Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869

Allan Kardec

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Março

A carne é fraca

Estudo fisiológico e moral

Há inclinações viciosas que evidentemente são mais inerentes ao espírito, porque têm a ver mais com a moral do que com o físico; outras mais parecem consequência do organismo e, por este motivo, a gente se julga menos responsável. Tais são as predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.

Está hoje perfeitamente reconhecido pelos filósofos espiritualistas que os órgãos cerebrais correspondentes às diversas aptidões devem o seu desenvolvimento à atividade do espírito; que esse desenvolvimento é, assim, um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a bossa da música, mas tem a bossa da música porque seu espírito é músico (Revista de julho de 1860 e abril de 1862).

Se a atividade do espírito reage sobre o cérebro, deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. Assim, o espírito é o artífice de seu próprio corpo, por assim dizer, modela-o, a fim de apropriá-lo às suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Assim sendo, a perfeição do corpo nas raças adiantadas seria o resultado do trabalho do espírito que aperfeiçoa o seu utensílio à medida que aumentam as suas faculdades. (A Gênese segundo o Espiritismo, cap. XI, Gênese Espiritual).

Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou de outros fluidos. É assim, por exemplo, que o glutão sente vir a saliva, ou, como se diz vulgarmente, vir água à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o alimento que pode superexcitar o órgão do paladar, pois não há contato; é, portanto, o espírito, cuja sensualidade é despertada, que age pelo pensamento sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro Espírito, a visão daquele prato nada produz. Dá-se o mesmo em todas as cobiças, todos os desejos provocados pela visão. A diversidade das emoções não pode ser compreendida, numa porção de casos, senão pela diversidade das qualidades do espírito. Tal é a razão pela qual uma pessoa sensível facilmente derrama lágrimas; não é a abundância das lágrimas que dá a sensibilidade ao espírito, mas a sensibilidade do espírito que provoca a abundante secreção de lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo modelou-se sob esta disposição normal do espírito, como se modelou sob a do espírito glutão.

Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um espírito irascível deve levar ao temperamento bilioso, de onde se segue que um homem não é colérico porque é bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. Assim acontece com todas as outras disposições instintivas; um espírito mole e indolente deixará o seu organismo num estado de atonia em relação com o seu caráter, ao passo que, se ele for ativo e enérgico, dará ao seu sangue, aos seus nervos, qualidades bem diferentes. A ação do espírito sobre o físico é de tal modo evidente, que por vezes se veem graves desordens orgânicas produzidas por efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: A emoção lhe fez subir o sangue, não é assim despida de sentido quanto se podia crer. Ora, o que pôde alterar o sangue senão as disposições morais do espírito?

Este efeito é sensível sobretudo nas grandes dores, nas grandes alegrias, nos grandes pavores, cuja reação pode chegar a causar a morte. Vemos pessoas que morrem do medo de morrer. Ora, que relação existe entre o corpo do indivíduo e o objeto que causa pavor, objeto que, muitas vezes, não tem qualquer realidade? Diz-se que é o efeito da imaginação; seja, mas o que é a imaginação senão um atributo, um modo de sensibilidade do espírito? Parece difícil atribuir à imaginação, aos músculos e aos nervos, pois então não compreenderíamos por que esses músculos e esses nervos não têm imaginação sempre; por que não a têm após a morte; por que o que nuns causa um pavor mortal, noutros excita a coragem.

Seja qual for a sutileza que usemos para explicar os fenômenos morais exclusivamente pelas propriedades da matéria, cairemos inevitavelmente num impasse, no fundo do qual se percebe, com toda a evidência, e como única solução possível, o ser espiritual independente, para quem o organismo não é senão um meio de manifestação, como o piano é o instrumento das manifestações do pensamento do músico. Assim como o músico afina o seu piano, pode-se dizer que o Espírito afina o seu corpo para pô-lo no diapasão de suas disposições morais.

É realmente curioso ver o materialismo falar incessantemente da necessidade de elevar a dignidade do homem, quando se esforça para reduzi-lo a um pedaço de carne que apodrece e desaparece sem deixar qualquer vestígio; de reivindicar para si a liberdade como um direito natural, quando o transforma num mecanismo, marchando como um boneco, sem responsabilidade por seus atos.

Com o ser espiritual independente, preexistente e sobrevivente ao corpo, a responsabilidade é absoluta. Ora, para a maioria, o primeiro, o principal móvel da crença no niilismo, é o pavor que causa essa responsabilidade, fora da lei humana, e à qual crê escapar fechando os olhos. Até hoje essa responsabilidade nada tinha de bem definido; não era senão um medo vago, fundado, há que reconhecer, em crenças nem sempre admissíveis pela razão. O Espiritismo a demonstra como uma realidade patente, efetiva, sem restrição, como uma consequência natural da espiritualidade do ser. Eis por que certas pessoas temem o Espiritismo, que as perturbaria em sua quietude, erguendo à sua frente o temível tribunal do futuro. Provar que o homem é responsável por todos os seus atos é provar a sua liberdade de ação, e provar a sua liberdade é revelar a sua dignidade. A perspectiva da responsabilidade fora da lei humana é o mais poderoso elemento moralizador: é o objetivo ao qual conduz o Espiritismo pela força das coisas.

Portanto, conforme as observações fisiológicas que precedem, podemos admitir que o temperamento é, pelo menos em parte, determinado pela natureza do espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico evidentemente influi sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal-estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode, então, ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.

Escusar-se de suas más ações com a fraqueza da carne não é senão um subterfúgio para eximir-se da responsabilidade. A carne não é fraca senão porque o espírito é fraco, o que derruba a questão e deixa ao espírito a responsabilidade de todos os seus atos. A carne, que não tem nem pensamento nem vontade, jamais prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e voluntarioso. É o espírito que dá à carne as qualidades correspondentes aos instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. Liberto dos instintos da bestialidade, o espírito modela um corpo que não é mais um tirano para as suas aspirações à espiritualidade de seu ser; então o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive para comer.

A responsabilidade moral dos atos da vida, portanto, permanece íntegra. Mas, diz a razão que as consequências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito, pois quanto mais esclarecido ele for, menos escusável será, porque, com a inteligência e o senso moral, nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. O selvagem, ainda vizinho da animalidade, que cede ao instinto do animal, comendo o seu semelhante, é, sem contradita, menos culpável que o homem civilizado que comete uma simples injustiça.

Esta lei ainda encontra sua aplicação na Medicina e dá a razão do seu insucesso em certos casos. Considerando-se que o temperamento é um efeito, e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo podem ser paralisados pelas disposições morais do espírito que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, pois, sobre a causa primeira que devemos agir; se se consegue mudar as disposições morais do espírito, o temperamento modificar-se-á por si mesmo, sob o império de uma vontade diferente ou, pelo menos, a ação do tratamento médico será ajudada, em vez de ser tolhida. Se possível, dai coragem ao poltrão, e vereis cessarem os efeitos fisiológicos do medo. Dá-se o mesmo com as outras disposições.

Mas, perguntarão, pode o médico do corpo fazer-se médico da alma? Está em suas atribuições fazer-se moralizador de seus doentes? Sim, sem dúvida, em certos limites; é mesmo um dever que um bom médico jamais negligencia, desde o instante que vê no estado da alma um obstáculo ao restabelecimento da saúde do corpo. O essencial é aplicar o remédio moral com tato, prudência e convenientemente, conforme as circunstâncias. Deste ponto de vista, sua ação é forçosamente circunscrita, porque, além de ele ter sobre o seu doente apenas uma ascendência moral, em certa idade é difícil uma transformação do caráter. É, pois, à educação, e sobretudo à primeira educação, que incumbem os cuidados dessa natureza. Quando a educação, desde o berço, for dirigida nesse sentido; quando nos aplicarmos em abafar, em seus germes, as imperfeições morais, como fazemos com as imperfeições físicas, o médico não mais encontrará no temperamento um obstáculo contra o qual a sua ciência muitas vezes é impotente.

Como se vê, é todo um estudo, mas um estudo completamente estéril, enquanto não levarmos em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. Participação incessantemente ativa do elemento espiritual nos fenômenos da vida, tal é a chave da maior parte dos problemas contra os quais se choca a Ciência. Quando ela levar em consideração a ação desse princípio, verá abrir-se à sua frente horizontes completamente novos. É a demonstração desta verdade que o Espiritismo traz.


Apóstolos do Espiritismo na Espanha

Ciudad-Real, fevereiro de 1869 -

Ao Senhor Allan Kardec

Caro Senhor,

Os espíritas que compunham o círculo da cidade de Andujar, hoje disseminados pela vontade de Deus para a propagação da verdadeira doutrina, vos saúdam fraternalmente.

