecidos por uma vida melhor, julgam melhor e conhecem melhor essas naturezas primitivas, honestas, passivas, que lhes podem servir de intermediárias na ordem dos fatos que julgam útil revelar-lhes.
“No século passado eram chamados extáticos. Hoje são médiuns.
“O Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um ser invisível se põe em comunicação com outro dotado de uma organização particular que o torna apto a receber os pensamentos daqueles que viveram e a escrevê-los, quer por um impulso mecânico inconsciente imprimido à mão, quer por transmissão direta à inteligência dos médiuns.
“Se quisermos por um momento dar algum crédito a estas ideias, compreenderemos sem esforço que as almas indignadas desses mártires que o grande rei imolava às centenas diariamente, vinham velar sobre os seres queridos dos quais tinham sido violentamente separadas; que elas os haviam sustentado, guiado, consolado em meio às suas provações, inspirado por seu espírito; que lhes haviam anunciado por antecipação ─ o que aconteceu muitas vezes ─ os perigos que os ameaçavam.
“Só um pequeno número era verdadeiramente inspirado. O desprendimento fluídico que deles saía, como de certos seres superiores e privilegiados, agia sobre essa multidão profundamente perturbada que os rodeava, mas sem poder desenvolver, na maioria, entre eles, outra coisa senão os fenômenos grosseiros e largamente falíveis da alucinação. Inspirados e alucinados, todos tinham a pretensão de profetizar, mas estes últimos emitiam uma porção de erros, em meio dos quais não se podia mais discernir as verdades que o Espírito realmente soprava aos primeiros. Essa massa de alucinados por sua vez reagia sobre os inspirados e lançava a perturbação no meio de suas manifestações...
“Diz o Padre Pluquet que eram necessários recursos extraordinários, prodígios, para sustentar a fé dos restos dispersos do Protestantismo. Eles explodiram de todos os lados entre os reformados, durante os quatro primeiros anos que se seguiram à revogação do Edito de Nantes. Ouviram-se nos ares, nas cercanias dos lugares onde outrora tinha havido templos, vozes tão perfeitamente semelhantes aos cantos dos salmos, tais como os cantam os protestantes, que não podiam ser tomados por outra coisa. Essa melodia era celeste e essas vozes angélicas cantavam os salmos segundo as versões de Clément Marot e de Théodore de Bèze. Essas vozes foram ouvidas em Béarn, nas Cevenas, em Vassy, etc. Ministros fugitivos foram escoltados por essa divina salmodia e até a trombeta não os abandonou senão depois que eles transpuseram as fronteiras do reino. Jurieu reuniu com cuidado os testemunhos dessas maravilhas e daí concluiu que ‘Deus, tendo feito bocas no meio dos ares, era uma censura indireta que a Providência fazia aos protestantes de França por se terem calado muito facilmente’. Ele ousou predizer que em 1689 o Calvinismo seria restabelecido na França... Jurieu dissera: ‘O Espírito do Senhor estará convosco. Ele falará pela boca das crianças e das mulheres, em vez de vos abandonar.’
“Foi mais que o necessário para que os protestantes perseguidos se pusessem a ver as mulheres e as crianças pondo-se a profetizar.
“Um homem mantinha em casa, numa vidraria oculta no topo da montanha de Pevrat, no Delfinado, uma verdadeira escola de profecia. Era um velho gentilhomem, chamado Du Serre, nascido na aldeia de Dieu-le-Fit. Aqui as origens são um pouco obscuras. Dizem que ele tinha sido iniciado, em Genebra, nas práticas de uma arte misteriosa cujo segredo era transmitido a um pequeno número de pessoas. Reunindo em sua casa rapazes e algumas moças cuja natureza impressionável e nervosa ele sem dúvida havia observado, submetia-os previamente a jejuns austeros; agia poderosamente sobre sua imaginação, para eles estendia as mãos como que para lhes impor o Espírito de Deus, soprava sobre suas frontes e os fazia cair como inanimados à sua frente, com os olhos fechados, adormecidos, os membros tensos pela catalepsia, insensíveis à dor, não vendo e não ouvindo mais nada do que se passava ao seu redor, mas pareciam escutar vozes interiores que lhes falavam, e ver espetáculos esplêndidos, cujas maravilhas contavam, porque, nesse estado bizarro, eles falavam e escreviam; depois, voltando ao seu estado ordinário, eles não se lembravam mais de nada do que tinham feito, do que tinham dito, do que tinham escrito.
