O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo
Contendo
Exame comparado de doutrinas
sobre a passagem da vida corporal à vida espiritual,
sobre as penalidades e recompensas futuras,
sobre os anjos e demônios, sobre as penas, etc.
Seguido de numerosos exemplos
acerca da situação real da alma durante e depois a morte.
Por
Allan Kardec
“Por mim mesmo juro — disse o Senhor Deus — que não quero a morte do ímpio, senão que ele se converta, que deixe o mau caminho e que viva.” (EZEQUIEL, 33:11.)
PREFÁCIO*
O título desta obra indica claramente seu objeto. Reunimos aqui todos os elementos capazes de esclarecer o homem sobre seu destino. Como em nossos outros escritos sobre a doutrina espírita, não pusemos aqui nada que seja produto de um sistema preconcebido ou de uma outra concepção pessoal que não teria nenhuma autoridade: tudo aqui é deduzido da observação e da concordância dos fatos.
O Livro dos Espíritos contém as bases fundamentais do Espiritismo; é a pedra angular do edifício; todos os princípios da doutrina estão ali colocados, até aqueles que devem servir-lhe de coroamento; mas era preciso dar seus desenvolvimentos, deduzir dali todas as consequências e todas as aplicações, à medida que elas se desenrolavam pelo ensinamento complementar dos Espíritos, e por novas observações; é o que fizemos no Livro dos Médiuns e no Evangelho segundo o Espiritismo de pontos de vista especiais; é o que fazemos nesta obra, de um outro ponto de vista, e é o que faremos sucessivamente naquelas que nos restam por publicar, e que virão a seu tempo.
As ideias novas não frutificam a não ser quando a terra está preparada para recebê-las; ora, por esta terra preparada, não se deve entender algumas inteligências precoces que só dariam frutos isolados, mas um certo conjunto na predisposição geral, a fim de que, não só ela dê frutos mais abundantes, mas que a ideia, encontrando pontos de apoio mais numerosos, suscite menos oposição, e seja mais forte para resistir a seus antagonistas. O Evangelho segundo o Espiritismo era já um passo à frente; O Céu e o Inferno é um passo a mais cujo alcance será facilmente compreendido, pois ele toca no âmago de certas questões, mas não devia vir mais cedo.
Se considerarmos a época em que o Espiritismo apareceu, reconhece-se facilmente que veio em tempo oportuno, nem cedo demais, nem tarde demais; mais cedo, ele teria abortado, porque, sem desfrutar de simpatias suficientes, teria sucumbido aos golpes de seus adversários; mais tarde, teria perdido a ocasião favorável de se produzir; as ideias poderiam ter tomado outro curso, de onde teria sido difícil desviá-las. Era preciso dar tempo para que as velhas ideias se desgastassem e se provasse sua insuficiência, antes de apresentar outras novas.
As ideias prematuras abortam, porque não se está maduro para compreendê-las, e a necessidade de uma mudança de posição ainda não se faz sentir. Hoje é evidente para todo o mundo que se manifesta um imenso movimento na opinião; realiza-se uma reação formidável no sentido progressivo contra o espírito estacionário ou retrógrado da rotina; os satisfeitos da véspera são os impacientes do dia seguinte. A humanidade está em trabalho de parto; existe alguma coisa, uma força irresistível que a impele para diante; ela é como um jovem saído da adolescência que entrevê novos horizontes sem os definir, e se livra dos cueiros da infância. Deseja-se algo melhor, alimentos mais sólidos para a razão; mas esse melhor permanece vago; é procurado; todo mundo se dedica a isso, desde o crente até o incrédulo, desde o trabalhador agrícola até o cientista. O universo é um vasto canteiro de obras; uns demolem, outros reconstroem; cada qual talha uma pedra para o novo edifício, cuja planta definitiva só o grande Arquiteto possui, e cuja economia se compreenderá apenas quando suas formas começarem a desenhar-se acima do solo. Foi esse momento que a soberana sabedoria escolheu para o advento do Espiritismo.
Os Espíritos que presidem ao grande movimento regenerador agem portanto com mais sabedoria e previdência do que os homens podem fazer, porque eles contemplam a marcha geral dos acontecimentos, ao passo que nós vemos apenas o círculo limitado de nosso horizonte. Tendo chegado os tempos da renovação, segundo os decretos divinos, era preciso que, em meio às ruínas do velho edifício, o homem, para não esmorecer, entrevisse as fundações da nova ordem de coisas; era preciso que o marinheiro pudesse distinguir a estrela polar que deve guiá-lo ao porto.
A sabedoria dos Espíritos que se mostrou no surgimento do Espiritismo, revelado quase instantaneamente em toda a Terra, na época mais propícia, não é menos evidente na ordem e gradação lógicas das revelações complementares sucessivas. Não depende de ninguém coagir a vontade deles a esse respeito, pois eles não medem seus ensinamentos pelo grau de impaciência dos homens. Não nos basta dizer: “Gostaríamos de ter tal coisa,” para que ela seja dada; e convém-nos ainda menos dizer a Deus: “Julgamos que chegou o momento de nos dardes tal coisa; julgamo-nos suficientemente avançados para recebê-la."; pois seria dizer-lhe: “Sabemos melhor do que vós o que convém fazer.” Aos impacientes, os Espíritos respondem: “Começai primeiro por saber bem, compreender bem, e sobretudo praticar bem o que sabeis, a fim de que Deus vos julgue dignos de aprender mais; depois, quando chegar o momento, nós poderemos agir e escolheremos nossos instrumentos.”
A primeira parte desta obra, intitulada Doutrina, contém o exame comparado das diversas doutrinas sobre o Céu e o Inferno, os anjos e os demônios, as penas e as recompensas futuras; o dogma das penas eternas é aqui encarado de uma maneira especial, e refutado por argumentos tirados das próprias leis da natureza, e que lhe demonstram, não só o lado ilógico, já assinalado cem vezes, mas a impossibilidade material. Com as penas eternas desaparecem naturalmente as consequências que se acreditara poder tirar daí.
A segunda parte encerra inúmeros exemplos apoiando a teoria, ou melhor, que serviram para estabelecer a teoria. Eles devem sua autoridade à diversidade de tempos e lugares em que foram obtidos, pois se emanassem de uma única fonte, poder-se-ia vê-los como produto de uma mesma influência; eles devem-na, além disso, à sua concordância com o que se obtém todos os dias em toda a parte onde há dedicação às manifestações espíritas de um ponto de vista sério e filosófico. Esses exemplos poderiam ter sido multiplicados ao infinito, pois não há centro espírita que não possa fornecer notável contingente deles. Para evitar repetições fastidiosas, precisamos fazer uma escolha entre os mais instrutivos. Cada um desses exemplos é um estudo, em que todas as palavras têm seu alcance para todo aquele que as meditar com atenção, pois de cada ponto jorra uma luz sobre a situação da alma após a morte e sobre a passagem, até agora tão obscura e tão temida, da vida corpórea à vida espiritual. É o guia do viajante antes de entrar num país novo. A vida de além-túmulo desenrola-se aí sob todos os seus aspectos, como um vasto panorama; cada qual extrairá daí novos motivos de esperança e de consolo, e novos apoios para reforçar sua fé no futuro e na justiça de Deus.
Nesses exemplos, tirados na sua maioria de fatos contemporâneos, dissimulamos os nomes próprios todas as vezes que julgamos útil, por motivos de conveniência fáceis de apreciar. Aqueles a quem esses exemplos podem interessar reconhecê-lo-ão facilmente; para o público, nomes mais ou menos conhecidos, e às vezes muito obscuros, não teriam acrescentado nada à instrução que daí se pode retirar.
As mesmas razões que nos fizeram omitir os nomes dos médiuns no Evangelho segundo o Espiritismo, nos fizeram abster-nos de nomeá-los nesta obra, feita para o futuro ainda mais do que para o presente. Eles têm tanto menos importância quanto não poderiam se atribuir o mérito de uma coisa para a qual seu próprio espírito não participou com nada. A mediunidade, aliás, não é concedida a tal ou tal indivíduo; é uma faculdade fugitiva, subordinada à vontade dos Espíritos que querem comunicar-se, a qual se possui hoje e que pode faltar no dia seguinte, que nunca é aplicável a todos os Espíritos sem distinção, e, por isso mesmo, não constitui um mérito pessoal como o faria um talento adquirido pelo trabalho e pelos esforços da inteligência. Os médiuns sinceros, aqueles que compreendem a gravidade de sua missão, consideram-se como instrumentos que a vontade de Deus pode destruir quando lhe aprouver, se não agirem segundo seus desígnios; eles se regozijam com uma faculdade que lhes permite tornarem-se úteis, mas não tiram daí nenhuma vaidade. Aliás, conformamo-nos neste ponto aos conselhos de nossos guias espirituais.
A Providência quis que a nova revelação não fosse privilégio de ninguém, mas que tivesse órgãos em toda a Terra, em todas as famílias, entre os grandes como entre os pequenos, segundo estas palavras das quais os médiuns do nosso tempo são a realização: “Nos últimos tempos, disse o Senhor, verterei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens terão visões e vossos anciãos terão sonhos. Naqueles dias, verterei do meu Espírito sobre meus servos e minhas servas, e eles profetizarão.” (Atos, cap. II, v. 17, 18.)
Mas também está dito: “Haverá falsos Cristos e falsos profetas.” (Ver o Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXI.)
Ora, estes últimos tempos chegaram; não é o fim do mundo material, como se acreditou, mas o fim do mundo moral, ou seja, a era da regeneração.
* Embora no original da quarta edição francesa, de 1869, não conste este prefácio, nós optamos por traduzir o que consta na primeira edição, de 1865, e o inserimos aqui. (Nota da equipe revisora desta edição.)
Primeira parte — Doutrina
Capítulo I — O futuro e o nada
1.
Nós vivemos, pensamos, agimos, o que é positivo; morremos, não é menos
certo. Mas ao deixar a Terra, para onde vamos? O que nos tornamos?
Ficaremos melhor ou pior? Seremos nós ou não seremos nós? Ser ou não
ser, tal é a alternativa; é para sempre ou nunca; é tudo ou nada: ou
viveremos eternamente, ou tudo estará acabado sem retorno. Vale a pena
pensar nisso. Todo homem sente a necessidade de viver, gozar, amar, ser
feliz. Dizei àquele que sabe que vai morrer que viverá ainda, que sua
hora foi adiada; dizei-lhe acima de tudo que será mais feliz do que foi,
e seu coração vai palpitar de alegria. Mas de que serviriam estas
aspirações de felicidade se um sopro pode fazê-las desvanecer? Haverá
alguma coisa mais desesperadora do que este pensamento da destruição
absoluta? Afeições santas, inteligência, progresso, saber laboriosamente
adquirido, tudo seria interrompido, tudo seria perdido! Qual a
necessidade de se esforçar para se tornar melhor, de se dominar para
reprimir as paixões, de se cansar para ocupar o espírito, se não se deve
daí colher nenhum fruto, acima de tudo com o pensamento de que amanhã
talvez isso já não nos sirva de nada? Se fosse assim, o destino do homem
seria cem vezes pior do que o da besta, pois a besta vive inteiramente
no presente, na satisfação de seus apetites materiais, sem aspiração
quanto ao futuro. Uma intuição secreta diz que isso não é possível.
2.
Pela crença no nada, o homem concentra forçosamente todos os seus
pensamentos na vida presente; não se poderia, com efeito, logicamente se
preocupar com um futuro que não se aguarda. Esta preocupação exclusiva
com o presente conduz naturalmente a pensar em si antes de tudo; é
portanto o mais poderoso estimulante do egoísmo, e o incrédulo é
consequente consigo mesmo quando chega a esta conclusão: Gozemos
enquanto aqui estamos, gozemos o máximo possível, visto que depois de nós
está tudo acabado; gozemos depressa, porque não sabemos quanto isso
durará; e a esta outra, muito mais grave para a sociedade: Gozemos à
custa de qualquer um; cada um por si; a felicidade, aqui embaixo, é do
mais hábil. Se o respeito humano retém alguns, que freio podem ter
aqueles que nada temem? Dizem a si mesmos que a lei humana não atinge
senão os inábeis; é por isso que aplicam seu gênio aos meios de se
esquivar dela. Se há uma doutrina nociva e antissocial, é seguramente a
do niilismo [néantisme], porque ela rompe os verdadeiros laços da
solidariedade e da fraternidade, fundamentos das relações sociais.
3.
Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, um povo inteiro adquire
a certeza de que dentro de oito dias, dentro de um mês, dentro de um
ano, será aniquilado, que nenhum indivíduo sobreviverá, que não restará
mais nenhum traço dele depois da morte; o que ele fará durante esse
tempo? Trabalhará para seu aperfeiçoamento, sua instrução? Fará esforço
para viver?Respeitará os direitos, os bens, a vida de seu
semelhante? Submeter-se-á às leis, a uma autoridade, seja ela qual for,
mesmo a mais legítima: a autoridade paterna? Haverá para ele um dever
qualquer? Seguramente não. Pois bem! O que não ocorre em massa, a
doutrina do vazio realiza todo dia de forma isolada. Se as consequências
não são tão desastrosas quanto poderiam, é porque primeiramente na
maioria dos incrédulos há mais bravata do que verdadeira incredulidade,
mais dúvida que convicção, e eles têm mais medo do nada do que querem
demonstrar; o título de espírito independente lisonjeia-lhes o amor
próprio; em segundo lugar, os incrédulos absolutos são ínfima minoria;
sofrem a contragosto o ascendente da opinião contrária e são mantidos
por uma força material; mas se a incredulidade absoluta chegar um dia ao
estado de maioria, a sociedade estará em dissolução. É ao que tende a
propagação da doutrina do niilismo. *
Sejam quais forem as
consequências, se ela fosse verdadeira, seria preciso aceitá-la, e não
seriam sistemas contrários, nem o pensamento do mal que daí resultaria,
que poderiam fazer que ela não fosse. Ora, não se deve dissimular que o
ceticismo, a dúvida, a indiferença, ganham terreno a cada dia, apesar
dos esforços da religião; isto é positivo. Se a religião é impotente
contra a incredulidade, é porque lhe falta alguma coisa para combatê-la,
de tal modo que se ela permanecesse na imobilidade, em um tempo dado
estaria irremediavelmente ultrapassada. O que lhe falta neste século de
positivismo, em que se quer compreender antes de crer, é a sanção de
suas doutrinas por fatos positivos; é também a concordância de certas
doutrinas com os dados positivos da ciência. Se ela diz branco e os
fatos dizem preto, é preciso optar entre a evidência e a fé cega.
* Um jovem de dezoito anos sofria de uma doença cardíaca declarada incurável. A ciência dissera: Ele pode morrer dentro de oito dias, como dentro de dois anos, mas daí não passará. O jovem sabia disso; imediatamente abandonou todo estudo, e entregou-se a todo tipo de excessos. Quando lhe mostravam quão perigosa era uma vida desregrada no seu estado, ele respondia: Que me importa, já que só tenho dois anos de vida? De que me serviria cansar o espírito a aprender? Aproveito o melhor possível os últimos momentos e quero divertir-me até o fim. Eis a consequência lógica do niilismo.
Se esse jovem fosse espírita, teria dito para si mesmo: A morte destruirá apenas meu corpo, que deixarei como uma roupa desgastada, mas meu Espírito viverá sempre. Eu serei, em minha vida futura, o que tiver feito de mim mesmo nesta vida; nada do que eu adquiri aqui de qualidades morais e intelectuais se perderá, pois serão ganhos para meu adiantamento; toda imperfeição da qual eu me despojar é um passo a mais na direção da felicidade; minha felicidade ou infelicidade no porvir dependem da utilidade ou inutilidade de minha existência presente. É, portanto, do meu interesse aproveitar o pouco de tempo que me resta, e evitar tudo o que poderia diminuir minhas forças. Qual dessas duas doutrinas é preferível?4.
É neste estado de coisas que o Espiritismo vem opor um dique à invasão
da incredulidade, não só pelo raciocínio, não só pela perspectiva dos
perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, fazendo perceber, pelas mãos e os olhos, a alma e a vida futura.
Cada qual é livre sem
dúvida em sua crença, de crer em alguma coisa ou de não crer em nada;
mas aqueles que procuram fazer prevalecer no espírito das massas,
sobretudo da juventude, a negação do futuro, apoiando-se na autoridade
de seu saber e no ascendente de sua posição, semeiam na sociedade germes
de distúrbio e de dissolução, e incorrem numa grande responsabilidade.
5.
Há outra doutrina que se defende de ser materialista porque admite a
existência de um princípio inteligente fora da matéria, é a da absorção
no Todo Universal. Segundo esta doutrina, cada indivíduo assimila no
nascimento uma parcela desse princípio que constitui sua alma e lhe dá a
vida, a inteligência e o sentimento. Na morte, essa alma retorna à
origem comum e perde-se no infinito como uma gota d’água no Oceano. Esta
doutrina está sem dúvida um passo adiante do materialismo puro, visto
que admite alguma coisa, ao passo que a outra não admite nada, mas as
consequências são exatamente as mesmas. Quer o homem esteja mergulhado
no nada ou no reservatório comum, é o mesmo para ele; se, no primeiro
caso, ele é aniquilado, no segundo perde a individualidade; portanto, é
como se não existisse; as relações sociais são rompidas para sempre. O
essencial para ele é a conservação de seu eu; sem isso, que lhe importa
ser ou não ser! O futuro para ele é sempre nulo, e a vida presente a
única coisa que lhe interessa e o preocupa. Do ponto de vista de suas
consequências morais, esta doutrina é tão nociva, tão desesperadora, tão
excitante do egoísmo quanto o materialismo propriamente dito.
6. Pode-se,
além disso, fazer-lhe a seguinte objeção: todas as gotas d’água tiradas
do oceano se parecem e têm propriedades idênticas, como as partes de um
mesmo todo; por que as almas, sendo tiradas do grande oceano da
inteligência universal, se parecem tão pouco? Por que o gênio ao lado da
estupidez? As mais sublimes virtudes ao lado dos vícios mais ignóbeis? A
bondade, a doçura, a mansidão, ao lado da maldade, da crueldade, da
barbárie? Como as partes de um todo homogêneo podem ser tão diferentes
umas das outras? Dir-se-á que é a educação que as modifica? Mas então de
onde vêm as qualidades nativas, as inteligências precoces, os instintos
bons e maus, independentes de toda educação, e com frequência tão pouco
em harmonia com os meios onde se desenvolvem?
A educação, sem dúvida
nenhuma, modifica as qualidades intelectuais e morais da alma; mas aqui
se apresenta outra dificuldade. Quem dá à alma a educação para fazê-la
progredir? Outras almas que, por sua origem comum, não devem estar mais
avançadas. E depois, aliás, de que serve este aperfeiçoamento, de que
servem tantos esforços para adquirir talentos e virtudes, de que serve
trabalhar para o progresso da humanidade, se tudo isso deve ir se
precipitar e se perder no oceano do infinito, sem proveito para o futuro
de cada um? Mais valeria permanecer o que se é, selvagem ou não, beber,
comer, dormir tranquilamente sem se torturar o espírito. Por outro
lado, a alma, voltando ao Todo Universal de onde saíra, depois de ter
progredido durante a vida, traz um elemento mais perfeito; de onde
decorre que esse todo deve, com o tempo, ficar profundamente modificado e
aperfeiçoado. Como explicar que saiam daí incessantemente almas
ignorantes e perversas?
7.
Nesta doutrina, a fonte universal de inteligência que fornece as almas
humanas é independente da divindade, ser superior e distinto que anima
tudo por sua vontade; não é precisamente o panteísmo. O panteísmo
propriamente dito difere dela, segundo ele, em que o princípio universal
de vida e de inteligência é o próprio Deus. Deus é ao mesmo tempo
espírito e matéria; todos os seres, todos os corpos da natureza compõem a
divindade da qual são as moléculas e os elementos constitutivos; numa
palavra, Deus está em tudo e tudo é Deus; Deus é o conjunto de todas as
inteligências reunidas; cada indivíduo, sendo uma parte do todo, é ele
mesmo Deus; nenhum ser superior e independente comanda o conjunto; o
universo é uma imensa república sem chefe, ou melhor, onde cada um é
chefe com poder absoluto.
8.
A esse sistema podem opor-se inúmeras objeções, das quais as principais
são estas.
Não podendo a divindade ser concebida sem o infinito das
perfeições, pergunta-se como um todo perfeito pode ser formado de partes
tão imperfeitas e necessitando progredir. Estando cada parte submetida à
lei do progresso, daí resulta que o próprio Deus deve progredir; se ele
progride sem cessar, deve ter sido, na origem dos tempos, muito
imperfeito. Como um ser imperfeito, formado de vontades e de ideias tão
divergentes, pôde conceber as leis tão harmoniosas, de tão admirável
unidade, sabedoria e previdência que regem o universo? Se todas as almas
são porções da divindade, todas concorreram para as leis da natureza;
como explicar que murmurem sem cessar contra essas leis que são sua
obra? Uma teoria não pode ser aceita como verdadeira a não ser com a
condição de satisfazer a razão e de dar conta de todos os fatos que ela
abarca; se um único fato a desmentir, é que ela não está com a verdade
absoluta.
9. Do ponto de vista moral, as consequências são igualmente ilógicas. É
primeiro para as almas, como no sistema precedente, a absorção num todo e
a perda da individualidade. Se se admitir, segundo a opinião de alguns
panteístas, que elas conservam sua individualidade, Deus não tem mais
vontade única; é um composto de miríades de vontades divergentes.
Depois, sendo cada alma parte integrante da divindade, nenhuma é
dominada por um poder superior; ela não incorre, por conseguinte, em
nenhuma responsabilidade por seus atos bons ou maus; ela não tem nenhum
interesse em fazer o bem e pode fazer o mal impunemente, visto que é
senhora soberana.
10. Além do fato de que esses sistemas não satisfazem nem a razão, nem as
aspirações do homem, esbarra-se aí, como se vê, em dificuldades
intransponíveis, porque eles são incapazes de resolver todas as questões
que levantam. O homem tem então três alternativas: o nada, a absorção,
ou a individualidade da alma antes e depois da morte. É a esta última
crença que a lógica nos leva invencivelmente; é também ela que
constituiu o fundo de todas as religiões desde que o mundo existe. Se a
lógica nos conduz à individualidade da alma, ela nos leva também a esta
outra consequência, que o destino de cada alma deve depender de suas
qualidades pessoais, pois seria irracional admitir que a alma atrasada
do selvagem e a do homem perverso estejam no mesmo nível que a do
erudito e do homem de bem. Segundo a justiça, cada uma deve ter a
responsabilidade de seus atos; mas para que sejam responsáveis, é
preciso que sejam livres para escolher entre o bem e o mal; sem
livre-arbítrio, há fatalidade, e com fatalidade, não poderia haver responsabilidade.
11. Todas as religiões admitiram igualmente o princípio do destino feliz
ou infeliz das almas após a morte, dito de outro modo, das penas e dos
gozos futuros que se resumem na doutrina do céu e do inferno que se
encontra em toda a parte. Mas no que elas diferem essencialmente, é
sobre a natureza dessas penas e desses gozos, e sobretudo sobre as
condições que podem merecer umas e outros. Donde pontos de fé
contraditórios que deram origem aos diferentes cultos, e os deveres
particulares impostos por cada um deles para venerar Deus, e por esse
meio ganhar o céu e evitar o inferno.
12. Todas as religiões precisaram, na sua origem, estar em relação com o
grau de avanço moral e intelectual dos homens; estes, ainda demasiado
materiais para compreender o mérito das coisas puramente espirituais,
fizeram consistir a maioria dos deveres religiosos no cumprimento de
fórmulas exteriores. Durante um tempo, essas formas bastaram à sua
razão; mais tarde, fazendo-se a luz em seu espírito, eles sentem o vazio
que as formas deixam atrás delas, e se a religião não o preenche, eles
abandonam a religião e tornam-se filósofos.
13. Se a religião, apropriada no princípio aos conhecimentos limitados dos
homens, tivesse sempre seguido o movimento progressivo do espírito
humano, não haveria incrédulos, porque é da natureza do homem ter
necessidade de crer, e ele acreditará se lhe derem um alimento
espiritual em harmonia com suas necessidades intelectuais. Ele quer
saber de onde vem e para onde vai; se lhe mostram um objetivo que não
responde nem a suas aspirações nem à ideia que ele faz de Deus, nem aos
dados positivos que a ciência lhe fornece; se, ademais, lhe impõem para
alcançá-lo condições cuja utilidade sua razão não lhe demonstra, ele
repele o todo; o materialismo e o panteísmo parecem-lhe ainda mais
racionais, porque aí se discute e se raciocina; raciocina-se errado, é
verdade, mas ele prefere raciocinar errado a não raciocinar de modo
algum. Mas apresentem-lhe um futuro em condições lógicas, digno em todos
os pontos da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele
abandonará o materialismo e o panteísmo cujo vazio sente em seu foro
íntimo, e os quais só aceitara na falta de melhor. O espiritismo dá
melhor; eis por que é acolhido com ardor por todos aqueles que a
incerteza lancinante da dúvida atormenta e que não encontram nem nas
crenças, nem nas filosofias vulgares aquilo que buscam; ele tem a seu
favor a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, é por isso que o
combateram inutilmente.
14. O homem tem instintivamente a crença no futuro; mas não tendo até
hoje nenhuma base segura para defini-lo, sua imaginação criou os
sistemas que trouxeram a diversidade nas crenças. Não sendo a doutrina
espírita sobre o futuro uma obra de imaginação mais ou menos
engenhosamente concebida, e sim o resultado da observação dos fatos
materiais que ocorrem hoje sob nossos olhos, ela reunirá, como já faz
agora, as opiniões divergentes ou flutuantes, e levará pouco a pouco, e
pela força das coisas, à unidade na crença sobre esse ponto, crença que
não será mais baseada numa hipótese, mas numa certeza. A unificação,
feita no que concerne ao destino futuro das almas, será o primeiro ponto
de aproximação entre os diferentes cultos, um passo imenso rumo à
tolerância religiosa primeiramente, e mais tarde rumo à fusão.
Capítulo II — Da apreensão diante da morte
Causas da apreensão diante da morte.
1. O homem, seja qual for o grau da escala a que pertença, desde o
estado de selvageria, tem o sentimento inato do futuro; sua intuição
diz-lhe que a morte não é a última palavra da existência, e que aqueles
de quem temos saudades não estão perdidos irremediavelmente. A crença no
futuro é intuitiva, e infinitamente mais geral do que a crença no nada.
Como explicar então que, entre aqueles que creem na imortalidade da
alma, se encontre ainda tanto apego às coisas da terra, e uma apreensão
tão grande da morte?
2. A apreensão da morte é um efeito da sabedoria da Providência, e uma
consequência do instinto de conservação comum a todos os seres vivos.
Ela é necessária enquanto o homem não estiver suficientemente
esclarecido sobre as condições da vida futura, como contrapeso ao
impulso que, sem esse freio, o levaria a deixar prematuramente a vida
terrestre, e a negligenciar o trabalho aqui embaixo que deve servir para
seu próprio avanço. É por isso que, nos povos primitivos, o futuro é
apenas uma vaga intuição, mais tarde uma simples esperança, mais tarde
enfim uma certeza, mas ainda contrabalançada por um secreto apego à vida
corpórea.
3.
À medida que o homem compreende melhor a vida futura, a apreensão da
morte diminui; mas ao mesmo tempo, compreendendo melhor sua missão na
terra, ele aguarda seu fim com mais calma, resignação e sem temor. A
certeza da vida futura dá outro curso a suas ideias, outro objetivo a
seus trabalhos; antes de ter essa certeza ele trabalha apenas para a
vida atual; com tal certeza ele trabalha tendo em vista o futuro sem
negligenciar o presente, porque sabe que seu futuro depende da direção
melhor ou pior que der ao presente. A certeza de reencontrar os amigos
depois da morte, de continuar as relações que teve na terra, de não
perder o fruto de nenhum trabalho, de crescer incessantemente em
inteligência e em perfeição, dá-lhe a paciência de esperar, e a coragem
de suportar as fadigas momentâneas da vida terrestre. A solidariedade
que ele vê se estabelecer entre os mortos e os vivos faz-lhe compreender
aquela que deve existir entre os vivos; a fraternidade tem assim sua
razão de ser e a caridade um objetivo no presente e no futuro.
4.
Para se libertar das apreensões diante da morte, é preciso encarar esta
última de seu verdadeiro ponto de vista, ou seja, ter penetrado pelo
pensamento no mundo espiritual e ter feito deste uma ideia tão exata
quanto possível, o que denota no Espírito encarnado um certo
desenvolvimento, e uma certa aptidão a se desprender da matéria.
Naqueles que não estão suficientemente avançados, a vida material ainda
leva a melhor sobre a vida espiritual. Apegando-se ao exterior, o homem
vê a vida apenas no corpo, ao passo que a vida real está na alma;
estando o corpo privado de vida, a seus olhos tudo está perdido, e ele
se desespera. Se, em vez de concentrar o pensamento sobre a vestimenta
exterior, ele o dirigisse para a própria fonte da vida, para a alma que é
o ser real e sobrevivente a tudo, ele lamentaria menos o corpo, fonte
de tantas miséria e dores; mas para tanto é preciso uma força que o
Espírito adquire apenas com a maturidade. A apreensão diante da morte
deve-se então à insuficiência das noções sobre a vida futura; mas ela
denota a necessidade de viver, e o temor de que a destruição do corpo
seja o fim de tudo; ela é assim provocada pelo secreto desejo da
sobrevivência da alma, ainda velada pela incerteza. A apreensão diminui à
medida que a certeza se forma; desaparece quando a certeza é completa.
Eis o lado providencial da questão. Era sábio não ofuscar o homem cuja
razão ainda não era bastante forte para suportar a perspectiva demasiado
positiva e demasiado sedutora de um futuro que o teria feito
negligenciar o presente necessário a seu avanço material e intelectual.
5.
Este estado de coisas é mantido e prolongado por causas puramente
humanas que desaparecerão com o progresso. A primeira é o aspecto sob o
qual é apresentada a vida futura, aspecto que poderia bastar a
inteligências pouco avançadas, mas que não consegue satisfazer as
exigências da razão dos homens que refletem. Então, eles dizem a si
mesmos, se nos apresentam como verdades absolutas princípios contraditos
pela lógica e os dados positivos da ciência, é que não são verdades.
Daí decorre para alguns a incredulidade, para grande parte uma crença
misturada com dúvida. A vida futura é para eles uma ideia vaga, uma
probabilidade mais do que uma certeza absoluta; eles creem nela,
gostariam que existisse, e contra sua vontade dizem a si mesmos: Se, no
entanto, assim não for! O presente é positivo, ocupemo-nos primeiro com
ele: o futuro virá por acréscimo. E depois, dizem a si mesmos ainda, em
última análise, o que é a alma? É um ponto, um átomo, uma centelha, uma
chama? Como ela sente? Como vê? Como percebe? A alma não é para eles uma
realidade efetiva: é uma abstração. Os seres que lhes são caros,
reduzidos ao estado de átomos em seu pensamento, estão por assim dizer
perdidos para eles, e não têm mais a seus olhos as qualidades que os
faziam amá-los. Não compreendem nem o amor de uma centelha, nem aquele
que se pode ter por ela, e eles mesmos ficam mediocremente satisfeitos
de ser transformados em mônadas. Daí o retorno ao positivismo da vida
terrestre que tem algo de mais substancial. O número daqueles que são
dominados por estes pensamentos é considerável.
6. Outra razão que prende às coisas da terra mesmo aqueles que creem
mais firmemente na vida futura, deve-se à impressão que conservam do
ensino que lhes é dado sobre isso desde a infância. O quadro que a
religião faz dela não é, é preciso convir, nem muito sedutor, nem muito
consolador. De um lado, veem-se aí as contorções dos danados que expiam
nas torturas e chamas sem fim seus erros de um momento; para quem os
séculos sucedem aos séculos sem esperança de abrandamento nem de
compaixão; e, o que é mais impiedoso ainda, para quem o arrependimento é
sem eficácia. De outro, as almas lânguidas e débeis do purgatório
aguardando, da boa vontade dos vivos que rezarão ou mandarão rezar por
elas, sua libertação, e não dos seus esforços para progredir. Estas duas
categorias compõem a imensa maioria da população do outro mundo. Acima,
plana a categoria, muito restrita, dos eleitos, que gozam, durante a
eternidade, de uma beatitude contemplativa. Essa eterna inutilidade, sem
dúvida preferível ao nada, não deixa de ser de uma fastidiosa
monotonia. Assim se veem nas pinturas que retratam os bem-aventurados,
figuras angélicas, mas que respiram antes o tédio do que a verdadeira
felicidade. Esse estado não satisfaz nem as aspirações, nem a ideia
instintiva do progresso que parece a única compatível com a felicidade
absoluta. É difícil conceber que o selvagem ignorante, de senso moral
obtuso, unicamente por ter recebido o batismo esteja no mesmo nível que
aquele que chegou ao mais alto grau da ciência e da moralidade prática
após longos anos de trabalho. É ainda menos concebível que a criança
morta na primeira infância, antes de ter a consciência de si mesma e de
seus atos, goze dos mesmos privilégios unicamente pelo fato de uma
cerimônia, na qual sua vontade não tem nenhuma participação. Estes
pensamentos não deixam de agitar os mais fervorosos por menos que
reflitam.
7. O trabalho progressivo que se cumpre na terra não sendo nada para a
felicidade futura, a facilidade com que se acredita adquirir essa
felicidade por meio de algumas práticas exteriores, e mesmo a
possibilidade de comprá-la com dinheiro, sem reforma séria do caráter e
dos hábitos, deixam aos gozos do mundo todo o seu valor. Mais de um
crente se diz, em seu foro íntimo, que, visto que seu futuro está
assegurado pelo cumprimento de certas fórmulas, ou por dons póstumos que
não os privam de nada, seria supérfluo impor-se sacrifícios ou um
incômodo qualquer em benefício de outrem, já que se pode obter a
salvação trabalhando cada um por si. Seguramente este não é o pensamento
de todos, pois há grandes e belas exceções; mas não se pode dissimular
que é o da maioria, sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a
ideia que se faz das condições para ser feliz no outro mundo não
mantenha o apego aos bens deste aqui, e, por conseguinte, o egoísmo.
8. Acrescentemos a isso que tudo, nos costumes, concorre para fazer
lamentar a vida terrestre, e temer a passagem da terra ao céu. A morte é
cercada apenas de cerimônias lúgubres que aterrorizam mais do que
provocam esperança. Quando se representa a morte, é sempre sob um
aspecto repulsivo, e nunca como um sono de transição; todos os seus
emblemas lembram a destruição do corpo, mostram-no hediondo e
descarnado; nenhum simboliza a alma se desprendendo radiosa de seus
vínculos terrestres. A partida para esse mundo mais feliz é acompanhada
apenas pelas lamentações dos sobreviventes, como se acontecesse a maior
desgraça aos que se vão; dizem-lhes um adeus eterno, como se nunca mais
devessem revê-los; o que se lamenta por eles, são os gozos da Terra,
como se eles não devessem encontrar outros maiores. Que desgraça,
diz-se, morrer quando se é jovem, rico, feliz e se tem diante de si um
futuro brilhante! A ideia de uma situação mais feliz mal toca o
pensamento, porque não tem raízes nele. Tudo concorre, portanto, para
inspirar o pavor da morte em vez de fazer nascer a esperança. O homem
levará sem dúvida muito tempo para se desfazer desses preconceitos, mas
conseguirá à medida que sua fé se fortalecer, que fizer uma ideia mais
justa da vida espiritual.
9.
A crença vulgar coloca, além disso, as almas em regiões dificilmente
acessíveis ao pensamento, onde elas se tornam de algum modo estranhas
aos sobreviventes; a própria Igreja põe entre elas e estes últimos uma
barreira intransponível; ela declara que toda relação está rompida, toda
comunicação impossibilitada. Se elas estão no inferno, toda esperança
de revê-las está perdida para sempre, a não ser indo também para lá; se
elas estão entre os eleitos, estão completamente absorvidas por sua
beatitude contemplativa. Tudo isso põe entre os mortos e os vivos tal
distância, que se olha a separação como eterna; é por isso que se
prefere ainda tê-los perto de si, sofrendo na terra, do que vê-los
partir, mesmo para o céu. Depois, a alma que está no céu fica realmente
feliz de ver, por exemplo, seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos
queimar eternamente?
Por que os espíritas não se apreendem diante da morte.
10. A doutrina espírita muda inteiramente a maneira de encarar o futuro. A
vida futura não é mais uma hipótese, mas uma realidade; o estado das
almas depois da morte não é mais um sistema, mas um resultado de
observação. O véu é levantado; o mundo espiritual aparece-nos em toda a
sua realidade prática; não foram os homens que o descobriram pelo
esforço de uma concepção engenhosa, são os próprios habitantes desse
mundo que vêm descrever-nos sua situação; vemo-los aí em todos os graus
da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da desgraça;
assistimos a todas as peripécias da vida de além-túmulo. Aí está para os
Espíritas a causa da calma com a qual encaram a morte, da serenidade de
seus últimos instantes na terra. O que os sustenta não é somente a
esperança, é a certeza; eles sabem que a vida futura não é mais do que a
continuação da vida presente em melhores condições, e eles a aguardam
com a mesma confiança com que aguardam o nascer do sol depois de uma
noite de tempestade. Os motivos dessa confiança estão nos fatos de que
foram testemunhas, e na concordância desses fatos com a lógica, a
justiça e a bondade de Deus, e as aspirações íntimas do homem. Para os
Espíritas, a alma não é mais uma abstração; ela tem um corpo etéreo que
faz dela um ser definido, que o pensamento abarca e concebe; já é muito
para fixar as ideias sobre sua individualidade, suas aptidões e
percepções. A lembrança daqueles que nos são caros repousa sobre algo
real. Não são mais representados como chamas fugitivas que não lembram
nada ao pensamento, mas sob uma forma concreta que os mostra melhor como
seres vivos. Depois, em vez de ficarem perdidos nas profundezas do
espaço, eles estão à nossa volta; o mundo corpóreo e o mundo espiritual
estão em relação contínua, e assistem-se mutuamente. A dúvida sobre o
futuro não sendo mais permitida, a apreensão da morte não tem mais razão
de ser; vemo-la chegar com sangue frio, como uma libertação, como a
porta da vida, e não como a porta do nada.
Capítulo III — O céu
1. A palavra céu aplica-se em geral ao espaço indefinido que circunda a
terra, e mais particularmente à parte que fica acima de nosso horizonte;
vem do latim
coelum, formado do grego coïlos, oco, côncavo, porque o
céu parece aos olhos uma imensa concavidade. Os antigos acreditavam na
existência de vários céus superpostos, compostos de matéria sólida e transparente, formando esferas concêntricas cujo centro era a Terra.
Essas esferas girando em torno da Terra arrastavam consigo os astros que
se encontravam em seu circuito. Essa ideia, devida à insuficiência dos
conhecimentos astronômicos, foi a de todas as teogonias que fizeram dos
céus, assim escalonados, os diversos graus da beatitude; o último era a
morada da suprema felicidade. Segundo a opinião mais conhecida, havia
sete; daí a expressão: Estar no sétimo céu, para exprimir uma
bem-aventurança perfeita. Os muçulmanos admitem nove céus, em cada um deles aumenta a felicidade dos crentes.
O astrônomo Ptolomeu* contava
onze, dos quais o último era chamado Empíreo**, por causa da
resplandecente luz que aí reina. Ainda hoje é o nome poético dado ao
lugar da glória eterna. A teologia cristã reconhece três céus; o
primeiro é o da região do ar e das nuvens; o segundo é o espaço onde se
movem os astros; o terceiro além da região dos astros é a morada do
Altíssimo, a morada dos eleitos que contemplam Deus frente a frente. É
de acordo com esta crença que se diz que São Paulo foi transportado ao
terceiro céu.
* Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo século da era
cristã.
** Do grego, pur ou pyr, fogo.2. As diferentes doutrinas referentes à morada dos bem-aventurados
repousam todas sobre o duplo erro de que a terra é o centro do universo,
e que a região dos astros é limitada. É além desse limite imaginário
que todas colocaram esse domicílio afortunado e a morada do Onipotente.
Singular anomalia que coloca o autor de todas as coisas, aquele que as
governa todas, nos confins da criação, em vez de colocá-lo no centro de
onde a irradiação de seu pensamento podia se estender a tudo!
3. A ciência, com a inexorável lógica dos fatos e da observação, levou
suas luzes até às profundezas do espaço, e mostrou o vazio de todas
essas teorias. A terra não é mais o eixo do universo, mas um dos menores
astros rolando na imensidão; o próprio Sol não é mais do que o centro
de um turbilhão planetário; as estrelas são inúmeros sóis em torno dos
quais circulam mundos incontáveis, separados por distâncias somente
acessíveis ao pensamento, embora nos pareçam tocar-se. Neste conjunto,
regido por leis eternas onde se revelam a sabedoria e a onipotência do
Criador, a Terra aparece apenas como um ponto imperceptível, e um dos
menos favorecidos para a habitabilidade. Desde logo se pergunta por que
Deus teria feito dela a única sede da vida, e para aí teria relegado
suas criaturas prediletas. Tudo, ao contrário, anuncia que a vida está
em toda a parte, que a humanidade é infinita como o universo.
Revelando-nos, a ciência, mundos semelhantes à Terra, Deus não podia
tê-los criado sem objetivo; ele deve tê-los povoado com seres capazes de
governá-los.
4. As ideias do homem são em razão do que ele sabe; como todas as
descobertas importantes, a da constituição dos mundos deve ter-lhes dado
outro curso. Sob o império desses novos conhecimentos, as crenças devem
ter-se modificado: o céu foi deslocado; a região das estrelas, sendo
sem limites, não pode mais servir-lhe? Onde está o céu? Diante desta
pergunta, todas as religiões emudecem. O Espiritismo vem resolvê-la
demonstrando o verdadeiro destino do homem. A natureza deste último, e
os atributos de Deus sendo tomados por ponto de partida, chega-se à
conclusão; ou seja, partindo do conhecido chegasse ao desconhecido por
uma dedução lógica, sem falar das observações diretas que o Espiritismo
permite fazer.
5. O homem é composto de corpo e de Espírito; o Espírito é o ser
principal, o ser de razão, o ser inteligente; o corpo é o envoltório
material que o Espírito reveste temporariamente para o cumprimento de
sua missão na terra, e a execução do trabalho necessário ao seu avanço. O
corpo, gasto, destrói-se, e o Espírito sobrevive à sua destruição. Sem o
Espírito, o corpo não é mais do que uma matéria inerte, como um
instrumento privado do braço que o faz agir; sem o corpo, o Espírito é
tudo: a vida e a inteligência. Deixando o corpo, ele volta ao mundo
espiritual de onde saíra para se encarnar. Há portanto o mundo corporal,
composto dos Espíritos encarnados, e o mundo espiritual, formado pelos
Espíritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido a seu
envoltório material, estão ligados à Terra ou a qualquer outro globo; o
mundo espiritual está em toda a parte, à nossa volta e no espaço; nenhum
limite lhes é designado. Devido à natureza fluídica de seu envoltório,
os seres que o compõem, em vez de se arrastar penosamente pelo chão,
vencem as distâncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo é a
ruptura dos vínculos que os mantinham cativos.
6. Os Espíritos são criados simples e ignorantes, mas com a aptidão de
adquirir tudo e de progredir, em virtude de seu livre-arbítrio. Pelo
progresso, eles adquirem novos conhecimentos, novas faculdades, novas
percepções, e, por conseguinte, novos prazeres desconhecidos dos
Espíritos inferiores; eles veem, ouvem, sentem e compreendem o que os
espíritos atrasados não podem ver, nem ouvir, nem sentir, nem
compreender. A felicidade é proporcional ao progresso realizado; de modo
que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto o outro,
unicamente porque não está tão avançado intelectual e moralmente, sem
que eles precisem estar cada qual num lugar distinto. Embora estando um
ao lado do outro, um pode estar nas trevas, ao passo que tudo é
resplandecente à volta do outro, absolutamente como para um cego e
alguém, que vê que se dão as mãos: um percebe a luz, a qual não faz
nenhuma impressão no seu vizinho. Sendo a felicidade dos Espíritos
inerente às qualidades que eles possuem, eles a obtêm em toda parte onde
se encontrem, na superfície da Terra, em meio aos encarnados ou no
espaço. Uma comparação vulgar fará compreender ainda melhor esta
situação. Se num concerto se acham dois homens, um, bom músico com
ouvido treinado, o outro sem conhecimento de música e com o sentido da
audição pouco delicado, o primeiro experimenta uma sensação de
felicidade ao passo que o segundo permanece insensível, porque um
compreende e percebe o que não causa nenhuma impressão no outro. Assim
se dá com todos os gozos dos Espíritos que são proporcionais à aptidão
de senti-los. O mundo espiritual tem esplendores em toda parte,
harmonias e sensações que os Espíritos inferiores, ainda submetidos à
influência da matéria, nem mesmo entreveem, e que são acessíveis somente
aos Espíritos depurados.
7. O progresso, entre os Espíritos, é fruto de seu próprio trabalho;
mas, como eles são livres, trabalham em seu próprio avanço com mais ou
menos atividade ou negligência, segundo sua vontade; apressam assim ou
retardam seu progresso, e em consequência sua felicidade. Enquanto uns
avançam rapidamente, outros ficam estagnados por longos séculos nas
posições inferiores. São, portanto, os próprios artífices de sua
situação, feliz ou infeliz, segundo esta máxima do Cristo: “A cada um
segundo suas obras!” Todo Espírito que fica para trás só pode acusar a
si mesmo, assim como aquele que avança tem todo o mérito por isso; a
felicidade que conquistou tem ainda maior valor para ele. A
bem-aventurança suprema é a partilha apenas dos Espíritos perfeitos, ou
em outras palavras, dos puros Espíritos. Eles só a atingem depois de
terem progredido em inteligência e em moralidade. O progresso
intelectual e o progresso moral raramente andam lado a lado; mas o que o
Espírito não faz num tempo, ele o faz num outro, de modo que os dois
progressos acabam por atingir o mesmo nível. É por essa razão que se
veem frequentemente homens inteligentes e instruídos, muito pouco
avançados moralmente, e reciprocamente.
8. A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do
Espírito: ao progresso intelectual, pela atividade que ele é obrigado a
desenvolver no trabalho; ao progresso moral, pela necessidade que os
homens têm uns dos outros. A vida social é a pedra de toque das boas e
das más qualidades. A bondade, a maldade, a doçura, a violência, a
benevolência, a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a
sinceridade, a franqueza, a lealdade, a má fé, a hipocrisia, numa
palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o homem perverso tem por
motor, por objetivo e por estimulante as relações do homem com seus
semelhantes; para o homem que vivesse sozinho, não haveria vícios nem
virtudes; se, pelo isolamento, ele se preserva do mal, anula o bem.
9.
Uma única existência corporal é manifestamente insuficiente para que o
Espírito possa adquirir todo o bem que lhe falta e desfazer-se de tudo o
que nele é mau. Poderia o selvagem, por exemplo, numa única encarnação
atingir o nível moral e intelectual do europeu mais avançado? Isso é
materialmente impossível. Deve ele então permanecer eternamente na
ignorância e na barbárie, privado dos gozos que só o desenvolvimento das
faculdades pode propiciar? O simples bom senso repele tal suposição,
que seria ao mesmo tempo a negação da justiça e da bondade de Deus, e a
da lei progressiva da natureza. É por isso que Deus, que é soberanamente
justo e bom, concede ao Espírito do homem tantas existências quantas
forem necessárias para atingir o objetivo, que é a perfeição. Em cada
nova existência o Espírito traz o que adquiriu, nas precedentes, em
aptidões, em conhecimentos intuitivos, em inteligência e em moralidade.
Assim, cada existência é um passo adiante na via do progresso.*
A
encarnação é inerente à inferioridade dos Espíritos; ela não é mais
necessária para aqueles que ultrapassaram seu limite e que progridem no
estado espiritual, ou nas existências corpóreas dos mundos superiores
que não têm mais nada da materialidade terrestre. Da parte destes, ela é
voluntária, tendo em vista exercer sobre os encarnados uma ação mais
direta para o cumprimento da missão de que estão encarregados. Aceitam
suas vicissitudes e sofrimentos por devotamento.
* Vede 1.ª Parte, cap. I, n.º 3, nota 1.10. No intervalo das existências corpóreas, o Espírito volta por um tempo
mais ou menos longo ao mundo espiritual, onde ele é feliz ou infeliz
segundo o bem ou o mal que fez. O estado espiritual é o estado normal do
Espírito, visto que deve ser seu estado definitivo, e que o corpo
espiritual não morre; o estado corpóreo é apenas transitório e
passageiro. É acima de tudo no estado espiritual que ele colhe os frutos
do progresso realizado por seu trabalho na encarnação; é também então
que ele se prepara para novas lutas e toma resoluções que se esforçará
para pôr em prática no seu retorno à humanidade. O Espírito progride
igualmente na erraticidade; adquire aí conhecimentos especiais que não
poderia adquirir na Terra; suas ideias se modificam. O estado corporal e
o estado espiritual são para ele a fonte de dois gêneros de progresso,
solidários um do outro; é por isso que ele passa alternativamente por
esses dois modos de existência.
11. A reencarnação pode ocorrer na Terra ou em outros mundos. Entre os
mundos, há os que são mais avançados do que outros, onde a existência se
realiza em condições menos penosas do que na Terra, física e
moralmente, mas onde são admitidos apenas Espíritos chegados a um grau
de perfeição compatível com o estado desses mundos. A vida nos mundos
superiores já é uma recompensa, pois lá se está isento dos males e das
vicissitudes dos quais se é alvo na Terra. Os corpos, menos materiais,
quase fluídicos, não estão sujeitos às doenças, nem às enfermidades, nem
às mesmas necessidades. Estando os maus Espíritos dali excluídos, os
homens vivem em paz, sem outro cuidado senão o de seu avanço pelo
trabalho da inteligência. Lá reinam a verdadeira fraternidade, porque
não há egoísmo; a verdadeira igualdade, porque não há orgulho; a
verdadeira liberdade, porque não há desordens a reprimir, nem ambiciosos
tentando oprimir o fraco. Comparados à Terra, esses mundos são
verdadeiros paraísos; são as etapas do caminho do progresso que conduz
ao estado definitivo. Sendo a Terra um mundo inferior destinado à
depuração dos Espíritos imperfeitos, é por essa razão que o mal aí
domina até que Deus queira fazer dela a morada de Espíritos mais
avançados. É assim que o Espírito, progredindo gradualmente à medida que
se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade; mas, antes de ter
atingido o ponto culminante da perfeição, ele goza de uma felicidade
relativa ao seu avanço. Tal como a criança saboreia os prazeres da
primeira infância, mais tarde, os da juventude, e finalmente os mais
sólidos da idade madura.
12. A felicidade dos Espíritos bem-aventurados não está na ociosidade
contemplativa, que seria, como foi dito muitas vezes, uma eterna e
fastidiosa inutilidade. A vida espiritual, em todos os níveis, é ao
contrário uma constante atividade, mas uma atividade isenta de fadigas. A
bem-aventurança suprema consiste no gozo de todos os esplendores da
criação que nenhuma linguagem humana poderia exprimir, que nem a
imaginação mais fecunda poderia conceber; no conhecimento e a penetração
de todas as coisas; na ausência de toda dor física e moral; numa
satisfação íntima, uma serenidade de alma que nada altera; no amor puro
que une todos os seres, em consequência da ausência de todo atrito pelo
contato com os maus, e acima de tudo na visão de Deus e na compreensão
de seus mistérios revelados aos mais dignos. Ela está também nas funções
em que se é feliz por ser delas encarregados. Os puros Espíritos são os
Messias ou mensageiros de Deus para a transmissão e execução de suas
vontades; eles cumprem as grandes missões, presidem à formação dos
mundos e à harmonia geral do universo, tarefa gloriosa à qual só se
chega pela perfeição. Unicamente os da ordem mais elevada compartilham
os segredos de Deus, inspirando-se no seu pensamento, do qual são os
representantes diretos.
13. As atribuições dos Espíritos são proporcionais ao seu avanço, às
luzes que possuem, a suas capacidades, à sua experiência e ao grau de
confiança que inspiram ao soberano Senhor. Não há privilégio, não há
favores que não sejam o prêmio do mérito: tudo é avaliado pela estrita
justiça. As missões mais importantes são confiadas somente àqueles que
se sabe serem capazes de realizá-las e incapazes de falhar ou de
comprometê-las. Enquanto sob o olhar do próprio Deus, os mais dignos
compõem o conselho supremo, a chefes superiores é entregue a direção dos
turbilhões planetários; a outros é conferida a dos mundos especiais.
Vêm a seguir, na ordem do adiantamento e da subordinação hierárquica, as
atribuições mais restritas daqueles que são encarregados da marcha dos
povos, da proteção das famílias e dos indivíduos, da impulsão de cada
ramo do progresso, das diversas operações da natureza até os mais
ínfimos detalhes da criação. Neste vasto e harmonioso conjunto, há
ocupação para todas as capacidades, todas as aptidões, todas as boas
vontades, ocupações aceitas com alegria, solicitadas com ardor, porque é
um meio de progresso para os Espíritos que procuram elevar-se.
14. Ao lado das grandes missões confiadas aos Espíritos superiores, há as
de todos os graus de importância entregues aos Espíritos de todas as
ordens; daí se poder dizer que cada encarnado tem a sua, ou seja,
deveres a cumprir para o bem de seus semelhantes, desde o pai de família
a quem incumbe o cuidado de fazer progredir seus filhos, até o homem de
gênio que lança na sociedade novos elementos de progresso. É nessas
missões secundárias que se encontram muitas vezes falhas, prevaricações,
renúncias, mas que prejudicam apenas o indivíduo e não o conjunto.
15. Todas as inteligências concorrem, portanto, para a obra geral, seja
qual for o grau a que tenham chegado, e cada uma na medida das suas
forças; umas no estado de encarnação, outras no estado de Espírito. Em
toda parte a atividade, do ponto mais baixo até o mais alto da escala,
todas se instruindo, se ajudando mutuamente, estendendo a mão umas às
outras para atingir o cume. Assim se estabelece a solidariedade entre o
mundo espiritual e o mundo corporal, em outras palavras, entre os homens
e os Espíritos, entre os Espíritos livres e os Espíritos cativos. Assim
se perpetuam e se consolidam, pela purificação e continuidade das
relações, as simpatias verdadeiras, as afeições santas. Em toda a parte,
portanto, a vida e o movimento; nenhum canto do infinito que não seja
povoado; nenhuma região que não seja incessantemente percorrida por
inúmeras legiões de seres radiosos, invisíveis para os sentidos
grosseiros dos encarnados, mas cuja visão arrebata de admiração e de
alegria as almas desprendidas da matéria. Em toda a parte, enfim, há uma
felicidade relativa para todos os progressos, para todos os deveres
cumpridos; cada um traz em si os elementos de sua felicidade, relativa à
categoria em que o coloca seu grau de adiantamento. A felicidade
deve-se às qualidades próprias dos indivíduos, e não ao estado material
do meio onde eles se encontram; ela existe então em toda parte onde haja
Espíritos capazes de ser felizes; nenhum lugar circunscrito lhe é
designado no universo. Seja qual for o lugar onde se encontrem, os puros
Espíritos podem contemplar a majestade divina, porque Deus está em toda
a parte.
16.
Entretanto, a felicidade não é pessoal; se fosse tirada apenas de si
mesmo, se não se pudesse compartilhá-la com outros, seria egoísta e
triste; ela está também na comunhão de pensamentos que une os seres
simpáticos. Os Espíritos bem-aventurados, atraídos uns para os outros
pela semelhança das ideias, dos gostos, dos sentimentos, formam vastos
grupos ou famílias homogêneas, nas quais cada individualidade irradia
suas próprias qualidades, e é penetrada pelos eflúvios serenos e
benfazejos que emanam do conjunto, cujos membros ora se dispersam para
se dedicarem à sua missão, ora se juntam num ponto qualquer do espaço
para comunicarem uns aos outros o resultado de seus trabalhos, ora se
reúnem em volta de um Espírito de uma ordem mais elevada para receber
seus conselhos e suas instruções.
17. Embora os Espíritos estejam em toda parte, os mundos são os centros
onde eles se reúnem de preferência, devido à analogia que existe entre
eles e aqueles que os habitam. Em torno dos mundos avançados são
abundantes os Espíritos superiores; em torno dos mundos atrasados
pululam os Espíritos inferiores. A Terra é ainda um destes últimos. Cada
globo tem então, de alguma forma, sua própria população de Espíritos
encarnados e desencarnados, a qual se alimenta na maior parte pela
encarnação e desencarnação dos mesmos Espíritos. Essa população é mais
estável nos mundos inferiores onde os Espíritos são mais apegados à
matéria, e mais flutuante nos mundos superiores. Entretanto, dos mundos,
centros de luz e de felicidade, Espíritos se desprendem rumo aos mundos
inferiores para semear neles os germes do progresso, trazer a
consolação e a esperança, reanimar as coragens abatidas pelas provações
da vida, e às vezes encarnam-se neles para cumprirem sua missão com mais
eficácia.
18. Nesta imensidão sem limites, onde está então o céu? Está em toda a
parte; nenhuma cerca lhe impõe limites; os mundos felizes são as últimas
estações que a ele conduzem; as virtudes abrem-lhe o caminho, os vícios
proíbem-lhe o acesso. Ao lado deste quadro grandioso que povoa todos os
cantos do universo, que dá a todos os objetos da criação um objetivo e
uma razão de ser, como é pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve
a humanidade a um imperceptível ponto do espaço, que no-la mostra
começando num dado instante para acabar igualmente um dia com o mundo
que a sustenta, não abarcando assim senão um minuto na eternidade! Como
ela é triste, fria e glacial, quando nos mostra o resto do universo
antes, durante e depois da humanidade terrestre, sem vida, sem
movimento, como um imenso deserto mergulhado no silêncio! Como é
desesperante pela pintura que faz do pequeno número de eleitos devotados
à contemplação eterna, enquanto a maioria das criaturas é condenada a
sofrimentos sem fim! Como ela é aflitiva, para os corações amantes, pela
barreira que coloca entre os mortos e os vivos! As almas felizes,
diz-se, pensam somente em sua felicidade; as que são desgraçadas, em
suas dores. É de espantar que o egoísmo reine na Terra, quando é
mostrado no céu? Quão estreita é então a ideia que ela dá da grandeza,
do poder e da bondade de Deus! Quão sublime é, ao contrário, a ideia que
o Espiritismo dá! Como sua doutrina engrandece as ideias, amplia o
pensamento! — Mas quem diz que ela é verdadeira? Inicialmente a razão, a
revelação em seguida, depois sua concordância com o progresso da
ciência. Entre duas doutrinas das quais uma diminui e a outra amplia os
atributos de Deus; das quais uma está em desacordo e a outra em harmonia
com o progresso; das quais uma fica para trás e a outra avança, o bom
senso diz de que lado está a verdade. Que em presença das duas, cada um,
em seu foro íntimo, interrogue suas aspirações, e uma voz interna lhe
responderá. As aspirações são a voz de Deus, que não pode enganar os
homens.
19. Mas então por que Deus, desde o princípio, não lhes revelou toda a
verdade? Pela mesma razão de que não se ensina à infância o que se
ensina à idade madura. A revelação restrita era suficiente durante um
certo período da humanidade; Deus a proporciona às forças do Espírito.
Aqueles que hoje recebem uma revelação mais completa são os mesmos
Espíritos que já receberam uma revelação parcial em outros tempos, mas
que desde então cresceram em inteligência. Antes que a ciência lhes
tivesse revelado as forças vivas da natureza, a constituição dos astros,
o verdadeiro papel e a formação da Terra, teriam eles compreendido a
imensidão do espaço, a pluralidade dos mundos? Antes que a geologia
tivesse provado a formação da Terra, teriam eles podido desalojar o
inferno de seu centro, e compreender o sentido alegórico dos seis dias
da criação? Antes que a astronomia tivesse descoberto as leis que regem o
universo, teriam eles podido compreender que não há nem acima nem
abaixo no espaço, que o céu não está acima das nuvens, nem limitado
pelas estrelas? Antes do progresso da ciência psicológica teriam eles
podido identificar-se com a vida espiritual? Conceber, após a morte, uma
vida feliz ou infeliz, de outro modo que não num lugar circunscrito e
sob uma forma material? Não; compreendendo mais pelos sentidos do que
pelo pensamento, o universo era demasiado vasto para seu cérebro; era
preciso reduzi-lo a proporções menores para colocá-lo sob seu ponto de
vista, sob a condição de estendê-lo mais tarde. Uma revelação parcial
tinha sua utilidade; ela era sábia então, hoje é insuficiente. O erro é
daqueles que, não levando em conta o progresso das ideias, creem poder
governar homens maduros como se fossem crianças. (Ver
Evangelho segundo o
Espiritismo
, cap. III.)
Capítulo IV — O inferno
Intuição das penas futuras.
1. Em
todos os tempos o homem acreditou, por intuição, que a vida futura
devia ser bem-aventurada ou desventurada em razão do bem e do mal que se
realiza aqui embaixo; porém a ideia que ele faz dessa vida futura está
em relação com o desenvolvimento de seu senso moral, e as noções mais ou
menos exatas que possui do bem e do mal; penas e recompensas são
reflexo de seus instintos predominantes. É assim que os povos guerreiros
colocam sua suprema felicidade nas honrarias prestadas à bravura, os
povos caçadores na abundância da caça, os povos sensuais nas delícias da
volúpia. Enquanto o homem for dominado pela matéria, pode só
imperfeitamente compreender a espiritualidade, é por isso que faz das
penas e dos gozos futuros um quadro mais material que espiritual;
imagina que se deve beber e comer no outro mundo, mas melhor do que na
terra, e coisas melhores.* Chegado a certo nível, há nas crenças
referentes ao futuro uma mistura de espiritualidade e de materialidade; é
assim que ao lado da beatitude contemplativa, ele coloca um inferno com
torturas físicas.
* Um garoto saboiano, ao qual o padre pintava um quadro sedutor da vida futura, perguntou-lhe
se lá todo o mundo comia pão branco como em Paris.
2.
Não podendo o homem primitivo conceber senão o que vê, calcou
naturalmente seu futuro sobre o presente; para compreender outros tipos
além dos que tinha à vista, precisava de um desenvolvimento intelectual
que só devia se realizar com o tempo. Também o quadro que ele imagina
dos castigos da vida futura é apenas o reflexo dos males da humanidade,
mas em mais ampla proporção; reuniu ali todas as torturas, todos os
suplícios, todas as aflições que encontra na Terra; é assim que, nos
climas ardentes, ele imaginou um inferno de fogo, e nas regiões boreais
um inferno glacial. Não estando ainda desenvolvido o sentido que devia
mais tarde lhe fazer compreender o mundo espiritual, ele podia conceber
somente penas materiais; por isso, com pequenas diferenças de forma, o
inferno de todas as religiões se assemelha.
Inferno cristão imitado do inferno pagão.
3. O inferno dos pagãos, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o
modelo mais grandioso do gênero; perpetuou-se no dos cristãos o qual
teve, também, seus panegiristas poéticos. Comparando-os, encontram-se
neles, exceto os nomes e algumas variantes nos detalhes, inúmeras
analogias; num e noutro o fogo material é a base dos tormentos, porque é
o símbolo dos mais cruéis sofrimentos. Mas, coisa estranha, os
cristãos, em muitos pontos, exageraram o inferno dos pagãos! Se estes
últimos tinham no deles o tonel das Danaides, a roda de Íxion, o rochedo
de Sísifo, eram suplícios individuais; o inferno cristão tem para todos
caldeiras borbulhantes cujas tampas os anjos levantam para ver as
contorções dos condenados às penas eternas;* Deus ouve sem compaixão os
gemidos destes durante a eternidade. Jamais os pagãos descreveram os
habitantes dos Campos Elíseos saciando a vista com os suplícios do
Tártaro.**
* Sermão pregado em Montpellier em 1860.
** “Os bem-aventurados, sem sair do lugar que ocupam, sairão, entretanto, de uma certa
maneira, em razão de seus dons de inteligência e de suas visões distintas, a fim de considerar
as torturas dos danados; e, vendo-os, não somente não sentirão nenhuma dor, mas estarão
cumulados de alegria, e renderão graças a Deus pela própria felicidade, assistindo à inefável
calamidade dos ímpios” (Santo Tomás de Aquino.)4. Como os
pagãos, os cristãos têm seu rei dos infernos que é Satã, com a
diferença de que Plutão se limitava a governar o sombrio império que lhe
tocara na partilha, mas não era malvado; retinha em sua casa aqueles
que haviam cometido o mal, porque essa era sua missão, mas não procurava
induzir os homens ao mal para ter o prazer de fazê-los sofrer, ao passo
que Satã recruta em toda a parte vítimas que se compraz em fazer
atormentar pelas suas legiões de demônios armados de forcados para as
agitar no fogo. Discutiu-se mesmo seriamente sobre a natureza desse fogo
que queima incessantemente os condenados sem jamais os consumir;
perguntou-se se era um fogo de betume.* O inferno cristão não fica,
portanto, a dever nada ao inferno pagão.
*
Sermão pregado em Paris em 1861.5.
As mesmas considerações que, entre os Antigos, haviam feito localizar
a morada da felicidade, haviam também feito circunscrever o lugar dos
suplícios. Tendo os homens colocado a primeira nas regiões superiores,
era natural colocar o segundo nos lugares inferiores, ou seja, no centro
da Terra ao qual certas cavidades sombrias e de aspecto terrível
serviam de entrada. Foi também lá que os cristãos colocaram por muito
tempo a morada dos reprovados. Notemos ainda sobre este assunto outra
analogia. O inferno dos pagãos encerrava de um lado os Campos Elíseos e
do outro o Tártaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos homens
divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a carta do
Evangelho, Jesus desceu aos infernos, ou seja, aos lugares baixos, para
daí tirar as almas dos justos que aguardavam sua vinda. Os infernos não
eram, então, unicamente um lugar de suplício; como entre os pagãos, eles
estavam também nos lugares baixos. Assim como o Olimpo, a morada dos
anjos e dos santos era nos lugares elevados; colocaram-no além do céu
das estrelas que se acreditava limitado.
6. Esta mistura das ideias pagãs e das ideias cristãs nada tem que deva
surpreender. Jesus não podia subitamente destruir crenças enraizadas;
faltavam aos homens os conhecimentos necessários para conceber o
infinito do espaço e o número infinito dos mundos; a Terra era para eles
o centro do universo; não lhe conheciam nem a forma nem a estrutura
interna; tudo era para eles limitado a seu ponto de vista: suas noções
do futuro não se podiam estender além de seus conhecimentos. Jesus
achava-se então na impossibilidade de iniciá-los no verdadeiro estado
das coisas; mas, por outro lado, não querendo sancionar por sua
autoridade os preconceitos vigentes, ele se absteve, deixando ao tempo o
cuidado de retificar as ideias. Limitou-se a falar vagamente da vida
bem-aventurada e dos castigos que aguardam os culpados, mas em nenhum
lugar, em seus ensinamentos, se encontra o quadro dos suplícios
corporais dos quais os cristãos fizeram um artigo de fé. Eis como as
ideias do inferno pagão se perpetuaram até os nossos dias. Foi precisa a
difusão das luzes nos tempos modernos, e o desenvolvimento geral da
inteligência humana para lhes fazer justiça. Mas então, como nada de
positivo substituía as ideias preconcebidas, ao longo período de uma
crença cega sucedeu, como transição, o período de incredulidade, ao qual
a nova revelação vem pôr um termo. Era preciso demolir antes de
reconstruir, pois é mais fácil fazer aceitar ideias justas àqueles que
não creem em nada, porque eles sentem que lhes falta algo, do que aos
que têm uma fé robusta no que é absurdo.
7. Pela localização do céu e do inferno, as religiões cristãs foram
levadas a admitir para as almas apenas duas situações extremas: a
felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório não é mais do
que uma posição intermediária momentânea à saída da qual elas passam sem
transição à morada dos bem-aventurados. Não poderia ser de outra forma
segundo a crença na determinação definitiva do destino da alma depois da
morte. Se não há senão duas moradas, a dos eleitos e a dos reprovados,
não se podem admitir vários graus em cada uma sem admitir a
possibilidade de galgá-los, e, por conseguinte o progresso; ora, se há
progresso, não há destino definitivo; se há destino definitivo, não há
progresso. Jesus resolve a questão quando diz: “Há muitas moradas na
casa de meu pai .” *
* Vede o Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.Os limbos.
8. A Igreja admite, é verdade, uma posição especial em certos casos
particulares. As crianças mortas em tenra idade, não tendo feito nenhum
mal, não podem ser condenadas ao fogo eterno; por outro lado, não tendo
feito nenhum bem, não têm nenhum direito à felicidade suprema. Ficam
então, diz ela, no limbo, situação mista que jamais foi definida, na
qual, não sofrendo, também não gozam da perfeita felicidade. Mas visto
que seu destino está irrevogavelmente determinado, elas estão privadas
dessa felicidade por toda a eternidade. Essa privação, embora não tenha
dependido delas que fosse de outra maneira, equivale a um suplício
eterno imerecido. Acontece o mesmo com os selvagens que, não tendo
recebido a graça do batismo e as luzes da religião, pecam por
ignorância, abandonando-se aos instintos naturais, não podem ter nem a
culpa nem os méritos dos que puderam trabalhar com conhecimento de causa
para seu avanço. A simples lógica repele semelhante doutrina em nome da
justiça de Deus. A justiça de Deus está toda nesta expressão de Cristo:
“A cada um segundo suas obras”; mas é preciso entender que se refere
às obras boas ou más que se realizam livremente, voluntariamente, as
únicas em cuja responsabilidade se incorre, o que não é o caso da
criança, nem do selvagem, nem daquele do qual não dependeu ser
esclarecido.
Quadro do inferno pagão.
9. Só conhecemos o inferno pagão pela narrativa dos poetas; Homero e
Virgílio fizeram dele a mais completa descrição, mas é preciso levar em
conta os limites que a poesia impõe à forma. A de Fénelon, em seu
Telêmaco, embora extraída da mesma fonte quanto às crenças fundamentais,
tem a simplicidade mais precisa da prosa. Descrevendo o aspecto lúgubre
dos lugares, ressalta acima de tudo o gênero de sofrimentos infligidos
aos culpados, e se estende muito sobre o destino dos maus reis, tendo em
vista a instrução de seu real aluno. Por mais popular que seja sua
obra, talvez muitas pessoas não se lembrem dela, ou não tenham refletido
o suficiente sobre ela para estabelecer uma comparação; é por isso que
cremos útil reproduzir aqui as partes que têm uma relação mais direta
com o assunto que nos ocupa, ou seja, aquelas que se referem mais
precisamente à penalidade individual.
10.
“Ao entrar, Telêmaco ouve os gemidos de uma sombra que não podia
consolar-se. Qual é então, disse-lhe ele, vossa desgraça? Eu era,
responde-lhe a sombra, Nabofarzan, rei da soberba Babilônia; todos os
povos do Oriente tremiam ao simples som do meu nome; fazia-me adorar
pelos babilônios num templo de mármore onde era representado por uma
estátua de ouro diante da qual ardiam dia e noite os mais preciosos
perfumes da Etiópia; jamais alguém ousou contradizer-me sem ser logo
punido; inventavam-se todo dia novos prazeres para tornar minha vida
mais deliciosa. Eu era então jovem e robusto; ah! quantos dias
afortunados tinha ainda a gozar no trono! Mas uma mulher que eu amava, e
que não me amava, fez-me sentir que eu não era deus: ela me envenenou;
não sou mais nada. Puseram ontem com pompa minhas cinzas numa urna de
ouro; choraram, arrancaram os cabelos; fingiram querer jogar-se nas
chamas de minha fogueira para morrer comigo; vão ainda gemer ao pé do
soberbo túmulo onde puseram minhas cinzas: mas ninguém me lamenta, minha
memória é odiada mesmo na minha família, e aqui embaixo já estou
sofrendo horríveis tratamentos.
“Telêmaco, tocado por esse espetáculo,
disse-lhe: Éreis verdadeiramente feliz durante vosso reinado? Sentíeis
aquela doce paz sem a qual o coração permanece sempre apertado e
ressequido em meio às delícias? Não, respondeu o babilônio; nem mesmo
sei o que quereis dizer. Os sábios elogiam essa paz como o único bem:
por mim, nunca a senti; meu coração era incessantemente agitado por
desejos novos, temor e esperança. Eu tentava atordoar-me pela excitação
de minhas paixões; tinha o cuidado de manter essa embriaguez para
torná-la contínua; o menor intervalo de sensatez teria sido demasiado
amargo. Eis a paz de que gozei; qualquer outra me parece uma fábula e um
sonho; eis os bens que lamento.
“Falando assim, o babilônio chorava como um homem covarde que foi amolecido
pela fortuna e não está acostumado a suportar constantemente a
desgraça. Tinha perto dele alguns escravos que haviam sido sacrificados
em sua homenagem no funeral; Mercúrio entregara-os a Caronte com seu
rei, e dera-lhes poder absoluto sobre esse rei que haviam servido na
terra. Essas sombras de escravos não mais temiam a sombra de Nabofarzan;
elas a mantinham acorrentada e faziam-lhe as mais cruéis afrontas. Uma
dizia-lhe: Nós não éramos homens como tu? Como podias ser tão insensato a
ponto de te creres um deus? E não devias lembrar-te de que eras da raça
dos outros homens? Outra, para insultá-lo, dizia: Tinhas razão de não
querer que te tomassem por um homem, pois eras um monstro sem
humanidade. Uma outra dizia-lhe: Pois bem! Onde estão agora os teus
aduladores? Não tens mais nada para dar, desgraçado! Não podes fazer
mais nenhum mal; és agora escravo dos teus próprios escravos: os deuses
são lentos para fazer justiça, mas enfim a fazem.
“A essas duras
palavras, Nabofarzan se jogava de rosto no chão, arrancando os cabelos
num ataque de raiva e desespero. Mas Caronte dizia aos escravos: Puxai-o
pela corrente; levantai-o à força, ele não terá nem mesmo o consolo de
esconder sua vergonha; é preciso que todas as sombras do Estige sejam
testemunhas para justificar os deuses, que aguentaram tanto tempo que
este ímpio reinasse na Terra.
“Ele logo percebe, bem perto dele, o negro
Tártaro; dali saía uma fumaça negra e espessa, cujo cheiro pestilento
causaria a morte se ele se espalhasse pela morada dos vivos. Essa fumaça
cobria um rio de fogo e turbilhões de chamas, cujo estrépito,
semelhante ao das torrentes mais impetuosas quando se lançam dos mais
altos rochedos no fundo dos abismos, fazia que nada se pudesse ouvir
distintamente naqueles tristes lugares.
“Telêmaco, secretamente animado
por Minerva, entra sem temor nesse abismo. Primeiro percebeu muitos
homens que viveram nas mais baixas condições, e que eram punidos por
terem buscado riquezas por meio de fraudes, traições e crueldades. Notou
ali muitos ímpios hipócritas que, fingindo amar a religião, tinham-na
usado como um belo pretexto para satisfazerem sua ambição e enganarem os
homens crédulos: esses homens, que haviam abusado da própria virtude,
embora ela seja o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais
celerados de todos os homens. Os filhos que assassinaram pais e mães, as
esposas que sujaram as mãos no sangue dos esposos, os traidores que
entregaram a pátria depois de terem violado todos os juramentos, sofriam
penas menos cruéis do que esses hipócritas. Os três juízes dos infernos
tinham-no desejado assim, e eis sua razão: esses hipócritas não se
contentam com a maldade como o resto dos ímpios; querem ainda passar por
bons e fazem, por sua falsa virtude, que os homens não ousem mais
confiar na verdadeira virtude. Os deuses, com os quais eles brincaram e
tornaram desprezíveis para os homens, aprazem-se em empregar todo o seu
poder para se vingarem de seus insultos.
“Perto destes apareciam outros
homens que o vulgo não crê muito culpados, e que a vingança divina
persegue implacavelmente; são os ingratos, os mentirosos, os aduladores
que elogiaram o vício, os críticos maliciosos que tentaram aviltar a
mais pura virtude; enfim, aqueles que temerariamente julgaram coisas sem
conhecê-las a fundo, e com isso prejudicaram a reputação dos inocentes.
“Telêmaco, vendo os três juízes que estavam sentados e que condenavam
um homem, ousou perguntar-lhes quais eram seus crimes. Imediatamente o
condenado, tomando a palavra, exclamou: Nunca fiz nenhum mal; tive todo o
prazer em fazer o bem; fui magnífico, liberal, justo, compassivo; o que
se pode, portanto, reprovar-me? Então Minos disse-lhe: Não te
reprovamos nada em relação aos homens; mas tu não devias menos aos
homens do que aos deuses? Qual é então essa justiça de que te gabas? Não
faltaste a nenhum dever para com os homens, que não são nada; foste
virtuoso, mas dirigiste toda a tua virtude a ti mesmo, e não aos deuses,
que te deram-na, pois querias gozar do fruto da tua própria virtude e
fechar-te em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que fizeram
tudo, e que não fizeram nada a não ser por eles mesmos, não podem
renunciar a seus direitos; tu os esqueceste, eles te esquecerão;
entregar-te-ão a ti mesmo, visto que quiseste ser teu e não deles. Busca
agora então, se puderes, a consolação em teu próprio coração. Eis-te
separado para sempre dos homens aos quais quiseste agradar; eis-te só
contigo mesmo, que eras teu ídolo: aprende que não há verdadeira virtude
sem o respeito e o amor aos deuses, aos quais tudo é devido. Tua falsa
virtude, que seduziu por muito tempo os homens fáceis de enganar, vai
ser desmascarada.Os homens, julgando vícios e virtudes apenas pelo
que os choca ou lhes convém, são cegos sobre o bem e sobre o mal. Aqui,
uma luz divina inverte todos os seus julgamentos superficiais; ela
condena com frequência o que eles admiram e justifica o que eles
condenam.
“A essas palavras, esse filósofo, como que atingido por um
raio, não podia suportar a si mesmo. A complacência que tivera outrora
ao contemplar sua moderação, sua coragem e suas inclinações generosas,
torna-se desespero. A visão de seu próprio coração, inimigo dos deuses,
torna-se seu suplício; ele se vê e não pode cessar de se ver; vê a
vaidade dos julgamentos dos homens, aos quais quis agradar em todas as
suas ações. Ocorre uma revolução universal em todo o seu interior, como
se suas entranhas fossem reviradas; ele não se reconhece mais; falta-lhe
todo o apoio de seu coração; sua consciência, cujo testemunho lhe fora
tão doce, se ergue contra ele e reprova-lhe amargamente o desvario e a
ilusão de todas as suas virtudes, que não tiveram o culto da divindade
por princípio e por fim: ele está perturbado, consternado, cheio de
vergonha, de remorsos e de desespero. As fúrias não o atormentam, porque
lhes basta tê-lo entregado a si mesmo, e que seu próprio coração vingue
os deuses menosprezados. Não podendo se esconder de si mesmo, ele
procura os lugares mais escuros para se esconder dos outros mortos.