Ínfimos pelo talento, grandes pela fé, propomo-nos sustentar, tanto pela imprensa quanto pela palavra, tanto em público quanto em particular, a Doutrina Espírita, porque é a mesma que Jesus pregou, quando veio à Terra para a redenção da Humanidade.

A Doutrina Espírita, chamada a combater o materialismo, a fazer prevalecer a divina palavra, a fim de que o espírito do Evangelho não seja mais truncado por ninguém; a preparar o caminho da igualdade e da fraternidade, necessita hoje, na Espanha, de apóstolos e de mártires. Se não podemos ser os primeiros, seremos os últimos. Estamos prontos para o sacrifício.

Lutaremos sós ou reunidos com os que professam a nossa doutrina. Os tempos são chegados. Não percamos, por indecisão ou por medo, a recompensa que está reservada aos que sofrem e são perseguidos pela justiça.

Nosso grupo era composto de seis pessoas, sob a direção espiritual do Espírito de Fénelon. Nosso médium era Francisco Perez Blanca, e os outros: Pablo Medina, Luis Gonzalez, Francisco Marti, José Gonzalez e Manuel Gonzalez.

Depois de haver espalhado a semente em Andujar, estamos hoje em diferentes cidades: León, Sevilha, Salamanca, etc., onde cada um de nós trabalha na propagação da Doutrina, o que consideramos como nossa missão.

Seguindo os conselhos de Fénelon, vamos publicar um jornal espírita. Desejando ilustrá-lo com extratos tirados das obras que publicastes, pedimos que nos concedais permissão. Além disso, sentir-nos-íamos muito felizes com a vossa benévola cooperação e, para tal fim, pomos à vossa disposição as colunas do nosso jornal.

Agradecendo-vos antecipadamente, rogamos saudar, em nosso nome, os nossos irmãos da Sociedade de Paris.

E vós, caro Senhor, recebei o fraternal abraço de vossos irmãos.

Por todos,

MANUEL GONZALEZ SORIANO.


Já tivemos muitas ocasiões de dizer que a Espanha contava numerosos adeptos, sinceros, devotados e esclarecidos. Aqui já não é mais devotamento, é abnegação; não uma abnegação irrefletida, mas calma, fria, como a do soldado que marcha para o combate, dizendo: “Custe-me o que custar, cumprirei o meu dever.” Não é essa coragem que chameja como um fogo de palha e se extingue ao primeiro alarme; que, antes de agir, calcula cuidadosamente o que pode perder ou ganhar; é o devotamento daquele que põe o interesse de todos acima do interesse pessoal.

O que teria ocorrido às grandes ideias que fizeram o mundo progredir, se só tivessem encontrado defensores egoístas, devotados em palavras desde que nada tivessem a perder, mas se dobrando ante um olhar de ameaça e o medo de comprometer algumas parcelas de seu bem-estar? As ciências, as artes, a indústria, o patriotismo, as religiões, as filosofias tiveram seus apóstolos e seus mártires. O Espiritismo também é uma grande ideia regeneradora; ele acaba de nascer; ele ainda não está completo, e já encontra corações devotados até a abnegação, até o sacrifício, devotamentos às vezes obscuros, que não buscam nem a glória nem o brilho, mas que, por agirem numa pequena esfera, são mais meritórios ainda, porque são moralmente mais desinteressados.

Contudo, em todas as causas, os devotamentos em plena luz são necessários, porque eletrizam as massas. Certamente não está distante o tempo em que o Espiritismo terá também seus grandes defensores que, desafiando os sarcasmos, os preconceitos e a perseguição, hastearão a sua bandeira com a firmeza que dá a consciência de fazer uma coisa útil; apoiá-lo-ão com a autoridade de seu nome e de seu talento, e seu exemplo arrastará a multidão dos tímidos, que prudentemente ainda se põem à margem.

Nossos irmãos da Espanha iniciam a caminhada; cingem os rins e aprestam-se para a luta. Que recebam as nossas felicitações e as de seus irmãos em crença de todos os países, pois entre os espíritas não há distinção de nacionalidades. Seus nomes serão inscritos com honra ao lado dos corajosos pioneiros aos quais a posteridade deverá um tributo de reconhecimento por terem sido os primeiros a pagar com suas pessoas, e contribuído para a ereção do edifício.

Dir-se-á que o devotamento consiste em tomar o bastão de viagem para ir pregar pelo mundo a todas as pessoas? Não, por certo; em qualquer lugar onde estejamos, podemos ser úteis. O verdadeiro devotamento consiste em tirar o melhor partido de sua posição, pondo a serviço da causa, o mais utilmente possível e com discernimento, as forças físicas e morais que a Providência concedeu a cada um.

A dispersão desses senhores não é um fato de sua vontade. Reunidos, no início, pela natureza de suas funções, estas os chamaram a vários pontos da Espanha. Longe de se desencorajarem por esse isolamento, eles compreenderam que, ficando unidos por pensamento e pela ação, poderiam fincar a bandeira em vários centros, e que assim sua separação reverteria em proveito da vulgarização da ideia.

Assim se deu num regimento francês, onde um certo número de oficiais tinha formado grupos, dos mais sérios e melhor organizados que vimos. Animados de um zelo esclarecido e de um devotamento a toda prova, de início seu objetivo era instruir-se a fundo nos princípios da Doutrina, depois exercitar-se na palavra, impondo-se a obrigação de tratar, em rodízio, uma questão, para se familiarizarem na controvérsia. Fora do círculo, eles pregavam pela palavra e pelo exemplo, mas com prudência e moderação; não procurando fazer propaganda a qualquer preço, tornavam-na mais útil. O regimento, tendo mudado sua sede, foi repartido por várias cidades. Assim o grupo se dispersou materialmente, mas, sempre unido em intenções, continuou sua obra em pontos diferentes.


O Espiritismo por toda parte

Extraído dos jornais ingleses

Um dos nossos correspondentes de Londres nos transmite a seguinte notícia:

“O jornal inglês The Builder (O Construtor), órgão dos arquitetos, muito estimado por seu caráter prático e retidão de seus julgamentos, tratou incidentemente, em várias ocasiões, de questões atinentes ao Espiritismo. Em seus artigos ele aborda mesmo as manifestações de nossos dias, sobre as quais o autor faz uma apreciação do seu ponto de vista.

“O Espiritismo também foi abordado em algumas das últimas notícias da Revista Antropológica de Londres; aí se declara que o fato da intervenção ostensiva dos Espíritos, em certos fenômenos, é muito bem verificado para ser posto em dúvida. Aí se fala do envoltório corporal do homem como de uma grosseira vestimenta apropriada ao seu estado atual, que se considera como o mais baixo escalão do reino hominal; esse reino, apesar de ser o coroamento da animalidade do planeta, não é senão um esboço do corpo glorioso, leve, purificado e luminoso que a alma deve revestir no futuro, à medida que a raça humana se desenvolve e se aperfeiçoa.

“Ainda não é, acrescenta o correspondente, a doutrina homogênea e coerente da escola espírita francesa, mas dela muito se aproxima, e me pareceu interessante como indício do movimento das ideias no senso espírita deste lado do estreito. Entretanto, falta-lhes direção; eles navegam à deriva nesse mundo novo que se abre ante a Humanidade, e não é de admirar que nele a gente se perca por falta de um guia. Não temos dúvidas que, se as obras da Doutrina fossem traduzidas para o inglês, reuniriam numerosos partidários, firmando as ideias ainda incertas.

“A. BLACKWELL.”


CHARLES FOURIER

Numa obra intitulada: Charles Fourier, sua vida e suas obras, por Pellarin, encontra-se uma carta de Fourier ao Sr. Muiron, datada de 3 de dezembro de 1826, pela qual ele prevê os futuros fenômenos do Espiritismo.

Ela é assim concebida:

“Parece que os Srs. C. e P. renunciaram ao seu trabalho sobre o magnetismo. Eu apostaria que não fazem valer o argumento fundamental: é que, se tudo está ligado no universo, devem existir meios de comunicação entre as criaturas do outro mundo e deste; quero dizer: comunicações de faculdades, participação temporária ou acidental das faculdades dos extramundanos ou defuntos, e não comunicação com eles. Essa participação não se pode dar em vigília, mas apenas num estado misto, como o sono ou outro. Os magnetizadores encontraram esse estado? Eu o ignoro! Mas, em princípio, sei que deve existir.”

Fourier escrevia isto em 1826, a propósito dos fenômenos sonambúlicos; ele não podia ter qualquer ideia dos meios de comunicação direta descobertos vinte e cinco anos mais tarde, e não concebia a sua possibilidade senão num estado de desprendimento, que de certo modo aproximasse os dois mundos; mas nem por isso deixava de ter a convicção do fato principal, o da existência dessas relações.