“Eis o que Brueys conta desses ‘pequenos profetas adormecidos’, como ele os chama. Aí encontramos os processos, hoje bem conhecidos, do magnetismo, e quem quiser poderá, em muitas circunstâncias, reproduzir os milagres do velho gentilhomem vidreiro...
“Em 1701 houve uma nova explosão de profetas. Eles choviam do céu, brotavam da terra e, das montanhas de Lozère até às margens do Mediterrâneo. Contavam-se aos milhares. Os católicos haviam tomado os filhos dos calvinistas. Deus se serviu dos filhos para protestar contra essa prodigiosa iniquidade. O governo do grande rei só conhecia a violência. Prendiam em massa, ao acaso, esses profetas-meninos; açoitavam impiedosamente os menores, queimavam as plantas dos pés dos maiores. Nada se fez, e havia mais de trezentos nas prisões de Uzès, quando a Faculdade de Montpellier recebeu ordem de se transportar àquela cidade para examinar o seu estado. Após maduras reflexões, a douta Faculdade os declarou ‘atingidos de fanatismo.’
“Essa bela solução da ciência oficial, que hoje ainda não poderia dizer muito mais sobre o assunto, não pôs termo à onda transbordante de inspirações. Bâville então publicou uma ordenação (setembro de 1701) para tornar os pais responsáveis pelo fanatismo de seus filhos.
“Puseram soldados à vontade nas casas de todos quantos não haviam podido desviar seus filhos desse perigoso oficio e os condenaram a penas arbitrárias. Assim, tudo repercutia os lamentos e clamores desses pais infortunados. A violência foi levada tão longe que, para dela se livrarem, houve várias pessoas que denunciaram seus próprios filhos, ou os entregaram aos intendentes e aos magistrados, dizendo: ‘Ei-los, nós nos desobrigamos; vós mesmos fazei-os, se possível, perder a vontade de profetizar’.
“Vãos esforços! Prendiam, torturaram os corpos, mas o Espírito ficava livre e os profetas se multiplicavam. Em novembro retiraram mais de duzentos das Cevenas ‘que condenaram a servir ao rei, uns nos seus exércitos, outros nas galés’ (Corte de Gébelin). Houve execuções capitais, que não pouparam nem mesmo as mulheres. Em Montpellier enforcaram uma profetisa de Vivarais, porque saía sangue de seus olhos e de seu nariz, que ela chamava de lágrimas de sangue que chorava sobre os infortúnios de seus correligionários, sobre os crimes de Roma e dos papistas...
“Uma surda irritação, uma onda de cólera há muito contida rugia em todas as gargantas ao término desses vinte anos de intoleráveis iniquidades. A paciência das vítimas não diminuía a fúria dos carrascos. Pensaram, enfim, em conter a força pela força.
“Era, sem dúvida, diz Brueys, um espetáculo muito extraordinário e muito novo; via-se marcharem as forças armadas para combaterem pequenos exércitos de profetas.” (t. 1, pág. 156).
“Espetáculo estranho, com efeito, porque os mais perigosos entre esses pequenos profetas defendiam-se a pedradas, refugiados em alturas inacessíveis. Mas na maioria das vezes eles não tentavam nem mesmo defender a própria vida. Quando as tropas avançavam para atacá-los, eles marchavam atrevidamente contra elas, soltando brados: ‘Tartará! Tartará! Para trás, Satã!’ Dizia-se que eles acreditavam que a palavra tartará, como um exorcismo, devia pôr os inimigos em fuga; que eles próprios eram invulneráveis, ou que ressuscitariam ao cabo de três dias, se viessem a sucumbir na luta. Suas ilusões não duravam muito nesses vários pontos, e em breve opuseram aos católicos armas mais eficazes.