Procura as trevas e não pode encontrá-las; uma luz importuna o segue por
toda a parte; em toda a parte os raios penetrantes da verdade vão
vingar a verdade que ele negligenciou seguir. Tudo o que amou se torna
odioso, como sendo a fonte de seus males, que jamais podem acabar. Diz a
si mesmo: Ó insensato! Então não conheci nem os deuses, nem os homens,
nem a mim mesmo! Não, não conheci nada, visto que jamais amei o único e
verdadeiro bem; todos os meus passos foram desvarios; minha sabedoria
não era senão loucura; minha virtude era apenas um orgulho ímpio e
cego: eu era meu próprio ídolo.
“Enfim Telêmaco avistou os reis que eram
condenados por terem abusado de seu poder. De um lado uma fúria
vingadora apresentava-lhes um espelho que lhes mostrava toda a
deformidade de seus vícios: ali eles viam e não podiam deixar de ver sua
vaidade grosseira e ávida das mais ridículas lisonjas; sua dureza para
com os homens, cuja felicidade deveriam ter assegurado; sua
insensibilidade para com a virtude; seu temor de ouvir a verdade; sua
inclinação para os homens covardes e aduladores; sua falta de
aplicação; sua moleza; sua indolência; sua desconfiança descabida; seu
fausto e excessiva magnificência baseada na ruína dos povos; sua ambição
de comprar um pouco de glória vã com o sangue de seus cidadãos; enfim
sua crueldade, que procura a cada dia novas delícias em meio às lágrimas
e ao desespero de tantos infelizes. Eles viam-se sem cessar nesse
espelho; achavam-se mais horríveis e mais monstruosos do que a Quimera,
vencida por Belerofonte, a Hidra de Lerna abatida por Hércules, ou mesmo
Cérbero, embora vomite pelas três goelas escancaradas um sangue negro e
venenoso que é capaz de empestar toda a raça dos mortais que vivem na
terra.
“Ao mesmo tempo, de outro lado, outra fúria lhes repetia com
insulto todas as lisonjas que seus aduladores lhes haviam feito durante a
vida, e apresentava-lhes outro espelho, no qual eles se viam tais como a
lisonja os retratara. A oposição dessas duas pinturas tão contrárias
era o suplício de sua vaidade. Notava-se que os mais malvados desses
reis eram aqueles a quem se fizeram as lisonjas mais magníficas durante a
vida, porque os malvados são mais temidos do que os bons, e eles exigem
sem pudor as covardes lisonjas dos poetas e dos oradores de seu tempo.
“Ouvem-se-nos
gemer nessas profundas trevas, onde podem ver somente os insultos e os
escárnios que têm de aguentar. Não têm à sua volta nada que não os
repila, não os contradiga, que não os confunda; ao passo que na terra
não davam importância à vida dos homens, e pretendiam que tudo era feito
para servi-los. No Tártaro eles são entregues a todos os caprichos de
alguns escravos que lhes fazem sentir por sua vez uma cruel servidão:
eles servem com dor, e não lhes resta nenhuma esperança de poder jamais
abrandar o cativeiro; apanham desses escravos, que se tornaram seus
tiranos implacáveis, como uma bigorna apara os golpes dos martelos dos
Ciclopes, quando Vulcano os força a trabalhar nas fornalhas ardentes do
monte Etna.
“Ali Telêmaco avistou rostos pálidos, hediondos e
consternados. É uma tristeza negra que rói esses criminosos; têm horror
de si mesmos, e não podem libertar-se desse horror tal como de sua
própria natureza; não precisam de outro castigo que o de suas faltas,
suas próprias faltas: veem-nas sem cessar em toda sua enormidade; elas
se lhes apresentam como espectros horríveis, perseguem-nos. Para se
proteger, eles procuram uma morte mais poderosa do que aquela que os
separou de seus corpos. No desespero em que se encontram, pedem socorro a
uma morte que possa extinguir neles todo sentimento e todo
conhecimento; pedem aos abismos para que os engulam a fim de se livrarem
dos raios vingadores da verdade que os persegue, mas estão reservados à
vingança que destila sobre eles gota a gota, e que não se esgotará
jamais. A verdade, que eles temeram ver, faz seu suplício; eles a veem,
têm olhos apenas para vê-la erguer-se contra eles: sua visão
transpassa-os, dilacera-os, arrancaos a si mesmos; ela é como o raio;
sem destruir nada por fora, penetra até o fundo das entranhas.
“Entre
esses objetos que faziam os cabelos de Telêmaco ficar em pé, ele viu
vários dos antigos reis da Lídia que eram punidos por terem preferido as
delícias de uma vida fácil ao trabalho, para o alívio dos povos, que
deve ser inseparável da realeza.
“Esses reis acusavam-se mutuamente de
cegueira. Um dizia ao outro, que fora seu filho: Não vos recomendara eu
muitas vezes, durante minha velhice e antes de morrer, reparardes os
males que eu fizera por negligência? Ah! Pai desgraçado! dizia o filho,
fostes vós que me perdestes! Foi vosso exemplo que me inspirou o fausto,
o orgulho, a volúpia e a dureza para com os homens! Vendo-vos reinar
com tanta frouxidão e cercado de covardes aduladores, acostumei-me a
gostar da adulação e dos prazeres. Acreditei que o resto dos homens era,
em relação aos reis, o que os cavalos e as outras bestas de carga são
em relação aos homens, ou seja, animais dos quais não se faz caso a não
ser enquanto prestam serviços e dão comodidades. Eu acreditei, sois vós
que me fizestes crer nisso; e agora sofro tantos males por vos ter
imitado. A essas acusações acrescentavam as mais horrorosas maldições, e
pareciam tomados de raiva para se dilacerarem mutuamente.
“Em torno
desses reis esvoaçavam ainda, como corujas à noite, as cruéis suspeitas,
os vãos alarmes, as desconfianças que vingam os povos da dureza de seus
reis, a fome insaciável de riquezas, a falsa glória sempre tirânica e a
frouxidão covarde que redobra todos os males de que se sofre, sem nunca
poder dar prazeres sólidos.
“Viam-se vários desses reis severamente
punidos, não pelos males que fizeram, mas por terem negligenciado o bem
que deveriam ter feito. Todos os crimes dos povos, que vêm da
negligência com a qual se fazem observar as leis, eram imputados aos
reis, que devem reinar apenas a fim de que as leis reinem por seu
ministério. Imputavam-se-lhes também todas as desordens que vêm do
fausto, do luxo e de todos os outros excessos que jogam os homens num
estado violento e na tentação de desprezar as leis para adquirir bens.
Sobretudo tratavam-se rigorosamente os reis que, em vez de serem bons e
vigilantes pastores do povo, só pensaram em devastar o rebanho, como
lobos devoradores.
“Mas o que mais consternou Telêmaco foi ver, nesse
abismo de trevas e de males, um grande número de reis que, tendo passado
na terra por reis bastante bons, foram condenados às penas do Tártaro
por se terem deixado governar por homens maus e artificiosos. Eram
punidos pelos males que deixaram fazer por sua autoridade. Ademais, a
maioria desses reis não fora nem boa nem má, tão grande fora sua
fraqueza; jamais temeram não conhecer a verdade; não tiveram gosto pela
virtude, e não tiveram o prazer de fazer o bem.”
Quadro do inferno cristão.
11. A opinião dos teólogos sobre o inferno está resumida nas citações a seguir.* Esta descrição, sendo extraída dos autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto mais ser considerada como a expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto ela é a cada instante reproduzida, com pequenas variantes, nos sermões da cátedra evangélica e nas instruções pastorais.
* Estas citações são tiradas da obra intitulada: O Inferno, por Auguste Callet.12. “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente no
inferno, podem também ser considerados como puros Espíritos, visto que
só sua alma aí desceu, e que suas ossadas entregues ao pó se transformam
incessantemente em ervas, em plantas, em frutos, em minerais, em
líquidos, sofrendo, sem saber, as contínuas metamorfoses da matéria. Mas
os condenados, como os santos, devem ressuscitar no último dia, e
retomar, para não mais o deixar, um corpo carnal, o mesmo corpo sob o
qual foram conhecidos entre os vivos. O que os distinguirá uns dos
outros é que os eleitos ressuscitarão num corpo purificado e todo
radioso, os condenados num corpo maculado e deformado pelo pecado.
Portanto, não haverá mais no inferno somente puros Espíritos; haverá
homens como nós. O inferno é, por conseguinte, um lugar físico,
geográfico, material, visto que será povoado de criaturas terrestres,
tendo pés, mãos, boca, língua, dentes, orelhas, olhos semelhantes aos
nossos, e sangue nas veias, e nervos sensíveis à dor.
Onde está situado o
inferno? Alguns doutores colocaram-no nas entranhas mesmas da nossa
terra; outros, em não sei qual planeta; mas a questão não foi decidida
por nenhum concílio. Está-se, portanto, sobre este ponto, reduzido às
conjeturas; a única coisa que se afirma, é que o inferno, seja qual for o
lugar em que estiver situado, é um mundo composto de elementos
materiais, mas um mundo sem sol, sem lua, sem estrelas, mais triste,
mais inóspito, mais desprovido de todo germe e de toda aparência de bem
do que as partes mais inabitáveis deste mundo onde pecamos.
“Os teólogos
circunspectos não se arriscam a pintar, à maneira dos egípcios, dos
hindus e dos gregos, todos os horrores dessa morada; eles se limitam a
mostrar-nos dela, como uma amostra, o pouco que a Escritura desvela, a
lagoa de fogo e de enxofre do apocalipse, e os vermes de Isaías, esses
vermes eternamente pululando sobre as carcaças do Thophel, e os demônios
atormentando os homens que perderam, e os homens chorando e rangendo os
dentes, segundo a expressão dos Evangelistas.
“Santo Agostinho não
concorda que essas penas físicas sejam simples imagens das penas morais;
ele vê, numa verdadeira lagoa de enxofre, vermes e serpentes
verdadeiros encarniçando-se sobre todas as partes do corpo dos
condenados e juntando suas mordidas às do fogo. Ele pretende, segundo um
versículo de São Marcos, que esse fogo estranho, embora material como o
nosso, e agindo sobre corpos materiais, conservá-los-á como o sal
conserva a carne das vítimas. Mas os condenados eternos, vítimas sempre
sacrificadas e sempre vivas, sentirão a dor desse fogo que queima sem
destruir; ele penetrará sob sua pele; eles ficarão embebidos dele e
saturados em todos os membros, e na medula dos seus ossos, e na pupila
dos seus olhos, e nas fibras mais recônditas e mais sensíveis de seu
ser. A cratera de um vulcão, se pudessem nela mergulhar, seria para eles
um lugar de refrigério e de repouso.
“Assim falam, com toda a
segurança, os teólogos mais tímidos, mais discretos, mais reservados;
não negam, aliás, que haja no inferno outros suplícios corporais; dizem
somente que, para falar disso, não têm um conhecimento suficiente, tão
positivo, ao menos, do que o que lhes foi dado do horrível suplício do
fogo e do nojento suplício dos vermes. Mas há teólogos mais arrojados ou
mais esclarecidos que fazem do inferno descrições mais detalhadas, mais
variadas e mais completas; e, ainda que não se saiba em que lugar do
espaço esse inferno está situado, há santos que o viram. Não foram de
lira em punho, como Orfeu, ou de espada em punho, como Ulisses; foram lá
transportados em Espírito. Santa Teresa é desse número.
“Pareceria,
segundo o relato da santa, que há cidades no inferno; ela viu ali, pelo
menos, uma espécie de ruela longa e estreita, como há tantas nas velhas
cidades; ela entrou lá, andando com horror num terreno lamacento,
fétido, onde pululavam monstruosos répteis; mas foi detida em sua marcha
por uma muralha que barrava a ruela; nessa muralha havia um nicho onde
Teresa se enfiou, sem nem saber como isso aconteceu. Era, disse ela, o
lugar que lhe estava destinado, se abusasse, em vida, das graças que
Deus espalhava sobre sua cela de Ávila. Embora se tivesse introduzido
com maravilhosa facilidade nesse nicho de pedra, não podia, no entanto,
nem sentar-se, nem deitar-se, nem ficar de pé: nem tampouco podia sair
dali; essas horríveis muralhas, tendo-se abaixado sobre ela,
envolviam-na, apertavam-na, como se fossem animadas. Pareceu-lhe que a
asfixiavam, a estrangulavam, e, ao mesmo tempo, que a esfolavam viva e a
retalhavam. E ela sentia-se queimar, e experimentava simultaneamente
todos os gêneros de angústias. Nenhuma esperança de socorro; à sua
volta, apenas trevas, e, no entanto, através dessas trevas, ela
distinguia ainda, não sem espanto, a hedionda rua onde estava enfiada e
toda sua vizinhança imunda, espetáculo para ela tão intolerável quanto
os apertos de sua prisão.*
“Não era sem dúvida senão um cantinho do
inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos. Viram no
inferno grandes cidades em fogo, Babilônia e Nínive, mesmo Roma, seus
palácios e templos incendiados, e todos os habitantes acorrentados, o
traficante ao seu balcão, padres reunidos com cortesãos em salas de
festins, e urrando em seus assentos dos quais não se podiam mais
arrancar, e levando aos lábios, para matar a sede, taças de onde saíam
chamas; criados de joelhos, dentro de cloacas ferventes, de braços
estendidos, e príncipes de cuja mão escorria sobre eles, em lava
devorante, ouro fundido. Outros viram no inferno planícies sem limites
que camponeses famélicos cavavam e semeavam, e como dessas planícies
fumegantes de seu suor, e dessas semeaduras estéreis, nada nascia, esses
camponeses se entre devoravam; depois disso, tão numerosos quanto
antes, tão magros, tão esfomeados, dispersavam-se em bandos até o
horizonte, indo buscar ao longe, mas em vão, terras mais aventuradas, e
logo eram substituídos, nos campos que abandonavam, por outras colônias
errantes de condenados às penas eternas. Houve outros que viram no
inferno montanhas cheias de precipícios, florestas
gementes, poços sem água, fontes alimentadas pelas lágrimas, riachos de
sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas de desesperados
vogando sobre mares sem praias. Reviu-se aí, numa palavra, tudo o que os
pagãos ali viam, um reflexo lúgubre da terra, uma sombra desmedidamente
aumentada de suas misérias, seus sofrimentos naturais eternizados, e
até os calabouços e patíbulos, e instrumentos de tortura que nossas
próprias mãos forjaram.
“Há lá em baixo, com efeito, demônios que, para
melhor atormentar os homens em seus corpos, tomam corpos. Estes têm asas
de morcego, chifres, couraças de escamas, patas com garras, dentes
agudos; são-nos mostrados armados de gládios, de forcados, de pinças, de
tenazes ardentes, de serras, de grelhas, de foles, de clavas, e
fazendo, durante a eternidade, com carne humana, o ofício de cozinheiros
e açougueiros; aqueles, transformados em leões ou em víboras enormes,
arrastando suas presas para cavernas solitárias; alguns transformam-se
em corvos, para arrancar os olhos a certos culpados, e outros em dragões
voadores, para carregá-los nas costas e levá-los apavorados, sangrando,
gritando através dos espaços tenebrosos, e depois deixá-los cair de
novo na lagoa de enxofre. Aqui nuvens de gafanhotos, escorpiões
gigantescos, cuja visão dá arrepios, cujo odor dá náuseas, cujo mínimo
toque dá convulsões; lá, monstros policéfalos, abrindo de todos os lados
goelas vorazes, sacudindo sobre as cabeças disformes crinas de víboras,
triturando os reprovados entre as mandíbulas sangrentas, e vomitando-os
todos moídos, mas vivos, porque são imortais.
“Esses demônios de forma sensível, que lembram tão nitidamente os deuses do Amenthi e do Tártaro, e os ídolos que os fenícios, os moabitas e os outros gentios vizinhos da Judeia adoravam, esses demônios não agem ao acaso; cada um tem sua função e sua obra; o mal que fazem no inferno está em relação com o mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra.** Os condenados são punidos em todos os seus sentidos e em todos os seus órgãos, porque ofenderam Deus por todos os seus sentidos e por todos os seus órgãos; punidos de uma maneira como gulosos, pelos demônios da gula, e de outra maneira como preguiçosos, pelos demônios da preguiça, e de outra como fornicadores, pelos demônios da fornicação, e de tantas maneiras quanto há diversas maneiras de pecar. Eles terão frio queimando, e calor gelando; estarão ávidos de repouso e ávidos de movimento; e sempre esfomeados, e sempre sedentos, e mil vezes mais cansados do que o escravo no fim do dia, mais doentes do que os moribundos, mais abatidos, mais alquebrados, mais cobertos de feridas do que os mártires, e isso não acabará.
“Nenhum demônio se
desanima, nem jamais se desanimará de sua horrenda tarefa; eles são
todos, sob esse aspecto, bem disciplinados, e fiéis a executar as ordens
de vingadores que receberam. Sem isso, o que se tornaria o inferno? Os
pacientes descansariam se os carrascos acabassem por brigar ou
cansar-se. Mas não há repouso para uns, nem brigas entre os outros; por
mais malvados que sejam, e incontáveis, os demônios se entendem de uma
ponta à outra do abismo, e nunca se viram na terra nações mais dóceis a
seus príncipes, exércitos mais obedientes a seus chefes, comunidades
monásticas mais humildemente submissas a seus superiores.***
“Não se
conhece muito, aliás, a populaça dos demônios, esses espíritos vis dos
quais são compostas as legiões de vampiros, de vampiras, de sapos,
escorpiões, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem nome, que
constituem a fauna das regiões infernais; mas conhecem-se e nomeiam-se
vários dos príncipes que comandam essas legiões, entre outros Belfegor, o
demônio da luxúria, Abaddon ou Apolyon, o demônio do homicídio,
Belzebu, o demônio dos desejos impuros, ou o senhor das moscas, que
engendram a corrupção; e Mamon, o demônio da avareza, e Moloch, e
Belial, e Baalgad e Astaroth, e tantos outros, e acima deles seu chefe
universal, o sombrio arcanjo que tinha no céu o nome de Lúcifer, e usa
no inferno o de Satã.
“Eis, em resumo, a ideia que nos dão do
inferno, considerado do ponto de vista de sua natureza física e das
penas físicas que aí se sofrem. Consultai os escritos dos Doutores da
Igreja; interrogai nossas piedosas lendas; olhai as esculturas e os
quadros de nossas igrejas; prestai ouvidos ao que se diz em nossas
cátedras, e aprendereis muito mais.
* Reconhecemos, nessas visões, todos os caracteres dos pesadelos; é, pois, provável, ter sido um efeito desse gênero que se produziu com Santa Teresa.
**
Em verdade, singular punição essa que consiste em poder continuar, em maior escala, o mal
que fizeram em menor escala na Terra! Seria mais racional que eles próprios sofressem as
consequências desse mal, em vez de se darem ao prazer de imputá-lo aos outros.
***
Esses mesmos demônios, rebeldes a Deus para o bem, são de uma docilidade exemplar
para fazer o mal; nenhum deles recua nem abranda a marcha durante a eternidade. Que
estranha metamorfose se operou neles, que haviam sido criados puros e perfeitos como os
anjos! Não é bem singular vê-los dar exemplo de perfeita compreensão, de harmonia, de
concórdia inabalável, enquanto os homens não sabem viver em paz e se entredilaceram na
Terra? Vendo o luxo dos castigos reservados aos danados, e comparando sua situação com as
dos demônios, nos perguntamos quem deve ser mais lamentado: os carrascos ou as vítimas?13. O autor faz após este quadro as seguintes reflexões, cujo alcance todos compreenderão:
“A
ressurreição dos corpos é um milagre; mas é preciso um segundo milagre
para dar a esses corpos mortais, já gastos uma vez pelas passageiras
provas da vida, aniquilados já uma vez, a virtude de subsistir, sem se
dissolverem, numa fornalha onde os metais se evaporariam. Que se diga
que a alma é seu próprio carrasco, que Deus não a persegue, mas que ele a
abandona no estado desventurado que ela escolheu, isso pode
compreender-se com todo o rigor, embora o abandono eterno de um ser
perdido e sofredor pareça pouco conforme à bondade do Criador; mas o que
se diz da alma e das penas espirituais, não se pode, de maneira
nenhuma, dizer dos corpos e das penas corporais; para perpetuar essas
penas corporais, não basta que Deus retire sua mão, é preciso, ao
contrário, que ele a mostre, que intervenha, que aja, sem o que o corpo
sucumbiria.
“Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera efetivamente,
após a ressurreição, esse segundo milagre de que falamos. Ele tira
primeiro, do sepulcro que os devorara, nossos corpos de argila;
retira-os tal como aí entraram, com suas enfermidades originais e as
degradações sucessivas da idade, da doença e do vício; ele devolve-os a
nós nesse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de
necessidades, sensíveis a uma picada de abelha, todos cobertos dos
estigmas que a vida e a morte aí imprimiram, e é esse o primeiro
milagre; depois, a esses corpos débeis, prontos a retornar ao pó do qual
saem, ele inflige uma propriedade que eles nunca tiveram, e eis o
segundo milagre; ele lhes inflige a imortalidade, esse mesmo dom que, na
sua cólera, dizei antes na sua misericórdia, ele retirara de Adão à
saída do Éden. Quando Adão era imortal, era invulnerável, e quando
cessou de ser invulnerável, tornou-se mortal; a morte seguiu de perto a
dor.
“A ressurreição não nos restabelece, portanto, nem nas condições
físicas do homem inocente, nem nas condições físicas do homem culpado; é
somente uma ressurreição de nossas misérias, mas com uma sobrecarga de
misérias novas, infinitamente mais horríveis; é, em parte, uma
verdadeira criação, e a mais maliciosa que a imaginação tenha ousado
conceber. Deus muda de ideia, e para juntar aos tormentos espirituais
tormentos carnais que possam durar para sempre, ele muda bruscamente,
por um efeito de seu poder, as leis e as propriedades por ele mesmo
atribuídas, desde o começo, aos compostos da matéria; ressuscita carnes
doentes e corrompidas, e amarrando com um nó indestrutível esses
elementos que tendem a se separar por si mesmos, ele mantém e perpetua,
contra a ordem natural, essa podridão viva; ele joga-a no fogo, não
para purificá-la, mas para conservá-la tal qual ela é, sensível,
sofredora, ardente, horrível, tal qual ele a quer, imortal.
“Faz-se de
Deus, por esse milagre, um dos carrascos do inferno, pois se os
condenados não podem imputar senão a si mesmos seus males espirituais,
podem, em contrapartida, atribuir os outros a Ele. Era demasiado pouco,
aparentemente, abandoná-los após a morte à tristeza, ao arrependimento e
a todas as angústias de uma alma que sente que perdeu o bem supremo;
Deus irá, segundo os teólogos, buscá-los nessa noite, no fundo do
abismo; ele os trará um momento à luz, não para consolá-los, mas para
revesti-los de um corpo hediondo, flamejante, imperecível, mais
contaminado do que a túnica de Dejanira, e só então ele os abandona para
sempre.
“Ele nem mesmo os abandona, visto que o inferno só subsiste,
assim como a terra e o céu, por um ato permanente da sua vontade, sempre
ativa, e tudo se desfaria se ele cessasse de sustentá-lo. Ele manterá
então incessantemente a mão sobre eles para impedir seu fogo de se
extinguir e seus corpos de se consumir, querendo que esses desgraçados
imortais contribuam, pela perenidade de seu suplício, para a edificação
dos eleitos.”
14. Dissemos, com razão, que o inferno dos cristãos exagerara o dos
pagãos. No Tártaro, com efeito, veem-se os culpados torturados pelo
remorso, sempre diante de seus crimes e de suas vítimas, oprimidos por
aqueles que haviam oprimido durante a vida; veem-se fugir da luz que os
penetra, e procurar em vão escapar aos olhares que os perseguem; o
orgulho é aí abaixado e humilhado; todos carregam os estigmas de seu
passado; todos são punidos por suas próprias faltas, a tal ponto que,
para alguns, basta abandoná-los a si mesmos, e se julga inútil
acrescentar outros castigos. Mas são sombras, ou seja, almas com seus
corpos fluídicos, imagem de sua existência terrestre; não se veem os
homens retomarem seu corpo carnal para sofrer materialmente, nem o fogo
penetrar sob sua pele e saturá-los até à medula dos ossos, nem o luxo e o
refinamento de suplícios que fazem a base do inferno moderno.
Encontram-se lá juízes inflexíveis mas justos, que proporcionam a pena à
falta, ao passo que no império de Satã, todos são confundidos nas
mesmas torturas; tudo se baseia na materialidade; mesmo a equidade é
banida.
Hoje em dia há, sem dúvida, na própria Igreja, muitos homens
sensatos que não admitem essas coisas ao pé da letra e veem nelas apenas
alegorias cujo sentido é preciso apreender; mas sua opinião é somente
individual e não constitui lei. A crença no inferno material com todas
as suas consequências, no entanto, ainda é um artigo de fé.
15. Pergunta-se como homens puderam ver essas coisas no êxtase se elas
não existem. Não é aqui o lugar de explicar a fonte das imagens
fantásticas que se produzem às vezes com as aparências da realidade.
Diremos somente que é preciso ver nisso uma prova do princípio de que o
êxtase é a menos segura de todas as revelações,* porque esse estado de
sobre excitação não é sempre efeito de um desprendimento da alma tão
completo quanto se poderia crer, e encontra-se aí com muita frequência o
reflexo das preocupações da véspera. As ideias das quais o espírito é
nutrido e das quais o cérebro, ou melhor, o envoltório perispiritual
correspondente ao cérebro, conservou a impressão, reproduzem-se
amplificadas como numa miragem, sob formas vaporosas que se cruzam e se
confundem, e compõem conjuntos bizarros. Os extáticos de todos os
cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que estavam
penetrados; não é então surpreendente que aqueles que, como Santa
Teresa, estão fortemente imbuídos das ideias do inferno, tais como as
apresentam as descrições verbais ou escritas e os quadros, tenham visões
que não são, propriamente falando, senão a reprodução daquelas, e
produzam o efeito de um pesadelo. Um pagão cheio de fé teria visto o
Tártaro e as Fúrias, como teria visto no Olimpo Júpiter empunhando o
raio.
* Livro dos Espíritos, n.os 443 e 444.
Capítulo V — O Purgatório
1. O Evangelho não faz nenhuma menção ao purgatório, que só foi admitido
pela Igreja no ano de 593. É seguramente um dogma mais racional e mais
consoante a justiça de Deus do que o inferno, visto que estabelece penas
menos rigorosas, e resgatáveis para faltas de gravidade mediana. O
princípio do purgatório é, pois, baseado na equidade, porque, comparado à
justiça humana, é a detenção temporária ao lado da condenação perpétua.
O que se pensaria de um país que tivesse somente a pena de morte para
os crimes e para os simples delitos? Sem o purgatório, há para as almas
apenas duas alternativas extremas: a felicidade absoluta ou o suplício
eterno. Nesta hipótese, o que se tornam as almas culpadas somente de
faltas leves? Ou elas compartilham a felicidade dos eleitos sem serem
perfeitas, ou sofrem o castigo dos maiores criminosos sem terem feito
muito mal, o que não seria nem justo nem racional.
2. Mas a noção do purgatório devia necessariamente ser incompleta; é por
isso que, conhecendo somente a pena do fogo, fez-se dele um diminutivo
do inferno; as almas também queimam aí, mas com um fogo menos intenso.
Sendo o progresso inconciliável com o dogma das penas eternas, as almas
não saem daí em consequência de seu avanço, mas pela virtude das preces
feitas ou que se mandam fazer por elas. Se o pensamento inicial foi bom,
não acontece o mesmo com as suas consequências, pelos abusos que
originou. Por meio de preces pagas, o purgatório se tornou uma mina mais
produtiva do que o inferno.*
* O purgatório deu origem ao comércio escandaloso das indulgências, com o auxílio das quais
se vendia a entrada no céu. Esse abuso foi a primeira causa da Reforma, e foi o que fez Lutero
rejeitar o purgatório.3.
O lugar do purgatório nunca foi determinado, nem a natureza das penas
que aí se suportam claramente definida. Estava reservado à revelação
nova preencher esta lacuna, explicando-nos as causas das misérias da
vida terrestre, cuja justiça só a pluralidade das existências podia nos
mostrar. Essas misérias são necessariamente resultado das imperfeições
da alma, pois se a alma fosse perfeita, não cometeria faltas e não teria
de sofrer-lhes as consequências. O homem que fosse sóbrio e moderado em
tudo, por exemplo, não seria vítima das doenças engendradas pelos
excessos. Quase sempre, ele é desgraçado aqui embaixo por sua própria
culpa; mas se é imperfeito, é porque o era antes de vir para a Terra;
ele expia aí não só suas faltas atuais, mas as faltas anteriores que não
reparou; suporta numa vida de provas o que fez suportar aos outros numa
outra existência. As vicissitudes que experimenta são simultaneamente
um castigo temporário e um aviso das imperfeições de que se deve
desfazer para evitar as desgraças futuras e progredir rumo ao bem. São
para a alma as lições da experiência, lições por vezes rudes, mas tanto
mais proveitosas para o futuro quanto mais profunda for a impressão que
deixam. Essas vicissitudes são a ocasião de lutas incessantes que
desenvolvem suas forças e suas faculdades morais e intelectuais,
fortalecem-na no bem, e das quais ela sai sempre vitoriosa, se tiver a
coragem de sustentá-la até o fim. O prêmio da vitória está na vida
espiritual, na qual ela entra radiosa e triunfante, como o soldado que
sai do combate e vem receber a palma gloriosa.
4.
Cada existência é para a alma a ocasião de um passo adiante; de sua
vontade depende que esse passo seja o maior possível, transpor vários
níveis ou permanecer no mesmo ponto; neste último caso, ela sofreu sem
proveito; e como sempre é preciso, cedo ou tarde, pagar sua dívida, ela
precisará recomeçar uma nova existência em condições ainda mais penosas,
porque a uma mácula não apagada ela acrescenta outra mácula. É portanto
nas encarnações sucessivas que a alma se desprende pouco a pouco de
suas imperfeições, que ela se purga, numa palavra, até que seja bastante
pura para merecer deixar os mundos de expiação por mundos mais felizes,
e mais tarde estes para gozar da felicidade suprema. O purgatório não é
mais, então, uma ideia vaga e incerta; é uma realidade material que
vemos, tocamos e sofremos; ele está nos mundos de expiação, e a terra é
um desses mundos; os homens expiam aí seu passado e seu presente em
benefício de seu futuro. Mas, contrariamente à ideia que dele se faz,
depende de cada um abreviar ou prolongar aí sua estada, segundo o grau
de avanço e de depuração ao qual ele chegou por seu trabalho sobre si
mesmo; sai-se daí, não porque seu tempo acabou ou pelos méritos de
outrem, mas devido a seu próprio mérito, segundo estas palavras do
Cristo: “A cada um segundo suas obras”, palavras que resumem toda a
justiça de Deus.
5. Então, aquele que sofre nesta vida deve dizer a si mesmo que é porque
não se purificou suficientemente em sua existência anterior, e que, se
não o fizer nesta, sofrerá ainda na seguinte. Isto é simultaneamente
equitativo e lógico. Sendo o sofrimento inerente à imperfeição, sofre-se
enquanto se é imperfeito, como se sofre de uma doença enquanto não se
está curado. É assim que enquanto um homem for orgulhoso, sofrerá as
consequências do orgulho; enquanto for egoísta, sofrerá as consequências
do egoísmo.
6. O Espírito culpado sofre primeiro na vida espiritual em razão do grau
de suas imperfeições; depois, a vida corpórea lhe é dada como meio de
reparação; é por isso que ele se reencontra aí, seja com as pessoas que
ofendeu, seja em meios análogos àqueles onde cometeu o mal, seja em
situações que são sua contrapartida, como, por exemplo, estar na miséria
se foi mau rico, numa condição humilhante se foi orgulhoso. A expiação,
no mundo dos Espíritos e na terra, não é um duplo castigo para o
Espírito; é o mesmo castigo que continua na terra, como complemento, visando
facilitar-lhe o aperfeiçoamento por um trabalho efetivo; depende dele
aproveitá-lo. Não vale mais para ele voltar à terra com a possibilidade
de alcançar o céu, do que ser condenado sem remissão deixando-a? Esta
liberdade que lhe é concedida é uma prova da sabedoria, da bondade e da
justiça de Deus, que quer que o homem deva tudo a seus esforços e seja o
artífice de seu futuro; se ele é infeliz, e se o é durante mais ou
menos tempo, não pode acusar senão a si mesmo: a via do progresso está
sempre aberta para ele.
7. Se considerarmos quão grande é o sofrimento de certos Espíritos
culpados no mundo invisível, quão terrível é a situação de alguns, a que
ansiedades estão sujeitos, e quanto essa posição é tornada mais penosa
pela impotência em que se encontram de lhe ver o fim, poder-se-ia dizer
que é para eles o inferno, se essa palavra não implicasse a ideia de um
castigo eterno e material. Graças à revelação dos Espíritos, e aos
exemplos que eles nos oferecem, sabemos que a duração da expiação está
subordinada ao aperfeiçoamento do culpado.
8.
O Espiritismo não vem portanto negar a penalidade futura; vem, ao
contrário, constatá-la. O que ele destrói é o inferno localizado, com
suas fornalhas e suas penas irremissíveis. Ele não nega o purgatório,
visto que prova que nós estamos nele; ele define-o e precisa-o,
explicando a causa das misérias terrestres, e dessa forma faz crer nele
aqueles que o negavam.
Ele rejeita as preces pelos mortos? Bem ao
contrário, visto que os Espíritos sofredores as solicitam; ele faz disso
um dever de caridade e demonstra sua eficácia para trazê-los de volta
ao bem, e, por esse meio, abreviar seus tormentos.* Falando à
inteligência, ele trouxe de volta a fé aos incrédulos, e à prece aqueles
que zombavam dela. Mas diz que a eficácia das preces está no pensamento
e não nas palavras, que as melhores são as do coração e não as dos
lábios, as que se faz, e não as que se manda fazer por dinheiro. Quem
ousaria então censurá-lo por isso?
* Ver Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXVII: “Ação da prece”.
9.
Quer o castigo ocorra na vida espiritual ou na terra, e seja qual for
sua duração, ele sempre tem um fim, mais ou menos afastado ou próximo.
Há, pois, em realidade, apenas duas alternativas para o Espírito:
punição temporária graduada segundo a culpa, e recompensa graduada
segundo o mérito. O Espiritismo repele a terceira alternativa, a da
danação eterna. O inferno permanece como figura simbólica dos maiores
sofrimentos cujo termo é ignorado. O purgatório é a realidade. A palavra
purgatório evoca a ideia de um lugar circunscrito: por isso ela se
aplica mais naturalmente à terra, considerada como lugar de expiação, do
que ao espaço infinito onde erram os Espíritos sofredores, e além disso
a natureza da expiação terrestre é uma verdadeira expiação. Quando os
homens se tiverem aperfeiçoado, fornecerão ao mundo invisível apenas
bons Espíritos, e estes, encarnando-se, fornecerão à humanidade corporal
apenas elementos aperfeiçoados; então, a terra deixando de ser um mundo
de expiação, os homens não sofrerão mais as misérias que são as
consequências de suas imperfeições. É essa transformação que ocorre
neste momento e que elevará a Terra na hierarquia dos mundos. (Ver
Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III).
10.
Por que então o Cristo não falou do purgatório? É que, não existindo a
ideia, não havia palavra para representá-la. Ele serviu-se da palavra
inferno, a única que era usada, como termo genérico, para designar as
penas futuras sem distinção. Se, ao lado da palavra inferno ele tivesse
posto uma palavra equivalente a purgatório, não teria podido precisar
seu sentido verdadeiro sem antecipar uma questão reservada ao futuro;
teria sido, além disso, consagrar a existência de dois lugares especiais
de castigos. O inferno, em sua acepção geral, despertando a ideia de
punição, encerrava implicitamente a do purgatório, que é apenas um modo
de penalidade. O futuro, devendo esclarecer os homens sobre a natureza
das penas, devia, por isso mesmo, reduzir o inferno a seu justo
valor. Visto que a Igreja acreditou dever, depois de seis séculos,
reparar o silêncio de Jesus decretando a existência do purgatório, é
porque pensou que ele não dissera tudo. Por que não ocorreria isso com outros pontos como com este?
Capítulo VI — Doutrina das penas eternas
Origem da doutrina das penas eternas.
1.
A crença na eternidade das penas perde a cada dia tanto terreno
que, sem ser profeta, se pode prever seu fim próximo. Ela foi combatida
por
argumentos tão poderosos e tão peremptórios que parece quase supérfluo
ocupar-se dela doravante, e que basta deixá-la extinguir-se. No entanto,
não se
pode dissimular que, por mais caduca que esteja, ainda constitui o ponto
de reunião dos adversários das ideias novas, aquele que eles defendem
com mais
obstinação, porque é um dos lados mais vulneráveis e eles preveem as
consequências de sua queda. Deste ponto de vista, esta questão merece um
exame sério.
2.
A doutrina das penas eternas, como a do inferno material, teve sua
razão de ser, enquanto esse temor podia ser um freio para os homens
pouco avançados intelectual e moralmente. Assim como teriam ficado
apenas pouco ou nada impressionados pela ideia de penas morais, não
teriam ficado mais impressionados pela de penas temporais; nem mesmo
teriam compreendido a justiça das penas graduais e proporcionais, porque
não estavam aptos a apreender as nuances muitas vezes delicadas do bem e
do mal, nem o valor relativo das circunstâncias atenuantes ou
agravantes.
3.
Quanto mais próximos os homens estão do estado primitivo, mais são
materiais; o senso moral é o que neles se desenvolve mais tardiamente.
Por esta mesma razão, só podem fazer uma ideia muito imperfeita de Deus e
de seus atributos, e uma ideia não menos vaga da vida futura.
Identificam Deus à sua própria natureza; é para eles um soberano
absoluto, tanto mais temível quanto invisível, como um monarca déspota
que, oculto em seu palácio, nunca se mostra aos súditos. Ele é poderoso
somente por sua força material, pois eles não compreendem o poder moral;
veem-no apenas armado com o raio, ou no meio dos relâmpagos e das
tempestades, semeando à sua passagem ruína e desolação, segundo o
exemplo dos guerreiros invencíveis. Um Deus de brandura e de
misericórdia não seria um Deus, mas um ser fraco que não poderia
fazer-se obedecer. A vingança implacável, os castigos terríveis,
eternos, não tinham nada contrário à ideia que eles faziam de Deus, nada
que repugnasse à sua razão. Eles mesmos implacáveis em seus
ressentimentos, cruéis com os inimigos, sem compaixão pelos vencidos,
Deus, que lhes era superior, devia ser ainda mais terrível.
Para tais
homens, precisava-se de crenças religiosas assimiláveis à sua natureza
ainda rude. Uma religião completamente espiritual, toda de amor e
caridade, não se podia aliar com a brutalidade dos costumes e das
paixões. Portanto, não censuremos Moisés por sua legislação draconiana,
que mal bastava para conter seu povo indócil, nem por ter feito de Deus
um Deus vingativo. Precisava-se disso naquela época; a doce doutrina de
Jesus não teria encontrado eco e teria sido impotente.
4. À medida que o Espírito se desenvolveu, o véu material dissipou-se
pouco a pouco, e os homens tornaram-se mais aptos a compreender as
coisas espirituais; mas isso aconteceu apenas gradualmente. Quando Jesus
veio, pôde anunciar um Deus clemente, falar de seu reino que não é
deste mundo, e dizer aos homens: “Amai-vos uns aos outros, fazei o bem
aos que vos odeiam”; ao passo que os antigos diziam: “Olho por olho,
dente por dente.”
Ora, quais eram os homens que viviam no tempo de
Jesus? Eram almas recém criadas e encarnadas? Se assim era, Deus teria
então criado no tempo de Jesus almas mais avançadas do que no tempo de
Moisés. Mas, então, o que teria acontecido a estas últimas? Teriam
permanecido durante a eternidade no embrutecimento? O simples bom senso
repele essa suposição. Não; eram as mesmas almas que, depois de terem
vivido sob o império da lei mosaica, tinham, ao longo de várias
existências, adquirido um desenvolvimento suficiente para compreender
uma doutrina mais elevada, e que hoje estão suficientemente avançadas
para receber um ensinamento ainda mais completo.
5. No entanto, o Cristo não pôde revelar a seus contemporâneos todos os
mistérios do futuro; ele mesmo disse: “Teria ainda muitas coisas a
dizer-vos, mas não as compreenderíeis; é por isso que vos falo por
parábolas.” Sobre tudo o que se refere à moral, ou seja, os deveres de
homem para homem, ele foi muito explícito, porque, tocando na corda
sensível da vida material, ele sabia ser compreendido; sobre os outros
pontos, ele se limita a semear, sob forma alegórica, os germes do que
deverá ser desenvolvido mais tarde.
A doutrina das penas e das
recompensas futuras pertence a esta última ordem de ideias. A respeito
das penas, sobretudo, não podia romper bruscamente com as ideias
estabelecidas. Ele vinha traçar aos homens novos deveres: a caridade e o
amor ao próximo substituindo o espírito de ódio e de vingança, a
abnegação substituindo o egoísmo: já era muito; ele não podia
racionalmente enfraquecer o temor do castigo reservado aos
prevaricadores, sem enfraquecer ao mesmo tempo a ideia do dever.
Prometia o reino dos céus aos bons; esse reino era, portanto, proibido
aos maus; para onde iriam eles? Era preciso uma contrapartida de
natureza a impressionar inteligências ainda demasiado materiais para se
identificarem com a vida espiritual; pois não se deve perder de vista
que Jesus se dirigia ao povo, à parte menos esclarecida da sociedade,
para a qual se precisava de imagens de algum modo palpáveis, e não
ideias sutis. É por isso que ele não entra a esse respeito em detalhes
supérfluos: bastava-lhe opor uma punição à recompensa; não era
necessário acrescentar mais naquela época.
6. Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, ameaçou-os também de
serem jogados na Geena; ora, o que era a Geena? Um lugar nos arredores
de Jerusalém, um vale onde se jogavam as imundícies da cidade. Seria
preciso então tomar também isso ao pé da letra? Era uma dessas figuras
enérgicas com o auxílio das quais ele impressionava as massas. Ocorre o
mesmo com o fogo eterno. Se seu pensamento não fosse esse, estaria em
contradição consigo mesmo exaltando a clemência e a misericórdia de
Deus, pois a clemência e a inexorabilidade são contrários que se anulam.
Seria enganar-se estranhamente sobre o sentido das palavras de Jesus
ver nelas a sanção do dogma das penas eternas, enquanto todo seu
ensinamento proclama a brandura do Criador.
Na oração dominical, ele nos
ensina a dizer: “Senhor, perdoai as nossas ofensas, como nós perdoamos
aqueles que nos ofenderam.” Se o culpado não tivesse nenhum perdão a
esperar, seria inútil pedi-lo. Mas esse perdão é sem condição? É uma
graça, uma remissão pura e simples da pena incorrida? Não; a medida
desse perdão está subordinada à maneira pela qual tivermos perdoado; ou
seja, se não perdoarmos, não seremos perdoados. Deus, fazendo do
esquecimento das ofensas uma condição absoluta, não podia exigir que o
homem fraco fizesse o que ele, onipotente, não faria. A oração dominical
é um protesto diário contra a eterna vingança de Deus.
7. Para homens que tinham apenas uma noção confusa da espiritualidade da alma, a ideia do fogo material não tinha nada de chocante, tanto menos que ela estava na crença vulgar tirada da crença no inferno dos pagãos, difundida quase universalmente. A eternidade da pena também não tinha nada que repugnasse a pessoas submetidas há séculos à legislação do terrível Jeová. No pensamento de Jesus, o fogo eterno podia então ser apenas uma figura; pouco lhe importava que essa figura fosse tomada ao pé da letra, se devia servir de freio; ele sabia bem que o tempo e o progresso deviam encarregar-se de fazer compreender seu sentido alegórico, sobretudo quando, segundo sua predição, o Espírito de Verdade viria esclarecer os homens sobre todas as coisas.
O caráter essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia do arrependimento; ora, Jesus nunca disse que o arrependimento não encontraria graça diante de Deus. Em todas as ocasiões, ao contrário, ele mostra Deus clemente, misericordioso, pronto a receber o filho pródigo que voltou ao lar paterno. Não o mostra inflexível a não ser para o pecador endurecido; mas, se tem o castigo em uma mão, na outra tem sempre o perdão pronto a se estender sobre o culpado tão logo este volte sinceramente para ele. Esse não é certamente o quadro de um Deus sem compaixão. Também se deve observar que Jesus nunca pronunciou contra ninguém, nem mesmo contra os maiores culpados, uma condenação irremissível.
8. Todas as religiões primitivas, de acordo com o caráter dos povos,
tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos exércitos. O Jeová
dos hebreus fornecia-lhes mil meios de exterminarem os inimigos;
recompensava-os pela vitória ou punia-os pela derrota. Segundo a ideia
que se fazia de Deus, acreditava-se reverenciá-lo ou apaziguá-lo com o
sangue dos animais ou dos homens: daí os sacrifícios sangrentos que
desempenharam papel tão importante em todas as religiões antigas. Os
judeus haviam abolido os sacrifícios humanos; os cristãos, apesar dos
ensinamentos do Cristo, durante muito tempo acreditaram reverenciar o
Criador entregando por milhares às chamas e às torturas aqueles que
denominavam hereges; eram, sob outra forma, verdadeiros sacrifícios
humanos, visto que eles o faziam para a maior glória de Deus, e com
acompanhamento de cerimônias religiosas. Hoje mesmo, invocam o Deus dos
exércitos antes do combate e glorificam-no depois da vitória, e isso
frequentemente pelas causas mais injustas e mais anticristãs.
9.
Como o homem é lento para se desfazer de seus preconceitos, de seus
hábitos, de suas ideias primeiras! Quarenta séculos nos separam de
Moisés, e nossa geração cristã ainda vê traços dos antigos usos bárbaros
consagrados, ou pelo menos aprovados pela religião atual! Foi preciso o
poder da opinião dos não ortodoxos, daqueles que são vistos como
hereges, para pôr fim às fogueiras, e fazer compreender a verdadeira
grandeza de Deus. Mas, no lugar das fogueiras, as perseguições materiais
e morais ainda vigoram plenamente, tão enraizada está no homem a ideia
de um Deus cruel. Alimentado por sentimentos que lhe são inculcados
desde a infância, pode o homem se espantar de que o Deus que lhe
apresentam como glorificado por atos bárbaros condene a torturas
eternas, e veja sem compaixão os sofrimentos dos condenados?
Sim, foram
filósofos, ímpios, segundo alguns, que ficaram escandalizados de ver o
nome de Deus profanado por atos indignos dele; foram eles que o
mostraram aos homens em toda a sua grandeza, despojando-o das paixões e
das fraquezas humanas que uma crença não esclarecida lhe emprestava. A
religião ganhou em dignidade o que perdeu em prestígio externo; pois
se há menos homens apegados à forma, há mais homens mais sinceramente
religiosos de coração e sentimentos.
Mas, ao lado desses, quantos há
que, detendo-se na superfície, foram conduzidos à negação de toda
providência! Por não se ter sabido pôr convenientemente as crenças
religiosas em harmonia com o progresso da razão humana, fez-se nascer em
alguns o deísmo, em outros a incredulidade absoluta, em outros o
panteísmo, ou seja, o homem fez-se ele mesmo deus, na falta de ver um
deus suficientemente perfeito.
Argumentos a favor das penas eternas.
10. Voltemos ao dogma da eternidade das penas. O principal argumento que
se invoca em seu favor é este:
“Admite-se, entre os homens, que a
gravidade da ofensa é proporcional à qualidade do ofendido. A que é
cometida contra um soberano, sendo considerada como mais grave do que
aquela que atinge um simples particular, é punida mais severamente. Ora,
Deus é mais do que um soberano; visto que ele é infinito, a ofensa a
ele é infinita, e deve ter um castigo infinito, ou seja, eterno.”
Refutação. — Toda refutação é um raciocínio que deve ter seu ponto de
partida, uma base sobre a qual ele se apoia: premissas, numa palavra.
Tiramos essas premissas dos próprios atributos de Deus:
Deus é único,
eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom,
infinito em todas as suas perfeições.
É impossível conceber Deus a
não ser com o infinito das perfeições; sem o quê ele não seria Deus,
pois se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para
que ele esteja acima de todos os seres, é preciso que nenhum possa
sobrepujá-lo nem igualá-lo no que quer que seja. Portanto, é preciso que
ele seja infinito em tudo.
Os atributos de Deus, sendo infinitos, não
são susceptíveis nem de aumento nem de diminuição; sem isso, não seriam
infinitos e Deus não seria perfeito. Se se retirasse a menor parcela de
um único de seus atributos, não se teria mais Deus, visto que poderia
existir um ser mais perfeito.
O infinito de uma qualidade exclui a
possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuiria
ou a anularia. Um ser infinitamente bom não pode ter a menor parcela de
maldade, nem o ser infinitamente mau ter a menor parcela de bondade;
assim como um objeto não poderia ser de um preto absoluto com a mais
ligeira nuance de branco, nem de um branco absoluto com a menor mancha
de preto.
Estabelecido este ponto de partida, ao argumento acima opõem-se os argumentos seguintes:
11. Só um ser infinito pode fazer algo infinito. O homem, sendo limitado em
suas virtudes, em seus conhecimentos, em seu poder, em suas aptidões,
em sua existência terrestre, pode produzir apenas coisas limitadas.
Se o
homem pudesse ser infinito no mal que faz, sê-lo-ia igualmente no bem, e
então seria igual a Deus. Mas, se o homem fosse infinito no bem que
faz, não faria nenhum mal, pois o bem absoluto é a exclusão de todo mal.
Admitindo que uma ofensa temporária à Divindade possa ser infinita,
Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria infinitamente
vingativo; se ele é infinitamente vingativo, não pode ser infinitamente
bom e misericordioso, pois um desses atributos é a negação do outro. Se
ele não é infinitamente bom, não é perfeito, e se não é perfeito, não é
Deus.
Se Deus é inexorável para com o culpado arrependido, não é
misericordioso; se não é misericordioso, não é infinitamente bom.
Por
que Deus faria para o homem uma lei do perdão, se não devesse ele mesmo
perdoar? Daí resultaria que o homem que perdoa a seus inimigos, e lhes
faz o bem em troca do mal, seria melhor do que Deus que permanece surdo
ao arrependimento daquele que o ofendeu, e que lhe recusa, pela
eternidade, a mais leve atenuação!
Deus, que está em toda a parte e vê
tudo, deve ver as torturas dos condenados às penas eternas. Se ele é
insensível a seus gemidos durante a eternidade, é eternamente sem
compaixão; se é sem compaixão, não é infinitamente bom.
12.
A isso, responde-se que o pecador que se arrepende antes de morrer
sente a misericórdia de Deus, e que então o maior culpado pode cair em
graça.
Isto não é posto em dúvida, e concebe-se que Deus perdoe apenas
ao arrependido, e seja inflexível para com os endurecidos; mas, se ele é
cheio de misericórdia para com a alma que se arrepende antes de ter
deixado o corpo, por que deixa de sê-lo para com aquela que se arrepende
depois da morte? Por que o arrependimento não teria eficácia a não ser
durante a vida, que é apenas um instante, e não a teria mais durante a
eternidade, que não tem fim? Se a bondade e a misericórdia de Deus são
circunscritas a um determinado tempo, não são infinitas, e Deus não é
infinitamente bom.
13. Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não é a justiça mais
inexorável, nem aquela que deixa toda falta impune; é aquela que tem em
conta rigorosamente o bem e o mal, que recompensa um e pune o outro na
proporção mais equitativa, e nunca se engana.
Se, por uma falta
temporária, que sempre é o resultado da natureza imperfeita do homem, e
com frequência do meio em que ele se encontra, a alma pode ser punida
eternamente, sem esperança de atenuação nem de perdão, não há nenhuma
proporção entre a falta e a punição: portanto, não há justiça.
Se o
culpado volta para Deus, arrepende-se e pede para reparar o mal que
fez, é um retorno ao bem, aos bons sentimentos. Se o castigo é
irrevogável, esse retorno ao bem é sem fruto; visto que não tem em conta
o bem, não é justiça. Entre os homens, o condenado que se emenda vê sua
pena comutada, por vezes até perdoada; logo, haveria na justiça humana
mais equidade do que na justiça divina!
Se a condenação é irrevogável, o
arrependimento é inútil; o culpado, não tendo nada a esperar de seu
retorno ao bem, persiste no mal; de modo que não só Deus o condena a
sofrer perpetuamente, mas ainda a permanecer no mal pela eternidade.
Isso não seria justiça nem bondade.
14.
Sendo infinito em todas as coisas, Deus deve conhecer tudo, o passado
e o futuro; ele deve saber, no momento da criação de uma alma, se ela
falhará tão gravemente para ser condenada eternamente. Se não o sabe,
seu saber não é infinito, e então não é Deus. Se o sabe, cria
voluntariamente um ser destinado, desde a formação, a torturas sem fim, e
então ele não é bom.
Se Deus, tocado pelo arrependimento de um
condenado, pode estender sobre ele sua misericórdia e retirá-lo do
inferno, não há mais penas eternas, e o julgamento pronunciado pelos
homens é revogado.
15.
A doutrina das penas eternas absolutas conduz portanto forçosamente à
negação ou à diminuição de alguns atributos de Deus; ela é, por
conseguinte, inconciliável com a perfeição infinita; de onde se chega a
esta conclusão: Se Deus é perfeito, a condenação eterna não existe; se
ela existe, Deus não é perfeito.
16. Invoca-se ainda a favor do dogma da eternidade das penas o argumento seguinte:
“A
recompensa concedida aos bons, sendo eterna, deve ter como
contrapartida uma punição eterna. É justo proporcionar a punição à
recompensa.”
Refutação. — Deus cria a alma visando a torná-la feliz ou
desgraçada! Evidentemente, a felicidade da criatura deve ser a
finalidade de sua criação, de outro modo Deus não seria bom. Ela atinge a
felicidade por seu próprio mérito; adquirido o mérito, ela não pode
perder o seu fruto, de outro modo degeneraria; a eternidade da
felicidade é então a consequência de sua imortalidade.
Mas, antes de
chegar à perfeição, ela tem lutas a sustentar, combates a travar com as
paixões más. Não a tendo Deus criado perfeita, mas susceptível de se
tornar perfeita, a fim de que ela tenha o mérito de suas obras, ela pode
falhar. Suas quedas são as consequências de sua fraqueza natural. Se,
por uma queda, ela devesse ser punida eternamente, poder-se-ia perguntar
por que Deus não a criou mais forte. A punição que ela sofre é um aviso
de que agiu mal, e que deve ter por resultado conduzi-la de volta ao
bom caminho. Se a pena fosse irremissível, seu desejo de fazer melhor
seria supérfluo; desde logo a finalidade providencial da criação não
poderia ser alcançada, pois haveria seres predestinados à felicidade e
outros à desgraça. Se uma alma culpada se arrepende, pode tornar-se boa;
podendo tornar-se boa, ela pode aspirar à felicidade; Deus seria justo
recusando-lhe os meios para isso?
Sendo o bem a meta final da criação, a
felicidade, que é seu prêmio, deve ser eterna; o castigo, que é um meio
de lá chegar, deve ser temporário. A mais vulgar noção de justiça,
mesmo entre os homens, diz que não se pode castigar perpetuamente aquele
que tem o desejo e a vontade de fazer o bem.
17.
O último argumento a favor da eternidade das penas é este: “O temor
de um castigo eterno é um freio; se for retirado, o homem, sem temer
mais nada, entregar-se-á a todos os excessos.”
Refutação. — Esse
raciocínio seria correto, se o fato das penas não serem eternas
acarretasse a supressão de toda sanção penal. O estado bem aventurado ou
desgraçado na vida futura é uma consequência rigorosa da justiça de
Deus, pois uma identidade de situação entre o homem bom e o perverso
seria a negação dessa justiça. Mas, embora não sendo eterno, o castigo
não é menos penoso; quanto mais nele se crê mais ele é temido, e quanto
mais racional ele é mais se crê nele. Uma penalidade na qual não se crê
não é mais um freio, e a eternidade das penas é uma delas.
A crença nas
penas eternas, como dissemos, teve sua utilidade e sua razão de ser numa
certa época; hoje em dia, não só ela não toca mais, como faz
incrédulos. Antes de colocá-la como uma necessidade, seria preciso
demonstrar sua realidade. Seria preciso, acima de tudo, que se visse sua
eficácia naqueles que a preconizam e se esforçam para demonstrá-la.
Infelizmente, entre esses, demasiados provam por seus atos que não a
temem de modo algum. Se ela é impotente para reprimir o mal naqueles que
dizem crer nela, que domínio pode ter sobre aqueles que não acreditam
nela?
Impossibilidade material das penas eternas.
18. Até aqui, o dogma da eternidade das penas foi combatido unicamente
pelo raciocínio; vamos mostrá-lo em contradição com os fatos positivos
que temos sob os olhos, e provar sua impossibilidade.
Segundo este
dogma, o destino da alma é fixado irremediavelmente depois da morte.
Portanto, é um ponto de parada definitivo oposto ao progresso. Ora, a
alma progride, sim ou não? Toda a questão reside nisso. Se ela progride,
a eternidade das penas é impossível.
Será que se pode duvidar desse
progresso, quando se vê a imensa variedade de aptidões morais e
intelectuais que existem na terra, desde o selvagem até o homem
civilizado? Quando se vê a diferença que um mesmo povo apresenta de um
século para outro? Se se admitir que não são mais as mesmas almas, é
preciso admitir então que Deus cria almas em todos os graus de avanço,
segundo os tempos e os lugares; que ele favorece umas, ao passo que
destina as outras a uma inferioridade perpétua: o que é incompatível com
a justiça, que deve ser a mesma para todas as criaturas.
19. É incontestável que a alma, atrasada intelectual e moralmente, como a
dos povos bárbaros, não pode ter os mesmos elementos de bem aventurança,
as mesmas aptidões para gozar dos esplendores do infinito, do que
aquela cujas faculdades são todas amplamente desenvolvidas. Portanto, se
as almas não progridem, não podem, nas condições mais favoráveis, gozar
perpetuamente senão de uma bem-aventurança por assim dizer negativa.
Logo, chega-se forçosamente, para estar de acordo com a rigorosa
justiça, a esta consequência de que as almas mais avançadas são as
mesmas que as que estavam atrasadas e que progrediram. Mas aqui tocamos
na grande questão da pluralidade das existências, como único meio
racional de resolver a dificuldade. Porém, faremos abstração dela, e
consideraremos a alma numa única existência.
20. Eis então, como se veem tantos outros, um jovem de vinte anos,
ignorante, de instintos viciosos, negando Deus e sua alma, entregando-se
à dissipação moral e cometendo toda sorte de más ações. No entanto, ele
está num meio favorável; trabalha, instruí-se, pouco a pouco corrige-se
e finalmente torna-se piedoso. Não é um exemplo palpável do progresso
da alma durante a vida, e não se veem todos os dias casos semelhantes?
Este homem morre santamente numa idade avançada, e naturalmente sua
salvação está assegurada. Mas qual teria sido seu destino, se um
acidente o tivesse feito morrer quarenta ou cinquenta anos mais cedo?
Preenchia todas as condições para ser condenado; ora, uma vez condenado,
todo progresso parava. Eis então um homem salvo porque viveu muito
tempo, e que, segundo a doutrina das penas eternas, estaria perdido para
sempre se tivesse vivido menos, o que podia resultar de um acidente
fortuito. Uma vez que sua alma pôde progredir num tempo dado, por que
não teria ela progredido no mesmo tempo após a morte, se uma causa
independente de sua vontade o tivesse impedido de fazê-lo durante a
vida? Por que Deus lhe teria recusado os meios para tanto? O
arrependimento, ainda que tardio, não teria deixado de vir a seu tempo;
mas se, desde o instante da morte, uma condenação irremissível o tivesse
atingido, seu arrependimento teria sido infrutífero por toda a
eternidade, e sua aptidão para progredir destruída para sempre.
21.
O dogma da eternidade absoluta das penas é, portanto, inconciliável
com o progresso da alma, visto que lhe oporia um obstáculo invencível.
Esses dois princípios se anulam forçosamente um ao outro; se um existe, o
outro não pode existir. Qual dos dois existe? A lei do progresso é
patente: não é uma teoria, é um fato constatado pela experiência; é uma
lei natural, lei divina, imprescritível; logo, visto que ela existe, e
que não se pode conciliar com a outra, é que a outra não existe. Se o
dogma da eternidade das penas fosse uma verdade, Santo Agostinho, São
Paulo e muitos outros jamais teriam visto o céu se tivessem morrido
antes do progresso que os levou à conversão.
A esta última asserção,
responde-se que a conversão desses santos personagens não é um resultado
do progresso da alma, mas da graça que lhes foi concedida e pela qual
foram tocados.
Mas aqui trata-se de um jogo de palavras. Se fizeram o
mal, e mais tarde o bem, é porque se tornaram melhores; logo,
progrediram. Deus lhes teria então, por um favor especial, concedido a
graça de se corrigirem? Por que a eles e não a outros? É sempre a
doutrina dos privilégios, incompatível com a justiça de Deus e seu igual
amor por todas as suas criaturas.
Segundo a doutrina espírita, de
acordo com as próprias palavras do Evangelho, com a lógica e a mais
rigorosa justiça, o homem é filho de suas obras, durante esta vida e
após a morte; ele não deve nada ao favor: Deus recompensa-o pelos seus
esforços, e pune-o pela negligência enquanto for negligente.
A doutrina das penas eternas está ultrapassada.
22.
A crença na eternidade das penas materiais permaneceu como uma crença
salutar até que os homens estivessem aptos a compreender o poder moral.
Tal como as crianças que se contêm durante um tempo pela ameaça de
certos seres quiméricos com a ajuda dos quais as assustam; mas chega um
momento em que a razão da criança lhe mostra a verdade dos contos com
que a embalavam, e em que seria absurdo pretender governá-la pelos
mesmos meios. Se aqueles que a dirigem persistissem em afirmar-lhe que
essas fábulas são verdades que é preciso tomar ao pé da letra, perderiam
sua confiança.
O mesmo ocorre hoje com a humanidade; ela saiu da
infância e não se deixa mais levar pela mão. O homem não é mais aquele
instrumento passivo que se dobrava à força material, nem aquele ser
crédulo que aceitava tudo de olhos fechados.
23.
A crença é um ato do entendimento, é por isso que não pode ser
imposta. Se, durante certo período da humanidade, o dogma da eternidade
das penas pôde ser inofensivo, até mesmo saudável, chega um momento em
que se torna perigoso. Com efeito, desde o instante em que o impondes
como verdade absoluta, quando a razão o repele, resulta daí
necessariamente uma destas duas coisas: ou o homem que quer crer cria
uma crença mais racional, e então se separa de vós; ou então não crê em
mais nada. É evidente que, para quem quer que seja que estudou a questão
com sangue frio, em nossos dias, o dogma da eternidade das penas fez
mais materialistas e ateus do que todos os filósofos.
As ideias seguem
um curso incessantemente progressivo; só se pode governar os homens
seguindo esse curso; querer detê-lo ou fazê-lo recuar, ou simplesmente
ficar para trás, enquanto ele avança, é perder-se. Seguir ou não seguir
esse movimento é uma questão de vida ou morte, tanto para as religiões
quanto para os governos. É um bem? É um mal? Seguramente, é um mal aos
olhos daqueles que, vivendo no passado, veem esse passado lhes escapar;
para aqueles que veem o futuro, é a lei do progresso que é uma lei de
Deus, e, contra as leis de Deus, toda resistência é inútil; lutar contra
sua vontade é querer destruir-se.
Por que então querer, a toda força,
manter uma crença que cai em desuso, e que, em última análise, faz
mais mal do que bem à religião? Infelizmente, é triste dizer, mas uma
questão material domina aqui a questão religiosa. Esta crença foi
amplamente explorada, com auxílio do pensamento de que com dinheiro se
podia fazer abrir as portas do céu, e se preservar do inferno. As
quantias que ela rendeu, e que ainda rende, são incalculáveis; é o imposto
cobrado sobre o medo da eternidade. Sendo esse imposto facultativo, o
produto é proporcional à crença; se a crença não existe mais, o produto
torna-se nulo. A criança dá de bom grado seu bolo a quem lhe prometer
expulsar o lobisomem; mas quando a criança não acredita mais no
lobisomem, fica com o bolo.
24.
Dando a nova revelação ideias mais sãs da vida futura, e provando que
se pode obter a salvação por suas próprias obras, ela deve encontrar
uma oposição tanto mais viva quanto seca uma fonte mais importante de
produtos. Assim é a cada vez que uma descoberta ou uma invenção vêm
mudar os hábitos. Aqueles que vivem dos antigos procedimentos custosos
defendem-nos e criticam os novos, mais econômicos. Acredita-se, por
exemplo, que a imprensa, apesar dos serviços que devia prestar à
humanidade, deve ter sido aclamada pela numerosa classe dos copistas?
Claro que não; eles devem tê-la amaldiçoado. Foi assim com as máquinas,
as estradas de ferro e cem outras coisas.
Aos olhos dos incrédulos, o
dogma da eternidade das penas é uma questão fútil da qual se riem; aos
olhos do filósofo, tem uma gravidade social pelos abusos a que dá
ensejo; o homem verdadeiramente religioso vê a dignidade da religião
interessada na destruição desses abusos e de sua causa.
Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original.
25.
Àqueles que pretendem encontrar na Bíblia a justificação da
eternidade das penas, podem-se opor textos contrários que não deixam
nenhuma ambiguidade. As palavras seguintes de Ezequiel são a negação
mais explícita não só das penas irremissíveis, mas da responsabilidade
que a falta do pai do gênero humano teria feito pesar sobre sua raça:
1.
O Senhor me falou de novo e disse-me:
— De onde vem que vos servis
entre vós desta parábola, e que a tornastes provérbio em Israel: Os
pais, dizeis, comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos sentem a
acidez? — Juro por mim mesmo, disse o Senhor Deus, que essa parábola
não passará mais entre vós a provérbio em Israel; — Pois todas as
almas são minhas; a alma do filho é minha como a alma do pai; a alma que
pecou morrerá ela mesma. — Se um homem é justo, se ele age segundo a
equidade e a justiça; — Se não entristece nem oprime ninguém; se
devolve a seu devedor a caução que ele lhe dera; se não toma nada do bem
de outrem pela violência; se dá do seu pão àquele que tem fome; se
cobre de vestes aqueles que estavam nus; — Se não empresta a juros e
não recebe mais do que deu; se desvia sua mão da iniquidade, e se
profere um julgamento equitativo entre dois homens que pleiteiam juntos; — Se ele anda pelo caminho de meus preceitos, e respeita minhas
determinações para agir segundo a verdade: esse é justo, e viverá muito
certamente, disse o Senhor Deus. — Se esse homem tiver um filho que
seja um ladrão e que derrame sangue, ou que cometa alguma dessas faltas;
— Esse filho morrerá muito certamente, visto que fez todas essas
ações detestáveis, e seu sangue estará em sua cabeça. —
Se esse homem
tiver um filho que, vendo todos os crimes que o pai cometera, seja presa
de temor, e se abstenha de imitá-lo;
— Esse não morrerá por causa
da iniquidade do pai, mas viverá muito certamente. — O pai, que
oprimira os outros com calúnias, e que cometera ações criminosas no meio
de seu povo, morreu por causa de sua própria iniquidade. — Se
disserdes: Por que o filho não carregou a iniquidade do pai? É porque o
filho agiu segundo a equidade e a justiça; que ele manteve todos os meus
preceitos, e praticou-os; é por isso que ele viverá muito certamente. — A alma que pecou morrerá ela mesma: O filho não carregará a
iniquidade do pai, e o pai não carregará a iniquidade do filho; a
justiça do justo estará sobre ele, e a impiedade do ímpio estará sobre
ele. —
Se o ímpio fizer penitência de todos os pecados que cometera;
se mantiver todos os meus preceitos, e se agir segundo a equidade e a
justiça, ele viverá certamente e não morrerá.
— Não me lembrarei
mais de todas as iniquidades que ele cometera; ele viverá nas obras de
justiça que tiver feito. — Quero eu a morte do ímpio? disse o Senhor
Deus; e não quero antes que ele se converta, e que se retire de seu mau
caminho, e que viva? (Ezequiel, cap. XXVIII.)
Dizei-lhes estas palavras:
Juro por mim mesmo, disse o Senhor Deus, que não quero a morte do
ímpio, mas quero que o ímpio se converta, que deixe seu mau caminho e
que viva. (Ezequiel, cap. XXXIII, v. 11.)
Capítulo VII — As penas futuras segundo o Espiritismo
A carne é fraca:
Estudo fisiológico e moral.
Há tendências viciosas que são
evidentemente inerentes ao Espírito, porque se devem mais ao moral do
que ao físico; outras parecem mais consequência do organismo, e, por
esse motivo, acredita-se que se é menos responsável: tais são as
predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.
É perfeitamente
reconhecido hoje em dia, pelos filósofos espiritualistas, que os órgãos
cerebrais, correspondendo às diversas aptidões, devem seu
desenvolvimento à atividade do Espírito; que esse desenvolvimento é
assim um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a
bossa da música, mas ele só tem a bossa da música porque seu Espírito é
músico.
Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, ela deve
reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. O Espírito é
assim o artesão de seu próprio corpo, que ele modela, por assim dizer, a
fim de adequá-lo a suas necessidades e à manifestação de suas
tendências. Dado isso, a perfeição do corpo das raças avançadas não
seria o produto de criações distintas, mas o resultado do trabalho do
Espírito, que aperfeiçoa sua ferramenta à medida que suas faculdades
aumentam.
Por uma consequência natural desse princípio, as disposições
morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe mais
ou menos atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de
bile ou outros fluidos. É assim, por exemplo, que o guloso sente vir
saliva à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o prato que pode
excitar o órgão do paladar, visto que não há contato; é portanto o
Espírito, cuja sensualidade está desperta, que age, pelo pensamento,
sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro, a vista desse prato não
produz nenhum efeito. É ainda pela mesma razão que uma pessoa sensível
derrama facilmente lágrimas; não é a abundância das lágrima que dá a
sensibilidade ao Espírito, mas é a sensibilidade do Espírito que provoca
a secreção abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o
organismo adequou-se a essa disposição normal do Espírito, como se
adequou à do Espírito guloso.
Seguindo esta ordem de ideias,
compreende-se que um Espírito irascível deve impelir ao temperamento
bilioso; de onde decorre que um homem não é colérico porque é bilioso,
mas que é bilioso porque é colérico. O mesmo ocorre com todas as outras
disposições instintivas; um Espírito mole e indolente deixará seu
organismo num estado de atonia em relação com seu caráter, ao passo que,
se for ativo e enérgico, dará a seu sangue, a seus nervos qualidades
completamente diferentes. A ação do Espírito sobre o físico é tão
evidente, que se veem com frequência graves desordens orgânicas se
produzir pelo efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar:
“A
emoção modificou-lhe o sangue” não é tão desprovida de sentido quanto se
poderia crer; ora, o que pôde modificar o sangue, senão as disposições
morais do Espírito?
Pode-se então admitir que o temperamento é, ao menos
em parte, determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não
efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico influi
evidentemente sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é
determinado por uma causa externa, acidental, independente do Espírito,
como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um
mal estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode então ser afetado em
suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza
intrínseca seja modificada.
Lançar a culpa de suas más ações à fraqueza
da carne não é, portanto, senão um subterfúgio para escapar da
responsabilidade. A carne só é fraca porque o Espírito é fraco, o que
inverte a questão, e deixa ao Espírito a responsabilidade por todos os
seus atos. A carne, que não tem pensamento nem vontade, nunca prevalece
sobre o Espírito, que é o ser pensante e desejante; é o Espírito que dá à
carne as qualidades correspondentes a seus instintos, como um artista
imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. O Espírito, libertado
dos instintos da bestialidade, modela um corpo que não é mais um tirano
para suas aspirações à espiritualidade de seu ser; é então que o homem
come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive mais para
comer.
A responsabilidade moral pelos atos da vida é, pois, total; mas a
razão diz que as consequências dessa responsabilidade devem ser
proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito; quanto mais
esclarecido ele for, menos é desculpável, porque com a inteligência e o
senso moral nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto.
Esta lei explica o insucesso da medicina em certos casos. Uma vez que o
temperamento é um efeito e não uma causa, os esforços tentados para
modificá-lo são necessariamente paralisados pelas disposições morais do
Espírito, que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação
terapêutica. É, portanto, sobre a primeira causa que é preciso agir.
Dai, se possível, coragem ao covarde, e vereis cessar os efeitos
fisiológicos do medo.
Isto prova uma vez mais a necessidade, para a arte
de curar, de levar em conta a ação do elemento espiritual sobre o
organismo. (
Revista espírita, março de 1869, p. 65.)
Princípio da doutrina espírita sobre as penas futuras.
A doutrina espírita, no que toca às
penas futuras, não se baseia mais sobre uma teoria preconcebida do que nas suas outras partes; não é um sistema substituindo outro sistema: em
todas as coisas ela se apoia sobre observações, e é o que constitui sua
autoridade. Ninguém, pois, imaginou que as almas, após a morte, deviam
encontrar-se em tal ou qual situação; são os próprios seres que deixaram
a terra que vêm hoje iniciar-nos nos mistérios da vida futura,
descrever sua posição feliz ou desgraçada, suas impressões e sua
transformação com a morte do corpo; numa palavra, completar sobre este
ponto o ensinamento do Cristo.
Não se trata aqui do relato de um único
Espírito, que poderia ver as coisas somente do seu ponto de vista, sob
um único aspecto, ou estar ainda dominado pelos preconceitos terrestres,
nem de uma revelação feita a um único indivíduo, que poderia se deixar
enganar pelas aparências, nem de uma visão extática que se presta a
ilusões, e é com frequência apenas o reflexo de uma imaginação exaltada;* mas trata-se de inúmeros exemplos fornecidos por todas as categorias de
Espíritos, de alto a baixo da escala, com a ajuda de inúmeros
intermediários disseminados em todos os pontos do globo, de tal modo que
a revelação não é privilégio de ninguém, cada qual é capaz de ver e
observar, e ninguém é obrigado a crer apoiando-se na fé de outrem.
* Ver acima, cap. VI, n.o 7, e Livro dos Espíritos, n.os 443, 444.
Código penal da vida futura.
O Espiritismo não vem, portanto,
mediante sua autoridade privada, formular um código de fantasia; sua
lei, no que toca ao futuro da alma, deduzida de observações feitas sobre
o fato, pode resumir-se nos seguintes pontos:
1.º — A alma ou o Espírito
sofre, na vida espiritual, as consequências de todas as imperfeições de
que não se despojou durante a vida corporal. Seu estado, feliz ou
desgraçado, é inerente ao grau de sua purificação ou de suas
imperfeições.
2.º — A felicidade perfeita está ligada à perfeição, ou seja,
à purificação completa do Espírito. Toda imperfeição é ao mesmo tempo
uma causa de sofrimento e de privação de gozo, assim como toda qualidade
adquirida é uma causa de gozo e de atenuação dos sofrimentos.
3.º — Não há
uma única imperfeição da alma que não traga consigo suas consequências
lastimáveis, inevitáveis, e nem uma única boa qualidade que não seja a
fonte de um gozo. A soma das penas é assim proporcionada à soma das
imperfeições, como a dos gozos está na razão da soma das qualidades.
A
alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem
só três ou quatro; quando dessas dez imperfeições, não lhe restar senão
um quarto ou a metade, ela sofrerá menos, e quando não lhe restar
nenhuma, não sofrerá mais e será perfeitamente feliz. Tal como, na
terra, aquele que tem várias doenças sofre mais do que o que só tem uma,
ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez qualidades tem mais
gozos do que a que tem menos qualidades.
4.º — Em virtude da lei do
progresso, toda alma tendo a possibilidade de adquirir o bem que lhe
falta e se desfazer do que tem de mau, segundo seus esforços e sua
vontade, resulta daí que o futuro não está fechado a nenhuma criatura.
Deus não repudia nenhum de seus filhos; recebe-os no seu seio à medida
que atingem a perfeição, deixando assim a cada um o mérito de suas
obras.
5.º — Estando o sofrimento vinculado à imperfeição, como o gozo à
perfeição, a alma carrega em si mesma seu próprio castigo em toda parte
onde se encontra: não é preciso para isso de um lugar circunscrito. O
inferno está portanto em todo lugar onde há almas sofredoras, como o
céu está em toda parte onde há almas bem aventuradas.
6.º — O bem e o mal
que se faz são o produto das boas e das más qualidades que se possui.
Não fazer o bem que se é capaz de fazer é então o resultado de uma
imperfeição. Se toda imperfeição é uma fonte de sofrimento, o Espírito
deve sofrer não só por todo o mal que fez, mas por todo o bem que
poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre.
7.º — O Espírito
sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que sua atenção estando
incessantemente concentrada nas consequências desse mal, ele compreenda
melhor seus inconvenientes e seja motivado a corrigir-se.
8.º — Sendo a
justiça de Deus infinita, é mantida uma conta rigorosa do bem e do mal;
se não há uma única má ação, um único mau pensamento que não tenha suas
consequências fatais, não há uma única boa ação, um único bom movimento
da alma, o mais leve mérito, numa palavra, que seja perdido, mesmo nos mais perversos, porque é um começo de progresso.
9.º — Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve
ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas
seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras.
Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda
vez.
10.º — O Espírito sofre a pena de suas imperfeições, seja no mundo
espiritual, seja no mundo corporal. Todas as misérias, todas as
vicissitudes que suportamos na vida corporal são decorrentes de nossas
imperfeições, expiações de faltas cometidas, seja na existência
presente, seja nas precedentes.
Pela natureza dos sofrimentos e das
vicissitudes suportadas na vida corpórea, pode-se julgar da natureza das
faltas cometidas numa existência precedente, e das imperfeições que lhe
são a causa.
11.º — A expiação varia segundo a natureza e a gravidade da
falta; a mesma falta pode assim dar lugar a expiações diferentes,
segundo as circunstâncias atenuantes ou agravantes nas quais ela foi
cometida.
12.º — Não há, em relação à natureza e à duração do castigo,
nenhuma regra absoluta e uniforme; a única lei geral é que toda falta
recebe sua punição e toda boa ação sua recompensa, segundo seu valor.
13.º — A
duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do Espírito
culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada
contra ele. O que Deus exige para pôr um fim aos sofrimentos, é um
aperfeiçoamento sério, efetivo, e um retorno sincero ao bem.
O Espírito é
assim sempre o árbitro de seu próprio destino; pode prolongar seus
sofrimentos pela persistência no mal, aliviá-los ou abreviá-los por seus
esforços para fazer o bem.
Uma condenação por um tempo determinado
qualquer teria o duplo inconveniente: de continuar a atingir o
Espírito que se tivesse melhorado, ou de cessar quando ele ainda
estivesse no mal. Deus, que é justo, pune o mal enquanto ele existe;
cessa de punir quando o mal não existe mais*; ou, sendo o mal moral,
por si mesmo, uma causa de sofrimento, o sofrimento dura enquanto o
mal subsistir; sua intensidade diminui à medida que o mal perde força.
* Ver acima, cap. VI, n.º 25, citação de Ezequiel.
14.º — Estando a duração do castigo subordinada à melhoria, daí resulta que
o Espírito culpado que jamais se melhorasse sofreria sempre, e, para
ele, a pena seria eterna.