Sua crença sobre um outro ponto capital, o da reencarnação na Terra, é ainda mais preciso quando ele diz: Um mau rico poderá voltar para mendigar à porta do castelo do qual foi proprietário. É o princípio da expiação terrena nas existências sucessivas, em tudo semelhante ao que ensina o Espiritismo, conforme os exemplos fornecidos por essas mesmas relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Graças a tais relações, esse princípio de justiça, que não existia no pensamento de Fourier senão no estado de teoria ou de probabilidade tornou-se uma verdade patente.



PROFISSÃO DE FÉ DE UM FOURIERISTA


A seguinte passagem é extraída de uma nova obra intitulada Cartas a meu irmão sobre as minhas crenças religiosas, por Math. Briancourtpor Math. Briancourt: [1]

“Creio num só Deus todo-poderoso, justo e bom, tendo por corpo a luz, por membros a totalidade dos astros ordenados em série hierárquica.

“Creio que Deus designa a todos os seus membros, grandes e pequenos, uma função a cumprir no desenvolvimento da vida universal que é a sua vida, reservando a inteligência para aqueles membros que ele associa a si mesmo no governo do mundo.

“Creio que os membros inteligentes do último grau, as Humanidades, têm por tarefa a gestão dos astros que habitam e sobre os quais têm missão de fazer reinar a ordem, a paz e a justiça.

“Creio que as criaturas cumprem suas funções satisfazendo às suas necessidades que Deus adapta exatamente às exigências das funções; e como, em sua bondade, ele liga o prazer à satisfação das necessidades, creio que toda criatura, realizando a sua tarefa, é tão feliz quanto comporta a sua natureza, e que os sofrimentos são tanto mais vivos quanto mais ele se afasta da realização de sua tarefa.

“Creio que a Humanidade terrena em breve terá adquirido os conhecimentos e o material que lhe são indispensáveis para cumprir sua alta função, e que, em consequência, o dia da felicidade geral aqui na Terra não tardará muito a surgir.

“Creio que a inteligência dos seres racionais dispõe de dois corpos, um formado de substâncias visíveis aos nossos olhos, outro de matérias mais sutis e invisíveis chamadas aromas.

Creio que, com a morte de seu corpo visível, esses seres continuam a viver num mundo aromal, onde encontram a recompensa exata de suas obras boas ou más; em seguida, após um tempo mais ou menos longo, retomam um corpo material para abandoná-lo novamente à decomposição, e assim por diante.

“─ Creio que as inteligências que crescem cumprindo exatamente as suas funções vão animar seres cada vez mais elevados na divina hierarquia, até que entrem, no fim dos tempos, no seio de Deus, de onde saíram, que se unam à sua inteligência e partilhem de sua vida aromal.”

Com uma tal profissão de fé, compreende-se que os fourieristas e espíritas possam dar-se as mãos.


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[1] 1 vol. in-18. Livraria de Ciências Sociais.









Variedades

Senhorita de Chilly

Lê-se na Petite Presse, de 11 de fevereiro de 1869:

“O Sr. de Chilly, simpático diretor do Odéon, tão cruelmente provado pela morte quase fulminante de sua filha única, está ameaçado de uma nova dor. Sua sobrinha, Senhorita Artus, filha do antigo regente da orquestra do Ambigu-Comique, está neste momento, por assim dizer, às portas do túmulo. A propósito, o Figaro relata esta triste e tocante história:

Agonizante, a Senhorita Chilly deu um pequeno anel a essa prima cuja vida está hoje tão cruelmente ameaçada e lhe disse: ─ Toma-o; tu mo devolverás!

Estas palavras feriram a imaginação da pobre menina? Eram elas a expressão dessa dupla vista atribuída à morte? Entrementes, alguns dias após os funerais da Senhorita de Chilly, sua jovem prima caía doente.”

“O que o Figaro não diz é que, em seus últimos momentos, a pobre morta, que se agarrava à vida com toda a energia do seus belos dezoito anos, gritava de seu leito de dor à sua prima que se fundia em lágrimas num canto do quarto, teatro de sua agonia:

“─ Não! Eu não quero morrer! Não quero partir sozinha! Virás comigo! Eu te espero! Eu te espero! Tu não te casarás!

“Que espetáculo e que angústias para essa infortunada Senhorita Artus, cujo casamento, aliás, se preparava no momento mesmo em que a Senhorita de Chilly se acamava para não mais se erguer!”

Sim, certamente, estas palavras são a expressão da dupla vista atribuída à morte, cujos exemplos não são raros. Quantas pessoas tiveram pressentimentos desse gênero antes de morrer! Dirão que elas representam uma comédia? Que os niilistas expliquem esses fenômenos, se puderem! Se a inteligência não fosse senão uma propriedade da matéria, e devesse extinguir-se com esta, como explicar a recrudescência da atividade dessa mesma inteligência, as faculdades novas, por vezes transcendentes, que se manifestam tantas vezes no momento mesmo em que o organismo se dissolve, em que o último suspiro será exalado? Isto não prova que algo sobrevive ao corpo? Foi dito centenas de vezes que a alma independente se revela a cada instante, sob mil formas e em condições de tal modo evidentes que é preciso fechar voluntariamente os olhos para não vê-la.


Aparição de um filho vivo a sua mãe

O fato seguinte é relatado por um jornal de medicina de Londres e reproduzido pelo Journal de Rouen, de 22 de dezembro de 1868:

“Na semana passada, o Sr. Samuel W..., um dos principais empregados do Banco, teve que ausentar-se de uma reunião para a qual tinha sido convidado com sua senhora, pois se achava muito indisposto. Chegou em casa com uma febre violenta. Procuraram o médico, mas este tinha sido chamado a uma cidade próxima e só voltaria tarde da noite.

“A Senhora Samuel decidiu esperar o médico à cabeceira do seu marido.

Embora com uma febre ardente, o doente dormia tranquilamente. Um pouco tranquilizada, vendo que seu marido não sofria, a Sra. Samuel não lutou contra o sono e por sua vez adormeceu.

“Por volta das três horas ela ouviu tocar a campainha da porta principal. Deixou a poltrona precipitadamente, tomou um castiçal e desceu ao salão.

“Lá esperava ver entrar o médico. Aberta a porta do salão, ao invés do médico ela viu entrar seu filho Edward, um rapaz de doze anos que estudava num colégio perto de Windsor. Estava pálido e tinha a cabeça envolta em largo penso branco.

“─ Esperavas o médico para o papai, não? perguntou ele abraçando a mãe. Mas papai está melhor. Ele não tem nada mesmo, e levantará amanhã. Sou eu que necessito de um bom médico. Trata de chamá-lo já, porque o do colégio não entende muito da coisa...

“Imobilizada de medo, a Sra. Samuel teve forças para tocar a sineta. Chegou a criada de quarto. Encontrou a patroa no meio do salão, imóvel, com o castiçal na mão. O som de sua voz despertou a Sra. Samuel. Ela tinha sido presa de uma visão, de um sonho, chamemos como quisermos. Lembrava-se de tudo e repetiu à camareira o que tinha julgado ouvir. Depois exclamou chorando: ‘Deve ter acontecido uma desgraça a meu filho!’

“Chegou o médico tão esperado. Examinou o Sr. Samuel. A febre tinha quase desaparecido. Afirmou que tinha sido apenas uma febre nervosa, que seguia o seu curso e acabaria em algumas horas.

“Depois destas palavras tranquilizadoras, a mãe narrou ao médico o que lhe havia acontecido uma hora antes. O profissional, por incredulidade ou talvez por vontade de ir repousar, aconselhou a Sra. Samuel a não ligar importância a esses fantasmas. Contudo, teve que ceder aos rogos, às angústias da mãe e acompanhá-la a Windsor.

“Ao romper do dia chegaram ao colégio. A Sra. Samuel pediu notícias de seu filho; responderam que ele estava na enfermaria desde a véspera. O coração da pobre mãe apertou-se; o médico ficou desconfiado.

“Apressaram-se em visitar o menino. Ele havia sofrido grande ferimento na testa, brincando no jardim. Haviam-lhe prestado os primeiros cuidados. Apenas o curativo estava mal feito. Entretanto, a ferida nada tinha de perigoso.

“Eis o fato em todos os seus detalhes; soubemo-lo por pessoas dignas de fé. Dupla vista ou sonho, devemos de qualquer maneira considerá-lo como um fato pouco comum.”

Como se vê, a ideia da dupla vista ganha terreno. Ela ganha crédito fora do Espiritismo, como a pluralidade das existências, o perispírito, etc. Tanto é verdade que o Espiritismo chega por mil caminhos e se implanta sob todas as formas, até mesmo por conta dos cuidados daqueles que não o querem.