“Em dois encontros na montanha de Chailaret, não longe de Saint-Genieys mataram algumas centenas, prenderam um bom número, e o resto pareceu dispersarse. Bâville julgava os cativos, mandava prender alguns e enviava o resto para as galés; e como nada disso parecia absolutamente desencorajar os reformados, continuaram a procurar as reuniões do deserto, a estrangular impiedosamente os que se rendiam, sem que estes pensassem ainda em opor uma séria resistência a seus carrascos. Segundo o depoimento de uma profetisa chamada Isabel Charras, consignado no Teatro sagrado de Cevenas, esses infelizes mártires voluntários entregavam-se, previamente advertidos pelas revelações dos extáticos, à sorte que os aguardava. Lemos ali:
“O chamado Jean Héraut, nosso vizinho, e quatro ou cinco de seus filhos com ele, tinham inspirações. Os dois mais novos tinham, um sete anos, o outro cinco e meio, quando receberam o dom. Eu os vi muitas vezes em seus êxtases. Um outro vizinho nosso, chamado Marliant, também tinha dois filhos e três filhas no mesmo estado. A mais velha era casada. Estando grávida de cerca de oito meses, foi a uma assembleia, em companhia de seus irmãos e irmãs, levando com ela o filhinho de sete anos. Ali foi massacrada com o dito menino, um de seus irmãos e uma das irmãs. O irmão que não foi morto ficou ferido, mas se curou, e a mais nova das irmãs foi deixada como morta, debaixo de corpos massacrados, sem ter sido ferida. A outra irmã foi levada ainda viva para a casa do pai, mas morreu dos ferimentos, alguns dias depois. Eu não estava na assembleia, mas vi o espetáculo desses mortos e desses feridos.”
“O que há de mais notável é que todos esses mártires tinham sido avisados pelo Espírito do que lhes devia acontecer. Eles tinham-no dito a seu pai, dele se despedindo e pedindo sua bênção, na mesma tarde em que saíram de casa para ir à assembleia que devia realizar-se na noite seguinte. Quando o pai viu todas essas lamentáveis ocorrências, não sucumbiu à sua dor, mas, ao contrário, disse com piedosa resignação: ‘O Senhor o deu, o Senhor o tirou; que o nome do Senhor seja bendito!’ Foi do irmão, do genro, dos dois filhos feridos e de toda a família que eu soube que tudo isto tinha sido predito.”
EUGÈNE BONNEMÈRE.
Só os novos conhecimentos fornecidos pelo magnetismo e pelo Espiritismo poderiam lançar luz sobre a questão. Ora, como não se pode falar com conhecimento de causa sobre o que não se compreende, ou sobre o que se tem interesse em dissimular, esses conhecimentos eram tão necessários para, sobre o assunto, fazer um trabalho completo e isento de preconceitos, quanto o eram a Geologia e a Astronomia para comentar a Gênese.
Demonstrando a verdadeira causa desses fenômenos, e provando que eles não se afastam da ordem natural, esses conhecimentos lhes devolveram seu verdadeiro caráter. Eles dão, também, a chave dos fenômenos do mesmo gênero que se produziram em muitas outras circunstâncias, e permitem separar o possível do exagero legendário.
Juntando ao talento de escritor e aos conhecimentos de historiador, um estudo sério e prático do Espiritismo e do magnetismo, o Sr. Bonnemère encontra-se nas melhores condições para tratar com conhecimento de causa e com imparcialidade o objetivo que empreendeu. A ideia espírita mais de uma vez contribuiu para obras de fantasia, mas é a primeira vez que o Espiritismo figura nominalmente e como elemento de controle numa obra histórica séria; é assim que, pouco a pouco, ele toma sua posição no mundo, e que se cumprem as previsões dos Espíritos.
A obra do Sr. Bonnemère só aparecerá de 5 a 10 de fevereiro, mas como algumas provas nos foram mostradas, delas extraímos as passagens seguintes, que temos a satisfação de reproduzir por antecipação. Contudo, suprimimos as notas indicativas das peças de apoio. Acrescentaremos que ela se distingue das obras sobre o mesmo assunto por documentos novos que ainda não haviam sido publicados na França, de modo que pode ser considerada como a mais completa.