15.º — Uma condição inerente à inferioridade dos
Espíritos é não ver o termo de sua situação e crer que sofrerão sempre. É
para eles um castigo que lhes parece dever ser eterno.*
* Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se: o limite das neves perpétuas; o gelo eterno dos polos; diz-se também o secretário perpétuo da Academia, o que não quer dizer que ele o será perpetuamente, mas somente por um tempo ilimitado. Eterno e perpétuo empregam-se portanto no sentido de indeterminado. Nesta acepção, pode-se dizer que as penas são eternas, se se compreender que não têm uma duração limitada; elas são eternas para o Espírito que não vê seu fim.
16.º — O
arrependimento é o primeiro passo para o aperfeiçoamento; mas sozinho
não basta; são precisas ainda a expiação e a reparação.
Arrependimento,
expiação e reparação são as três condições necessárias para apagar os
traços de uma falta e suas consequências.
O arrependimento suaviza as
dores da expiação, dando esperança e preparando as vias da reabilitação;
mas somente a reparação pode anular o efeito, destruindo a causa; o
perdão seria uma graça e não uma anulação.
17.º — O arrependimento pode
ocorrer em todo lugar e a qualquer tempo; se for tardio, o culpado sofre
por mais longo tempo.
A expiação consiste nos sofrimentos físicos e
morais que são a consequência da falta cometida, seja desde a vida
presente, seja, após a morte, na vida espiritual, seja numa nova
existência corpórea, até que os traços da falta sejam apagados.
A
reparação consiste em fazer bem àquele a quem se fez mal. Quem não
repara suas faltas nesta vida, por impotência ou má vontade,
encontrar-se-á, numa existência ulterior, em contato com as mesmas
pessoas que tiveram queixas dele, e em condições escolhidas por ele
mesmo, de maneira a poder provar-lhes sua dedicação, e fazer-lhes tanto
bem quanto lhes fez mal.
Nem todas as faltas acarretam um prejuízo
direto e efetivo; neste caso, a reparação se realiza: fazendo o que se
devia fazer e que não se fez, cumprindo os deveres que foram
negligenciados ou ignorados, as missões nas quais se falhou; praticando o
bem contrário ao que se fez de mal: isto é, sendo humilde se foi
orgulhoso, terno se foi duro, caridoso se foi egoísta, benevolente se
foi malevolente, laborioso se foi preguiçoso, útil se foi inútil,
temperante se foi dissoluto, um bom exemplo se deu mau exemplo, etc. É
assim que o Espírito progride tirando proveito de seu passado.*
* A necessidade da reparação é um princípio de rigorosa justiça que se pode considerar como a verdadeira lei de reabilitação moral dos Espíritos. É uma doutrina que nenhuma religião proclamou ainda.
Entretanto algumas pessoas a repelem, porque achariam mais cômodo poder apagar suas más ações com um simples arrependimento, que custa apenas palavras, e com a ajuda de algumas fórmulas; elas podem acreditar que estão quites: verão mais tarde se isso lhes basta. Poder-se-ia perguntar-lhes se esse princípio não é consagrado pela lei humana, e se a justiça de Deus pode ser inferior à dos homens? Se elas se achariam satisfeitas com um indivíduo que, tendo-as arruinado por abuso de confiança, se limitasse a dizer que lamenta infinitamente. Por que recuariam perante uma obrigação que todo homem de bem reconhece ser seu dever cumprir, na medida das suas forças?
Quando essa perspectiva da reparação for inculcada na crença das massas, será um freio muito mais poderoso do que a do inferno e das penas eternas, porque se refere à atualidade da vida, e o homem compreenderá a razão de ser das circunstâncias penosas em que se acha colocado.
18.º — Os
Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia
perturbariam; permanecem nos mundos inferiores, onde expiam suas faltas
pelas tribulações da vida, e se purificam de suas imperfeições, até que
mereçam encarnar-se nos mundos mais avançados moral e fisicamente.
Se
pudéssemos conceber um lugar de castigo circunscrito, é nos mundos de
expiação, pois é em volta desses mundos que pululam os Espíritos
imperfeitos desencarnados, esperando uma nova existência que,
permitindo-lhes reparar o mal que fizeram, ajudará em seu
adiantamento.
19.º — Tendo sempre o Espírito seu livre-arbítrio, seu
melhoramento é por vezes lento, e sua obstinação no mal muito tenaz.
Ele pode persistir anos e séculos; mas chega sempre um momento em que
sua teimosia em enfrentar a justiça de Deus se dobra diante do
sofrimento, e em que, apesar de sua soberba, reconhece o poder superior
que o domina. Assim que se manifestam nele as primeiras luzes do
arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança.
Nenhum Espírito está
na condição de jamais aperfeiçoar-se; de outro modo, estaria destinado a
uma eterna inferioridade, e escaparia à lei do progresso que rege
providencialmente todas as criaturas.
20.º — Sejam quais forem a
inferioridade e a perversidade dos Espíritos, Deus nunca os abandona.
Todos têm seu anjo guardião que vela por eles, espia os movimentos de sua
alma e esforça-se para suscitar neles bons pensamentos, o desejo de
progredir e de reparar, numa nova existência, o mal que fizeram. Contudo
o guia protetor age quase sempre de maneira oculta, sem exercer nenhuma
pressão. O Espírito deve aperfeiçoar-se pelo fato de sua própria
vontade, e não em decorrência de qualquer coerção. Ele age bem ou mal em
virtude de seu livre-arbítrio, mas sem ser fatalmente impelido num
sentido ou noutro. Se age mal, sofre as consequências do mal enquanto
persistir no mau caminho; desde que dá um passo para o bem, sente
imediatamente os efeitos.
Observação. — Seria um erro crer que em
virtude da lei do progresso, a certeza de chegar cedo ou tarde à
perfeição e à bem aventurança pode ser um encorajamento a perseverar no
mal, sob a condição de se arrepender mais tarde: primeiro, porque o
Espírito inferior não vê o termo de sua situação; em segundo lugar,
porque o Espírito, sendo o artífice de sua própria desgraça, acaba por
compreender que depende dele fazê-la cessar, e que quanto mais tempo
persistir no mal, por mais tempo será desgraçado; que seu sofrimento
durará para sempre se ele mesmo não lhe puser fim. Seria portanto de sua
parte um cálculo errado, e ele seria o primeiro enganado. Se, ao
contrário, segundo o dogma das penas irremissíveis, toda esperança lhe
está vedada para sempre, ele não tem nenhum interesse em voltar ao bem,
que não lhe traz proveito.
Diante desta lei cai igualmente a objeção
tirada da presciência divina. Deus, criando uma alma, sabe efetivamente
se, em virtude de seu livre-arbítrio, ela tomará o bom ou o mau caminho;
sabe que ela será punida se agir mal; mas sabe também que esse castigo
temporário é um meio de lhe fazer compreender seu erro e de fazê-la
entrar no bom caminho, ao qual ela chegará cedo ou arde. Segundo a
doutrina das penas eternas, Deus sabe que ela falhará, e que está de antemão
condenada a torturas sem fim.
21.º — Cada um é responsável apenas por suas
faltas pessoais; ninguém carrega a pena das faltas de outrem, a menos
que tenha dado lugar a tal, seja provocando-as por seu exemplo, seja não
as impedindo quando tinha esse poder. É assim, por exemplo, que o
suicida é sempre punido; mas aquele que, por sua dureza, impele um
indivíduo ao desespero e daí a destruir-se, sofre uma pena ainda maior.
22.º — Embora a diversidade das punições seja infinita, há aquelas que são
inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas consequências, exceto
as nuances, são quase idênticas.
A punição mais imediata, sobretudo para
os que se apegaram à vida material negligenciando o progresso
espiritual, consiste na lentidão da separação da alma e do corpo, nas
angústias que acompanham a morte e o despertar na outra vida, na duração
da perturbação que pode durar meses e anos. Para aqueles, ao contrário,
cuja consciência é pura, que, durante a vida se identificaram com a
vida espiritual e se desprenderam das coisas materiais, a separação é
rápida, sem abalos, o despertar pacífico e a perturbação quase
inexistente.
23.º — Um fenômeno, muito frequente nos Espíritos de alguma
inferioridade moral, consiste em acreditar que ainda estão vivos, e essa
ilusão pode prolongar-se durante anos, ao longo dos quais experimentam
todas as necessidades, todos os tormentos e todas as perplexidades da
vida.
24.º — Para o criminoso, a visão incessante de suas vítimas e das
circunstâncias do crime é um cruel suplício.
25.º — Certos Espíritos estão
mergulhados em espessas trevas; outros estão num isolamento absoluto no
meio do espaço, atormentados pela ignorância de sua posição e de seu
destino. Os mais culpados sofrem torturas tanto mais pungentes quanto
não lhes veem o fim. Muitos são privados da visão dos seres que lhes são
caros. Todos, geralmente, suportam com intensidade relativa os males,
as dores e as necessidades que fizeram suportar aos outros, até que o
arrependimento e o desejo de reparação venham trazer um alívio, fazendo
entrever a possibilidade de pôr, por si mesmo, um fim a essa situação.
26.º — É um suplício para o orgulhoso ver acima de si, na glória, rodeados e
festejados, aqueles que ele desprezara na terra, ao passo que ele é
relegado às últimas fileiras; para o hipócrita, ver-se penetrado pela
luz que põe a nu seus mais secretos pensamentos, que todos podem ler:
nenhum meio têm de se esconder e dissimular-se; para o sensual, ter
todas as tentações, todos os desejos, sem poder satisfazê-los; para o
avaro, ver seu ouro dilapidado e não poder retê-lo; para o egoísta, ser
abandonado por todos e sofrer tudo o que outros sofreram por sua causa:
terá sede, e ninguém lhe dará de beber; terá fome, e ninguém lhe dará de
comer; nenhuma mão amiga vem apertar a sua, nenhuma voz compassiva o
vem consolar; não pensou senão em si próprio durante a vida, ninguém
pensa nele nem o lastima depois da morte.
27.º — O meio de evitar ou
atenuar as consequências de seus defeitos na vida futura é desfazer-se
deles o máximo possível na vida presente; é reparar o mal, para não ter
de repará-lo mais tarde de maneira horrível. Quanto mais se demora a se
desfazer dos defeitos, mais as consequências são penosas e mais a
reparação que se deve realizar é rigorosa.
28.º — A situação do Espírito,
desde sua entrada na vida espiritual, é a que ele preparou pela vida
corporal. Mais tarde, outra encarnação lhe é dada para a expiação e a
reparação por novas provas; mas ele as aproveita mais ou menos em
virtude de seu livre-arbítrio; se não aproveita, é uma tarefa a
recomeçar cada vez em condições mais penosas: de modo que aquele que
sofre muito na terra pode dizer que tinha muito que expiar; aqueles que
gozam de uma felicidade aparente, apesar de seus vícios e sua
inutilidade, estejam certos de pagá-lo muito caro numa existência
ulterior. É neste sentido que Jesus disse: “Bem aventurados os aflitos,
pois eles serão consolados.” (
Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)
29.º — A misericórdia de Deus é infinita, sem dúvida, mas não é cega. O
culpado que ele perdoa não é exonerado, e enquanto não satisfez a
justiça sofre as consequências de suas faltas. Por misericórdia
infinita, é preciso entender que Deus não é inexorável, e que deixa
sempre aberta a porta do retorno ao bem.
30.º — Sendo as penas
temporárias e subordinadas ao arrependimento e à reparação, que dependem
da livre vontade do homem, são ao mesmo tempo castigos e remédios que
devem ajudar a curar as feridas do mal. Os Espíritos em punição são,
portanto, não como condenados às galés por tempo, mas como doentes no
hospital, que sofrem da doença que quase sempre é culpa deles, e dos
meios curativos dolorosos de que ela necessita, mas que têm esperança de
sarar, e que saram tanto mais depressa se seguirem mais exatamente as
prescrições do médico que vela por eles com solicitude. Se prolongam
seus sofrimentos por falta sua, o médico nada tem com isso.
31.º — Às penas
que o Espírito suporta na vida espiritual vêm juntar-se as da vida
corporal, que são a consequência das imperfeições do homem, de suas
paixões, do mau emprego de suas faculdades, e a expiação de suas faltas
presentes e passadas. É na vida corporal que o Espírito repara o mal das
existências anteriores, que põe em prática as resoluções tomadas na
vida espiritual. Assim se explicam essas misérias e essas vicissitudes
que, ao primeiro olhar, parecem não ter razão de ser, e são
absolutamente justas pois são a quitação do passado e servem ao nosso
adiantamento.*
* Ver acima, cap. VI, “O Purgatório”, nos 3 e seguintes; e a seguir, cap. XX, “Exemplos de expiações terrestres”. — Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V: “Bem aventurados os aflitos”.
32.º — Deus, diz-se, não provaria um amor maior por suas
criaturas se as tivesse criado infalíveis e, por conseguinte, isentas
das vicissitudes vinculadas à imperfeição?
Teria sido preciso, para
isso, que criasse seres perfeitos, nada tendo de adquirir, nem em
conhecimento, nem em moralidade. Sem dúvida nenhuma, ele podia; se não o
fez, é que, na sua sabedoria, quis que o progresso fosse a lei geral.
Os homens são imperfeitos, e, como tais, sujeitos a vicissitudes mais ou
menos penosas; é um fato que é preciso aceitar, visto que existe.
Inferir daí que Deus não é bom nem justo seria uma revolta contra ele.
Haveria injustiça se ele tivesse criado seres privilegiados, uns mais
favorecidos que outros, gozando sem trabalho da felicidade que outros só
atingem com dificuldade, ou nunca podem atingir. Mas onde sua justiça
brilha é na igualdade absoluta que preside à criação de todos os
Espíritos; todos têm um mesmo ponto de partida; nenhum que seja, na
formação, mais bem dotado que os outros; nenhum cuja marcha ascensional
seja facilitada por exceção: os que chegaram ao objetivo passaram, como
os outros, pela sucessão das provas e da inferioridade.
Admitido isto, o
que há de mais justo do que a liberdade de ação deixada a cada um? A
estrada da felicidade está aberta a todos; o objetivo é o mesmo para
todos; as condições para atingi-lo são as mesmas para todos; a lei
gravada em todas as consciências é ensinada a todos. Deus fez da
felicidade o prêmio do trabalho, e não do favor, a fim de que cada um
tivesse seu mérito; cada um é livre de trabalhar ou de não fazer nada
para seu adiantamento; aquele que trabalha muito e depressa é
recompensado por isso mais cedo; aquele que se desvia do caminho ou
perde tempo retarda a chegada, e só pode acusar a si mesmo. O bem e o
mal são voluntários e facultativos; o homem, sendo livre, não é
fatalmente impelido nem para um, nem para outro.
33.º — Apesar da
diversidade dos gêneros e dos graus de sofrimento dos Espíritos
imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três
princípios:
O sofrimento está vinculado à imperfeição.
Toda imperfeição,
e toda falta que dela decorre, traz consigo seu próprio castigo, por
suas consequências naturais e inevitáveis, como a doença é decorrente
dos excessos, o tédio da ociosidade, sem que haja necessidade de uma
condenação especial para cada falta e cada indivíduo.
Todo homem,
podendo desfazer-se das imperfeições pelo efeito de sua vontade, pode
poupar a si mesmo os males que delas decorrem, e assegurar sua
felicidade futura.
Tal é a lei da justiça divina: a cada um segundo suas
obras, no céu como na terra.
Capítulo VIII — Os anjos
Os anjos segundo a Igreja.
1. Todas as religiões tiveram, sob diversos nomes, anjos, ou seja, seres
superiores à humanidade, intermediários entre Deus e os homens. O
materialismo, negando toda existência espiritual fora da vida orgânica,
naturalmente classificou os anjos entre as ficções e as alegorias. A
crença nos anjos faz parte essencial dos dogmas da Igreja; eis como ela
os define.*
* Tiramos este resumo da pastoral de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para
a Quaresma de 1864. Pode-se então considerá-lo, assim como o dos demônios, proveniente
da mesma origem e citado no capítulo seguinte, como a última expressão do dogma da Igreja
sobre este ponto.2. “Acreditamos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico*, que não
há senão um verdadeiro Deus, eterno, e infinito, o qual, no começo dos
tempos, tirou juntas do nada ambas as criaturas, a espiritual e a
corporal, a angélica e a mundana, e em seguida formou, como
intermediária entre as duas, a natureza humana, composta de corpo e de
espírito.
“Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação: plano
majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Assim
concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os graus e
em todas as condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a
vida puramente espirituais; em último lugar, a existência e a vida
puramente materiais; e no intervalo que as separa, uma maravilhosa união
das duas substâncias, uma vida comum ao mesmo tempo do espírito
inteligente e do corpo organizado.
“Nossa alma é de uma natureza simples
e indivisível; mas ela é limitada em suas faculdades. A ideia que temos
da perfeição faz-nos compreender que pode haver outros seres simples
como ela, e superiores por suas qualidades e seus privilégios. Ela é
grande e nobre; mas está associada à matéria, servida por órgãos
frágeis, limitada em sua ação e poder. Por que não haveria outras
naturezas ainda mais nobres, livres dessa escravidão e desses entraves,
dotadas de uma força maior e de uma atividade incomparável? Antes que
Deus tivesse posto o homem na terra para que este o conhecesse, amasse e
servisse, não devia ele ter já chamado outras criaturas para compor sua
corte celeste e adorá-lo na sua morada de glória? Deus, enfim, recebe
das mãos do homem o tributo de honra e a homenagem deste universo; será
espantoso que receba das mãos do anjo o incenso e a prece do homem? Se
então os anjos não existissem, a grande obra do Criador não teria o
coroamento e a perfeição de que ele era capaz; este mundo, que atesta
sua onipotência, não seria mais a obra-prima de sua sabedoria; nossa
própria razão, embora fraca e débil, poderia facilmente concebê-lo
mais completo e mais acabado.
“A cada nova página dos livros sagrados do
Antigo e do Novo Testamento, é feita menção a essas sublimes
inteligências, em invocações piedosas ou em traços históricos. Sua
intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos
profetas. Deus serve-se do ministério deles, quer para intimar suas
vontades, quer para anunciar os acontecimentos futuros; faz deles quase
sempre os órgãos de sua justiça ou de sua misericórdia. A presença deles
confunde-se com as diversas circunstâncias do nascimento, da vida e da
paixão do Salvador; sua lembrança é inseparável da dos grandes homens e
dos fatos mais importantes da antiguidade religiosa. Ele encontra-se
mesmo no seio do politeísmo, e sob as fábulas da mitologia; pois a
crença de que se trata é tão antiga e tão universal como o mundo; o
culto que os pagãos prestavam aos bons e aos maus gênios era apenas uma
falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do dogma primitivo.
“As
palavras do santo concílio de Latrão contêm uma distinção fundamental
entre os anjos e os homens. Elas nos ensinam que os primeiros são puros
Espíritos, ao passo que estes são compostos de um corpo e uma alma; ou
seja, a natureza angélica mantém-se por si mesma, não só sem mistura,
mas ainda sem associação real possível com a matéria, por mais leve e
sutil que a suponham; ao passo que nossa alma, igualmente espiritual,
está associada ao corpo de maneira a formar com ele uma única e mesma
pessoa, e esse é essencialmente seu destino.
“Enquanto dura essa
união tão íntima da alma com o corpo, essas duas substâncias têm uma
vida em comum, e exercem uma sobre a outra uma influência recíproca; a
alma não se pode libertar inteiramente da condição imperfeita que lhe
advém daí: suas ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação dos
objetos exteriores, e sempre sob imagens mais ou menos aparentes. Daí
decorre que ela não pode contemplar a si mesma, e que não pode
representar-se Deus e os anjos sem lhes supor alguma forma visível e
palpável. É por isso que os anjos, para se mostrarem aos santos e aos
profetas, precisaram recorrer a figuras corporais; mas essas figuras
eram apenas corpos aéreos que eles faziam mover sem se identificarem com
eles, ou atributos simbólicos relacionados com a missão de que
estavam encarregados.
“Seu ser e seus movimentos não estão localizados e
circunscritos num ponto fixo e limitado do espaço. Não estando presos a
nenhum corpo, não podem ser detidos e limitados, como nós, por outros
corpos; não ocupam nenhum lugar e não preenchem nenhum vazio; mas, assim
como nossa alma está toda em nosso corpo e em cada uma de suas partes,
igualmente eles estão inteiramente, e quase simultaneamente, em todos os
pontos e em todas as partes do mundo; mais rápidos do que o pensamento,
podem estar em toda a parte num piscar de olhos e aí operar por si
mesmos, sem outros obstáculos a seus desígnios senão a vontade de Deus e
a resistência da liberdade humana.
“Enquanto estamos reduzidos a ver
apenas pouco a pouco, e numa certa medida, as coisas que estão fora de
nós, e as verdades da ordem sobrenatural nos aparecem como enigma e num
espelho, segundo a expressão do apóstolo São Paulo, eles veem sem
esforço o que lhes importa saber, e estão em relação imediata com o
objeto de seu pensamento. Seus conhecimentos não são o resultado da
indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abarca
juntamente o gênero e as espécies que dele derivam, os princípios e as
consequências que deles decorrem.
“A distância dos tempos, a diferença
dos lugares, a multiplicidade dos objetos não podem produzir nenhuma
confusão em seu espírito.
“A essência divina, sendo infinita, é
incompreensível; ela tem mistérios e profundezas que eles não podem
penetrar. Os desígnios particulares da Providência são-lhes ocultados;
mas ela revela-lhes o segredo, quando os encarrega, em certas
circunstâncias, de anunciá-los aos homens.
“As comunicações de Deus aos
anjos, e dos anjos entre si, não se fazem, como entre nós, por meio de
sons articulados e outros sinais sensíveis. As puras inteligências não
precisam nem dos olhos para ver, nem dos ouvidos para ouvir; também não
têm o órgão da voz para manifestar seus pensamentos, este intermediário
habitual de nossas conversas não lhes é necessário; mas elas comunicam
seus sentimentos de uma maneira que lhes é própria e que é completamente
espiritual. Para serem compreendidas, basta-lhes querê-lo.
“Só Deus
sabe a quantidade dos anjos. Essa quantidade, sem dúvida, não poderia
ser infinita, e não o é; mas, de acordo com os autores sagrados e os
doutores da Igreja, é muito considerável e verdadeiramente prodigiosa.
Se é natural proporcionar o número de habitantes de uma cidade ao seu
tamanho e à sua extensão, não sendo a terra mais do que um átomo em
comparação ao firmamento e às imensas regiões do espaço, é preciso
concluir que o número de habitantes do céu e do ar é muito maior do que o
dos homens.
“Visto que a majestade dos reis tira seu esplendor do
número de seus súditos, de seus oficiais e de seus servidores, o que
haverá de mais capaz de nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis
do que essa multidão incontável de anjos que povoam o céu e a terra, o
mar e os abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente
prosternados ou de pé diante de seu trono?
“Os doutores da Igreja e os
teólogos ensinam geralmente que os anjos estão distribuídos em três
grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias
ou coros.
“Os da primeira e mais alta hierarquia são designados em
razão das funções que preenchem no céu. Uns são chamados
Serafins,
porque estão como que inflamados diante de Deus pelos ardores da
caridade; outros
Querubins, porque são um reflexo luminosos de sua
sabedoria; aqueles,
Tronos, porque proclamam sua grandeza e fazem
resplandecer seu brilho.
“Os da segunda hierarquia recebem seus nomes
das operações que lhes são atribuídas no governo geral do universo; são
eles: as Dominações, que designam aos anjos das ordens inferiores suas
missões e seus encargos; as Virtudes, que realizam os prodígios exigidos
pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; as Potestades,
que protegem por sua força e vigilância as leis que regem o mundo físico
e moral.
“Os da terceira hierarquia têm por quinhão a direção das
sociedades e das pessoas; são: os Principados, encarregados dos reinos,
das províncias e das dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens
de suma importância; os Anjos da Guarda, aqueles que acompanham cada um
de nós para velar por nossa segurança e nossa santificação.”
* Concílio de Latrão.Refutação.
3. O princípio geral que ressalta desta doutrina é que os anjos são
seres puramente espirituais, anteriores e superiores à humanidade,
criaturas privilegiados votadas à bem-aventurança suprema e eterna desde
sua formação; dotadas, por sua própria natureza, de todas as virtudes e
de todos os conhecimentos, sem ter feito nada para adquiri-los. Estão
na primeira fileira na obra da criação; na última fileira, a vida
puramente material, e entre as duas a humanidade formada pelas almas,
seres espirituais, inferiores aos anjos, unidos a corpos materiais.
Várias dificuldades capitais resultam desse sistema. Qual é, primeiro,
essa vida puramente material? Trata-se da matéria bruta? Mas a matéria
bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Quer-se falar das plantas
e dos animais? Seria então uma quarta ordem na criação, pois não se
pode negar que haja no animal inteligente mais do que numa planta, e
nesta mais do que numa pedra. Quanto à alma humana, ela está unida
diretamente a um corpo que é apenas matéria bruta, pois, sem alma, ele
não tem mais vida do que um torrão de terra.
Esta divisão carece
evidentemente de clareza, e não concorda em nada com a observação;
parece-se com a teoria dos quatro elementos derrubada pelos progressos
da ciência. Admitamos, entretanto, estes três termos: a criatura
espiritual, a criatura humana e a criatura corporal; diz-se que é esse o
plano divino, plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria
eterna. Notemos inicialmente que entre esses três termos não há nenhuma
ligação necessária; são três criações distintas, formadas
sucessivamente; de uma à outra, há solução de continuidade; ao passo
que, na natureza, tudo se encadeia, tudo nos mostra uma admirável lei de
unidade, da qual todos os elementos, que não são senão transformações
uns dos outros, têm um elemento de ligação entre si. Esta teoria é
verdadeira, no sentido em que esses três termos existem evidentemente;
somente, ela é incompleta: faltam os pontos de contato, como é fácil
demonstrar.
4. Estes três pontos culminantes da criação são, diz a Igreja, necessários
à harmonia do conjunto; se houver um a menos, a obra é incompleta, e
não está mais de acordo com a sabedoria eterna. No entanto, um dos
dogmas fundamentais da religião diz que a terra, os animais, as plantas,
o sol, as estrelas, a própria luz foram criados e tirados do nada há
seis mil anos. Antes dessa época, não havia portanto nem criatura
humana, nem criatura corporal; durante a eternidade decorrida até então,
a obra divina tinha por conseguinte permanecido imperfeita. A criação
do universo remontando a seis mil anos é um artigo de fé tão capital
que, há poucos anos ainda, a ciência era anatematizada porque vinha
destruir a cronologia bíblica, provando a alta antiguidade da terra e de
seus habitantes.
Contudo, o concílio de Latrão, concílio ecumênico que
dita a lei em matéria de ortodoxia, diz: “Nós cremos firmemente que não
há senão um verdadeiro Deus, eterno e infinito, o qual, no começo dos
tempos, tirou juntas do nada uma e outra criatura, a espiritual e a
corporal.” O começo dos tempos só se pode entender referente à
eternidade transcorrida, pois o tempo é infinito, como o espaço: ele não
tem começo nem fim. Esta expressão “o começo dos tempos” é uma figura
que implica a ideia de uma anterioridade ilimitada. O concílio de Latrão
crê então firmemente que as criaturas espirituais e as criaturas
corporais foram formadas simultaneamente, e tiradas juntas do nada numa
época indeterminada no passado. O que se torna então o texto bíblico,
que fixa essa criação há seis mil anos? Admitindo que seja esse o começo
do universo visível, não é seguramente o do tempo. Em qual acreditar,
no do concílio ou no da Bíblia?
5. O mesmo concílio formula além disso uma estranha afirmação: “Nossa
alma, diz ele, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira
a formar com ele uma única e mesma pessoa, e esse é essencialmente seu
destino.” Se o destino essencial da alma é estar unida ao corpo, essa
união constitui seu estado normal, é seu objetivo, seu fim, visto que
tal é seu destino.
No entanto, a alma é imortal e o corpo é mortal;
sua união com o corpo ocorre apenas uma vez, segundo a Igreja e, ainda
que durasse um século, o que é isso comparado à eternidade? Mas, para
muitíssimos, ela é apenas de algumas horas; de que utilidade pode ser
para a alma essa união efêmera? Quando, em relação à eternidade, sua
maior duração é um tempo imperceptível, será exato dizer que seu destino
é estar essencialmente ligada ao corpo? Essa união não é na realidade
mais do que um acidente, um ponto na vida da alma, e não seu estado
essencial.
Se o destino essencial da alma é estar unida a um corpo
material; se, pela sua natureza e segundo o objetivo providencial de sua
criação, essa união é necessária às manifestações de suas faculdades, é
preciso concluir daí que, sem o corpo, a alma humana é um ser
incompleto; ora, para permanecer o que ela é por seu destino, após ter
deixado um corpo, é preciso que ela retome outro, o que nos conduz à
pluralidade forçosa das existências, dito de outro modo, à reencarnação
perpétua. É verdadeiramente estranho que um concílio visto como uma das
luzes da Igreja tenha identificado a esse ponto o ser espiritual e o ser
material, que não podem de certa maneira existir um sem o outro, visto
que a condição essencial de sua criação é estarem unidos.
6. O quadro hierárquico dos anjos nos ensina que muitas ordens têm, em suas atribuições, a direção do mundo físico e da humanidade, e que elas foram criadas com esse fim. Mas, segundo a Gênese, o mundo físico e a humanidade não existem senão há seis mil anos. O que faziam, então, os anjos antes desse tempo, durante a eternidade, quando os objetos de suas ocupações não existiam ainda? Os anjos foram criados desde toda a eternidade? Assim deve ter sido, pois eles servem à glorificação do Altíssimo. Se Deus os tivesse criado em uma época determinada, ele teria ficado, até ela, durante uma eternidade inteira sem adoradores.
7. Mais adiante é dito: “Enquanto durar essa união tão íntima da alma
com o corpo”. Chega então um momento em que essa união não existe mais?
Essa afirmação contradiz a que faz dessa união o destino essencial da
alma.
É dito ainda: “As ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela
comparação com os objetos exteriores”. Essa é uma doutrina filosófica em
parte verdadeira, mas não no sentido absoluto. É, segundo o eminente
teólogo, uma condição inerente à natureza da alma, não receber as ideias
a não ser pelos sentidos; ele esquece as ideias inatas, as faculdades
por vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz
ao nascer e que não deve a nenhuma instrução. Por que sentido esses
jovens pastores, calculadores naturais que espantaram os estudiosos,
adquiriram as ideias necessárias à solução quase instantânea dos
problemas mais complicados? Pode-se dizer o mesmo de certos músicos,
pintores e linguistas precoces.
“Os conhecimentos dos anjos não são o
resultado da indução e do raciocínio”; eles sabem porque são anjos, sem
ter necessidade de aprender; Deus criou-os assim: a alma, ao contrário
deve aprender. Se a alma recebe as ideias apenas pelos órgãos corporais,
quais são as que pode ter a alma de uma criança morta ao fim de alguns
dias, admitindo, com a Igreja, que ela não renasça?
8. Aqui apresenta-se uma questão vital: A alma adquire ideias e
conhecimentos depois da morte do corpo? Se, uma vez desprendida do
corpo, ela não pode adquirir nada, a da criança, do selvagem, do
cretino, do idiota, do ignorante, permanecerá sempre o que era no
momento da morte; está votada à nulidade pela eternidade.
Se ela adquire
novos conhecimentos depois da vida atual, é que ela pode progredir. Sem
o progresso ulterior da alma, chega-se a consequências absurdas; com o
progresso, chega-se à negação de todos os dogmas baseados no seu estado
estacionário: o destino irrevogável, as penas eternas, etc. Se ela
progride, onde se detém o progresso? Não há nenhuma razão para que ela
não atinja o grau dos anjos ou puros Espíritos. Se ela pode chegar lá,
não havia nenhuma necessidade de criar seres especiais e privilegiados,
isentos de todo labor, e gozando da bem-aventurança eterna sem ter feito
nada para conquistá-la, ao passo que outros seres menos favorecidos
obtêm a suprema felicidade apenas à custa de longos e cruéis sofrimentos
e das provas mais rudes. Deus pode, sem dúvida, mas se se admitir o
infinito de suas perfeições, sem as quais não há Deus, é preciso admitir
também que ele não faz nada inútil, nem nada que desminta a soberana
justiça e a soberana bondade.
9. “Visto que a majestade dos reis tira seu esplendor do número de seus
súditos, de seus oficiais e de seus servidores, o que haverá de mais
capaz de nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis do que essa
multidão incontável de anjos que povoam o céu e a terra, o mar e os
abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente prosternados
ou de pé diante de seu trono?
Não é rebaixar a Divindade comparar sua
glória ao fausto dos soberanos da terra? Essa ideia, inculcada no
espírito das massas ignorantes, falseia a opinião que se faz de sua
verdadeira grandeza; é sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da
humanidade; supor-lhe a necessidade de ter milhões de adoradores
incessantemente prosternados ou de pé diante dele é emprestar-lhe as
fraquezas dos monarcas déspotas e orgulhosos do Oriente. O que faz os
soberanos verdadeiramente grandes? É a quantidade e o esplendor de seus
cortesãos? Não; é sua bondade e sua justiça, é o merecido título de pais
de seus súditos. Pergunta-se se há algo mais capaz de nos dar uma ideia
da majestade de Deus do que a multidão de anjos que compõe sua corte? É
certo que há algo melhor do que isso: é representá-lo soberanamente
bom, justo e misericordioso para todas as suas criaturas; e não como um
Deus colérico, ciumento, vingativo, inexorável, exterminador, parcial,
criando para sua própria glória esses seres privilegiados, favorecidos
com todos os dons, nascidos para a eterna felicidade, ao passo que
aos outros ele faz adquirir penosamente a felicidade, e pune um momento
de erro com uma eternidade de suplícios. . .
10. O Espiritismo professa a propósito da união da alma e do corpo uma
doutrina infinitamente mais espiritualista, para não dizer menos
materialista, e que tem a mais a seu favor o ser mais conforme com a
observação e o destino da alma. Segundo o que ele nos ensina, a alma é
independente do corpo, que não é senão um envoltório temporário; sua
essência é a espiritualidade; sua vida normal é a vida espiritual. O
corpo não é mais do que um instrumento para o exercício de suas
faculdades em suas relações com o mundo material; mas, separada desse
corpo, ela goza de suas faculdades com mais liberdade e alcance.
11. Sua união com o corpo, necessária para seus primeiros desenvolvimentos,
ocorre apenas no período que se pode chamar sua infância e sua
adolescência; assim que ela atinge certo grau de perfeição e de
desmaterialização, essa união não é mais necessária, e a alma só
progride pela vida do Espírito. De resto, por mais numerosas que sejam
as existências corporais, elas são necessariamente limitadas pela vida
do corpo, e sua soma total não compreende, em todos os casos, senão uma
imperceptível parte da vida espiritual, que é indefinida.
Os anjos segundo o Espiritismo.
12. Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos anjos,
não se pode duvidar. A revelação espírita confirma, sobre esse ponto, a
crença de todos os povos; mas ela nos faz conhecer ao mesmo tempo a
natureza e a origem desses seres.
As almas ou Espíritos são criados
simples ou ignorantes, ou seja, sem conhecimentos e sem consciência do
bem e do mal, mas aptos a adquirir tudo o que lhes falta; eles o
adquirem pelo trabalho; o objetivo, que é a perfeição, é o mesmo para
todos; chegam lá mais ou menos rapidamente em virtude de seu
livre-arbítrio e em razão de seus esforços; todos têm os mesmos graus a
percorrer, o mesmo trabalho a cumprir; Deus não faz a porção maior nem
mais fácil para uns do que para outros, porque todos são seus filhos, e,
sendo justo, ele não tem preferência por nenhum. Ele diz-lhes: “Eis a
lei que deve ser vossa regra de conduta; só ela pode levar-vos ao
objetivo; tudo o que é conforme a esta lei é o bem, tudo o que lhe é
contrário é o mal. Sois livres para observá-la ou infringi-la, e sereis
assim os árbitros de vosso próprio destino.” Deus portanto não criou o
mal; todas as suas leis são para o bem; é o próprio homem que cria o mal
infringindo as leis de Deus; se as observasse escrupulosamente, nunca
se afastaria do bom caminho.
13.
Mas a alma, nas primeiras fases de sua existência, assim como a
criança, carece de experiência; é por isso que é falível. Deus não lhe
dá a experiência, mas dá-lhe os meios de adquiri-la; cada passo errado
no caminho do mal é para ela um atraso; ela sofre-lhe as consequências, e
aprende à sua custa o que deve evitar. É assim que pouco a pouco se
desenvolve, se aperfeiçoa e avança na hierarquia espiritual, até que
tenha chegado ao estado de puro Espírito ou de anjo. Os anjos são, pois,
as almas dos homens chegadas ao grau de perfeição que comporta a
criatura, e gozando da plenitude da felicidade prometida. Antes de ter
alcançado o grau supremo, eles gozam de uma felicidade relativa ao seu
adiantamento, mas essa felicidade não está na ociosidade; está nas
funções que agrada a Deus confiar-lhes, e que eles ficam felizes de
cumprir, porque essas ocupações são um meio de progredir. (Ver cap. III, “O Céu”.)
14. A humanidade não está limitada à terra; ela ocupa os inúmeros mundos
que circulam no espaço; ocupou aqueles que desapareceram, e ocupará os
que se formarão. Deus criou por toda a eternidade e cria
incessantemente. Portanto, muito tempo antes que a terra existisse, seja
qual for a antiguidade que se lhe atribua, houvera em outros mundos
Espíritos encarnados que percorreram as mesmas etapas que nós, Espíritos
de formação mais recente, percorremos neste momento, e que chegaram ao
objetivo antes mesmo que tivéssemos saído das mãos do Criador. Por toda a
eternidade, houve então anjos ou puros Espíritos; mas perdendo-se sua
existência humanitária no infinito do passado, é para nós como se eles
sempre tivessem sido anjos.
15. Assim se acha realizada a grande lei de unidade da criação; Deus nunca
esteve inativo; teve sempre puros Espíritos experientes e esclarecidos
para a transmissão de suas ordens e para a direção de todas as partes do
universo, desde o governo dos mundos até os mais ínfimos detalhes. Não
precisou, portanto, criar seres privilegiados, isentos de encargos;
todos, antigos ou novos, conquistaram seus graus na luta e por seu
próprio mérito; todos, enfim, são os filhos de suas obras. Assim se
cumpre igualmente a soberana justiça de Deus.
Capítulo IX — Os demônios
Origem da crença nos demônios.
1. Os demônios desempenharam, em todas as épocas, um grande papel nas
diversas teogonias; embora consideravelmente desacreditados na opinião
geral, a importância que lhes é ainda atribuída em nossos dias dá a esta
questão certa gravidade, pois ela toca no âmago das crenças religiosas:
eis porque é útil examiná-la com os desenvolvimentos que ela comporta.
A
crença num poder superior é instintiva nos homens; é encontrada, sob
diferentes formas, em todas as idades do mundo. Mas se, no grau de
adiantamento intelectual a que chegaram hoje, discutem ainda sobre a
natureza e os atributos desse poder, quão mais imperfeitas deviam ser suas noções sobre esse assunto na infância da humanidade!
2. O quadro que nos é feito da inocência dos povos primitivos em
contemplação diante das belezas da natureza, na qual admiram a bondade
do Criador, é sem dúvida muito poético, mas falta-lhe a realidade.
Quanto mais o homem se aproxima do estado natural, mais o instinto
domina nele, tal como se pode ver ainda nos povos selvagens e bárbaros
de nossos dias; o que mais o preocupa, ou melhor, o que o ocupa
exclusivamente é a satisfação das necessidades materiais, porque não tem
outras. O único sentido que pode torná-lo acessível aos gozos puramente
morais desenvolve-se apenas com o tempo e gradualmente; a alma tem sua
infância, sua adolescência e sua virilidade, como o corpo humano; mas,
para atingir a virilidade que a torna apta a compreender as coisas
abstratas, quantas evoluções tem ela que percorrer na humanidade!
Quantas existências deve realizar!
Sem remontar às primeiras eras,
olhemos à nossa volta as pessoas do campo, e perguntemo-nos que
sentimentos de admiração despertam nelas o esplendor do sol nascente,
a abóbada estrelada, o gorjeio dos pássaros, o murmúrio das ondas
claras, os prados coloridos de flores! Para elas, o sol se levanta
porque está habituado, e, desde que dê suficiente calor para amadurecer
as colheitas e não demasiado para queimá-las, é tudo o que pedem; se
olham o céu, é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte; que
os pássaros cantem ou não, é-lhes indiferente, desde que eles não lhes
comam o grão; às melodias do rouxinol preferem o cacarejo das galinhas
e o grunhido de seus porcos; o que pedem aos riachos claros ou
lamacentos é não secarem e não causarem inundação; aos prados, dar-lhes
boa erva, com ou sem flores: é tudo o que desejam, digamos mais, tudo o
que elas compreendem da natureza, porém já estão longe dos homens
primitivos!
3. Se nos reportarmos a estes últimos, vemo-los ainda mais exclusivamente
preocupados com a satisfação das necessidades materiais; o que serve
para provê-las e o que pode prejudicá-las resumem para eles o bem e o
mal neste mundo. Creem num poder sobre-humano; mas, como o que lhes traz
um prejuízo material é o que mais os atinge, atribuem-no a esse poder,
do qual fazem, aliás, uma ideia muito vaga. Não podendo ainda conceber
nada fora do mundo visível e tangível, eles imaginam-no residindo nos
seres e nas coisas que os prejudicam. Os animais perniciosos são,
portanto, para eles seus representantes naturais e diretos. Pela mesma
razão, viram a personificação do bem nas coisas úteis: daí o culto
prestado a certos animais, a certas plantas e mesmo a objetos
inanimados. Mas o homem é geralmente mais sensível ao mal do que ao
bem; o bem parece-lhe natural, ao passo que o mal o afeta mais; é por
isso que, em todos os cultos primitivos, as cerimônias em honra do poder
maléfico são as mais numerosas: o temor leva vantagem sobre o
reconhecimento.
Durante muito tempo o homem não compreendeu senão o
bem e o mal físicos; o sentimento do bem moral e do mal moral assinalou
um progresso na inteligência humana; somente então o homem entreviu a
espiritualidade, e compreendeu que o poder sobre-humano está fora do
mundo visível, e não nas coisas materiais. Isso foi obra de algumas
inteligências de elite, mas que não puderam, contudo, ultrapassar certos
limites.
4.
Como se via uma luta incessante entre o bem e o mal, e o mal
frequentemente levar vantagem; que, por outro lado, não se podia
racionalmente admitir que o mal fosse obra de um poder benéfico,
concluiu-se daí pela existência de dois poderes rivais governando o
mundo. Daí nasceu a doutrina dos dois princípios: o do bem e o do mal,
doutrina lógica para aquela época, pois o homem ainda era incapaz de
conceber outra, e de penetrar a essência do Ser supremo. Como poderia
ele ter compreendido que o mal não é mais do que um estado momentâneo do
qual pode sair o bem, e que os males que o afligem devem conduzi-lo à
bem-aventurança ajudando no seu avanço? Os limites de seu horizonte
moral não lhe permitem ver nada fora da vida presente, nem adiante, nem
para trás; ele não podia compreender que progredira, nem que progrediria
ainda individualmente, e ainda menos que as vicissitudes da vida são o
resultado da imperfeição do ser espiritual que está nele, que preexiste e
sobrevive ao corpo, e se purifica numa série de existências, até que
tenha atingido a perfeição. Para compreender o bem que pode sair do mal,
não se deve ver apenas uma existência; é preciso abarcar o conjunto:
somente então aparecem as verdadeiras causas e seus efeitos.
5. O duplo princípio do bem e do mal foi, durante longos séculos e sob
diferentes nomes, a base de todas as crenças religiosas. Foi
personificado sob os nomes de Oromaz e de Arimã entre os persas, de
Jeová e de Satã entre os hebreus. Mas, como todo soberano deve ter
ministros, todas as religiões admiram poderes secundários, gênios bons
ou maus. Os pagãos personificaram-nos sob uma multidão de
individualidades tendo cada qual atribuições especiais para o bem e para
o mal, para os vícios e para as virtudes, e às quais deram o nome geral
de deuses. Os cristãos e os muçulmanos receberam dos hebreus os anjos e
os demônios.
6.
A doutrina dos demônios tem, portanto, sua origem na antiga crença
nos dois princípios do bem e do mal. Temos que examiná-la aqui apenas do
ponto de vista cristão, e ver se ela está em relação com o conhecimento
mais exato que temos hoje em dia dos atributos da Divindade.
Estes
atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas
religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos, a moral, tudo
está em relação com a ideia mais ou menos exata, mais ou menos elevada
que se faz de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência
íntima de Deus é ainda um mistério para nossa inteligência,
compreendemo-lo porém melhor do que nunca, graças aos ensinamentos do
Cristo. O Cristianismo, de acordo nisso com a razão, ensina-nos que:
Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente
justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.
Assim como está dito
em outra parte (cap. VI, “Penas eternas): “Se se retirasse a menor
parcela de um único dos atributos de Deus, não se teria mais Deus,
porque poderia existir um ser mais perfeito.” Esses atributos, em sua
mais absoluta plenitude, são então o critério de todas as religiões, a
medida da verdade de cada um dos princípios que elas ensinam. Para que
um desses princípios seja verdadeiro, é preciso que ele não prejudique
nenhuma das perfeições de Deus. Vejamos se é o caso da doutrina vulgar
dos demônios.
Os demônios segundo a Igreja.
7. Segundo a Igreja, Satã, o chefe ou o rei dos demônios, não é uma
personificação alegórica do mal, mas sim um ser real, fazendo
exclusivamente o mal, ao passo que Deus faz exclusivamente o bem. Vamos a
ele tal como nos é dado.
Satã é de toda eternidade, como Deus, ou
posterior a Deus? Se ele é de toda eternidade, ele é incriado, e por
conseguinte igual a Deus. Deus então não é mais único; há o Deus do bem e
o Deus do mal.
É ele posterior? Então é uma criatura de Deus. Visto que
não faz senão o mal, que é incapaz de fazer o bem e de se
arrepender, Deus criou um ser votado ao mal para sempre. Se o mal não é
obra de Deus, mas a de uma de suas criaturas predestinadas a fazê-lo,
Deus é sempre seu primeiro autor, e então ele não é infinitamente bom. O
mesmo acontece com todos os seres maus chamados demônios.
8. Durante muito tempo, foi essa a crença sobre esse ponto. Hoje,
diz-se*: “Deus, que é a bondade e a santidade por essência, não os
criara maus e malfazejos. Sua mão paterna, que gosta de espalhar sobre
todas as suas obras um reflexo de suas perfeições infinitas, cumulara-os
dos dons mais magníficos. Às qualidades sobre-eminentes de sua
natureza, ela acrescentara a generosidade de sua graça; ela os fizera em
tudo semelhantes aos Espíritos sublimes que estão na glória e na
felicidade; repartidos em todas as suas ordens e misturados em todas as
suas fileiras, eles tinham o mesmo fim e os mesmos destinos; seu chefe
foi o mais belo arcanjo. Eles poderiam ter, também, merecido ser
confirmados para sempre na justiça e admitidos a gozar eternamente da
bem-aventurança dos céus. Este último favor teria sido o auge de todos
os outros favores de que eram objeto; mas ele devia ser o preço de sua
docilidade, e eles se tornaram indignos dele; perderam-no por uma
revolta audaciosa e insensata.”
“Qual foi o obstáculo à sua
perseverança? Que verdade eles ignoraram? Que ato de fé e de adoração
recusaram a Deus? A Igreja e os anais da história santa não o dizem de
uma maneira positiva; mas parece certo que eles não aquiesceram nem à
mediação do Filho de Deus para eles mesmos, nem à exaltação da natureza
humana em Jesus Cristo.
“O Verbo divino, pelo qual todas as coisas
foram feitas, é também o único mediador e salvador, no céu e na terra. O
fim sobrenatural não foi dado aos anjos e aos homens a não ser em
previsão de sua encarnação e de seus méritos; pois não há nenhuma
proporção entre as obras dos Espíritos mais eminentes e essa recompensa,
que não é senão o próprio Deus; nenhuma criatura poderia ter aí chegado
sem essa intervenção maravilhosa e sublime de caridade. Ora, para
preencher a distância infinita que separa a essência divina das obras de
suas mãos, era preciso que ele reunisse em sua pessoa os dois extremos,
e que associasse à sua divindade a natureza do anjo ou a do homem; e
ele fez a escolha da natureza humana.
“Esse desígnio, concebido desde a
eternidade, foi manifestado aos anjos antes de seu cumprimento; O
Homem-Deus foi-lhes mostrado no futuro como Aquele que devia
confirmá-los em graça e introduzi-los na glória, com a condição de
que eles o adorariam na terra durante sua missão, e no céu pelos séculos
dos séculos. Revelação inesperada, visão deslumbrante para os corações
generosos e reconhecidos, mas mistério profundo, opressivo para os
Espíritos soberbos! Esse fim sobrenatural, esse peso imenso de glória
que lhes era proposto não seria portanto unicamente a recompensa de seus
méritos pessoais! Jamais poderiam atribuir a si mesmos os títulos e a
possessão! Um mediador entre eles e Deus, que injúria feita à sua
dignidade! A preferência gratuita concedida à natureza humana, que
injustiça! que prejuízo a seus direitos! Essa humanidade, que lhes é tão
inferior, vê-lo-ão um dia, deificada por sua união com o Verbo, e
sentada à direita de Deus, num trono resplandecente? Consentirão em lhe
oferecer eternamente suas homenagens e suas adorações?
“Lúcifer e a
terça parte dos anjos sucumbiram a esses pensamentos de orgulho e de
ciúme. São Miguel, e com ele a maioria exclamaram: Quem é semelhante a
Deus? Ele é o senhor de seus dons e o soberano Senhor de todas as
coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro que será imolado pela salvação do
mundo! Mas o chefe dos rebeldes, esquecendo-se de que devia a seu
Criador sua nobreza e suas prerrogativas, escutou apenas sua temeridade,
e disse: ‘Sou eu que subirei ao céu; estabelecerei minha morada acima
dos astros; sentar-me-ei na montanha da aliança, nos flancos do Aquilão;
dominarei as nuvens mais altas, e serei semelhante ao Altíssimo.’ Os
que partilhavam seus sentimentos acolheram suas palavras com um murmúrio
de aprovação; e eles se encontravam em todas as ordens da hierarquia;
mas sua multidão não os colocou ao abrigo do castigo.”
* As citações seguintes são extraídas da pastoral de Monsenhor Cardeal Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1865. Em razão do mérito pessoal e da posição do
autor, pode-se considerá-las como a última expressão da Igreja sobre a doutrina dos demônios.9. Esta doutrina suscita várias objeções.
1.º —
Se Satã e os demônios eram anjos, é porque eram perfeitos; como, sendo
perfeitos, puderam falhar e ignorar a esse ponto a autoridade de Deus,
na presença do qual se encontravam? Conceber-se-ia ainda que, se não
tivessem chegado a esse grau eminente senão gradualmente e depois de
terem passado pelo caminho da imperfeição, pudessem ter tido um retorno
deplorável; mas o que torna a coisa mais incompreensível é que no-los
representam como tendo sido criados perfeitos. A consequência dessa
teoria é esta: Deus quisera criar neles seres perfeitos, visto que os
cumulara de todos os dons, e enganou-se; portanto, segundo a Igreja, Deus
não é infalível.*
2.º — Visto que nem a Igreja nem os anais da história
santa se explicam sobre a causa da revolta dos anjos contra Deus, que
somente parece certo que ela esteve na recusa deles de reconhecer a
missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e tão
detalhado da cena que ocorreu naquela ocasião? De que fonte foram
tiradas as palavras tão nítidas relatadas como tendo sido pronunciadas, e
até os simples murmúrios? De duas coisas uma: ou a cena é verdadeira,
ou não o é. Se é verdadeira, não há nenhuma incerteza, e então por que a
Igreja não decide a questão? Se a Igreja e a história se calam, se a
causa só parece certa, não é senão uma suposição, e a descrição da cena é
uma obra de imaginação.**
3.º — As palavras atribuídas a Lúcifer acusam uma
ignorância que é espantoso encontrar num arcanjo que, por sua própria
natureza e no grau em que está colocado, não deve compartilhar, sobre a
organização do universo, os erros e os preconceitos que os homens
professaram até que a ciência tivesse vindo esclarecê-los. Como pode ele
dizer: “Estabelecerei minha morada acima dos astros; dominarei as
nuvens mais altas”? É sempre a antiga crença na terra como centro do
mundo, no céu das nuvens que se estende até às estrelas, à região
limitada das estrelas formando abóbada, e que a astronomia nos mostra
disseminadas ao infinito, no espaço infinito. Como se sabe hoje que as
nuvens não se estendem além de duas léguas da superfície da terra, para
dizer que ele dominará as nuvens mais altas, e falar das montanhas, era
preciso que a cena se passasse na superfície da terra, e que fosse aí a
morada dos anjos; se essa morada é nas regiões superiores, era inútil
dizer que ele se elevaria além das nuvens. Fazer os anjos terem uma
linguagem marcada pela ignorância, é admitir que os homens, hoje, sabem
mais do que os anjos. A Igreja sempre cometeu o erro de não levar em
conta os progressos da ciência.
* Esta doutrina monstruosa é afirmada por Moisés, quando diz (Gênesis, cap. VI, v. 6 e 7): “Ele
se
arrependeu de ter feito o homem na terra. E, tocado de dor até ao fundo do coração, — ele
disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei; exterminarei tudo, desde o
homem até os animais, desde tudo o que rasteja sobre a terra até os pássaros do céu: pois
eu
me arrependo
de tê-los feito.’”
Um Deus que se arrepende do que fez não é perfeito nem infalível: logo, não é Deus.
São, no entanto, as palavras que a Igreja proclama como verdades santas. Também não se vê
muito bem o que havia em comum entre os animais e a perversidade dos homens para
merecerem seu extermínio.
** Encontra-se em Isaías, cap. XIV, v. 11 e seguintes: — “Teu orgulho foi precipitado nos
infernos; teu corpo morto caiu por terra; tua cama será tua podridão, e tua vestimenta serão os
vermes. — Como caíste do céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao alvorecer? Como foste
jogado na terra, tu que golpeavas as nações; — que dizias em teu coração: Subirei ao céu,
estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei na montanha da aliança, nos
flancos do Aquilão; colocar-me-ei acima das nuvens mais altas, e serei semelhante ao
Altíssimo? — E no entanto foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais profundo dos
abismos. — Aqueles que te virem aproximar-se-ão de ti, e, depois de te terem encarado, dir-te-ão: Foi esse homem que apavorou a terra, que semeou o terror nos reinos, que fez do mundo
um deserto, que destruiu suas cidades, e que manteve acorrentados aqueles que fizera
prisioneiros?”
Estas palavras do profeta não são relativas à revolta dos anjos, mas uma alusão ao
orgulho e à queda do rei da Babilônia, que mantinha os judeus em cativeiro, assim como
provam os últimos versículos. O rei da Babilônia é designado, por alegoria, sob o nome de
Lúcifer, mas não é aí feita nenhuma menção à cena descrita anteriormente. Estas palavras são
as do rei que dizia em seu coração, e se colocava, por seu orgulho, acima de Deus, cujo povo
mantinha cativo. A predição da libertação dos judeus, da ruína da Babilônia e da derrota dos
assírios é, aliás, o assunto exclusivo deste capítulo.10. A resposta à primeira objeção acha-se na passagem seguinte:
“A
Escritura e a tradição dão o nome de céu ao lugar onde os anjos haviam
sido postos no momento de sua criação. Mas não era o céu dos céus, o céu
da visão beatífica, onde Deus se mostra a seus eleitos face a face, e
onde seus eleitos o contemplam sem esforços e sem nuvens; pois, ali, não
há mais perigo, nem possibilidade de pecar; a tentação e a fraqueza são
aí desconhecidas; a justiça, a alegria, a paz reinam numa imutável
segurança; a santidade e a glória são inadmissíveis. Era portanto uma
outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, onde essas
nobres criaturas, amplamente favorecidas pelas comunicações divinas,
deviam recebê-las e aderir a elas pela humildade da fé, antes de serem
admitidas a ver-lhes claramente a realidade na própria essência de
Deus.”
Resulta do que precede que os anjos que falharam pertenciam a uma
categoria menos elevada, menos perfeita, e que eles ainda não tinham
chegado ao lugar supremo onde a falta é impossível. Seja; mas então há
aqui uma contradição manifesta, pois está dito antes que: “Deus os
fizera em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes; que, repartidos em
todas as ordens e misturados a todas as suas fileiras, eles tinham o
mesmo fim e o mesmo destino; que seu chefe era o mais belo arcanjo.” Se
eles foram feitos em tudo semelhantes aos outros, não eram então de uma
natureza inferior; se estavam misturados a todas as suas fileiras, não
estavam num lugar especial. A objeção subsiste portanto inteiramente.
11. Há outra objeção que é, incontestavelmente, a mais grave e mais séria.
Está
dito: “Esse desígnio (a mediação do Cristo), concebido desde a
eternidade, foi manifestado aos anjos muito tempo antes de seu
cumprimento.” Logo, Deus sabia desde a eternidade que os anjos, tanto
quanto os homens, precisariam dessa mediação. Ele sabia, ou não sabia,
que certos anjos falhariam; que essa queda acarretaria para eles a
danação eterna sem esperança de retorno; que eles seriam destinados a
tentar os homens; que aqueles dentre estes últimos que se deixassem
seduzir sofreriam o mesmo destino. Se ele o sabia, criou portanto esses
anjos, com conhecimento de causa, para sua perda irrevogável e para a da
maior parte do gênero humano. Diga-se o que se quiser, é impossível
conciliar sua criação, numa semelhante previsão, com a soberana bondade.
Se ele não o sabia, não era onipotente. Em ambos os casos, é a negação
de dois atributos sem a plenitude dos quais Deus não seria Deus.
12. Se se admite a falibilidade dos anjos, como a dos homens, a punição é
uma consequência natural e justa da falta; mas se se admitir ao mesmo
tempo a possibilidade do resgate, pelo retorno ao bem, a retomada da
graça após o arrependimento e a expiação, nada há que desminta a bondade
de Deus. Deus sabia que eles falhariam, que seriam punidos, mas sabia
também que esse castigo temporário seria um meio de fazê-los compreender
sua falta e viraria a favor deles. Assim se verificaria esta afirmação
do profeta Ezequiel: “Deus não quer a morte do pecador, mas sua
salvação.” * O que seria a negação dessa bondade é a inutilidade do
arrependimento e a impossibilidade do retorno ao bem. Nessa hipótese, é
portanto rigorosamente exato dizer que: “Esses anjos, desde sua criação,
visto que Deus não podia ignorá-lo, foram votados ao mal para sempre, e
predestinados a se tornarem demônios, para arrastar os homens ao mal.”
* Ver acima, cap. VII, n.º 20, citação de Ezequiel.13.
Vejamos agora qual é seu destino e o que fazem.
“Mal sua revolta
rebentou na linguagem dos Espíritos, ou seja, nos ímpetos de seus
pensamentos, foram banidos irrevogavelmente da cidade celeste e
precipitados no abismo.
“Por estas palavras, entendemos que eles
foram relegados a um lugar de suplícios, onde sofrem a pena do fogo,
conforme este texto do Evangelho, que saiu da própria boca do Salvador:
‘Ide, malditos, ao fogo eterno que foi preparado para o demônio e para
seus anjos.’ São Pedro diz expressamente: ‘que Deus os entregou às
correntes e às torturas do inferno; mas nem todos aí permanecem para
sempre; é somente no fim do mundo que eles aí serão encerrados para
sempre, com os reprovados. Presentemente, Deus permite que eles ocupem
ainda um lugar nessa criação à qual pertencem; na ordem das coisas à
qual se vincula sua existência, nas relações enfim que eles deviam ter
com o homem, e da qual fazem o mais pernicioso abuso. Enquanto uns estão
em sua morada tenebrosa, e servem de instrumento à justiça divina,
contra as almas desafortunadas que seduziram, uma infinidade de outros,
formando legiões invisíveis, sob o comando de seus chefes, residem nas
camadas inferiores de nossa atmosfera e percorrem todas as partes do
globo. Misturam-se a tudo o que acontece aqui embaixo, e tomam quase
sempre parte muito ativa nisso.’”
No que se refere às palavras do
Cristo, sobre o suplício do fogo eterno, esta questão é tratada no
capítulo IV, “O Inferno”.
14. Segundo esta doutrina, só uma parte dos demônios está no inferno; a
outra vagueia em liberdade, misturando-se a tudo o que ocorre aqui
embaixo, entregando-se ao prazer de fazer o mal, e isso até o fim do
mundo, cuja época indeterminada não terá lugar tão cedo. Por que então
essa diferença? São eles menos culpados? Seguramente não. A menos que
eles saiam de lá por sua vez, o que pareceria resultar desta passagem:
“Enquanto uns estão em sua morada tenebrosa, e servem aí de instrumento à
justiça divina contra as almas desafortunadas que seduziram.”
Suas
funções consistem, portanto, em atormentar as almas que seduziram.
Assim, eles não estão encarregados de punir aquelas que são culpadas de
faltas livre e voluntariamente cometidas, mas daquelas que eles
provocaram. Eles são, ao mesmo tempo, a causa da falta e o instrumento
do castigo; e, coisa que a justiça humana, por mais imperfeita que seja,
não admitiria, a vítima que sucumbe, por fraqueza, à ocasião que se faz
nascer para tentá-la, é punida tão severamente quanto o agente
provocador que emprega o ardil e a astúcia; mais severamente mesmo, pois
ela vai para o inferno, ao deixar a terra, para jamais de lá sair, e lá
sofrer sem trégua nem misericórdia durante a eternidade, ao passo que
aquele que é a causa primeira de sua falta goza da prorrogação e da
liberdade até o fim do mundo! A justiça de Deus não é então mais
perfeita do que a dos homens?
15. Não é tudo. “Deus permite que eles ocupem ainda um lugar nessa
criação, nas relações que eles deviam ter com o homem e da qual fazem o
mais pernicioso abuso.” Deus podia ignorar o abuso que eles fariam da
liberdade que lhes concede? Então por que ele a concede? Logo, é com
conhecimento de causa que ele entrega suas criaturas à mercê deles,
sabendo, em virtude de sua onisciência, que elas sucumbirão e terão o
destino dos demônios. Não era suficiente a própria fraqueza delas, sem
permitir que fossem estimuladas ao mal por um inimigo tanto mais
perigoso quanto invisível? Ainda, se o castigo fosse apenas temporário e
o culpado pudesse redimir-se pela reparação! Mas não: está condenado
para toda a eternidade. Seu arrependimento, seu retorno ao bem, seus
lamentos são supérfluos.
Os demônios são assim os agentes provocadores
predestinados a recrutar almas para o inferno, e isso com a permissão de
Deus, que sabia, criando essas almas, o destino que lhes estava
reservado. O que se diria, na terra, de um juiz que fizesse isso para
povoar as prisões? Estranha ideia que nos dão da Divindade, de um Deus
cujos atributos essenciais são a soberana justiça e a soberana bondade! E
é em nome de Jesus Cristo, daquele que não pregou senão o amor, a
caridade e o perdão, que se ensinam semelhantes doutrinas! Houve um
tempo em que tais anomalias passavam desapercebidas; não se
compreendiam, não se sentiam; o homem, curvado sob o jugo do despotismo,
submetia cegamente sua razão, ou melhor, abdicava de sua razão; mas
hoje a hora da emancipação soou: ele compreende a justiça, ele a quer
durante sua vida e após a morte; é por isso que ele diz: “Isso não
existe, isso não é possível, ou Deus não é Deus!”
16. “O castigo segue por toda a parte esses seres caídos e malditos, por
toda a parte eles carregam seu inferno consigo: não têm mais paz nem
repouso; as próprias doçuras da esperança se transformaram para eles em
amargura: ela lhes é odiosa. A mão de Deus atingiu-os no próprio ato de
seu pecado, e sua vontade se obstinou no mal. Tornados perversos, não
querem cessar de sê-lo, e são-no para sempre.
“Eles são, depois do
pecado, o que o homem é depois da morte. A reabilitação daqueles que
caíram é portanto impossível; sua perda é doravante sem volta, e eles
perseveram em seu orgulho, perante Deus, em seu ódio contra o Cristo, em
seu ciúme contra a humanidade.
“Não tendo podido apropriar-se da
glória do céu, pelo impulso de sua ambição, esforçam-se para estabelecer
seu império na terra e banir daí o reino de Deus. O Verbo feito carne
cumpriu, apesar deles, seus desígnios para a salvação e a glória da
humanidade; todos os meios de ação de que eles dispõem são dedicados a
lhe roubar as almas que ele resgatou; o ardil e a importunação, a
mentira e a sedução, eles lançam mão de tudo para levá-las ao mal e
consumar sua ruína.
“Com tais inimigos, a vida do homem, desde o berço
até o túmulo, não pode ser, infelizmente, senão uma luta perpétua, pois
eles são poderosos e infatigáveis.
“Esses inimigos, com efeito, são
os mesmos que, após terem introduzido o mal no mundo, conseguiram cobrir
a terra com as espessas trevas do erro e do vício; os que, durante
longos séculos, se fizeram adorar como deuses, e que reinaram soberanos
sobre os povos da antiguidade; os que, por fim, exercem ainda seu
império tirânico sobre as regiões idólatras, e que fomentam a desordem e
o escândalo até no seio das sociedades cristãs.
“Para compreender todos
os recursos que eles têm a serviço de sua maldade, basta notar que
eles não perderam nada das prodigiosas faculdades que são apanágio da
natureza angélica. Sem dúvida, o futuro e sobretudo a ordem sobrenatural
têm mistérios que Deus se reservou e que eles não podem descobrir; mas
sua inteligência é bem superior à nossa, porque eles percebem numa vista
d’olhos os efeitos em suas causas, e as causas em seus efeitos. Essa
penetração permite-lhes anunciar de antemão acontecimentos que escapam
às nossas conjeturas. A distância e a diversidade dos lugares se apagam
diante de sua agilidade. Mais prontos do que o relâmpago, mais rápidos
do que o pensamento, eles se acham quase ao mesmo tempo em diversos
pontos do globo, e podem descrever ao longe as coisas de que são
testemunhas no próprio momento em que elas se realizam.
“As leis
gerais pelas quais Deus rege e governa este universo não são do domínio
deles; eles não podem infringi-la, nem por conseguinte predizer ou
realizar verdadeiros milagres; mas possuem a arte de imitar e
falsificar, dentro de certos limites, as obras divinas; sabem que
fenômenos resultam da combinação dos elementos, e predizem com certeza
os que acontecem naturalmente, como os que eles mesmos têm o poder de
produzir. Daí, esses numerosos oráculos, esses prestígios
extraordinários cuja recordação os livros sagrados e profanos nos
guardaram, e que serviram de base e de alimento a todas as superstições.
“Sua
substância simples e imaterial subtrai-os ao nosso olhar; eles estão a
nosso lado sem serem percebidos; impressionam nossa alma sem tocar
nossos ouvidos; cremos obedecer a nosso próprio pensamento, enquanto
sofremos suas tentações e sua funesta influência. Nossas disposições, ao
contrário, são-lhes conhecidas pelas impressões que sentimos, e eles
nos atacam, habitualmente, pelo nosso lado fraco. Para nos seduzirem mais
seguramente, têm o costume de nos apresentar iscas e sugestões
conformes a nossas tendências. Modificam sua ação segundo as
circunstâncias e de acordo com os traços característicos de cada
temperamento. Mas suas armas favoritas são a mentira e a hipocrisia.”
17. O castigo, diz-se, segue-os por toda a parte; não têm mais paz nem
repouso. Isto não destrói a observação feita sobre a prorrogação de que
gozam os que não estão no inferno, prorrogação tanto menos justificada
quanto, estando fora, eles fazem mais mal. Sem dúvida nenhuma, eles não
são bem-aventurados como os bons anjos; mas não conta nada a liberdade
de que gozam? Se não têm a felicidade moral que a virtude concede, são
incontestavelmente menos desgraçados que seus cúmplices que estão nas
chamas. E depois, para o malvado, há uma espécie de gozo em fazer o mal
com toda a liberdade. Perguntai a um criminoso se lhe é indiferente
estar na prisão ou correr pelos campos, e cometer suas más ações à sua
vontade. A posição é exatamente a mesma.
O remorso, diz-se,
persegue-os sem trégua nem misericórdia. Mas esquece-se que o remorso é o
precursor imediato do arrependimento, se não for já o próprio
arrependimento. Ora, diz-se, “Tornados perversos, não querem cessar de
sê-lo, e são-no para sempre.” Visto que não querem cessar de ser
perversos, é que não têm remorsos; se tivessem o menor remorso,
cessariam de fazer o mal e pediriam perdão. Logo, o remorso não é para
eles um castigo.
18. “Eles são, depois do pecado, o que o homem é depois da morte. A
reabilitação daqueles que caíram é portanto impossível.” De onde vem
essa impossibilidade? Não se compreende que ela seja a consequência da
semelhança deles com o homem depois da morte, frase que, de resto, não é
muito clara. Essa impossibilidade vem da vontade deles ou da vontade de
Deus? Se provém da vontade deles, denota uma extrema perversidade, um
endurecimento absoluto no mal; desde logo, não se compreende que seres
tão fundamentalmente maus tenham podido um dia ser anjos de virtude, e
que, durante o tempo indefinido que passaram entre esses últimos, não
tenham deixado transparecer nenhum traço de sua má natureza. Se é a
vontade de Deus, compreende-se ainda menos que ele inflija, como
castigo, a impossibilidade do retorno ao bem, após uma primeira falta. O
Evangelho não diz nada semelhante.
19.
“Sua perda, acrescenta-se, é doravante sem retorno, e eles perseveram
em seu orgulho perante Deus.” De que lhes serviria não perseverar,
visto que todo arrependimento é inútil? Se tivessem a esperança de uma
reabilitação, a qualquer custo que fosse, o bem teria um objetivo para
eles, ao passo que assim não o tem. Se eles perseveram no mal, é
portanto porque a porta da esperança lhes está fechada. E por que Deus a
fecha? Para se vingar da ofensa que recebeu da falta de submissão
deles. Assim, para saciar seu ressentimento contra alguns culpados, ele
prefere vê-los, não só sofrer, mas fazer o mal em vez do bem; induzir ao
mal e impelir à perdição eterna todas as suas criaturas do gênero
humano, ao passo que bastava um simples ato de clemência para evitar tão
grande desastre, e um desastre previsto desde a eternidade!
Tratava-se,
por ato de clemência, de uma graça pura e simples que talvez fosse um
encorajamento ao mal? Não, mas de um perdão condicional, subordinado a
um sincero retorno ao bem. Em vez de uma palavra de esperança e de
misericórdia, faz-se Deus dizer: Pereça toda a raça humana, antes que
minha vingança! E espantam-se que, com tal doutrina, haja incrédulos e
ateus! É assim que Jesus nos representa seu Pai? Ele que nos faz uma lei
expressa do esquecimento e do perdão das ofensas, que nos diz para
pagar o mal com o bem, que põe o amor aos inimigos em primeiro lugar
entre as virtudes que devem valer-nos o céu, gostaria ele então que os
homens fossem melhores, mais justos, mais compassivos do que o próprio
Deus?
Os demônios segundo o Espiritismo.
20.
Segundo o Espiritismo, nem os anjos nem os demônios são seres à
parte; a criação dos seres inteligentes é una. Unidos a corpos
materiais, eles constituem a humanidade que povoa a terra e as outras
esferas habitadas; desprendidos desse corpo, eles constituem o mundo
espiritual ou dos Espíritos que povoam os espaços. Deus criou-os
perfectíveis; deu-lhes por objetivo a perfeição, e a bem-aventurança que
é sua consequência, mas não lhes deu a perfeição; quis que eles a
devessem a seu trabalho pessoal, a fim de que tivessem esse mérito.
Desde o instante de sua formação eles progridem, quer no estado de
encarnação, quer no estado espiritual; chegados ao apogeu, são puros
Espíritos, ou anjos segundo a denominação vulgar; de sorte que, desde o
embrião do ser inteligente até o anjo, há uma cadeia ininterrupta da
qual cada elo marca um grau no progresso.
Resulta daí que existem
Espíritos em todos os graus de avanço moral e intelectual, segundo
estejam no alto, na parte inferior, ou no meio da escala. Há Espíritos,
por conseguinte, em todos os graus de saber e de ignorância, de bondade e
de maldade. Nas posições inferiores, há os que estão ainda
profundamente inclinados ao mal, e nele se comprazem. Pode-se chamá-los
demônios, se se quiser, pois são capazes de todas as maldades atribuídas
a estes últimos. Se o Espiritismo não lhes dá esse nome, é que se
vincula a ele a ideia de seres distintos da humanidade, de uma natureza
essencialmente perversa, devotados ao mal por toda a eternidade e
incapazes de progredir no bem.
21. Segundo a doutrina da Igreja, os demônios foram criados bons, e
tornaram-se maus por sua desobediência: são anjos caídos; foram
colocados por Deus no alto da escala, e desceram. Segundo o Espiritismo,
são Espíritos imperfeitos, mas que se aperfeiçoarão; ainda estão na
parte inferior da escala, e subirão.
Aqueles que, por sua indiferença,
sua negligência, sua obstinação e sua má vontade permanecem mais tempo
nas posições inferiores, carregam essa pena, e o hábito do mal
torna-lhes mais difícil sair dele; mas chega um tempo em que se cansam
dessa existência penosa e dos sofrimentos que dela decorrem; é então
que, comparando sua situação com a dos bons Espíritos, compreendem que
seu interesse está no bem, e procuram aperfeiçoar-se, mas fazem-no por
sua própria vontade e sem serem coagidos. Estão submetidos à lei do
progresso por sua aptidão a progredir, mas não progridem contra sua
vontade. Deus lhes fornece incessantemente os meios para tal, mas eles
são livres de aproveitá-los ou não. Se o progresso fosse obrigatório,
eles não teriam nenhum mérito, e Deus quer que eles tenham o de suas
obras; ele não coloca nenhum na primeira posição por privilégio, mas a
primeira posição está aberta a todos, e eles só chegam lá por seus
esforços. Os anjos mais elevados conquistaram seu grau como os outros
passando pelo caminho comum.
22. Chegados a certo grau de purificação, os Espíritos têm missões em
proporção com seu avanço; eles cumprem todas as que são atribuídas aos
anjos das diferentes ordens. Como Deus criou desde a eternidade, desde a
eternidade houve Espíritos para satisfazer todas as necessidades do
governo do universo. Uma única espécie de seres inteligentes, submetidos
à lei do progresso, basta portanto para tudo. Esta unidade na criação,
com o pensamento de que todos têm um ponto de partida, o mesmo caminho a
percorrer, e que eles sobem por seu próprio mérito, corresponde bem
melhor à justiça de Deus, do que a criação de espécies diferentes mais
ou menos favorecidas por dons naturais que seriam outros tantos
privilégios.
23.
A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos demônios e das
almas humanas, não admitindo a lei do progresso, e vendo porém seres em
diferentes graus, concluiu daí que eles eram o produto de outras tantas
criações especiais. Ela chega assim a fazer de Deus um pai parcial,
dando tudo a alguns de seus filhos, ao passo que impõe aos outros o mais
rude trabalho. Não é espantoso que durante muito tempo os homens não
tenham achado nada de chocante nessas preferências, enquanto faziam o
mesmo a respeito de seus próprios filhos, pelos direitos de
primogenitura e os privilégios do nascimento; podiam eles crer fazer
mais mal do que Deus? Mas hoje em dia o círculo das ideias se alargou;
eles veem mais claro; têm noções mais nítidas da justiça; querem-na para
eles, e se nem sempre a encontram na terra, esperam ao menos
encontrá-la mais perfeita no céu; é por isso que toda doutrina em que a
justiça divina não aparece ao homem em sua maior pureza, repugna à sua
razão.
Capítulo X — Intervenção dos demônios nas manifestações modernas
1.
Os fenômenos espíritas modernos chamaram a atenção para os fatos
análogos que ocorreram em todas as épocas, e a história nunca foi tão
consultada a esse respeito quanto nestes últimos tempos. Da semelhança
dos efeitos, concluiu-se pela unidade da causa. Como para todos os fatos
extraordinários cuja razão é desconhecida, a ignorância viu aí uma
causa sobrenatural, e a superstição amplificou-os acrescentando-lhes
crenças absurdas; daí uma multidão de lendas que, na maior parte, são
uma mistura de um pouco de verdade e de muita mentira.
2.
As doutrinas sobre o demônio, que prevaleceram por tanto tempo,
haviam exagerado tanto o seu poder, que tinham, por assim dizer, feito
esquecer Deus; é por isso que lhe concediam o mérito de tudo o que
parecia ultrapassar o poder humano; em toda a parte aparecia a mão de
Satã; as melhores coisas, as descobertas mais úteis, todas aquelas que
podiam tirar o homem da ignorância e alargar o círculo de suas ideias,
foram muitas vezes olhadas como obras diabólicas. Os fenômenos
espíritas, multiplicados em nossos dias, mais bem observados sobretudo
com a ajuda das luzes da razão e dos dados da ciência, confirmaram, é
verdade, a intervenção de inteligências ocultas, mas agindo sempre
dentro dos limites das leis da natureza, e revelando, por sua ação, uma
nova força e leis desconhecidas até este dia. A questão se reduz,
portanto, a saber de que ordem são essas inteligências.
Enquanto não
se teve sobre o mundo espiritual senão noções incertas ou sistemáticas,
pôde haver equívoco; mas hoje que observações rigorosas e estudos
experimentais esclareceram a natureza dos Espíritos, sua origem e seu
destino, seu papel no universo e seu modo de ação, a questão está
resolvida pelos fatos. Sabe-se agora que são almas daqueles que viveram
na Terra. Sabe-se também que as diversas categorias de Espíritos bons e
maus não constituem seres de diferentes espécies, mas assinalam apenas
graus diversos de avanço. Segundo a posição que ocupam, em razão de seu
desenvolvimento intelectual e moral, aqueles que se manifestam
apresentam-se sob aspectos muito opostos, o que não os impede de terem
saído da grande família humana, tanto quanto o selvagem, o bárbaro e o
homem civilizado.
3.
Sobre este ponto, como sobre muitos outros, a Igreja mantém suas
velhas crenças no que se refere aos demônios. Ela diz: “Temos princípios
que não variaram desde há dezoito séculos e que são imutáveis.” Seu
erro é precisamente não levar em conta o progresso das ideias, e crer
Deus muito pouco sábio para não proporcionar a revelação ao
desenvolvimento da inteligência, para usar com os homens primitivos a
mesma linguagem que com os homens avançados. Se, enquanto a humanidade
avança, a religião se agarra aos velhos erros, tanto em matéria
espiritual quanto em matéria científica, chega um momento em que ela é
ultrapassada pela incredulidade.
4.
Eis como a Igreja explica a intervenção exclusiva dos demônios nas
manifestações modernas.*
“Em sua intervenção exterior, os demônios não
estão menos atentos a dissimular sua presença, para afastar as
suspeitas. Sempre ardilosos e pérfidos, atraem o homem para as suas
emboscadas antes de lhe imporem as correntes da opressão e da servidão.