A possibilidade do fato acima é evidente e seria supérfluo discuti-la. É um sonho ou efeito da dupla vista? A Sra. Samuel dormia e, ao despertar, lembra-se do que viu; era, pois, um sonho; mas um sonho que traz a imagem de uma atualidade tão precisa, que é verificada quase imediatamente, não é um produto da imaginação: É uma visão muito real. Há ao mesmo tempo dupla vista ou visão espiritual, porque é bem certo que não foi com os olhos do corpo que a mãe viu o seu filho. De um lado e do outro houve desprendimento da alma. Foi a alma da mãe que foi para o filho, ou a do filho que veio para a mãe? As circunstâncias tornam este último caso mais provável, porque na outra hipótese a mãe teria visto o filho na enfermaria.

Alguém que só conhece o Espiritismo muito superficialmente, mas admite perfeitamente a possibilidade de certas manifestações, perguntava como é que o filho, que estava em seu leito, tinha podido apresentar-se à mãe com as suas roupas. “Concebo, dizia ele, a aparição pelo fato do desprendimento da alma, mas não compreenderia que os objetos puramente materiais, como roupas, tenham a propriedade de transportar para longe uma parte quintessenciada de sua substância, o que suporia uma vontade.”

Respondemos que as roupas, tanto quanto o corpo material do jovem, ficaram em seu lugar. Após uma curta explicação sobre os fenômenos de criações fluídicas, acrescentamos que o Espírito do jovem apresentou-se em casa de sua mãe com o corpo fluídico ou perispiritual. Sem ter tido o desígnio premeditado de vestir as roupas, sem ter feito este raciocínio: “Minhas roupas de pano ali estão; não posso vesti-las; há que fabricar roupas fluídicas que terão a sua aparência”, bastou-lhe pensar em sua roupa habitual, na que teria usado em circunstâncias comuns, para que esse pensamento desse ao seu perispírito as aparências dessa mesma roupa. Pela mesma razão ele teria podido apresentar-se com a roupa de dormir, se tal tivesse sido o seu pensamento. Para si mesmo essa aparência ter-se-ia tornado uma espécie de realidade; ele tinha apenas uma imperfeita consciência de seu estado fluídico e, assim como certos Espíritos ainda se julgam no mundo, ele julgava vir à casa da mãe em carne e osso, pois a beijou como de costume.

As formas exteriores que revestem os Espíritos que se tomam visíveis, são, pois, verdadeiras criações fluídicas, muitas vezes inconscientes. A roupa, os sinais particulares, os ferimentos, os defeitos físicos, os objetos que usa são o reflexo de seu próprio pensamento no envoltório perispiritual.

─ Mas, então, diz o nosso interlocutor, é toda uma ordem de ideias novas; há nisso tudo um mundo, e esse mundo está em nosso meio; muitas coisas se explicam; as relações entre mortos e vivos se compreendem.

─ Sem dúvida nenhuma, e é ao conhecimento desse mundo, que nos interessa por tantos motivos, que o Espiritismo conduz. Esse mundo se revela por uma multidão de fatos que são desprezados, por falta de compreensão de sua causa.


Um testamento nos Estados Unidos



“No Estado do Maine, nos Estados Unidos, uma senhora pleiteava a nulidade de um testamento de sua mãe. Ela dizia que, membro de uma Sociedade Espírita, sua mãe tinha escrito suas últimas vontades sob o ditado de uma mesa girante.

“O juiz declarou que a lei não proibia as consultas às mesas girantes, e as cláusulas do testamento foram mantidas.”

Ainda não chegamos a tanto na Europa. Assim, o jornal francês que relata o fato, precede-o desta exclamação: São fortes esses americanos! Entenda-se: São bobos!

Pense o que pensar o autor desta reflexão crítica, esses americanos poderão questionar, sobre certos pontos, se a velha Europa ainda se arrastará por muito tempo na trilha dos velhos preconceitos. O movimento progressivo da Humanidade partiu do Oriente e pouco a pouco se propagou pelo Ocidente. Já teria ele transposto o Atlântico e plantado a sua bandeira no novo continente, deixando a Europa na retaguarda, como a Europa deixou a Índia? Isto é uma lei, e o ciclo do progresso já teria dado várias voltas no mundo? O fato seguinte poderia fazê-lo supor:

Emancipação da mulher nos Estados Unidos

Escrevem de Yankton, cidade de Dakota, nos Estados Unidos, que a legislação desse território acaba de adotar, por grande maioria, um decreto do Sr. Enos Stutsman, que concede às mulheres o direito de voto e de elegibilidade. (Siècle, 15 de janeiro de 1869).

Quarta-feira, 29 de julho, a Sra. Alexandrine Bris prestou, perante a Faculdade de Ciências de Paris, um exame de bacharelado em ciências. Ela foi recebida com quatro bolas brancas, sucesso raro que lhe valeu as felicitações por parte do presidente, ratificadas por toda a assistência.

O Temps assegura que a Sra. Bris deve inscrever-se na Faculdade de Medicina, visando o doutorado. (Grand Moniteur, 6 de agosto de 1868).

Disseram-nos que a Sra. Bris é americana. Conhecemos duas senhoritas de Nova Iorque, irmãs de Miss B..., membro da Sociedade Espírita de Paris, que têm diploma de doutor e exercem a Medicina exclusivamente para mulheres e crianças.

Nós ainda não chegamos lá.


Emancipação da mulher nos Estados Unidos

Escrevem de Yankton, cidade de Dakota, nos Estados Unidos, que a legislação desse território acaba de adotar, por grande maioria, um decreto do Sr. Enos Stutsman, que concede às mulheres o direito de voto e de elegibilidade. (Siècle, 15 de janeiro de 1869).

Quarta-feira, 29 de julho, a Sra. Alexandrine Bris prestou, perante a Faculdade de Ciências de Paris, um exame de bacharelado em ciências. Ela foi recebida com quatro bolas brancas, sucesso raro que lhe valeu as felicitações por parte do presidente, ratificadas por toda a assistência.

O Temps assegura que a Sra. Bris deve inscrever-se na Faculdade de Medicina, visando o doutorado. (Grand Moniteur, 6 de agosto de 1868).

Disseram-nos que a Sra. Bris é americana. Conhecemos duas senhoritas de Nova Iorque, irmãs de Miss B..., membro da Sociedade Espírita de Paris, que têm diploma de doutor e exercem a Medicina exclusivamente para mulheres e crianças.

Nós ainda não chegamos lá.


Miss Nichol, médium de transporte



Nestes últimos dias o hotel dos Deux-Mondes, da Rua d’Antin, foi teatro de sessões sobrenaturais dadas pela célebre médium Nichol, apenas em presença de alguns iniciados.

A Sra. Nichol vai a Roma submeter ao exame do Santo Padre a sua faculdade extraordinária, que consiste em fazer cair chuva de flores. É o que se chama um médium de transporte (Jornal Paris, 15 de janeiro de 1869).

A Sra. Nichol é de Londres, onde goza de certa reputação como médium. Assistimos a algumas de suas experiências, numa sessão íntima, há mais de um ano, e confessamos que deixaram muito a desejar. É verdade que somos um tanto quanto cético a respeito de certas manifestações e um tanto exigente quanto às condições em que se produzem, não que ponhamos em dúvida a boa-fé dessa senhora. Dizemos apenas que aquilo que vimos não nos pareceu de natureza a convencer os incrédulos.

Desejamos-lhe boa sorte junto ao Santo Padre, porquanto ela não terá trabalho em convencê-lo da realidade dos fenômenos que hoje são abertamente confessados pelo clero (Ver a obra intitulada Dos Espíritos e suas relações com o mundo visível, pelo padre Triboulet[1]. Mas duvidamos muito que ela chegue a fazê-lo reconhecer oficialmente que não são obra do diabo.

Roma é uma terra malsã para os médiuns que não fazem milagres segundo a Igreja. Lembramos que em 1864 o Sr. Home, que ia à Roma, não para exercer a sua faculdade, mas unicamente para estudar escultura, teve que ceder à injunção que lhe foi feita de deixar a cidade em vinte e quatro horas (Revista de fevereiro de 1864).

[1] 1 volume in 8º. Preço: 5 francos.



As árvores mal-assombradas da Ilha Maurícia

As últimas notícias que recebemos da Ilha Maurício constatam que o estado dessa infeliz região segue exatamente as fases anunciadas (Revista de julho de 1867 e novembro de 1868). Além disso, elas contêm um fato notável, que forneceu assunto a uma importante instrução na Sociedade de Paris.