Assim, ela é recomendável por mais de um motivo à atenção dos nossos leitores, que poderão julgá-la pelos fragmentos abaixo:
“O mundo jamais viu algo semelhante a esta guerra das Cevenas. Deus, os homens e os demônios se puseram à parte; os corpos e os Espíritos entraram em luta e, de maneira muito diversa da do Antigo Testamento, os profetas guiavam aos combates os guerreiros que pareciam, eles próprios, deslumbrados além das condições ordinárias da vida.
“Os céticos e os trocistas acham mais fácil negar; a Ciência derrotada teme comprometer-se, desvia os olhos e se recusa a pronunciar-se. Mas como não há fatos históricos mais incontestáveis do que estes, como não há fatos que tenham sido atestados por tão grande número de testemunhas, a troça, as razões para não aceitar não podem ser admitidas por mais tempo. Foi diante do sério povo inglês que juridicamente se recolheram os depoimentos, pelas mais solenes formas, ditados por protestantes refugiados, e eles foram publicados em Londres, em 1707, quando a lembrança de todas essas coisas ainda estava viva em todas as memórias, e os desmentidos poderiam tê-las esmagado sob o seu número, se tivessem sido falsas.
“Queremos falar do Teatro sagrado das Cevenas, ou Relato das diversas maravilhas novamente operadas nessa parte do Languedoc, do qual vamos fazer longas citações.
“Os estranhos fenômenos que aí se acham relatados não buscavam, para se produzir, nem a sombra nem o mistério; eles se manifestavam diante dos intendentes, diante dos generais, diante dos bispos, como diante dos ignorantes e dos pobres de espírito. Era testemunha quem quisesse e tivesse podido estudá-los, se o tivesse desejado.
“Em 25 de setembro de 1704, escrevia Villars a Chamillard:
“Eu vi, nesse gênero, coisas em que jamais teria acreditado, se elas não se tivessem passado aos meus olhos; uma cidade inteira, cujas mulheres todas pareciam possuídas do diabo. Elas tremiam e profetizavam publicamente nas ruas. Mandei prender vinte das piores, uma das quais teve a esperteza de tremer e profetizar em minha frente. Mandei prendê-la para exemplo e recolher as outras em hospitais.”
“Tais processos estavam em uso sob Luís XIV, e mandar prender uma pobre mulher porque uma força desconhecida a constrangia a dizer diante de um marechal de França coisas que lhe não agradavam, podia então ser uma maneira de agir que a ninguém revoltava, tanto era simples e natural e nos hábitos do tempo. Hoje é preciso ter coragem de enfrentar a dificuldade e lhe buscar soluções menos brutais e mais probantes.
“Não cremos nem no maravilhoso nem nos milagres. Vamos, pois, explicar naturalmente, da melhor forma que pudermos, esse grave problema histórico até hoje deixado sem solução. Vamos fazê-lo buscando ajuda das luzes que o magnetismo e o Espiritismo hoje põem à nossa disposição, sem pretender, contudo, a ninguém impor essas crenças.
“É lamentável que não possamos consagrar senão algumas linhas a isso que, compreende-se, exigiria um volume de desenvolvimentos. Diremos apenas, para tranquilizar os espíritos tímidos, que isto em nada choca as ideias cristãs; não necessitamos como prova senão destes dois versículos do Evangelho de São Mateus:
“Quando, pois, vos entregarem nas mãos dos governadores e dos reis, não vos preocupeis como lhes haveis de falar, nem com o que lhes haveis de dizer, porque o que lhes deveis dizer vos será dado na mesma hora;
“Porque não sois vós que falais, mas o espírito de vosso Pai que fala em vós. (Mat. X: 19 e 20).”
“Deixamos aos comentadores o cuidado de decidir qual é, ao certo, esse espírito de nosso Pai que, em dados momentos, se substitui ao nosso, fala em nosso lugar e nos inspira. Talvez possamos dizer que toda geração que desaparece é o pai e a mãe da que lhe sucede, e que os melhores entre os que parecem não mais existir se elevam rapidamente, quando desembaraçados dos entraves do corpo material, e vêm ocupar os órgãos daqueles de seus filhos que julgam dignos de lhes servir de intérpretes, e que pagarão caro, um dia, pelo mau uso que tiverem feito das faculdades preciosas que lhes são delegadas.