Aqui, despertam a curiosidade por fenômenos e jogos pueris; ali,
impressionam pelo espanto e subjugam pela atração do maravilhoso. Se o
sobrenatural aparece, se seu poder os desmascara, eles acalmam e
apaziguam as apreensões, solicitam a confiança, provocam a
familiaridade. Ora se fazem passar por divindades e bons gênios; ora
tomam emprestados os nomes e mesmo os traços dos mortos que deixaram uma
memória entre os vivos. Graças a essas fraudes dignas da antiga
serpente, eles falam, e são escutados; eles dogmatizam, e crê-se neles;
misturam a suas mentiras algumas verdades, e fazem aceitar o erro sob
todas as formas. É aí que desembocam as pretensas revelações de
além-túmulo; é para obter esse resultado que a madeira, a pedra, as
florestas e as fontes, o santuário dos ídolos, o pé das mesas, a mão das
crianças, proferem oráculos; é por isso que a pitonisa profetiza em seu
delírio, e que o ignorante, num misterioso sono, se torna subitamente o
doutor da ciência. Enganar e perverter, tal é, em toda parte e em todos
os tempos, o objetivo final dessas estranhas manifestações.
“Os
resultados surpreendentes dessas observâncias ou desses atos, na maioria
bizarros e ridículos, não podendo proceder de sua virtude intrínseca,
nem da ordem estabelecida por Deus, não se pode esperá-los a não ser do
concurso das potências ocultas. Tais são, notadamente, os fenômenos
extraordinários obtidos, em nossos dias, pelos procedimentos, em
aparência inofensivos do magnetismo, e o órgão inteligente das mesas
falantes. Por meio dessas operações da magia moderna, vemos
reproduzirem-se entre nós as evocações e os oráculos, as consultas, as
curas e os prestígios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros
das sibilas. Como antigamente, comanda-se a madeira e a madeira obedece;
interroga-se, e ela responde em todas as línguas e sobre todas as
questões; fica-se na presença de seres invisíveis que usurpam os nomes
dos mortos, e cujas pretensas revelações são marcadas pelo cunho da
contradição e da mentira; formas ligeiras e sem consistência aparecem de
repente, e se mostram dotadas de força sobre-humana.
“Quais são os
agentes secretos desses fenômenos, e os verdadeiros atores dessas cenas
inexplicáveis? Os anjos não aceitariam esses papéis indignos, e não se
prestariam a todos os caprichos de uma vã curiosidade. As almas dos
mortos, que Deus proíbe consultar, permanecem na morada que sua justiça
lhes designou, e elas não podem, sem sua permissão, pôr-se às ordens dos
vivos. Os seres misteriosos que acorrem assim ao primeiro apelo do
herético e do ímpio como do fiel, do crime como da inocência, não são
nem os enviados de Deus, nem os apóstolos da verdade e da salvação, mas
os sequazes do erro e do inferno. Apesar do cuidado que tomam de se
esconder sob os nomes mais veneráveis, traem-se pelo vazio de suas
doutrinas, não menos do que pela baixeza de seus atos e a incoerência de
suas palavras. Esforçam-se por apagar do símbolo religioso os dogmas do
pecado original, da ressurreição dos corpos, da eternidade das penas, e
toda a revelação divina, a fim de retirar às leis sua verdadeira
sanção, e abrir ao vício todas as barreiras. Se suas sugestões pudessem
prevalecer, elas formariam uma religião cômoda, para uso do socialismo e
de todos aqueles que a noção do dever e da consciência importuna. A
incredulidade de nosso século preparou-lhes o caminho. Possam as
sociedades cristãs, por um retorno sincero à fé católica, escapar ao
perigo desta nova e temível invasão!”
* As citações deste capítulo são tiradas da mesma pastoral que as do capítulo precedente, do
qual são a sequência, e têm a mesma autoridade.
5. Toda esta teoria repousa sobre este princípio, de que os anjos e os
demônios são seres distintos das almas dos homens, e que estas são o
produto de uma criação especial, inferior mesmo aos demônios, em
inteligência, em conhecimentos e faculdades de toda sorte. Ela conclui
pela intervenção exclusiva dos maus anjos nas manifestações antigas e
modernas atribuídas aos Espíritos dos mortos.
A possibilidade para as
almas de se comunicarem com os vivos é uma questão de fato, um resultado
de experiência e de observação que não discutiremos aqui. Mas
admitamos, por hipótese, a doutrina acima, e vejamos se ela não se
destrói por seus próprios argumentos.
6.
Nas três categorias de anjos, segundo a Igreja, uma ocupa-se
exclusivamente do céu; outra do governo do universo; a terceira está
encarregada da terra, e nesta se encontram os anjos da guarda nomeados
para a proteção de cada indivíduo. Somente uma parte dos anjos desta
categoria tomou parte na revolta e foi transformada em demônios. Se Deus
permitiu a estes últimos impelir os homens à sua perda, pelas sugestões
de todos os gêneros e manifestações ostensivas, por que, se ele é
soberanamente justo e bom, lhes teria concedido o imenso poder de que
gozam, deixado uma liberdade de que fazem tão pernicioso uso, sem
permitir aos bons anjos fazerem um contrapeso por manifestações
semelhantes dirigidas para o bem? Admitamos que Deus tenha dado uma
parte igual de poder aos bons e aos maus, o que seria já um favor
exorbitante em benefício destes últimos, o homem ao menos teria sido
livre para escolher; mas dar-lhes o monopólio da tentação, com a
faculdade de simular o bem a ponto de enganarem, para seduzir mais
facilmente, seria uma verdadeira armadilha montada à sua fraqueza, sua
inexperiência, sua boa fé; digamos mais: seria abusar de sua confiança
em Deus. A razão recusa-se a admitir tal parcialidade em benefício do
mal. Vejamos os fatos.
7.
Concedem-se aos demônios faculdades transcendentes; eles não perderam
nada de sua natureza angélica; têm o saber, a perspicácia, a
previdência, a clarividência dos anjos, e ademais, a astúcia, a
habilidade e o ardil em supremo grau. Seu objetivo é desviar os homens
do bem, e, acima de tudo, afastá-los de Deus para carregá-los para o
inferno do qual são os provedores e recrutadores.
Compreende-se que
eles se dirijam aos que estão no bom caminho e que estão perdidos para
eles se persistirem nesse caminho; compreende-se a sedução e o simulacro
do bem para atraí-los às suas redes; mas o que é incompreensível é que
eles se dirijam aos que já lhes pertencem de corpo e alma para levá-los
de volta a Deus e ao bem; ora, quem está mais em suas garras do que
aqueles que renega e blasfema Deus, que mergulha no vício e na desordem
das paixões? Já não está esse no caminho do inferno? Compreende-se que,
seguro de sua presa, ele a excite a rezar a Deus, a submeter-se à sua
vontade, a renunciar ao mal? que ele exalte aos olhos dele as delícias
da vida dos bons Espíritos, e lhe pinte com horror a posição dos maus?
Já se viu alguma vez um vendedor gabar a seus clientes a mercadoria do
vizinho em detrimento da sua e incitá-los a ir à loja dele? Um
recrutador depreciar a vida militar, e louvar o repouso da vida
doméstica? Dizer aos recrutas que terão uma vida de fadigas e de
privações; que têm dez chances em uma de ser mortos ou pelo menos perder
os braços e as pernas?
Entretanto, é esse o papel estúpido que se
faz o demônio representar, pois há um fato notório, é que em
consequência das instruções emanadas do mundo invisível, veem-se todos
os dias incrédulos e ateus levados de volta a Deus e rezarem com fervor,
o que nunca tinham feito; pessoas viciosas trabalharem com ardor no seu
aperfeiçoamento. Pretender que essa é a obra dos ardis do demônio é
fazer dele um verdadeiro néscio. Ora, como não se trata aqui de uma
suposição, mas de um resultado de experiência, e que contra um fato não
há denegação possível, é preciso concluir daí ou que o demônio é um
desastrado de primeiro grau, que não é nem tão ardiloso nem tão maligno
quanto se pretende, e por conseguinte não é muito de se temer, visto que
trabalha contra seus interesses — ou, então, que nem todas as
manifestações são dele.
8.
“Eles fazem aceitar o erro sob todas as suas formas; é para obter
esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas e as fontes, o
santuário dos ídolos, o pé das mesas, a mão das crianças, proferem
oráculos.”
Qual é então, de acordo com isso, o valor destas palavras do
Evangelho: “Derramarei do meu espírito sobre toda a carne; e os vossos
filhos e as vossas filhas profetizarão; os vossos jovens terão visões, e
os vossos velhos terão sonhos. — Naqueles dias, derramarei do meu
espírito sobre meus servos e sobre minhas servas, e eles profetizarão.”
(Atos dos Apóstolos, cap. II, v. 17, 18). Não é a predição da
medianimidade dada a todo o mundo, mesmo às crianças, e que se realiza
em nossos dias? Os Apóstolos lançaram o anátema sobre essa faculdade?
Não; eles a anunciam como um favor de Deus, e não como a obra do
demônio. Os teólogos atuais sabem, portanto, mais sobre esse ponto do
que os Apóstolos? Não deveriam ver o dedo de Deus no cumprimento dessas
palavras?
9. “Por meio dessas operações da magia moderna vemos se reproduzirem
entre nós as evocações e os oráculos, as consultas, as curas e os
prestígios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das
sibilas.”
Onde se veem as operações da magia nas evocações espíritas?
Tempo houve em que se podia crer na sua eficácia, mas hoje em dia elas
são ridículas; ninguém crê nelas, e o Espiritismo as condena. Na época
em que a magia florescia, tinha-se apenas uma ideia muito imperfeita
sobre a natureza dos Espíritos que eram olhados como seres dotados de um
poder sobre-humano; eram chamados para obter-se deles, mesmo ao preço
da alma, os favores da sorte e da fortuna, a descoberta dos tesouros, a
revelação do futuro, ou filtros. A magia, com o auxílio de seus sinais,
fórmulas e operações cabalísticas, devia fornecer pretensos segredos
para operar prodígios, coagir os Espíritos a porem-se a serviço dos
homens e lhes satisfazerem os desejos. Hoje sabe-se que os Espíritos não
são senão as almas dos homens; não são chamados a não ser para receber
os conselhos dos bons, moralizar os imperfeitos, e para continuar as
relações com os seres que nos são caros. Eis o que diz o Espiritismo a
esse respeito.
10. — Não há nenhum meio de coagir um Espírito a vir contra sua vontade, se
ele for vosso igual ou vosso superior em moralidade, porque não tendes
nenhuma autoridade sobre ele; se ele for vosso inferior, vós o podeis,
se for para seu bem, pois então outros Espíritos vos secundam. (
O Livro
dos Médiuns
, cap. XXV.)
— A mais essencial de todas as disposições
para as evocações é o recolhimento, quando se quer lidar com Espíritos
sérios. Com a fé e o desejo do bem, é-se mais poderoso para evocar os
Espíritos superiores. Elevando a alma, por alguns instantes de
recolhimento no momento da evocação, é possível identificar-se com os
bons Espíritos, e dispô-los a vir. (
O Livro dos Médiuns, cap. XXV.)
—
Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir
os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom
Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs
nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. (
O Livro dos
Médiuns
, cap. XXV.)
— Não há fórmula sacramental para a evocação dos
Espíritos. Todo aquele que pretenda estabelecer uma, pode corajosamente
ser tachado de charlatanismo, pois para os Espíritos a forma não é nada.
Todavia, a evocação deve ser feita sempre em nome de Deus. (
O Livro dos
Médiuns
, cap. XVII.)
— Os Espíritos que marcam encontros em lugares
lúgubres e fora de horas, são Espíritos que se divertem à custa dos que
os escutam. É sempre inútil e muitas vezes perigoso ceder a tais
sugestões; inútil porque só se ganha com isso o ser-se mistificado;
perigoso, não pelo mal que os Espíritos podem fazer, mas pela influência
que isso pode exercer sobre cérebros fracos. (
O Livro dos Médiuns, cap.
XXV.)
— Não há dias nem horas mais especialmente propícios às
evocações; isso é completamente indiferente para os Espíritos, como tudo
o que é material, e seria uma superstição crer nessa influência. Os
momentos mais favoráveis são aqueles em que o evocador pode estar menos
distraído por suas ocupações habituais; em que seu corpo e seu Espírito
estão mais calmos. (
O Livro dos Médiuns, cap. XXV.)
— A crítica
malévola teve prazer em representar as comunicações espíritas como
cercadas pelas práticas ridículas e supersticiosas da magia e da
necromancia. Se aqueles que falam do Espiritismo sem o conhecer se
tivessem dado ao trabalho de estudar aquilo de que querem falar,
ter-se-iam poupado esforços de imaginação ou alegações que servem
somente para provar sua ignorância ou sua má vontade. Para a edificação
das pessoas alheias à ciência, diremos que não há, para se comunicar com
os Espíritos, nem dias, nem horas, nem lugares que sejam mais propícios
do que outros; que não é preciso, para evocá-los, nem fórmulas, nem
palavras sacramentais ou cabalísticas; que não se precisa de nenhuma
preparação nem de nenhuma iniciação; que o emprego de todo sinal ou
objeto material, quer para atraí-los, quer para repeli-los, é sem
efeito, e o pensamento basta; enfim, que os médiuns recebem as
comunicações deles sem sair de seu estado normal, tão simples e
naturalmente como se elas fossem ditadas por uma pessoa viva. Unicamente
o charlatanismo poderia afetar maneiras excêntricas e acrescentar
acessórios ridículos. (
O que é o Espiritismo? cap. II, n.º 49.)
— Em
princípio, o futuro deve ser ocultado ao homem; é apenas em casos raros e
excepcionais que Deus permite sua revelação. Se o homem conhecesse o
futuro, negligenciaria o presente e não agiria com a mesma liberdade,
porque seria dominado pelo pensamento de que, se uma coisa deve
acontecer, ele não tem que se preocupar com isso, ou então procuraria
entravá-lo. Deus não quis que assim fosse, a fim de que cada indivíduo
concorresse para a realização das coisas, mesmo daquelas às quais ele
gostaria de se opor. Deus permite a revelação do futuro quando esse
conhecimento prévio deve facilitar a realização da coisa em vez de
entravá-la, impelindo a agir diferentemente do que se teria feito sem
isso. (
O Livro dos Espíritos, parte III, cap. X.)
— Os Espíritos não podem
guiar nas pesquisas científicas e nas descobertas. A ciência é a obra
do gênio; não se deve adquirir senão pelo trabalho, pois é unicamente
pelo trabalho que o homem avança em seu caminho. Que mérito teria ele se
lhe bastasse interrogar os Espíritos para saber tudo? Qualquer imbecil
poderia tornar-se cientista a esse preço. O mesmo ocorre com as
invenções e descobertas da indústria.
Quando chegou o tempo de uma
descoberta, os Espíritos encarregados de dirigir sua marcha procuram o
homem capaz de levá-la a bom termo, e inspiram-lhe as ideias
necessárias, de maneira a deixar-lhe todo o mérito, pois essas ideias, é
preciso que ele as elabore e as empregue. Isso acontece com todos os
grandes trabalhos da inteligência humana. Os Espíritos deixam cada homem
na sua esfera; daquele que é próprio apenas para cavar a terra, não
farão o depositário dos segredos de Deus; mas saberão tirar da
obscuridade o homem capaz de secundar seus desígnios. Não vos deixeis,
portanto, arrastar pela curiosidade ou a ambição, numa via que não é o
objetivo do Espiritismo, e que vos conduziria às mais ridículas mistificações. (
O Livro dos Médiuns, cap. XXVI.)
—
Os Espíritos não podem fazer descobrir os tesouros escondidos. Os
Espíritos superiores não se ocupam dessas coisas; mas Espíritos
zombeteiros frequentemente indicam tesouros que não existem, ou podem
fazer ver um tesouro num lugar, ao passo que está no lugar oposto; e
isso tem sua utilidade para mostrar que a verdadeira fortuna está no
trabalho. Se a Providência destina riquezas escondidas a alguém, ele as
encontrará naturalmente, e não de outra forma. (
Livro dos médiuns, cap.
XXVI.)
— O Espiritismo, esclarecendo-nos sobre as propriedades dos
fluidos que são os agentes e os meios de ação do mundo invisível, e
constituem uma das forças e uma das potências da natureza, nos dá a
chave de uma quantidade de coisas inexplicadas e inexplicáveis por
qualquer outro meio, e que passaram, nos tempos recuados, por prodígios.
Ele revela, assim como o magnetismo, uma lei, se não desconhecida, ao
menos mal compreendida; ou, melhor dizendo, conheciam-se os efeitos,
pois eles se produziram em todos os tempos, mas não se conhecia a lei, e
foi a ignorância dessa lei que engendrou a superstição. Conhecida essa
lei, o maravilhoso desaparece, e os fenômenos entram na ordem das coisas
naturais. Eis porque os espíritas não fazem mais milagres fazendo
escrever os mortos ou girar uma mesa, do que o médico fazendo reviver um
moribundo, ou o físico fazendo cair o raio. Aquele que pretendesse, com
o auxílio desta ciência, fazer milagres, seria ou um ignorante da
coisa, ou um impostor. (
Livro dos médiuns, cap. II.)
— Certas pessoas
fazem uma ideia muito falsa das evocações; há as que creem que elas
consistem em fazer voltar os mortos com o aparato lúgubre do túmulo. É
apenas nos romances, nos contos fantásticos de fantasmas e no teatro que
se veem os mortos ressequidos sair de seus sepulcros, vestidos
ridiculamente de mortalhas, e fazendo bater os ossos. O Espiritismo, que
nunca fez milagres, não fez esse milagre mais do que outros, e nunca
fez reviver um corpo morto; quando o corpo está na sepultura, está lá
definitivamente; mas o ser espiritual, fluídico, inteligente, não foi
para o túmulo com seu invólucro grosseiro; separou-se dele no momento da
morte, e uma vez operada a separação, um não tem mais nada em comum com
o outro. (
O que é o Espiritismo? cap. II, n.º 48.)
11. Estendemo-nos sobre essas citações para mostrar que os princípios do
Espiritismo não têm nenhuma relação com os da magia. Assim, não há
Espíritos às ordens dos homens, não há meios de coagi-los, não há sinais
ou fórmulas cabalísticos, não há descobertas de tesouros ou
procedimentos para enriquecer, nada de milagres ou prodígios, não há
adivinhações nem aparições fantásticas; nada enfim do que constitui o
objetivo e os elementos essenciais da magia; não só o Espiritismo
desaprova todas essas coisas, como demonstra sua impossibilidade e
ineficácia. Não há portanto nenhuma analogia entre o fim e os meios da
magia e os do Espiritismo; querer assimilá-los não pode ser devido senão
à ignorância ou má fé; e como os princípios do Espiritismo não têm nada
secreto, são formulados em termos claros e sem equívoco, o erro não
poderia prevalecer.
Quanto aos fatos de curas, reconhecidos reais na
pastoral citada precedentemente, o exemplo é mal escolhido para afastar
das relações com os Espíritos. É um dos benefícios que mais tocam e que
todos podem apreciar; poucas pessoas estarão dispostas a renunciar a
isso, sobretudo depois de terem esgotado todos os outros meios, pelo
temor de serem curados pelo diabo; mais de um, ao contrário, dirá que se
o diabo o cura, faz uma boa ação.*
* Querendo persuadir pessoas curadas pelos Espíritos de que o haviam sido pelo diabo,
separou-se radicalmente da Igreja grande número dessas pessoas que não pensavam em
deixá-la.
12. “Quais são os agentes secretos desses fenômenos e os verdadeiros atores
dessas cenas inexplicáveis? Os anjos não aceitariam esses papéis
indignos, e não se prestariam a todos os caprichos de uma vã
curiosidade.”
O autor quer falar das manifestações físicas dos
Espíritos; na totalidade, há umas que seriam evidentemente pouco dignas
de Espíritos superiores; e se substituirdes a palavra anjos por puros
Espíritos, ou Espíritos superiores, tereis exatamente o que diz o
Espiritismo. Mas não se poderia pôr na mesma linha as comunicações
inteligentes pela escrita, a fala, a audição ou qualquer outro meio, que
não são mais indignas dos bons Espíritos do que o são na terra dos
homens mais eminentes, nem as aparições, as curas e uma quantidade de
outras que os livros sagrados citam em profusão como sendo a realização
dos anjos ou dos santos. Se então os anjos e os santos produziram
outrora fenômenos semelhantes, por que não os produziriam hoje? Por que
os mesmos feitos seriam hoje obra do demônio nas mãos de certas pessoas,
ao passo que são considerados milagres santos em outras? Sustentar
semelhante tese é abdicar de toda lógica.
O autor da pastoral está
errado quando diz que esses fenômenos são inexplicáveis. Ao contrário,
eles são hoje perfeitamente explicados, e é por isso que não são mais
vistos como maravilhosos e sobrenaturais; e ainda que não o fossem, não
seria mais lógico atribuí-los ao diabo, do que era outrora dar-lhe a
honra de todos os efeitos naturais que não se compreendiam.
Por papéis
indignos, é preciso entender os papéis ridículos e aqueles que consistem
em fazer o mal; mas não se pode qualificar assim o dos Espíritos que
fazem o bem, e reconduzem os homens a Deus e à virtude. Ora o
Espiritismo diz expressamente que os papéis indignos não estão nas
atribuições dos Espíritos superiores, assim como o provam os preceitos
seguintes:
13. Reconhece-se a qualidade dos Espíritos por sua linguagem; a dos
Espíritos verdadeiramente bons e superiores é sempre digna, nobre,
lógica, isenta de contradição; ela respira a sabedoria, a benevolência, a
modéstia e a moral mais pura; é concisa e sem palavras inúteis. Nos
Espíritos inferiores, ignorantes ou orgulhosos, o vazio das ideias é
quase sempre compensado pela abundância das palavras. Todo pensamento
evidentemente falso, toda máxima contrária à sã moral, todo conselho
ridículo, toda expressão grosseira, trivial ou simplesmente frívola,
enfim, toda marca de malevolência, de presunção ou de arrogância, são
sinais incontestáveis de inferioridade num Espírito.
— Os Espíritos
superiores ocupam-se apenas das comunicações inteligentes com vistas a
nossa instrução; as manifestações físicas ou puramente materiais são
mais especialmente atribuições dos Espíritos inferiores, vulgarmente
designados sob o nome de
Espíritos batedores; como entre nós, as proezas
admiráveis são feitos de saltimbancos e não de cientistas. Seria
absurdo pensar que os Espíritos um pouco elevados se divirtam
exibindo-se. (
O que é o Espiritismo? Cap. II, n.os 37, 38, 39, 40 e 60. –
Ver também: Livro dos Espíritos, liv. II, cap. I: Diferentes ordens de
Espíritos; escala espírita.
Livro dos médiuns, 2.ª parte, cap. XXIV: “Identidade dos Espíritos”,
Modos de se distinguirem os bons dos maus Espíritos.)
Qual
é o homem de boa fé que pode ver nesses preceitos um papel indigno
atribuído aos Espíritos elevados? Não só o Espiritismo não confunde os
Espíritos, mas, enquanto se atribui aos demônios uma inteligência igual à
dos anjos, ele constata, pela observação dos fatos, que os Espíritos
inferiores são mais ou menos ignorantes, que seu horizonte moral é
limitado, sua perspicácia restrita; que eles têm das coisas uma ideia
muitas vezes falsa e incompleta, e são incapazes de resolver certas
questões, o que os tornaria incapazes de fazer tudo o que se atribui aos
demônios.
14. “As almas dos mortos, que Deus proíbe consultar, permanecem na morada
que sua justiça lhes designou, e elas não podem, sem sua permissão,
pôr-se às ordens dos vivos.”
O Espiritismo diz também que elas não podem
vir sem a permissão de Deus, mas ele é ainda bem mais rigoroso, pois
diz que nenhum Espírito, bom ou mau, pode vir sem essa permissão, ao
passo que a Igreja atribui aos demônios o poder de dispensá-la. Ele vai
ainda mais longe, visto dizer que, mesmo com essa permissão, quando eles
acorrem ao apelo dos vivos, não é para se porem às suas ordens.
O
Espírito evocado vem voluntariamente, ou é coagido a isso? — Ele obedece
à vontade de Deus, ou seja, à lei geral que rege o universo; ele julga
se é útil vir, e ainda nisso está seu livre-arbítrio. O Espírito
superior vem sempre que é chamado para um objetivo útil; só se recusa a
responder nos meios de pessoas pouco sérias e que tratam a coisa como
brincadeira. (
Livro dos médiuns, cap. XXV.)
— O Espírito evocado pode
se recusar a vir ao chamado que lhe é feito? — Perfeitamente; onde
estaria seu livre-arbítrio sem isso? Credes que todos os seres do
universo estejam às vossas ordens? E vós mesmos, credes que sois
obrigados a responder a todos aqueles que pronunciam vosso nome? Quando
digo que ele pode se recusar, entendo ao pedido do evocador, pois um
Espírito inferior pode ser coagido a vir por um Espírito superior.
(
O Livro dos médiuns, cap. XXV.)
Os espíritas estão tão convencidos de
que não têm nenhum poder direto sobre os Espíritos, e nada podem obter
deles sem a permissão de Deus, que, quando chamam um Espírito qualquer,
dizem: Peço a Deus todo-poderoso que permita a um bom Espírito se
comunicar comigo; peço também a meu anjo guardião para me assistir e
afastar os maus Espíritos; ou então, quando se trata do chamado de um
Espírito determinado: Peço a Deus todo-poderoso que permita ao Espírito
de fulano se comunicar comigo. (
O Livro dos médiuns, cap. XVII, n.º 203.)
15. As acusações lançadas pela Igreja contra a prática das evocações não
dizem portanto respeito ao Espiritismo, visto que elas se referem
principalmente às operações da magia com a qual ele nada tem em comum;
que ele condena nessas operações o que ela mesma condena; que ele não
faz os bons Espíritos desempenharem um papel indigno deles, e, enfim,
que ele declara nada pedir e nada obter sem a permissão de Deus.
Sem
dúvida pode haver pessoas que abusam das evocações, que fazem disso um
jogo, que as desviam de seu objetivo providencial para fazê-las servir a
seus interesses pessoais, que, por ignorância, leviandade, orgulho ou
cupidez, se afastam dos verdadeiros princípios da doutrina; mas o
Espiritismo sério desautoriza-as, como a verdadeira religião desautoriza
os falsos devotos e os excessos do fanatismo. Logo, não é lógico nem
equitativo imputar ao Espiritismo em geral os abusos que ele condena, ou
as faltas daqueles que não o compreendem. Antes de formular uma
acusação, é preciso ver se ela acerta seu alvo. Diremos, portanto: A
reprovação da Igreja cai sobre os charlatães, os exploradores, as
práticas da magia e da feitiçaria; nisso, ela tem razão. Quando a
crítica religiosa ou cética condena os abusos e estigmatiza o
charlatanismo, faz destacar-se ainda melhor a pureza da sã doutrina que
ela ajuda assim a se desembaraçar das más escórias; nisso ela facilita
nossa tarefa. Seu erro é confundir o bem e o mal, por ignorância entre a
maioria, por má fé em alguns; mas a distinção que ela não faz, outros
fazem. Em todos os casos sua reprovação, à qual todo espírita sincero se
associa no limite do que se aplica ao mal, não pode atingir a doutrina.
16. “Os seres misteriosos que acorrem assim ao primeiro apelo do herético e
do ímpio como do fiel, do crime como da inocência, não são nem os
enviados de Deus, nem os apóstolos da verdade e da salvação, mas os
sequazes do erro e do inferno.”
Assim, ao herético, ao ímpio, ao
criminoso, Deus não permite que bons Espíritos venham tirá-los do erro
para salvá-los da perdição eterna! Ele não lhes envia senão os sequazes
do inferno para os afundar ainda mais no lodaçal! Pior, ele não envia à
inocência senão seres perversos para pervertê-la! Não se encontra então
entre os anjos, essas criaturas privilegiadas de Deus, nenhum ser
suficientemente compassivo para vir socorrer essas almas perdidas? Para
que as brilhantes qualidades de que são dotados, se não servem senão
para seus gozos pessoais? São eles realmente bons se, mergulhados nas
delícias da contemplação, veem essas almas no caminho do inferno, sem as
vir desviar daí? Não é a imagem do rico egoísta que, tendo tudo em
profusão, deixa sem compaixão o pobre morrer de fome à sua porta? Não é o
egoísmo erigido em virtude e posto até aos pés do Eterno?
Vós vos
espantais que os bons Espíritos vão ao herético e ao ímpio; esqueceis
portanto esta fala do Cristo: “Não é aquele que está bem que precisa de
médico.” Não veríeis as coisas de um ponto mais elevado do que os
fariseus de seu tempo? E vós, se fordes chamado por um descrente,
recusareis ir a ele para pô-lo no bom caminho? Os bons Espíritos fazem,
então, o que vós faríeis; eles vão ao ímpio fazê-lo ouvir boas palavras.
Em vez de jogar o anátema nas comunicações de além-túmulo, bendizei os
caminhos do Senhor, e admirai sua onipotência e sua bondade infinita.
17. Há, diz-se, os anjos guardiães; mas, quando esses anjos guardiães não
se podem fazer ouvir pela voz misteriosa da consciência ou da
inspiração, por que não empregariam eles meios de ação mais diretos e
mais materiais, de natureza a impressionar os sentidos, já que os meios
existem? Deus põe portanto esses meios, que são sua obra, visto que tudo
vem dele e que nada ocorre sem sua permissão, à disposição unicamente
dos maus Espíritos, ao passo que recusa aos bons servirem-se deles? De
onde é preciso concluir que Deus dá aos demônios mais facilidades para
perder os homens do que dá aos anjos guardiães para salvá-los.
Pois
bem! o que os anjos guardiães não podem fazer, segundo a Igreja, os
demônios fazem por eles; com a ajuda dessas mesmas comunicações ditas
infernais, eles trazem de volta a Deus aqueles que o renegavam, e ao bem
aqueles que estavam mergulhados no mal; eles nos dão o estranho
espetáculo de milhões de homens que creem em Deus pelo poder do diabo,
enquanto a Igreja fora incapaz de convertê-los. Quantos homens que nunca
rezavam, rezam hoje com fervor, graças às instruções desses mesmos
demônios! Quantos se veem que, de orgulhosos, egoístas e devassos, se
tornaram humildes, caridosos e menos sensuais! E diz-se que é obra dos
demônios! Se assim for, é preciso convir que o demônio lhes prestou
maior serviço e os assistiu melhor do que os anjos. É preciso ter uma
opinião bem pobre do julgamento dos homens neste século, para crer que
eles possam aceitar cegamente tais ideias. Uma religião que faz sua
pedra angular de semelhante doutrina, que se declara minada na base se
lhe tirarem seus demônios, seu inferno, suas penas eternas e seu Deus
sem compaixão, é uma religião que se suicida.
18. Deus, diz-se, que enviou seu Cristo para salvar os homens, não provou
seu amor por suas criaturas e as deixou sem proteção? Sem dúvida
nenhuma, Cristo é o divino Messias, enviado para ensinar aos homens a
verdade e mostrar-lhes o bom caminho; mas, desde então, contai o número
daqueles que puderam ouvir sua palavra de verdade, quantos morreram e
morrerão sem a conhecer, e, entre os que a conhecem, quantos há que a
põem em prática! Por que Deus, em sua solicitude pela salvação de seus
filhos, não lhes enviaria outros mensageiros, vindo à terra inteira,
penetrando nos mais humildes redutos, na casa dos grandes e dos
pequenos, dos sábios e dos ignorantes, dos incrédulos como dos crentes,
ensinar a verdade aos que não a compreendem, acudir por seu ensino
direto e múltiplo à insuficiência da propagação do Evangelho, e apressar
assim o advento do reino de Deus? E quando esses mensageiros chegam em
massas incontáveis, abrindo os olhos aos cegos, convertendo os ímpios,
curando os doentes, consolando os aflitos a exemplo de Jesus, vós os
repelis, repudiais o bem que eles fazem, dizendo que são os demônios!
Tal é também a linguagem dos fariseus a respeito de Jesus, pois também
eles diziam que ele fazia o bem pelo poder do diabo. O que lhes
respondeu ele? “Reconhecei a árvore pelo fruto; uma má árvore não pode
dar bons frutos.”
Mas para eles, os frutos produzidos por Jesus eram
maus, porque ele vinha destruir os abusos e proclamar a liberdade que
devia arruinar-lhes a autoridade; se ele tivesse vindo adular seu
orgulho, sancionar suas prevaricações e apoiar seu poder, teria sido a
seus olhos o Messias esperado pelos judeus. Ele era sozinho, pobre e
fraco, fizeram-no perecer e acreditaram matar sua palavra; mas sua
palavra era divina e sobreviveu-lhe. No entanto ela se propagou com
lentidão, e após dezoito séculos, mal é conhecida pela décima parte do
gênero humano, e cismas numerosos ocorreram no seio de seus próprios
discípulos. É então que Deus, em sua misericórdia, envia os Espíritos
para completá-la, pô-la ao alcance de todos, e espalhá-la por toda a
terra. Mas os Espíritos não estão encarnados num único homem, cuja voz
seria limitada; eles são incontáveis, vão a toda parte e não se pode
apanhá-los, eis porque seu ensinamento se espalha com a rapidez do
relâmpago; eles falam ao coração e à razão, eis porque são compreendidos
pelos mais humildes.
19. “Não é indigno de celestes mensageiros, dizeis vós, transmitirem suas
instruções por um meio tão vulgar quanto o das mesas falantes? Não é
ultrajá-los supor que eles se divertem com trivialidades e deixam sua
brilhante morada para se pôr à disposição do primeiro que chega?”
Jesus
não deixou a morada de seu Pai para nascer num estábulo? Onde vistes,
aliás, que o Espiritismo atribuísse as coisas triviais a Espíritos
superiores? Ele diz, ao contrário, que as coisas vulgares são o produto
de Espíritos vulgares. Mas, por sua própria vulgaridade, elas
impressionaram mais as imaginações; serviram para provar a existência do
mundo espiritual e mostraram que esse mundo é completamente diferente
do que se imaginara. Era o início; era simples como tudo o que está
começando, mas a árvore saída de uma sementinha não deixa de estender,
mais tarde, sua folhagem ao longe. Quem teria acreditado que da
miserável manjedoura de Belém sairia um dia a palavra que devia agitar o
mundo?
Sim, Cristo é o Messias divino; sim, sua palavra é a de verdade;
sim, a religião fundada sobre essa palavra será inabalável, mas com a
condição de seguir e de praticar seus sublimes ensinamentos, e de não
fazer do Deus justo e bom que ele nos ensina a conhecer, um Deus
parcial, vingativo e sem compaixão.
Capítulo XI — Da proibição de evocar os mortos
1. A Igreja não nega absolutamente o fato das manifestações; ela admite-as
todas, ao contrário, como se viu nas citações precedentes, mas
atribui-as à intervenção exclusiva dos demônios. É erradamente que
alguns evocam o Evangelho para proibi-las, pois o Evangelho não diz uma
palavra sobre isso. O supremo argumento brandido é a proibição de Moisés. Eis em que termos se exprime a este respeito a pastoral citada nos artigos precedentes:
“Não
é permitido colocar-se em relação com eles (os Espíritos), quer
imediatamente, quer por intermédio daqueles que os invocam e os
interrogam. A lei mosaica punia com a morte essas práticas detestáveis,
correntes entre os gentios.” “Não vades encontrar os mágicos, está dito
no livro do Levítico, e não dirijais aos adivinhos pergunta nenhuma, por
medo de incorrer na mácula dirigindo-vos a eles.” (Cap. XIX, v. 31.) —
“Se um homem ou uma mulher tem um Espírito de Píton ou de adivinhação,
que sejam punidos com a morte; serão lapidados, e seu sangue recairá
sobre suas cabeças.” (Cap. XX, v. 27.) E no livro do Deuteronômio: “Que
não haja entre vós ninguém que consulte os adivinhos, que observe os
sonhos e os augúrios, ou que use de malefícios, sortilégios e
encantamentos, ou que consulte aqueles que têm o Espírito de Píton e que
praticam a adivinhação, ou que interrogam os mortos para saber a
verdade; pois o Senhor tem em abominação todas essas coisas, e
destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem esses crimes.” (Cap.
XVIII, vv. 10, 11, 12.)
2. É útil, para a inteligência do verdadeiro sentido das palavras de
Moisés, relembrar o texto completo, um pouco abreviado nessa citação:
“Não vos afasteis de vosso Deus, para ir procurar os mágicos, e não
consulteis os adivinhos, de medo de vos maculardes dirigindo-vos a eles.
Eu sou o Senhor vosso Deus.” (Levítico, cap. XIX, v. 31.)
“Se um
homem ou uma mulher tem um Espírito de Píton, ou um espírito de
adivinhação, que sejam punidos com a morte; serão lapidados, e seu
sangue recairá sobre suas cabeças.” (Id., cap. XX, v. 27.)
“Quando
tiverdes entrado no país que o Senhor vosso Deus vos dará, ficai muito
atentos a não querer imitar as abominações desses povos; — e que não se
encontre ninguém entre vós que pretenda purificar seu filho ou sua
filha, fazendo-os passar pelo fogo, ou que consulte os adivinhos, ou que
observe os sonhos e os augúrios, ou que use de malefícios, de
sortilégios e encantamentos, ou que consulte aqueles que têm o espírito
de Píton, e que se dedicam a adivinhar, ou que interrogam os mortos para
aprender a verdade. — Pois o Senhor tem em abominação todas essas
coisas, e ele exterminará todos esses povos à vossa entrada, por causa
desses tipos de crimes que eles cometeram.” (Deuteronômio, cap. XVIII,
vv. 9, 10, 11 e 12.)
3. Se a lei de Moisés deve ser rigorosamente observada sobre este ponto,
ela o deve ser sobre todos os outros, pois por que ela seria boa no que
se refere às evocações, e má em outras partes? É preciso ser coerente;
se se reconhece que sua lei não está mais em harmonia com nossos
costumes e nossa época para certas coisas, não há razão para que não
ocorra o mesmo com a proibição de que se trata.
É preciso, aliás, se
reportar aos motivos que provocaram essa proibição, motivos que tinham
então sua razão de ser, mas que não mais existem seguramente hoje em
dia. O legislador hebreu queria que seu povo rompesse com todos os
costumes trazidos do Egito, onde aquele das evocações era usual e um
motivo de abuso, como provam estas palavras de Isaías: “O Espírito do
Egito se aniquilará nela, e derrubarei sua prudência; eles consultarão
seus ídolos, seus adivinhos, seus pítons e seus mágicos.” (Cap. XIX, v.
3.)
Além disso, os israelitas não deviam contrair nenhuma aliança com as
nações estrangeiras; ora, eles iam encontrar as mesmas práticas entre
aquelas onde iam entrar e que deviam combater. Moisés precisou então,
por política, inspirar ao povo hebreu aversão por todos seus costumes
que tivessem tido pontos de contato se eles os tivessem assimilado. Para
motivar essa aversão, era preciso apresentá-los como reprovados pelo
próprio Deus; é por isso que ele disse: “O Senhor tem em abominação
todas essas coisas, e ele destruirá, à vossa chegada, as nações que
cometem esses crimes.”
4. A proibição de Moisés era tanto mais justificada quanto não se evocavam
os mortos por respeito ou afeição a eles, nem com um sentimento de
piedade; era um meio de adivinhação, da mesma maneira que os augúrios e
os presságios, explorado pelo charlatanismo e a superstição. Por mais
tenha feito, não conseguiu desenraizar esse hábito tornado objeto de
tráfico, assim como o atestam as passagens seguintes do mesmo profeta:
“E
quando eles vos disserem: Consultai os mágicos e os adivinhos que falam
baixinho em seus encantamentos, respondei-lhes: Cada povo não consulta
seu Deus? E vai-se falar aos mortos do que diz respeito aos vivos?”
(Isaías, cap. VIII, v. 19.)
“Sou eu que faço ver a falsidade dos
prodígios da magia; que torno insensatos aqueles que se dedicam a
adivinhar; que confundo o espírito dos sábios, e que provo ser loucura a
sua vã ciência.” (Cap. XLIV, v. 25.)
“Que esses augúrios que estudam
o céu, que contemplam os astros, e que contam os meses para tirar daí
as predições que querem dar-vos do futuro, venham agora, e que eles vos
salvem. – Eles se tornaram como a palha, o fogo os devorou; não poderão
livrar suas almas das chamas ardentes; nem mesmo restará de seu
abrasamento carvões com os quais se possa aquecer, nem fogo diante do
qual se possa sentar. – Eis o que se tornarão todas essas coisas nas
quais vós vos empregáveis com tanto trabalho: esses mercadores que
traficaram convosco desde vossa juventude fugirão todos, um para um
lado, o outro para o outro, sem que se encontre um único que vos tire de
vossos males.” (Cap. XLVII, vv. 13, 14, 15.)
Neste capítulo, Isaías
dirige-se aos babilônios, sob a figura alegórica da “virgem filha de
Babilônia, filha dos caldeus.” (Vers. 1.) Ele diz que os encantadores
não impedirão a ruína de sua monarquia. No capítulo seguinte, ele se
dirige diretamente aos israelitas.
“Vinde aqui, vós, filhos de uma
adivinha, raça de um homem adúltero e de uma mulher prostituída. — De
quem troçastes? Contra quem abristes a boca, e lançastes vossas línguas
penetrantes? Não sois filhos pérfidos e rebentos bastardos, — vós que
procurais vosso consolo em vossos deuses debaixo de todas as árvores
carregadas de folhagens, que sacrificais vossas criancinhas nas
torrentes sob as rochas proeminentes? — Pusestes vossa confiança nas
pedras da torrente; espalhastes licores para venerá-las; ofereceste-lhes
sacrifícios. Depois disso, minha indignação não se inflamará?” (Cap.
LVII, vv. 3, 4, 5, 6.)
Estas palavras são inequívocas; provam
claramente que, naquele tempo, as evocações tinham por finalidade a
adivinhação, e que se fazia comércio delas; estavam associadas às
práticas da magia e da bruxaria, e mesmo acompanhadas de sacrifícios
humanos. Moisés tinha portanto razão de proibir essas coisas, e de dizer
que Deus as tinha em abominação. Essas práticas supersticiosas se
perpetuaram até a Idade Média; mas hoje a razão lhes fez justiça, e o
Espiritismo veio mostrar a finalidade exclusivamente moral, consoladora e
religiosa das relações de além-túmulo; uma vez que os espíritas não
“sacrificam as criancinhas e não espalham licores para venerar os
deuses,” não interrogam nem os astros, nem os mortos, nem os augúrios
para conhecer o futuro que Deus sabiamente escondeu aos homens; repudiam
todo tráfico da faculdade que alguns receberam de comunicar-se com os
Espíritos; não são movidos nem pela curiosidade, nem pela cupidez, mas
por um sentimento piedoso e unicamente pelo desejo de se instruir, de se
aperfeiçoar e de aliviar as almas sofredoras, a proibição de Moisés, pois, não
lhes diz respeito de maneira nenhuma; é o que teriam visto aqueles que a
invocam contra eles, se tivessem aprofundado melhor o sentido das
palavras bíblicas; teriam reconhecido que não existe nenhuma analogia
entre o que ocorria entre os hebreus e os princípios do Espiritismo;
muito mais: que o Espiritismo condena precisamente o que motivava a
proibição de Moisés; mas, cegos pelo desejo de encontrar um argumento
contra as ideias novas, eles não se aperceberam de que esse argumento
não se sustenta.
A lei civil atual pune todos os abusos que Moisés
queria reprimir. Se Moisés pronunciou o supremo suplício contra os
delinquentes, é porque precisava de meios rigorosos para governar aquele
povo indisciplinado; assim a pena de morte é prodigada em sua
legislação; não havia de resto grande escolha em seus meios de
repressão; não havia prisões, nem casas de correção no deserto, e seu
povo não era de natureza a temer penas puramente disciplinares; ele não
podia graduar sua penalidade como se faz em nossos dias. É portanto
injustamente que se considera a severidade do castigo para provar o grau
de culpa da evocação dos mortos. Seria preciso por respeito à lei de
Moisés manter a pena capital para todos os casos em que ele a aplicava?
Por que, aliás, se faz reviver com tanta insistência este artigo, ao
passo que não se fala do começo do capítulo que proíbe aos padres
possuir os bens da terra, e ter parte em qualquer herança, porque o
Senhor é ele próprio sua herança? (Deuteronômio, cap. XXVIII, vv. 1 e 2.)
5.
Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus propriamente
dita, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar
apropriada aos costumes e ao caráter do povo; uma é invariável, a outra
se modifica de acordo com os tempos, e não pode vir ao pensamento de
ninguém que possamos ser governados pelos mesmos meios que os hebreus no
deserto, como também os capitulares de Carlos Magno não se poderiam
aplicar à França do século dezenove. Quem sonharia, por exemplo, fazer
reviver hoje este artigo da lei mosaica: “Se um boi ferir com seu chifre
um homem ou uma mulher, e eles morrerem por isso, o boi será lapidado, e
não se comerá sua carne; mas o dono do boi será julgado inocente.”
(Êxodo, cap. XXI, v. 28 e seg.)
Este artigo, que nos parece tão
absurdo, não tinha porém por objeto punir o boi e absolver seu dono; ele
equivalia simplesmente ao confisco do animal, causa do acidente, para
obrigar o proprietário a ser mais vigilante. A perda do boi era a
punição do dono, punição que devia ser bastante sensível para um povo
pastor, para que não fosse necessário infligir-lhe outra; mas ela não
devia beneficiar ninguém, por isso era proibido comer-lhe a carne.
Outros artigos estipulam o caso em que o dono é responsável.
Tudo
tinha sua razão de ser na legislação de Moisés, pois tudo está aí
previsto até nos menores detalhes; mas a forma assim como o fundo eram
segundo as circunstâncias em que ele se achava. Decerto, se Moisés
voltasse hoje para dar um código a uma nação civilizada da Europa, não
lhe daria o dos hebreus.
6. A isso objeta-se que todas as leis de Moisés são editadas em nome de
Deus, assim como a do Sinai. Se todas são julgadas de fonte divina, por
que os mandamentos se limitam ao Decálogo? É portanto porque se
diferenciaram; se todas emanam de Deus, todas são igualmente
obrigatórias; por que não são todas observadas? Por que, além disso, não
se conservou a circuncisão que Jesus sofreu e não aboliu? Esquece-se
que todos os legisladores antigos, para dar mais autoridade às suas
leis, disseram que elas provinham de uma divindade. Moisés tinha mais do
qualquer outro necessidade desse apoio, por causa do caráter de seu
povo; se, apesar disso, teve tanta dificuldade para se fazer obedecer, teria sido bem pior, se as tivesse promulgado em seu próprio nome.
Não
veio Jesus modificar a lei mosaica, e não é sua lei o código dos
cristãos? Não disse ele: “Aprendestes que foi dito aos antigos tal e
qual coisa, e eu vos digo tal outra coisa?” Mas tocou ele na lei do
Sinai? De modo nenhum; ele a sanciona, e toda sua doutrina moral não é
senão o desenvolvimento daquela. Ora, ele não fala em nenhum lugar da
proibição de evocar os mortos. Era porém uma questão bastante grave,
para que ele a tivesse omitido em suas instruções, enquanto tratou de
outras mais secundárias.
7. Em resumo, trata-se de saber se a Igreja põe a lei mosaica acima da
lei evangélica, dito de outro modo, se ela é mais judia do que cristã.
Deve-se mesmo observar que, de todas as religiões, aquela que menos
oposição fez ao Espiritismo é a judia, e que ela não invocou contra as
relações com os mortos a lei de Moisés sobre a qual se apoiam as seitas
cristãs.
8.
Outra contradição. Se Moisés proibiu evocar os Espíritos dos mortos, é
portanto porque esses Espíritos podem vir, de outro modo sua proibição
teria sido inútil. Se eles podiam vir no tempo dele, ainda o podem hoje;
se são os Espíritos dos mortos, então não são exclusivamente demônios.
De resto, Moisés não fala absolutamente destes últimos.
Logo, é
evidente que não se poderia logicamente apoiar-se na lei de Moisés nesta
circunstância, pelo duplo motivo de que ela não rege o Cristianismo, e
não é apropriada aos costumes da nossa época. Mas, supondo-lhe toda a
autoridade que alguns lhe concedem, ela não pode, assim como vimos,
aplicar-se ao Espiritismo.
Moisés, é verdade, engloba a interrogação
dos mortos na sua proibição; mas é apenas de maneira secundária, e como
acessório das práticas da magia. A própria palavra
interrogar, posta ao
lado dos adivinhos e dos augúrios, prova que, entre os hebreus, as
evocações eram um meio de adivinhação; ora, os espíritas não evocam os
mortos para obter deles revelações ilícitas, mas para receber sábios
conselhos e obter alívio para os que sofrem. Decerto, se os hebreus se
tivessem servido das comunicações de além-túmulo unicamente com esse
objetivo, longe de proibi-las, Moisés as teria encorajado, porque elas
teriam tornado seu povo mais dócil.
9.
Se alguns críticos jocosos ou mal intencionados se deleitaram em
apresentar as reuniões espíritas como assembleias de feiticeiros e de
necromantes, e os médiuns como adivinhos; se alguns charlatães misturam
esse nome a práticas ridículas que ele desaprova, bastante gente conhece
perfeitamente o caráter essencialmente moral e grave das reuniões do
espiritismo sério; a doutrina escrita para toda gente, protesta
suficientemente contra os abusos de todo gênero para que a calúnia
recaia sobre quem a merece.
10.
A evocação, diz-se, é uma falta de respeito pelos mortos cuja cinza
não se deve perturbar. Quem diz isso? Os adversários de dois campos
opostos que se dão as mãos: os incrédulos que não creem nas almas, e
aqueles que, crendo, pretendem que elas não podem vir e que unicamente o
demônio se apresenta.
Quando a evocação é feita religiosamente e com
recolhimento; quando os Espíritos são chamados, não por curiosidade,
mas por um sentimento de afeição e de simpatia, e com o desejo sincero
de se instruir e de se tornar melhor, não vemos o que haveria de mais
desrespeitoso em chamar as pessoas após sua morte do que enquanto vivas.
Mas há outra resposta peremptória a esta objeção, é que os Espíritos
vêm livremente e não por coerção; que eles vêm mesmo espontaneamente sem
ser chamados; que eles testemunham sua satisfação de se comunicar com
os homens, e se queixam com frequência do esquecimento em que por vezes
são deixados. Se fossem perturbados em sua quietude ou ficassem
descontentes com nosso chamado eles o diriam, ou não viriam. Visto que
são livres, quando vêm, é que isso lhes convém.
11.
Alega-se outra razão: “As almas, diz-se, permanecem na morada que a
justiça de Deus lhes designou, ou seja, no inferno ou no paraíso;” assim
aquelas que estão no inferno não podem sair de lá, embora a esse
respeito toda liberdade seja deixada aos demônios; aquelas que estão no
paraíso estão inteiramente na sua beatitude; estão demasiado acima dos
mortais para se ocuparem deles, e demasiado felizes para voltarem a esta
terra de miséria se interessar pelos parentes e amigos que aqui
deixaram. Elas são, portanto, como esses ricos que afastam a vista dos
pobres, de medo que isso lhes perturbe a digestão? Se assim fosse, elas
seriam pouco dignas da felicidade suprema, que nesse caso seria o prêmio
do egoísmo. Restam aquelas que estão no purgatório; mas essas são
sofredoras e têm de pensar em sua salvação antes de tudo; portanto, não
podendo vir nem umas nem outras, unicamente o diabo vem em lugar delas.
Se elas não podem vir, não se deve temer perturbar-lhes o repouso.
12. Mas aqui se apresenta outra dificuldade. Se as almas que estão na
beatitude não podem deixar sua morada afortunada para vir em socorro dos
mortais, por que a Igreja invoca a assistência dos santos, que devem
gozar da maior soma possível de beatitude? Por que diz ela aos fiéis
para invocá-los nas doenças, aflições, e para se preservar dos flagelos?
Por que, segundo ela, os santos, a própria Virgem, vêm mostrar-se aos
homens e fazer milagres? Portanto, eles deixam o céu para vir à terra.
Se aqueles que estão no mais alto dos céus podem deixá-lo, por que os
que são menos elevados não o poderiam?
13. Que os incrédulos neguem a manifestação das almas, isso se concebe,
visto que não creem na alma; mas o que é estranho é ver aqueles cujas
crenças repousam sobre sua existência e seu futuro, se encarniçarem
contra os meios de provar que ela existe, e esforçarem-se por demonstrar
que isso é impossível. Pareceria natural, ao contrário, que aqueles que
mais têm interesse na sua existência devessem acolher com alegria, e
como um benefício da Providência, os meios de confundir os negadores por
provas irrefutáveis, visto que são os negadores da religião. Eles
deploram sem cessar a invasão da incredulidade que dizima o rebanho dos
fiéis, e quando o meio mais poderoso de combatê-la se apresenta, eles o
repelem com mais obstinação do que os próprios incrédulos. Depois,
quando as provas transbordam a ponto de não deixar nenhuma dúvida,
recorre-se, como argumento supremo, à proibição de se ocupar disso, e
para justificá-la vai-se buscar um artigo da lei de Moisés, com que
ninguém nem sonhava, e onde se quer ver, por toda força, uma aplicação
que não existe. Fica-se tão contente com esta descoberta, que não se
percebe que esse artigo é uma justificação da doutrina espírita.
14. Todos os motivos alegados contra as relações com os Espíritos não
podem resistir a um exame sério; da obstinação posta nisso, no entanto,
pode-se inferir que a essa questão se vincula um grande interesse, sem
isso não haveria tanta insistência. A ver essa cruzada de todos os
cultos contra as manifestações, dir-se-ia que eles as temem. O
verdadeiro motivo poderia bem ser o temor de que os Espíritos, muito
clarividentes, viessem esclarecer os homens sobre os pontos que se faz
questão de deixar na sombra, e fazer-lhes conhecer exatamente o que
ocorre no outro mundo e as verdadeiras condições para ser ali feliz ou
infeliz. É por isso que, assim como se diz a uma criança: “Não vás lá; há um lobisomem”, diz-se aos homens: “Não chameis os Espíritos; é o
diabo.” Mas por mais que se faça, se proibirem os homens de chamar os
Espíritos, não impedirão os Espíritos de vir aos homens tirar a lâmpada
de sob o alqueire.
O culto que estiver na verdade absoluta não terá
nada a temer da luz, pois a luz fará sobressair a verdade, e o demônio
não poderia prevalecer contra a verdade.
15. Repelir as comunicações de além-túmulo é rejeitar o poderoso meio de
instrução que resulta para si mesmo da iniciação à vida futura, e dos
exemplos que elas nos fornecem. Ensinando-nos a experiência, além disso,
o bem que se pode fazer afastando do mal os Espíritos imperfeitos,
ajudando os que sofrem a se libertar da matéria e a se melhorar,
proibi-las é privar almas infelizes da assistência que lhes podemos dar.
As seguintes palavras de um Espírito resumem admiravelmente as
consequências da evocação praticada com um objetivo caridoso:
“Cada
Espírito sofredor e queixoso vos contará a causa de sua queda, os
arrastamentos a que sucumbiu; ele vos falará de suas esperanças, seus
combates, seus terrores; ele vos contará seus remorsos, suas dores, seus
desesperos; ele vos mostrará Deus, justamente irritado, punindo o
culpado com toda a severidade de sua justiça.
Escutando-o, ficareis
tomados de compaixão por ele e de temor por vós mesmos; seguindo-o em
suas queixas, vereis Deus não o perdendo de vista, aguardando o pecador
arrependido, estendendo-lhe os braços tão logo ele tente avançar. Vereis
os progressos do culpado, para os quais tereis a felicidade e a glória
de ter contribuído; vós os acompanhareis com solicitude, como o
cirurgião acompanha os progressos do ferimento que ele trata
diariamente.” (Bordeaux, 1861.)
Segunda parte — Exemplos
Capítulo I — A passagem
1.
A confiança na vida futura não exclui as apreensões da passagem desta
vida à outra. Muitas pessoas não temem a morte pela própria morte; o que
temem é o momento da transição. Sofre-se ou não se sofre na travessia? é
isso o que as inquieta; e a coisa vale tanto mais a pena quanto ninguém
pode escapar dela. Pode-se dispensar uma viagem terrestre; mas aqui,
ricos como pobres devem dar esse passo, e se ele é doloroso, nem a
posição nem a fortuna poderiam suavizar-lhe a amargura.
2.
Ao ver a calma de certas mortes, e as terríveis convulsões de agonia de
outras, já se pode julgar que as sensações não são sempre as mesmas;
mas quem pode informar-nos a esse respeito? Quem nos descreverá o
fenômeno fisiológico da separação da alma e do corpo? Quem nos dirá as
impressões nesse instante supremo? Sobre este ponto a ciência e a
religião são mudas.
E por que isso? Porque falta a ambas o
conhecimento das leis que regem as relações do espírito e da matéria;
uma se detém no limiar da vida espiritual, a outra no da vida material. O
Espiritismo é o traço de união entre as duas; só ele pode dizer como se
opera a transição, quer pelas noções mais positivas que ele dá da
natureza da alma, quer pelo relato daqueles que deixaram a vida. O
conhecimento do laço fluídico que une a alma e o corpo é a chave deste
fenômeno, como de muitos outros.
3. A
matéria inerte é insensível: isto é um fato positivo; só a alma
experimenta as sensações do prazer e da dor. Durante a vida, toda
desagregação da matéria repercute na alma que recebe daí uma impressão
mais ou menos dolorosa. É a alma que sofre e não o corpo; este não é
senão o instrumento da dor: a alma é o paciente. Após a morte, estando o
corpo separado da alma, ele pode ser impunemente mutilado, pois não
sente nada; estando a alma isolada dele, não recebe nenhum dano da
desorganização deste último; ela tem suas sensações próprias cuja fonte
não está na matéria sensível. O perispírito é o envoltório fluídico da
alma, da qual ele não está separado nem antes, nem depois da morte, e
com a qual ele constitui uma unidade, pois um não se pode conceber sem a
outra. Durante a vida, o fluido perispiritual penetra o corpo em todas
as suas partes e serve de veículo às sensações físicas da alma; é
igualmente por seu intermédio que a alma age sobre o corpo e lhe dirige
os movimentos.
4.
A extinção da vida orgânica traz a separação da alma e do corpo pela
ruptura do laço fluídico que os une; mas esta separação nunca é brusca; o
fluido perispiritual se liberta pouco a pouco de todos os órgãos, de
modo que a separação não é completa e absoluta a não ser quando não
resta mais um único átomo do perispírito unido a uma molécula do corpo. A
sensação dolorosa que a alma experimenta nesse momento é devida à soma
dos pontos de contato que existem entre o corpo e o perispírito, e da
maior ou menor dificuldade e lentidão que a separação apresenta. Não se
deve portanto dissimular que, segundo as circunstâncias, a morte pode
ser mais ou menos penosa. São essas diferentes circunstâncias que vamos
examinar.
5.
Estabeleçamos inicialmente, como princípio, os quatro casos seguintes,
que se podem ver como as situações extremas, entre as quais há uma
quantidade de nuances: 1.º Se no momento da extinção da vida orgânica, o
desprendimento do perispírito se operasse completamente, a alma não
sentiria absolutamente nada; 2.º se nesse momento a coesão dos dois
elementos está com toda a sua força, produz-se uma espécie de
dilaceramento que reage dolorosamente sobre a alma; 3.º se a coesão é
fraca, a separação é fácil e se opera sem abalo; 4º se, depois da
cessação completa da vida orgânica, ainda existirem inúmeros pontos de
contato entre o corpo e o perispírito, a alma poderá sentir os efeitos
da decomposição do corpo até que o laço seja completamente rompido.
Disto
resulta que o sofrimento, que acompanha a morte, está subordinado à
força de aderência que une o corpo e o perispírito; que tudo o que pode
ajudar na diminuição dessa força e na rapidez do desprendimento torna a
passagem menos penosa; por fim, que se o desprendimento se opera sem
nenhuma dificuldade, a alma não experimenta nenhuma sensação
desagradável.
6.
Na passagem da vida corpórea à vida espiritual produz-se ainda outro
fenômeno de importância capital: é o da perturbação. Nesse momento, a
alma experimenta um entorpecimento que paralisa momentaneamente suas
faculdades e neutraliza, ao menos parcialmente, as sensações; ela fica,
por assim dizer, em estado cataléptico, de sorte que quase nunca é
testemunha consciente do último suspiro. Dizemos quase nunca porque há
um caso em que ela pode ter consciência, como veremos em breve. A
perturbação pode então ser considerada como o estado normal no instante
da morte; sua duração é indeterminada; ela varia de algumas horas a
alguns anos. À medida que a perturbação se dissipa, a alma fica na
situação de um homem que sai de um sono profundo; as ideias são
confusas, vagas e incertas; vê como através de um nevoeiro; pouco a
pouco a vista clareia, a memória volta, e reconhece a si mesma. Mas esse
despertar é bem diferente, de acordo com os indivíduos; nuns, é calmo e
propicia uma sensação deliciosa; em outros, é cheio de terror e de
ansiedade, e produz o efeito de um horrendo pesadelo.
7.
O momento do último suspiro não é portanto o mais penoso, porque, quase
sempre, a alma não tem consciência de si mesma; mas antes, ela sofre
pela desagregação da matéria durante as convulsões da agonia, e depois,
pelas angústias da perturbação. Apressemo-nos a dizer que esse estado
não é geral. A intensidade e a duração do sofrimento são, como
mencionamos, proporcionais à afinidade que existe entre o corpo e o
perispírito; quanto maior essa afinidade, mais os esforços do Espírito
para se soltar de seus laços são longos e penosos; mas há pessoas nas
quais a coesão é tão fraca que o desprendimento se opera por si mesmo e
naturalmente. O Espírito separa-se do corpo como um fruto maduro se
solta de seu caule; é o caso das mortes calmas e dos despertares
tranquilos.
8.
O estado moral da alma é a causa principal que influi sobre a maior ou
menor facilidade do desprendimento. A afinidade entre o corpo e o
perispírito é proporcional ao apego do Espírito à matéria; ela atinge
seu máximo no homem cujas preocupações se concentram todas na vida e nos
gozos materiais; é quase inexistente naquele cuja alma purificada se
identificou por antecipação com a vida espiritual. Visto que a lentidão e
a dificuldade da separação são proporcionais ao grau de purificação e
de desmaterialização da alma, depende de cada um tornar essa passagem
mais ou menos fácil ou penosa, agradável ou dolorosa.
Posto isto, ao
mesmo tempo como teoria e como resultado de observação, resta-nos
examinar a influência do gênero de morte sobre as sensações da alma no
último momento.
9.
Na morte natural, aquela que resulta da extinção das forças vitais pela
idade ou a doença, o desprendimento se opera gradualmente; no homem
cuja alma está desmaterializada e cujos pensamentos se desligaram das
coisas terrestres, o desprendimento é quase completo antes da morte
real; o corpo vive ainda a vida orgânica, e a alma já entrou na vida
espiritual e não está mais ligada ao corpo a não ser por um laço tão
fraco que se rompe sem dificuldade no último batimento do coração. Nessa
situação, o Espírito pode ter já recuperado sua lucidez, e ser
testemunha consciente da extinção da vida de seu corpo do qual está
feliz de se ter libertado; para ele, a perturbação é quase nula; não é
mais do que um momento de sono tranquilo, do qual ele sai com uma
indizível impressão de felicidade e de esperança.
No homem material e
sensual, aquele que viveu mais pelo corpo do que pelo espírito, para
quem a vida espiritual não é nada, nem mesmo uma realidade em seu
pensamento, tudo contribuiu para apertar os laços que o prendem à
matéria; nada veio afrouxá-los durante a vida. Com a aproximação da
morte, o desprendimento se opera também por graus, mas com esforços
contínuos. As convulsões da agonia são o indício da luta travada pelo
Espírito que por vezes quer romper os laços que lhe resistem, e outras
vezes se agarra a seu corpo do qual uma força irresistível o arranca
violentamente, parte por parte.
10. O
Espírito apega-se tanto mais à vida corpórea quanto não vê nada além;
ele sente que ela lhe escapa, e quer segurá-la; em vez de se abandonar
ao movimento que o arrasta, ele resiste com todas as suas forças; pode
assim prolongar a luta durante dias, semanas e meses inteiros. Sem
dúvida, nesse momento, o Espírito não tem toda sua lucidez; a
perturbação começou muito tempo antes da morte, mas ele não sofre menos
por isso, e o vazio em que se encontra, a incerteza do que lhe advirá,
juntam-se às suas angústias. A morte chega, e nem tudo acabou; a
perturbação continua; ele sente que vive, mas não sabe se é vida
material ou vida espiritual; continua a lutar até que as últimas amarras
do perispírito sejam rompidas. A morte pôs um termo à doença efetiva,
mas não acabou com suas consequências; enquanto existem pontos de
contato entre o corpo e o perispírito, o Espírito sente seus golpes e
sofre.
11.
Bem diferente é a posição do Espírito desmaterializado, mesmo nas
doenças mais cruéis. Sendo muito fracos os laços fluídicos que o unem ao
corpo, eles se rompem sem nenhum abalo; depois, sua confiança no
futuro, que ele já entrevê pelo pensamento, e às vezes mesmo em
realidade, o faz encarar a morte como uma libertação e seus males como
uma prova; daí, para ele, uma calma moral e uma resignação que aliviam o
sofrimento. Depois da morte, sendo esses laços instantaneamente
rompidos, nenhuma reação dolorosa se opera nele; ele se sente, ao
despertar, livre, disposto, aliviado de um grande peso, e muito alegre
por não mais sofrer.
12.
Na morte violenta, as condições não são exatamente as mesmas. Nenhuma
desagregação parcial pôde trazer uma separação prévia entre o corpo e o
perispírito; a vida orgânica, em toda sua força, é subitamente detida; o
desprendimento do perispírito não começa senão depois da morte, e,
neste caso como nos outros, não se pode operar instantaneamente. O
Espírito, pego de improviso, fica como que atordoado; mas, sentindo que
pensa, acredita que ainda está vivo, e essa ilusão dura até que se tenha
dado conta de sua situação. Esse estado intermediário entre a vida
corpórea e a vida espiritual é um dos mais interessantes a estudar,
porque apresenta o singular espetáculo de um Espírito que toma seu corpo
fluídico pelo seu corpo material, e que experimenta todas as sensações
da vida orgânica. Ele oferece uma variedade infinita de nuances segundo o
caráter, os conhecimentos e o grau de adiantamento moral do Espírito. É
de curta duração para aqueles cuja alma está purificada, porque neles
havia um desprendimento antecipado do qual a morte, mesmo a mais súbita,
apressa apenas o cumprimento; em outros, ele pode se prolongar durante
anos. Esse estado é muito frequente, mesmo nos casos de morte comum, e
não tem, para alguns, nada de penoso segundo as qualidades do Espírito;
mas para outros, é uma situação terrível. É sobretudo no suicídio que
essa posição é mais penosa. O corpo, ligado ao perispírito por todas as
suas fibras, todas as convulsões do corpo repercutem na alma, que por
isso experimenta atrozes sofrimentos.
13.
O estado do Espírito no momento da morte pode resumir-se assim: O
Espírito sofre tanto mais quanto o desprendimento do perispírito é mais
lento; a prontidão do desprendimento é proporcional ao grau de
adiantamento moral do Espírito; para o Espírito desmaterializado cuja
consciência é pura, a morte é um sono de alguns instantes, isento de
todo sofrimento, e cujo despertar é cheio de suavidade.
14. Para
trabalhar por sua purificação, reprimir suas más tendências, vencer
suas paixões, é preciso ver as vantagens disso no futuro; para se
identificar com a vida futura, dirigir a ela suas aspirações e
preferi-la à vida terrestre, é preciso não só crer nela, mas
compreendê-la; é preciso representá-la de maneira satisfatória para a
razão, de acordo com a lógica, o bom senso e a ideia que se faz da
grandeza, da bondade e da justiça de Deus. De todas as doutrinas
filosóficas, o Espiritismo é a que exerce, sob esse aspecto, a mais
poderosa influência pela fé inabalável que ele dá.
O espírita sério
não se limita a crer; ele crê porque compreende, e ele compreende porque
nos dirigimos ao seu julgamento; a vida futura é uma realidade que se
desenrola incessantemente a seus olhos; ele a vê e a toca por assim
dizer em todos os instantes; a dúvida não pode entrar na sua alma. A
vida corporal tão limitada se apaga para ele diante da vida espiritual
que é a verdadeira vida; daí o pouco caso que ele faz dos incidentes do
caminho, e sua resignação nas vicissitudes de que ele compreende a causa
e a utilidade. Sua alma se eleva pelas relações diretas que ele mantém
com o mundo invisível; os laços fluídicos que o ligam à matéria se
enfraquecem, e assim se opera um primeiro desprendimento parcial que
facilita a passagem desta vida à outra. A perturbação inseparável da
transição é de curta duração, porque, tão logo dado o passo, ele se
reconhece; nada lhe é estranho; ele se dá conta de sua situação.
15.
O Espiritismo sem dúvida não é indispensável a este resultado; assim,
ele não tem a pretensão de ser o único a assegurar a salvação da alma,
mas ele a facilita pelos conhecimentos que proporciona, os sentimentos
que inspira e as disposições nas quais coloca o Espírito, ao qual faz
compreender a necessidade de se aperfeiçoar. Ele dá a cada um, além
disso, os meios de facilitar o desprendimento dos outros Espíritos no
momento em que eles deixam seu envoltório terrestre, e de abreviar a
duração da perturbação pela prece e a evocação. Pela prece sincera, que é
uma magnetização espiritual, provoca-se uma desagregação mais rápida do
fluido perispiritual; por uma evocação conduzida com sabedoria e
prudência, e por palavras de benevolência e de encorajamento, tira-se o
Espírito do entorpecimento em que se encontra, e ele é ajudado a se
reconhecer mais cedo; se ele é sofredor, é excitado ao arrependimento,
único que pode abreviar os sofrimentos.*
* Os exemplos que vamos citar apresentam os Espíritos nas diferentes fases de bem-aventurança e de desgraça da vida espiritual. Não fomos buscá-los nos personagens mais ou
menos ilustres da antiguidade, cuja posição pôde mudar consideravelmente desde a existência
que conhecemos deles, e que não ofereceriam, aliás, provas suficientes de autenticidade. Nós
os extraímos das circunstâncias mais corriqueiras da vida contemporânea, porque são aquelas
em que cada um pode encontrar mais semelhanças, e das quais se podem tirar as instruções
mais proveitosas pela comparação. Quanto mais a existência terrestre dos Espíritos se
aproxima de nós, pela posição social, as relações ou os laços de parentesco, mais eles nos
interessam, e mais fácil é controlar a identidade deles. As posições comuns são as da maioria,
é por isso que cada um pode fazer mais facilmente a aplicação delas; as posições
excepcionais tocam menos, porque saem da esfera de nossos hábitos. Não são portanto as
celebridades que nós buscamos; se, nestes exemplos, se acham algumas individualidades
conhecidas, a maioria é completamente obscura; nomes retumbantes não teriam acrescentado
nada à instrução e poderiam ter ferido susceptibilidades. Não nos dirigimos nem aos curiosos
nem aos apreciadores de escândalo, mas àqueles que querem seriamente instruir-se.
Estes exemplos poderiam multiplicar-se ao infinito; mas, forçado a limitar seu número,
escolhemos aqueles que podiam lançar mais luz sobre o estado do mundo espiritual, quer pela
posição do Espírito, quer pelas explicações que ele era capaz de dar. A maioria deles é inédita;
somente alguns já foram publicados na
Revista espírita; suprimimos destes os detalhes
supérfluos, não conservando senão as partes essenciais à finalidade que nos propomos aqui, e
acrescentamos-lhes as instruções complementares que ocasionaram ulteriormente.
Capítulo II — Espíritos felizes
Sr. Sanson
O Sr. Sanson, antigo membro da Sociedade Espírita de Paris, morreu no dia 21 de abril de 1862, depois de um ano de cruéis sofrimentos. Prevendo seu fim, ele dirigira ao presidente da Sociedade uma carta contendo a passagem seguinte:
“Em caso de surpresa pela desagregação de minha alma e de meu corpo, tenho a honra de vos relembrar um pedido que vos fiz há cerca de um ano; evocar meu Espírito o mais imediatamente possível e com a maior frequência que julgardes apropriada, a fim de que, membro assaz inútil de nossa Sociedade durante minha presença na terra, eu lhe possa servir de alguma coisa no além-túmulo, dando-lhe os meios de estudar fase por fase, nessas evocações, as diversas circunstâncias que se seguem ao que o vulgo chama de morte, mas que, para nós, espíritas, não é senão uma transformação, segundo os desígnios impenetráveis de Deus, mas sempre útil à finalidade que ele se propõe.
“Além desta autorização e pedido para me fazerem a honra dessa espécie de autópsia espiritual, que meu avanço demasiado pouco tornará talvez estéril, caso em que vossa sabedoria vos conduzirá naturalmente a não levar além de um certo número de tentativas, ouso pedir-lhes pessoalmente, assim como a todos os meus colegas, de ter a bondade de suplicar ao Onipotente que permita aos bons Espíritos assistir-me com seus conselhos benevolentes, em particular São Luís, nosso presidente espiritual, com a finalidade de me guiar na escolha e sobre a época de uma reencarnação; pois, desde já, isso me ocupa muito; temo enganar-me sobre minhas forças espirituais, e pedir a Deus, cedo demais, e presunçosamente demais, um estado corporal no qual eu não poderia justificar a bondade divina, o que, em vez de servir para meu avanço, prolongaria minha estada na terra ou em outro lugar, no caso de eu falhar.”
Para nos conformarmos ao seu desejo de ser evocado o mais cedo possível depois de sua morte, fomos à casa mortuária com alguns membros da Sociedade, e, na presença do corpo, a conversa seguinte ocorreu uma hora antes da inumação. Tínhamos aí um duplo objetivo, o de cumprir uma última vontade, e o de observar uma vez mais a situação da alma num momento tão próximo da morte, e isso num homem eminentemente inteligente e esclarecido, e profundamente penetrado das verdades espíritas; tínhamos que constatar a influência dessas crenças sobre o estado do Espírito, a fim de perceber suas primeiras impressões. Nossa expectativa não se enganou; o Sr. Sanson descreveu com perfeita lucidez o instante da transição; ele se viu morrer e se viu renascer, circunstância pouco comum, e que se devia à elevação de seu Espírito.
I
(Câmara mortuária, 23 de abril de 1862.)
1. Evocação. - Venho ao vosso apelo para cumprir minha promessa.
2. Meu caro senhor Sanson, é para nós um dever e um prazer evocar-vos o mais cedo possível depois de vossa morte, assim como desejastes. – R. É uma graça especial de Deus que permite ao meu Espírito poder se comunicar; agradeço-vos vossa boa vontade; mas estou fraco e tremo.
3. Estáveis tão doente que podemos, penso eu, perguntar-vos como estais agora. Ainda sentis dores? Que sensação experimentais comparando vossa situação presente com a de há dois dias? – R. Minha posição é bem feliz, pois não sinto mais nada de minhas antigas dores; estou regenerado e novo em folha, como dizeis aí. A transição da vida terrestre à vida dos Espíritos tinha no início tornado tudo incompreensível para mim, pois ficamos às vezes vários dias sem recuperar nossa lucidez; mas, antes de morrer, fiz uma prece a Deus e lhe pedi para poder falar com aqueles que amo, e Deus ouviu-me.
4. Ao fim de quanto tempo recuperastes a lucidez de vossas ideias? – R. Ao fim de oito horas; Deus, repito-vos, me dera um sinal de sua bondade; ele me julgara suficientemente digno, e nunca poderei agradecer-lhe o bastante.
5. Estais bem certo de não ser mais do nosso mundo, e em que o constatais? – R. Oh! Decerto que não, não sou mais do vosso mundo; mas estarei sempre perto de vós para vos proteger e apoiar, a fim de pregar a caridade e a abnegação que foram os guias da minha vida; e depois, ensinarei a fé verdadeira, a fé espírita, que deve reerguer a crença do justo e do bom; estou forte e muito forte, transformado, numa palavra; vós não reconheceríeis mais o velhote enfermo que devia esquecer tudo, deixando longe de si todo prazer, toda alegria. Sou Espírito; minha pátria é o espaço, e meu futuro, Deus, que irradia na imensidão. Gostaria muito de poder falar com meus filhos, pois lhes ensinaria tudo aquilo que eles sempre tiveram a má vontade de não acreditar.
6. Que efeito vos faz experimentar a visão de vosso corpo, aqui ao lado? – R. Meu corpo, pobre e ínfimo resto mortal, tu deves ir para o pó, e eu guardo a boa recordação de todos aqueles que me estimavam. Olho essa pobre carne deformada, morada do meu espírito, prova de tantos anos! Obrigado, meu pobre corpo! Purificaste meu Espírito, e o sofrimento dez vezes santo deu-me um lugar bem merecido, visto que encontro imediatamente a faculdade de vos falar.
7. Conservastes vossas ideias até o último momento? – R. Sim, meu Espírito conservou suas faculdades; eu não via mais, mas pressentia; toda a minha vida se desenrolou diante da minha recordação, e meu último pensamento, minha última prece foi poder falar-vos, o que estou fazendo; e depois pedi a Deus que vos protegesse, a fim de que o sonho da minha vida
fosse realizado.
8. Tivestes consciência do momento em que vosso corpo deu o último suspiro? O que se passou convosco nesse momento? Que sensação experimentastes? – R. A vida se rompe e a visão, ou melhor, a visão do Espírito se extingue; encontra-se o vazio, o desconhecido, e, levado por não sei qual prestígio, encontramo-nos num mundo onde tudo é alegria e grandeza. Eu não sentia mais, não me dava conta, no entanto uma felicidade inefável me plenificava; não sentia mais o peso da dor.
9. Tendes conhecimento... (do que me proponho a ler sobre vosso túmulo?)
Observação: Mal as primeiras palavras da pergunta foram pronunciadas e o Espírito responde antes de acabar. Ademais, ele responde, e sem pergunta formulada, a uma discussão que se levantara entre os assistentes, sobre a oportunidade de ler essa comunicação no cemitério, devido às pessoas que poderiam não compartilhar essas opiniões.
R. Oh! Meu amigo, eu o sei, pois vos vi ontem, e vejo-vos hoje; minha satisfação é bem grande!...Obrigado! obrigado! Falai, a fim de que me compreendam e que vos estimem! Não temais nada, pois respeita-se a morte; falai portanto, a fim de que os incrédulos tenham fé. Adeus; falai; coragem, confiança, e que meus filhos possam se converter a uma crença reverenciada!
J. SANSON.
Durante a cerimônia do cemitério, ele ditou as palavras seguintes:
Que a morte não vos apavore, meus amigos; ela é uma etapa para vós, se soubestes bem viver; ela é uma bem-aventurança, se houverdes merecido dignamente e cumprirdes bem vossas provas. Repito-vos: Coragem e boa vontade! Não atribuais senão um valor medíocre aos bens da terra, e sereis recompensados; não se pode gozar demasiado, sem privar outros do bem-estar, e sem se fazer moralmente um mal imenso. Que a terra me seja leve!II
II
(Sociedade Espírita de Paris, 25 de abril de 1862.)
1. Evocação. – R. Meus amigos, estou perto de vós.
2. Estamos muito felizes pela conversa que tivemos convosco no dia do vosso sepultamento, e visto que vós o permitis, ficaremos encantados de completá-la para nossa instrução. – R. Estou completamente preparado, feliz que penseis em mim.