“Os calores do verão, diz o nosso correspondente, trouxeram a terrível febre, mais frequente, mais tenaz do que nunca. Minha casa tornou-se uma espécie de hospital, e eu passo o tempo a me tratar e tratar do próximo. É verdade que a mortalidade não é tão grande, mas, depois dos horríveis sofrimentos que nos causa cada acesso, experimentamos uma perturbação geral que desenvolve em nós novas doenças: as faculdades se alteram pouco a pouco; os sentidos, sobretudo a visão e a audição, são particularmente afetados. Entretanto, nossos bons Espíritos, perfeitamente de acordo em suas comunicações com as vossas, nos anunciam o fim próximo da epidemia, mas a ruína e a decadência dos ricos, o que, aliás, já começa.

“Aproveito o pouco tempo disponível para vos dar os detalhes que prometi, sobre os fenômenos de que minha casa tem sido teatro. As pessoas às quais ela pertencia antes de mim, despreocupadas e negligentes, conforme o uso da terra, tinham-na deixado cair quase em ruínas, e fui obrigado a fazer grandes reformas. O jardim, transformado num matagal, estava cheio dessas grandes árvores da Índia, chamadas multiplicadoras, cujas raízes, saídas do alto dos galhos, descem até o solo, onde se implantam e formam, ora troncos enormes, superpondo-se uns aos outros, ora galerias muito extensas.

“Essas árvores têm reputação muito má na região, onde passam por ser assombradas por maus Espíritos. Sem consideração por seus supostos habitantes misteriosos, como absolutamente não eram do meu gosto e enchiam inutilmente o jardim, mandei abatê-las. Desde esse momento tornou-se-nos quase impossível um dia de repouso na casa. Seria preciso ser realmente espírita para continuar a habitála. A cada instante ouvíamos batidas por todos os lados, portas abrindo-se e fechando-se, móveis mexendo-se, suspiros, palavras confusas; muitas vezes, também, ouvíamos que andavam pelos quartos vazios. Os operários que reparavam a casa foram muitas vezes perturbados por esses ruídos estranhos mas, como era dia, não se apavoravam muito, pois essas manifestações são muito frequentes na região. Tivemos que fazer muitas preces, evocar esses Espíritos, doutriná-los, e eles só respondiam por injúrias e ameaças e não cessavam seu barulho.

“Nessa época tínhamos uma reunião por semana, mas não podeis imaginar todas as traquinagens que nos foram feitas para perturbar e interromper as sessões. Ora as comunicações eram interceptadas, ora os médiuns experimentavam sofrimentos que os constrangiam à inação.

“Parece que os frequentadores da casa eram muito numerosos e muito maus para serem moralizados, porque não o conseguimos, e fomos obrigados a cessar as reuniões, onde nada podíamos obter. Só um nos quis escutar e se recomendar às nossas preces. Era um pobre português, chamado Gulielmo, que se supunha vítima das criaturas com as quais tinha cometido não sei que maldade, e que o retinham lá, dizia ele, para sua punição. Tomei informações e soube que, efetivamente, um marinheiro português com esse nome tinha sido um dos locatários da casa, e que tinha morrido.

“A febre chegou; os ruídos tornaram-se menos frequentes, mas não cessaram; aliás, acabamos por nos habituar. Reuníamo-nos ainda, mas a doença impedia que as sessões prosseguissem normalmente. Tenho cuidado para que sejam feitas tanto quanto possível no jardim, pois notamos que na casa as boas comunicações são mais difíceis de obter e que nesses dias somos mais atormentados, sobretudo à noite.”

A questão dos lugares assombrados é um fato constatado; os barulhos e perturbações são coisas conhecidas, mas certas árvores terão um poder atrativo particular? Na circunstância de que se trata, existe uma relação qualquer entre a destruição dessas árvores e os fenômenos que se seguiram imediatamente? A crença popular teria aqui alguma realidade? É sobre isso que a instrução abaixo parece dar uma explicação lógica, até mais ampla confirmação.

(Sociedade de Paris, 19 de fevereiro de 1869)

Todas as lendas, sejam quais forem, por mais ridículas e pouco fundamentadas que pareçam, repousam numa base real, numa verdade incontestável, demonstrada pela experiência, mas amplificada e desnaturada pela tradição. Diz-se que certas plantas são boas para expulsar os maus Espíritos; outras podem provocar a possessão; certos arbustos são mais particularmente assombrados. Tudo isto é verdadeiro, de fato, isoladamente. Um fato ocorreu, uma manifestação especial justificou esse dito, e a massa supersticiosa apressou-se em generalizá-lo. É a história de um homem que pôs um ovo. A coisa corre em segredo de boca em boca e se amplia até tomar as proporções de uma lei incontestável, e essa lei que não existe é aceita em razão das aspirações para o desconhecido, para o extranatural da generalidade dos homens.

As multiplicadoras foram, sobretudo em Maurício, e são ainda, pontos de referência para as reuniões da noite; acomodam-se junto ao tronco, respiram o ar à sua volta, abrigam-se sob sua folhagem.

Ora, os homens, ao desencarnar, sobretudo quando estão em certa inferioridade, conservam seus hábitos materiais; eles frequentam os lugares de que gostavam quando encarnados; aí se reúnem e aí ficam; eis por que há lugares mais particularmente assombrados. Aí não vêm os primeiros Espíritos que chegam, mas os Espíritos que os frequentaram em vida. As multiplicadoras não são, pois, mais propícias à habitação dos Espíritos inferiores do que qualquer outro abrigo. O costume as designa aos fantasmas de Maurício, como certos castelos, certas clareiras das florestas alemãs, certos lagos são mais particularmente assombrados pelos Espíritos, na Europa.

Se forem perturbados esses Espíritos, ainda inteiramente materializados, e que, na sua maioria, se julgam vivos, eles se irritam e tendem a se vingar, a disputar com os que os privaram de seu abrigo, daí as manifestações de que essa senhora e muitos outros tiveram que se queixar.

Em geral, sendo a população mauriciana inferior, do ponto de vista moral, a desencarnação não pode fazer do espaço senão um viveiro de Espíritos muito pouco desmaterializados, ainda marcados por todos os seus hábitos terrenos, e que continuam, ainda que Espíritos, a viver como se fossem homens. Eles privam da tranquilidade e do sono aqueles que os privam de sua habitação predileta, eis tudo. A natureza do abrigo, seu aspecto lúgubre, nada têm que ver com isso; é simplesmente uma questão de bem-estar. Desalojam-nos e eles se vingam. Materiais por essência, eles se vingam materialmente, batendo nas paredes, lamentando-se, manifestando seu descontentamento sob todas as formas.

Que os mauricianos se depurem e progridam, e voltarão ao espaço com tendências de outra natureza, e as multiplicadoras perderão a faculdade de abrigar os fantasmas.

CLÉLIE DUPLANTIER.


Conferências sobre o Espiritismo

Sob o título O Espiritismo ante a Ciência tinha sido anunciada uma conferência pública, pelo Sr. Chevillard, na sala da Avenida dos Capucines para o dia 30 de janeiro último. Em que sentido devia falar o orador? É o que todo mundo ignorava.

O anúncio parecia prometer uma discussão ex-professo de todas as partes da questão. Contudo, o orador fez abstração completa da parte mais essencial, aquela que efetivamente constitui o Espiritismo: a parte filosófica e moral, sem a qual seguramente o Espiritismo não estaria hoje implantado em todas as partes do mundo, e não contaria seus adeptos por milhões. Desde 1855 já se abandonavam as mesas girantes; certamente se a isto se tivesse limitado o Espiritismo, há muito tempo não se falaria mais dele; sua rápida propagação data do momento em que nele se viu algo de sério e de útil, em que se entreviu um objetivo humanitário.

O orador limitou-se, então, ao exame de alguns fenômenos materiais, porque nem mesmo falou dos fenômenos espontâneos tão numerosos que se produzem fora de toda crença espírita. Ora, anunciar que se vai tratar de uma questão tão vasta, tão complexa nas suas aplicações e nas suas consequências e deter-se em alguns pontos de superfície, é absolutamente como se, sob o nome de Curso de Literatura, um professor se limitasse a explicar o alfabeto.

Talvez o Sr. Chevillard tenha dito para si mesmo: “Para que falar da doutrina filosófica? Considerando-se que essa doutrina se apoia na intervenção dos Espíritos, quando eu tiver provado que tal intervenção não existe, todo o resto esboroar-se-á.”

Quantos, antes do Sr. Chevillard, se gabaram de haver desferido o último golpe no Espiritismo, sem falar no inventor do famoso músculo que range, o doutor Jobert (de Lamballe) que mandava sem piedade todos os espíritas para o hospício e que, dois anos mais tarde, ele próprio morria numa casa de alienados! Contudo, malgrado todos esses fanfarrões, ferindo a punhal e espada, que pareciam não ter mais o que falar para reduzi-lo a pó, o Espiritismo viveu, cresceu e vive sempre, mais forte, mais vivaz do que nunca! Eis um fato que tem o seu valor. Quando uma ideia resiste a tantos ataques, é que algo mais existe.