“O magnetismo desperta, superexcita e desenvolve em certos sonâmbulos o instinto que a Natureza deu a todos os seres para a sua cura, e que nossa civilização incompleta abafou em nós, para substituí-lo pelas falsas luzes da Ciência.
“O sonâmbulo natural põe o seu sonho em ação, eis tudo. Ele nada toma dos outros, nada pode por eles.
“O sonâmbulo fluídico, ao contrário, aquele no qual o contato do fluido do magnetizador provoca um estado bizarro, sente-se imperiosamente atormentado pelo desejo de aliviar os seus irmãos. Ele vê o mal, ou vem indicar-lhe o remédio.
“O sonâmbulo inspirado, que por vezes pode ser, ao mesmo tempo, fluídico, é o mais ricamente dotado, e nele a inspiração se mantém nas esferas elevadas, quando ela se manifesta espontaneamente. Só ele é um revelador; só nele reside o progresso, porque só ele é o eco, o instrumento dócil de um Espírito diferente do seu, e mais adiantado.
“O fluido é um ímã que atrai os mortos bem-amados para os que ficam. Ele se desprende abundantemente dos inspirados, e vai despertar a atenção dos seres que partiram antes, e que lhes são simpáticos. Estes, por seu lado, depurados e esclarecidos por uma vida melhor, julgam melhor e conhecem melhor essas naturezas primitivas, honestas, passivas, que lhes podem servir de intermediárias na ordem dos fatos que julgam útil revelar-lhes.
“No século passado eram chamados extáticos. Hoje são médiuns.
“O Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um ser invisível se põe em comunicação com outro dotado de uma organização particular que o torna apto a receber os pensamentos daqueles que viveram e a escrevê-los, quer por um impulso mecânico inconsciente imprimido à mão, quer por transmissão direta à inteligência dos médiuns.
“Se quisermos por um momento dar algum crédito a estas ideias, compreenderemos sem esforço que as almas indignadas desses mártires que o grande rei imolava às centenas diariamente, vinham velar sobre os seres queridos dos quais tinham sido violentamente separadas; que elas os haviam sustentado, guiado, consolado em meio às suas provações, inspirado por seu espírito; que lhes haviam anunciado por antecipação ─ o que aconteceu muitas vezes ─ os perigos que os ameaçavam.
“Só um pequeno número era verdadeiramente inspirado. O desprendimento fluídico que deles saía, como de certos seres superiores e privilegiados, agia sobre essa multidão profundamente perturbada que os rodeava, mas sem poder desenvolver, na maioria, entre eles, outra coisa senão os fenômenos grosseiros e largamente falíveis da alucinação. Inspirados e alucinados, todos tinham a pretensão de profetizar, mas estes últimos emitiam uma porção de erros, em meio dos quais não se podia mais discernir as verdades que o Espírito realmente soprava aos primeiros. Essa massa de alucinados por sua vez reagia sobre os inspirados e lançava a perturbação no meio de suas manifestações...
“Diz o Padre Pluquet que eram necessários recursos extraordinários, prodígios, para sustentar a fé dos restos dispersos do Protestantismo. Eles explodiram de todos os lados entre os reformados, durante os quatro primeiros anos que se seguiram à revogação do Edito de Nantes. Ouviram-se nos ares, nas cercanias dos lugares onde outrora tinha havido templos, vozes tão perfeitamente semelhantes aos cantos dos salmos, tais como os cantam os protestantes, que não podiam ser tomados por outra coisa. Essa melodia era celeste e essas vozes angélicas cantavam os salmos segundo as versões de Clément Marot e de Théodore de Bèze. Essas vozes foram ouvidas em Béarn, nas Cevenas, em Vassy, etc. Ministros fugitivos foram escoltados por essa divina salmodia e até a trombeta não os abandonou senão depois que eles transpuseram as fronteiras do reino. Jurieu reuniu com cuidado os testemunhos dessas maravilhas e daí concluiu que ‘Deus, tendo feito bocas no meio dos ares, era uma censura indireta que a Providência fazia aos protestantes de França por se terem calado muito facilmente’. Ele ousou predizer que em 1689 o Calvinismo seria restabelecido na França... Jurieu dissera: ‘O Espírito do Senhor estará convosco. Ele falará pela boca das crianças e das mulheres, em vez de vos abandonar.’