3. Tudo aquilo que pode nos esclarecer sobre o estado do mundo invisível e fazer-nos compreendê-lo é um alto ensinamento, porque é a ideia falsa que se faz dele que conduz quase sempre à incredulidade. Não fiqueis então surpreendido com as perguntas que poderemos dirigir-vos. – R. Não ficarei espantado, e espero vossas perguntas.
4. Vós descrevestes com uma luminosa claridade a passagem da vida à morte; dissestes que no momento em que o corpo dá o último suspiro, a vida se rompe, e a vista do Espírito se extingue. Esse momento é acompanhado por uma sensação penosa, dolorosa? – R. Sem dúvida, pois a vida é uma sucessão contínua de dores, e a morte é o complemento de todas as dores; daí um dilaceramento violento, como se o Espírito tivesse de fazer um esforço sobre-humano para escapar de seu invólucro, e é esse esforço que absorve todo nosso ser e lhe faz perder o conhecimento do que ele se torna.
Observação: Esse caso não é geral. A experiência prova que muitos Espíritos desmaiam antes de expirar, e que naqueles que chegaram a um certo grau de desmaterialização, a separação se opera sem esforços.
5. Sabeis se há Espíritos para os quais esse momento é mais doloroso? Ele é mais penoso, por exemplo, para o materialista, para aquele que acredita que tudo acaba nesse momento para ele? – R. Isso é certo, pois o Espírito preparado já esqueceu o sofrimento, ou melhor, ele está habituado a ele, e a quietude com a qual vê a morte impede-o de sofrer duplamente, porque sabe o que o aguarda. A pena moral é a mais forte, e sua ausência no instante da morte é um alívio bem grande. Aquele que não crê parece-se com o condenado à pena capital e cujo pensamento vê a faca e o desconhecido. Há semelhança entre essa morte e a do ateu.
6. Há materialistas bastante endurecidos para crer seriamente, nesse momento supremo, que vão ser mergulhados no nada? –
R. Sem dúvida, até a última hora há os que creem no nada; mas, no momento da separação, o Espírito tem um retorno profundo; a dúvida toma conta dele e tortura-o, pois ele se pergunta o que se vai tornar; ele quer perceber algo e não pode. A separação não se pode fazer sem essa impressão. Observação: Um Espírito nos deu, numa outra circunstância, o seguinte quadro do fim do incrédulo:
“O incrédulo endurecido experimenta nos últimos momentos as angústias desses pesadelos terríveis onde se está à beira de um precipício, prestes a cair no abismo; fazem-se inúteis esforços para fugir, e não se pode andar; quer-se agarrar-se a algo, alcançar um ponto de apoio, e sente-se escorregar; quer-se chamar e não se consegue articular nenhum som; é então que se vê o moribundo torcer, crispar as mãos e dar gritos abafados, sinais certos do pesadelo do qual é presa. No pesadelo comum, o despertar tira-vos da agitação, e vós vos sentis felizes por reconhecer que era só um sonho; mas o pesadelo da morte se prolonga frequentemente por muito tempo, até anos, além da morte, e o que torna a sensação ainda mais penosa para o Espírito, são as trevas em que por vezes ele está mergulhado.”
7. Dissestes que no momento de morrer não víeis mais, mas que pressentíeis. Não víeis mais corporalmente, isso se compreende; mas, antes que a vida se extinguisse, entrevíeis já a claridade do mundo dos Espíritos?
– R. É o que eu disse anteriormente: o instante da morte dá a clarividência ao Espírito; os olhos não veem mais, mas o Espírito, que possui uma visão bem mais profunda, descobre instantaneamente um mundo desconhecido, e aparecendo-lhe subitamente a verdade, dá-lhe, momentaneamente é certo, ou uma alegria profunda, ou uma dor inexprimível, segundo o estado de sua consciência e a recordação de sua vida passada. Observação: Trata-se do instante que precede aquele em que o Espírito perde conhecimento, o que explica o emprego da palavra momentaneamente, pois as mesmas impressões agradáveis ou penosas continuam ao despertar.
8. Tende a bondade de nos dizer o que, no instante em que vossos olhos se reabriram à luz, vos impressionou, o que vistes. Tende a bondade de nos descrever, se for possível, o aspecto das coisas que se ofereceram a vós.
– R. Assim que pude voltar a mim, e ver o que tinha diante dos olhos, estava como ofuscado, e não me dava conta, porque a lucidez não volta instantaneamente. Mas Deus, que me deu um sinal profundo de sua bondade, permitiu que eu recuperasse minhas faculdades. Vi-me rodeado de inúmeros e fiéis amigos. Todos os Espíritos protetores que vêm nos assistir, me rodeavam e me sorriam; uma felicidade sem igual os animava, e eu mesmo, forte e de boa saúde, podia, sem esforço, me transportar através do espaço. O que eu vi não tem nome nas línguas humanas.
Virei, ademais, falar-vos mais amplamente de todas as minhas venturas, sem ultrapassar porém o limite que Deus exige. Sabei que a felicidade, tal como a entendeis entre vós, é uma ficção. Vivei sabiamente, santamente, no espírito de caridade e de amor, e tereis preparado para vós impressões que vossos maiores poetas não saberiam descrever.
Observação: Os contos de fadas estão sem dúvida cheios de coisas absurdas; mas não seriam eles, em alguns pontos, a pintura do que acontece no mundo dos Espíritos? Não se parece o relato do Sr. Sanson com o de um homem que, adormecido numa pobre e obscura cabana, despertasse num palácio esplêndido, no meio de uma corte brilhante?
III
9. Com que aspecto os Espíritos se apresentaram a vós? Com o da forma humana?
– R. Sim, meu caro amigo, os Espíritos nos haviam ensinado na terra que eles conservavam no outro mundo a forma transitória que tinham tido na terra, e é a verdade. Mas que diferença entre a máquina informe que se arrasta penosamente com seu cortejo de provas, e a fluidez maravilhosa do corpo dos Espíritos! A feiura não existe mais, pois os traços perderam a dureza de expressão que forma o caráter distintivo da raça humana. Deus beatificou todos aqueles corpos graciosos, que se movem com todas as elegâncias da forma; a linguagem tem entonações intraduzíveis para vós, e o olhar tem a profundidade de uma estrela. Tentai, pelo pensamento, ver o que Deus pode fazer na sua onipotência, ele que é o arquiteto dos arquitetos, e tereis uma fraca ideia da forma dos Espíritos.
10. Quanto a vós, como vos vedes? Reconheceis em vós uma forma limitada, circunscrita, embora fluídica? Sentis em vós uma cabeça, um tronco, braços, pernas? – R. O Espírito, tendo conservado sua forma humana, mas divinizada, idealizada, tem, sem contradita, todos os membros de que falais. Sinto em mim perfeitamente pernas e dedos, pois podemos, por nossa vontade, aparecer-vos ou pressionar-vos as mãos. Estou perto de vós e apertei a mão de todos os meus amigos, sem que eles tivessem tido consciência disso; nossa fluidez pode estar em toda parte sem obstruir o espaço, sem dar nenhuma sensação, se for esse o nosso desejo. Neste momento, vós estais de mãos cruzadas e eu tenho as minhas nas vossas. Digo-vos: eu vos amo, mas meu corpo não ocupa lugar, a luz o atravessa, e o que chamaríeis um milagre, se ele fosse visível, é para os Espíritos a ação contínua de todos os instantes.
A visão dos Espíritos não tem relação com a visão humana, assim como seu corpo não tem semelhança real, pois tudo é alterado no conjunto e no fundo. O Espírito, repito-vos, tem uma perspicácia divina que se estende a tudo, visto que pode adivinhar mesmo vosso pensamento; também pode, apropriadamente, tomar a forma que melhor pode trazê-lo de volta às vossas recordações. Mas, de fato, o Espírito superior que acabou suas provas, gosta da forma que pôde conduzi-lo para perto de Deus.
11. Os Espíritos não têm sexo; no entanto, como ainda há poucos dias é reis homem, tendes em vosso novo estado mais da natureza masculina que da natureza feminina? Acontece o mesmo a um Espírito que tivesse deixado seu corpo há muito tempo?
– R. Não fazemos questão de ser de natureza masculina ou feminina: os Espíritos não se reproduzem. Deus cria-os à sua vontade, e se, para seus desígnios maravilhosos, ele quis que os Espíritos se reencarnem na terra, ele precisou acrescentar a reprodução das espécies pelo macho e a fêmea. Mas, vós o sentis, sem que seja preciso nenhuma explicação, os Espíritos não podem ter sexo. Observação: Sempre foi dito que os Espíritos não têm sexo; os sexos não são necessários senão para a reprodução dos corpos; pois não se reproduzindo os Espíritos, os sexos seriam para eles inúteis. Nossa pergunta não tinha o objetivo de constatar o fato, mas devido à morte recente do Sr. Sanson, queríamos saber se lhe restava uma impressão de seu estado terrestre. Os Espíritos purificados dão-se perfeitamente conta de sua natureza, mas entre os Espíritos inferiores, não desmaterializados, há muitos que creem ser ainda o que eram na terra, e conservam as mesmas paixões e os mesmos desejos; estes últimos se creem ainda homens ou mulheres, e eis porque há os que disseram que os Espíritos têm sexos. É assim que certas contradições provêm do estado mais ou menos avançado dos Espíritos que se comunicam; o erro não é dos Espíritos, mas daqueles que os interrogam e não se dão ao trabalho de aprofundar as questões.
12. Que aspecto vos apresenta a sessão? É ela para vossa nova visão o que vos parecia durante a vida? As pessoas têm para vós a mesma aparência? Tudo é igualmente claro, igualmente nítido?
– R. Bem mais claro, pois posso ler no pensamento de todos, e estou bem feliz pela boa impressão que me deixa a boa vontade de todos os Espíritos reunidos. Desejo que o mesmo entendimento possa existir não só em Paris, pela reunião de todos os grupos, mas também em toda a França, onde grupos se separam e se invejam, impelidos por Espíritos trapalhões que gozam com a desordem, enquanto o Espiritismo deve ser o esquecimento completo, absoluto do eu.
13. Dizeis que ledes em nosso pensamento; poderíeis fazer-nos compreender como se opera essa transmissão de pensamento?
– R. Isso não é fácil; para vos dizer, vos explicar esse prodígio singular da visão dos Espíritos, seria preciso abrir-vos todo um arsenal de agentes novos, e seríeis tão sábios quanto nós, o que não é possível, visto que vossas faculdades são limitadas pela matéria. Paciência! Tornai-vos bons, e chegareis lá; não tendes atualmente senão o que Deus vos concede, mas com a esperança de progredir continuamente; mais tarde sereis como nós. Tentai então morrer bem para saber muito. A curiosidade, que é o estimulante do homem pensante, vos conduz tranquilamente até a morte, reservando-vos a satisfação de todas as vossas curiosidades passadas, presentes e futuras.
Enquanto se espera, dir-vos-ei para responder bem ou mal à vossa questão: O ar que vos rodeia, impalpável como nós, leva o caráter de vosso pensamento; o hálito que exalais é, por assim dizer, a página escrita de vossos pensamentos; eles são lidos, comentados pelos Espíritos que se chocam convosco incessantemente; eles são os mensageiros de uma telegrafia divina a que nada escapa.
A morte do Justo
Após a primeira evocação do Sr. Sanson, feita na Sociedade de Paris, um Espírito deu, com esse título, a comunicação seguinte:
A morte do homem do qual vos ocupais neste momento foi a do justo; ou seja, acompanhada de calma e de esperança. Como o dia sucede naturalmente à aurora, a vida espírita sucedeu para ele à vida terrestre, sem abalo, sem dilaceramento, e seu último suspiro se exalou num hino de reconhecimento e de amor. Quão poucos atravessam assim essa rude passagem! Quão poucos, após a embriaguez e os desesperos da vida, concebem o ritmo harmonioso das esferas! Assim como o homem saudável, mutilado por uma bala, ainda tem dor nos membros dos quais está separado, assim a alma do homem que morre sem fé e sem esperança, se dilacera e palpita escapando do corpo, e lançando-se, inconsciente de si mesma, no espaço.
Rezai por essas almas perturbadas; rezai por tudo o que sofre; a caridade não se restringe à humanidade visível: ela socorre e consola também os seres que povoam o espaço. Tivestes a prova tocante disso pela conversão tão súbita desse Espírito enternecido pelas preces espíritas feitas no túmulo do homem de bem, que deveis interrogar, e que deseja vos fazer progredir no santo caminho. *
O amor não tem limites; ele preenche o espaço, dando e recebendo sucessivamente suas divinas consolações. O mar se desdobra numa perspectiva infinita; seu limite último parece confundir-se com o céu, e o Espírito fica deslumbrado pelo magnífico espetáculo dessas duas grandezas. Assim o amor, mais profundo do que as vagas, mais infinito do que o espaço, deve reunir-vos a todos, vivos e Espíritos, na mesma comunhão de caridade, e operar a admirável fusão do que é finito e do que é eterno.
GEORGES.
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* Alusão ao Espírito de Bernardo, que se manifestou espontaneamente no dia das exéquias do Sr. Sanson. (Ver a Revista de maio de 1862, p. 132.)
Sr. Jobard
Diretor do Museu da Indústria de Bruxelas; nascido em Baissey (Haute- Marne); morto em Bruxelas, de um ataque de apoplexia fulminante, em 27 de outubro de 1861, com a idade de sessenta e nove anos.
I
O Sr. Jobard era presidente honorário da Sociedade Espírita de Paris; pretendíamos evocá-lo na sessão de 8 de novembro, quando ele antecipou esse desejo dando espontaneamente a comunicação seguinte: Eis-me aqui, eu que iríeis evocar e que quero me manifestar primeiro a esse médium que solicitei em vão até agora.
Quero primeiro contar-vos minhas impressões no momento da separação da minha alma: senti um abalo extraordinário, lembrei-me subitamente de meu nascimento, minha juventude, minha idade madura; toda a minha vida me veio nitidamente à lembrança. Não sentia senão um piedoso desejo de me encontrar nas regiões reveladas pela nossa querida crença; depois, todo esse tumulto se apaziguou. Eu estava livre e meu corpo jazia inerte. Ah! meus caros amigos, que inebriante é tirar o peso do corpo! Que inebriante abarcar o espaço! Não acrediteis porém que eu me tenha tornado subitamente um eleito do Senhor; não, estou entre os Espíritos que, tendo abarcado um pouco, devem ainda aprender muito. Não tardei a me lembrar de vós, meus irmãos de exílio, e, asseguro-vos, toda a minha simpatia, todos os meus votos vos envolveram.
Quereis saber quais foram os Espíritos que me receberam? Quais foram minhas impressões? Meus amigos foram todos aqueles que evocamos, todos os irmãos que compartilharam nossos trabalhos. Eu vi o esplendor, mas não posso descrevê-lo. Apliquei-me a discernir o que era verdadeiro nas comunicações, pronto a corrigir todas as asserções errôneas; pronto, enfim, a ser o cavaleiro da verdade no outro mundo, como o fui no vosso. JOBARD.
1. Quando em vida, havíeis nos recomendado chamar-vos quando tivésseis deixado a terra; fazemo-lo, não só para nos conformarmos ao vosso desejo, mas sobretudo para vos renovar o testemunho de nossa viva e sincera simpatia, e também no interesse de nossa instrução, pois vós, melhor do que ninguém, sois capaz de nos dar informações precisas sobre o mundo em que vos encontrais. Ficaremos então felizes se aceitardes responder a nossas perguntas. – R. Nesta hora, o que importa mais é a vossa instrução. Quanto à vossa simpatia, eu a vejo, e não ouço mais sua expressão somente pelos ouvidos, o que constitui um grande progresso.
2. Para fixar nossas ideias, e não falar no vazio, perguntar-vos-emos primeiro em que lugar estais aqui, e como nós vos veríamos se vos pudéssemos ver? – R. Estou perto do médium; vós me veríeis na aparência do Jobard que se sentava à vossa mesa, pois vossos olhos mortais não abertos não podem ver os Espíritos a não ser em sua aparência mortal.
3. Teríeis a possibilidade de vos tornar visível para nós, e se não o podeis, o que se opõe a isso? – R. A disposição que vos é pessoal. Um médium vidente ver-me-ia: os outros não me veem.
4. Este lugar é o que ocupáveis quando vivo, quando assistíeis as nossas sessões, e que vos reservamos. Aqueles portanto que vos viram ali, devem imaginar vos ver ali tal como éreis então. Se não estais ali com vosso corpo material, estais com vosso corpo fluídico que tem a mesma forma; se não vos vemos com os olhos do corpo, vemos com os do pensamento; se não podeis vos comunicar pela fala, podeis fazê-lo pela escrita com a ajuda de um intérprete; nossas relações convosco não estão pois interrompidas de modo nenhum pela vossa morte, e podemos conversar convosco tão facilmente e tão completamente quanto outrora. É assim que as coisas acontecem? – R. Sim, e vós o sabeis há muito tempo. Este lugar, eu o ocuparei muitas vezes, e mesmo sem o vosso conhecimento, pois meu Espírito habitará entre vós.
Observação: Chamamos a atenção para esta última frase: “Meu Espírito habitará entre vós.” Na circunstância presente, não é uma figura, mas uma realidade. Pelo conhecimento que o Espiritismo nos dá da natureza dos Espíritos, sabe-se que um Espírito pode estar entre nós, não só pelo pensamento, mas em pessoa, com a ajuda de seu corpo etéreo, que faz dele uma individualidade distinta. Um Espírito pode portanto morar entre nós após a morte, tanto quanto quando seu corpo vivia; e melhor ainda, visto que pode vir e ir-se embora quando quer. Temos assim uma multidão de comensais invisíveis, uns indiferentes, outros que nos são apegados pela afeição; é sobretudo a estes últimos que se aplica esta frase: “Eles habitam entre nós”, que pode traduzir-se assim: Eles nos assistem, nos inspiram e nos protegem.
5. Não há muito tempo estáveis sentado nesse mesmo lugar; as condições em que estais agora vos parecem estranhas? Que efeito essa mudança produz em vós? – R. Estas condições não me parecem estranhas, pois meu Espírito desencarnado goza de uma nitidez que não deixa na sombra nenhuma das questões que ele encare.
6. Lembrais-vos de ter estado nesse mesmo estado antes de vossa última existência, e encontrais aí algo mudado? – R. Lembro-me de minhas existências anteriores, e acho que estou aperfeiçoado. Vejo e comparo-me ao que vejo. Na ocasião de minhas encarnações anteriores, Espírito perturbado, só me apercebia das lacunas terrestres.
7. Lembrais-vos de vossa penúltima existência, daquela que precedeu o Sr. Jobard? – R. Em minha penúltima existência eu era operário mecânico, roído pela miséria e o desejo de aperfeiçoar meu trabalho. Realizei, sendo Jobard, os sonhos do pobre operário, e louvo a Deus cuja bondade infinita fez germinar a planta cuja semente ele depositara no meu cérebro.
8. Já vos comunicastes em outro lugar? – R. Comuniquei-me pouco, ainda; em muitos lugares um Espírito tomou meu nome; às vezes eu estava perto dele sem poder fazê-lo diretamente; minha morte é tão recente que pertenço ainda a certas influências terrestres. É preciso uma perfeita simpatia para que eu possa expressar meu pensamento. Dentro em pouco, agirei indistintamente; ainda não o posso, repito. Quando um homem um pouco conhecido morre, é chamado de todos os lados; mil Espíritos se apressam a revestir sua individualidade; foi o que me aconteceu em várias circunstâncias. Asseguro-vos que logo depois da libertação, poucos Espíritos podem se comunicar, mesmo a um médium preferido.
9. Vedes os Espíritos que estão aqui conosco? – R. Vejo sobretudo Lázaro e Erasto; depois, mais afastado, o Espírito de verdade planando no espaço; depois uma multidão de Espíritos amigos que vos rodeiam, apressados e benevolentes. Ficai felizes, amigos, pois boas influências vos defendem das calamidades do erro.
10. Enquanto vivo, compartilháveis a opinião que foi emitida sobre a formação da terra pela incrustação de quatro planetas que teriam sido soldados juntos. Ainda tendes a mesma crença? – R. É um erro. As novas descobertas geológicas provam as convulsões da terra e sua formação sucessiva. A terra, como os outros planetas, teve sua vida própria, e Deus não teve necessidade dessa grande desordem ou dessa agregação de planetas. A água e o fogo são os únicos elementos orgânicos da terra.
11. Pensáveis também que os homens podiam entrar em catalepsia durante um tempo ilimitado, e que o gênero humano foi trazido dessa maneira para a terra? – R. Ilusão de minha imaginação, que ultrapassava sempre o alvo. A catalepsia pode ser longa, mas não indeterminada. Tradições, lendas aumentadas pela imaginação oriental. Meus amigos, sofri muito repassando as ilusões com as quais alimentei meu espírito: não vos enganeis. Eu aprendera muito, e, posso dizê-lo, minha inteligência, prestes a se apropriar desses vastos e diversos estudos, mantivera de minha última encarnação o amor do maravilhoso e do composto tirado das imaginações populares.
Ainda me ocupei pouco das questões puramente intelectuais no sentido em que vós o tomais. Como poderia eu, deslumbrado, arrastado como sou pelo maravilhoso espetáculo que me rodeia? O vínculo do Espiritismo, mais poderoso do que vós homens podeis conceber, é o único que pode atrair meu ser para essa terra que abandono, não com alegria, seria uma impiedade, mas com o profundo reconhecimento da libertação.
Por ocasião da subscrição aberta pela Sociedade em benefício dos operários de Lyon, em fevereiro de 1862, um membro entregou 50 francos, dos quais 25 por sua própria conta, e 25 em nome do Sr. Jobard. Este último deu a esse respeito a comunicação seguinte: Sinto-me orgulhoso e reconhecido por não ter sido esquecido entre meus irmãos espíritas. Obrigado ao coração generoso que vos trouxe a oferenda que eu vos teria dado se ainda morasse no vosso mundo. Neste em que habito agora, não se precisa de dinheiro; precisei, portanto, tirar da bolsa da amizade para dar provas materiais de que me tocava o infortúnio de meus irmãos de Lyon. Bravos trabalhadores, que ardentemente cultivais a vinha do Senhor, quanto deveis acreditar que a caridade não é uma palavra vã, visto que pequenos e grandes vos mostraram simpatia e fraternidade. Estais no grande caminho humanitário do progresso; possa Deus vos manter nele, e possais vós ser mais felizes; os Espíritos amigos vos apoiarão e triunfareis! Começo a viver espiritualmente, mais apaziguado e menos perturbado pelas evocações fora do caminho trilhado que choviam sobre mim. A moda reina mesmo sobre os espíritos; quando a moda Jobard der lugar a outra e eu entrar no nada do esquecimento humano, pedirei então aos meus amigos sérios, e entendo por isso aqueles cuja inteligência não esquece, pedir-lhes-ei que me evoquem; então aprofundaremos questões t ratadas demasiado superficialmente, e o vosso Jobard, completamente transfigurado, poderá vos ser útil, o que ele deseja de todo o coração. JOBARD.
Após os primeiros tempos dedicados a tranquilizar seus amigos, o Sr. Jobard obteve lugar reservado entre os Espíritos que trabalham ativamente na renovação social, aguardando seu próximo retorno ao meio dos vivos para aí participar mais diretamente. Desde essa época, ele deu frequentemente à Sociedade de Paris, da qual faz questão de continuar membro, comunicações de uma incontestável superioridade, sem renunciar à originalidade e aos ditos espirituosos que constituíam o fundo de seu caráter, e permitem reconhecê-lo antes que tenha dado sua assinatura.
Samuel Philippe
Samuel Philippe é um homem de bem em todas as acepções da palavra; ninguém se lembrava de tê-lo visto cometer uma má ação, nem ter causado voluntariamente prejuízo a quem quer que seja. De um devotamento sem limites para com seus amigos, sempre se tinha certeza de encontrá-lo pronto quando se tratava de prestar um favor, mesmo a despeito de seus interesses. Penas, fadigas, sacrifícios, nada lhe custava para ser útil, e ele o fazia naturalmente, sem ostentação, espantando-se de que isso pudesse ser um mérito. Nunca quis mal àqueles que lhe haviam feito mal, e punha tanta solicitude a obsequiá-los como se lhe tivessem feito bem. Quando lidava com ingratos, dizia: “Não é a mim que se deve lamentar, mas a eles.” Embora muito inteligente e dotado de muito espírito natural, sua vida, toda de labor, fora obscura e semeada de rudes provas. Era uma dessas naturezas de elite que florescem à sombra, da qual ninguém fala, e cujo esplendor não se reflete na terra. Extraíra do conhecimento do Espiritismo uma fé ardente na vida futura e uma grande resignação aos males da vida terrestre. Morreu em dezembro de 1862, com a idade de 55 anos, em consequência de uma dolorosa doença, sinceramente lamentado por sua família e alguns amigos. Foi evocado vários meses após sua morte.
P. Tendes uma recordação nítida de vossos últimos instantes na terra? – R. Perfeitamente; essa recordação voltou-me pouco a pouco, pois naquele momento minhas ideias ainda eram confusas.
P. Gostaríeis, para nossa instrução e pelo interesse que vossa vida exemplar nos inspira, de descrever-nos como se efetuou para vós a passagem da vida corporal à vida espiritual, assim como vossa situação no mundo dos Espíritos? – R. De bom grado; esse relato não será bom apenas para vós, será também para mim. Transportando meus pensamentos à terra, a comparação me faz apreciar melhor ainda a bondade do Criador.
Sabeis de quantas tribulações minha vida foi semeada; nunca me faltou coragem na adversidade, graças a Deus! e hoje congratulo-me por isso. Quantas coisas teria perdido se tivesse cedido ao desalento! Tremo só de pensar que, por minha fraqueza, o que suportei teria sido sem proveito e teria que recomeçar. Ó meus amigos! Que vós possais vos penetrar desta verdade; dela depende vossa felicidade futura. Decerto não é caro demais pagar essa felicidade com alguns anos de sofrimento. Se soubésseis quão pouco são alguns anos ante o infinito!
Se minha última existência teve algum mérito aos vossos olhos, não teríeis dito o mesmo das que a precederam. Não foi senão à custa de trabalho sobre mim mesmo que fiz de mim o que sou agora. Para apagar os últimos traços de minhas faltas anteriores, precisava ainda suportar essas últimas provas que aceitei voluntariamente. Extraí da firmeza de minhas resoluções a força de suportá-las sem murmúrio. Hoje bendigo essas provas; por elas rompi com o passado, que é para mim apenas uma recordação, e posso doravante contemplar com legítima satisfação o caminho que percorri.
Ó vós que me fizestes sofrer na terra, que fostes duros e mal intencionados comigo, que me humilhastes e me mergulhastes na amargura,cuja má fé me reduziu muitas vezes às mais duras privações, não só eu vos perdoo, mas vos agradeço. Querendo fazer-me mal, não suspeitáveis de que me faríeis tanto bem. Porém, é verdade que é em grande parte a vós que devo a felicidade de que gozo, pois fornecestes-me a ocasião de perdoar e de pagar o mal com o bem. Deus colocou-vos no meu caminho para pôr à prova a minha paciência e me exercitar na prática da caridade mais difícil: a do amor por seus inimigos. Não vos impacienteis com esta digressão; chego ao que me perguntais.
Embora sofrendo cruelmente na minha última doença, não tive agonia; a morte veio, para mim, como o sono, sem luta, sem abalos. Não tendo apreensão quanto ao futuro, não me agarrei à vida; não tive, por conseguinte, de me debater com as últimas opressões; a separação operou-se sem esforços, sem dor, e sem que eu me tivesse apercebido. Ignoro quanto tempo durou esse último sono, mas foi curto. O despertar foi de uma calma que contrastava com meu estado anterior; não sentia mais dor e regozijava-me por isso; queria levantar-me, andar, mas um entorpecimento que não tinha nada de desagradável, que tinha mesmo certo encanto, me retinha, e eu me abandonava a ele com uma espécie de volúpia sem me dar conta de minha situação e sem suspeitar de que deixara a terra. O que me rodeava me aparecia como num sonho. Vi minha mulher e alguns amigos de joelhos no quarto e chorando, e disse-me que sem dúvida eles acreditavam que eu morrera; quis desenganá-los, mas não consegui articular nenhuma palavra, de onde concluí que sonhava. O que me confirmou nessa ideia foi ver-me rodeado por várias pessoas queridas, mortas há muito tempo, e outras que não reconheci imediatamente, e que pareciam velar por mim e aguardar meu despertar. Esse estado foi entremeado por instantes de lucidez e de sonolência, durante os quais eu recuperava e perdia alternadamente a consciência de meu eu. Pouco a pouco minhas ideias adquiriram mais nitidez; a luz que eu entrevia apenas através de um nevoeiro fez-se mais brilhante; então comecei a me reconhecer e compreendi que não pertencia mais ao mundo terrestre. Se não tivesse conhecido o Espiritismo, a ilusão se teria sem dúvida prolongado por muito mais tempo.
Meus restos mortais ainda não estavam sepultados; considerei-os com compaixão, congratulando-me por estar finalmente livre deles. Estava tão feliz por estar livre! Respirava à vontade como alguém que sai de uma atmosfera repugnante; uma indizível sensação de felicidade penetrava todo o meu ser; a presença daqueles que amara me enchia de alegria; não me surpreendia nada vê-los; parecia-me muito natural, mas parecia-me revê-los depois de uma longa viagem. Uma coisa me espantou no começo, era que nos compreendíamos sem articular nenhuma palavra; nossos pensamentos se transmitiam unicamente pelo olhar e como por uma penetração fluídica.
No entanto, ainda não estava completamente livre das ideias terrestres; a recordação do que eu suportara me voltava de tempos a tempos à memória, como para me fazer apreciar melhor minha nova situação. Eu sofrera corporalmente, mas sobretudo moralmente; fora presa da malevolência, dessas mil perplexidades mais penosas talvez do que as desgraças reais, porque elas causam uma ansiedade perpétua. A impressão delas não estava inteiramente apagada, e às vezes eu me perguntava se estava realmente desembaraçado delas; parecia-me ouvir ainda certas vozes desagradáveis; temia os embaraços que me tinham atormentado tantas vezes, e tremia contra vontade; eu me apalpava, por assim dizer, para me assegurar de que não era joguete de um sonho; e quando adquirira a certeza de que tudo aquilo acabara mesmo, parecia-me que um peso enorme me era retirado. É portanto bem verdade, dizia-me eu, que estou enfim livre de todas aquelas preocupações que fazem o tormento da vida, e dava graças a Deus por isso. Era como um pobre que ganha de repente uma grande fortuna; durante algum tempo, ele duvida da realidade e sente as apreensões da necessidade. Ó! se os homens compreendessem a vida futura, que força, que coragem essa convicção não lhes daria na adversidade! O que eles não fariam, enquanto estão na terra, para obter aí a felicidade que Deus reserva aos seus filhos que foram dóceis às suas leis! Veriam quão pouca coisa são os gozos que invejam comparados com os que negligenciam!
P. Esse mundo tão novo para vós, e perto do qual o nosso é tão pouca coisa, os inúmeros amigos que aí reencontrastes vos fizeram perder de vista a vossa família e os vossos amigos na terra? – R. Se eu os tivesse esquecido, seria indigno da felicidade de que gozo; Deus não recompensa o egoísmo, ele o pune. O mundo onde estou pode me fazer desdenhar a terra, mas não os Espíritos que aí estão encarnados. Só entre os homens é que se vê a prosperidade fazer esquecer os companheiros de infortúnio. Vou frequentemente rever os meus; fico feliz pela boa recordação que guardaram de mim; seu pensamento me atrai para eles; assisto às suas conversas, alegro-me com suas alegrias, suas penas me entristecem, mas não é essa tristeza ansiosa da vida humana, porque compreendo que elas são apenas passageiras e são para o bem deles. Fico feliz de pensar que um dia eles virão para esta morada afortunada onde a dor é desconhecida. É para torná-los dignos dela que me aplico; esforço-me para lhes sugerir bons pensamentos, e sobretudo a resignação que eu mesmo tive à vontade de Deus. Minha maior pena é quando os vejo retardar esse momento por sua falta de coragem, seus murmúrios, a dúvida sobre o futuro, ou por alguma ação repreensível. Tento então desviá-los do mau caminho; se consigo, é uma grande felicidade para mim, e todos nos regozijamos aqui; se fracasso, digo-me com pesar: Mais um atraso para eles; mas consolo-me pensando que nem tudo está irremediavelmente perdido.
Sr. Van Durst
Antigo funcionário público, morto em Antuérpia em 1863, com a idade de oitenta anos.
Pouco tempo após sua morte, tendo um médium perguntado a seu guia espiritual se era possível evocá-lo, foi-lhe respondido:
“Esse Espírito sai lentamente de sua perturbação; ele já vos poderia responder, mas a comunicação dar-lhe-ia muita tristeza. Peço-vos então para aguardar ainda quatro dias, e ele vos responderá. Até lá ele saberá as boas intenções que expressastes a seu respeito, e virá a vós reconhecido e como bom amigo.” Quatro dias mais tarde o Espírito ditou o que se segue:
Meu amigo, minha vida teve um peso bem pequeno na balança da eternidade; no entanto estou longe de ser infeliz; estou na condição humilde, mas relativamente feliz daquele que fez pouco mal sem por isso visar a perfeição. Se há pessoas felizes numa pequena esfera, pois bem! faço parte delas. Lamento só uma coisa, não ter conhecido o que vós sabeis agora; minha perturbação teria sido menos longa e menos penosa. Ela foi grande, efetivamente: viver e não viver; ver seu corpo, estar fortemente apegado a ele, e, entretanto, não poder mais servir-se dele; ver aqueles que amamos e sentir extinguir-se o pensamento que nos liga a eles, como é terrível! Oh! que momento cruel! Que momento, quando o atordoamento se apodera de vós e vos sufoca! E um instante depois, trevas. Sentir, e um momento depois, ficar aniquilado. Quer-se ter a consciência de seu eu, e não se pode recuperá-la; não se é mais, e no entanto sente-se que se é; mas fica-se numa perturbação profunda! E depois, após um tempo inapreciável, tempo de angústias contidas, pois não se tem mais força para senti-las, após esse tempo que parece interminável, renascer lentamente para a existência; despertar num novo mundo! Não mais corpo material, não mais vida terrestre: a vida imortal! Não mais homens carnais, mas formas ligeiras, Espíritos que deslizam por todos os lados, giram em torno de vós e que não podeis abarcar todos com o olhar, pois é no infinito que eles flutuam! Ter diante de si o espaço e poder atravessá-lo unicamente pelo pensamento; comunicar-se pelo pensamento com tudo o que vos rodeia! Amigo, que vida nova!
Que vida brilhante! Que vida de regozijos!...
Salve, oh! Salve, eternidade que me conténs em teu seio!... Adeus, terra que me retiveste tanto tempo longe do elemento natural de minha alma! Não, não te quero mais, pois és a terra de exílio e tua maior felicidade não é nada! Mas se eu tivesse sabido o que vós sabeis, como essa iniciação à outra vida me teria sido mais fácil e mais agradável! Teria sabido antes de morrer o que tive de aprender mais tarde, no momento da separação, e minha alma ter-se-ia desprendido mais facilmente. Vós estais no caminho, mas nunca, nunca ireis bastante longe! Dizei-o a meu filho, mas dizei-lhe tanto, que ele creia e se instrua; então na sua chegada aqui não estaremos separados.
Adeus a todos, amigos, adeus; espero-vos, e durante o tempo em que estiverdes na terra, virei com frequência instruir-me convosco, pois ainda não sei tanto quanto vários dentre vós; mas aprenderei depressa aqui onde não tenho mais entraves que me retenham, e onde não tenho mais idade que debilite minhas forças. Aqui vive-se sem entrar em pormenores e avança-se, pois diante de si veem-se horizontes tão belos que se fica impaciente para abarcá-los. Adeus, deixo-vos, adeus.
VAN DURST.
Sixdeniers
Homem de bem, morto por acidente, e conhecido pelo médium durante a vida.
(Bordeaux, 11 de fevereiro de 1861.)
P. Podeis dar-me alguns detalhes sobre a vossa morte? – R. Uma vez afogado, sim. – P. Por que não antes? – R. Tu os conheces. (O médium conhecia-os efetivamente.) – P. Tende a bondade de me descrever então vossas sensações após a morte.
R. Fiquei muito tempo antes de me reconhecer, mas com a graça de Deus e a ajuda daqueles que me rodeavam, quando a luz se fez, fui inundado. Podes ter esperança: encontrarás sempre mais do que esperavas. Nada material; tudo impressiona os sentidos ocultos: o que nem o olho nem a mão podem tocar; compreendes-me? É uma admiração espiritual que ultrapassa vosso entendimento, porque não há palavras para explicá-lo: isso só se pode sentir com a alma.
Meu despertar foi bem feliz. A vida é um desses sonhos que, apesar da ideia grotesca que se atribui a essa palavra, só posso qualificar de horrendo pesadelo. Sonha que estás encerrada numa masmorra infecta, que teu corpo roído pelos vermes, que se introduzem até a medula dos ossos, está suspenso sobre uma fornalha ardente; que tua boca ressecada não encontra nem mesmo ar para refrescá-la; que teu Espírito horrorizado vê apenas à tua volta monstros prestes a devorar-te; imagina por fim tudo o que o fantástico do sonho pode gestar de mais hediondo, de mais horrível, e sente-te transportada subitamente para um Éden delicioso. Desperta cercada por todos aqueles que amaste e choraste; vê à tua volta seus rostos adorados te sorrirem felizes; respira os perfumes mais suaves, refresca tua garganta seca na água da nascente; sente teu corpo elevado no espaço infinito que o carrega e embala como faz a brisa com uma flor desprendida do alto de uma árvore; sente-te envolta pelo amor de Deus como a criança que nasce é envolvida pelo amor da mãe, e não terás senão uma ideia imperfeita dessa transição. Tentei explicar-te a felicidade da vida que espera o homem após a morte de seu corpo, mas não pude. Explica-se o infinito àquele que tem os olhos fechados para a luz e cujos membros nunca puderam sair do círculo estreito em que estão encerrados? Para te explicar a felicidade eterna, dir-te-ei: ama! Pois só o amor pode fazer pressenti-lo; e quem diz amor, diz ausência de egoísmo.
P. Vossa posição foi excelente logo que entrastes no mundo dos Espíritos? – R. Não; tive de pagar a dívida do homem. Meu coração me fizera pressentir o porvir do Espírito, mas eu não tinha fé. Precisei expiar minha indiferença pelo meu Criador, mas sua misericórdia teve consideração pelo pouco bem que tinha podido fazer, pelas dores que eu experimentara com resignação apesar de meu sofrimento, e sua justiça que tem uma balança que os homens jamais compreenderão, pesou o bem com tanta bondade e amor, que o mal foi rapidamente apagado.
P. Gostaríeis de me dar notícias de vossa filha? (morta quatro ou cinco anos depois do pai.) – R. Ela está em missão na vossa terra.
P. Ela está feliz como criatura? Não quero fazer-vos uma pergunta indiscreta. – R. Sei-o bem; acaso não vejo teu pensamento como um quadro diante de meus olhos? Não, como criatura ela não está feliz, ao contrário; todas as misérias de vossa vida devem atingi-la; mas ela deve pregar o exemplo dessas grandes virtudes das quais fazeis palavras bombásticas; ajudá-la-ei, pois devo velar por ela; mas ela não terá grande dificuldade para ultrapassar os obstáculos; ela não está em expiação, mas em missão. Tranquiliza-te então por ela e obrigado pela lembrança.
Nesse momento o médium sente uma dificuldade para escrever, e diz: se for um Espírito sofredor que me detém, peço-lhe que escreva. – R. Uma desgraçada. P. Tende a bondade de me dizer vosso nome. – R. Valérie.
P. Quereis dizer-me o que atraiu o castigo sobre vós? – R. Não.
P. Arrependeis-vos de vossas faltas? – R. Tu o vês bem.
P. Quem vos trouxe aqui? – R. Sixdeniers.
P. Com que objetivo ele o fez? – R. Para que me ajudes.
P. Fostes vós que me impedistes de escrever há pouco? – R. Ele me colocou no lugar dele.
P. Que relação há entre vós? – R. Ele me conduz.
P. Pedi-lhe que se junte a nós para a prece. – (Depois da oração, Sixdeniers continua:) Obrigado por ela; compreendeste, não te esquecerei; pensa nela.
P. (A Sixdeniers). Como Espírito, tendes muitos Espíritos sofredores a guiar? – R. Não; mas tão logo reconduzimos um ao bem, pegamos outro, sem por isso abandonar os primeiros.
P. Como podeis dar conta de uma vigilância que se deve multiplicar ao infinito com os séculos? – R. Compreende que aqueles que trouxemos de volta se purificam e progridem; portanto, eles nos dão menos trabalho; e ao mesmo tempo nós mesmos nos elevamos, e, ascendendo, nossas faculdades progridem, nosso poder irradia em proporção com nossa pureza.
Observação. Os Espíritos inferiores são pois assistidos pelos bons Espíritos que têm a missão de guiá-los; essa tarefa não é exclusivamente entregue aos encarnados, mas estes devem concorrer para ela, porque é para eles um meio de avanço. Quando um Espírito inferior vem se atravessar numa boa comunicação, como no caso presente, não o faz sempre com uma boa intenção, mas os bons Espíritos o permitem, seja como prova, seja a fim de que aquele ao qual ele se dirige trabalhe em seu aperfeiçoamento. Sua persistência, é verdade, degenera às vezes em obsessão, mas quanto mais ela é persistente, mais ela prova quão grande é a necessidade de assistência. Portanto, é um erro repeli-lo; é preciso olhá-lo como um pobre que vem pedir esmola e dizer-se: É um Espírito desgraçado que os bons Espíritos me enviam para fazer sua educação. Se eu conseguir, terei a alegria de ter trazido uma alma de volta ao bem, e ter abreviado seus sofrimentos. Essa tarefa é muitas vezes penosa; seria sem dúvida mais agradável ter sempre belas comunicações, e não conversar senão com os Espíritos de sua escolha; mas não é procurando apenas sua própria satisfação, e recusando as ocasiões que nos oferecem de fazer o bem, que se merece a proteção dos bons Espíritos.
O Doutor Demeure
Morto em Albi (Tarn), em 25 de janeiro de 1865. O Sr. Demeure era um médico homeopata muito distinto de Albi. Seu caráter, tanto quanto seu saber, lhe haviam conciliado a estima e a veneração de seus concidadãos. Sua bondade e sua caridade eram inesgotáveis, e, apesar da idade avançada, nenhuma fadiga lhe custava quando se tratava de ir cuidar de pobres doentes. O preço de suas visitas não o preocupava; custava-lhe menos deslocar-se pelo desgraçado do que por aquele que ele sabia poder pagar, porque, dizia, este último, na falta dele, podia sempre conseguir um médico. Ao primeiro, não só dava os remédios gratuitamente, mas com frequência lhe deixava com o que prover às necessidades materiais, o que, por vezes, é o medicamento mais útil. Pode-se dizer dele que era o cura d’Ars da medicina.
O Sr. Demeure havia abraçado com ardor a doutrina espírita, na qual encontrou a chave dos mais graves problemas cuja solução pedira em vão à ciência e a todas as filosofias. Seu Espírito profundo e investigador fez-lhe imediatamente compreender todo seu alcance, assim ele foi um de seus mais zelosos propagadores. Relações de viva e mútua simpatia se haviam estabelecido entre ele e nós por correspondência.
Soubemos de sua morte em 30 de janeiro, e nosso primeiro pensamento foi conversar com ele. Eis a comunicação que ele nos deu no mesmo dia:
“Eis-me aqui. Prometera a mim mesmo, vivo, que, logo que estivesse morto, viria, se isso me fosse possível, apertar a mão de meu caro mestre e amigo, Sr. Allan Kardec.
“A morte dera à minha alma esse pesado sono que chamamos letargia; mas meu pensamento velava. Sacudi esse torpor funesto que prolonga a perturbação que se segue à morte, despertei, e num salto fiz a viagem.
“Como sou feliz! Não estou mais velho nem enfermo; meu corpo não era senão um disfarce imposto; sou jovem e belo, belo dessa eterna juventude dos Espíritos cujas rugas jamais franzem o rosto, cujos cabelos não embranquecem com o passar do tempo. Sou leve como o pássaro que atravessa com um voo rápido o horizonte de vosso céu nebuloso, e admiro, contemplo, bendigo, amo e inclino-me, átomo, ante a grandeza, a sabedoria, a ciência de nosso Criador, a as maravilhas que me rodeiam.
“Sou feliz; estou na glória! Oh! Quem poderá falar das esplêndidas belezas da terra dos eleitos; os céus, os mundos, os sóis, seu papel no grande concurso da harmonia universal? Pois bem! tentarei, ó meu mestre; vou fazer um estudo, e virei depositar perto de vós a homenagem de meus trabalhos de Espírito que vos dedico antecipadamente. Até breve. “DEMEURE.”
Observação: As duas comunicações seguintes, dadas nos dias 10 e 2 de fevereiro, são relativas à doença que nos acometia naquele momento. Embora sejam pessoais, reproduzimo-las, porque provam que o Sr. Demeure é tão bom como Espírito quanto o era como homem.
“Meu bom amigo, tende confiança em nós e boa coragem; esta crise, ainda que cansativa e dolorosa, não será demorada, e, com os cuidados prescritos, podereis, segundo vossos desejos, completar a obra da qual vossa existência foi o objetivo principal. No entanto, sou eu que estou sempre aqui, perto de vós, com o Espírito de Verdade, que me permite tomar em seu nome a palavra, como o último de vossos amigos vindos para o meio dos Espíritos. Eles me fazem as honras das boas-vindas. Caro mestre, como estou feliz de ter morrido a tempo para estar com eles neste momento! Se eu tivesse morrido mais cedo, talvez tivesse podido vos evitar essa crise que não previa; havia muito pouco tempo que eu estava desencarnado para me ocupar de outra coisa além do espiritual; mas agora velarei por vós, caro mestre, é vosso irmão e amigo que está feliz de ser Espírito para estar junto de vós e tratar-vos em vossa doença; mas conheceis o provérbio: “Ajuda-te, o céu te ajudará.” Ajudai portanto os bons Espíritos nos cuidados que eles vos prestam, conformando-vos estritamente às suas prescrições.
“Está demasiado quente aqui; esse carvão é fatigante. Enquanto estiverdes doente, não queimeis carvão, pois isso faz aumentar vossa opressão; os gases que dele se desprendem são deletérios. “Vosso amigo, DEMEURE.”
“Sou eu, Demeure, o amigo do Sr. Kardec. Venho dizer-lhe que estava perto dele na ocasião do acidente que lhe aconteceu, e que poderia ter sido funesto sem uma intervenção eficaz para a qual fiquei feliz de concorrer. Segundo minhas observações e as informações que extraí de fonte segura, é evidente para mim que, quanto mais cedo sua desencarnação ocorrer, mais cedo poderá se dar a reencarnação pela qual ele virá acabar sua obra. No entanto é preciso que ele dê, antes de partir, a última mão nas obras que devem completar a teoria doutrinal da qual ele é o iniciador, e ele se torna culpado de homicídio voluntário contribuindo, por excesso de trabalho, para a imperfeição de sua organização, que o ameaça com uma súbita partida para nossos mundos. Não se deve temer dizer-lhe toda a verdade, para que ele fique alerta e siga ao pé da letra nossas prescrições.
“DEMEURE.”
A comunicação seguinte foi obtida em Montauban, em 26 de janeiro, dia seguinte à sua morte, no círculo dos amigos espíritas que ele tinha nessa cidade.
“Antoine Demeure. Não morri para vós, meus bons amigos, mas para aqueles que não conhecem, como vós, esta santa doutrina que reúne os que se amaram nesta terra, e que tiveram os mesmos pensamentos e os mesmos sentimentos de amor e de caridade.
“Sou feliz; mais feliz do que podia esperar, pois gozo de uma lucidez rara entre os Espíritos desprendidos da matéria há tão pouco tempo. Tomai coragem, meus bons amigos; estarei frequentemente perto de vós, e não deixarei de vos instruir sobre muitas coisas que ignoramos quando estamos presos à nossa pobre matéria que nos oculta tantas magnificências e tantos gozos. Rezai por aqueles que estão privados dessa felicidade, pois eles não sabem o mal que fazem a si mesmos.
“Não ficarei por muito tempo hoje, mas vos direi que não me acho um estranho neste mundo dos invisíveis; parece-me que sempre o habitei; sou feliz aqui, pois vejo meus amigos, e posso comunicar-me com eles todas as vezes que desejo.
“Não choreis, meus amigos, pois me faríeis lamentar ter-vos conhecido. Dai tempo ao tempo, e Deus vos conduzirá a esta morada onde devemos todos nos encontrar reunidos. Boa noite, meus amigos: que Deus vos console; estou perto de vós.
“DEMEURE.”
Outra carta de Montauban contém a seguinte narração:
“Havíamos escondido da Sra. G..., médium vidente e sonâmbula muito lúcida, a morte do Sr. Demeure, para poupar sua extrema sensibilidade, e o bom doutor, concordando sem dúvida conosco, evitara manifestar-se a ela. Em 10 de fevereiro passado, estávamos reunidos a convite de nossos guias que, diziam eles, queriam aliviar a Sra. G... de um entorse que a fazia sofrer cruelmente desde a véspera. Não sabíamos mais do que isso, e estávamos longe de esperar a surpresa que eles nos preparavam. Mal essa senhora entrou em sonambulismo, soltou gritos dilacerantes mostrando seu pé. Eis o que ocorria:
“A Sra. G... via um Espírito curvado sobre sua perna, cujos traços lhe permaneciam ocultos; ele fazia fricções e massagens, exercendo de tempos em tempos sobre a parte doente uma tração longitudinal, absolutamente como um médico teria feito. A operação era tão dolorosa que a paciente se entregava por vezes a vociferações e a movimentos desordenados. Mas a crise não foi de longa duração; ao fim de dez minutos todo sinal do entorse havia desaparecido, nada de inchaço, o pé recuperara sua aparência normal; a Sra. G... estava curada.
“No entanto o Espírito permanecia desconhecido do médium, e persistia em não mostrar seus traços; tinha mesmo ar de querer ir-se embora, quando de um salto nossa doente, que, alguns minutos antes, não podia dar um passo, se precipita para o meio do quarto para pegar e apertar a mão de seu doutor espiritual. Ainda dessa vez o Espírito desviara a cabeça deixando sua mão na dela. Nesse momento, a Sra. G... dá um grito, e cai desmaiada no chão; ela acabava de reconhecer o Sr. Demeure no espírito curador. Durante a síncope, ela recebia cuidados solícitos de vários Espíritos simpáticos. Por fim, tendo reaparecido a lucidez sonambúlica, ela conversou com os Espíritos, trocando com eles calorosos apertos de mão, especialmente com o Espírito do doutor que respondia a suas provas de afeição penetrando-a de um fluido reparador.
“Esta cena não é tocante e dramática, e não se acreditaria ver todos esses personagens desempenharem seu papel na vida humana? Não é uma prova entre mil que os Espíritos são seres bem reais, tendo um corpo e agindo como o faziam na terra? Estávamos felizes por reencontrar nosso amigo espiritualizado, com seu excelente coração e sua delicada solicitude. Ele fora,
durante a vida, o médico da médium; conhecia sua extrema sensibilidade, e cuidara dela como sua própria filha. Essa prova de identidade dada àqueles que o Espírito amava, não é impressionante e apropriada para fazer encarar a vida futura em seu aspecto mais consolador?
Observação. – A situação do Sr. Demeure, como Espírito, é exatamente aquela que podia fazer pressentir sua vida tão dignamente e tão utilmente ocupada; mas outro fato não menos instrutivo destaca-se dessas comunicações, é a atividade a que ele se entrega quase imediatamente após a morte, para ser útil. Por sua grande inteligência e suas qualidades morais, ele pertence à ordem dos Espíritos muito avançados; ele é feliz, mas sua bem-aventurança não é a inação. A alguns dias de distância, ele tratava de doentes como médico, e, assim que se liberta apressa-se a ir tratar deles como Espírito. O que se ganha então por estar no outro mundo, dirão certas pessoas, se não se goza do repouso? A isso perguntaremos primeiro se não é nada não ter mais preocupações, nem as necessidades, as enfermidades da vida, ser livre, e poder, sem fadiga, percorrer o espaço com a rapidez do pensamento, ir ver seus amigos a toda hora, seja qual for a distância a que se encontrem? Depois acrescentaremos: Quando estiverdes no outro mundo, nada vos forçará a fazer o que quer que seja; sereis perfeitamente livres para ficar numa beata ociosidade tanto tempo quanto vos agradar; mas cansareis logo desse repouso egoísta; sereis os primeiros a pedir uma ocupação. Então vos será respondido: Se vos entediais de não fazer nada, procurai vós mesmos fazer algo; as ocasiões de ser útil não faltam mais no mundo dos Espíritos do que entre os homens. É assim que a atividade espiritual não é uma coerção; ela é uma necessidade, uma satisfação para os Espíritos que buscam as ocupações em relação com seus gostos e aptidões, e escolhem de preferência aquelas que podem ajudar no seu adiantamento.
Sra. Viúva Foulon, sobrenome de solteira Wollis
A Sra. Foulon, morta em Antibes, em 3 de fevereiro de 1865, morara no Havre muito tempo, onde adquirira reputação como miniaturista muito hábil. Seu talento notável foi para ela no início apenas uma distração de amador; mas mais tarde, quando vieram dias maus, ela soube fazer disso um precioso recurso. O que a fazia acima de tudo ser amada e estimada, o que torna sua memória cara a todos aqueles que a conheceram, é a amenidade de seu caráter; são suas qualidades privadas cuja amplitude só podem apreciar aqueles que conhecem sua vida íntima; pois, como todos aqueles em quem o sentimento do bem é inato, ela não o ostentava, nem mesmo suspeitava. Se há alguém sobre quem o egoísmo não tinha nenhuma influência, era ela, sem dúvida; talvez jamais o sentimento de abnegação pessoal nunca tenha sido levado mais longe; sempre pronta a sacrificar seu repouso, sua saúde, seus interesses por aqueles a quem podia ser útil, sua vida foi uma longa sequência de abnegações, assim como foi, desde a juventude, uma longa sequência de rudes e cruéis provas diante das quais sua coragem, resignação e perseverança jamais falharam. Mas, infelizmente! sua vista, cansada por um trabalho minucioso, se extinguia dia a dia; ainda algum tempo e a cegueira, já muito avançada, teria sido completa.
Quando a Sra. Foulon teve conhecimento da doutrina espírita, foi para ela como um traço de luz; pareceu-lhe que se erguia um véu sobre algo que não lhe era desconhecido, mas de que tinha apenas uma vaga intuição; assim, ela a estudou com ardor, e ao mesmo tempo com essa lucidez de espírito, esse acerto de apreciação que era próprio de sua grande inteligência. É preciso conhecer todas as perplexidades de sua vida, perplexidades que tinham sempre por motivo, não ela mesma, mas os seres que lhe eram caros, para compreender todas as consolações que ela extraiu dessa sublime revelação que lhe dava uma fé inabalável no futuro, e lhe mostrava o nada das coisas terrestres.
Sua morte foi digna de sua vida. Ela viu-a aproximar-se sem nenhuma apreensão penosa: era para ela a libertação dos laços terrestres, que devia abrir-lhe essa vida espiritual bem-aventurada com a qual se identificara pelo estudo do Espiritismo. Morreu com calma, porque tinha a consciência de ter cumprido a missão que aceitara vindo para a terra, de ter escrupulosamente preenchido seus deveres de esposa e de mãe de família, porque também, durante a vida, abjurara de todo ressentimento contra aqueles dos quais devia queixar-se, e que lhe haviam pago com ingratidão; tinha-lhes sempre retribuído o bem pelo mal, e deixou a vida perdoando-lhes, entregando-se a si mesma à bondade e à justiça de Deus. Morreu enfim com a serenidade que uma consciência pura proporciona, e a certeza de estar menos separada de seus filhos do que durante a vida corpórea, visto que poderá doravante estar com eles em Espírito, em qualquer lugar do globo em que eles estejam, ajudá-los com seus conselhos, e cobri-los com sua proteção.
Logo que soubemos da morte da Sra. Foulon, nosso primeiro desejo foi conversar com ela. As relações de amizade e de simpatia que a doutrina espírita fizera nascer entre ela e nós explicam algumas de suas palavras e a familiaridade de sua linguagem.
I
(Paris, 6 de fevereiro de 1865, três dias após sua morte.)
Tinha certeza de que teríeis o pensamento de me evocar logo depois de minha libertação, e estava pronta para vos responder, pois não experimentei perturbação; somente aqueles que têm medo ficam envoltos por suas espessas trevas.
Pois bem! meu amigo, sou feliz agora; aqueles pobres olhos que tinham enfraquecido, e que não me deixavam senão a recordação dos prismas que coloriram minha juventude com seu cambiante esplendor, abriram-se aqui e reencontraram os esplêndidos horizontes que idealizam, em suas vagas reproduções, alguns de vossos grandes artistas, mas cuja realidade majestosa, severa porém cheia de encantos, está impregnada da mais completa realidade.
Há apenas três dias que morri, e sinto que sou artista; minhas aspirações ao ideal da beleza na arte não eram senão a intuição de faculdades que eu estudara e adquirira em outras existências e que se desenvolveram na última. Mas tenho muito que fazer para reproduzir uma obra-prima digna da grande cena que impressiona o espírito ao chegar à região da luz! Pincéis! Pincéis! E provarei ao mundo que a arte espírita é o coroamento da arte pagã, da arte cristã que periclita, e que unicamente ao Espiritismo está reservada a glória de fazê-la reviver em todo o seu esplendor no vosso mundo deserdado.
Basta para a artista; é a vez da amiga.
Por que, boa amiga (senhora Allan Kardec), ficar assim afetada pela minha morte? Sobretudo vós que conheceis as decepções e as amarguras da minha vida, deveríeis alegrar-vos, ao contrário, por ver que agora não tenho mais que beber do cálice amargo das dores terrestres que esvaziei até o fim.
Acreditai-me, os mortos são mais felizes do que os vivos, e chorá-los é duvidar da verdade do Espiritismo. Rever-me-eis, tende certeza; parti primeiro porque minha tarefa acabara aqui embaixo; cada um tem a sua a cumprir na terra, e quando a vossa tiver acabado, vireis repousar um pouco perto de mim, para recomeçar em seguida, se for preciso, visto que não é da natureza permanecer inativo. Cada um tem suas tendências e obedece a elas; é uma lei suprema que prova o poder do livre-arbítrio; igualmente, boa amiga, todos nós precisamos reciprocamente de indulgência e caridade, quer no mundo visível, quer no mundo invisível; com esta máxima, tudo fica bem.
Vós não me diríeis para parar. Sabeis que converso longamente pela primeira vez! Então deixo-vos; é a vez de meu excelente amigo, Sr. Kardec. Quero agradecer-lhe pelas afetuosas palavras que dirigiu à amiga que o precedeu no túmulo; pois por pouco não partimos juntos para o mundo em que me encontro, meu bom amigo! (Alusão à doença de que fala o doutor Demeure.) O que teria ela dito, a companheira bem-amada de vossos dias, se os bons Espíritos não tivessem posto isso em boa ordem? Seria então que ela teria chorado e gemido, e eu compreendo; mas também é preciso que ela tome cuidado para que vós não vos exponhais de novo ao perigo antes de terdes acabado vosso trabalho de iniciação espírita, sem isso correis o risco de chegar demasiado cedo até nós e não ver, como Moisés, a Terra prometida a não ser de longe. Ficai portanto alerta, é uma amiga que vos previne.
Agora, vou-me embora; retorno para junto de meus queridos filhos; depois vou ver, além dos mares, se minha ovelha viajante chegou enfim ao porto, ou se ela é joguete da tempestade. (Uma de suas filhas que morava na América.) Que os bons Espíritos a protejam; vou reunir-me a eles para isso. Voltarei a conversar convosco, pois sou uma conversadeira incansável; vós vos recordais. Então adeus, bons e caros amigos; até breve.
II
(8 de fevereiro de 1865.)
P. Cara senhora Foulon, estou muito feliz com a comunicação que me fizestes no outro dia e com a vossa promessa de continuar nossas conversas.
Reconheci-vos perfeitamente na comunicação; falais ali de coisas ignoradas pelo médium e que não podem vir senão de vós; depois vossa linguagem afetuosa a nosso respeito, é bem a da vossa alma carinhosa; mas há em vossas palavras uma segurança, um equilíbrio, uma firmeza que não vos conhecia durante a vida. Sabeis que a esse respeito eu me permiti mais de uma admoestação em certas circunstâncias.
R. É verdade; mas assim que me vi gravemente doente, recuperei minha firmeza de espírito, perdida pelos desgostos e as vicissitudes que por vezes me haviam tornado receosa durante a vida. Disse a mim mesma: És espírita; esquece a terra; prepara-te para a transformação de teu ser, e vê, pelo pensamento, o caminho luminoso que tua alma deve seguir ao deixar teu corpo, e que a conduzirá, feliz e liberta, às esferas celestes onde deves viver doravante.
Dir-me-eis que era um pouco presunçoso de minha parte contar com a bem-aventurança perfeita ao deixar a terra, mas eu sofrera tanto que devia ter expiado as minhas faltas desta existência e das existências precedentes. Essa intuição não me enganara, e foi ela que me devolveu a coragem, a calma e a firmeza dos últimos instantes: essa firmeza aumentou naturalmente quando, após a libertação, vi minhas esperanças realizadas.
P. Tende a bondade de nos descrever agora vossa passagem, vosso despertar e vossas primeiras impressões.
R. Sofri, mas meu Espírito foi mais forte do que o sofrimento material que o desprendimento lhe fazia sentir. Encontrei-me, depois do supremo suspiro, como em síncope, não tendo nenhuma consciência de meu estado, não pensando em nada, e numa vaga sonolência que não era nem o sono do corpo, nem o despertar da alma. Fiquei assim muito tempo; depois, como se saísse de um longo desmaio, despertei pouco a pouco no meio de irmãos que não conhecia; eles me prodigalizavam seus cuidados e suas carícias, mostrando-me um ponto no espaço que se parecia com uma estrela brilhante, e disseram-me: “É para lá que virás conosco; não pertences mais à terra.” Então recordei-me; apoiei-me neles, e, como um grupo gracioso que se lança rumo às esferas desconhecidas, mas com a certeza de lá encontrar a bem-aventurança, subimos, subimos, e a estrela aumentava. Era um mundo feliz, um mundo superior, onde vossa boa amiga vai enfim encontrar o repouso; quero dizer o repouso considerando as fadigas corporais que aguentei e as vicissitudes da vida terrestre, mas não a indolência do Espírito, pois a atividade do Espírito é um regozijo.
P. Deixastes definitivamente a terra?
R. Deixo aí ainda muitos seres que me são caros para deixá-la definitivamente. Portanto, voltarei aí em Espírito, pois tenho uma missão a cumprir para com os meus netos. Sabeis bem, aliás, que nenhum obstáculo se opõe a que os Espíritos que estacionam nos mundos superiores à terra venham visitá-la.
P. A posição em que estais parece dever enfraquecer vossas relações com aqueles que deixastes aqui embaixo?
R. Não, meu amigo, o amor aproxima as almas. Acreditai-me, pode-se estar, na terra, mais perto daqueles que atingiram a perfeição do que daqueles que a inferioridade e o egoísmo fazem turbilhonar em torno da esfera terrestre. A caridade e o amor são dois motores de uma atração poderosa. É o laço que cimenta a união das almas ligadas uma à outra e a continua apesar da distância e dos lugares. Só há distância para os corpos materiais; ela não existe para os Espíritos.
P. Que ideia fazeis agora de meus trabalhos referentes ao Espiritismo?
R. Creio que estais encarregado de almas e que o fardo é penoso de carregar; mas vejo o objetivo e sei que o alcançareis; ajudar-vos-ei, se possível, com meus conselhos de Espírito para que possais superar as dificuldades que vos serão suscitadas, comprometendo-vos apropriadamente a tomar certas medidas capazes de ativar, durante vossa vida, o movimento renovador ao qual impele o Espiritismo. Vosso amigo Demeure, unido ao Espírito de verdade, servos-á de contribuição ainda mais útil; ele é mais instruído e mais sério do que eu; mas, como sei que a assistência dos bons Espíritos vos fortalece e vos sustenta em vosso labor, acreditai que a minha vos estará assegurada em toda parte e sempre.
P. Poder-se-ia induzir de algumas de vossas palavras que não dareis uma cooperação pessoal muito ativa à obra do Espiritismo.
R. Estais enganado; mas vejo tantos outros Espíritos mais capazes do que eu de tratar essa questão importante, que um sentimento invencível de timidez me impede, no momento, de vos responder de acordo com vossos desejos. Talvez isso aconteça; terei mais coragem e ousadia; mas é preciso antes que eu os conheça melhor. Morri só há quatro dias; ainda estou sob o encanto do deslumbramento que me rodeia; meu amigo, não o compreendeis? Não consigo exprimir as novas sensações que experimento. Precisei fazer árduos esforços para evitar a fascinação que exercem sobre o meu ser as maravilhas que ele admira. Não posso senão abençoar e adorar Deus em suas obras. Mas isso passará; os Espíritos me asseguram que em breve estarei acostumada a todas estas magnificências e que poderei então, com minha lucidez de Espírito, tratar de todas as questões relativas à renovação terrestre. Depois, com tudo isso, pensai que neste momento tenho acima de tudo uma família para consolar.
Adeus e até breve; vossa boa amiga que vos ama e amará sempre, meu mestre, pois foi a vós que ela deveu a única consolação duradoura e verdadeira que provou na terra. Viúva FOULON.
III
A comunicação seguinte foi dada para seus filhos, em 9 de fevereiro:
Meus filhos, meus bem-amados, Deus me retirou do meio de vós, mas a recompensa que ele se digna conceder-me é bem grande em comparação ao pouco que fiz na terra. Resignai-vos, meus bons filhos, às vontades do Altíssimo; tirai de tudo o que ele permitiu que recebêsseis, a força de suportar as provas da vida. Tende sempre firme em vosso coração essa crença que tanto facilitou minha passagem da vida terrestre à vida que nos espera ao sair desse vale de lágrimas. Deus estendeu sobre mim, após minha morte, sua inesgotável bondade, como se dignou fazer enquanto eu estava na terra. Agradecei-lhe todos os benefícios que ele vos concede; bendizei-o, meus filhos, bendizei-o sempre, em todos os instantes. Não percais nunca de vista o objetivo que vos foi indicado, nem o caminho que tendes de seguir; pensai no emprego que tendes de fazer do tempo que Deus vos concede na terra. Sereis felizes aí, meus bemamados, felizes uns pelos outros, se a união reinar entre vós; felizes por vossos filhos, se os criardes no bom caminho, naquele que Deus permitiu que vos fosse revelado.
Oh! Se não podeis ver-me, sabei que o laço que nos unia na terra não se rompeu com a morte do corpo, pois não era o envoltório que nos ligava, mas o Espírito; é por aí, meus bem-amados, que poderei, pela bondade do Onipotente, guiar-vos ainda e encorajar-vos em vossa marcha para nos reunirmos mais tarde.
Vamos, meus filhos, cultivai com o mesmo amor esta sublime crença; belos dias vos estão reservados, a vós que credes. Disseram-vos, mas eu não devia vê-los na terra; é de cima que julgarei os tempos felizes prometidos pelo Deus bom, justo e misericordioso.
Não choreis, meus filhos; que estas conversas fortaleçam vossa fé, vosso amor em Deus, que tantos dons espalhou sobre vós, que tantas vezes enviou auxílio à vossa mãe. Rezai-lhe sempre: a oração fortalece. Conformai a vida que Deus vos concede às instruções que eu seguia tão ardentemente. Voltarei a vós, meus filhos, mas é preciso que eu apoie minha pobre filha que tanto precisa de mim ainda. Adeus, até breve. Crede na bondade do Onipotente; rezo por vós. Adeus. Vva. FOULON.
Observação. – Todo espírita sério e esclarecido tirará facilmente destas comunicações os ensinamentos que delas se destacam; chamaremos a atenção apenas para dois pontos. O primeiro é que este exemplo nos mostra a possibilidade de não mais encarnar na Terra e passar daqui para um mundo superior, sem ficar por isso separado dos afetos aqui deixados. Aqueles pois que temem a reencarnação por causa das misérias da vida, podem se livrar dela fazendo o que é preciso, ou seja, trabalhando para seu aperfeiçoamento. Assim, aquele que não quer vegetar nas classes inferiores deve se instruir e trabalhar para subir de grau.
O segundo ponto é a confirmação dessa verdade de que após a morte estamos menos separados dos seres que nos são caros do que durante a vida. A Sra. Foulon, retida pela idade e a enfermidade numa cidadezinha do Sul, tinha junto dela apenas uma parte de sua família; estando dispersa e longe a maioria de seus filhos e amigos, obstáculos materiais se opunham a que ela pudesse vê-los tantas vezes quanto uns e outros desejariam. O grande afastamento tornava até mesmo a correspondência rara e difícil para alguns. Mal ela se desembaraçou de seu envoltório que, leve, acorre a cada um, transpõe as distâncias sem fadiga, com a rapidez da eletricidade, vê-os, assiste às suas reuniões íntimas, cerca-os com sua proteção e pode, pela via da mediunidade, conversar com eles a todo instante, como quando vivia. E dizer que a este pensamento consolador há pessoas que preferem a ideia de uma separação indefinida!
Um médico russo
O Sr. P... era um médico de Moscou, tão distinto por suas eminentes qualidades morais quanto por seu saber. A pessoa que o evocou conhecia-o somente de reputação, e não tivera com ele senão relações indiretas. A comunicação original era em língua russa.
P. (após evocação). Estais aqui? – R. Sim. No dia da minha morte, persegui-vos com minha presença, mas vós resististes a todas as minhas tentativas para vos fazer escrever. Eu ouvira vossas palavras sobre mim; isso me fizera conhecer-vos, e então tive o desejo de conversar convosco para vos ser útil. P. Por que vós, que éreis tão bom, sofrestes tanto? – R. Era uma bondade do Senhor que queria assim me fazer duplamente sentir o preço de minha libertação, e me fazer avançar o mais possível na Terra.
P. O pensamento da morte causou-vos terror? – R. Não, eu tinha demasiada fé em Deus para isso.
P. A separação foi dolorosa? – R. Não; o que chamais o último momento não é nada; não senti senão um estalido muito curto, e logo depois fiquei muito feliz por estar desembaraçado de minha miserável carcaça.
P. O que aconteceu então? – R. Tive a felicidade de ver uma quantidade de amigos vir ao meu encontro e me desejar boas-vindas, especialmente aqueles que tive a satisfação de ajudar.
P. Que região habitais? Estais num planeta? – R. Tudo o que não é um planeta é o que vós chamais o espaço; é lá que eu estou. Mas quantos graus nessa imensidade da qual o homem não pode ter ideia! Quantos degraus nessa escada de Jacó que vai da terra ao céu, ou seja, do aviltamento da encarnação num mundo inferior como o vosso, até a purificação completa da alma! Lá onde estou só se chega depois de muitas provas, o que significa muitas encarnações.
P. Por essa conta deveis ter tido muitas existências? – R. Como poderia ser de outro modo? Nada é excepcional na ordem imutável estabelecida por Deus; a recompensa só pode vir depois da vitória obtida na luta; e quando a recompensa é grande, é preciso necessariamente que a luta também o tenha sido. Mas a vida humana é tão curta que a luta não é real senão por intervalos, e esses intervalos são as diferentes existências sucessivas; ora, visto que estou num dos degraus já elevados, é certo que atingi essa felicidade por uma continuidade de combates em que Deus permitiu que eu obtivesse a vitória algumas vezes.
P. Em que consiste vossa felicidade? – R. Isso é mais difícil de fazer-vos compreender. A felicidade de que gozo é um contentamento extremo de mim mesmo; não de meus méritos, seria orgulho, e o orgulho é a maneira de ser dos Espíritos de reprovação, mas um contentamento imerso, por assim dizer, no amor de Deus, no reconhecimento de sua bondade infinita; é a alegria profunda de ver o bom, o bem; de dizer a si mesmo: talvez eu tenha contribuído para o aperfeiçoamento de alguns daqueles que se ergueram para o Senhor. Está-se como identificado com o bem-estar; é uma espécie de fusão do Espírito e da bondade divina. Tem-se o dom de ver os Espíritos mais aperfeiçoados, de compreendê-los em suas missões, e de saber que também se chegará lá; entrevê-se, no incomensurável infinito, as regiões tão resplandecentes do fogo divino, que se fica ofuscado mesmo contemplando-as através do véu que ainda as cobre. Mas o que vos digo? Compreendeis minhas palavras? Esse fogo de que falo, credes que seja semelhante ao sol, por exemplo? Não, não; é alguma coisa indizível ao homem, porque as palavras não expressam senão os objetos, as coisas físicas ou metafísicas de que ele tem conhecimento pela memória ou a intuição de sua alma, ao passo que, não podendo ter essa memória do desconhecido absoluto, não há termos que lhe possam dar a percepção disso. Mas sabei-o: já é uma imensa felicidade pensar que se pode elevar-se
infinitamente.
P. Tivestes a bondade de me dizer que quereis ser-me útil, em que, por favor? – R. Posso ajudar-vos em vossos desfalecimentos, sustentar-vos em vossas fraquezas, consolar-vos nas vossas tristezas. Se vossa fé, sacudida por algum abalo que vos perturbe, vier a vacilar, chamai-me: Deus me dará palavras para recordá-lo a vós e trazer-vos de volta a ele; se vos sentirdes prestes a sucumbir sob o peso de pendores que reconheceis vós mesma serem culpados, chamai-me: ajudar-vos-ei a carregar a vossa cruz, como outrora Jesus foi ajudado a carregar a dele, aquela que devia nos proclamar tão altamente a verdade, a caridade; se fraquejais sob o peso de vossos sofrimentos, se o desespero tomar conta de vós, chamai-me: virei vos tirar desse abismo falando-vos de Espírito para Espírito, chamando-vos de volta aos deveres que vos são impostos, não por considerações sociais e materiais, mas pelo amor que sentireis em mim, amor que Deus pôs em meu ser para ser transmitido àqueles que ele pode salvar.
Sem dúvida, tendes amigos na terra; partilham talvez vossas dores, e talvez já vos tenham salvado. No sofrimento ides encontrá-los, ides levar-lhes vossas queixas e vossas lágrimas, e eles vos dão em troca dessa demonstração de afeição seus conselhos, seu apoio, suas carícias; pois bem! não pensais que um amigo daqui seja também uma boa coisa? Não é consolador dizer-se: Quando eu morrer, meus amigos da terra estarão à minha cabeceira, rezando por mim, e chorando por mim, mas meus amigos do espaço estarão no limiar da vida, e virão sorrindo me conduzir ao lugar que terei merecido por minhas virtudes?
P. No que mereci então a proteção que quereis conceder-me? – R. Eis porque me apeguei a vós desde o dia da minha morte. Eu vos vi, espírita, boa médium e sincera adepta; entre aqueles que deixei na Terra, não vi senão a vós no começo; resolvi então vir contribuir para o vosso avanço, no vosso interesse, sem dúvida, mas ainda mais no interesse de todos aqueles que sois chamada a instruir na verdade. Vede, Deus vos ama o suficiente para vos tornar missionária; à vossa volta, todos, pouco a pouco, compartilham vossas crenças; os mais rebeldes pelo menos vos escutam, e um dia vê-los-eis crer em vós. Não vos canseis; andai sempre, apesar das pedras do caminho: na fraqueza tomai-me como cajado.
P. Não ouso crer merecer tão grande favor. – R. Sem dúvida estais longe da perfeição; mas vosso ardor em disseminar as sãs doutrinas, em apoiar a fé daqueles que vos escutam, em pregar a caridade, a bondade, a benevolência, mesmo quando usam de maus procedimentos para convosco, vossa resistência a vossos instintos de cólera que poderíeis satisfazer tão facilmente contra aqueles que vos afligem ou que desconhecem vossas intenções, vêm felizmente servir de contrapeso ao que tendes de mau em vós; e sabei-o, o perdão é um poderoso contrapeso. Deus vos cumula com suas graças pela faculdade que vos dá e que não cabe senão a vós aumentar por vossos esforços, a fim de trabalhar eficazmente para a salvação do próximo. Vou deixar-vos, mas contai comigo. Tentai moderar vossas ideias terrestres e viver mais frequentemente com vossos amigos daqui.
P...
Bernardin
(Bordeaux, abril de 1862.)
Sou um Espírito esquecido há muitos séculos; vivi na terra na miséria e no opróbrio; trabalhei sem descanso para trazer cada dia à minha família um pedaço de pão insuficiente; mas amava meu senhor verdadeiro, e quando aquele que me carregava na terra aumentava meu fardo de dor, eu dizia: Meu Deus, dai-me a força de suportar este peso sem me queixar. Eu expiava, meus amigos; mas ao sair dessa rude prova, o Senhor me recebeu na paz, e meu voto mais caro é reunir-vos à minha volta, meus filhos, meus irmãos, e dizer-vos: Seja qual for o preço a pagar, a felicidade que vos aguarda é ainda bem superior a ele.
Eu não tinha estado; filho de uma numerosa família, servi quem podia ajudar-me a suportar minha vida. Nascido numa época em que a escravidão era cruel, suportei todas as injustiças, todas as corveias, todas as cargas que os subalternos do Senhor se compraziam em me impor. Vi minha mulher ultrajada; vi minhas filhas raptadas e depois rejeitadas, sem poder queixar-me; vi meus filhos levados para guerras de pilhagens e de crimes, enforcados por faltas que não tinham cometido! Se soubésseis, pobres amigos, o que aguentei na minha longa existência! Mas eu esperava, esperava a felicidade que não está na terra, e o Senhor ma concedeu. A vós todos então, meus irmãos, coragem, paciência e resignação.
Meu filho, podes conservar o que te dei; é um ensinamento prático. Aquele que prega é mais bem escutado quando pode dizer: Suportei mais do que vós; suportei sem me queixar.
P. Em que época vivíeis? – R. De 1400 a 1460. P. Tivestes outra existência desde então? – R. Sim, vivi ainda entre vós como missionário; sim, missionário da fé; mas da verdadeira, da pura, daquela que sai da mão de Deus, e não daquela que os homens vos fizeram.
P. Agora, como Espírito, ainda tendes ocupações? – R. Poderias crer que os Espíritos permanecem inativos? A inação, a inutilidade seria para eles um suplício. Minha missão é guiar centros operários no Espiritismo; inspiro ali bons pensamentos e esforço-me por neutralizar aqueles que os maus Espíritos procuram sugerir. BERNARDIN.