Não se viram outrora cientistas esforçando-se por demonstrar que o movimento da Terra era impossível? E sem ir muito longe, este século não nos mostrou uma ilustre corporação declarar que a aplicação do vapor à navegação era uma quimera? Um livro curioso para ser editado seria a coletânea dos erros oficiais da Ciência. Isto é simplesmente para chegar à conclusão que quando uma coisa é verdadeira, ela avança a despeito de tudo, malgrado a opinião contrária dos sábios. Ora, se o Espiritismo avançou, apesar dos argumentos opostos pela alta e baixa ciência, há uma presunção em seu favor.

O Sr. Jobert (de Lamballe) tratava sem cerimônia todos os espíritas de charlatães e escroques. Há que render justiça ao Sr. Chevillard, que não os condena senão por se enganarem quanto à causa. Ademais, epítetos indecorosos, além de nada provarem, sempre denotam uma falta de cortesia, e teriam ficado muito deslocados num auditório onde necessariamente deveriam encontrar-se muitos espíritas. O púlpito evangélico é menos escrupuloso. Aí disseram muitas vezes: “Fugi dos espíritas como da peste e expulsai-os,” o que prova que o Espiritismo é alguma coisa, pois o temem, e porque não se dão tiros de canhão contra moscas.

O Sr. Chevillard não nega os fatos; ao contrário, ele os admite, pois os constatou. Apenas os explica à sua maneira. Traz ele pelo menos um argumento novo em apoio à sua tese? Pode-se julgar.

“Cada homem, diz ele, possui uma quantidade maior ou menor de eletricidade animal, que constitui o fluido nervoso. Esse fluido se desprende sob o império da vontade, do desejo de fazer mover uma mesa; ele penetra a mesa e a mesa se move; as pancadas na mesa não passam de descargas elétricas, provocadas pela concentração do pensamento.” Escrita mecânica: a mesma explicação.

Mas como explicar as pancadas nas paredes, sem a participação da vontade, na casa de pessoas que não sabem o que é o Espiritismo, ou nele não acreditam? Superabundância de eletricidade, que se desprende espontaneamente e produz descargas.

E as comunicações inteligentes? Reflexo do pensamento do médium.

E quando o médium obtém, pela tiptologia ou pela escrita, coisas que ele ignora? Sempre se sabe alguma coisa, e se não for o pensamento do médium, poderá ser o dos outros.

E quando um médium escreve inconscientemente coisas que lhe são pessoalmente desagradáveis, é o seu próprio pensamento? Deste fato, assim como de muitos outros, ele não cogita. Entretanto, uma teoria não pode ser verdadeira senão com a condição de resolver todas as fases de um problema. Se um só fato escapar à explicação, é que ela é falsa ou incompleta. Ora, de quantos fatos esta é impotente para dar a solução! Desejaríamos muito saber como o Sr. Chevillard explicaria, por exemplo, os fatos relatados acima, concernentes à Senhorita de Chilly, a aparição do jovem Edward Samuel, todos os incidentes do que se passou na Ilha Maurício. Como explicaria ele, pelo desprendimento da eletricidade, a escrita em pessoas que não sabem escrever? Pelo reflexo do pensamento, o caso daquela criada que escreveu, diante de toda uma sociedade: “Eu roubo a minha patroa?”

Em resumo, o Sr. Chevillard reconhece a existência dos fenômenos, o que já é alguma coisa, mas nega a intervenção dos Espíritos. Quanto à sua teoria, ela não oferece absolutamente nada de novo; é a repetição do que tem sido dito nos últimos quinze anos, sob todas as formas, sem que a ideia tenha prevalecido. Seria ele mais feliz que os seus predecessores? É o que o futuro provará.

É realmente curioso ver os expedientes a que recorrem os que querem tudo explicar sem os Espíritos! Em vez de irem direto ao que se apresenta diante deles na mais simples das formas, eles vão procurar causas tão embrulhadas, tão complicadas, que só para eles são inteligíveis. Eles deveriam, no mínimo, para completar sua teoria, dizer em que, na sua opinião, se tornam os Espíritos dos homens após a morte, pois isto interessa a todo mundo, e provar como é que esses Espíritos não podem manifestar-se aos vivos. É o que até agora ninguém fez, ao passo que o Espiritismo prova como eles podem fazê-lo.

Mas tudo isto é necessário. É preciso que todos esses sistemas se esgotem e mostrem sua impotência. Ademais, é fato notório que toda essa repercussão dada ao Espiritismo, todas as circunstâncias que o puseram em evidência, sempre lhe foram proveitosas; e, o que é digno de destaque, é que quanto mais violentos foram os ataques, mais ele progrediu. Não será necessário a todas as grandes ideias o batismo da perseguição, não bastasse o da zombaria? E por que ele não o vitimou? A razão é muito simples: É porque, fazendo-o dizer o contrário do que ele diz, apresentando-o oposto ao que ele é, corcunda quando é ereto, ele só terá a ganhar num exame sério e consciencioso, e aqueles que quiseram feri-lo, sempre golpearam à margem da verdade. (Vide Revista de fevereiro de 1869, Poder do ridículo).

Ora, quanto mais negras forem as cores sob as quais o apresentam, mais excitam a curiosidade. O partido que se aferrou em dizer que é o diabo fez muito bem, porque, entre os que ainda não tiveram ocasião de ver o diabo, muitos ficaram bem satisfeitos ao saber como ele é, e não o acharam tão negro como haviam dito. Dizei que numa praça de Paris há um monstro horrível que vai empestar toda a cidade, e todo mundo acorrerá para vê-lo. Não se viram autores mandarem publicar nos jornais, críticas contra as suas próprias obras, unicamente para que delas falassem? Tal foi o resultado das diatribes furibundas contra o Espiritismo. Elas provocaram o desejo de conhecê-lo e serviram-no mais do que o prejudicaram.

Falar do Espiritismo, não importa em que sentido, é fazer propaganda em seu proveito. Aí está a experiência para prová-lo. Deste ponto de vista, podemos felicitar-nos pela conferência do Sr. Chevillard. Mas, apressemo-nos em dizer, em louvor ao orador, que ele se fechou numa polêmica decente, leal e de bom gosto. Ele emitiu a sua opinião: é direito seu e, embora não seja a nossa, não temos de que nos lamentar. Mais tarde, sem dúvida nenhuma, quando chegar o momento oportuno, o Espiritismo também terá os seus oradores simpáticos. Apenas lhes recomendaremos que não caiam no erro dos adversários, isto é, que estudem a questão a fundo, a fim de não falar senão com perfeito conhecimento de causa.




Dissertações espíritas

A música e as harmonias celestes

Continuação: vide o nº de janeiro, último, p. 30

(Paris, grupo Desliens, 5 de janeiro de 1869 - Médium: Sr. Desliens)


Senhores, tendes razão de me lembrar minha promessa, porque o tempo, que passa tão rapidamente no mundo do espaço, tem minutos eternos para aquele que o sofre sob o amplexo da provação! Há alguns dias, algumas semanas, eu contava como vós; cada dia acrescentava toda uma série de vicissitudes às vicissitudes já suportadas, e a taça se ia enchendo piano, piano.

Ah! Não sabeis quanto o renome de grande homem é difícil de suportar! Não desejeis a glória; não sejais conhecidos: sede úteis. A popularidade tem os seus espinhos e, mais de uma vez, vi-me ferido pelas carícias demasiado brutais da multidão.

Hoje, a fumaça do incenso não mais me inebria. Pairo sobre as mesquinharias do passado, e é um horizonte sem limites que se estende ante a minha insaciável curiosidade. Assim, as horas caem aos punhados na ampulheta secular, e procuro sempre, sempre estudo sem jamais contar o tempo decorrido.

Sim, eu vos prometi. Mas quem pode gabar-se de cumprir uma promessa, quando os elementos necessários para cumpri-la pertencem ao futuro? O poderoso do mundo, ainda sob o bafejo da adulação dos cortesãos, pôde querer enfrentar o problema corpo a corpo; mas não era mais de uma luta fictícia que se travava aqui; não havia mais bravos, brilhantes aclamações para me encorajar e superar minha fraqueza. Era, e é ainda, um trabalho sobre-humano a que me entreguei. É contra ele que luto sempre, e, se espero triunfar, não obstante não posso dissimular o meu esgotamento. Estou vencido... em apuros!... Repouso antes de explorar de novo, mas, se hoje não posso falar-vos do que será o futuro, talvez possa apreciar o presente: ser crítico, depois de ter sido criticado. Vós me julgareis e não me aprovareis se eu não for justo, o que tentarei fazer, evitando personalismos.