“Foi mais que o necessário para que os protestantes perseguidos se pusessem a ver as mulheres e as crianças pondo-se a profetizar.
“Um homem mantinha em casa, numa vidraria oculta no topo da montanha de Pevrat, no Delfinado, uma verdadeira escola de profecia. Era um velho gentilhomem, chamado Du Serre, nascido na aldeia de Dieu-le-Fit. Aqui as origens são um pouco obscuras. Dizem que ele tinha sido iniciado, em Genebra, nas práticas de uma arte misteriosa cujo segredo era transmitido a um pequeno número de pessoas. Reunindo em sua casa rapazes e algumas moças cuja natureza impressionável e nervosa ele sem dúvida havia observado, submetia-os previamente a jejuns austeros; agia poderosamente sobre sua imaginação, para eles estendia as mãos como que para lhes impor o Espírito de Deus, soprava sobre suas frontes e os fazia cair como inanimados à sua frente, com os olhos fechados, adormecidos, os membros tensos pela catalepsia, insensíveis à dor, não vendo e não ouvindo mais nada do que se passava ao seu redor, mas pareciam escutar vozes interiores que lhes falavam, e ver espetáculos esplêndidos, cujas maravilhas contavam, porque, nesse estado bizarro, eles falavam e escreviam; depois, voltando ao seu estado ordinário, eles não se lembravam mais de nada do que tinham feito, do que tinham dito, do que tinham escrito.
“Eis o que Brueys conta desses ‘pequenos profetas adormecidos’, como ele os chama. Aí encontramos os processos, hoje bem conhecidos, do magnetismo, e quem quiser poderá, em muitas circunstâncias, reproduzir os milagres do velho gentilhomem vidreiro...
“Em 1701 houve uma nova explosão de profetas. Eles choviam do céu, brotavam da terra e, das montanhas de Lozère até às margens do Mediterrâneo. Contavam-se aos milhares. Os católicos haviam tomado os filhos dos calvinistas. Deus se serviu dos filhos para protestar contra essa prodigiosa iniquidade. O governo do grande rei só conhecia a violência. Prendiam em massa, ao acaso, esses profetas-meninos; açoitavam impiedosamente os menores, queimavam as plantas dos pés dos maiores. Nada se fez, e havia mais de trezentos nas prisões de Uzès, quando a Faculdade de Montpellier recebeu ordem de se transportar àquela cidade para examinar o seu estado. Após maduras reflexões, a douta Faculdade os declarou ‘atingidos de fanatismo.’
“Essa bela solução da ciência oficial, que hoje ainda não poderia dizer muito mais sobre o assunto, não pôs termo à onda transbordante de inspirações. Bâville então publicou uma ordenação (setembro de 1701) para tornar os pais responsáveis pelo fanatismo de seus filhos.
“Puseram soldados à vontade nas casas de todos quantos não haviam podido desviar seus filhos desse perigoso oficio e os condenaram a penas arbitrárias. Assim, tudo repercutia os lamentos e clamores desses pais infortunados. A violência foi levada tão longe que, para dela se livrarem, houve várias pessoas que denunciaram seus próprios filhos, ou os entregaram aos intendentes e aos magistrados, dizendo: ‘Ei-los, nós nos desobrigamos; vós mesmos fazei-os, se possível, perder a vontade de profetizar’.