Condessa Paula
Era uma mulher jovem, bela, rica, de nascimento ilustre de acordo com o mundo, e ademais, um modelo consumado de todas as qualidades do coração e do espírito. Morreu com trinta e seis anos, em 1851. Era uma dessas pessoas cuja oração fúnebre se resume a estas palavras, em todas as bocas: “Por que Deus retira tão cedo tais pessoas da face da terra?” Bem-aventurados aqueles que fazem assim bendizer sua memória! Ela era boa, doce e indulgente para todo o mundo; sempre pronta a desculpar ou atenuar o mal, em vez de o envenenar; nunca a maledicência lhe sujou os lábios. Sem soberba nem orgulho, tratava seus inferiores com uma benevolência que não tinha nada da baixa familiaridade, e sem afetar para com eles ares de altivez ou uma proteção humilhante. Compreendendo que as pessoas que vivem de seu trabalho não vivem de rendas, e que precisam do dinheiro que lhes é devido, seja para seu estado, seja para viver, nunca fez esperar um salário; o pensamento de que alguém pudesse sofrer por falta de pagamento de sua parte, teria sido um remorso de consciência para ela. Não era dessas pessoas que sempre acham dinheiro para satisfazer suas fantasias e nunca têm para pagar o que devem; não compreendia que pudesse ser de bom gosto para um rico ter dívidas, e terse-ia sentido humilhada se se pudesse dizer que seus fornecedores eram obrigados a lhe fazer empréstimos. Assim, por ocasião de sua morte, só houve lamentos e nenhuma reclamação.
Sua benevolência era inesgotável, mas não era essa benevolência oficial que se exibe aos olhos de todos; era a caridade do coração e não a da ostentação. Só Deus sabe as lágrimas que secou e os desesperos que acalmou, pois essas boas ações tinham por testemunhas apenas Ele e os desgraçados que ela assistia. Sobretudo, ela sabia descobrir esses infortúnios ocultos, que são os mais pungentes, e que socorria com a delicadeza que eleva o moral em vez de abatê-lo.
Sua posição e as altas funções do marido a obrigavam a um governo da casa ao qual não podia esquivar-se; mas, satisfazendo as exigências de sua posição sem mesquinhez, mantinha uma ordem que, evitando os desperdícios ruinosos e as despesas supérfluas, lhe permitia realizá-lo com a metade do que teria custado a outros sem fazer melhor.
Ela podia dessa forma tirar de sua fortuna uma parte maior para os necessitados. Retirara dela um capital importante cuja renda era exclusivamente reservada a essa destinação sagrada para ela, e considerava-a como tendo isso a menos para gastar com sua casa. Encontrava assim o meio de conciliar seus deveres para com a sociedade e para com a desgraça.*
Evocada, doze anos após a morte, por um de seus parentes iniciado no Espiritismo, ela deu a comunicação seguinte em resposta a diversas perguntas que lhe eram dirigidas: **
“Tendes razão, meu amigo, de pensar que sou feliz; com efeito, sou feliz, além de tudo o que se pode exprimir, e, no entanto, ainda estou longe do último degrau. Eu estava, porém, entre os bem-aventurados da terra, pois não me recordo de ter sentido desgosto real. Juventude, saúde, fortuna, homenagens, tinha tudo o que constitui a felicidade entre vós; mas o que é essa felicidade perto desta que se experimenta aqui? O que são as vossas mais esplêndidas festas, onde se exibem os mais ricos enfeites, perto destas assembleias de Espíritos resplandecendo de um brilho que vossa vista não poderia suportar, e que é o apanágio da pureza? O que são vossos palácios e vossos salões dourados perto destas moradas aéreas, dos vastos campos do espaço, matizados de cores que fariam empalidecer o arco-íris? O que são vossos passeios vagarosos em vossos parques, perto das corridas através da imensidão, mais rápidas do que o raio? O que são vossos horizontes limitados e nebulosos perto do espetáculo grandioso dos mundos movendo-se no universo sem limites sob a poderosa mão do Altíssimo? Como vossos concertos mais melodiosos são tristes e agudos perto desta suave harmonia que faz vibrar os fluidos do éter e todas as fibras da alma! Como vossas maiores alegrias são tristes e insípidas perto da inefável sensação de felicidade que penetra incessantemente todo o nosso ser como um eflúvio benfazejo, sem nenhuma inquietação, nenhuma apreensão, nenhum sofrimento! Aqui tudo respira amor, confiança, sinceridade; por toda a parte corações afetuosos, em toda a parte amigos, em parte alguma invejosos e ciumentos. Tal é o mundo onde estou, meu amigo, e ao qual chegareis infalivelmente seguindo o reto caminho.
“Porém, aborreceria logo uma felicidade uniforme; não acrediteis que a nossa seja isenta de peripécias; não é nem um concerto perpétuo, nem uma festa sem fim, nem uma beata contemplação durante a eternidade; não, é o movimento, a vida, a atividade. As ocupações, embora isentas de fadigas, trazem-lhe uma incessante variedade de aspectos e de emoções pelos mil incidentes ali espalhados. Todos têm sua missão a cumprir, seus protegidos a assistir, amigos da terra a visitar, mecanismos da natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar; vão, vêm, não de uma rua à outra, mas de um mundo ao outro; juntam-se, separam-se para se reunirem em seguida; convergem num ponto, comunicam o que fizeram, congratulam-se pelos sucessos obtidos; põem-se de acordo, assistem-se reciprocamente nos casos difíceis; enfim, asseguro-vos que ninguém tem tempo de se entediar por um segundo.
“Neste momento, a terra é nosso grande tema de preocupação. Quanto movimento entre os Espíritos! Que numerosas coortes aí afluem para concorrer para a sua transformação! Dir-se-ia uma nuvem de trabalhadores ocupados a desbravar uma floresta, sob a condução de chefes experientes; uns abatem as velhas árvores com o machado, arrancam as profundas raízes; preparando outros o terreno, lavrando e semeando estes, edificando aqueles a nova cidade sobre as ruínas carcomidas do velho mundo. Enquanto isso, os chefes se reúnem, deliberam e enviam mensageiros para dar ordens em todas as direções. A terra deve ser regenerada num dado tempo; é preciso que os desígnios da Providência se cumpram; é por isso que todos põem mãos à obra. Não acrediteis que eu seja simples espectadora desse grande trabalho; teria vergonha de ficar inativa quando todo o mundo se ocupa; uma importante missão me é confiada, e esforço-me para cumpri-la o melhor possível.
“Não foi sem lutas que cheguei ao lugar que ocupo na vida espiritual; crede que minha última existência, por mais meritória que vos pareça, não teria bastado para isso. Durante várias existências passei pelas provas do trabalho e da miséria que escolhera voluntariamente para fortalecer e purificar minha alma; tive a felicidade de sair delas vitoriosa, mas restava uma a suportar, a mais perigosa de todas: a da fortuna e do bem-estar material, de um bem-estar sem nenhuma amargura: ali residia o perigo. Antes de tentá-la, quis sentir-me suficientemente forte para não sucumbir. Deus levou em conta minhas boas intenções e concedeu-me a graça de me apoiar. Muitos outros Espíritos, seduzidos pelas aparências, apressam-se a escolhê-la; fracos demais, infelizmente, para enfrentar o perigo, as seduções triunfam de sua inexperiência.
“Trabalhadores, estive nas vossas fileiras; eu, a nobre dama, como vós ganhei meu pão com o suor do meu rosto; aguentei privações, sofri intempéries, e foi o que desenvolveu as forças viris da minha alma; sem isso, eu teria provavelmente fracassado na minha última prova, o que me teria feito recuar para bem longe. Como eu, tereis também por vossa vez a prova da fortuna, mas não vos apresseis em pedi-la demasiado cedo; e vós que sois ricos, tende sempre presente o pensamento de que a verdadeira fortuna, a fortuna imperecível, não está na terra, e compreendei a que custo podeis merecer os benefícios do Onipotente.” PAULA, na terra, condessa de -------.
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* Pode-se dizer que essa dama era o retrato vivo da mulher benfazeja, traçado no Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIII.
** Extraímos desta comunicação, cujo original é em língua alemã, as partes instrutivas para o assunto que nos ocupa, suprimindo o que é apenas um interesse de família.
Jean Reynaud
(Sociedade Espírita de Paris. Comunicação espontânea.)
Meus amigos, como esta nova vida é magnífica! Semelhante a uma torrente luminosa, ela arrasta na sua marcha imensa as almas inebriadas de infinito! Após a ruptura dos laços carnais, meus olhos abarcaram os horizontes novos que me cercam e gozei das esplêndidas maravilhas do infinito. Passei das sombras da matéria à aurora resplandecente que anuncia o Onipotente. Estou salvo, não pelo mérito de minhas obras, mas pelo conhecimento do princípio eterno que me fez evitar as máculas imprimidas pela ignorância à pobre humanidade. Minha morte foi bendita; meus biógrafos a julgarão prematura; cegos! lamentarão alguns escritos nascidos da poeira, e não compreenderão quanto o pouco ruído que se faz em volta de meu túmulo semifechado é útil para a santa causa do Espiritismo. Minha obra estava terminada; meus predecessores corriam na arena; eu alcançara esse ponto culminante em que o homem deu o que tinha de melhor, e no qual não faz mais do que recomeçar. Minha morte reaviva a atenção dos letrados e a traz de volta à minha obra capital, que toca na grande questão espírita que eles afetam desconhecer, e que em breve os enlaçará. Glória a Deus! Ajudado pelos Espíritos superiores que protegem a nova doutrina, vou ser um dos batedores que balizam vossa estrada. JEAN REYNAUD.
(Paris; reunião de família. Outra comunicação espontânea.)
O Espírito responde a uma reflexão feita sobre sua morte inesperada, numa idade pouco avançada, e que surpreendeu muita gente.
“Quem vos diz que minha morte não é um benefício para o Espiritismo, para o seu futuro, para as suas consequências? Notastes, meu amigo, a marcha que o progresso segue, o caminho que a fé espírita toma? Primeiramente, Deus deu provas materiais: dança das mesas, batidas e todas as espécies de fenômenos; era para chamar a atenção; era um prefácio divertido. Os homens precisam de provas palpáveis para crer. Agora é coisa completamente diferente! Depois dos feitos materiais, Deus fala à inteligência, ao bom senso, à fria razão; não são mais proezas admiráveis, mas coisas racionais que devem convencer e congregar mesmo os incrédulos, os mais obstinados. E é apenas o começo.
Notai bem o que vos digo: toda uma série de feitos inteligentes, irrefutáveis, vão seguir-se, e o número de adeptos da fé espírita, tão grande já, vai aumentar ainda. Deus vai ater-se às inteligências de elite, às sumidades do espírito, do talento e do saber. Vai ser um raio luminoso que se espalhará sobre toda a terra como um fluido magnético irresistível, e impelirá os mais recalcitrantes à pesquisa do infinito, ao estudo dessa admirável ciência que nos ensina máximas tão sublimes. Todos se vão agrupar à vossa volta, e, fazendo abstração do diploma de gênio que lhes fora dado, vão fazer-se humildes e pequenos para aprender e para se convencerem. Depois, mais tarde, quando estiverem bem instruídos e bem convencidos, eles se servirão de sua autoridade e da notoriedade de seu nome para ir ainda mais longe e alcançar os últimos limites do objetivo a que vós todos vos propusestes: a regeneração da espécie humana pelo conhecimento racional e aprofundado das existências passadas e futuras. Eis minha sincera opinião sobre o estado atual do Espiritismo.”
(Bordeaux.)
Evocação. – Acorro com prazer ao vosso apelo, senhora. Sim, tendes razão; a perturbação espírita não existiu, por assim dizer, para mim (isto respondia ao pensamento da médium); exilado voluntário na vossa terra, onde tinha de jogar a primeira semente séria das grandes verdades que envolvem o mundo neste momento, sempre tive consciência da pátria e me reconheci depressa no meio de meus irmãos.
P. Agradeço-vos por terdes vindo; mas não teria acreditado que meu desejo de conversar convosco tivesse influência sobre vós; deve necessariamente haver uma diferença tão grande entre nós que só penso nisso com respeito.
R. Obrigado por esse bom pensamento, minha filha; mas deveis saber também que, seja qual for a distância que provas cumpridas mais ou menos prontamente, mais ou menos favoravelmente, possam estabelecer entre nós, há sempre um laço poderoso que nos une: a simpatia, e esse laço, vós o estreitastes com vosso pensamento constante.
P. Embora muitos Espíritos tenham explicado suas primeiras sensações ao despertar, teríeis a bondade de me dizer o que sentistes reconhecendo-vos, e como a separação de vosso Espírito e de vosso corpo se operou?
R. Como para todos. Senti o momento da libertação se aproximar; mas, mais feliz do que muitos, ela não me causou angústias porque lhe conhecia os resultados, embora eles fossem ainda maiores do que eu pensava. O corpo é um entrave às faculdades espirituais, e, sejam quais forem as luzes que se tenham conservado, elas são sempre mais ou menos abafadas pelo contato com a matéria. Eu adormeci esperando um despertar feliz; o sono foi curto, a admiração imensa! Os esplendores celestes expostos a meus olhares brilhavam com toda sua magnificência. Minha visão maravilhada mergulhava nas imensidades desses mundos cuja existência e habitabilidade eu afirmara. Era uma miragem que me revelava e me confirmava a verdade de meus sentimentos. Por mais que o homem se creia seguro quando ele fala, no fundo do seu coração há momentos de dúvida, de incerteza; ele desconfia, se não da verdade que proclama, pelo menos muitas vezes dos meios imperfeitos que emprega para demonstrá-la. Convencido da verdade que queria fazer admitir, tive com frequência de combater contra mim mesmo, contra o desalento de ver, de tocar, por assim dizer, a verdade, e não poder torná-la palpável àqueles que teriam tanta necessidade de acreditar nela para caminhar mais seguramente pela via que têm de seguir.
P. Quando vivo, professáveis o Espiritismo?
R. Entre professar e praticar há uma grande diferença. Muita gente professa uma doutrina sem a praticar; eu praticava e não professava. Assim como é cristão todo homem que segue as leis do Cristo, ainda que sem as conhecer, igualmente todo homem que crê em sua alma imortal, nas suas reexistências, na sua marcha progressiva incessante, nas provas terrestres, abluções necessárias para se purificar, pode ser espírita; eu acreditava nisso, portanto, era espírita. Compreendi a erraticidade, esse vínculo intermediário entre as encarnações, esse purgatório onde o Espírito culpado se despoja de suas roupas maculadas para revestir uma nova veste, onde o Espírito em progresso tece com cuidado a veste que vai usar de novo e que quer conservar pura. Compreendi, disse-vos, e sem professar continuei a praticar.
Observação. – Estas três comunicações foram obtidas por três médiuns diferentes completamente desconhecidos uns dos outros. Pela analogia dos pensamentos, pela forma da linguagem, pode-se admitir ao menos a presunção de identidade. A expressão: tece com cuidado a veste que vai usar de novo, é uma encantadora figura que pinta a solicitude com a qual o Espírito em progresso prepara a nova existência que deve ainda fazê-lo progredir. Os Espíritos atrasados tomam menos precauções e fazem às vezes escolhas infelizes que os forçam a recomeçar.
Antoine Costeau
Membro da Sociedade Espírita de Paris, inumado em 12 de setembro de 1863 no cemitério de Montmartre, na vala comum. Era um homem de coração que o Espiritismo trouxe de volta a Deus; sua fé no futuro era completa, sincera e profunda. Simples operário calceteiro, praticava a caridade em pensamentos, em palavras e em ações, segundo seus magros recursos, pois encontrava ainda um meio de assistir aqueles que tinham menos do que ele. Se a Sociedade não arcou com os custos de uma sepultura particular, é que havia um emprego mais útil a fazer dos fundos que teriam sido empregados sem proveito para os vivos, para uma vã satisfação de amor-próprio, e os espíritas acima de tudo sabem que a vala comum é uma porta que conduz ao céu tanto quanto o mais suntuoso mausoléu.
O Sr. Canu, secretário da Sociedade, outrora profundo materialista, pronunciou sobre seu túmulo a alocução seguinte:
“Caro irmão Costeau, há poucos anos apenas, muitos de nós, e, confesso-o, eu em primeiro lugar, não teríamos visto diante deste túmulo aberto senão o fim das misérias humanas, e depois: o nada, o horrendo nada, ou seja, nenhuma alma para merecer ou expiar, e consequentemente nenhum Deus para recompensar, castigar ou perdoar. Hoje, graças à nossa divina doutrina, vemos aqui o fim das provas, e para vós, caro irmão, cujos restos mortais entregamos à terra, o triunfo de vossos labores e o começo das recompensas que merecestes por vossa coragem, vossa resignação, vossa caridade, numa palavra, vossas virtudes, e acima de tudo a glorificação de um Deus sábio, onipotente, justo e bom. Levai portanto, caro irmão, nossas ações de graças aos pés do Eterno, que quis dissipar à nossa volta as trevas do erro e da incredulidade, pois, há pouco tempo ainda, nós vos teríamos dito nesta circunstância, de rosto sombrio e coração desanimado: “Adeus, amigo, para sempre.” Hoje dizemos-vos, de cabeça erguida e radiante de esperança, coração cheio de coragem e amor: “Caro irmão, até logo, e orai por nós.” *
Um dos médiuns da Sociedade obteve sobre a própria sepultura ainda não fechada, a comunicação seguinte, cuja leitura todos os assistentes, inclusive os coveiros, escutaram de cabeça descoberta e com uma profunda emoção. Era, com efeito, um espetáculo novo e comovente ouvir as palavras de um morto recolhidas do próprio seio do túmulo.
“Obrigado, amigos, obrigado; meu túmulo ainda não está fechado, e no entanto, um segundo mais e a terra vai cobrir meus restos. Mas, vós o sabeis, minha alma não será enterrada sob este pó; ela vai planar no espaço para subir a Deus!
“Assim, como é consolador poder dizer ainda, apesar do invólucro rompido: Oh! não, não morri, vivo a verdadeira vida, a vida eterna!
“O cortejo fúnebre do pobre não é seguido por muitos; não há orgulhosas manifestações sobre seu túmulo, e no entanto, amigos, crede-me, a multidão imensa não falta aqui, e bons Espíritos seguiram convosco e com essas mulheres piedosas o corpo daquele que está ali, deitado! Todos vós, ao menos, credes e amais o bom Deus!
“Oh! decerto que não! não morremos porque nosso corpo se rompe, mulher bem-amada! E doravante estarei sempre perto de ti para te consolar e te ajudar a suportar a prova. A vida será rude para ti; mas com a ideia da eternidade e do amor de Deus enchendo teu coração, como teus sofrimentos te serão leves!
“Parentes que cercais minha bem-amada companheira, amai-a, respeitaia; sede para ela irmãos e irmãs. Não esqueçais que deveis todos assistência uns aos outros na terra, se quiserdes entrar na morada do Senhor. “E vós, espíritas, irmãos, amigos, obrigado por terdes vindo até esta morada de poeira e de lama me dizer adeus; mas vós sabeis, sabeis bem que minha alma vive, imortal, e que ela irá às vezes vos pedir orações, que não me serão recusadas, para me ajudar a caminhar nesta via magnífica que me abristes durante a vida. “Adeus a todos, que estais aqui, poderemos rever-nos em outro lugar que não este túmulo. As almas chamam-me ao seu encontro. Adeus, orai por aquelas que sofrem. Até logo! COSTEAU.”
Três dias mais tarde, o Espírito do Sr. Costeau, evocado num grupo particular, ditou o que se segue por intermédio de outro médium:
“A morte é a vida; não faço senão repetir o que foi dito; mas para vós não há outra expressão senão essa, apesar do que dizem os materialistas, aqueles que querem permanecer cegos. Oh! meus amigos, que bela aparição na terra a de ver flutuar as bandeiras do Espiritismo! Ciência imensa da qual mal tendes as primeiras palavras! Que claridades ela traz aos homens de boa vontade, àqueles que quebraram as correntes terríveis do orgulho para ostentar altamente sua crença em Deus! Orai, humanos, agradecei-lhe todos os seus benefícios. Pobre humanidade! Se pudesses compreender!... Mas não, ainda não veio o tempo em que a misericórdia do Senhor deverá se estender a todos os homens, a fim de que eles reconheçam Suas vontades e se lhe submetam.
“É pelos teus raios luminosos, ciência bendita, que eles chegarão lá e compreenderão. É ao teu calor benéfico que eles virão aquecer seus corações no fogo divino que traz a fé e as consolações. É sob teus raios vivificantes que o mestre e o operário virão se confundir e fazer-se um só, pois eles compreenderão essa caridade fraterna pregada pelo divino Messias.
“Ó meus irmãos, pensai na felicidade imensa que possuís por terdes sido dos primeiros iniciados à obra regeneradora. Honra a vós, amigos! Continuai, e como eu, um dia, vindo à pátria dos Espíritos, direis: A morte é a vida; ou melhor, é um sonho, uma espécie de pesadelo que dura pelo espaço de um minuto, e do qual se sai para se ver cercado de amigos que vos saúdam e estão felizes por vos estender os braços. Minha felicidade foi tão grande que não podia compreender que Deus me concedesse tantas graças por ter feito tão pouco. Parecia-me que sonhava, e como às vezes me acontecera sonhar que morrera, tive medo por um instante de ser obrigado a voltar para esse desgraçado corpo; mas não tardei a me dar conta da realidade, e agradeci a Deus. Bendizia o mestre que tão bem soubera despertar em mim os deveres do homem que pensa na vida futura. Sim, eu o bendizia e lhe agradecia, pois o Livro dos Espíritos despertara na minha alma os impulsos de amor por meu criador.
“Obrigado, meus bons amigos, por me terdes atraído para vós. Dizei a nossos irmãos que estou frequentemente em companhia de nosso amigo Sanson. Até logo; coragem! A vitória vos espera. Felizes aqueles que tiverem tomado parte no combate!”
Desde então, o Sr. Costeau manifestou-se com frequência, quer na Sociedade, quer em outras reuniões, em que sempre deu provas dessa elevação de pensamentos que caracteriza os Espíritos avançados.
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* Para mais detalhes, e as outras alocuções, ver a Revue spirite de outubro de 1863, página 297.
A Srta. Emma *
Jovem mulher morta em consequência de um acidente causado pelo fogo, e após cruéis sofrimentos. Alguém se propusera a pedir sua evocação à Sociedade Espírita de Paris, quando ela se apresentou espontaneamente em 31 de julho de 1863, pouco tempo após sua morte.
“Eis-me então ainda no teatro do mundo, eu que me acreditava sepultada para sempre no meu véu de inocência e de juventude. O fogo da terra me salvava do fogo do inferno: assim eu pensava na minha fé católica, e, se não ousava entrever os esplendores do paraíso, minha alma temerosa se refugiava na expiação do purgatório, e eu rezava, sofria, chorava. Mas quem dava à minha fraqueza a força de suportar minhas angústias? Quem, nas longas noites de insônia e de febre dolorosa, se debruçava sobre minha cama de mártir? Quem refrescava meus lábios áridos? Éreis vós, meu anjo guardião, cuja branca auréola me cercava; éreis vós também, caros Espíritos amigos, que vínheis murmurar-me ao ouvido palavras de esperança e de amor.
“A chama que consumiu meu fraco corpo despojou-me do apego àquilo que passa; assim morri já vivendo a verdadeira vida. Não conheci a perturbação, e entrei serena e recolhida no dia radioso que envolve os que, depois de terem sofrido muito, tiveram um pouco de esperança. Minha mãe, minha querida mãe, foi a última vibração terrestre que ressoou em minha alma. Como gostaria que ela se tornasse espírita!
“Desprendi-me da árvore terrestre como um fruto maduro antes do tempo. Eu estava apenas tocada pelo demônio do orgulho que aguilho a as almas das desgraçadas arrastadas pelo sucesso brilhante e a embriaguez da juventude.Bendigo a chama; bendigo os sofrimentos; bendigo a prova que era uma expiação. Semelhante a esses leves fios brancos do outono, flutuo arrastada na corrente luminosa; não são mais as estrelas de diamante que brilham na minha fronte, mas as estrelas de ouro do bom Deus.
”Em outro centro, no Havre, o mesmo Espírito deu também espontaneamente a comunicação seguinte, em 30 de julho de 1863.
“Aqueles que sofrem na terra são recompensados na outra vida. Deus é cheio de justiça e de misericórdia para com os que sofrem aqui embaixo. Ele concede uma bem-aventurança tão pura, uma felicidade tão perfeita, que não se deveriam temer nem os sofrimentos nem a morte, se fosse possível às pobres criaturas sondar os misteriosos desígnios do nosso Criador. Mas a terra é um lugar de provas muitas vezes bem grandes, muitas vezes semeadas de dores bem pungentes. Resignai-vos a todas se fordes atingidos; inclinai-vos a todas diante da bondade suprema do Deus que é onipotente, se ele vos der um pesado fardo a suportar; se ele vos chamar de volta a ele depois de grandes sofrimentos, vereis na outra vida, a vida feliz, quão pouca coisa elas eram, essas dores e essas penas da terra, quando julgardes a recompensa que Deus vos reserva, se nenhuma queixa, nenhum murmúrio entrou em vosso coração. Bem jovem deixei a terra; Deus quis me perdoar e me dar a vida daqueles que respeitaram suas vontades. Adorai sempre a Deus; amai-o de todo o vosso coração; orai sobretudo, pedi a ele firmemente, esse é vosso apoio aqui embaixo, vossa esperança, vossa salvação.” EMMA.
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* Srta. Emma Livry.
O Doutor Vignal
Antigo membro da Sociedade de Paris, morto em 27 de março de 1865. Na véspera do enterro, um sonâmbulo muito lúcido e que vê muito bem os Espíritos, convidado a se transportar para perto dele, e a dizer se o via, respondeu:
“Vejo um cadáver no qual se opera um trabalho extraordinário; dir-se-ia uma massa que se agita, e como algo que faz esforços para se desprender disso, mas que custa a vencer a resistência. Não distingo uma forma de Espírito bem determinada.”
Ele foi evocado na Sociedade de Paris em 31 de março.
P. – Caro senhor Vignal, todos os vossos antigos colegas da Sociedade de Paris guardaram de vós a melhor recordação, e eu em particular a das excelentes relações que não cessaram entre nós. Chamando-vos ao nosso meio, temos primeiro como objetivo dar-vos uma prova de simpatia, e ficaremos muito felizes se quiserdes, ou se puderdes vir conversar conosco. – R. Caro amigo e digno mestre, vossa boa recordação e vossas provas de simpatia são muito importantes para mim. Se hoje posso vir até vós, e assistir livre e desprendido a esta reunião de todos os nossos bons amigos e irmãos espíritas, é graças ao vosso bom pensamento e à assistência que vossas preces me trouxeram. Como dizia com exatidão meu jovem secretário, eu estava impaciente por me comunicar; desde o começo da reunião desta noite, empreguei todas as minhas forças espirituais para dominar esse desejo; vossas conversas e as graves questões que debatestes, interessando-me vivamente, tornaram minha espera menos penosa. Perdão, caro amigo, mas o meu reconhecimento pedia para se manifestar.
P. Tende a bondade de dizer-nos primeiro como vos encontrais no mundo dos Espíritos. Tende a bondade de ao mesmo tempo nos descrever o trabalho da separação, vossas sensações naquele momento, e dizer-nos ao fim de quanto tempo vos reconhecestes. – R. Sou tão feliz quanto se pode ser, quando se vê plenamente confirmados todos os pensamentos secretos que emitimos sobre uma doutrina consoladora e reparadora. Sou feliz! Sim, eu o sou, pois agora vejo sem nenhum obstáculo se desenvolver diante de mim o futuro da ciência e da filosofia espíritas.
Mas afastemos por hoje essas digressões inoportunas; virei de novo conversar convosco sobre esse assunto, sabendo que minha presença vos trará tanto prazer quanto eu mesmo sinto ao visitar-vos.
O dilaceramento foi bastante rápido; mais rápido do que o meu pouco mérito me fazia esperar. Fui ajudado poderosamente pelo vosso concurso, e vosso sonâmbulo vos deu uma ideia bastante nítida do fenômeno da separação, para que eu não insista nisso. Era uma espécie de oscilação descontínua, uma espécie de arrastamento em dois sentidos opostos; o Espírito triunfou, visto que estou aqui. Não deixei completamente o corpo senão no momento em que ele foi baixado à terra; eu voltei convosco.
P. O que pensais do serviço que foi feito para vosso funeral? Estabeleci para mim o dever de assistir a ele. Naquele momento estáveis suficientemente desprendido para vê-lo, e as preces que disse por vós (não ostensivamente, bem entendido) foram até vós? – R. Sim; como vos disse, vossa assistência fez tudo em parte, e voltei convosco, abandonando completamente minha velha crisálida. Aliás, as coisas materiais tocam-me pouco, vós o sabeis. Eu não pensava senão na alma e em Deus.
P. Recordais-vos de que, a pedido vosso, há cinco anos, no mês de fevereiro de 1860, fizemos um estudo sobre vós ainda vivo. * Naquele momento vosso Espírito se desprendeu para vir conversar conosco. Tende a bondade de nos descrever, tanto quanto possível, a diferença que existe entre vosso desprendimento atual e aquele de então? – R. Sim, decerto, recordo-me; mas que diferença entre meu estado de então e o de hoje! Naquele tempo a matéria me apertava ainda com sua rede inflexível; eu queria me desprender de uma maneira mais absoluta, e não podia. Hoje estou livre; um vasto campo, o campo do desconhecido, se abre diante de mim, e espero, com vossa ajuda e a dos bons Espíritos aos quais me recomendo, avançar e me penetrar o mais rapidamente possível dos sentimentos que é preciso experimentar, e dos atos que é preciso realizar para galgar o caminho da prova e merecer o mundo das recompensas. Que majestade! Que grandeza! É quase um sentimento de terror que domina quando, fracos como somos, queremos fixar as sublimes claridades.
P. Numa outra vez ficaremos felizes de continuar esta conversa, quando quiserdes voltar ao meio de nós. – R. Respondi sucintamente e sem sequência às vossas diferentes perguntas. Não pedi demasiado ao vosso fiel discípulo: ainda não estou inteiramente livre. Conversar, conversar mais seria minha felicidade; meu guia modera meu entusiasmo, e já pude apreciar suficientemente sua bondade e sua justiça para me submeter inteiramente à sua decisão, por mais que lamente ser interrompido. Consolo-me pensando que poderei frequentemente vir assistir incógnito às vossas reuniões. Às vezes falarei convosco; amo-vos e quero prová-lo. Mas outros Espíritos mais avançados do que eu reclamam a prioridade, e devo apagar-me diante daqueles que tiveram a bondade de permitir ao meu Espírito dar livre curso à torrente de pensamentos que eu reunira.
Deixo-vos, amigos, e devo agradecer duplamente, não só a vós, espíritas, que me chamastes, mas também a esse Espírito que teve a bondade de permitir que eu tomasse seu lugar, e que, quando vivo, tinha o nome ilustre de Pascal.
Aquele que foi e será sempre o mais devotado de vossos adeptos. Dr. VIGNAL.
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* Ver a Revista Espírita do mês de março de 1860.
Victor Lebufle
Jovem piloto da barra, pertencendo ao porto do Havre, morto com a idade de vinte anos. Morava com a mãe, pobre pequena comerciante, à qual prodigalizava os cuidados mais ternos e afetuosos, e sustentava com o produto do seu rude trabalho. Nunca foi visto frequentando cabarés, nem se entregando aos excessos tão frequentes na sua profissão, pois não queria subtrair a menor parte de seu ganho do piedoso uso ao qual o consagrava. Todo o tempo não empregado em seu serviço, ele o dava à mãe para lhe poupar a fadiga. Há muito tempo sofrendo da doença da qual sentia que devia morrer, ocultava seus sofrimentos com medo de lhe causar inquietação e que ela mesma quisesse encarregar-se do seu trabalho. Esse jovem precisava de um grande patrimônio de qualidades naturais, e de uma grande força de vontade para resistir, na idade das paixões, aos perniciosos aliciamentos do meio onde vivia. Ele tinha uma piedade sincera, e sua morte foi edificante.
Na véspera de sua morte ele exigiu da mãe que fosse repousar um pouco, dizendo que ele mesmo sentia necessidade de dormir. Esta teve então uma visão; encontrava-se, disse ela, numa grande escuridez; depois viu um ponto luminoso que crescia pouco a pouco, e o quarto ficou iluminado por uma brilhante claridade, da qual se destacou a figura de seu filho, radiosa e elevando-se no espaço infinito. Ela compreendeu que o fim dele estava próximo; com efeito, no dia seguinte sua bela alma deixara a terra, enquanto seus lábios murmuravam uma prece.
Uma família espírita que conhecia sua bela conduta e se interessava pela mãe, que ficou sozinha, tivera a intenção de evocá-lo pouco tempo após sua morte, mas ele se manifestou espontaneamente pela comunicação seguinte:
“Desejais saber o que eu sou agora: bem-aventurado, oh! bem aventurado! Não leveis em conta os sofrimentos e as angústias, pois eles são a fonte de bênçãos e de felicidade além-túmulo. Felicidade! Não compreendeis o que essa palavra significa. As felicidades da terra estão tão distantes do que nós experimentamos, quando voltamos ao Mestre com uma consciência pura, com a confiança do servidor que cumpriu bem o seu dever, e que aguarda cheio de alegria o assentimento daquele que é tudo!
Oh! meus amigos, a vida é penosa e difícil, se não olhardes o fim; mas eu vos digo em verdade, quando vierdes para o meio de nós, se vossa vida foi segundo a lei de Deus, vós sereis recompensados além, muito além dos sofrimentos e dos méritos que credes ter ganhado para o céu. Sede bons, sede caridosos, dessa caridade desconhecida por muitos homens, que se chama benevolência. Socorrei vossos semelhantes; fazei por eles mais do que gostaríeis que se fizesse por vós, pois ignorais a miséria íntima, e conheceis a vossa. Socorrei minha mãe, minha pobre mãe, meu único pesar da terra. Ela deve suportar outras provas, e é preciso que chegue ao céu. Adeus, vou vê-la.” VICTOR.
O guia do médium. – Os sofrimentos suportados durante uma encarnação terrestre não são sempre uma punição. Os Espíritos que, pela vontade de Deus, vêm cumprir uma missão na terra, como aquele que acaba de se comunicar convosco, são felizes por suportar males que, para outros, são uma expiação. O sono os retempera junto do Altíssimo, e dá-lhes a força de suportar tudo para sua maior glória. A missão deste Espírito, em sua última existência, não era uma missão brilhante; mas embora tenha sido obscura, ele só teve mais mérito por isso, porque não podia ser estimulado pelo orgulho. Ele tinha primeiro um dever de reconhecimento a cumprir para com aquela que foi sua mãe; devia em seguida mostrar que, nos piores meios, podem achar-se almas puras, de sentimentos nobres e elevados, e que com a vontade se pode resistir a todas as tentações. É uma prova de que as qualidades têm uma causa anterior, e seu exemplo não terá sido estéril.
A Sra. Anais Gourdon
Mulher muito jovem, notável pela doçura de seu caráter e pelas mais eminentes qualidades morais, morta em dezembro de 1860. Pertencia a uma família de trabalhadores nas minas de carvão dos arredores de Saint-Étienne, circunstância importante para apreciar sua posição como Espírito.
Evocação. – R. Estou aqui.
P. Vosso marido e vosso pai me pediram para vos chamar, e ficarão muito felizes por ter de vós uma comunicação.
– R. Fico bem feliz também por dá-la a eles.
P. Por que fostes tirada tão jovem da afeição de vossa família?
– R. Porque terminava minhas provas terrestres.
P. Ides vê-los às vezes? – R. Oh! estou frequentemente perto deles.
P. Sois feliz como Espírito? – R. Sou feliz, espero, aguardo, amo; os céus não têm terror para mim, e aguardo com confiança e amor que as asas brancas nasçam em mim.
P. O que entendeis por essas asas? – R. Entendo tornar-me puro Espírito e resplandecer como os mensageiros celestes que deslumbram.
Observação: As asas dos anjos, arcanjos, serafins que são puros Espíritos não são evidentemente senão um atributo imaginado pelos homens para representar a rapidez com a qual eles se transportam, pois sua natureza etérea os dispensa de qualquer suporte para percorrer os espaços. Eles podem, no entanto, aparecer aos homens com esse acessório para corresponder ao pensamento deles, como outros Espíritos tomam a aparência que tinham na terra para se fazerem reconhecer.
P. Vossos pais podem fazer algo que vos seja agradável?
– R. Esses queridos seres podem não me entristecer mais pela visão de suas lamentações, visto que sabem que não estou perdida para eles; que meu pensamento lhe seja doce, leve e perfumado com a recordação deles. Passei como uma flor, e nada de triste deve subsistir de minha rápida passagem.
P. Como explicar que vossa linguagem seja tão poética e tão pouco em relação com a posição que tínheis na terra? – R. É que é a minha alma que fala. Sim, eu tinha conhecimentos adquiridos, e frequentemente Deus permite que Espíritos delicados se encarnem entre os homens mais rudes para lhes fazer pressentir as delicadezas que eles alcançarão e compreenderão mais tarde.
Observação: Sem essa explicação tão lógica, e tão conforme à solicitude de Deus pelas suas criaturas, dificilmente ter-se-ia dado conta do que, à primeira vista, poderia parecer uma anomalia. Com efeito, o que haverá de mais gracioso e de mais poético do que a linguagem do Espírito dessa jovem mulher criada no meio dos mais rudes trabalhos? A contrapartida se vê com frequência; são Espíritos inferiores encarnados entre os homens mais avançados, mas com um objetivo oposto; é em vista do próprio avanço deles que Deus os põe em contato com um mundo esclarecido, e às vezes também para servir de prova a esse mesmo mundo. Qual outra filosofia pode resolver tais problemas?
Maurice Gontran
Era filho único, morto de tuberculose, aos dezoito anos. Inteligência rara, razão precoce, grande amor pelo estudo, caráter doce, afetuoso e simpático, possuía todas as qualidades que dão as mais legítimas esperanças de um brilhante futuro. Seus estudos haviam terminado cedo com o maior sucesso, e ele se preparava para a Escola Politécnica. Sua morte foi para os pais a causa de uma dessas dores que deixam marcas profundas, e tanto mais penosas quanto tendo tido sempre uma saúde delicada, eles atribuíam seu fim prematuro ao trabalho ao qual o haviam impelido, e censuravam-se por isso. “De que, diziam eles, lhe serve agora tudo o que aprendeu? Mais valera que tivesse ficado ignorante, pois não precisava disso para viver, e sem dúvida ainda estaria entre nós; teria sido a consolação de nossa velhice.” Se eles tivessem conhecido o Espiritismo, teriam sem dúvida raciocinado de outra maneira. Mais tarde, encontraram nele a verdadeira consolação. A comunicação seguinte foi dada pelo filho a um dos amigos dos pais, alguns meses após a morte:
P. Meu caro Maurice, o terno apego que tínheis por vossos pais faz com que eu não duvide de vosso desejo de restaurar a coragem deles, se isso está em vosso poder. A tristeza, o desespero em que vossa morte os mergulhou, altera visivelmente a saúde deles e os faz ter aversão pela vida. Algumas boas palavras vossas poderão sem dúvida fazer renascer neles a esperança.
R. Meu velho amigo, aguardava com impaciência a ocasião que me ofereceis de me comunicar. A dor de meus pais aflige-me, mas ela se acalmará quando eles tiverem a certeza de que não estou perdido para eles; deveis dedicar-vos a convencê-los desta verdade, e conseguireis certamente. Era preciso este acontecimento para levá-los a uma crença que fará a felicidade deles, pois impedi-los-á de murmurar contra os decretos da Providência. Meu pai, vós o sabeis, era muito cético a propósito da vida futura; Deus permitiu que ele tivesse esta aflição para tirá-lo de seu erro.
Nós nos reencontraremos aqui, neste mundo onde não se conhecem mais os desgostos da vida, e no qual os precedi; mas dizei-lhes claramente que a satisfação de me rever aqui lhes seria recusada como punição de sua falta de confiança na bondade de Deus. Ser-me-ia mesmo proibido, de agora em diante, me comunicar com eles enquanto estiverem na terra. O desespero é uma revolta contra a vontade do Onipotente, e que é sempre punida pelo prolongamento da causa que trouxe esse desespero, até que haja enfim submissão. O desespero é um verdadeiro suicídio, pois mina as forças do corpo, e aquele que abrevia seus dias com o pensamento de escapar mais cedo às constrições da dor, prepara para si as mais cruéis decepções; ao contrário, é para manter as forças do corpo que é preciso trabalhar para suportar mais facilmente o peso das provas.
Meus bons pais, é a vós que me dirijo. Desde que deixei meus restos mortais, não cessei de estar junto de vós, e estou aí mais frequentemente do que quando vivia na terra. Consolai-vos, portanto, pois não morri; estou mais vivo do que vós; só meu corpo morreu, mas meu Espírito vive sempre. Ele é livre, feliz, doravante ao abrigo das doenças, das enfermidades e da dor. Em vez de vos afligirdes, regozijai-vos por me saber num meio isento de preocupações e de alarmes, onde o coração está inebriado de uma alegria pura e sem mistura.
Oh! meus amigos, não lastimeis aqueles que morrem prematuramente; é uma graça que Deus lhes concede, poupar-lhes as atribulações da vida. Minha existência não devia prolongar-se por muito mais tempo desta vez na terra; eu adquirira aí o que devia adquirir a fim de me preparar para cumprir mais tarde uma missão mais importante. Se tivesse vivido aí longos anos, sabeis a que perigos, a que seduções teria sido exposto? Sabeis que se, não sendo ainda bastante forte para resistir, eu tivesse sucumbido, podia ser para mim um atraso de vários séculos? Por que então lamentar o que me é vantajoso? Uma dor inconsolável, neste caso, acusaria uma falta de fé que não poderia ser legitimada senão pela crença no nada. Oh! sim, eles são de lamentar, esses que têm essa crença desesperante, pois para eles não há consolação possível; os seres que lhes são caros estão perdidos para sempre; a sepultura levou-lhes a última esperança!
P. Vossa morte foi dolorosa?
R. Não, meu amigo, só sofri antes de morrer por causa da doença que me levou, mas esse sofrimento diminuía à medida que o último momento se aproximava; depois, um dia, adormeci sem pensar na morte. Sonhei; oh! um sonho delicioso! Sonhava que estava curado; não sofria mais, respirava a plenos pulmões e com volúpia um ar perfumado e fortalecedor; era transportado através do espaço por uma força desconhecida; uma luz brilhante resplandecia à minha volta, mas sem me cansar a vista. Vi meu avô; ele não tinha mais a figura descarnada, mas sim um ar de frescor e de juventude; estendeu-me os braços e me apertou efusivamente contra o coração. Uma multidão de outras pessoas, de rosto sorridente, o acompanhava; todas me acolhiam com bondade e benevolência; parecia-me reconhecê-las, estava feliz de revê-las, e todos juntos trocávamos palavras e provas de amizade. Pois bem! o que eu acreditava ser um sonho era a realidade; eu não devia mais despertar na terra: despertara no mundo dos Espíritos.
P. Não teria vossa doença sido causada por vossa assiduidade excessiva ao estudo?
R. Oh! não, ficai bem persuadido disso. O tempo que eu devia viver na terra estava marcado, e nada me podia reter aí por mais tempo. Meu Espírito, nos seus momentos de desprendimento, sabia-o bem, e estava feliz pensando em sua libertação próxima. Mas o tempo que passei aí não foi sem proveito, e congratulo-me hoje por não o ter perdido. Os estudos sérios que fiz fortaleceram minha alma e aumentaram meus conhecimentos; sempre é algo aprendido, e se não pude aplicá-los em minha curta estada entre vós, aplicá-los-ei mais tarde com maior proveito.
Adeus, caro amigo, vou para junto de meus pais, dispô-los a receber esta comunicação. MAURICE
Capítulo III - Espíritos em uma condição média
Joseph Bré
Morto em 1840, evocado em Bordeaux em 1862 pela neta.
O homem honesto segundo Deus ou segundo os homens.
1. Querido avô, quereis dizer-me como estais entre os Espíritos, e dar-me alguns detalhes instrutivos para nosso avanço? – R. Tudo o que quiseres, minha querida filha. Estou expiando minha falta de fé; mas a bondade de Deus é grande: ele leva em conta as circunstâncias. Sofro, não como poderias entender, mas de arrependimento por não ter empregado bem meu tempo na terra.
2. Como não o empregastes bem? Fostes sempre um homem honesto. – R. Sim, do ponto de vista dos homens; mas há um abismo entre o homem honesto perante os homens, e o homem honesto perante Deus. Tu queres instruir-te, querida filha; vou tentar fazer-te sentir a diferença. Entre vós, considera-se como homem honesto aquele que respeita as leis de seu país, respeito elástico para muitos; aquele que não se faz mal ao próximo tomando-lhe ostensivamente seus bens; mas toma frequentemente sem escrúpulo sua honra, sua felicidade, desde que a lei, ou a opinião pública, não possam alcançar o culpado hipócrita. Quando se pôde mandar gravar na sua lápide a série interminável de virtudes que são enaltecidas, acredita-se ter pago sua dívida para com a humanidade. Que engano! Para ser honesto perante Deus não basta não ter infringido as leis dos homens, é preciso antes de tudo não ter transgredido as leis divinas.
O homem honesto perante Deus é aquele que, cheio de devoção e amor, dedica sua vida ao bem, ao progresso de seus semelhantes; aquele que, animado por um zelo inspirado no objetivo, é ativo na vida: ativo no cumprimento da tarefa material que lhe é imposta, pois deve ensinar a seus irmãos o amor ao trabalho; ativo nas boas obras, pois não deve esquecer que é apenas um servidor ao qual o senhor pedirá um dia contas do uso de seu tempo; ativo no objetivo, pois deve pregar pelo exemplo o amor ao Senhor e ao próximo. O homem honesto perante Deus deve evitar cuidadosamente essas palavras mordazes, veneno escondido sob flores, que destrói as reputações e muitas vezes mata o homem moral ao cobri-lo de ridículo.
O homem honesto perante Deus deve ter sempre o coração fechado ao menor fermento de orgulho, de inveja, de ambição. Ele deve ser paciente e doce com os que o atacam; deve perdoar do fundo do coração, sem esforço e, sobretudo, sem ostentação, a todo aquele que o ofendeu; deve amar seu criador em todas as suas criaturas; deve, por fim, pôr em prática este resumo tão conciso e tão grande dos deveres do homem: amar a Deus acima de todas as coisas e seu próximo como a si mesmo.
Eis, minha querida filha, aproximadamente o que deve ser o homem honesto perante Deus. Pois bem! Será que eu fiz tudo isso? Não; faltaram-me muitas dessas condições, confesso-o aqui sem enrubescer; não tive a atividade que o homem deve ter; o esquecimento do Senhor levou-me a outros esquecimentos que, mesmo não sendo passíveis de punição pela lei humana, não deixam de ser prevaricações pela lei de Deus. Sofri bastante por isso quando o senti; eis porque espero hoje, mas com a consoladora esperança na bondade de Deus que vê meu arrependimento. Diz isso, querida filha; repete-o àqueles que têm a consciência pesada: que eles cubram suas faltas à força de boas obras, e a misericórdia divina se deterá na superfície; seus olhos paternos contarão as expiações, e sua mão poderosa apagará as faltas.
Sra. Hélène Michel
Mulher de vinte e cinco anos, morta subitamente em alguns minutos, em sua casa, sem sofrimentos, e sem causa prévia conhecida. Era rica, um pouco frívola, e, em consequência da leviandade de seu caráter, ocupava-se mais das futilidades da vida do que das coisas sérias; apesar disso, seu coração era bom: ela era doce, benevolente e caridosa.
Evocada três dias após a morte por pessoas que a tinham conhecido, exprimiu-se assim:
“Não sei onde estou... que perturbação me rodeia!... Chamastes-me, e acorro... Não compreendo porque não estou em casa... choram minha ausência, e estou aqui, e não consigo fazer-me reconhecer por todos eles... Meu corpo não me pertence mais, e, no entanto, eu o sinto frio e gelado... Quero deixá-lo, e estou presa a ele; a ele volto sempre ...Sou duas pessoas...Oh! quando compreenderei o que me acontece?... É preciso ainda que eu vá lá... meu outro EU, o que ele se tornará, comigo ausente?... Adeus.”
Observação: O sentimento da dualidade que ainda não está destruído por uma separação completa é aqui evidente. Caráter pouco sério, sua posição de fortuna, permitindo-lhe satisfazer seus caprichos, devia favorecer suas tendências à leviandade. Logo, não é espantoso que seu desprendimento tenha sido pouco rápido, e que, três dias após a morte, ela se sentisse ainda ligada a seu envoltório corporal. Mas, como não havia nela nenhum vício sério, e que o fundo era bom, essa situação não tinha nada de realmente penoso, e não durou por muito tempo. Evocada de novo alguns dias mais tarde, suas ideias já tinham mudado muito. Eis o que disse:
“Obrigada por terdes orado por mim. Reconheço a bondade de Deus que me poupou os sofrimentos e a apreensão do momento da separação de meu corpo e de meu Espírito. Minha pobre mãe terá muita dificuldade para se resignar; mas será apoiada, e o que, a seus olhos, é uma terrível desgraça, era indispensável, a fim de que as coisas do céu se tornassem para ela o que devem ser: tudo. Estarei perto dela até o fim de sua prova terrestre, e ajudá-la-ei a suportá-la. Não sou infeliz, mas ainda tenho muito o que fazer para avançar rumo à morada bem-aventurada. Pedirei a Deus que me permita voltar a esta terra, pois tenho que reparar o tempo que aí perdi nesta existência. Que a fé vos sustente, meus amigos; tende confiança na eficácia da prece, quando ela parte verdadeiramente do coração. Deus é bom.”
P. Levastes muito tempo para vos reconhecerdes? – R. Compreendi a morte no mesmo dia em que rezastes por mim.
P. Esse estado de perturbação era sofrimento? – R. Não, eu não sofria; acreditava sonhar, e aguardava o despertar. Minha vida não foi isenta de dores, mas todo ser encarnado aqui embaixo deve sofrer; eu me resignei à vontade de Deus, e ele o levou em conta. Estou reconhecida a vós pelas preces que me ajudaram a reconhecer-me. Obrigada; voltarei sempre com prazer. Adeus.
HÉLÈNE.
O Marquês de Saint-Paul
Morto em 1860, evocado a pedido de sua irmã, membro da Sociedade de Paris, em 16 de maio de 1861.
1. Evocação. – R. Aqui estou.
2. A senhora vossa irmã pediu-nos para vos evocar, embora ela seja médium, mas ainda não está suficientemente formada para estar bem segura de si mesma. – R. Tentarei responder o melhor que puder.
3. Ela deseja saber primeiramente se sois feliz. – R. Sou errante, e este estado transitório nunca traz nem a felicidade, nem o castigo absolutos.
4. Demorastes muito tempo para vos reconhecerdes? – R. Fiquei muito tempo no estado de perturbação, e não saí dele a não ser para bendizer a piedade daqueles que não me esqueciam e oravam por mim. – P. Podeis fazer uma apreciação da duração dessa perturbação? – R. Não.
5. Quais de vossos parentes reconhecestes primeiramente? – R. Reconheci minha mãe e meu pai, que, ambos, me receberam ao despertar; eles me iniciaram à vida nova.
6. Como explicar que no fim de vossa doença parecíeis conversar com aqueles que havíeis amado na terra? – R. Porque tive, antes de morrer, a revelação do mundo em que ia habitar. Eu era vidente antes de morrer, e meus olhos se velaram na passagem da separação definitiva do corpo, porque os laços carnais ainda eram muito vigorosos.
7. Como explicar que vossas lembranças de infância pareciam voltar preferencialmente? – R. Porque o começo está mais próximo do objetivo do que o meio da vida. – P. Como o explicais? – R. Quer dizer que os moribundos se lembram e veem, como numa miragem de consolação, os jovens e puros anos.
Observação: Provavelmente, é por um motivo providencial semelhante que os velhos, à medida que se aproximam do fim da vida, têm às vezes uma lembrança tão precisa dos mínimos detalhes de seus primeiros anos.
8. Por que, ao falar de vosso corpo, faláveis sempre na terceira pessoa? – R. Porque eu era vidente, como vos disse, e sentia nitidamente as diferenças que existem entre o físico e o moral; essas diferenças, ligadas entre si pelo fluido da vida, tornam-se muito nítidas aos olhos dos moribundos clarividentes.
Observação: Essa foi uma particularidade que a morte desse senhor apresentou. Em seus últimos momentos, dizia sempre: “Ele tem sede, é preciso dar-lhe de beber; ele tem frio, é preciso aquecê-lo; ele sofre em tal lugar, etc.” E quando lhe diziam: “Mas sois vós que tendes sede”, ele respondia: “Não, é ele.” Aqui desenham-se perfeitamente as duas existências; o eu pensante está no Espírito e não no corpo; o Espírito, já desprendido em parte, considerava seu corpo como uma outra individualidade que não era dele propriamente falando; era portanto a seu corpo que era preciso dar de beber e não a ele, Espírito. Este fenômeno se observa também em certos sonâmbulos.
9. O que dissestes de vosso estado errante, e da duração de vossa perturbação, levaria a crer que não sois muito feliz, e, no entanto, vossas qualidades deveriam fazer supor o contrário. Há, aliás, Espíritos errantes que são felizes, como há os infelizes. –
R. Estou num estado transitório; as virtudes humanas adquirem aqui seu verdadeiro preço. Sem dúvida, meu estado é mil vezes preferível ao da encarnação terrestre, mas sempre tive em mim as aspirações ao verdadeiro bem e ao verdadeiro belo, e minha alma não ficará saciada a não ser quando voar aos pés do seu Criador.
Sr. Cardon
Médico, morto em setembro de 1862 (Sociedade de Paris - Médium: Sr. Leymarie)
O Sr. Cardon passara uma parte da vida na marinha mercante, na qualidade de médico de baleeiro, e extraíra daí hábitos e ideias um pouco materiais; aposentado no vilarejo de J..., exercia aí a modesta profissão de médico rural. Havia algum tempo, adquirira a certeza de que sofria de uma hipertrofia do coração, e, sabendo que essa doença é incurável, o pensamento da morte mergulhava-o numa sombria melancolia da qual nada o podia distrair. Aproximadamente dois meses antes, predisse seu fim num dia pré-determinado; quando se viu prestes a morrer, reuniu a família à sua volta para lhe dizer um último adeus. Sua mulher, sua mãe, seus três filhos e outros parentes estavam reunidos em volta de sua cama; no momento em que a mulher tentava erguê-lo, ele caiu bruscamente, tornou-se de um azul lívido, os olhos fecharam-se, e foi dado por morto; a mulher colocou-se diante dele para ocultar esse espetáculo aos filhos. Depois de alguns minutos ele reabriu os olhos; seu rosto, por assim dizer iluminado, tomou uma expressão de radiosa beatitude, e ele exclamou: Oh! meus filhos, como é belo! Como é sublime! Oh! a morte! Que ventura! Que doce coisa! Eu estava morto, e senti minha alma se elevar bem alto, bem alto; mas Deus me permitiu voltar para vos dizer: “Não temais a morte, é a libertação...” Se pudesse descrever-vos a magnificência do que vi e as impressões de que me senti penetrado! Mas não poderíeis compreender... Oh! meus filhos, conduzi-vos sempre de maneira a merecer essa inefável felicidade, reservada aos homens de bem; vivei segundo a caridade; se tiverdes algo, dai uma parte àqueles que carecem do necessário... Minha querida mulher, deixo-te numa posição que não é boa; devem-nos dinheiro, mas peço-te, não atormentes aqueles que nos devem; se eles estiverem em dificuldades, aguarda que possam quitar a dívida, e aqueles que não puderem, faz esse sacrifício por eles: Deus te recompensará. Tu, meu filho, trabalha para sustentar a tua mãe; sê sempre honesto e toma cuidado para não fazer nada que possa desonrar a nossa família. Toma esta cruz que era da minha mãe; não a abandones, e que ela te relembre sempre meus últimos conselhos... Meus filhos, ajudai-vos e apoiai-vos mutuamente; que a boa harmonia reine entre vós; não sejais vaidosos, nem orgulhosos; perdoai aos vossos inimigos, se quiserdes que Deus vos perdoe...” Depois, tendo mandado aproximarem-se os filhos, estendeu as mãos para eles, e acrescentou: “Meus filhos, eu vos bendigo.” E seus olhos se fecharam, desta vez para sempre; mas seu semblante conservou uma expressão tão imponente que, até o momento em que foi enterrado, uma multidão considerável veio contemplá-lo com admiração.
Tendo estes interessantes detalhes nos sido transmitidos por um amigo da família, pensamos que esta evocação podia ser instrutiva para todos, ao mesmo tempo em que seria útil ao Espírito.
1. Evocação. R. Estou perto de vós.
2. Relataram-nos vossos últimos instantes que nos encheram de admiração. Teríeis a bondade de nos descrever, melhor do que fizestes, o que vistes durante o intervalo do que se poderia chamar vossas duas mortes. – R. O que eu vi, poderíeis compreendê-lo? Não sei, pois não poderia encontrar expressões capazes de tornar compreensível o que pude ver durante os poucos instantes em que me foi possível deixar meus restos mortais.
3. Vós vos dais conta de onde estivestes? Foi longe da terra, num outro planeta ou no espaço? – R. O Espírito não conhece o valor das distâncias tais como vós as considerais. Levado por não sei que agente maravilhoso, vi o esplendor de um céu como só nossos sonhos poderiam realizar. Essa corrida através do infinito ocorreu tão rapidamente que não posso precisar os instantes usados pelo meu Espírito.
4. Atualmente, gozais da felicidade que entrevistes? – R. Não; gostaria de poder gozá-la, mas Deus não pode me recompensar assim. Revoltei-me demasiadas vezes contra os pensamentos benditos que meu coração ditava, e a morte me parecia uma injustiça. Médico incrédulo, eu extraíra da arte de curar uma aversão contra a segunda natureza que é nosso movimento inteligente, divino; a imortalidade da alma era uma ficção própria para seduzir as naturezas pouco elevadas; no entanto, o vazio me aterrorizava, pois maldisse muitas vezes esse agente misterioso que atinge sempre e sempre. A filosofia me desencaminhara, sem me fazer compreender toda a grandeza do Eterno que sabe repartir a dor e a alegria para o ensinamento da humanidade.
5. Quando de vossa morte verdadeira, reconheceste-vos imediatamente?
– R. Não; reconheci-me durante a transição que meu Espírito suportou para percorrer os lugares etéreos; mas após a morte real, não; foram precisos alguns dias para meu despertar.
Deus me concedera uma graça; vou dizer-vos a razão dela: Minha incredulidade inicial não existia mais; antes de minha morte, eu cria, pois após ter cientificamente sondado a matéria grave que me fazia perecer, eu não encontrara, esgotadas as razões terrestres, senão a razão divina; ela me inspirara, consolara, e minha coragem era mais forte do que a dor. Bendizia o que maldissera; o fim me parecia a libertação. O pensamento de
Deus é grande como o mundo! Oh! Que supremo consolo na prece que dá enternecimentos inefáveis; ela é o elemento mais seguro de nossa natureza imaterial; por ela compreendi, acreditei firmemente, soberanamente, e é por isso que Deus, escutando minhas ações benditas, teve a bondade de me recompensar antes de acabar minha encarnação.
6. Poder-se-ia dizer que na primeira vez estáveis morto? – R. Sim e não; tendo o Espírito deixado o corpo, naturalmente a carne se extinguia; mas ao retomar posse de minha morada terrestre, a vida voltou ao corpo que sofrera uma transição, um adormecimento.
7. Naquele momento sentíeis os laços que vos uniam a vosso corpo? – R. Sem dúvida; o Espírito tem um laço difícil de romper, ele precisa do último estremecimento da carne para voltar à sua vida natural.
8. Como explicar que, por ocasião de vossa morte aparente e durante alguns minutos, vosso Espírito tenha podido desprender-se instantaneamente e sem perturbação, ao passo que a morte real foi seguida por perturbação de vários dias? Parece que, no primeiro caso, subsistindo mais os laços entre a alma e o corpo do que no segundo, o desprendimento devia ser mais lento, e foi o contrário que aconteceu. – R. Vós fizestes com frequência a evocação de um Espírito encarnado, recebestes dele respostas reais; eu estava na posição desses Espíritos. Deus me chamava, e seus servidores me haviam dito: “Vem...”. Obedeci, e agradeço a Deus a graça especial que ele teve a bondade de me conceder; pude ver o infinito de sua grandeza e dar-me conta dela. Obrigado a vós que me permitistes, antes da morte real, ensinar aos meus para que eles sejam boas e justas encarnações.
9. De onde vos vinham as belas e boas palavras que, por ocasião de vossa volta à vida, dirigistes a vossa família? – R. Elas eram o reflexo do que eu vira e ouvira; os bons Espíritos inspiravam minha voz e animavam meu rosto.
10. Que impressão acreditais que vossa revelação tenha tido sobre os assistentes e sobre vossos filhos em particular? – R. Impressionante, profunda; a morte não é mentirosa; os filhos, por mais ingratos que possam ser, se inclinam diante da encarnação que parte. Se se pudesse escrutar o coração dos filhos, perto de um túmulo entreaberto, não se sentiriam bater senão sentimentos verdadeiros, tocados profundamente pela mão secreta dos Espíritos que dizem a todos os pensamentos: Temei se estais na dúvida; a morte é a reparação, a justiça de Deus, e asseguro-vos, apesar dos incrédulos, que meus amigos e minha família acreditarão nas palavras que minha voz pronunciou antes de morrer. Eu era o intérprete de um outro mundo.
11. Dissestes que não gozáveis da felicidade que entrevistes; sois desgraçado? – R. Não, visto que eu cria antes de morrer, e isso em minha alma e consciência. A dor aperta aqui embaixo, mas ela eleva para o futuro espírita. Notai que Deus levou em conta minhas preces e minha crença absoluta nele; estou no caminho da perfeição, e chegarei ao objetivo que ele me permitiu entrever. Orai, meus amigos, por esse mundo invisível que preside aos vossos destinos; essa troca fraterna é caridade; é uma alavanca poderosa que põe em comunhão os Espíritos de todos os mundos.
12. Gostaríeis de dirigir algumas palavras a vossa mulher e a vossos filhos?
R. Peço a todos os meus para crerem em Deus poderoso, justo, imutável; na prece que consola e alivia; na caridade que é o ato mais puro da encarnação humana; que eles se lembrem de que se pode dar pouco: o óbolo do pobre é o mais meritório diante de Deus, que sabe que um pobre dá muito ao dar pouco; é preciso que o rico dê grandemente e muitas vezes para merecer tanto quanto ele.
O futuro é a caridade, a benevolência em todas as ações; é crer que todos os Espíritos são irmãos, nunca se prevalecendo de todas as pueris vaidades. Família bem-amada, terás rudes provas; mas enfrenta-as corajosamente, pensando que Deus as vê.
Dizei frequentemente esta prece: Deus de amor e de bondade, que dá tudo e sempre, concede-nos essa força que não recua diante de nenhuma pena; torna-nos bons, doces e caridosos, pequenos pela fortuna, grandes pelo coração. Que nosso Espírito seja espírita na terra para melhor vos compreender e vos amar. Que o vosso nome, ó meu Deus, emblema de liberdade, seja o objetivo consolador de todos os oprimidos, de todos aqueles que precisam amar, perdoar e crer.
CARDON.
Eric Stanislas
(Comunicação espontânea; sociedade de Paris; agosto de 1863.)
Como as emoções sentidas vivamente por corações calorosos nos trazem felicidade! Ó doces pensamentos que vindes abrir uma via de salvação a tudo que vive, a tudo que respira material e espiritualmente, que vosso bálsamo salvador não cessa de espalhar abundantemente sobre vós e sobre nós! Que expressões escolher para traduzir a felicidade que sentem todos os vossos irmãos de além-túmulo na contemplação do puro amor que vos une a todos! Ah! Irmãos, quanto bem por toda a parte, quantos doces sentimentos elevados e simples como vós, como vossa doutrina, sois chamados a semear na longa estrada que ainda tendes de percorrer; mas também quanto tudo isso vos será devolvido antes mesmo do momento em que tiverdes esse direito!
Assisti a toda esta reunião noturna; escutei, ouvi, compreendi, e vou poder também, por minha vez, cumprir meu dever e instruir a classe dos Espíritos imperfeitos.
Escutai: eu estava longe de ser feliz; mergulhado na imensidão, no infinito, meus sofrimentos eram tanto mais agudos quanto eu não podia me dar conta exata deles. Deus seja louvado! Ele me permitiu vir a um santuário que os malvados não podem transpor impunemente. Amigos, quão reconhecido vos sou, quanta força absorvi entre vós! Oh! homens de bem, reuni-vos com frequência; instruí, pois não poderíeis imaginar quantos frutos trazem todas as reuniões sérias que fazeis entre vós; os Espíritos que têm ainda muitas coisas que aprender, os que permanecem voluntariamente inativos, preguiçosos e esquecidos de seus deveres podem se encontrar, seja por uma circunstância fortuita, seja de outro modo, entre vós; atingidos por um choque terrível, eles podem, e é o que ocorre muitas vezes, dobrar-se sobre si mesmos, reconhecer-se, entrever o objetivo a alcançar, e fortalecidos pelo exemplo que lhes dais, buscar os meios que podem fazê-los sair do estado penoso em que se encontram. Torno-me com muita alegria o intérprete das almas sofredoras, pois é a homens de coração que me dirijo e sei que não sou repelido.
Aceitai, portanto, mais uma vez, ó homens generosos, receber a expressão de meu reconhecimento particular e a de todos os nossos amigos a quem fizestes, talvez sem o prever, tanto bem.
ÉRIC STANISLAS.
O guia do médium. – Meus filhos, é um Espírito que foi muito infeliz, porque esteve perdido por muito tempo. Agora compreendeu seus erros, arrependeu-se, e enfim voltou seu olhar para Deus que desconhecera; sua posição não é a felicidade, mas ele aspira a ela e não sofre mais. Deus lhe permitiu vir escutar, e depois ir a uma esfera inferior instruir e fazer avançar os Espíritos que, como ele, transgrediram as leis do Eterno; é a reparação que lhe é pedida. Doravante ele conquistará a felicidade, porque tem essa vontade.
Sra. Anna Belleville
Jovem mulher morta aos trinta e cinco anos, após uma longa e cruel doença. Viva, espirituosa, dotada de rara inteligência, de grande retidão de julgamento e de eminentes qualidades morais, esposa e mãe de família devotada, tinha, além disso, uma força de caráter pouco comum, e um espírito fecundo em recursos que nunca a deixava desprevenida nas circunstâncias mais críticas da vida. Sem rancor por aqueles dos quais mais tinha de queixar-se, estava sempre pronta a fazer-lhes favores. Intimamente ligado a ela há longos anos, pudemos seguir todas as fases de sua existência e todas as peripécias de seu fim. Um acidente trouxe a terrível doença que devia levá-la e que a reteve três anos no leito, vítima dos mais atrozes sofrimentos, que suportou até o último momento com heroica coragem, e durante os quais sua alegria natural não a abandonou. Ela acreditava firmemente na alma e na vida futura, mas preocupava-se muito pouco com isso; todos os seus pensamentos se voltavam para a vida presente à qual se apegava muito, sem, no entanto, ter medo da morte, e sem procurar os gozos materiais, pois sua vida era muito simples, e ela dispensava, sem dificuldade, o que não podia obter; mas apreciava instintivamente o bem e o belo, que sabia mostrar até nas menores coisas.
Queria viver, menos para ela do que para os filhos, aos quais sentia que era necessária; por isso se agarrava à vida. Conhecia o Espiritismo sem tê-lo estudado a fundo; interessava-se por ele, no entanto ele não conseguiu fixar-lhe as ideias sobre o futuro; era para ela uma ideia verdadeira, mas que não deixava nenhuma impressão profunda no seu espírito. O bem que ela fazia era o resultado de um movimento natural, espontâneo, e não inspirado pelo pensamento de uma recompensa ou das penas futuras. Já há muito tempo seu estado era sem esperanças, e aguardava-se de um momento para o outro vê-la partir; ela mesma não se iludia. Num dia em que seu marido estava ausente, sentiu-se desfalecer, e compreendeu que sua hora chegara; sua vista estava velada, a perturbação a invadia, e sentia todas as angústias da separação. Entretanto, custava-lhe morrer antes da volta do marido. Fazendo sobre si mesma um supremo esforço, disse: “Não, não quero morrer!” Sentiu então a vida renascer nela, e recobrou o pleno uso de suas faculdades. Quando o marido voltou, ela lhe disse: “Eu ia morrer, mas quis esperar que estivesses perto de mim, pois ainda tinha várias recomendações a fazer-te.” A luta entre a vida e a morte prolongou-se assim durante três meses, que não foram senão uma longa e dolorosa agonia.
Evocação, no dia seguinte à sua morte. – Meus bons amigos, obrigada por vos ocupardes de mim; aliás, fostes para mim como bons pais. Pois bem, regozijai-vos, sou feliz. Tranquilizai meu pobre marido e velai por meus filhos. Fui para junto deles imediatamente.
P. Parece que a perturbação não foi demorada, visto que nos respondeis com lucidez.
– R. Meus amigos, sofri tanto, e vós sabeis que sofria com resignação! Pois bem! minha prova terminou. Dizer-vos que estou completamente desprendida, não; mas não sofro mais, e é para mim um alívio tão grande! Desta vez, estou radicalmente curada, asseguro-vos, mas preciso que me ajudeis com o auxílio das preces, para vir em seguida trabalhar convosco.
P. Qual foi a causa de vossos longos sofrimentos?
– R. Passado terrível, meu amigo.
P. Podeis dizer-nos qual foi esse passado?
– R. Oh! deixai-me um pouco esquecê-lo; paguei-o tão caro!
Um mês após sua morte.
P. Agora que deveis estar completamente desprendida e que vos reconheceis melhor, ficaremos felizes de ter convosco uma conversa mais explícita. Poderíeis dizer-nos qual foi a causa de vossa longa agonia? pois ficastes durante três meses entre a vida e a morte.
– R. Obrigada, meus bons amigos, por vossa lembrança e vossas boas preces! Quão salutares elas são para mim, e quanto contribuíram para meu desprendimento!
Preciso ser apoiada ainda; continuai a orar por mim. Vós compreendeis a prece. Não são fórmulas banais que dizeis, como tantos outros que não se dão conta do efeito que produz uma boa prece. Sofri muito, mas meus sofrimentos são largamente levados em conta, e é me permitido estar frequentemente junto a meus queridos filhos que eu lamentava tanto deixar! Prolonguei eu mesma meus sofrimentos; meu ardente desejo de viver para meus filhos fazia com que me apegasse de algum modo à matéria, e, ao contrário dos outros, eu me obstinava e não queria abandonar este desgraçado corpo com o qual era preciso romper, e que, no entanto, era para mim o instrumento de tantas torturas. Eis a verdadeira causa de minha longa agonia. Minha doença, os sofrimentos que aguentei: expiação do passado, uma dívida a mais a pagar. Infelizmente, meus bons amigos, se vos tivesse escutado, que imensa mudança na minha vida presente! Que alívio teria sentido em meus últimos instantes, e quão mais fácil teria sido essa separação, se, em vez de contrariá-la, eu me tivesse deixado ir, com confiança na vontade de Deus, na corrente que me arrastava! Mas, em vez de dirigir meus olhares para o futuro que me esperava, eu não via senão o presente que ia deixar!
Quando eu voltar à terra, serei espírita, asseguro-vos. Que ciência imensa! Assisto às vossas reuniões com frequência e às instruções que vos dão. Se pudesse ter compreendido quando estava na terra, meus sofrimentos teriam sido bem moderados; mas não chegara a hora. Hoje compreendo a bondade de Deus e sua justiça; mas ainda não estou suficientemente avançada para não me ocupar com as coisas da vida; meus filhos, sobretudo, me prendem ainda, não mais para mimá-los, mas para velar por eles e tentar que sigam a estrada que o Espiritismo traça neste momento. Sim, meus bons amigos, ainda tenho graves preocupações; uma sobretudo, pois o futuro de meus filhos depende dela.
P. Podeis dar-nos algumas explicações sobre o passado que deplorais?
- R. Sim, meus bons amigos, estou pronta a fazer-vos minha confissão. Eu desconhecera o sofrimento; vira minha mãe sofrer sem sentir compaixão; tratara-a de doente imaginária. Não a vendo nunca acamada, supunha que ela não sofria, e ria de seus sofrimentos. Eis como Deus pune. Seis meses após sua morte.
P. Agora que decorreu um tempo suficientemente longo desde que deixastes vosso envoltório terrestre, quereis descrever-nos vossa situação e vossas ocupações no mundo dos Espíritos?
- R. Durante minha vida terrestre, eu era o que se chama, de maneira geral, uma boa pessoa, mas antes de tudo amava meu bem-estar; compassiva por natureza, talvez não tivesse sido capaz de um sacrifício penoso para aliviar um infortúnio. Hoje tudo mudou; sou ainda eu, mas o eu de outrora sofreu modificações. Adquiri; vejo que não há outras posições nem condições senão o mérito pessoal no mundo dos invisíveis, onde um pobre caridoso e bom está acima do rico orgulhoso que o humilhava com sua esmola. Velo especialmente pela classe dos afligidos pelos tormentos de família, a perda de pais ou de fortuna; tenho a missão de consolá-los e encorajá-los, e estou feliz de fazê-lo.
ANNA.
Destaca-se uma importante questão dos fatos acima, que é esta: Pode uma pessoa, pelo esforço da sua vontade, retardar o momento da separação da alma e do corpo?
Resposta do Espírito de São Luís. – Esta questão, resolvida de uma maneira afirmativa e sem restrição, poderia dar lugar a falsas consequências. Certamente um Espírito encarnado pode, em certas condições, prolongar a existência corpórea para terminar instruções indispensáveis ou que ele assim crê; isso pode ser-lhe permitido, como no caso de que se trata aqui, e como se têm vários exemplos. Este prolongamento da vida não poderia, em todos os casos, ser senão de curta duração, pois não pode ser dado ao homem inverter a ordem das leis da natureza, nem provocar uma volta real à vida, quando esta chegou a seu termo; não é senão um adiamento momentâneo. No entanto, da possibilidade do fato, não se deveria concluir que ele possa ser geral, nem crer que dependa de cada um prolongar assim sua existência. Como prova para o Espírito, ou no interesse de uma missão a terminar, os órgãos gastos podem receber um suplemento de fluido vital que lhes permita acrescentar alguns instantes à manifestação material do pensamento; os casos semelhantes são exceções e não a regra. Também não se deve ver nesse fato uma derrogação de Deus à imutabilidade de suas leis, mas uma consequência do livre-arbítrio da alma humana que, no último instante, tem consciência da missão da qual foi encarregada, e gostaria, apesar da morte, de cumprir o que não pôde acabar.
Pode ser também, às vezes, uma espécie de punição infligida ao Espírito que duvida do futuro, conceder-lhe um prolongamento de vitalidade com o qual ele sofre necessariamente.
SÃO LUÍS.
Observação: Talvez também poderia espantar a rapidez do desprendimento deste Espírito considerando seu apego à vida corpórea; mas é preciso considerar que esse apego não tinha nada de sensual nem de material; tinha mesmo seu lado moral, visto que era motivado pelo interesse por seus filhos de tenra idade. Era, além disso, um Espírito avançado em inteligência e em moralidade: um grau a mais, e teria sido dos Espíritos muito felizes. Não havia, portanto, nos laços perispirituais, a tenacidade que resulta da identificação com a matéria; pode-se dizer que a vida, enfraquecida por uma longa doença, estava por alguns fios; eram esses fios que ele queria impedir que se rompessem. Entretanto, ele foi punido por sua resistência, com o prolongamento de seus sofrimentos, devidos à natureza da doença e não à dificuldade do desprendimento; é por isso que, após a libertação, a perturbação foi de curta duração.
Um fato igualmente importante decorre dessa evocação, assim como da maioria daquelas que são feitas em diversas épocas mais ou menos distanciadas da morte, é a mudança que se realiza gradualmente nas ideias do Espírito, e cujo progresso se pode seguir; neste, ela se traduz, não por melhores sentimentos, mas por uma apreciação mais sã das coisas. O progresso da alma na vida espiritual é, portanto, um fato constatado pela experiência; a vida corporal é a colocação em prática desse progresso; é a prova de suas resoluções, o cadinho em que o Espírito se purifica.
A partir do instante em que uma alma progride após a morte, seu destino não pode ser irrevogavelmente fixado, pois a fixação definitiva do destino é, como dissemos em outra parte, a negação do progresso. Não podendo as duas coisas existir simultaneamente, resta aquela que tem a sanção dos fatos e da razão.
Capítulo IV - Espíritos sofredores
O castigo
Exposição geral do estado dos culpados ao entrarem no mundo dos Espíritos, ditado à Sociedade Espírita de Paris, em outubro de 1860. Os Espíritos maus, egoístas e duros, ficam, logo após a morte, entregues a uma dúvida cruel sobre seu destino presente e futuro; olham à sua volta e não veem de início nenhum sujeito sobre o qual possa se exercer sua malvada personalidade, e o desespero deles se apodera, pois o isolamento e a inação são intoleráveis para os maus Espíritos; eles não erguem o olhar para os lugares habitados pelos puros Espíritos; consideram o que os rodeia, e logo impressionados pelo abatimento dos Espíritos fracos e punidos, agarram-se a eles como a uma presa, armando-se com a recordação de suas faltas passadas, que põem incessantemente em ação por seus gestos zombeteiros. Não lhes bastando tal zombaria, mergulham sobre a terra como abutres famintos; procuram entre os homens a alma que abrirá um acesso mais fácil às suas tentações; apoderam-se dela, exaltam-lhe a cobiça, tentam extinguir a sua fé em Deus, e, quando enfim, senhores de uma consciência, veem assegurada sua presa, eles estendem sobre tudo o que se aproxima de sua vítima o fatal contágio.
O mau Espírito que exerce sua raiva é quase feliz; não sofre senão nos momentos em que não age, e naqueles em que o bem triunfa do mal.
No entanto, os séculos passam; o mau Espírito sente repentinamente as trevas invadirem-no; seu círculo de ação se restringe; sua consciência, muda até então, lhe faz sentir as pontas afiadas do arrependimento. Inativo, levado pelo turbilhão, ele vagueia, sentindo, como diz a Escritura, o pelo de sua carne se eriçar de pavor; logo um grande vazio se faz nele, em torno dele; chegou o momento, ele deve expiar; ali está a reencarnação, ameaçadora; ele vê, como uma miragem, as provas terríveis que o aguardam; gostaria de recuar, avança, e precipitado no abismo escancarado da vida, rola apavorado até que o véu da ignorância lhe caia de novo sobre os olhos. Ele vive, age, e ainda é culpado; sente em si não se sabe que recordação inquieta, que pressentimentos que o fazem tremer, mas não o fazem recuar no caminho do mal. No fim de suas forças e de seus crimes, ele vai morrer. Estendido numa enxerga, ou em sua cama, que importa! o homem culpado sente, sob sua aparente imobilidade, mexer-se e viver um mundo de sensações esquecidas. Sob suas pálpebras fechadas, ele vê aparecer uma luz, ouve sons estranhos; sua alma, que vai deixar o corpo, se agita impaciente, ao passo que suas mãos crispadas tentam agarrar-se aos lençóis; gostaria de falar, gostaria de gritar àqueles que o rodeiam: Segurai-me! vejo o castigo! Não pode fazê-lo; a morte fixa-se nos seus lábios lívidos, e os assistentes dizem: Ei-lo em paz!