Por que, então, tantos músicos e tão poucos artistas? Tantos compositores e tão poucas verdades musicais? Ah! É que não há, como se pensa, imaginação que a Arte possa criar; não há outro mestre e outro criador senão a verdade. Sem ela não há nada, ou só há uma arte de contrabando, pedras falsas, contrafação. O pintor pode criar a ilusão e mostrar branco onde não pôs senão uma mistura de cores sem nome; as oposições das nuanças criam uma aparência, e foi assim, por exemplo, que Horace Vernet pôde fazer parecer de um branco brilhante um magnífico cavalo baio.

Mas a nota só tem um som. O encadeamento dos sons não produz uma harmonia, uma verdade, senão quando as ondas sonoras se fazem o eco de outra verdade. Para ser músico não é necessário nada além de alinhar notas sobre um pentagrama, de maneira a conservar a justeza das relações musicais; só assim se consegue produzir ruídos agradáveis; mas é o sentimento que nasce da pena do verdadeiro artista, é ele que canta, que chora, que ri... Ele assovia na folhagem com o vento tempestuoso; ele salta com a vaga espumante; ele ruge com o tigre furioso!... Mas para dar uma alma à música, para fazê-la chorar, rir, uivar, é preciso que ele próprio tenha experimentado esses diferentes sentimentos, de dor, de alegria, de cólera!

É com o sorriso nos lábios e a incredulidade no coração que personificais um mártir cristão? Será um cético do amor que fará um Romeu, uma Julieta? É um vivedor despreocupado que criará a Margarida de Fausto? Não! É necessária a paixão por inteiro para aquele que faz vibrar a paixão!... E eis por que, quando se preenchem tantas folhas, as obras são tão raras e as verdades excepcionais; é que não se crê, é que a alma não vibra. O som que se escuta é o do ouro que tine, do vinho que crepita!... A inspiração é a mulher que exibe uma beleza mentirosa; e como não possuímos senão defeitos e virtudes fingidas, não produzimos senão um verniz, uma maquiagem musical. Raspai a superfície e logo encontrareis a pedra.

ROSSINI.

(17 de janeiro de 1869 - Médium: Sr. Nivard)

O silêncio que guardei sobre a pergunta que me dirigiu o mestre da Doutrina Espírita foi explicado. Era conveniente, antes de abordar este assunto difícil, recolher-me, lembrar-me, e condensar os elementos que me estavam à mão. Eu não tinha que estudar música, tinha apenas que classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar uma ideia de minha concepção sobre a harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, está terminado, e estou pronto para submetê-lo à apreciação dos espíritas.

A harmonia é difícil de definir. Muitas vezes confundem-na com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas e das vibrações dos instrumentos ao reproduzirem esse arranjo. Mas a harmonia não é isto, como a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: ela é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação, e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui o efeito é superior à causa. Assim se dá com a harmonia. Ela resulta de um arranjo musical; é um efeito igualmente superior à causa: a causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é tangível.

Pode-se conceber a luz sem chama e compreender a harmonia sem música. A alma é apta a perceber a harmonia fora de todo concurso de instrumentação, como é apta a ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que a alma possui. Quanto mais desenvolvido esse sentido, melhor ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma; ela é percebida em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; nós as possuímos em razão dos esforços feitos para adquiri-las. Se comparo a luz e a harmonia, é para melhor me fazer compreender, e também porque essas duas sublimes satisfações da alma são filhas de Deus, e, por consequência, são irmãs.

A harmonia do espaço é tão complexa, tem tantos graus que eu conheço, e muitos mais ainda que me são ocultos no éter infinito, que aquele que estiver colocado a uma certa altura de percepções, é como que tomado de admiração ao contemplar essas harmonias diversas, que constituiriam, se fossem reunidas, a mais insuportável cacofonia, ao passo que, ao contrário, percebidas separadamente, elas constituem a harmonia particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus inferiores; levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia que desagrada um Espírito de percepções sutis, deslumbra um Espírito de percepções grosseiras; e quando ao Espírito inferior é dado deleitar-se nas delícias das harmonias superiores, ele é colhido pelo êxtase e a prece o penetra; o encantamento o arrasta às esferas elevadas do mundo moral; ele vive uma vida superior à sua e desejaria continuar a viver sempre assim. Mas, quando a harmonia cessa de invadi-lo, ele desperta, ou, se preferirem, ele adormece; em todo caso, volta à realidade de sua situação, e nos lamentos que deixa escapar por ter descido se exala uma prece ao Eterno, pedindo forças para subir. É para ele um grande motivo de emulação.

Não tentarei dar a explicação dos efeitos musicais que produz o Espírito agindo sobre o éter. O que é certo é que o Espírito produz os sons que quer, e que ele não pode querer o que não sabe. Ora, então, aquele que compreende muito, que tem a harmonia em si, que dela está saturado, que goza, ele próprio, o seu sentido íntimo, esse nada impalpável, essa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e quer. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que ele traz em si se concretiza, por assim dizer; ela se exala terna e suave como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou rebenta como o raio, ou se lamenta como a brisa; ela é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; ela é entrecortada como um soluço, ou uniforme como a relva; ela é agitada como uma catarata, ou calma como um lago; ela murmura como um regato ou estruge como uma torrente. Ora tem a agreste aspereza das montanhas, ora a frescura de um oásis; é sucessivamente triste e melancólica como a noite, animada e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe e protetora como o pai; é desordenada como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando ela chega a este último termo, confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao deslumbramento aquele que a produz ou a concebe.

Oh! Comparação! Comparação! Por que se é obrigado a empregar-te? Por que dobrar-se às tuas necessidades degradantes e tomar à Natureza tangível, imagens grosseiras para fazer conceber a sublime harmonia em que se deleita o Espírito? E ainda, a despeito das comparações, não se pode dar a compreender essa abstração, que é um sentimento, quando ela é causa, e uma sensação quando ela se torna um efeito?

O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o Espírito que tem a quitação intelectual; um e outro gozam constantemente da propriedade inalienável que conquistaram. O Espírito inteligente, que ensina sua ciência aos que ignoram, experimenta a felicidade de ensinar, porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz ressoar no éter os acordes da harmonia que nele está, experimenta a felicidade de ver satisfeitos os que o escutam.

A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira o deslumbra, a segunda o esclarece, a terceira o eleva. Possuídas em sua plenitude, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as contendes! Descei às nossas trevas e clareai a nossa marcha; mostrai-nos o caminho que tomastes, para que sigamos as vossas pegadas!

E quando penso que esses Espíritos cuja existência posso compreender são seres finitos, átomos, em face do Senhor universal e eterno, minha razão fica confusa, pensando na grandeza de Deus e da felicidade infinita que ele goza em si mesmo, pelo simples fato de sua pureza infinita, porquanto tudo o que a criatura adquire não é senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplender pela virtude, que deve então produzir a fonte eterna e infinita de onde foi tirada? Se o Espírito, ser criado, chega a tirar de sua pureza tanta felicidade, que ideia se deve fazer da que o Criador tira de sua pureza absoluta? Eterno problema!

O compositor que concebe a harmonia e a traduz na grosseira linguagem chamada música, concretiza a ideia e escreve-a. O artista apreende a forma e toma do instrumento que lhe deve permitir exprimir a ideia. O ar posto em atividade pelo instrumento leva-a ao ouvido, que a transmite à alma do ouvinte. Mas o compositor foi impotente para exprimir inteiramente a harmonia que concebia, por falta de uma linguagem suficiente; por sua vez, o executante não compreendeu toda a ideia escrita, e o instrumento indócil de que ele se serve não lhe permite traduzir tudo quanto ele compreendeu. O ouvido é ferido pelo ar grosseiro que o cerca, e a alma recebe, enfim, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia nascida na alma do maestro.

A ideia do maestro era o seu sentimento íntimo. Embora deturpada pelos agentes de instrumentação e de percepção, contudo produz sensações nos que escutam a sua tradução; essas sensações são a harmonia. A música as produziu; elas são efeitos desta última. A música foi posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. O sentimento, no compositor, é a harmonia; a sensação, no ouvinte, também é harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Ela a dá mais ou menos deturpada, conforme seja mais ou menos bem executada; o refletor envia melhor ou pior a luz, conforme ele seja mais ou menos brilhante e polido; o médium exprime mais ou menos os pensamentos do Espírito, conforme seja mais ou menos flexível.

E agora que a harmonia está bem compreendida em sua significação; que se sabe que ela é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que existe entre a harmonia da Terra e a do espaço.

Entre vós tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós, tudo é sutil. Vós tendes o ar, nós temos o éter. Tendes o órgão que obstrui e vela; em nós a percepção é direta e nada a vela. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós, ele fala sem intermediário e na língua que exprime todas as concepções. Entretanto, essas harmonias têm a mesma fonte, como a luz da Lua tem a mesma fonte que é o Sol; assim como a luz da Lua é reflexo da do Sol, harmonia da Terra não passa de reflexo da harmonia do espaço.