“Vãos esforços! Prendiam, torturaram os corpos, mas o Espírito ficava livre e os profetas se multiplicavam. Em novembro retiraram mais de duzentos das Cevenas ‘que condenaram a servir ao rei, uns nos seus exércitos, outros nas galés’ (Corte de Gébelin). Houve execuções capitais, que não pouparam nem mesmo as mulheres. Em Montpellier enforcaram uma profetisa de Vivarais, porque saía sangue de seus olhos e de seu nariz, que ela chamava de lágrimas de sangue que chorava sobre os infortúnios de seus correligionários, sobre os crimes de Roma e dos papistas...
“Uma surda irritação, uma onda de cólera há muito contida rugia em todas as gargantas ao término desses vinte anos de intoleráveis iniquidades. A paciência das vítimas não diminuía a fúria dos carrascos. Pensaram, enfim, em conter a força pela força.
“Era, sem dúvida, diz Brueys, um espetáculo muito extraordinário e muito novo; via-se marcharem as forças armadas para combaterem pequenos exércitos de profetas.” (t. 1, pág. 156).
“Espetáculo estranho, com efeito, porque os mais perigosos entre esses pequenos profetas defendiam-se a pedradas, refugiados em alturas inacessíveis. Mas na maioria das vezes eles não tentavam nem mesmo defender a própria vida. Quando as tropas avançavam para atacá-los, eles marchavam atrevidamente contra elas, soltando brados: ‘Tartará! Tartará! Para trás, Satã!’ Dizia-se que eles acreditavam que a palavra tartará, como um exorcismo, devia pôr os inimigos em fuga; que eles próprios eram invulneráveis, ou que ressuscitariam ao cabo de três dias, se viessem a sucumbir na luta. Suas ilusões não duravam muito nesses vários pontos, e em breve opuseram aos católicos armas mais eficazes.
“Em dois encontros na montanha de Chailaret, não longe de Saint-Genieys mataram algumas centenas, prenderam um bom número, e o resto pareceu dispersarse. Bâville julgava os cativos, mandava prender alguns e enviava o resto para as galés; e como nada disso parecia absolutamente desencorajar os reformados, continuaram a procurar as reuniões do deserto, a estrangular impiedosamente os que se rendiam, sem que estes pensassem ainda em opor uma séria resistência a seus carrascos. Segundo o depoimento de uma profetisa chamada Isabel Charras, consignado no Teatro sagrado de Cevenas, esses infelizes mártires voluntários entregavam-se, previamente advertidos pelas revelações dos extáticos, à sorte que os aguardava. Lemos ali:
“O chamado Jean Héraut, nosso vizinho, e quatro ou cinco de seus filhos com ele, tinham inspirações. Os dois mais novos tinham, um sete anos, o outro cinco e meio, quando receberam o dom. Eu os vi muitas vezes em seus êxtases. Um outro vizinho nosso, chamado Marliant, também tinha dois filhos e três filhas no mesmo estado. A mais velha era casada. Estando grávida de cerca de oito meses, foi a uma assembleia, em companhia de seus irmãos e irmãs, levando com ela o filhinho de sete anos. Ali foi massacrada com o dito menino, um de seus irmãos e uma das irmãs. O irmão que não foi morto ficou ferido, mas se curou, e a mais nova das irmãs foi deixada como morta, debaixo de corpos massacrados, sem ter sido ferida. A outra irmã foi levada ainda viva para a casa do pai, mas morreu dos ferimentos, alguns dias depois. Eu não estava na assembleia, mas vi o espetáculo desses mortos e desses feridos.”
“O que há de mais notável é que todos esses mártires tinham sido avisados pelo Espírito do que lhes devia acontecer. Eles tinham-no dito a seu pai, dele se despedindo e pedindo sua bênção, na mesma tarde em que saíram de casa para ir à assembleia que devia realizar-se na noite seguinte. Quando o pai viu todas essas lamentáveis ocorrências, não sucumbiu à sua dor, mas, ao contrário, disse com piedosa resignação: ‘O Senhor o deu, o Senhor o tirou; que o nome do Senhor seja bendito!’ Foi do irmão, do genro, dos dois filhos feridos e de toda a família que eu soube que tudo isto tinha sido predito.”
EUGÈNE BONNEMÈRE.
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Um volume in-12, 3,50 francos; pelo correio, 4 francos. Paris, Livreiros Décembre-Allonier.