No entanto, ele ouve tudo; flutua em volta de seu corpo que não gostaria de abandonar; uma força secreta o atrai; vê, reconhece o que já viu. Desvairado, lança-se no espaço onde gostaria de se esconder. Não há mais refúgio! Não há mais repouso! Outros Espíritos lhe devolvem o mal que fez, e, castigado, escarnecido, confuso por sua vez, ele vagueia, e vagueará até que a divina luz deslize por seu endurecimento e o ilumine, para lhe mostrar o Deus vingador, o Deus triunfante de todo mal, que ele não poderá apaziguar senão à custa de gemidos e de expiações.
GEORGES.
Observação: Jamais quadro mais eloquente, mais terrível e mais verdadeiro foi traçado do destino do malvado; então, é ainda necessário recorrer à fantasmagoria das chamas e das torturas físicas?
Novel
Vou te contar o que sofri quando morri. Meu Espírito, retido no meu corpo por laços materiais, teve muita dificuldade para se separar dele, o que foi uma primeira e rude angústia. A vida que eu deixara aos vinte e quatro anos estava ainda tão forte em mim que não acreditava na sua perda. Procurava meu corpo, e estava espantado e assustado por me ver perdido no meio daquela multidão de sombras. Enfim, a consciência de meu estado, e a revelação das faltas que cometera em todas as minhas encarnações, me atingiram de repente; uma luz implacável iluminou os mais secretos recônditos da minha alma, que se sentiu nua, e depois tomada de uma vergonha esmagadora. Eu procurava escapar-lhe interessando-me pelos objetos novos, e no entanto conhecidos, que me rodeavam; os Espíritos radiosos, flutuando no éter, me davam a ideia de uma felicidade à qual eu não podia aspirar; formas sombrias e desoladas, mergulhadas umas num melancólico desespero, outras irônicas ou furiosas, deslizavam à minha volta e na terra à qual eu permanecia preso. Eu via agitarem-se os humanos cuja ignorância invejava; toda uma ordem de sensações desconhecidas, ou reencontradas, me invadiu ao mesmo tempo. Arrastado por uma força irresistível, procurando fugir dessa dor encarniçada, eu ultrapassava as distâncias, os elementos, os obstáculos materiais, sem que as belezas da natureza nem os esplendores celestes pudessem acalmar por um instante o dilaceramento da minha consciência, nem o pavor que me causava a revelação da eternidade. Um mortal pode pressentir as torturas materiais pelos estremecimentos da carne, mas vossas frágeis dores, abrandadas pela esperança, temperadas pelas distrações, mortas pelo esquecimento, jamais poderão fazer-vos compreender as angústias de uma alma que sofre sem trégua, sem esperança, sem arrependimento. Passei um tempo cuja duração não posso apreciar, invejando os eleitos cujo esplendor entrevia, detestando os maus Espíritos que me perseguiam com suas zombarias, desprezando os humanos cujas infâmias eu via, passando de uma profunda prostração a uma revolta insensata.
Por fim tu me chamaste, e pela primeira vez um sentimento doce e terno me apaziguou; escutei os ensinamentos que teus guias te dão; a verdade penetrou-me, rezei: Deus me ouviu; ele se revelou a mim por sua clemência, como se revelara por sua justiça.
NOVEL.
Auguste Michel
(Havre, março de 1863)
Era um moço rico, estroina, gozando à larga e exclusivamente da vida material. Embora inteligente, a despreocupação com as coisas sérias constituía o fundo de seu caráter. Sem maldade, mais bom do que mau, era amado por seus companheiros de prazer, e procurado na alta sociedade por suas qualidades de homem mundano; sem ter feito mal, não fizera bem. Morreu de uma queda de carro num passeio. Evocado alguns dias após a morte por um médium que o conhecia indiretamente, deu sucessivamente as comunicações seguintes:
8 de março de 1863. – Mal estou desprendido de meu corpo; assim posso falar-vos com dificuldade. A terrível queda que fez morrer meu corpo põe meu Espírito numa grande perturbação. Estou inquieto com o que vou ser, e esta incerteza é cruel. O horrendo sofrimento que meu corpo experimentou não é nada comparado à perturbação em que me encontro. Rezai para que Deus me perdoe. Oh! que dor! Oh! graças, meu Deus! que dor! Adeus.
18 de março. – Já vim a vós, mas só pude falar-vos com muita dificuldade. Ainda neste momento posso a custo me comunicar convosco. Sois o único médium a quem posso pedir preces para que a bondade de Deus me faça sair da perturbação em que estou. Por que sofrer ainda quando meu corpo não sofre mais? Por que esta dor horrenda, esta terrível angústia ainda existe? Rezai, oh! rezai para que Deus me conceda o repouso... Oh! que cruel incerteza! Ainda estou preso ao meu corpo. Não posso senão dificilmente ver onde posso estar; meu corpo está ali, e por que eu ainda estou ali? Vinde orar sobre ele para que eu seja solto desta opressão cruel. Deus aceitará, espero, me perdoar. Vejo os Espíritos que estão perto de vós, e por eles posso falar-vos. Rezai por mim.
6 de abril. – Sou eu que venho pedir-vos para orar por mim. Era preciso vir ao lugar onde meu corpo jaz, rezar ao Onipotente para acalmar meus sofrimentos. Sofro! Oh! sofro! Ide a esse lugar; é preciso, e dirigi ao Senhor uma prece para que ele me dê o perdão. Vejo que poderei ficar mais tranquilo, mas volto sem cessar ao lugar onde depositaram o que fui eu.
Observação: Como o médium não se dera conta da insistência do Espírito que lhe solicitara ir rezar sobre o seu túmulo, negligenciara fazê-lo. Todavia foi lá mais tarde, e recebeu ali a comunicação seguinte:
11 de maio. – Eu vos aguardava. Esperava o momento em que viríeis ao lugar onde meu Espírito parece pregado ao seu envoltório, implorar ao Deus de misericórdia que sua bondade acalme meus sofrimentos. Podeis fazer-me bem por vossas preces; não vos retardeis, suplico-vos. Vejo quanto a minha vida foi oposta ao que devia ser; vejo as faltas que cometi. Fui um ser inútil no mundo; não fiz nenhum bom emprego de minhas faculdades; minha fortuna não serviu senão para satisfazer minhas paixões, meus gostos de luxo e minha vaidade; pensei apenas nos gozos do corpo e não em minha alma. Descerá a misericórdia de Deus sobre mim, pobre Espírito que sofre ainda pelas minhas faltas terrestres? Orai para que ele me perdoe, e que eu seja libertado das dores que ainda sinto. Agradeço-vos por terdes vindo orar por mim.
8 de junho. – Posso falar-vos, e agradeço a Deus por me haver permitido. Vi minhas faltas, e espero que Deus me perdoe. Segui sempre vossa vida segundo a crença que vos anima, pois ela vos reserva para mais tarde um repouso que eu ainda não tenho. Obrigado por vossas preces. Adeus.
Observação: A insistência do Espírito para que se fosse orar sobre o seu túmulo é uma particularidade notável, mas que tem sua razão de ser se se considerar quão tenazes eram os laços que o retinham ao corpo, e quão longa e difícil era a separação, em consequência da materialidade de sua existência. Compreende-se que se aproximando do corpo, a prece podia exercer uma espécie de ação magnética mais poderosa para ajudar no desprendimento. O uso quase generalizado de orar junto aos corpos dos falecidos não viria da intuição inconsciente que se tem desse efeito? A eficácia da prece, nesse caso, teria um resultado simultaneamente moral e material.
Arrependimento de um dissoluto
(Bordeaux, 19 de Abril de 1862)
30 de julho. – Sou presentemente menos desgraçado, pois não sinto mais a cadeia que me prendia ao meu corpo; estou enfim livre, mas não realizei a expiação; devo reparar o tempo perdido, se não quiser ver prolongar meus sofrimentos. Deus, assim o espero, verá meu arrependimento sincero e me concederá seu perdão. Orai ainda por mim, suplico-vos. Homens, meus irmãos, vivi só para mim; hoje expio isso e sofro! Que Deus vos conceda a graça de evitar os espinhos em que me dilacero. Caminhai pela estrada larga do Senhor e orai por mim, pois abusei dos bens que Deus empresta a suas criaturas!
Aquele que sacrifica aos instintos brutais a inteligência e os bons sentimentos que Deus pôs nele, assemelha-se ao animal que ele muitas vezes maltrata. O homem deve servir-se com sobriedade dos bens de que é depositário; deve habituar-se a viver apenas em vista da eternidade que o aguarda, e, por conseguinte, desprender-se dos gozos materiais. Sua alimentação não deve ter outro objetivo senão sua vitalidade; seu luxo deve se subordinar às necessidades estritas de sua posição; seus gostos, mesmo suas inclinações naturais devem ser regidos pela mais forte razão, sem o quê ele se materializa em vez de se purificar. As paixões humanas são um laço estreito que penetra nas carnes: não o aperteis, pois. Vivei, mas não sede estroinas. Não sabeis o que isso custa quando se retorna à pátria! As paixões terrestres vos despojam antes de vos deixarem, e chegais ao Senhor nus, inteiramente nus.
Ah! Cobri-vos de boas obras; elas vos ajudarão a transpor o espaço que vos separa da eternidade. Manto brilhante, elas ocultarão vossas torpezas humanas.
Envolvei-vos em caridade e amor, vestes divinas que nada retira. Instrução do guia do médium. – Este Espírito está no bom caminho, visto que ao arrependimento acrescenta conselhos para alertar contra os perigos da estrada que ele seguiu. Reconhecer seus erros é já um mérito, e um passo dado rumo ao bem; é por isso que sua situação, sem ser bem-aventurada, não é mais a de um Espírito sofredor. Ele se arrepende; resta-lhe a reparação que cumprirá numa outra existência de provas. Mas antes de isso ocorrer, sabeis qual é a situação desses homens de vida puramente sensual que não deram a seu espírito outra atividade senão a de inventar incessantemente novos gozos? A influência da matéria segue-os além-túmulo, e a morte não põe um fim a seus apetites que sua visão, tão limitada quanto na terra, procura em vão meios de satisfazer. Não tendo jamais procurado o alimento espiritual, sua alma vagueia no vazio, sem objetivo, sem esperança, presa da ansiedade do homem que não tem diante de si senão a perspectiva de um deserto sem limites. A nulidade de suas ocupações intelectuais, durante a vida do corpo, traz naturalmente a nulidade do trabalho do Espírito após a morte; não podendo mais satisfazer o corpo, não lhes resta nada para satisfazer o Espírito; daí um tédio mortal cujo fim não preveem, e ao qual prefeririam o nada; mas o nada não existe; eles puderam matar o corpo, mas não podem matar o Espírito; portanto, é preciso que vivam nessas torturas morais até que, vencidos pela lassidão, decidam
lançar um olhar para Deus.
Lisbeth
(Bordeaux, 13 de fevereiro de 1862.)
Um Espírito sofredor se inscreve com o nome de Lisbeth.
1. Quereis dar-me alguns detalhes sobre vossa posição e a causa de vossos sofrimentos? – R. Sê humilde de coração, submissa à vontade de Deus, paciente nas provações, caridosa para com o pobre, encorajadora para com o fraco, quente de coração para com todos os sofrimentos, e não sofrerás as torturas que aguento.
2. Se as faltas opostas às qualidades que assinalais vos arrastaram, pareceis lamentá-las. Vosso arrependimento deve aliviar-vos? – R. Não; o arrependimento é estéril quando não é senão a consequência do sofrimento. O arrependimento produtivo é aquele que tem por base o pesar de ter ofendido Deus, e o ardente desejo de reparar. Ainda não cheguei lá, infelizmente. Recomendai-me às preces de todos os que se dedicam aos sofrimentos; preciso delas.
Observação: Isso é uma grande verdade; o sofrimento arranca por vezes um grito de arrependimento, mas que não é a expressão sincera do pesar de ter feito mal, pois se o Espírito não sofresse mais, estaria pronto para recomeçar. Eis porque o arrependimento nem sempre traz a libertação imediata do Espírito; dispõe a ela, eis tudo; mas é-lhe preciso provar a sinceridade e a solidez de suas resoluções por novas provas que são a reparação do mal que cometeu. Se se meditar cuidadosamente sobre os exemplos que citamos, encontrar-se-ão nas palavras, mesmo dos Espíritos mais inferiores, graves assuntos de instrução, porque elas nos iniciam nos detalhes mais íntimos da vida espiritual. Enquanto o homem superficial verá nestes exemplos apenas relatos mais ou menos pitorescos, o homem sério e circunspecto encontrará aí uma fonte abundante de estudos.
3. Farei o que desejais. Quereis dar-me alguns detalhes sobre vossa última existência? Pode resultar daí um ensinamento útil para nós, e tornareis assim produtivo vosso arrependimento. (O Espírito mostra uma grande indecisão em responder a esta pergunta e a algumas das seguintes.)
R. Nasci numa condição elevada. Tinha tudo aquilo que os homens consideram como a fonte da felicidade. Rica, fui egoísta; bela, fui sedutora, indiferente e dissimulada; nobre, fui ambiciosa. Humilhei com meu poder aqueles que não se prosternavam suficientemente diante de mim, e humilhava ainda aqueles que se achavam sob meus pés, sem pensar que a cólera do Senhor humilha também, cedo ou tarde, as frontes mais elevadas.
4. Em que época vivíeis? – R. Há cento e cinquenta anos, na Prússia.
5. Desde aquele tempo não fizestes nenhum progresso como Espírito? – R. Não; a matéria se revoltava sempre. Não podes compreender a influência que ela exerce ainda apesar da separação do corpo e do Espírito. O orgulho, vê tu, vos enlaça em cadeias de bronze cujos anéis se apertam cada vez mais em torno do miserável que lhe abandona seu coração. O orgulho! essa hidra de cem cabeças sempre a renascer, que sabe modular seus assobios envenenados de tal modo que são tomados por uma música celeste! O orgulho! esse demônio múltiplo que se sujeita a todas as aberrações de vosso Espírito, que se esconde nos recônditos de vosso coração, penetra em vossas veias, vos envolve, vos absorve e vos arrasta para as trevas do martírio eterno!... sim, eterno!
Observação: O Espírito diz que não fez nenhum progresso, talvez porque sua situação continua penosa; mas a maneira pela qual descreve o orgulho e deplora suas consequências é incontestavelmente um progresso; pois seguramente, nem enquanto vivia, nem pouco depois de sua morte, poderia ter raciocinado assim. Compreende o mal, e já é alguma coisa; a coragem e a vontade de evitá-lo lhe virão em seguida.
6. Deus é demasiado bom para condenar suas criaturas a penas eternas; esperai em sua misericórdia. – R. Pode haver um termo para isso; dizem-no, mas onde? Procuro-o há muito tempo e não vejo senão sofrimento sempre! sempre! sempre!
7. Como viestes aqui hoje? – R. Um Espírito que me segue com frequência me conduziu aqui. – Há quanto tempo vedes esse Espírito? – R. Não há muito tempo. – E há quanto tempo vos dais conta das faltas que cometestes? – R. (Após uma longa reflexão.) Sim, tens razão; foi quando o vi.
8. Não compreendeis agora a relação que existe entre vosso arrependimento e a ajuda visível que vos presta vosso Espírito protetor? Vede como origem desse apoio o amor de Deus, e como objetivo seu perdão e sua misericórdia infinita. – R. Oh! como eu gostaria! – Creio poder vos prometer pelo nome sagrado daquele que nunca permaneceu surdo à voz de seus filhos em perigo. Chamai-o do fundo de vosso arrependimento, ele vos ouvirá. – R. Não posso; tenho medo.
9. Oremos juntos, ele nos ouvirá. (Após a prece.) Ainda estais aqui? – R. Sim, obrigada! Não me esqueças.
10. Vinde aqui inscrever-vos todos os dias. – R. Sim, sim, voltarei sempre. O guia do médium. – Não esqueças nunca os ensinamentos que tiras dos sofrimentos de teus protegidos, e, sobretudo, das causas desses sofrimentos; que elas vos sirvam a todos de ensinamento para vos preservar dos mesmos perigos e dos mesmos castigos. Purificai vossos corações, sede humildes, amai-vos, ajudai-vos, e que vosso coração reconhecido jamais esqueça a fonte de todas as graças, fonte inesgotável na qual cada um de vós pode beber com abundância; nascente que mata a sede e nutre ao mesmo tempo; fonte de vida e de felicidade eternas. Ide, meus bem-amados; bebei com fé; jogai vossas redes, e elas sairão dessas ondas carregadas de bênçãos; comunicai-o a vossos irmãos avisando-os dos perigos que podem encontrar. Espalhai as bênçãos do Senhor; elas renascem sem cessar; quanto mais as derramardes à vossa volta, mais elas se multiplicarão. Vós as tendes em vossas mãos, pois ao dizer a vossos irmãos: ali estão os perigos, ali estão os obstáculos; segui-nos para evitá-los; imitai-nos, a nós que damos o exemplo, vós espalhais as bênçãos do Senhor sobre aqueles que vos escutam.
Benditos sejam vossos esforços, meus bem-amados. O Senhor ama os corações puros; merecei o seu amor.
SÃO PAULINO.
Príncipe Ouran
(Bordeaux, 1862.)
Um Espírito sofredor se apresenta sob o nome de Ouran, precedentemente príncipe russo.
P. Quereis dar alguns detalhes sobre vossa situação? – R. Oh! bemaventurados os humildes de coração, o reino dos céus lhes pertence! Orai por mim. Bem-aventurados são aqueles, que, humildes de coração, escolhem uma posição modesta para passar suas provas! Não sabeis, vós todos que a inveja devora, a que estado fica reduzido um daqueles a quem chamais os felizes da terra; não sabeis os carvões ardentes que eles juntam sobre a cabeça; não sabeis os sacrifícios que a riqueza impõe quando se quer aproveitá-la para a salvação eterna! Que o senhor me permita, a mim, o orgulhoso déspota, vir expiar, entre aqueles que esmaguei com minha tirania, os crimes que o orgulho me fez cometer! Orgulho! redizei essa palavra sem cessar para jamais esquecer que ela á a fonte de todos os sofrimentos que nos oprimem. Sim, abusei do poder e dos favores de que gozava; fui duro, cruel, para meus subordinados que deviam ceder a todos os meus caprichos, satisfazer todas as minhas depravações. Eu desejara para mim a nobreza, as honras, a fortuna, e sucumbi ao peso que havia tomado acima de minhas forças.
Observação: Os Espíritos que sucumbem são geralmente levados a dizer que tinham uma carga acima de suas forças; é um meio de se desculparem aos seus próprios olhos, e ainda um resto de orgulho: não querem ter falhado por culpa sua. Deus não dá a ninguém além do que se pode carregar; ele não pede a ninguém mais do que se lhe pode dar; não exige que a árvore que nasce tenha os frutos daquela que exibe todo o seu crescimento. Deus dá aos Espíritos a liberdade; o que lhes falta é a vontade, e a vontade só depende deles; com a vontade, não há inclinações viciosas que não se possam vencer; mas, quando há deleite numa inclinação, é natural que não se façam esforços para ultrapassá-la. Não se deve então acusar senão a si mesmo pelas consequências que daí resultam.
P. Tendes consciência de vossas faltas; é um primeiro passo para o aperfeiçoamento. – R. Essa consciência é ainda um sofrimento. Para muitos Espíritos o sofrimento é um efeito quase material, porque, apegados ainda à humanidade de sua última existência, eles não percebem as sensações morais.
Meu Espírito desprendeu-se da matéria, e o sentimento moral aumentou com tudo o que as sensações acreditadas físicas tinham de horrível.
P. Entreveis um fim para vossos sofrimentos? – R. Sei que eles não serão eternos; ainda não lhes entrevejo o fim; preciso antes recomeçar a prova.
P. Esperais recomeçar em breve? – R. Não sei ainda.
P. Tendes a recordação de vossos antecedentes? Pergunto-vos com a finalidade da instrução. – R. Sim, teus guias que aqui estão sabem do que precisas. Vivi sob Marco Aurélio. Lá, ainda poderoso, já sucumbi ao orgulho, causa de todas as quedas. Após ter vagueado durante séculos, quis experimentar uma vida obscura. Pobre estudante, mendiguei meu pão, mas o orgulho ainda estava lá; o Espírito adquirira ciência, mas não virtude. Instruído e ambicioso, vendi minha alma a quem oferecia mais, servindo a todas as vinganças, todos os ódios. Eu me sentia culpado, mas a sede de honras, de riquezas, abafava os gritos da minha consciência. A expiação foi ainda longa e cruel. Enfim eu quis, em minha última encarnação, recomeçar uma vida de luxo e de poder; pensando dominar os obstáculos, não escutei os avisos: orgulho que me conduziu ainda a me fiar no meu próprio julgamento, em vez de no dos amigos protetores que não param de velar por nós; sabes o resultado dessa última tentativa.
Hoje, enfim compreendi, e espero a misericórdia do Senhor. Ponho a seus pés meu orgulho vencido, e peço-lhe para carregar meus ombros com seu mais pesado fardo de humildade; com a ajuda da sua graça, o peso me parecerá leve. Orai comigo e por mim; orai também para que esse demônio de fogo não devore em vós os instintos que vos elevam para Deus. Irmãos no sofrimento, que meu exemplo vos sirva, e não vos esqueçais nunca de que o orgulho é o inimigo da felicidade, pois dele decorrem todos os males que atormentam a humanidade e a perseguem até às regiões celestes.
O guia do médium. – Tu concebeste dúvidas sobre este Espírito, porque sua linguagem não te pareceu de acordo com o estado de sofrimento que acusa sua inferioridade. Não tenhas temor: recebeste uma instrução séria; por mais sofredor que seja este Espírito, ele é suficientemente elevado em inteligência para falar como o fez. Não lhe faltava senão a humildade sem a qual nenhum Espírito pode chegar a Deus. Essa humildade, ele a conquistou agora, e esperamos que com perseverança ele sairá triunfante de uma nova prova.
Nosso Pai celeste é cheio de justiça na sua sabedoria; ele leva em conta os esforços que o homem faz para dominar seus maus instintos. Cada vitória obtida sobre vós mesmos é um degrau transposto nessa escala da qual uma extremidade se apoia na vossa terra, e a outra se detém aos pés do Juiz supremo. Galgai-os portanto audaciosamente; eles são fáceis de transpor para aqueles cuja vontade é forte. Olhai sempre para cima a fim de vos encorajardes, pois infeliz daquele que se detém e volta a cabeça para trás! É então atingido por deslumbramentos; o vazio que o rodeia apavora-o; fica sem força e diz: De que serve querer avançar ainda? Percorri tão pouco caminho! Não, meus amigos, não volteis a cabeça. O orgulho está incorporado no homem; pois bem! empregai esse orgulho para vos dar força e coragem para terminar vossa ascensão. Empregai-o para dominar vossas fraquezas, e subi ao cimo da montanha eterna.
Pascal Lavic
(Havre, 9 de agosto de 1863.)
Este Espírito se comunica espontaneamente com o médium, sem que este o tenha conhecido em vida, nem mesmo de nome. “Eu creio na bondade de Deus que acederá a tomar por misericórdia meu pobre Espírito. Sofri, sofri muito, e meu corpo pereceu no mar. Meu Espírito estava ainda preso ao meu corpo, e durante muito tempo ficou errante nas ondas. Deus...
(A comunicação é interrompida; no dia seguinte, o Espírito continua: ) “... teve a bondade de permitir que as preces daqueles que deixei na terra me tirassem do estado de perturbação e de incerteza no qual meu Espírito estava mergulhado. Eles me esperaram durante muito tempo, e puderam reencontrar meu corpo; ele repousa agora, e meu Espírito desprendido com dificuldade vê as faltas cometidas; consumada a prova, Deus julga com justiça e sua bondade se estende sobre os arrependidos.
“Se, por muito tempo, meu Espírito vagueou com meu corpo, é porque eu tinha que expiar. Segui o caminho reto se quiserdes que Deus retire rapidamente vosso Espírito de seu envoltório. Vivei no amor a ele; orai, e a morte, tão horrenda para alguns, será amenizada para vós, visto que sabeis que vida vos aguarda. Eu sucumbi no mar, e esperaram-me durante muito tempo. Não poder desprender-me do meu corpo era para mim uma terrível prova; é por isso que preciso das vossas preces, de vós que entrastes na crença que salva, de vós que podeis orar ao Deus justo por mim. Eu me arrependo e espero que ele tenha a bondade de me perdoar. Foi em 6 de agosto que meu corpo foi reencontrado; eu era um pobre marinheiro, e pereci há muito tempo. Orai por mim!”
PASCAL LAVIC.
P. Onde fostes encontrado? – R. Perto de vós. O Journal du Havre de 11 de agosto de 1863 continha o artigo seguinte, de que o médium não podia ter conhecimento:
“Anunciamos que fora encontrado, no dia 6 deste mês, um pedaço de cadáver que deu à costa entre Bléville e La Hève. A cabeça, os braços e o busto faltavam; no entanto, sua identidade pôde ser constatada pelo calçado ainda preso nos pés. Reconheceu-se assim que era o corpo do pescador Lavic que pereceu em 11 de dezembro a bordo do barco l’Alerte, arrastado diante de Trouville por uma onda. Lavic tinha quarenta e nove anos, nascido em Calais. Foi a viúva do defunto que constatou a identidade.”
Em 12 de agosto, como se falava desse acontecimento no círculo onde esse Espírito se manifestara pela primeira vez, ele se comunicou de novo espontaneamente:
“Sou realmente Pascal Lavic, e preciso de vossas preces. Vós podeis fazer-me bem, pois a prova que sofri foi terrível. A separação de meu Espírito do corpo não se fez a não ser quando reconheci minhas faltas; e depois ele não se desprendia inteiramente; ele o seguia no mar que o engolira. Pedi então a Deus que me perdoe; pedi-lhe que me dê repouso. Orai, suplico-vos. Que este terrível fim de uma existência terrestre desgraçada seja para vós um ensinamento bem grande! Deveis pensar na vida futura e não deixar de pedir a Deus sua misericórdia. Orai por mim; preciso que Deus tenha compaixão de mim.”
Ferdinand Bertin
Um médium, morador do Havre, evocava o Espírito de uma pessoa sua conhecida. Esse Espírito responde:
“Quero me comunicar, mas não posso vencer o obstáculo que há entre nós; sou obrigado a deixar esses desgraçados que sofrem se aproximarem de vós.” Ele recebe então a comunicação seguinte:
“Estou num horrendo abismo! Ajudai-me... Ó meu Deus! quem me tirará deste precipício?... Quem estenderá uma mão caridosa ao desgraçado que o mar está engolindo?... A noite é tão escura que tenho medo... Por toda a parte o bramido das ondas, e nenhuma palavra amiga para me consolar e me ajudar neste momento supremo; pois esta noite profunda é a morte em todo o seu horror, e eu não quero morrer!... Ó meu Deus! não é a morte que vem, é a morte passada!... Estou para sempre separado daqueles que amo... Vejo meu corpo, e o que eu sentia há pouco não é senão a recordação da horrenda angústia da separação... Tende compaixão de mim, vós que conheceis meus sofrimentos; orai por mim, pois não quero sentir, como tenho sentido desde aquela noite fatal, todos os dilaceramentos da agonia!... Entretanto, aí está minha punição; pressinto-a... Orai, suplico-vos!... Oh! o mar... o frio... vou ser engolido!...
Socorro!... Tende então compaixão; não me repilais!... Nós nos salvaremos os dois em cima deste destroço!... Oh! estou sufocando!.... As ondas vão me engolir, e os meus não terão nem mesmo a triste consolação de me rever... Mas não; vejo que meu corpo não é mais sacudido pelas ondas... As preces da minha mãe serão ouvidas... Minha pobre mãe! Se ela pudesse imaginar seu filho tão miserável quanto ele é realmente, ela oraria melhor; mas ela crê que a causa da minha morte santificou o passado; ela me chora como mártir, e não como desgraçado e castigado!... Oh! vós que sabeis, sereis sem compaixão! Não, vós orareis. FRANÇOIS BERTIN.
Esse nome, completamente desconhecido pelo médium, não lhe trazia nenhuma lembrança; pensou que era talvez o Espírito de algum infeliz naufragado que vinha se manifestar espontaneamente a ele, como já lhe acontecera várias vezes. Soube um pouco mais tarde que era, com efeito, o nome de uma das vítimas de um grande desastre marítimo que ocorrera naquelas paragens, em 2 de dezembro de 1863. A comunicação fora dada no dia 8 do mesmo mês, seis dias depois da catástrofe. O indivíduo perecera fazendo tentativas inauditas para salvar a tripulação e no momento em que acreditava ter sua salvação assegurada.
Esse indivíduo não tinha com o médium nenhum laço de parentesco e nem mesmo se conheciam; então, por que se manifestou a ele em vez de a algum membro de sua família? É que os Espíritos não encontram em todo mundo as condições fluídicas necessárias para isso; na perturbação em que se achava, não tinha, aliás, liberdade de escolha; foi conduzido instintiva e atrativamente para esse médium, dotado, ao que parece, de uma aptidão especial para as comunicações espontâneas desse gênero; talvez ele pressentisse também que encontraria aí uma simpatia particular como outros haviam encontrado em circunstâncias semelhantes. Sua família, alheia ao Espiritismo, antipática talvez para com essa crença, não teria acolhido sua revelação como esse médium podia fazer. Embora a morte remontasse a alguns dias, o Espírito ainda lhe sofria todas as angústias. É evidente que não se dava absolutamente conta de sua situação; acreditava que ainda estava vivo, lutando contra as ondas, e, no entanto, fala de seu corpo como se estivesse separado dele; chama por socorro; diz que não quer morrer, e um instante depois fala da causa de sua morte que reconhece ser um castigo; tudo isso denota a confusão das ideias que acompanha quase sempre as mortes violentas. Dois meses mais tarde, em 2 de fevereiro de 1864, ele se comunicou de novo espontaneamente com o mesmo médium, e ditou-lhe o que se segue:
“A compaixão que tivestes pelos meus sofrimentos tão horríveis me aliviou. Compreendo a esperança; entrevejo o perdão, mas depois do castigo da falta cometida. Continuo a sofrer, e se Deus permite que, durante alguns momentos, eu entreveja o fim da minha desgraça, não é senão às preces das almas caridosas, tocadas pela minha situação, que devo esse abrandamento. Ó esperança, raio do céu, como és bendita quando te sinto nascer na minha alma!... Mas, infelizmente! o abismo se abre; o terror e o sofrimento fazem apagar-se essa lembrança da misericórdia... A noite; sempre a noite!... a água, o barulho das ondas que engoliram o meu corpo, não são senão uma fraca imagem do horror que cerca meu pobre Espírito... Fico mais calmo quando posso estar junto a vós; pois assim como um terrível segredo depositado no seio de um amigo alivia aquele que se sentia oprimido por ele, do mesmo modo vossa compaixão, motivada pela confidência da minha miséria, acalma meu mal e descansa meu Espírito... Vossas preces fazem-me bem; não mas recuseis.
Não quero voltar a cair naquele horrível sonho que se torna realidade quando o vejo...Pegai no lápis com mais frequência; faz-me tanto bem comunicar-me por vós!”
Alguns dias mais tarde, tendo sido esse mesmo Espírito evocado numa reunião espírita, de Paris, dirigiram-lhe as perguntas seguintes, às quais ele respondeu por uma única e mesma comunicação, e por outro médium. Quem vos levou a vos manifestar espontaneamente ao primeiro médium com o qual vos comunicastes? – Há quanto tempo estáveis morto quando vos manifestastes? – Quando vos comunicastes, parecíeis não ter certeza se estáveis morto ou ainda vivo, e sentíeis todas as angústias de uma morte terrível; dais-vos conta melhor agora de vossa situação? – Dissestes positivamente que vossa morte era uma expiação; aceitai dizer-nos qual é a causa: será uma instrução para nós e um alívio para vós. Por essa confissão sincera atraireis a misericórdia de Deus que solicitaremos por nossas preces. Resposta. – Parece impossível no início que uma criatura possa sofrer tão cruelmente. Deus! como é penoso ver-se constantemente no meio das ondas enfurecidas, e sentir incessantemente esse amargor, esse frio glacial que sobe, que aperta o estômago!
Mas para que vos contar tais espetáculos? Não devo começar por obedecer às leis do reconhecimento agradecendo-vos, a vós todos que tendes por meus tormentos tal interesse? Perguntais se me comuniquei muito tempo após minha morte? Não posso responder facilmente. Pensai, e julgai em que horrível situação me encontro ainda! Entretanto, fui levado para junto do médium, creio eu, por uma vontade alheia à minha; e, coisa impossível de me dar conta, eu me servia de seu braço com a mesma facilidade com que me sirvo do vosso neste momento, persuadido de que ele me pertence. Sinto mesmo neste momento um gozo bem grande, assim como um alívio particular que, infelizmente! vai logo cessar. Mas, ó meu Deus! eu teria uma confissão a fazer; terei força para tal?
Após muitos encorajamentos, o Espírito acrescenta: Fui muito culpado! O que sobretudo me faz sofrer é que creem que sou um mártir; não é nada disso... Numa existência precedente, mandei pôr num saco várias vítimas e jogar no mar... Orai por mim!
Instrução de São Luís sobre esta comunicação: Esta confissão será para este Espírito uma causa de grande alívio. Sim, ele foi muito culpado! Mas a existência que ele acaba de deixar foi honrada; era amado e estimado por seus chefes; é o fruto de seu arrependimento e das boas resoluções que tomara antes de voltar à terra, onde ele quis ser humano tanto quanto fora cruel. O devotamento de que deu provas era uma reparação, mas ele precisava compensar faltas passadas com uma última expiação, a da morte cruel que suportou; quis ele mesmo purificar-se sofrendo as torturas que fizera os outros sofrer; e notai que o persegue uma ideia: a mágoa de ver que o consideram um mártir. Acreditai que será levado em conta esse seu sentimento de humildade. Doravante, ele deixou a via da expiação para entrar na da reabilitação; com vossas preces podeis apoiá-lo, e fazê-lo caminhar a passo mais firme e mais seguro.
François Riquier
François Riquier, homem muito comum, era um velho avarento e solteirão, morto em C... em 1857, deixando uma fortuna assaz considerável a colaterais. Fora outrora o senhorio de uma dama que o esquecera totalmente desde então, e ignorava até mesmo se ele ainda vivia. Em 1862, a filha dessa senhora, que é sujeita a crises de catalepsia seguidas de um sono magnético espontâneo, e que é além disso ótima médium escrevente viu, nesse sono, o senhor Riquier o qual, disse ela, queria se dirigir à sua mãe. Alguns dias mais tarde, visto que ele se manifestara espontaneamente e mostrara o desejo de falar a essa dama, teve com ele a conversa seguinte:
P. Que quereis de nós? – R. Meu dinheiro que eles me tiraram todo, os miseráveis, para dividi-lo entre si! Eles venderam minhas propriedades, minhas casas, tudo, para dividir entre eles. Dilapidaram meus bens, como se não fossem meus. Fazei com que me façam justiça, pois a mim não me escutam, e eu não quero ver tais infâmias. Eles dizem que eu era usurário, e ficam com o meu dinheiro! Por que não querem me devolvê-lo, já que acham que foi mal adquirido?
P. Mas morrestes, meu bom homem; não precisais mais de dinheiro. Pedi a Deus para terdes uma nova existência pobre para expiar a avareza desta. – R. Não, eu não poderia viver pobre. É preciso meu dinheiro para me fazer viver. Aliás, não preciso de uma outra vida, visto que vivo agora. P. (A pergunta seguinte é feita com o objetivo de trazê-lo de volta à realidade.) Vós sofreis? – R. Oh! sim, sofro torturas piores do que a doença mais cruel, pois é minha alma que suporta essas torturas. Tenho sempre presente no pensamento a iniquidade da minha vida, que foi um assunto de escândalo para muita gente. Sei bem que sou um miserável indigno de compaixão; mas sofro tanto que é preciso ajudar-me a sair deste miserável estado.
P. Oraremos por vós. – R. Obrigado! Orai para que eu esqueça minhas riquezas terrestres, sem isso jamais poderei arrepender-me. Adeus e obrigado.
FRANÇOIS RIQUIER,
Rua de la Charité, n014.
É assaz curioso ver este Espírito dar seu endereço, como se ainda estivesse vivo. A senhora, que o ignorava, apressou-se a ir verificá-lo; e ficou muito surpresa de ver que a casa indicada era exatamente a última em que ele morara. Assim, depois de cinco anos, ele não acreditava que estava morto e achava-se ainda na ansiedade, terrível para um avarento, de ver os seus bens divididos entre os herdeiros. A evocação, provocada talvez por algum bom Espírito, teve o efeito de fazê-lo compreender sua posição, e dispô-lo ao arrependimento.
Claire
(Sociedade de Paris, 1861.)
O Espírito que ditou as comunicações seguintes é o de uma mulher que o médium conhecera em vida, e cuja conduta e caráter não justificam senão demasiado os tormentos que ela suporta. Ela era, acima de tudo, dominada por um sentimento exagerado de egoísmo e de personalidade que se reflete na terceira comunicação, pela sua pretensão de querer que o médium se ocupe somente com ela. Estas comunicações foram obtidas em diversas épocas; as três últimas denotam um progresso sensível nas disposições do Espírito, graças aos cuidados do médium que empreendera sua educação moral.
I. Aqui estou, eu, a infeliz Claire; o que queres que te conte? A resignação e a esperança não são senão palavras para aquele que sabe que, inúmeras como as pedrinhas da praia, seus sofrimentos durarão por toda a sucessão dos séculos intermináveis. Eu posso amenizá-los, dizes tu? Que palavras vagas! Onde encontrar a coragem, a esperança para isso? Tenta então, cérebro limitado, compreender o que é um dia que jamais acaba. Será um dia, um ano, um século? Que sei eu? As horas não o dividem; as estações não o variam; eterno e lento como a água que escorre da rocha, esse dia execrado, esse dia maldito, pesa sobre mim como uma moldura de chumbo... Sofro!... Não vejo minha volta nada a não ser sombras silenciosas e indiferentes... Sofro! Sei, no entanto, que, acima desta miséria reina Deus, o pai, o senhor, aquele para quem tudo se encaminha. Quero pensar nisso; quero implorar-lhe. Debato-me e arrasto-me como um estropiado que rasteja pelo caminho.
Não sei que poder me atrai para ti; talvez sejas a salvação? Deixo-te um pouco mais calma, um pouco reconfortada; como um velho tremendo de frio que um raio de sol reaquece, minha alma gelada encontra uma nova vida ao aproximar-se de ti.
II. Minha desgraça aumenta a cada dia; aumenta à medida que o conhecimento da eternidade se desenvolve em mim. Ó miséria! como vos maldigo, horas culpadas, horas de egoísmo e de esquecimento, em que desconhecendo toda caridade, toda abnegação, eu não pensava senão no meu bem-estar! Sede malditos, arranjos humanos! Vãs preocupações com os interesses materiais! Sede malditos, vós que me cegastes e perdestes! Sou roída pelo incessante remorso do tempo decorrido. O que te direi, a ti que me escutas? Vela sem cessar por ti; ama os outros mais do que a ti mesmo; não te demores nos caminhos do bem-estar; não engordes teu corpo à custa da tua alma; vela, como dizia o Salvador aos seus discípulos. Não me agradeças por estes conselhos, meu Espírito os concebe, meu coração nunca os escutou. Como um cão chicoteado, o medo me faz rastejar, mas ainda não conheço o livre amor. Sua divina aurora tarda muito a erguer-se! Ora pela minha alma ressequida e tão miserável!
III. Venho até aqui procurar-te, visto que me esqueces. Acreditas então que preces isoladas, pronunciar meu nome, bastarão para o apaziguamento da minha pena? Não, cem vezes não. Dou rugidos de dor; vagueio sem repouso, sem asilo, sem esperança, sentindo o eterno aguilhão do castigo se cravar na minha alma revoltada. Rio-me quando ouço vossos lamentos, quando vos vejo abatidos. O que são vossas pálidas misérias! o que são vossas lágrimas! o que são vossos tormentos que o sono suspende! Será que eu durmo? Eu quero, estás ouvindo? eu quero que, deixando tuas dissertações filosóficas, te ocupes comigo; que faças os outros se ocuparem comigo. Não encontro expressões para descrever a angústia deste tempo que passa, sem que as horas lhe marquem os períodos. A custo vejo um fraco raio de esperança, e essa esperança foste tu que ma deste; então, não me abandones.
IV. O Espírito de São Luís. – Esse quadro é muito verdadeiro, pois não está de maneira nenhuma carregado. Perguntar-se-á talvez o que fez essa mulher para ser tão miserável. Cometeu algum crime horrível? Roubou, assassinou? Não; não fez nada que merecesse a justiça dos homens. Ela se deleitava, ao contrário, com tudo o que chamais a felicidade terrestre; beleza, fortuna, prazeres, adulações, tudo lhe sorria, nada lhe faltava, e dizia-se ao vêla: Que mulher feliz! E invejava-se sua sorte. O que ela fez? Foi egoísta; tinha tudo, exceto um bom coração. Se não violou a lei dos homens, violou a lei de Deus, pois ignorou a caridade, a primeira das virtudes. Não amou senão a si mesma, agora não é amada por ninguém; nada deu, não lhe dão nada; está isolada, desamparada, abandonada, perdida no espaço onde ninguém pensa nela, ninguém se ocupa com ela: é isso o que constitui seu suplício. Como não procurou senão gozos mundanos, gozos que não mais existem, fez-se o vazio em torno dela; ela não vê senão o nada, e o nada lhe parece a eternidade. Não sofre torturas físicas: os diabos não vêm atormentá-la, mas isso não é necessário: ela se atormenta a si mesma, e sofre muito mais, pois esses diabos seriam ainda seres que pensariam nela. O egoísmo constituiu sua alegria na terra: ele a persegue; é agora o verme que lhe rói o coração, seu verdadeiro demônio.
SÃO LUÍS.
V. Falar-vos-ei da diferença importante que existe entre a moral divina e a moral humana. A primeira assiste a mulher adúltera em seu abandono, e diz aos pecadores: “Arrependei-vos, e o reino dos céus vos será aberto.” A moral divina enfim, aceita todos os arrependimentos e todas as faltas confessadas, ao passo que a moral humana repele estas e admite, sorrindo, os pecados ocultos que, diz ela, são meio perdoados. A uma toca a graça do perdão, à outra a hipocrisia. Escolhei, Espíritos ávidos de verdade! Escolhei entre os céus abertos ao arrependimento, e a tolerância que admite o mal que não incomoda seu egoísmo e seus falsos arranjos, mas que repele a paixão e seus gemidos de faltas confessadas abertamente. Arrependei-vos, vós todos que pecais; renunciai ao mal, mas acima de tudo renunciai à hipocrisia que oculta a feiura, máscara risonha e enganadora das conveniências mútuas.
VI. Agora estou calma e resignada à expiação das faltas que cometi. O mal está em mim e não fora de mim; sou portanto eu que devo mudar e não as coisas exteriores. Nós carregamos em nós nosso céu e nosso inferno, e nossas faltas, gravadas na consciência, leem-se fluentemente no dia da ressurreição, e somos então nossos próprios juízes, visto que o estado da nossa alma nos eleva ou nos precipita. Explico-me: um Espírito maculado e tornado mais pesado por suas faltas não pode conceber nem desejar uma elevação que não poderia suportar. Acreditai: assim como as diferentes espécies de seres vivem cada uma na esfera que lhes é própria, assim os Espíritos, segundo o grau de seu avanço, se movem no meio que é o de suas faculdades; eles só concebem outra quando o progresso, ferramenta da lenta transformação das almas, os tira de suas inclinações rastejantes, e os faz despojar a crisálida do pecado, a fim de que eles possam esvoaçar, antes de se lançarem, rápidos como flechas, para Deus que se tornou o objetivo único e desejado. Infelizmente, eu ainda me arrasto, mas não odeio mais, e concebo a inefável felicidade do amor divino. Ora então sempre por mim, que tenho esperança e aguardo.
Observação: Na comunicação seguinte, Claire fala do marido, que a fizera sofrer muito durante a vida, e da posição em que ele se encontra hoje no mundo dos Espíritos. Este quadro, que ela não conseguiu terminar por si só, é completado pelo guia espiritual do médium.
VII. Venho a ti que me deixas há tanto tempo no esquecimento; mas adquiri paciência, e não estou mais desesperada. Tu queres saber qual é a situação do pobre Félix; ele vagueia nas trevas, presa da profunda indigência da alma. Seu ser superficial e leviano, maculado pelo prazer, sempre ignorou o amor e a amizade. Nem mesmo a paixão o iluminou com suas luzes sombrias. Comparo seu estado presente ao de uma criança inapta para os atos da vida, e desprovida do auxílio daqueles que a assistem. Félix vagueia com pavor nesse mundo estranho onde tudo resplandece com o brilho de Deus que ele negou...
VIII. O guia do médium. – Claire não pode continuar a análise dos sofrimentos do marido sem os sentir também; eu vou falar por ela. Félix, que era superficial nas ideias como nos sentimentos, violento porque era fraco, devasso porque era frio, entrou no mundo dos Espíritos nu moral e fisicamente. Ao entrar na vida terrestre, ele não adquiriu nada, e, por conseguinte, tem de recomeçar tudo. Como um homem que desperta de um longo sonho, e que reconhece quão vã era a agitação de seus nervos, esse pobre ser, ao sair da perturbação, reconhecerá que viveu quimeras que enganaram sua vida; amaldiçoará o materialismo que o fez abraçar o vazio, quando acreditava abraçar uma realidade; amaldiçoará o positivismo que o fazia chamar as ideias de uma vida futura, devaneios; as aspirações, loucuras, e a crença em Deus, fraqueza. O desgraçado, ao despertar, verá que essas palavras ridicularizadas por ele eram a fórmula do verdadeiro, e que contrariamente à fábula, a caça da presa foi menos proveitosa do que a da sombra.
GEORGES.
Estudos sobre as comunicações de Claire.
Estas comunicações são sobremaneira instrutivas porque nos mostram um dos lados mais comuns da vida: o do egoísmo. Não se trata dos grandes crimes que apavoram, nem mesmo dos homens perversos, mas a condição de uma quantidade de gente que vive no mundo, honrada e procurada, porque tem um certo verniz, e não sucumbe à vendeta das leis sociais. Também não são, no mundo dos Espíritos, castigos excepcionais, cujo quadro faz tremer, mas uma situação simples, natural, consequência de sua maneira de viver e do estado de sua alma; o isolamento, o desamparo, o abandono, eis a punição daquele que não viveu senão para si. Claire era, como se viu, um Espírito muito inteligente, mas um coração seco; na terra, sua posição social, sua fortuna, suas vantagens físicas lhe atraíam homenagens que lisonjeavam sua vaidade, e isso lhe bastava; lá, ela não encontra senão indiferença, e faz-se o vazio em torno dela: punição mais pungente do que a dor, porque é mortificante, pois a dor inspira compaixão: é ainda um meio de atrair os olhares, fazer com que se ocupem consigo, de despertar interesse por seu destino. A sexta comunicação encerra uma ideia perfeitamente verdadeira, quando explica a obstinação de certos Espíritos pelo mal. Fica-se espantado de ver aqueles que são insensíveis ao pensamento, ou mesmo ao espetáculo da bemaventurança de que gozam os bons Espíritos. Eles estão exatamente na posição dos homens degradados que se comprazem na lama e nas alegrias grosseiras e sensuais. Lá, esses homens estão de alguma forma em seu meio; não concebem os gozos delicados; preferem seus farrapos sujos às roupas limpas e brilhantes, porque ficam neles mais à vontade; suas festas báquicas, aos prazeres da boa companhia. Identificaram-se tanto com esse gênero de vida, que este se tornou para eles uma segunda natureza; creem-se mesmo incapazes de se elevar acima de sua esfera, é por isso que permanecem aí, até que uma transformação de seu ser tenha aberto sua inteligência desenvolvendo neles o senso moral, e os tenha tornado acessíveis a sensações mais sutis. Esses Espíritos, quando estão desencarnados, não podem adquirir instantaneamente a delicadeza do sentimento, e, durante um tempo mais ou menos longo, ocuparão os lugares mais miseráveis do mundo espiritual, como ocuparam os do mundo corpóreo; aí ficarão enquanto forem rebeldes ao progresso; mas com o tempo, com a experiência, as atribulações, as misérias das encarnações sucessivas, chega um momento em que eles concebem algo melhor do que aquilo que têm; suas aspirações elevam-se; eles começam a compreender o que lhes falta, e então fazem esforços para o adquirir e elevarse. Uma vez nessa via, caminham por ela com rapidez, porque provaram uma satisfação que lhes parece bem superior, perto da qual as outras, não sendo senão grosseiras sensações, acabam por lhes inspirar repugnância.
P. (A São Luís.) O que se deve entender pelas trevas onde estão mergulhadas algumas almas sofredoras? Seriam as trevas de que tanto se fala nas Escrituras? – R. As trevas de que se trata são na realidade as que são designadas por Jesus e os profetas, ao falarem do castigo dos maus. Mas não se trata senão de uma figura destinada a impressionar os sentidos materiais de seus contemporâneos que não poderiam compreender a punição de uma maneira espiritual. Certos Espíritos estão mergulhados nas trevas, mas deve-se entender com isso uma verdadeira noite da alma comparável à obscuridade que atinge a inteligência do idiota. Não é uma loucura da alma, mas uma inconsciência dela mesma e do que a rodeia que se produz tanto na presença quanto na ausência da luz material. É sobretudo a punição daqueles que duvidaram do destino de seu ser; eles creram no nada, e a aparência desse nada vem fazer seu suplício, até que a alma, retornando a si mesma, venha quebrar com energia a rede de enervamento moral que a tomou; igualmente, um homem oprimido por um sonho penoso luta num dado momento, com todo o poder de suas faculdades, contra os terrores pelos quais se deixou inicialmente dominar. Esta redução momentânea da alma a um nada fictício, com o sentimento de sua existência, é um sofrimento mais cruel do que se poderia imaginar, em razão dessa aparência de repouso pela qual ela é impressionada; é esse repouso forçado, essa nulidade de seu ser, essa incerteza, que fazem seu suplício; o tédio que a oprime que é o castigo mais terrível, pois ela não percebe nada em volta de si, nem coisas, nem seres; são para ela verdadeiras trevas.
SÃO LUÍS.
(Claire.) Aqui estou. Eu posso responder também à pergunta feita sobre as trevas, pois vagueei e sofri por muito tempo nesses limbos onde tudo são gemidos e misérias. Sim, as trevas visíveis de que fala a Escritura existem, e os desgraçados que, tendo terminado suas provas terrestres, deixam a vida, ignorantes ou culpados, são mergulhados na fria região, ignorando a si mesmos e os seus destinos. Eles creem na eternidade de sua situação, balbuciam ainda as palavras da vida que os seduziram, espantam-se e assustam-se com sua grande solidão; são trevas esse lugar vazio e povoado, esse espaço onde, arrastados, gementes, pálidos Espíritos vagueiam sem consolo, sem afeições, sem nenhuma ajuda. A quem se dirigir? ... eles sentem ali a eternidade pesando sobre eles; tremem e lamentam os mesquinhos interesses que escandiam suas horas; lamentam a noite que, sucedendo ao dia, levava muitas vezes suas preocupações num sonho feliz. Para os Espíritos as trevas são: a ignorância, o vazio e o horror do desconhecido... Não consigo continuar...
CLAIRE.
Deu-se também dessa obscuridade a explicação seguinte: “O perispírito possui, por natureza, uma propriedade luminosa que se desenvolve sob o império da atividade e das qualidades da alma. Poder-se-ia dizer que essas qualidades são para o fluido perispiritual o que a fricção é para o fósforo. O esplendor da luz é proporcional à pureza do Espírito; as menores imperfeições morais a ofuscam e enfraquecem. A luz que irradia de um Espírito é, assim, tanto mais viva quanto mais este é avançado. Sendo o Espírito, de alguma forma, seu porta-luz, ele vê mais ou menos segundo a intensidade da luz que produz; donde resulta que aqueles que não a produzem ficam na obscuridade.”
Nota: Esta teoria é perfeitamente exata quanto à irradiação do fluido luminoso pelos Espíritos superiores, o que é confirmado pela observação; mas não parece estar aí a causa verdadeira, ou pelo menos única do fenômeno de que se trata, considerando: 10 que nem todos os Espíritos inferiores estão nas trevas; 20 que o mesmo Espírito pode se encontrar alternadamente na luz e na obscuridade; 30 que a luz é um castigo para alguns Espíritos muito imperfeitos.
Se a obscuridade em que estão mergulhados certos Espíritos fosse inerente à sua personalidade, ela seria permanente e geral para todos os maus Espíritos, o que não ocorre, visto que Espíritos absolutamente perversos veem perfeitamente, ao passo que outros, que não se pode qualificar de perversos, estão temporariamente em profundas trevas. Portanto, tudo comprova que, além daquela que lhes é própria, os Espíritos recebem igualmente uma luz exterior que lhes falta segundo as circunstâncias; de onde se deve concluir que essa obscuridade depende de uma causa ou vontade alheia, e que ela constitui uma punição especial para casos determinados pela soberana justiça. Pergunta. (A São Luís.) Como se explica que a educação moral dos Espíritos desencarnados seja mais fácil que a dos encarnados? As relações estabelecidas pelo Espiritismo entre os homens e os Espíritos permitiram notar que estes últimos se emendam mais rapidamente sob a influência dos conselhos salutares daqueles que estão encarnados, tal como se vê pelas curas de obsessões.
R. (Sociedade de Paris.) – O encarnado, por sua própria natureza, está em luta incessante em razão dos elementos contrários de que é composto, e que devem conduzi-lo ao seu fim providencial reagindo um sobre o outro. A matéria sofre facilmente a dominação de um fluido exterior; se a alma não vem reagir com todo o poder moral de que é capaz, ela se deixa dominar por intermédio de seu corpo, e segue a impulsão das influências perversas que a cercam, e isso com tanto mais facilidade quanto os invisíveis que a estreitam atacam de preferência os pontos mais vulneráveis, as tendências para a paixão dominante.
Para o Espírito desencarnado, é completamente diferente; é verdade que ele está ainda sob uma influência semimaterial, mas esse estado não tem nada de comparável ao do encarnado. O respeito humano, tão preponderante no homem, é inexistente para ele, e esse pensamento não poderia sujeitá-lo a resistir por muito tempo às razões que seu próprio interesse lhe mostra como sendo boas. Ele pode lutar, e mesmo geralmente ele o faz com mais violência do que o encarnado, porque é mais livre, mas nenhuma visão mesquinha de interesse material, de posição social vem entravar seu julgamento. Ele luta por amor ao mal, mas adquire logo o sentimento de sua impotência diante da superioridade moral que o domina; a miragem de um futuro melhor tem mais influência sobre ele, porque ele está na própria vida em que deve realizar-se, e essa perspectiva não é apagada pelo turbilhão dos prazeres humanos; numa palavra, não estar mais sob a influência da carne torna sua conversão mais fácil, sobretudo quando ele adquiriu um certo desenvolvimento pelas provas que suportou. Um Espírito totalmente primitivo seria pouco acessível ao raciocínio, mas isso é diferente naquele que já tem uma experiência da vida. Aliás, no encarnado, como no desencarnado, é sobre a alma, é pelo sentimento que é preciso agir. Toda ação material pode suspender momentaneamente os sofrimentos do homem vicioso, mas ela não pode destruir o princípio mórbido que está na alma; todo ato que não tende a melhorar a alma não pode desviá-la do mal.
Capítulo V - Suicidas
O suicida da Samaritaine
No dia 7 de abril de 1858, por volta das sete horas da noite, um homem de cerca de cinquenta anos, vestido convenientemente, apresentou-se no estabelecimento da Samaritaine, em Paris, e mandou preparar um banho. O atendente espantou-se de que, após um intervalo de duas horas, aquele indivíduo não chamasse, e decidiu entrar em seu cubículo para ver se ele não estava indisposto. Testemunhou então um espetáculo atroz: aquele infeliz tinha cortado a garganta com uma navalha, e todo o seu sangue se misturara com a água da banheira. Não tendo podido ser estabelecida sua identidade, transportou-se o cadáver para o necrotério. O Espírito desse homem, evocado na Sociedade de Paris seis dias após sua morte, deu as respostas seguintes:
1. Evocação. (Resposta do guia do médium.) Espera... aqui está ele.
2. Onde estais agora? – R. Não sei... Dizei-me onde estou.
3. Estais numa assembleia de pessoas que se ocupam de estudos espíritas e que são benevolentes convosco. – R. Dizei-me se estou vivo... Asfixio no caixão.
Observação: Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada no que se poderia chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrestres ainda são vivazes; ele não acredita que está morto.
4. Quem vos encorajou a vir até nós? – R. Eu me senti aliviado.
5. Que motivo vos levou a vos suicidardes? – R. Eu morri? ...Não... habito meu corpo... Não sabeis quanto sofro!... Asfixio... Que uma mão compassiva tente acabar comigo!
6. Por que não deixastes nenhum traço que pudesse fazer reconhecervos? – R. Estou abandonado; fugi do sofrimento para encontrar a tortura.
7. Tendes agora os mesmos motivos para permanecer desconhecido? – R. Sim; não coloqueis um ferro em brasa na ferida que sangra.
8. Gostaríeis de dizer vosso nome, vossa idade, vossa profissão, vosso domicílio? – R. Não... a tudo não.
9. Tínheis uma família, mulher, filhos? – R. Eu estava abandonado; nenhum ser me amava.
10. O que havíeis feito para não ser amado por ninguém? – R. Quantos são como eu!... Um homem pode estar abandonado no meio da sua família, quando nenhum coração o ama.
11. No momento de realizar vosso suicídio, não sentistes nenhuma hesitação? – R. Eu tinha sede da morte... Aguardava o repouso.
12. Como o pensamento do futuro não vos fez renunciar ao vosso projeto? – R. Eu não acreditava mais nisso; estava sem esperança. O futuro é a esperança.
13. Que reflexões fizestes no momento em que sentistes a vida se extinguir em vós? – R. Eu não refleti; senti... Mas minha vida não está extinta... minha alma está ligada ao meu corpo... Eu sinto os vermes que me roem.
14. Que sentimento experimentastes no momento em que a morte foi completa? – R. Ela o é?
15. O momento em que a vida se extinguia em vós foi doloroso? – R. Menos doloroso do que depois. Só o corpo sofreu.
16. (Ao Espírito de São Luís.) A que se refere o Espírito ao dizer que o momento da morte foi menos doloroso do que depois. – R. O Espírito se livrava de um fardo que o oprimia; sentia a volúpia da dor.
17. Esse estado é sempre a consequência do suicídio? – R. Sim; o Espírito do suicida fica ligado ao corpo até o fim de sua vida; a morte natural é a libertação da vida: o suicídio quebra-a inteiramente.
18. Esse estado é o mesmo em toda morte acidental independente da vontade, e a qual abrevia a duração natural da vida? – R.
Não... Que compreendeis por suicídio? O Espírito não é culpado senão de suas obras. Nota: Esta dúvida quanto à morte é muito comum nas pessoas falecidas há pouco tempo, e, sobretudo, naquelas que, durante a vida, não elevaram sua alma acima da matéria. É um fenômeno bizarro à primeira vista, mas que se explica muito naturalmente. Se, a um indivíduo posto em sonambulismo pela primeira vez, se perguntar se ele dorme, ele responde quase sempre não, e sua resposta é lógica: é o interrogador que faz mal a pergunta servindo-se de um termo impróprio. A ideia de sono, em nossa língua habitual, está ligada à suspensão de todas as nossas faculdades sensitivas; ora, o sonâmbulo que pensa, que vê, e que sente, que tem consciência de sua liberdade moral, não acredita dormir, e com efeito, ele não dorme, na acepção comum do termo. É por isso que responde não até que se tenha familiarizado com essa maneira de entender a coisa. Igualmente no homem que acaba de morrer; para ele, a morte era o aniquilamento do ser; ora, como o sonâmbulo, ele vê, sente, fala; portanto, do seu ponto de vista ele não morreu, e ele o afirma até que tenha adquirido a intuição de seu novo estado. Essa ilusão é sempre mais ou menos penosa, porque nunca é completa, e deixa o Espírito numa certa ansiedade. No exemplo precedente, ela é um verdadeiro suplício pela sensação dos vermes que roem o corpo, e pela sua duração que deve ser a que teria tido a vida desse homem se ele não a tivesse abreviado. Esse estado é frequente nos suicidas, mas nem sempre se apresenta em condições idênticas; varia sobretudo na duração e na intensidade segundo as circunstâncias agravantes ou atenuantes da falta. Ela é frequente entre aqueles que viveram mais da vida material do que da vida espiritual. Em princípio, não há falta sem punição; mas não há regra uniforme e absoluta nos meios de punição.
O pai e o recruta
No início da guerra da Itália, em 1859, um negociante de Paris, pai de família, gozando da estima geral de todos os seus vizinhos, tinha um filho que foi chamado a ir defender a bandeira; achando-se, pela sua posição, na impossibilidade de exonerá-lo do serviço militar, teve a ideia de se suicidar a fim de isentá-lo como filho único de viúva. Foi evocado um ano depois na Sociedade de Paris, a pedido de uma pessoa que o conhecera e que desejava conhecer seu destino no mundo dos Espíritos.
(A São Luís.) Tende a bondade de dizer-nos se podemos fazer a evocação do homem do qual acabamos de falar? – R. Sim, ele ficará mesmo muito feliz, pois ficará um pouco aliviado.
1. Evocação. – R. Oh! obrigado! Sofro bastante, mas... é justo; no entanto ele me perdoará.
Observação: O Espírito escreve com grande dificuldade; os caracteres são irregulares e mal formados; depois da palavra mas, ele para, tenta em vão escrever, e não faz senão alguns traços indecifráveis e pontos. É evidente que é a palavra Deus que ele não pôde escrever.
2. Preenchei a lacuna que acabais de deixar. – R. Sou indigno disso.
3. Vós dizeis que sofreis, errastes sem dúvida ao vos suicidardes, mas será que o motivo que vos levou a esse ato não vos valeu nenhuma indulgência? – R. Minha punição será menos longa, mas a ação praticada não é menos má.
4. Poderíeis descrever-nos a punição que sofreis? – R. Sofro duplamente, em minha alma e em meu corpo; sofro neste último, embora não o possuindo mais, como o amputado sofre no seu membro ausente.
5. Vossa ação teve por único motivo o vosso filho, e não fostes solicitado por nenhuma outra causa? – R. Unicamente o amor paterno me guiou, mas me guiou mal; em atenção a esse motivo, minha pena será abreviada.
6. Prevedes o fim de vossos sofrimentos? – R. Não conheço o fim deles; mas tenho certeza de que esse fim existe, o que é um alívio para mim.
7. Há pouco não conseguistes escrever o nome de Deus; contudo, nós vimos Espíritos muito sofredores escrevê-lo; isso faz parte da vossa punição? – R. Eu poderei com grandes esforços de arrependimento.
8. Pois bem! fazei grandes esforços, e tentai escrevê-lo; estamos convencidos de que se conseguirdes, isso vos aliviará. O Espírito acabou por escrever em caracteres irregulares, tremidos, e muito grandes: “Deus é bem bom.”
9. Nós vos agradecemos por terdes vindo ao nosso chamado, e pediremos a Deus por vós, a fim de chamar a sua misericórdia sobre vós. – R. Sim, por favor.
10. (A São Luís.) Tende a bondade de nos dar vossa apreciação pessoal sobre o ato do Espírito que acabamos de evocar. – R. Esse Espírito sofre justamente, pois não confiou em Deus, o que é uma falta sempre punível; a punição seria terrível e muito longa se ele não tivesse a seu favor um motivo louvável, que era o de impedir o filho de ir para a morte; Deus, que vê o fundo dos corações, e que é justo, não o pune a não ser segundo suas obras.
Observações. – À primeira vista, esse suicídio parece desculpável, porque pode ser considerado como um ato de abnegação; ele o é, com efeito, mas não o é completamente. Assim como diz o Espírito de São Luís, faltou a esse homem confiança em Deus. Por sua ação, impediu talvez o destino de seu filho de se cumprir; primeiro, não é certo que este morresse na guerra, e talvez essa carreira devesse lhe fornecer a ocasião de fazer alguma coisa que teria sido útil para seu avanço. Sua intenção, sem dúvida, era boa, então isso lhe é creditado; a intenção atenua o mal e merece indulgência, mas ela não impede o que é mal de ser mal; sem isso, graças ao pensamento, poder-se-iam desculpar todas as más ações, e poder-se-ia mesmo matar sob pretexto de fazer um favor. Uma mãe que mata o filho na crença de que o manda diretamente para o céu, é menos culpada, porque o faz com uma boa intenção? Com esse sistema justificar-se-iam todos os crimes que um fanatismo cego fez cometer nas guerras de religião.
Em princípio, o homem não tem o direito de dispor de sua vida, porque ela lhe foi dada em vista dos deveres que ele devia realizar na terra, é por isso que ele não deve abreviá-la voluntariamente sob nenhum pretexto. Como ele tem seu livre-arbítrio, ninguém o pode impedir, mas ele sofre sempre suas consequências.
O suicídio mais severamente punido é aquele que é realizado por desespero, e com vistas a se libertar das misérias da vida; sendo essas misérias simultaneamente provas e expiações, subtrair-se a elas é recuar diante da tarefa que se aceitara, às vezes mesmo diante da missão que se devia cumprir.
O suicídio não consiste somente no ato voluntário que produz a morte instantânea; ele consiste também em tudo o que se faz com conhecimento de causa e que pode apressar prematuramente a extinção das forças vitais. Não se pode comparar ao suicídio a dedicação daquele que se expõe a uma morte iminente para salvar seu semelhante; primeiro porque não há, nesse caso, nenhuma intenção premeditada de se subtrair à vida, e, em segundo lugar, não há perigo do qual a Providência não possa nos tirar, se a hora de deixar a terra não chegou. A morte, se ocorreu em tais circunstâncias, é um sacrifício meritório, pois é uma abnegação em benefício de outrem. (Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V n0s 53, 65, 66, 67.)
Louvet François-Simon (do Havre)
A comunicação seguinte foi dada espontaneamente numa reunião espírita, no Havre, em 12 de fevereiro de 1863: “Será que tereis compaixão de um pobre miserável que sofre há muito tempo torturas tão cruéis! Oh! o vazio.... o espaço... eu estou caindo, estou caindo, socorro!... Meu Deus, tive uma vida tão miserável!... Eu era um pobre diabo; sofria com frequência de fome na minha velhice; é por isso que começara a beber e que tinha vergonha e desgosto de tudo... Quis morrer e joguei-me... Oh! meu Deus, que momento!... Por que então desejar acabar comigo quando estava tão perto do fim? Orai! Para que eu não veja mais sempre este vazio abaixo de mim... Vou-me despedaçar nessas pedras!... Suplico-vos, vós que conheceis as misérias daqueles que já não estão aqui embaixo, dirijo-me a vós, embora não me conheçais, porque sofro tanto... Por que querer provas? Eu sofro, não é suficiente? Se eu tivesse fome em vez deste sofrimento mais terrível, mas invisível para vós, vós não hesitaríeis em me dar um pedaço de pão. Peço-vos para orar por mim... Não posso ficar mais tempo.... Perguntai a um destes bem-aventurados que estão aqui, e sabereis quem eu era. Orai por mim.”
FRANÇOIS-SIMON LOUVET.
O guia do médium. – Esse que acaba de se dirigir a ti, meu filho, é um pobre desgraçado que tinha uma prova de miséria na Terra, mas o desgosto tomou conta dele; faltou-lhe a coragem, e o desafortunado, em vez de olhar para o alto assim como deveria ter feito, entregou-se à bebedeira; desceu aos últimos limites do desespero, e pôs fim à sua triste prova jogando-se da torre de Francisco I, em 22 de julho de 1857. Tende compaixão de sua pobre alma, que não é avançada, mas que tem, entretanto, suficiente conhecimento da vida futura para sofrer e desejar uma nova prova. Pedi a Deus para lhe conceder essa graça, e fareis uma boa obra. Foram feitas pesquisas, e encontrou-se no Jornal do Havre de 23 de julho de 1857 o artigo seguinte, cuja conteúdo é este:
“Ontem, às quatro horas, as pessoas que passeavam no molhe ficaram dolorosamente impressionadas por um horrendo acidente: um homem se lançou da torre e veio despedaçar-se nas pedras. É um velho puxador de sirga, que as tendências à embriaguez conduziram ao suicídio. Chama-se François-VictorSimon Louvet. Seu corpo foi transportado para casa de uma das filhas, na rua da Corderie; tinha sessenta e sete anos.”
Observação: Há quase seis anos que esse homem morreu, e ainda se vê caindo da torre e indo despedaçar-se nas pedras; apavora-se com o vazio diante dele; está temeroso com a queda... e isso há seis anos! Quanto tempo isso durará? Ele não sabe, e essa incerteza aumenta suas angústias. Isso não equivale ao inferno e suas chamas? Quem revelou esses castigos? Foram inventados? Não; são exatamente aqueles que os sofrem que vêm descrevê-los, como outros descrevem suas alegrias. Frequentemente, fazem-no espontaneamente, sem que se pense neles, o que exclui toda ideia de que se é joguete da própria imaginação.
Uma mãe e seu filho
No mês de março de 1865, o Sr. C..., negociante de uma cidadezinha perto de Paris, tinha em casa o filho de vinte e um anos, gravemente enfermo. Esse jovem, sentindo-se prestes a expirar, chamou a mãe e ainda teve força para beijá-la. Disse-lhe esta, derramando abundantes lágrimas: “Vai, meu filho, precede-me, não tardarei a seguir-te.” Ao mesmo tempo ela saiu escondendo a cabeça entre as mãos.
As pessoas presentes a essa cena pungente consideraram as palavras da Sra. C... como uma simples explosão de dor que o tempo e a razão deviam acalmar. No entanto, tendo o doente sucumbido, procuraram-na pela casa toda, e encontraram-na enforcada num sótão. O cortejo fúnebre da mãe fez-se ao mesmo tempo que o do filho.
Evocação do filho vários dias depois do acontecimento. – P. Tendes conhecimento da morte de vossa mãe que se suicidou sucumbindo ao desespero que vossa perda lhe causou?
R. Sim, e sem o desgosto que me causou a execução de sua fatal resolução, eu seria perfeitamente feliz. Pobre e excelente mãe! Ela não pôde suportar a prova desta separação momentânea, e tomou, para se reunir ao filho que tanto amava, a estrada que devia afastá-la dele, infelizmente! por muito tempo. Ela retardou assim indefinidamente essa reunião que teria sido tão imediata se a submissão às vontades do Senhor tivesse preenchido sua alma, e se ela se tivesse resignado, humilde e arrependida, diante da prova que ia sofrer, e da expiação que ia purificá-la!
Orai! Oh! Orai por ela!... e acima de tudo não a imiteis, mães enternecidas pelo triste relato de sua morte! Não acrediteis que ela amava mais do que outras mães esse filho que era sua alegria e seu orgulho; não, ela não amava mais, mas faltou-lhe coragem e resignação. Mães que me escutais, quando virdes a agonia velar os olhos extintos de vossos filhos, lembrai-vos de que, como Cristo, eles sobem ao cimo do calvário, de onde devem elevar-se na glória eterna.
BENJAMIN C...
Evocação da mãe. – Eu quero ver meu filho! Tendes o poder de devolvê-lo a mim? ... Cruéis!... tiraram-no de mim para levá-lo para a luz e deixaram-me na noite!... Eu o quero, eu o quero... ele me pertence!... Então o amor materno não é nada? ... O quê! ter gestado nove meses, alimentado com seu leite a carne da sua carne, o sangue do seu sangue; ter guiado seus primeiros passos; ter-lhe ensinado a balbuciar o nome sagrado de Deus e o doce nome de mãe; ter feito dele um homem cheio de atividade, de inteligência, de honradez, de retidão, de amor filial, e perdê-lo quando ele realizava as esperanças que se haviam concebido para ele, quando um brilhante futuro se abria diante dele! Não, Deus não é justo; não é o Deus das mães; ele não compreende seu desespero e sua dor... e quando me mato para não deixar meu filho, roubam-no novamente de mim!... Meu filho! Meu filho! Onde estás?
O Evocador. Pobre mãe, partilhamos vossa dor; mas usastes um triste meio para vos reunirdes ao vosso filho; o suicídio é um crime aos olhos de Deus, e deveríeis ter pensado que ele pune toda infração às suas leis. A privação de verdes vosso filho é vossa punição. A mãe. Não; eu acreditava que Deus era melhor do que os homens; não acreditava no seu inferno, mas na reunião eterna das almas que se amaram como nos amávamos; enganei-me... Não é o Deus justo e bom, visto que não compreendeu a imensidão da minha dor e do meu amor!... Oh! quem me devolverá meu filho! Perdi-o então para sempre? Compaixão! Compaixão, meu Deus!
O Evocador. Vamos, acalmai vosso desespero; pensai que, se existe um meio de rever vosso filho, não é blasfemando contra Deus, como fazeis. Em vez de o pôr a vosso favor, atraís sobre vós uma severidade maior.
A mãe. Eles me disseram que eu não o veria mais; entendi que foi para o paraíso que o levaram. E eu, estou então no inferno?... o inferno das mães?... ele existe, vejo-o bem demais.
O Evocador. Vosso filho não está perdido irremediavelmente, acreditai em mim; voltareis a vê-lo certamente; mas é preciso merecê-lo por vossa submissão à vontade de Deus, ao passo que por vossa revolta podeis retardar esse momento indefinidamente. Escutai-me: Deus é infinitamente bom, mas é infinitamente justo. Ele nunca pune sem causa, e se vos infligiu grandes dores na terra, é que as havíeis merecido. A morte de vosso filho era uma prova para vossa resignação; infelizmente, sucumbistes a ela durante a vida, e eis que depois da morte sucumbis de novo; como quereis que Deus recompense seus filhos rebeldes? Mas ele não é inexorável; acolhe sempre o arrependimento do culpado. Se tivésseis aceitado sem murmurar e com humildade a prova que ele vos enviava por essa separação momentânea, e se tivésseis aguardado pacientemente que ele tivesse a bondade de vos retirar da terra, no momento de vossa entrada no mundo em que estais, teríeis imediatamente revisto vosso filho que teria vindo receber-vos de braços abertos; teríeis tido a alegria de vê-lo radiante depois desse tempo de ausência. Aquilo que fizestes, e o que ainda fazeis neste momento, coloca entre vós e ele uma barreira. Não acrediteis que ele esteja perdido nas profundezas do espaço; não, ele está mais perto de vós do que credes; mas um véu impenetrável o esconde de vossa vista. Ele vos vê, ama-vos, e geme pela triste posição em que vos mergulhou vossa falta de confiança em Deus; ele deseja ardentemente o momento afortunado em que lhe será permitido mostrar-se a vós; depende unicamente de vós apressar ou retardar esse momento. Pedi a Deus, e dizei comigo:
“Meu Deus, perdoai-me por ter duvidado de vossa justiça e de vossa bondade; se me punistes, reconheço que o mereci. Dignai-vos a aceitar meu arrependimento e minha submissão à vossa santa vontade.” A mãe. Que vislumbre de esperança acabais de fazer resplandecer na minha alma! É um relâmpago na noite que me cerca. Obrigada, vou orar. Adeus.
C...
Observação: A morte, mesmo pelo suicídio, não produziu neste Espírito a ilusão de acreditar que ainda estava vivo; ele tem perfeitamente consciência de seu estado; é que em outros a punição consiste justamente nessa ilusão, nos laços que os prendem ao corpo. Esta mulher quis deixar a terra para seguir o filho no mundo em que ele entrara: era preciso que ela soubesse que estava nesse mundo para ser punida não o reencontrando ali. Sua punição é precisamente saber que não vive mais corporalmente, e o conhecimento que tem de sua situação. É assim que cada falta é punida pelas circunstâncias que a acompanham, e não há punições uniformes e constantes para as faltas do mesmo gênero.
Duplo suicídio por amor e por dever
Um jornal de 13 de junho de 1862 continha o relato seguinte:
“A senhorita Palmyre, modista, residindo na casa dos pais, era dotada de uma aparência encantadora à qual se juntava o mais amável caráter; assim, tinha muitos pretendentes. Entre os aspirantes à sua mão, ela distinguira o senhor B..., que sentia por ela uma viva paixão. Embora amando-o muito também, ela acreditou no entanto dever, por respeito filial, aquiescer aos desejos de seus pais desposando o senhor D..., cuja posição social lhes parecia mais vantajosa do que a de seu rival.
“Os senhores B... e D... eram amigos íntimos. Embora não tendo juntos nenhuma relação de interesse, não cessaram de se ver. O amor mútuo de B... e de Palmyre, agora senhora D..., não enfraquecera, e, como eles se esforçavam para o comprimir, ele aumentava devido à violência que lhe faziam. Para tentar extingui-lo, B... adotou o partido de se casar. Desposou uma jovem dotada de eminentes qualidades, e fez tudo o que estava ao seu alcance para amá-la; mas não tardou a perceber que esse meio heroico não tinha o poder de curá-lo; no entanto, durante quatro anos, nem B... nem a senhora D... faltaram aos seus deveres. O que eles tiveram de sofrer não poderia exprimir-se, pois D..., que gostava verdadeiramente de seu amigo, chamava-o sempre para ir a sua casa, e, quando este queria fugir, obrigava-o a ficar.
“Os dois amantes, que se reencontraram um dia por uma circunstância fortuita que não haviam procurado, contaram um ao outro o estado de sua alma, e concordaram que a morte era o único remédio para os males que sentiam. Resolveram matar-se juntos, e executar esse projeto no dia seguinte, devendo o senhor D.... ficar ausente de seu domicílio durante grande parte do dia. Depois de terem feito seus últimos preparativos, escreveram uma longa e tocante carta explicando a causa do suicídio para não faltarem a seus deveres. Ela terminava com um pedido de perdão e a súplica de serem reunidos no mesmo túmulo. “Quando o senhor D... voltou, encontrou-os asfixiados. Respeitou-lhes o último desejo, e quis que no cemitério não ficassem separados.” Tendo sido este fato proposto à Sociedade de Paris como objeto de estudo, um Espírito respondeu:
“Os dois amantes que se suicidaram ainda não podem responder-vos; eu os vejo; estão mergulhados na perturbação e assustados pelo sopro da eternidade. As consequências morais de sua falta castigá-los-ão durante migrações sucessivas em que suas almas desencontradas se buscarão sem cessar e sofrerão o duplo suplício do pressentimento e do desejo. Cumprida a expiação, eles ficarão reunidos para sempre no seio do eterno amor. Daqui a oito dias, na vossa próxima sessão, podereis evocá-los; eles virão, mas não se verão: uma noite profunda os ocultará por muito tempo um do outro.”
1. Evocação da mulher. – Vedes vosso amante, com o qual vos suicidastes? – R. Não vejo nada; não vejo nem mesmo os Espíritos que vagueiam comigo na morada onde estou. Que noite! Que noite! E que véu espesso sobre meu rosto!
2. Que sensação experimentastes quando despertastes após a morte? – R. Estranho! Tinha frio e ardia; corria gelo nas minhas veias, e minha testa estava em fogo! Coisa estranha, mistura inaudita! Gelo e fogo parecendo me estreitar! Pensava que ia sucumbir uma segunda vez.
3. Sentis uma dor física? – R. Todo o meu sofrimento está aqui, e aqui. – Que quereis dizer por aqui e aqui? – R. Aqui, no meu cérebro; aqui, no meu coração.
Nota: É provável que, se pudéssemos ter visto o Espírito, tê-lo-íamos visto levar a mão à testa e ao coração.