A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento. Não se compreende senão quando se possui, e não se possui senão quando se adquiriu.

O homem que é alegre não pode explicar sua alegria; o que é medroso não pode explicar seu medo. Eles podem relatar os fatos que provocam esses sentimentos, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos ficam sem explicação. O fato que causa a alegria de um, nada produzirá em outro; o objeto que ocasiona o medo em um, produzirá a coragem no outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários. Isto não se dá em Física, mas se dá em Metafísica. Isto se dá porque o sentimento é propriedade da alma, e as almas diferem entre si em sensibilidade, em impressionabilidade, em liberdade.

A música, que é a causa secundária da harmonia percebida, penetra e transporta um e deixa o outro frio e indiferente. É que o primeiro está em estado de receber a impressão produzida pela harmonia e o segundo num estado contrário; ele escuta o ar que vibra, mas não compreende a ideia que ele lhe traz. Este chega ao aborrecimento e adormece; aquele ao entusiasmo e chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado que aquele que ela não pode penetrar; sua alma está mais apta para sentir; ela desprende-se mais facilmente e a harmonia a ajuda a se desprender; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral. Disto deve-se concluir que a música é essencialmente moralizadora, porque leva a harmonia às almas e a harmonia as eleva e as engrandece.

A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é reconhecida por todo mundo, mas a razão dessa influência geralmente é ignorada. Sua explicação está inteiramente neste fato: A harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe em um certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que é privado desse sentimento a ele é trazido gradativamente; também ele acaba por se deixar penetrar e arrastar ao mundo ideal, onde ele esquece, por um instante, os grosseiros prazeres que prefere à divina harmonia.

E agora, se considerarmos que a harmonia emana do conceito do Espírito, deduziremos que se a música exerce uma influência feliz sobre a alma, a alma, que a concebe, também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a paixão do bem, do belo, do grande, e que adquiriu harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais encouraçadas e de comovê-las. Se o compositor é terra a terra, como expressará a virtude que ele desdenha, o belo que ele ignora e o grande que ele não compreende? Suas composições serão o reflexo de seus gostos sensuais, de sua leviandade, de sua despreocupação. Elas serão ora licenciosas, ora obscenas, ora cômicas e ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirem, e os perverterão, em vez de melhorá-los.

O Espiritismo, moralizando os homens, exercerá uma grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que comunicarão suas virtudes, fazendo ouvir suas composições.

As pessoas rirão menos e chorarão mais; a hilaridade abrirá espaço para a emoção; a feiúra dará lugar à beleza e o cômico à grandeza.

Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo tiver preparado para receber facilmente a harmonia sentirão, ouvindo música séria, um verdadeiro encanto. Eles desdenharão a música frívola e licenciosa que se apodera das massas. Quando o grotesco e o obsceno forem substituídos pelo belo e pelo bem, desaparecerão os compositores dessa ordem, porque, sem ouvintes, eles nada ganharão, e é para ganhar que se conspurcam.

Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música! Como não seria assim? Seu advento mudará a Arte, depurando-a. Sua fonte é divina, sua força o conduzirá por toda parte onde houver homens para amar, para se elevar e para compreender. Ele tornar-se-á o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas lhe pedirão suas inspirações, e ele lhas fornecerá, porque ele é rico, porque ele é inesgotável.

O Espírito do maestro Rossini, em nova existência, virá continuar a arte que ele considera como o primeiro estágio de todas. O Espiritismo será o seu símbolo e o inspirador de suas composições.

ROSSINI.



A mediunidade e a inspiração

(Paris, grupo Desliens, 16 de fevereiro de 1869)


Sob suas formas variadas ao infinito, a mediunidade abarca a Humanidade inteira, como um feixe ao qual ninguém poderá escapar. Cada um, estando em contato diário, saiba-o ou não, queira-o ou se revolte, com inteligências livres, não há um homem que possa dizer: Não fui, não sou ou não serei médium. Sob a forma intuitiva, modo de comunicação ao qual vulgarmente se deu o nome de voz da consciência, cada um está em relação com várias influências espirituais, que aconselham num ou noutro sentido, e muitas vezes simultaneamente, o bem puro, absoluto; acomodações com o interesse; o mal em toda a sua nudez.

O homem evoca essas vozes; elas respondem ao seu apelo, e ele escolhe, mas escolhe entre essas diversas inspirações e o seu próprio sentimento.

Os inspiradores são amigos invisíveis; como os amigos da Terra, são sérios ou volúveis, interesseiros ou verdadeiramente guiados pela afeição.

Nós os consultamos ou eles aconselham espontaneamente, mas, como os conselhos dos amigos da Terra, seus conselhos são ouvidos ou rejeitados; por vezes provocam um resultado contrário ao que se espera; muitas vezes não produzem qualquer efeito. ─ Que concluir daí? Não que o homem esteja sob o poder de uma mediunidade incessante, mas que ele obedece livremente à própria vontade, modificada por avisos que jamais podem, no estado normal, ser imperativos.

Quando o homem faz mais do que ocupar-se com os mínimos detalhes de sua existência, e quando se trata de trabalhos que ele veio realizar mais especialmente, de provas decisivas que ele deve suportar, ou de obras destinadas à instrução e à elevação geral, as vozes da consciência não se fazem mais somente e simplesmente conselheiras, mas atraem o Espírito para certos assuntos, provocam certos estudos e colaboram na obra, fazendo ressoar certos escaninhos cerebrais pela inspiração. Eis aqui uma obra a dois, a três, a dez, a cem, se quiserdes; mas se cem nela tomaram parte, só um pode e deve assiná-la, porque só um a fez e é o responsável por ela!

Que é uma obra, afinal de contas, seja qual for? Jamais é uma criação; é sempre uma descoberta. O homem nada faz, tudo descobre. É preciso não confundir estes dois termos. Inventar, no seu verdadeiro sentido, é pôr à luz uma lei existente, um conhecimento até então desconhecido, mas posto em germe no berço do Universo. Aquele que inventa levanta a ponta do véu que oculta a verdade, mas não cria a verdade. Para inventar é preciso procurar e procurar muito; é preciso compulsar livros, cavar no fundo das inteligências, pedir a um a Mecânica, a outro a Geometria, a um terceiro o conhecimento das relações musicais, a outro ainda as leis históricas, e do todo fazer algo de novo, de interessante, de não imaginado.

Aquele que for explorar os recantos das bibliotecas, que ouviu falarem os mestres, que perscrutou a Ciência, a Filosofia, a Arte, a Religião, da Antiguidade mais remota até os nossos dias, é o médium da Arte, da História, da Filosofia e da Religião? É ele o médium dos tempos passados, quando por sua vez escreve? Não, porque não conta os outros, mas ensinou outros a contar, e ele enriquece os seus relatos com tudo o que lhe é pessoal.

Por muito tempo o músico ouviu a toutinegra e o rouxinol, antes de inventar a música; Rossini escutou a Natureza antes de traduzi-la para o mundo civilizado. É ele o médium do rouxinol e da toutinegra? Não, ele compõe e escreve. Ele escutou o Espírito que lhe veio cantar as melodias do Céu; ele ouviu o Espírito que clamou a paixão ao seu ouvido; ele ouviu gemerem a virgem e a mãe, deixando cair, em pérolas harmoniosas, sua prece sobre a cabeça do filho. O amor e a poesia, a liberdade, o ódio, a vingança e numerosos Espíritos que possuem esses sentimentos diversos, cada um por sua vez cantou sua partitura ao seu lado. Ele as escutou e as estudou, no mundo e na inspiração, e de um e outro fez as suas obras. Mas ele não era médium, como não o é o médico que ouve os doentes contando o que sofrem, e que dá um nome às suas doenças. A mediunidade despendeu suas horas como qualquer outro, mas fora desses momentos muito curtos para a sua glória, o que ele fez, fez apenas à custa dos estudos colhidos dos homens e dos Espíritos.

Assim sendo, é-se médium de todos; é-se o médium da Natureza, médium da verdade, e médium muito imperfeito, porque muitas vezes ela aparece de tal modo desfigurada pela tradução, que é irreconhecível e desconhecida.

HALÉVY.



Erratum

Número de fevereiro de 1869. No artigo “Bibliografia – História dos calvinistas das Cevenas”, leia-se: opuseram aos católicos armas...

No mesmo artigo, no penúltimo parágrafo, leia-se; “E a mais nova das irmãs foi deixada como morta, debaixo de corpos massacrados, sem ter sido ferida. A outra irmã foi levada ainda viva para a casa do pai, mas morreu dos ferimentos, alguns dias depois.”


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