4. Acreditais que ficareis sempre nessa situação? – R. Oh! sempre, sempre! Ouço às vezes risos infernais, vozes pavorosas que me urram estas palavras: “Sempre assim!”
5. Pois bem! podemos dizer-vos com toda a segurança que não será assim para sempre; ao vos arrependerdes, obtereis o vosso perdão. – R. O que dissestes? Não estou ouvindo.
6. Repito-vos que vossos sofrimentos terão um fim que podereis apressar pelo vosso arrependimento, e nós vos ajudaremos pela oração. – R. Não ouvi senão uma palavra e sons vagos; essa palavra é graça! Quisestes falar de graça? Vós falastes de graça: é talvez à alma que passa ao meu lado, pobre criança que chora e que espera.
Nota: Uma senhora da Sociedade diz que acaba de fazer a Deus uma prece por essa desafortunada, e que foi talvez isso que a impressionou; que ela implorara, com efeito, mentalmente para ela a graça de Deus.
7. Dizeis que estais nas trevas; não conseguis ver? – R. É-me permitido ouvir algumas das palavras que pronunciais, mas não vejo senão um crepe negro sobre o qual se desenha, em certas horas, uma cabeça chorando.
8. Se não podeis ver o vosso amante, não sentis sua presença junto a vós, pois ele está aqui? – R. Ah! Não me faleis dele, devo esquecê-lo por enquanto, se eu quiser que se apague a imagem do crepe que vejo ali traçada.
9. Que imagem é essa? – R. A de um homem que sofre, e cuja existência moral na terra eu matei por muito tempo. Observação: Lendo este relato fica-se inicialmente disposto a conceder a este suicídio circunstâncias atenuantes, a vê-lo mesmo como um ato heroico,visto que foi provocado pelo sentimento do dever. Vê-se que ele foi julgado de outra maneira, e que a pena dos culpados será longa e terrível por se terem refugiado voluntariamente na morte a fim de fugirem da luta; a intenção de não faltar ao dever era sem dúvida digna, e isso será levado em conta mais tarde, mas o verdadeiro mérito teria consistido em vencer o arrebatamento, ao passo que eles fizeram como o desertor que se esquiva no momento do perigo.
A pena dos dois culpados consistirá, como se vê, em se procurarem por muito tempo sem se encontrar, seja no mundo dos Espíritos, seja em outras encarnações terrestres; ela é momentaneamente agravada pela ideia de que seu estado presente deve durar para sempre; fazendo esse pensamento parte do castigo, ele não lhes permitiu ouvir as palavras de esperança que lhes foram dirigidas. Àqueles que achassem esta pena muito terrível e muito longa, sobretudo se ela não deve cessar senão depois de várias encarnações, diremos que sua duração não é absoluta, e que ela dependerá da maneira como eles suportarem suas provas futuras, para o quê se pode ajudá-los pela prece; eles serão, como todos os Espíritos culpados, os árbitros de seu próprio destino. Isso, no entanto, não vale mais do que o castigo eterno, sem esperança, ao qual eles são irrevogavelmente condenados segundo a doutrina da Igreja, que tanto os olha como destinados para sempre ao inferno, que lhes recusou as últimas preces, sem dúvida consideradas inúteis?
Louis e a costureira de botinas
Há sete ou oito meses, o denominado Louis G..., sapateiro, fazia a corte à senhorita Victorine R., costureira de botinas, com a qual devia casar-se muito em breve, visto que os anúncios oficiais iam ser proclamados. Estando as coisas nesse ponto, os jovens consideravam-se quase como definitivamente unidos, e, por medida de economia, o sapateiro vinha todo dia fazer as refeições na casa de sua futura esposa.
Um dia, tendo Louis vindo, como habitualmente, cear na casa da costureira de botinas, sobreveio uma querela a respeito de uma futilidade; obstinaram-se de ambas as partes, e as coisas chegaram ao ponto em que Louis deixou a mesa, e partiu jurando nunca mais voltar.
No dia seguinte, entretanto, o sapateiro veio pedir perdão: a noite traz conselhos, como se sabe; mas a operária, prevendo talvez, pela cena da véspera, o que poderia ocorrer quando não fosse mais tempo de se desdizer, recusou reconciliar-se, e nem protestos, lágrimas, desespero, nada a pôde comover. Vários dias haviam transcorrido desde aquele da briga; Louis, esperando que sua bem-amada estaria mais afável, quis tentar uma última aproximação: chega portanto e bate de maneira a se fazer reconhecer, mas recusam-se a abrir-lhe a porta; então, novas súplicas por parte do pobre excluído, novos protestos através da porta, mas nada foi capaz de comover a implacável prometida. “Adeus então, malvada! exclama enfim o pobre rapaz, adeus para sempre! Tentai encontrar um marido que vos ame tanto quanto eu!”
Ao mesmo tempo a moça ouve uma espécie de gemido abafado, e depois como que o barulho de um corpo que cai escorregando ao longo da porta, e tudo volta ao silêncio; então ela imagina que Louis se instalou na soleira para esperar que ela saia, mas ela decide não pôr os pés para fora enquanto ele lá estiver. Mal fazia um quarto de hora que isso acontecera, quando um locatário que passava no corredor levando luz, lança uma exclamação e pede socorro. Logo chegam os vizinhos, e a senhorita Victorine, tendo igualmente aberto sua porta, lança um grito de horror ao perceber estendido no chão seu prometido, pálido e inanimado. Todos se apressam a socorrê-lo, mas logo se apercebem de que tudo é inútil, e de que ele cessou de existir. O infeliz rapaz mergulhara seu trinchete na região do coração, e o ferro 38 permanecera na ferida.
(Sociedade espírita de Paris, agosto de 1858.)
1. Ao Espírito de São Luís. A jovem, causa involuntária da morte de seu amante, é responsável por isso? – R. Sim, pois ela não o amava.
2. Para prevenir essa desgraça, ela devia desposá-lo apesar de sua repugnância? – R. Ela buscava uma ocasião para se separar dele; fez no começo de sua ligação o que teria feito mais tarde.
3. Assim sua culpa consiste em ter alimentado nele sentimentos que ela não compartilhava, sentimentos que foram a causa da morte do rapaz? – R.Sim, é isso.
Em francês tranchet: faca de sapateiro, para cortar couro. (N. R.)
4. Sua responsabilidade, nesse caso, deve ser proporcional à sua falta; ela não deve ser tão grande quanto se ela tivesse provocado voluntariamente a morte? – R. Isso salta à vista.
5. O suicídio de Louis encontra uma desculpa no desvario em que o mergulhou a obstinação de Victorine? – R. Sim, pois seu suicídio, que provém do amor, é menos criminoso aos olhos de Deus do que o suicídio do homem que quer libertar-se da vida por um motivo de covardia. Tendo o Espírito de Louis G... sido evocado outra vez, dirigimos-lhe as seguintes perguntas:
1. O que pensais da ação que cometestes? – R. Victorine é uma ingrata, cometi um erro matando-me por ela, pois ela não o merecia.
2. Então ela não vos amava? – R. Não; ela acreditou nisso no início; ela se iludia; a cena que eu lhe fiz abriu-lhe os olhos; então ela ficou contente com esse pretexto para se livrar de mim.
3. E vós, vós a amáveis sinceramente? – R. Eu tinha paixão por ela; eis tudo, creio eu; se a tivesse amado com um amor puro, não teria querido magoála.
4. Se ela tivesse sabido que queríeis realmente matar-vos, teria persistido em sua recusa? – R. Não sei; não creio, porque ela não é má; mas ela teria sido infeliz; é melhor para ela que isso tenha acontecido.
5. Chegando à sua porta, tínheis a intenção de matar-vos em caso de recusa? – R. Não; não pensava nisso; não acreditava que ela seria tão obstinada; só quando vi sua obstinação, então fui tomado por uma vertigem.
6. Pareceis lamentar vosso suicídio apenas porque Victorine não o merecia; é o único sentimento que experimentais? – R. Neste momento, sim; ainda estou totalmente perturbado; parece-me estar à porta; mas sinto outra coisa que não consigo definir.
7. Vós o compreendereis mais tarde? – R. Sim, quando estiver esclarecido... Foi mau o que fiz; deveria tê-la deixado tranquila... Fui fraco, e por isso arco com a pena... Vede, a paixão cega o homem e o faz fazer muitas tolices. Ele as compreende quando já não há mais tempo.
8. Dizeis que arcais com a pena; que pena sofreis? – R. Cometi o erro de abreviar minha vida; não devia tê-lo feito; devia suportar tudo em vez de acabar com isso antes do tempo; e depois, sou infeliz; sofro; é sempre ela que me faz sofrer; parece-me estar ainda ali, à sua porta; ingrata! Não me faleis mais disso; não quero mais pensar nisso; isso me faz demasiado mal. Adeus.
Observação: Vê-se ainda aí uma nova prova da justiça distributiva que preside à punição dos culpados, segundo o grau da responsabilidade. Na circunstância presente, a primeira falta é da moça que cultivara em Louis um amor que ela não compartilhava, e do qual troçava; ela arcará, portanto, com a maior parte da responsabilidade. Quanto ao rapaz, é punido também pelo sofrimento que suporta; mas sua pena é leve, porque cedeu apenas a um movimento irrefletido e a um momento de exaltação, em vez da fria premeditação dos que se suicidam para se subtrair às provas da vida.
Um ateu
O Sr. J.-B. D... era um homem instruído, mas imbuído no último grau das ideias materialistas, não acreditava nem em Deus nem que tinha uma alma. Foi evocado dois anos após a morte, na Sociedade de Paris, a pedido de um dos seus parentes.
1. Evocação. – R. Eu estou sofrendo! Estou condenado.
2. Pediram-nos para vos chamar por parte de vossos parentes que desejam saber qual é vosso destino; tende a bondade de nos dizer se nossa evocação vos é agradável ou penosa. – R. Penosa.
3. Vossa morte foi voluntária? – R. Sim. Nota: O Espírito escreve com extrema dificuldade; a letra é muito grande, irregular, convulsiva e quase ilegível. No início, mostra cólera, quebra o lápis e rasga o papel.
4. Ficai mais calmo; nós todos oraremos a Deus por vós. – R. Sou forçado a crer em Deus.
5. Que motivo pôde vos levar a vos destruirdes? – R. Tédio da vida sem esperança.
Observação: Concebe-se o suicídio quando a vida é sem esperança; quer-se escapar da infelicidade a qualquer preço; com o Espiritismo o futuro se desenrola e a esperança se legitima: portanto, o suicídio não tem mais objeto; bem mais do que isso, reconhece-se que, por esse meio, não se escapa de um mal senão para cair num outro que é cem vezes pior. Eis porque o Espiritismo já arrancou tantas vítimas à morte voluntária. São bem culpados aqueles que se esforçam por fazer acreditada, por sofismas científicos e pretensamente em nome da razão, essa ideia desesperadora, fonte de tantos males e crimes, de que tudo acaba com a vida! Eles serão responsáveis, não só por seus próprios erros, mas por todos os males dos quais terão sido a causa.
6. Quisestes escapar das vicissitudes da vida; ganhastes algo com isso? Sois mais feliz agora? – R. Por que o nada não existe?
7. Tende a bondade de nos descrever vossa situação o melhor que conseguirdes. – R. Sofro por ser obrigado a crer em tudo que negava. Minha alma está como num braseiro; é atormentada horrivelmente.
8. De onde vos vinham as ideias materialistas que tínheis em vida? – R. Numa outra existência eu fora malvado, e meu Espírito estava condenado a sofrer os tormentos da dúvida durante minha vida; assim eu me matei.
Observação: Há aqui toda uma ordem de ideias. Pergunta-se frequentemente como pode haver materialistas, visto que tendo já passado pelo mundo espiritual, eles deveriam ter a intuição dele; ora, é precisamente essa intuição que é recusada a certos Espíritos que conservaram seu orgulho, e não se arrependeram de suas faltas. Sua prova consiste em adquirir, durante a vida corpórea, e por sua própria razão, a prova da existência de Deus e da vida futura que eles têm incessantemente sob dos olhos; mas com frequência a presunção de nada admitir acima de si leva a melhor, e eles arcam com a pena até que, tendo domado seu orgulho, se rendam por fim à evidência.
9. Quando vos afogastes, o que pensáveis que vos aconteceria? Que reflexões fizestes naquele momento? – R. Nenhuma; era o nada para mim. Vi depois que, não tendo sofrido toda a minha condenação, ainda ia sofrer muito.
10. Agora, estais bem convencido da existência de Deus, da alma e da vida futura? – R. Ah! Estou muito atormentado por isso!
11. Revistes vosso irmão? – R. Oh! não.
12. Por que isso? – R. Por que reunir nossos tormentos? Exilamo-nos na desgraça; ah, reunimo-nos na felicidade!
13. Ficaríeis contente de rever vosso irmão que poderíamos chamar aqui, ao vosso lado? – R. Não, não, sou desprezível demais.
14. Por que não quereis que o chamemos? – R. É que ele também não é feliz.
15. Receais vê-lo? Isso poderia apenas vos fazer bem. – R. Não; mais tarde.
16. Desejais dizer algo as vossos parentes? – R. Que orem por mim.
17. Parece que, na sociedade que frequentáveis, algumas pessoas compartilham das opiniões que tínheis durante a vida; teríeis algo a lhes dizer a esse respeito? – R. Ah! Infelizes! Que eles possam crer numa outra vida! É o que lhes posso desejar de mais feliz; se pudessem compreender minha triste posição, isso os faria refletir muito.
(Evocação do irmão do precedente, que professava as mesmas ideias, mas que não se suicidou. Embora infeliz, é mais calmo; sua letra é nítida e legível.)
18. Evocação. – R. Que o quadro de nossos sofrimentos possa ser para vós uma útil lição, e persuadir-vos de que uma outra vida existe, na qual se expiam as faltas, a incredulidade.
19. Encontrai-vos com vosso irmão que acabamos de chamar? – R. Não, ele me evita.
Observação: Poder-se-ia perguntar como os Espíritos podem evitar-se no mundo espiritual, onde não existem obstáculos materiais, nem refúgios escondidos à visão. Tudo é relativo nesse mundo, e em relação com a natureza fluídica dos seres que o habitam. Somente os Espíritos superiores têm percepções indefinidas; nos Espíritos inferiores, elas são limitadas, e para eles os obstáculos fluídicos têm o efeito de obstáculos materiais. Os Espíritos ocultam-se uns dos outros por um efeito de sua vontade que age sobre seu invólucro perispiritual e os fluidos ambientes. Mas a Providência, que vela sobre cada um individualmente, como sobre seus filhos, permite-lhes ou recusa-lhes essa faculdade de acordo com as disposições morais de cada um; segundo as circunstâncias, é uma punição ou uma recompensa.
20. Vós sois mais calmo do que ele; poderíeis dar-nos uma descrição mais precisa de vossos sofrimentos? – R. Na terra não sofreis no vosso amor próprio,no vosso orgulho, quando sois obrigados a reconhecer vossos erros? Vosso espírito não se revolta com o pensamento de vos humilhardes diante daquele que vos demonstra que estais errado? Pois bem! o que credes que sofre o Espírito que, durante toda uma existência, se persuadiu de que nada existe depois dele, de que ele tem razão contra todos? Quando repentinamente ele se encontra perante a deslumbrante verdade, fica aniquilado, humilhado. A isso vem juntar-se o remorso de ter podido durante tanto tempo esquecer a existência de um Deus tão bom, tão indulgente. Seu estado é insuportável; ele não encontra calma, nem repouso; só reencontrará um pouco de tranquilidade no momento em que a graça santa, ou seja, o amor de Deus, o tocar, pois o orgulho se apodera a tal ponto de nosso pobre espírito, que o envolve inteiramente, e ele precisa de bastante tempo para se desfazer dessa roupa fatal; somente a prece de nossos irmãos pode nos ajudar a nos livrarmos dela.
21. Quereis falar de vossos irmãos vivos ou Espíritos? – R. De ambos.
22. Enquanto conversávamos com vosso irmão, uma pessoa aqui presente orou por ele; essa prece lhe foi útil? – R. Ela não se perderá. Se ele repele a graça agora, isso voltará a ele, quando estiver em estado de recorrer a essa divina panaceia.
Observação: Vemos aqui um outro gênero de castigo, mas que não é o mesmo para todos os incrédulos; para esse Espírito, é a necessidade, independentemente do sofrimento, de reconhecer as verdades que renegara durante a vida. Suas ideias atuais denotam um certo progresso, comparativamente a outros Espíritos que persistem na negação de Deus. É já alguma coisa e um começo de humildade convir que se enganou. É mais do que provável que, em sua próxima encarnação, a incredulidade terá dado lugar ao sentimento inato da fé.
Tendo o resultado dessas duas evocações sido transmitido à pessoa que nos pedira para fazê-las, recebemos desta última a resposta seguinte:
“Não podeis acreditar, senhor, no grande bem produzido pela evocação de meu sogro e de meu tio. Reconhecemo-los perfeitamente; a letra do primeiro, sobretudo, tem uma analogia impressionante com a que ele tinha em vida, tanto mais que, durante os últimos meses que passou conosco, ela era entrecortada e indecifrável; acha-se aí a mesma forma das hastes, dos traços, e de certas letras. Quanto às palavras, às expressões e ao estilo, é ainda mais impressionante; para nós, a analogia é perfeita, a não ser porque ele está mais esclarecido sobre Deus, a alma e a eternidade que ele negava tão formalmente outrora. Estamos então perfeitamente convencidos de sua identidade; Deus será enaltecido por nossa crença mais firme no Espiritismo, e nossos irmãos,
Espíritos e vivos, tornar-se-ão melhores. A identidade de seu irmão não é menos evidente; com a imensa diferença do ateu para o crente, reconhecemos seu caráter, seu estilo, seu modo de construir as frases; uma palavra sobretudo nos impressionou, panaceia; era sua expressão habitual; ele a dizia e repetia a todos e a cada instante.
“Comuniquei essas duas evocações a várias pessoas, que ficaram impressionadas com sua veracidade; mas os incrédulos, aqueles que compartilham as opiniões de meus dois parentes, gostariam de ter tido respostas ainda mais categóricas: que o Sr. D..., por exemplo, precisasse o lugar onde foi enterrado, aquele onde se afogou, de que maneira agiu, etc. Para os satisfazer e convencer, não poderíeis evocá-lo de novo, e nesse caso, teríeis a bondade de lhe fazer as perguntas seguintes: onde e como ele realizou seu suicídio? – quanto tempo ficou debaixo d’água? – em que lugar seu corpo foi reencontrado? – em que lugar foi enterrado? – de que maneira, civil ou religiosa, se procedeu à sua inumação, etc.?
“Tende a bondade, peço-vos, de fazer responder categoricamente a essas perguntas que são essenciais para aqueles que ainda duvidam; estou persuadido do bem imenso que isso produzirá. Faço o possível para que minha carta vos chegue às mãos amanhã, sexta-feira, a fim de que possais fazer essa evocação na sessão da Sociedade que deve ocorrer nesse dia... etc.” Reproduzimos esta carta por causa do fato de identidade que ela constata; juntamos a resposta que lhe demos, para a instrução das pessoas que não estão familiarizadas com as comunicações de além-túmulo.
“... As perguntas que nos pedis para fazer de novo ao Espírito de vosso sogro são sem dúvida ditadas por uma louvável intenção, que é a de convencer incrédulos, pois, em vós, não se mistura aí nenhum sentimento de dúvida e de curiosidade; mas um conhecimento mais perfeito da ciência espírita vos teria feito compreender que elas são supérfluas. – Inicialmente, ao me pedir para fazer responder categoricamente vosso parente, ignorais talvez que não se governam os Espíritos segundo a nossa vontade; eles respondem quando querem, como querem, e muitas vezes como podem; sua liberdade de ação é ainda maior do que em vida, e têm mais meios de escapar à coerção moral que se gostaria de exercer sobre eles. As melhores provas de identidade são as que eles dão espontaneamente, por sua própria vontade, ou que nascem das circunstâncias, e na maior parte do tempo é em vão que se busca provocá-las. Vosso parente provou sua identidade de uma maneira irrecusável, na vossa opinião; então, é mais do que provável que ele recusaria responder a perguntas que com todo direito ele pode considerar como supérfluas, e feitas com vista a satisfazer a curiosidade de pessoas que lhe são indiferentes. Ele poderia responder, como fizeram muitas vezes outros Espíritos em semelhante caso: “ De que serve me perguntar coisas que sabeis?” Eu acrescentaria mesmo que o estado de perturbação e de sofrimento em que ele se encontra deve tornar-lhe penosas as pesquisas deste gênero; é absolutamente como se se quisesse obrigar um doente que mal pode pensar e falar, a contar os detalhes de sua vida; seria seguramente faltar ao respeito que se deve à sua posição. “Quanto ao resultado que esperáveis daí, ele seria nulo, ficai certo disso. As provas de identidade que foram fornecidas têm um valor bem maior, pelo próprio fato de serem espontâneas, e que nada podia indicar; se os incrédulos não estão satisfeitos, não o ficariam mais, talvez ainda menos, com perguntas previstas e que eles poderiam suspeitar serem de conivência. Há pessoas que nada pode convencer; ainda que vissem vosso parente em pessoa, diriam ser joguete de uma alucinação.
“Duas palavras ainda, senhor, sobre o pedido que me fazeis para evocar vosso parente no próprio dia em que eu devia receber vossa carta. As evocações não se fazem assim autoritariamente; os Espíritos nem sempre respondem ao nosso chamado; para isso é preciso que eles possam ou queiram fazê-lo; é preciso, ademais, um médium que lhes convenha, e que tenha a aptidão especial necessária; que esse médium esteja disponível num dado momento; que esse meio seja simpático ao Espírito, etc.; circunstâncias essas pelas quais jamais podemos responder, e que importa conhecer quando se quer fazer a coisa seriamente.”
Sr. Félicien
Era um homem rico, instruído, poeta espirituoso, de um caráter bom, cortês e afável, e de uma perfeita honradez. Especulações equívocas haviam comprometido sua fortuna; não lhe permitindo mais a idade restabelecê-la, ele cedeu ao desalento e suicidou-se em dezembro de 1864, enforcando-se em seu quarto. Não era um materialista nem um ateu, mas um homem de humor um tanto leviano, e preocupava-se pouco com a vida futura. Tendo-o conhecido intimamente, nós o evocamos quatro meses após a morte, por simpatia pela sua pessoa.
Evocação. – Tenho saudades da terra; tive aí decepções, mas menores do que aqui. Eu sonhava maravilhas, e estou abaixo da realidade ideal que tinha. O mundo dos Espíritos é bastante misturado, e para torná-lo suportável, seria preciso uma boa triagem. Custo a crer! Que esboços de costumes espíritas se poderiam fazer aqui! Balzac deveria estar a postos; trabalho não falta. Mas não o avistei; onde se encontram então esses grandes Espíritos que condenaram tão fortemente os vícios da humanidade? Eles deveriam, como eu, permanecer aqui algum tempo, antes de ir para regiões mais elevadas. É um pandemônio curioso que me agrada observar, e fico aqui.
Observação: Embora o Espírito declare encontrar-se numa sociedade muito misturada, e, por conseguinte, de Espíritos inferiores, sua linguagem surpreendia-nos, em razão de seu gênero de morte ao qual ele não faz
nenhuma alusão, pois de outro modo era bem o reflexo de seu caráter. Isso nos deixava algumas dúvidas sobre sua identidade.
P. Tende a bondade de nos dizer, por favor, como morrestes? – R. Como morri? Pela morte que eu escolhi; ela me agradou; meditei bastante tempo sobre aquela que devia escolher para me libertar da vida. E confesso que não ganhei
grande coisa com isso, a não ser ficar livre de minhas preocupações materiais, mas para reencontrar outras mais graves, mais penosas na minha posição de Espírito, cujo fim não prevejo.
P. (Ao guia do médium.) – Foi realmente o Espírito do Sr. Félicien que respondeu? Essa linguagem quase descuidada nos espanta num suicida. – R. Sim; mas por um sentimento desculpável na sua posição, e que compreendereis, ele não queria revelar seu gênero de morte ao médium, é por isso que fez frases: ele acabou por confessá-lo, levado por vossa pergunta
direta, mas está muito afetado por isso. Ele está sofrendo muito por se ter suicidado, e afasta tanto quanto pode tudo o que lhe recorda esse fim funesto.
P. (Ao Espírito.) – Vossa morte afetou-nos tanto mais quanto prevíamos suas tristes consequências para vós, e em razão, sobretudo, da estima e da afeição que vos tínhamos. Pessoalmente, não me esqueci de quanto fostes bom e cortês para mim. Ficaria feliz de vos testemunhar meu reconhecimento, se puder fazer algo que vos seja útil.
– R. E, no entanto, eu não podia escapar de outra maneira às dificuldades de minha posição material. Agora não preciso senão de orações; orai, sobretudo, para que eu seja libertado dos horríveis companheiros que estão perto de mim e que me obsidiam com seus risos, gritos e zombarias infernais. Eles me chamam covarde e têm razão; é covardia deixar a vida. É a quarta vez que eu sucumbo a essa prova. No entanto, eu prometera a mim mesmo não falhar... Fatalidade!... Ah! Orai! Que suplício o meu! Sou bem desgraçado! Fareis bem mais por mim orando, do que eu fiz por vós, quando estava na Terra; mas a prova em que falhei tantas vezes se ergue diante de mim em traços inapagáveis; é preciso que eu a suporte de novo num dado tempo; terei força para isso? Ah! Recomeçar tantas vezes a vida! Lutar tanto tempo e ser arrastado, pelos acontecimentos, a sucumbir contra vontade, é desesperador, mesmo aqui! É por isso que preciso de força. Extrai-se força da prece, ao que se diz: orai por mim; quero orar também. Observação: Este caso particular de suicídio, embora executado em circunstâncias muito corriqueiras, apresenta-se, porém, numa fase especial. Ele nos mostra um Espírito que sucumbiu várias vezes a essa prova que se renova a cada existência e renovar-se-á enquanto ele não tiver a força de resistir a ela.
É a confirmação deste princípio que, quando o objetivo de aperfeiçoamento para o qual nos encarnamos não é alcançado, nós sofremos sem proveito, pois cabenos recomeçar até que saiamos vitoriosos da luta. Ao Espírito do Sr. Félicien.
– Escutai, peço-vos, o que vos vou dizer, e tende a bondade de meditar sobre minhas palavras. O que chamais fatalidade não é outra coisa senão vossa própria fraqueza, pois não há fatalidade, de outro modo o homem não seria responsável pelos seus atos. O homem é sempre livre, e esse é seu mais belo privilégio; Deus não quis fazer dele uma máquina agindo e obedecendo às cegas. Se essa liberdade o torna falível, ela o torna também perfectível, e não é senão pela perfeição que ele chega à felicidade suprema. Unicamente seu orgulho o leva a acusar o Destino de suas desgraças na Terra, ao passo que, quase sempre, é apenas à sua própria incúria que elas se devem. Vós sois um exemplo notório em vossa última existência; tínheis tudo o que é preciso para ser feliz segundo o mundo: espírito, talento, fortuna, consideração merecida; não tínheis vícios ruinosos, e, pelo contrário, qualidades estimáveis; como vossa posição se viu tão radicalmente comprometida?
Unicamente por vossa imprevidência. Convinde que se tivésseis agido com mais prudência, se tivésseis sabido vos contentar com a bela parte que tínheis, em vez de procurar aumentá-la sem necessidade, não vos teríeis arruinado. Portanto, não havia nenhuma fatalidade, visto que podíeis evitar o que ocorreu. Vossa prova consistia num encadeamento de circunstâncias que deviam dar-vos, não a necessidade, mas a tentação do suicídio; infelizmente para vós, apesar de vosso espírito e vossa instrução, não soubestes dominar essas circunstâncias, e carregais a pena de vossa fraqueza. Essa prova, assim como o pressentis com razão, deve ainda se renovar; em vossa próxima existência, sereis alvo de acontecimentos que provocarão de novo o pensamento do suicídio, e ocorrerá o mesmo até que tenhais triunfado. Longe de acusar o destino, que é vossa própria obra, admirai a bondade de Deus que, em vez de vos condenar irremediavelmente por um primeiro erro, vos oferece sem cessar os meios de repará-lo. Sofrereis, portanto, não eternamente, mas enquanto a reparação não tiver ocorrido. Depende de vós tomar, no estado de Espírito, resoluções tão enérgicas, exprimir a Deus um arrependimento tão sincero, solicitar com tanto empenho o apoio dos bons Espíritos, que chegueis à Terra protegido contra todas as tentações. Uma vez obtida essa vitória, caminhareis pela via da felicidade com tanto mais rapidez quanto, noutros aspectos, vosso avanço já é muito grande. Portanto, é ainda um passo a transpor; nós vos ajudaremos com nossas preces, mas elas seriam impotentes se não nos secundásseis com vossos esforços.
R. Obrigado, oh! obrigado por vossas boas exortações, precisava muito delas, pois sou mais infeliz do que queria mostrar. Vou tirar proveito delas, asseguro-vos, e preparar-me para minha próxima encarnação na qual farei desta vez de modo a não sucumbir. Estou ansioso por sair do ignóbil meio a que estou relegado aqui.
Antoine Bell
Contador numa casa bancária no Canadá; suicidou-se em 28 de fevereiro de 1865. Um de nossos correspondentes, médico e farmacêutico na mesma cidade, deu-nos a respeito dele as informações seguintes:
“Eu conhecia Bell há mais de vinte anos. Era um homem inofensivo e pai de uma família numerosa. Há algum tempo, ele imaginara ter comprado veneno na minha loja e que o usara envenenando alguém. Viera muitas vezes me suplicar que lhe dissesse em que época eu lho vendera, e entregava-se então a delírios terríveis. Perdia o sono, acusava-se, batia no peito. Sua família vivia numa ansiedade contínua, das quatro horas da tarde até nove horas da manhã, momento em que ele ia à casa bancária onde mantinha seus livros de uma maneira muito regular, sem nunca cometer um único erro. Ele tinha o costume de dizer que um ser que ele sentia em si lhe fazia manter a contabilidade com ordem e regularidade. No momento em que parecia estar convencido do absurdo de seus pensamentos, exclamava: “Não, não, quereis enganar-me... eu me recordo ... isso é verdade.”
Antoine Bell foi evocado em Paris, em 17 de abril de 1865, a pedido de seu amigo.
1. Evocação. – O que quereis de mim? Fazer-me um interrogatório? É inútil, confessarei tudo.
2. Está longe de nosso pensamento querer vos atormentar com perguntas indiscretas; desejamos somente saber qual é vossa posição no mundo em que estais, e se podemos vos ser úteis. – R. Ah! Se pudésseis, ficar-vos-ia muito agradecido! Tenho horror de meu crime, e sou bem desgraçado!
3. Nossas preces, temos esperança disso, amenizarão vosso sofrimento. Vós nos pareceis, além disso, em boas condições; estais arrependido, e o arrependimento é já um começo de reabilitação. Deus, que é infinitamente misericordioso, sempre tem compaixão do pecador arrependido. Orai conosco. (Aqui, dissemos a prece pelos suicidas, que se encontra no Evangelho segundo o Espiritismo.)
Agora, tende a bondade de nos dizer de que crime vos reconheceis culpado. Essa confissão feita com humildade ser-vos-á levada em conta. – R. Deixai-me primeiro agradecer-vos pela esperança que acabais de fazer nascer no meu coração. Infelizmente, há muito tempo já, eu vivia numa cidade cujas muralhas eram banhadas pelo mar do Sul. Eu amava uma bela e jovem garota que correspondia ao meu amor; mas eu era pobre, e fui repelido pela família dela. Ela me anunciou que ia desposar o filho de um negociante cujo comércio se estendia além dos dois mares, e eu fui mandado embora. Louco de dor, decidi matar-me, depois de ter saciado minha vingança assassinando meu rival execrado. No entanto, os meios violentos me repugnavam; eu tremia à ideia desse crime, mas meu ciúme levou a melhor. Na véspera do dia em que minha bem-amada devia ser dele, ele morreu envenenado pelos meus cuidados, achando eu esse meio mais fácil. Assim se explicam essas reminiscências do passado. Sim, eu já vivi, e é preciso que reviva ainda... Ó meu Deus, tende compaixão da minha fraqueza e das minhas lágrimas.
4. Deploramos essa desgraça que retardou o vosso avanço, e lamentamos-vos sinceramente; mas, visto que vos arrependeis, Deus terá compaixão de vós. Dizei-nos, por favor, se executastes o vosso projeto de suicídio. – R. Não; para minha vergonha, confesso que a esperança me voltou ao coração, queria gozar do prêmio do meu crime; mas os remorsos me traíram; expiei pelo último suplício aquele momento de desvario: fui enforcado.
5. Tínheis consciência dessa má ação em vossa última existência? – R. Nos últimos anos de minha vida unicamente, e eis como. Eu era bom por natureza; depois de ter sido submetido, como todos os Espíritos homicidas, ao tormento da visão contínua de minha vítima que me perseguia como um remorso vivo, fui libertado muitíssimos anos mais tarde pelas minhas preces e meu arrependimento. Recomecei mais uma vez a vida, a última, e atravessei-a pacífico e temeroso. Tinha em mim uma vaga intuição da minha fraqueza nativa e da minha falta anterior cuja recordação latente eu conservara. Mas um Espírito obsessor e vingativo, que não é outro senão o pai da minha vítima, não teve grande dificuldade em tomar conta de mim, e fazer reviver no meu coração, como num espelho mágico, as recordações do passado. Influenciado alternadamente por ele e pelo guia que me protegia, eu era o envenenador, ou o pai de família que ganhava o pão de seus filhos pelo seu trabalho. Fascinado por esse demônio obsessor, ele me impeliu ao suicídio. Sou muito culpado, é verdade, mas menos, não obstante, do que se tivesse resolvido eu mesmo fazê-lo. Os suicidas da minha categoria, e que são demasiado fracos para resistir aos Espíritos obsessores, são menos culpados e menos punidos do que aqueles que se matam devido unicamente ao seu livre-arbítrio. Orai comigo pelo Espírito que me influenciou tão fatalmente, a fim de que ele abdique de seus sentimentos de vingança, e orai também por mim, a fim de que eu adquira a força e a energia necessárias para não fraquejar na prova de suicídio por livre vontade à qual serei submetido, dizem-me, na minha próxima encarnação.
6. Ao guia do médium. – Um Espírito obsessor pode realmente impelir ao suicídio? – R. Seguramente, pois a obsessão que, em si mesma, é um gênero de prova, pode revestir todas as formas; mas não é uma desculpa. O homem tem sempre seu livre-arbítrio, e, por conseguinte, é livre para ceder ou resistir às sugestões das quais é alvo; quando sucumbe é sempre pelo fato da sua vontade. O Espírito tem razão, além disso, quando diz que aquele que comete o mal por instigação de um outro é menos repreensível e menos punido do que quando o comete por seu próprio movimento; mas não é inocentado, porque, a partir do momento em que se deixa desviar do caminho reto, é porque o bem não está suficientemente bem enraizado nele.
7. Como explicar que, apesar da prece e do arrependimento que haviam libertado este Espírito do tormento que ele experimentava pela visão de sua vítima, ele tenha sido ainda perseguido pela vingança do Espírito obsessor na sua última encarnação? – R. O arrependimento, como sabeis, não é senão o preliminar indispensável da reabilitação, mas ele não basta para libertar o culpado de toda pena; Deus não se contenta com promessas; é preciso provar, pelos seus atos, a solidez do retorno ao bem; é por isso que o Espírito é submetido a novas provas que o fortalecem, ao mesmo tempo que elas o fazem adquirir um mérito a mais quando sai delas vitorioso. Ele é alvo das perseguições dos maus Espíritos, até que estes o sintam suficientemente forte para lhes resistir; então eles o deixam em paz, porque sabem que suas tentativas seriam inúteis.
Observação: Estes dois últimos exemplos nos mostram a mesma prova se renovando a cada encarnação, por tanto tempo quanto se sucumbir a ela. Antoine Bell nos mostra, ademais, o fato não menos instrutivo de um homem perseguido pela recordação de um crime cometido numa existência anterior, como um remorso e um aviso. Vemos por aí que todas as existências são solidárias umas das outras; a justiça e a bondade de Deus declaram-se na faculdade que ele deixa ao homem de se aperfeiçoar gradualmente, sem nunca lhe fechar a porta do resgate de suas faltas; o culpado é punido por sua própria falta, e a punição, em vez de ser uma vingança de Deus, é o meio empregado para fazê-lo progredir.
Capítulo VI - Criminosos arrependidos
Verger.
Assassino do arcebispo de Paris.
No dia 3 de janeiro de 1857, Monsenhor Sibour, arcebispo de Paris, ao sair da igreja de Saint-Étienne du Mont, foi golpeado mortalmente por um jovem padre chamado Verger. O culpado foi condenado à morte e executado no dia 30 de janeiro. Até o último momento não manifestou pesar, nem arrependimento, nem sensibilidade.
Evocado no próprio dia de sua execução, deu as seguintes respostas:
1. Evocação. – R. Estou ainda retido no meu corpo.
2. Vossa alma não está inteiramente desprendida de vosso corpo? – R. Não... tenho medo... não sei... Aguardai que eu me reconheça... não morri, não é?
3. Arrependeis-vos do que fizestes? – R. Cometi um erro matando; mas fui impelido a isso pelo meu caráter que não podia aguentar as humilhações... Vós me evocareis uma outra vez.
4. Por que quereis ir já embora? – R. Eu teria demasiado medo se o visse; temeria que ele me fizesse o mesmo.
5. Mas não tendes nada a temer visto que vossa alma está separada do vosso corpo; bani toda preocupação: ela não é sensata. – R. Que quereis! Vós sois sempre senhor das vossas impressões? ... não sei onde estou... estou louco.
6. Tentai sossegar. – R. Não posso, visto que estou louco. Esperai! Vou apelar para toda a minha lucidez.
7. Se orásseis, isso poderia vos ajudar a concentrar vossas ideias? – R. Temo... não ouso rezar.
8. Orai, a misericórdia de Deus é grande! Nós vamos orar convosco. – R. Sim, a misericórdia de Deus é infinita; sempre acreditei nisso.
9. Agora, dais-vos melhor conta de vossa posição? – R. É tão extraordinário que ainda não consigo me dar conta.
10. Vedes a vossa vítima? – R. Parece-me ouvir uma voz que se assemelha à dela, e que me diz: Não te quero mal... mas é um efeito da minha imaginação!... Estou louco, afirmo-vos, pois vejo meu próprio corpo de um lado e minha cabeça do outro... e no entanto parece-me que estou vivo, mas no espaço, entre a terra e o que vós chamais o céu... Sinto mesmo o frio de uma faca caindo sobre o meu pescoço... mas é o medo que tenho de morrer.... parece-me que vejo inúmeros Espíritos à minha volta, me olhando com compaixão... eles conversam comigo, mas não os compreendo.
11. Entre esses Espíritos há um cuja presença vos humilha por causa do vosso crime? – R. Eu vos direi que não há senão um que eu temo, é aquele que eu abati.
12. Lembrais-vos de vossas existências anteriores? – R. Não, estou no vago... creio sonhar... mais uma vez; é preciso que eu me reconheça.
13. (Três dias mais tarde.) Reconheceis-vos melhor agora? – R. Sei agora que não sou mais deste mundo, e não o lamento. Lamento o que fiz, mas meu Espírito está mais livre; sei melhor que há uma série de existências que nos dão os conhecimentos úteis para nos tornar perfeitos tanto quanto o pode a criatura.
14. Sois punido pelo crime que cometestes? – R. Sim; lamento o que fiz e sofro por isso.
15. De que maneira sois punido? – R. Sou punido, pois reconheço minha falta e peço perdão a Deus por ela; sou punido pela consciência da minha falta de fé em Deus, e porque sei agora que não devemos cortar os dias de nossos irmãos; sou punido pelo remorso de ter retardado meu avanço perdendo-me, e não ter escutado o grito da minha consciência que me dizia que não era matando que eu chegaria ao meu objetivo; mas eu me deixei dominar pelo orgulho e o ciúme; enganei-me e arrependo-me, pois o homem deve sempre esforçar-se para dominar suas más paixões, e eu não o fiz.
16. Que sentimento experimentais quando vos evocamos? – R. Um prazer e um temor, pois não sou mau.
17. Em que consistem esse prazer e esse temor? – R. Prazer de conversar com os homens, e de poder em parte reparar minha falta confessando-a. Temor que eu não poderia definir, uma espécie de vergonha de ter sido homicida.
18. Gostaríeis de reencarnar nesta terra? – R. Sim, peço isso, e desejo me encontrar constantemente ameaçado de ser morto e ter medo disso. Sendo evocado Monsenhor Sibour, disse que perdoava a seu assassino e rezava pelo seu retorno ao bem. Acrescentou que, embora presente, não se mostrara a ele para não lhe aumentar o sofrimento; o temor de vê-lo, sinal de remorso, já era um castigo.
P. O homem que comete um homicídio sabe, ao escolher sua existência, que se tornará assassino? – R. Não; ele sabe que, escolhendo uma vida de luta, há para ele probabilidade de matar um de seus semelhantes; mas ignora se o fará, pois quase sempre houve nele a luta.
Observação: A situação de Verger, no momento de sua morte, é a de quase todos os que perecem por morte violenta. Como não se opera a separação da alma de uma maneira brusca, eles ficam como que aturdidos e não sabem se estão mortos ou vivos. A visão do arcebispo é-lhe poupada, porque não era necessária para excitar nele o remorso, ao passo que outros, ao contrário, são constantemente perseguidos pelos olhares de suas vítimas.
À enormidade de seu crime, Verger acrescentara o fato de não se ter arrependido dele antes de morrer; estava, portanto, em todas as condições requeridas para incorrer na condenação perpétua. No entanto, mal deixou a terra e o arrependimento penetra sua alma; repudia seu passado e pede sinceramente para repará-lo. Não é o excesso dos sofrimentos que o impele, visto que ainda não teve tempo de sofrer; é, portanto, unicamente o grito de sua consciência que ele não escutou durante a vida e que ouve agora. Então, por que isso não lhe seria creditado? Por que, a alguns dias de distância, o que o teria salvado do inferno não poderia mais fazê-lo? Por que Deus, que teria sido misericordioso antes da morte, seria sem compaixão algumas horas mais tarde? Poderia espantar a rapidez da mudança que se opera às vezes nas ideias de um criminoso endurecido até o último momento, e ao qual a passagem para a outra vida basta para lhe fazer compreender a iniquidade de sua conduta. Esse efeito está longe de ser geral, sem isso não haveria maus Espíritos; o arrependimento é frequentemente muito tardio, assim a pena é prolongada em decorrência disso.
A obstinação no mal durante a vida é por vezes uma consequência do orgulho que recusa dobrar-se e confessar seus erros; depois o homem está sob a influência da matéria que lança um véu sobre suas percepções espirituais, e o fascina. Caído esse véu, uma luz súbita o ilumina, e ele fica como que desembriagado. O pronto retorno a melhores sentimentos é sempre indício de um certo progresso moral realizado que não pede senão uma circunstância favorável para se revelar, ao passo que aquele que persiste no mal mais ou menos tempo após a morte, é incontestavelmente um Espírito mais atrasado, no qual o instinto material asfixia o germe do bem, e que precisará ainda de novas provas para se emendar.
Lemaire
Condenado à pena de morte pelo tribunal de Aisne, e executado em 31 de dezembro de 1857; evocado em 29 de janeiro de 1858.
1. Evocação. – R. Estou aqui.
2. Que sentimento experimentais à nossa visão? – R. De vergonha.
3. Conservastes vosso conhecimento até o último momento? – R. Sim.
4. Imediatamente após a vossa execução, tivestes conhecimento de vossa nova existência? – R. Eu estava mergulhado numa perturbação imensa da qual ainda não saí. Senti uma imensa dor, e pareceu-me que meu coração a sofria. Vi rolar não sei o quê ao pé do cadafalso; vi correr sangue, e minha dor só foi mais lancinante. P. - Era uma dor puramente física, análoga à que fosse causada por um ferimento grave, pela amputação de um membro, por exemplo? – R. Não; imaginai um remorso, uma grande dor moral. P. - Quando começastes a sentir essa dor? – R. Assim que fiquei livre.
5. A dor física causada pelo suplício era sentida pelo corpo ou pelo Espírito? – R. A dor moral estava no meu espírito; o corpo sentiu a dor física; mas o Espírito separado ainda se ressentia dela.
6. Vistes vosso corpo mutilado? – R. Vi algo de informe que me parecia não ter deixado; porém, eu me sentia ainda inteiro: era eu mesmo. – P. Que impressão essa visão vos fez? – R. Eu sentia demasiado a minha dor; estava perdido nela.
7. É verdade que o corpo vive ainda alguns instantes depois da decapitação, e que o supliciado tem consciência de suas ideias? – R. O Espírito retira-se pouco a pouco; quanto mais os laços da matéria o prendem, menos a separação é rápida.
8. Diz-se ter notado no rosto de certos supliciados a expressão da cólera e movimentos como se eles quisessem falar; é efeito de uma contração nervosa ou de um ato da vontade? – R. Da vontade; pois o Espírito ainda não se retirou dali.
9. Qual foi o primeiro sentimento que experimentastes ao entrardes na vossa nova existência? – R. Um intolerável sofrimento; uma espécie de remorso lancinante cuja causa eu ignorava.
10. Encontrastes-vos reunido a vossos cúmplices executados ao mesmo tempo que vós? – R. Para nossa desgraça; nossa visão é um suplício contínuo; cada um de nós recrimina ao outro o seu crime.
11. Encontrais as vossas vítimas? – R. Eu as vejo... elas são felizes... seu olhar me persegue... eu o sinto mergulhar até o fundo de meu ser... em vão quero fugir dele. - P. Que sentimento experimentais ao vê-las? – R. Vergonha e remorso. Elevei-as com minhas próprias mãos, e ainda as odeio. – P. Que sentimento elas experimentam à vossa visão? – R. Compaixão.
12. Elas têm ódio e desejo de vingança? – R. Não; seus desejos chamam sobre mim a expiação. Não poderíeis sentir que horrível suplício é dever tudo a quem se odeia.
13. Lamentais a vida terrestre? – R. Não lamento senão meus crimes. Se o acontecimento ainda estivesse nas minhas mãos, eu já não sucumbiria.
14. A inclinação para o mal estava na vossa natureza, ou fostes arrastado pelo meio em que vivestes? – R. A inclinação ao crime estava na minha natureza, pois não era senão um Espírito inferior. Eu quis me elevar rapidamente; mas pedi acima de minhas forças. Acreditei ser forte, escolhi uma prova rude; cedi às tentações do mal.
15. Se tivésseis recebido bons princípios de educação, poderíeis ter sido desviado da vida criminosa? – R. Sim; mas eu escolhi a posição em que nasci. P. – Poderíeis ter sido um homem de bem? – R. Um homem fraco, incapaz do bem como do mal. Eu podia corrigir o mal de minha natureza durante minha existência, mas não me podia elevar até fazer o bem.
16. Durante a vida, acreditáveis em Deus? – R. Não. - P. Porém, diz-se que no momento de morrer vós vos arrependestes; é verdade? – R. Acreditei num Deus vingador... tive medo da sua justiça. - P. Neste momento, vosso arrependimento é mais sincero? – R. Infelizmente, vejo o que fiz. – P. O que pensais de Deus agora? – R. Eu sinto-o e não o compreendo.
17. Achais justo o castigo que vos foi infligido na terra? – R. Sim.
18. Esperais obter perdão de vossos crimes? – R. Não sei. – P. Como esperais fazê-los esquecer? – R. Por novas provas; mas parece-me que a eternidade está entre mim e elas.
19. Onde estais agora? – R. Estou no meu sofrimento. – Nós vos perguntamos em que lugar estais. – R. Perto do médium.
20. Já que estais aqui, se vos pudéssemos ver, em que forma corporal nos apareceríeis? – R. Na minha forma corporal: a cabeça separada do tronco. – P. Poderíeis aparecer-nos? – R. Não; deixai-me.
21. Poderíeis dizer-nos como vos evadistes da prisão de Montdidier? – R. Não sei mais... meu sofrimento é tão grande, que só tenho a recordação do crime... Deixai-me.
22. Poderíamos trazer algum alívio aos vossos sofrimentos? – R. Fazei votos para que a expiação chegue.
Benoist
(Bordeaux, março de 1862.)
Um Espírito apresenta-se espontaneamente ao médium, sob o nome de Benoist, diz ter morrido em 1704 e suportar horríveis sofrimentos.
1. O que éreis durante a vida? – R. Monge sem fé.
2. A falta de crença é vossa única falta? – R. Basta para acarretar as outras.
3. Podeis dar-nos alguns detalhes sobre a vossa vida? A sinceridade de vossas confissões vos será tida em conta. – R. Sem fortuna e preguiçoso, ordenei-me, não por vocação, mas para ter uma posição. Inteligente, consegui obter um lugar; influente, abusei do poder; vicioso, arrastei para a dissipação aqueles que tinha por missão salvar; duro, persegui aqueles que pareciam condenar meus excessos; os in pace foram preenchidos pelos meus cuidados. A fome torturou muitas vítimas; seus gritos se extinguiram muitas vezes sob a violência. Desde então, expio e sofro todas as torturas do inferno; minhas vítimas atiçam o fogo que me devora. A luxúria e a fome insaciadas me perseguem; a sede irrita meus lábios ardentes sem jamais deixar cair aí uma gota refrescante; todos os elementos se encarniçam contra mim. Orai por mim.
4. As preces que se fazem pelos finados devem ser-vos atribuídas como aos outros? – R. Credes que elas sejam muito edificantes? Elas têm para mim o valor daquelas que eu parecia fazer. Não cumpri minha tarefa, dela não encontro o salário.
5. Nunca vos arrependestes? – R. Há muito tempo; mas ele só veio depois do sofrimento. Como fui surdo aos gritos de vítimas inocentes, o Senhor é surdo aos meus gritos. Justiça!
6. Vós reconheceis a justiça do Senhor; confiai-vos à sua bondade e chamai-o em vosso auxílio. – R. Os demônios urram mais alto do que eu; os gritos asfixiam na minha garganta; enchem minha boca de piche fervendo!... Eu o fiz, grande... (O Espírito não pode escrever a palavra Deus.)
7. Não estais já suficientemente separado das ideias terrestres para compreender que as torturas que suportais são todas morais? – R. Eu as suporto, sinto-as, vejo meus carrascos; eles têm todos uma aparência conhecida; têm todos um nome que ressoa no meu cérebro.
8. O que podia vos impelir a todas essas infâmias? – R. Os vícios de que estava imbuído; a brutalidade das paixões.
9. Nunca implorastes a assistência dos bons Espíritos para vos ajudar a sair dessa posição? – R. Não vejo senão os demônios do inferno.
10. Tínheis medo deles enquanto vivo? – R. Não, nada; o nada era minha fé; os prazeres a todo preço eram meu culto. Divindades do inferno não me abandonaram; consagrei-lhes a minha vida, elas não me deixarão mais!
11. Não entrevedes um fim para vossos sofrimentos? – R. O infinito não tem fim.
12. Deus é infinito na sua misericórdia; tudo pode ter um fim quando ele o quer. – R. Se ele pudesse querer!
13. Por que viestes vos inscrever aqui? – R. Não sei como; mas quis falar, como gostaria de gritar para me aliviar.
14. Vossos demônios não vos impedem de escrever? – R. Não, mas estão à minha frente, ouvem-me; é por isso que não gostaria de acabar.
15. É a primeira vez que escreveis assim? – R. Sim. – P. Sabíeis que os Espíritos podiam se aproximar assim dos homens? – R. Não. – P. Então como pudestes compreendê-lo? – R. Não sei.
16. O que sentistes para vir perto de mim? – R. Um amortecimento nos meus terrores.
17. Como vos apercebestes que estáveis aqui? – R. Como quando acordamos.
18. Como fizestes para vos pordes em contato comigo? – R. Não compreendo; tu não sentiste?
19. Não se trata de mim, mas de vós; tentai dar-vos conta do que fazeis neste momento enquanto escrevo. – R. Tu és meu pensamento, eis tudo.
20. Não tivestes então a vontade de me fazer escrever? – R. Não, sou eu que escrevo, tu pensas por mim.
21. Tentai vos dar conta; os bons Espíritos que nos cercam vos ajudarão. – R. Não, os anjos não vêm ao inferno. Não estás sozinha? – P. Vede à vossa volta. – R. Sinto que me ajudam a pensar em ti... tua mão me obedece... não te toco, e tenho-te... não compreendo.
22. Pedi a assistência de vossos protetores; vamos orar juntos. – R. Queres deixar-me? Fica comigo; eles vão retomar-me. Peço-te, fica! Fica!
23. Não posso ficar mais tempo. Voltai todos os dias; oraremos juntos e os bons Espíritos vos ajudarão. – R. Sim, eu quero minha graça. Pedi por mim; eu não posso.
O guia do médium. Coragem, minha filha; ser-lhe-á concedido o que tu pedes, mas a expiação está longe de terminar. As atrocidades que ele cometeu são sem nome e sem número, e é tanto mais culpado quanto tinha a inteligência, a instrução e o esclarecimento para se guiar. Falhou, portanto, com conhecimento de causa; assim, seus sofrimentos são terríveis; mas com o auxílio e o exemplo da prece eles se abrandarão, porque ele verá o fim possível, e a esperança o apoiará. Deus o vê no caminho do arrependimento, e fez-lhe a graça de poder se comunicar a fim de que seja encorajado e apoiado. Pensa então frequentemente nele; deixamos-te para fortalecê-lo nas boas resoluções que ele poderá tomar, ajudado pelos teus conselhos. O arrependimento será seguido pelo desejo de reparação; é então que ele mesmo pedirá uma nova existência na terra para praticar o bem em vez do mal que fez, e quando Deus estiver satisfeito com ele, e o vir bem fortalecido, far-lhe-á entrever as divinas claridades que o levarão ao porto de salvação, e recebê-lo-á em seu seio como o filho pródigo. Confia, ajudar-te-emos a realizar tua obra.
PAULIN.
Colocamos este Espírito entre os criminosos, embora ele não tenha sido atingido pela justiça humana, porque o crime consiste nos atos, e não no castigo infligido pelos homens. Ocorre o mesmo com o próximo.
O Espírito de Castelnaudary
Numa casinha, perto de Castelnaudary, havia barulhos estranhos e diversas manifestações que a faziam considerar como assombrada por algum gênio mau. Por esse fato, ela foi exorcizada em 1848, sem resultado. O proprietário, Sr. D..., que quis aí morar, morreu nela subitamente alguns anos depois; seu filho, que quis morar aí em seguida, recebeu, um dia, entrando num dos cômodos, uma vigorosa bofetada dada por uma mão desconhecida; como estava perfeitamente sozinho, não pôde duvidar de que não viesse de uma fonte oculta, e por isso decidiu deixá-la definitivamente. Há, na região, uma tradição segundo a qual um grande crime teria sido cometido nessa casa.
Tendo o Espírito que dera a bofetada sido evocado na Sociedade de Paris, em 1859, manifestou-se por sinais de violência; todos os esforços para acalmá-lo foram impotentes. São Luís, interrogado a seu respeito, respondeu: “É um Espírito da pior espécie, um verdadeiro monstro; nós o fizemos vir, mas não pudemos coagi-lo a escrever, apesar de tudo o que lhe foi dito; ele tem seu livrearbítrio: o infeliz faz dele um triste uso.”
P. Esse Espírito é capaz de aperfeiçoamento? – R. Por que não? Não o são todos, esse como os outros? É preciso, entretanto, esperar encontrar dificuldades; mas, por mais perverso que ele seja, o bem, retribuído pelo mal acabará por tocá-lo. Orai primeiro, e evocai-o daqui a um mês, e podereis julgar a mudança que se terá operado nele.
O Espírito evocado de novo mais tarde mostra-se mais tratável, depois pouco a pouco submisso e arrependido. Das explicações fornecidas por ele e por outros Espíritos, resulta que em 1608 ele morava naquela casa, onde assassinara o irmão por suspeita de ciumenta rivalidade golpeando-o na garganta enquanto ele dormia, e alguns anos depois, aquela que fizera sua mulher, após a morte do irmão. Morreu em 1659 com a idade de oitenta anos, sem ter sido perseguido por esses homicídios, aos quais se prestava pouca atenção naqueles tempos de confusão. Desde sua morte, não cessara de fazer o mal, e provocara vários dos acidentes ocorridos naquela casa. Um médium vidente que assistia à primeira evocação viu-o no momento em que se quis fazêlo escrever; ele sacudia fortemente o braço do médium: seu aspecto era apavorante; vestia uma camisa coberta de sangue, e segurava um punhal.
1. P. A São Luís. Tende a bondade de nos descrever o gênero de suplício desse Espírito. – R. É atroz para ele; foi condenado a permanecer na casa onde o crime foi cometido, sem poder dirigir seu pensamento para outra coisa que não esse crime, sempre diante de seus olhos, e ele se crê condenado a essa tortura por toda a eternidade. Ele se vê constantemente no momento em que cometeu seu crime; toda outra recordação lhe é retirada, e toda comunicação com um outro Espírito, proibida; não pode, na terra, ficar senão nessa casa, e se estiver no espaço, fica nas trevas e na solidão.
2. Haveria um meio de desalojá-lo, e qual seria? – R. Se vos quiserdes livrar das obsessões de semelhantes Espíritos, isso é fácil orando por eles: é o que sempre se negligencia de fazer. Prefere-se assustá-los com fórmulas de exorcismo que os divertem muito.
3. Dando às pessoas interessadas a ideia de orar por ele, e orando nós mesmos, seria possível desalojá-lo? – R. Sim, mas notai que eu disse orar, e não mandar rezar.
4. Faz dois séculos que ele está nessa situação; ele aprecia esse tempo como se estivesse vivo; ou seja, o tempo lhe parece tão longo ou menos longo do que se estivesse vivo? – R. Parece-lhe mais longo: o sono não existe para ele.
5. Foi-nos dito que para os Espíritos o tempo não existe, e que, para eles, um século é um ponto na eternidade; então não é o mesmo para todos? – R. Não, certamente, não é assim a não ser para os Espíritos que chegaram a um grau muito elevado de avanço; mas para os Espíritos inferiores, o tempo é por vezes bastante longo, sobretudo quando sofrem.
6. De onde vinha esse Espírito antes de sua encarnação? – R. Ele tivera uma existência entre as hordas mais ferozes e mais selvagens, e anteriormente vinha de um planeta inferior à terra.
7. Esse Espírito é punido bem severamente pelo crime que cometeu; se viveu entre hordas bárbaras, deve ter aí cometido atos não menos atrozes do que o último; foi punido da mesma maneira? – R. Foi menos punido, porque, mais ignorante, compreendia menos o seu alcance.
8. O estado em que se encontra esse Espírito é o dos seres vulgarmente chamados danados? – R. Absolutamente; e há outros bem mais aterrorizantes ainda. Os sofrimentos estão longe de ser os mesmos para todos, mesmo para crimes semelhantes, pois eles variam segundo o culpado seja mais ou menos acessível ao arrependimento. Para este, a casa onde cometeu seu crime é seu inferno; outros carregam-no em si, pelas paixões que os atormentam e que não podem saciar.
9. Este Espírito, apesar de sua inferioridade, sente os bons efeitos da prece; vimos a mesma coisa em outros Espíritos igualmente perversos e da natureza mais bruta; como explicar que Espíritos mais esclarecidos, de uma inteligência mais desenvolvida, mostrem uma ausência completa de bons sentimentos; que riam de tudo o que há de mais sagrado; numa palavra, que nada os toque, e que não haja nenhuma trégua em seu cinismo? – R. A prece não tem efeito a não ser em favor do Espírito que se arrepende; aquele que, impelido pelo orgulho, se revolta contra Deus e persiste em desvarios exagerando-os ainda, como fazem infelizes Espíritos, sobre esses a prece nada pode, e nada poderá senão no dia em que uma centelha de arrependimento se tiver manifestado neles. A ineficácia da prece é ainda para eles um castigo; esta alivia apenas aqueles que não estão inteiramente endurecidos.
10. Quando se vê um Espírito inacessível aos bons efeitos da prece, é uma razão para se abster de orar por ele? – R. Não, sem dúvida, pois cedo ou tarde ela poderá vencer seu endurecimento e fazer germinar nele pensamentos salutares.
Observação: Ocorre o mesmo com certos doentes sobre os quais os remédios agem a longo prazo; o efeito não é apreciável no momento; sobre outros, ao contrário, eles operam prontamente. Se se tiver em conta esta verdade de que todos os Espíritos são perfectíveis, e que nenhum está eterna e fatalmente destinado ao mal, compreender-se-á que, cedo ou tarde, a prece terá seu efeito, e que aquela que parece ineficaz à primeira vista não deixa de depositar germes salutares que predispõem o Espírito ao bem, se não os tocar imediatamente. Seria então um erro desanimar-se, porque não se tem sucesso
imediatamente.
11. Se esse Espírito se reencarnasse, em que categoria de indivíduos se encontraria? – R. Isso dependerá dele e do arrependimento que sentir. Várias conversas com esse Espírito trouxeram-lhe uma notável mudança no seu estado moral. Eis algumas das suas respostas.
12. Ao Espírito. Por que não pudestes escrever na primeira vez em que vos chamamos? – R. Eu não queria. Por que não queríeis? – R. Ignorância e embrutecimento.
13. Agora podeis deixar a casa de Castelnaudary quando quiserdes? – R. É-me permitido, porque tiro proveito dos vossos bons conselhos. P. - Sentis alívio por isso? – R. Começo a ter esperança.
14. Se vos pudéssemos ver, em que aparência vos veríamos? – R. Verme-íeis de camisa, sem punhal. – P. Por que não teríeis mais vosso punhal; o que fizestes dele? – R. Eu o amaldiçoo; Deus poupa-me de sua visão.
15. Se o Sr. D... filho (aquele que recebera a bofetada) voltasse à casa, far-lhe-íeis mal? – R. Não, pois estou arrependido. – P. E se ele quisesse ainda vos enfrentar? – R. Oh! Não me peçais isso! Eu não poderia dominar-me, estaria acima das minhas forças... pois não sou senão um miserável.
16. Entrevedes o fim de vossas penas? – R. Oh! Ainda não; é já muito mais do que eu mereço saber, graças à vossa intervenção, que elas não durarão para sempre.
17. Tende a bondade de nos descrever a situação em que estáveis antes que vos chamássemos da primeira vez. Compreendei que perguntamos isso para ter um meio de vos ser útil, e não por um motivo de curiosidade. – R. Já vos disse, eu não tinha consciência de nada no mundo senão do meu crime, e não podia deixar a casa onde o cometi a não ser para me elevar no espaço onde tudo à minha volta era solidão e obscuridade; não poderia dar-vos uma ideia do que é, nunca compreendi nada disso; assim que me elevava acima do ar, ficava escuro, ficava vazio; não sei o que era. Hoje em dia sinto muito mais remorsos, e não sou mais coagido a ficar nessa casa fatal; é-me permitido vaguear na terra, e procurar esclarecer-me pelas minhas observações; mas então compreendo melhor a enormidade de meus crimes horrendos; e se sofro menos por um lado, minhas torturas aumentam do outro pelo remorso; mas ao menos tenho esperança.
18. Se devêsseis retomar uma existência corporal, qual escolheríeis? – R. Ainda não vi o suficiente nem refleti o suficiente para saber.
19. Durante vosso longo isolamento, e pode-se dizer vosso cativeiro, tivestes remorsos? – R. Nem um pouco, e é por isso que sofri tanto tempo; foi somente quando comecei a sentir remorsos que foram provocadas, sem meu conhecimento, as circunstâncias que trouxeram minha evocação à qual devo o início da minha libertação. Obrigado, portanto, a vós que tivestes compaixão de mim e me esclarecestes.
Observação: Vimos, efetivamente, avarentos sofrer com a visão do ouro, que para eles se tornara uma verdadeira quimera; orgulhosos atormentados pela inveja das honras que viam conceder, e que não se dirigiam a eles; homens que mandaram na terra, humilhados pelo poder invisível que os constrangia a obedecer, e pela visão de seus subordinados que não se dobravam mais diante deles; os ateus sofrerem as angústias da incerteza, e ficarem num isolamento absoluto no meio da imensidade, sem encontrar nenhum ser que pudesse esclarecê-los. No mundo dos Espíritos, se há alegrias para todas as virtudes, há penas para todas as faltas; e aquelas que a lei dos homens não atinge são sempre golpeadas pela lei de Deus.
Deve-se notar ademais que as mesmas faltas, embora cometidas em condições idênticas, são punidas por castigos por vezes muito diferentes, segundo o grau de avanço intelectual do Espírito. Aos Espíritos mais atrasados, e de uma natureza bruta como este de que se trata aqui, são infligidas penas de alguma forma mais materiais do que morais, ao passo que é o contrário para aqueles cuja inteligência e sensibilidade são mais desenvolvidas. Para os primeiros é preciso castigos apropriados à rudeza de sua casca para lhes fazer compreender as contrariedades de sua posição, e inspirar-lhes o desejo de sair dela; é assim que a vergonha, por exemplo, que faria apenas pouca ou nenhuma impressão neles, será intolerável para os outros.
Neste código penal divino, a sabedoria, a bondade e a previdência de Deus para com as suas criaturas se revelam até nas menores coisas; tudo é proporcional; tudo é combinado com uma admirável solicitude para facilitar aos culpados os meios de se reabilitar; são-lhes creditadas as menores boas aspirações da alma. Segundo os dogmas das penas eternas, ao contrário, no inferno estão confundidos os grandes e os pequenos culpados, os culpados de um dia e os cem vezes reincidentes, os endurecidos e os arrependidos; tudo é calculado para mantê-los no fundo do abismo; nenhuma tábua de salvação lhes é oferecida; uma única falta pode aí precipitar para sempre, sem que seja levado em conta o bem que se fez. De que lado se acha a verdadeira justiça e a verdadeira bondade?
Esta evocação não é, portanto, devida ao acaso; como ela devia ser útil a este desgraçado, os Espíritos que velavam por ele, vendo que ele começava a compreender a enormidade dos seus crimes, julgaram que chegara o momento de lhe dar um auxílio eficaz, e trouxeram então as circunstâncias propícias. É um fato que vimos produzir-se muitas vezes.
Perguntou-se, a esse respeito, o que teria acontecido com ele se não pudesse ter sido evocado, e o que acontece a todos os Espíritos sofredores que não podem ser evocados ou nos quais não se pensa. A isso é respondido que os caminhos de Deus, para a salvação de suas criaturas, são inúmeros; a evocação é um meio de assisti-los, mas não é certamente o único, e Deus não deixa nenhuma no esquecimento. Aliás, as preces coletivas devem ter sobre os Espíritos, acessíveis ao arrependimento, sua dose de influência. Deus não podia subordinar o destino dos Espíritos sofredores aos conhecimentos e à boa vontade dos homens. Logo que estes puderam estabelecer relações regulares com o mundo invisível, um dos primeiros resultados do Espiritismo foi ensinar-lhes os favores que com a ajuda dessas relações eles podiam prestar aos seus irmãos desencarnados.
Deus quis, por esse meio, comprovar-lhes a solidariedade que existe entre todos os seres do universo, e dar uma lei de natureza por base ao princípio da fraternidade. Ao abrir esse campo novo ao exercício da caridade, ele lhes mostra o lado verdadeiramente útil e sério das evocações, desviadas até então de seu fim providencial pela ignorância e a superstição. Aos Espíritos sofredores, portanto, nunca faltou auxílio em nenhuma época, e se as evocações lhes abrem um novo caminho de salvação, os encarnados ganham talvez ainda mais, pois elas são para eles novas ocasiões de fazer o bem, instruindo-se ao mesmo tempo sobre o verdadeiro estado da vida futura.
Jacques Latour
Assassino, condenado pelo tribunal de Foix, e executado em setembro de 1864.
Numa reunião espírita íntima de sete a oito pessoas, que ocorreu em Bruxelas, em 13 de setembro de 1864, e à qual nós assistíamos, pediu-se a uma senhora médium que escrevesse; não sendo feita nenhuma evocação especial, ela traça com uma agitação extraordinária, em enormes caracteres, e depois de ter rasurado violentamente o papel, estas palavras:
“Estou arrependido! Estou arrependido! Latour.” Surpreendidos por esta comunicação inesperada, que nada provocara, pois ninguém pensava nesse desgraçado cuja morte a maioria dos assistentes até ignorava, algumas palavras de comiseração e de encorajamento são dirigidas ao Espírito; depois fazem-lhe esta pergunta:
Que motivo pôde vos empenhar a vir aqui em vez de em outro lugar, visto que nós não vos chamamos?
A médium, que é também médium falante, responde de viva voz:
“Eu vi que vós éreis almas compassivas e que teríeis compaixão de mim, ao passo que outros me evocam mais por curiosidade do que por verdadeira caridade, ou de mim se afastavam horrorizados.Começou então uma cena indescritível que não durou menos de meia hora. Juntando a médium à palavra os gestos e a expressão da fisionomia, é evidente que o Espírito se identificou com a sua pessoa; por vezes suas inflexões de desespero são tão dilaceradoras, ele pinta suas angústias e seus sofrimentos com um tom tão desolado, suas súplicas são tão veementes, que todos os assistentes ficam profundamente emocionados.
Alguns estavam mesmo assustados pela superexcitação da médium, mas pensávamos que a comunicação de um Espírito que se arrepende e que implora compaixão não oferecia nenhum perigo. Se tomou emprestados os órgãos da médium foi para descrever melhor sua situação e provocar mais interesse pelo seu destino, mas não, como os Espíritos obsessores e possuidores, com vistas a tomar conta dela para dominá-la. Isso lhe foi sem dúvida permitido em seu próprio interesse, e talvez também para a instrução das pessoas presentes.
Ele exclama:
“Oh! sim, compaixão! Preciso muito de compaixão, pois não sabeis o que sofro!... não, não sabeis; não podeis compreendê-lo.... é horrível!.... a guilhotina!... o que isso é, ao lado do que suporto agora? Não é nada; é um instante. Mas este fogo que me devora é pior, é uma morte contínua; é um sofrimento que não dá trégua nem repouso... que não tem fim!
“E minhas vítimas que estão aqui, à minha volta... que me mostram suas feridas...., que me perseguem com seus olhares!... Elas estão aqui, diante de mim, vejo-as todas... sim, todas..., vejo-as todas; não posso evitá-las!... E essa poça de sangue!.... e esse ouro sujo de sangue!... tudo está aqui! Sempre diante de mim?... Sentis o cheiro do sangue?... Sangue, sempre sangue!... Ei-las, essas pobres vítimas ; elas me imploram... e eu, sem compaixão, golpeio... golpeio... golpeio sempre!... O sangue inebria-me!
“Acreditava que depois da minha morte tudo estaria acabado; foi por isso que enfrentei o suplício; enfrentei Deus, reneguei-o!... E eis que, quando achava que estava aniquilado para sempre, um despertar terrível ocorre...; oh! sim, terrível!... estou cercado de cadáveres, de figuras ameaçadoras... caminho no sangue... Acreditava estar morto, e estou vivo!... É medonho!... é horrível! Mais horrível do que todos os suplícios da terra!
“Oh! se todos os homens pudessem saber o que há além da vida! Eles saberiam o que custa fazer o mal; não haveria mais assassinos, mais criminosos, mais malfeitores! Eu gostaria que todos os assassinos pudessem ver o que eu vejo e o que suporto... Oh! não, não haveria mais assassinos... é medonho demais sofrer o que estou sofrendo!
“Sei bem que mereci isto, ó meu Deus! pois não tive compaixão das minhas vítimas; repeli suas mãos suplicantes quando elas me pediam para poupá-las. Sim, eu mesmo fui cruel; matei-as covardemente para ficar com o seu ouro!.... Fui ímpio; reneguei-vos; blasfemei vosso santo nome... Quis fazer por esquecer; é por isso que queria persuadir-me de que vós não existíeis... Ó meu Deus! sou um grande criminoso! Compreendo isso agora. Mas não tereis compaixão de mim?.. Vós sois Deus, ou seja, a bondade, a misericórdia! Vós sois onipotente!
“Compaixão, Senhor! Oh! compaixão! Compaixão! Peço-vos, não sejais inflexível; livrai-me desta visão odiosa, destas imagens terríveis..., deste sangue..., das minhas vítimas cujos olhares me penetram até o coração como punhaladas.
“Vós que aqui estais, que me escutais, sois boas almas, almas caridosas; sim, eu o vejo, vós tereis compaixão de mim, não é? Vós orareis por mim... Oh! suplico-vos! Não me repilais. Vós pedireis a Deus para me tirar este horrível espetáculo da frente dos olhos; ele escutar-vos-á, porque sois bons... Peço-vos, não me repilais como repeli os outros... Orai por mim.”
Os assistentes, comovidos com seus lamentos, dirigiram-lhe palavras de encorajamento e consolo. Deus, disseram-lhe, não é inflexível; o que ele pede ao culpado é um arrependimento sincero e o desejo de reparar o mal que fez.
Visto que vosso coração não está endurecido, e lhe pedis perdão pelos vossos crimes, ele estenderá sobre vós a sua misericórdia, se perseverardes nas vossas boas resoluções para reparar o mal que fizestes. Não podeis sem dúvida devolver a vossas vítimas a vida que lhes tirastes, mas, se pedirdes com fervor, Deus vos concederá encontrar-vos com elas numa nova existência, na qual podereis mostrar-lhes tanta dedicação quanto fostes cruel; e quando ele julgar suficiente a reparação, recuperareis a graça junto dele. A duração do vosso castigo está assim nas vossas mãos; depende de vós abreviá-lo; prometemos ajudar-vos com nossas preces, e chamar sobre vós a assistência dos bons Espíritos. Vamos dizer em vossa intenção a prece contida no Evangelho segundo o Espiritismo para os Espíritos sofredores e arrependidos. Não diremos a prece para os maus Espíritos, porque, tão logo vos arrependeis, implorais a Deus, e renunciais a fazer o mal, não sois mais aos nossos olhos senão um Espírito infeliz, e não mau. Dita esta prece, e após alguns instantes de calma, o Espírito retoma:
“Obrigado, meu Deus!... oh! obrigado! Vós tivestes compaixão de mim; essas horríveis imagens se afastam... Não me abandoneis... enviai-me vossos bons Espíritos para me apoiar... Obrigado.”
Depois desta cena, a médium fica, durante algum tempo, cansada e abatida; seus membros estão extenuados. Ela tem a lembrança, primeiro confusa, do que acaba de ocorrer; depois, pouco a pouco, lembra-se de algumas das palavras que pronunciou, e que dizia contra sua vontade; sentia que não era ela que falava.
No dia seguinte, numa nova reunião, o Espírito se manifesta outra vez, e recomeça, durante alguns minutos somente, a cena da véspera, com a mesma pantomima expressiva, mas menos violenta; depois ele escreve, pela mesma
médium, com uma agitação febril, as palavras seguintes:
“Obrigado pelas vossas preces; uma melhora sensível se produz em mim. Orei a Deus com tanto fervor, que ele me permitiu que, por um momento, meus sofrimentos sejam aliviados; mas ainda verei as minhas vítimas... Ei-las! Eilas!... Vedes este sangue?...”
(A prece da véspera é repetida. O Espírito continua, dirigindo-se à médium: )
“Perdão por me apoderar de vós. Obrigado pelo alívio que trazeis aos meus sofrimentos; perdoai-me todo o mal que vos causei; mas preciso manifestar-me; só vós podeis...
“Obrigado! Obrigado! produz-se um pouco de alívio; mas não cheguei ao fim das minhas provas. Logo minhas vítimas voltarão mais uma vez. Eis a punição; eu a mereci, meu Deus, mas sede indulgente.
“Vós todos, orai por mim; tende compaixão de mim.” LATOUR
Um membro da Sociedade Espírita de Paris, que orou por esse infeliz Espírito e o evocou, obteve dele as comunicações seguintes, a diferentes intervalos:
I
Fui evocado quase logo depois da minha morte, e não pude comunicarme então, mas muitos Espíritos levianos tomaram meu nome e meu lugar. Aproveitei a presença em Bruxelas do presidente da Sociedade de Paris, e com a permissão dos Espíritos superiores, comuniquei-me. Virei comunicar-me na Sociedade, e farei revelações que serão um começo de reparação das minhas faltas, e que poderão servir de ensinamento para todos os criminosos que me lerem e que refletirem sobre o relato dos meus sofrimentos.
Os discursos sobre as penas do inferno fazem pouco efeito sobre o espírito dos culpados, que não creem em todas essas imagens, assustadoras para as crianças e os homens fracos. Ora, um grande malfeitor não é um Espírito pusilânime, e o temor da polícia age mais sobre ele do que o relato dos tormentos do inferno. Eis porque todos os que me lerem ficarão impressionados com minhas palavras, meus sofrimentos, que não são suposições. Não há um único padre que possa dizer: “Eu vi aquilo que vos digo, eu assisti às torturas dos condenados às penas eternas.” Mas, quando eu vier dizer: “Eis o que aconteceu depois da morte do meu corpo; eis qual foi meu desencantamento, ao reconhecer que não tinha morrido, como esperara, e que o que eu tomara pelo fim dos meus sofrimentos era o começo de torturas impossíveis de descrever!” então, mais de um se deterá à beira do precipício onde ia cair, cada desgraçado que eu detiver assim no caminho do crime servirá para resgatar uma de minhas faltas. É assim que o bem sai do mal, e que a bondade de Deus se manifesta por toda a parte, na terra como no espaço.
Foi-me permitido ser libertado da visão de minhas vítimas, que se tornaram meus carrascos, a fim de me comunicar convosco; mas ao deixar-vos revê-las-ei, e só esse pensamento me faz sofrer mais do que posso dizer. Fico feliz quando me evocam, pois então deixo o inferno por alguns instantes. Orai sempre por mim; pedi ao Senhor para que ele me liberte da visão das minhas
vítimas. Sim, oraremos juntos, a prece faz tanto bem!... Estou mais aliviado; já não sinto tanto o peso do fardo que me oprime. Vejo uma luz de esperança que brilha aos meus olhos, e cheio de arrependimento, exclamo: Bendita seja a mão de Deus; que seja feita a sua vontade!
II
O MÉDIUM. – Em vez de pedir a Deus para vos livrar da visão de vossas vítimas, exorto-vos a orar comigo para lhe pedir a força para suportar essa tortura expiatória.
LATOUR. – Teria preferido ficar livre da visão das minhas vítimas. Se soubésseis o que sofro? O homem mais insensível ficaria comovido se pudesse ver, impressas no meu rosto como com fogo, os sofrimentos da minha alma. Farei o que me aconselhais. Compreendo que é um meio um pouco mais rápido de expiar as minhas faltas. É como uma operação dolorosa que deve devolver a saúde ao meu corpo bem doente.
Ah! Se os culpados da terra me pudessem ver, como ficariam assustados com as consequências de seus crimes que, ocultos aos olhos dos homens, são vistos pelos Espíritos! Como a ignorância é fatal para tantos pobres coitados!
Que responsabilidade assumem aqueles que recusam a instrução às classes pobres da sociedade! Eles creem que com a polícia podem prevenir oscrimes. Como estão errados!
III
Os sofrimentos que suporto são horríveis, mas desde vossas preces, sinto-me assistido por bons Espíritos que me dizem para ter esperança. Compreendo a eficácia do remédio heroico que me aconselhastes, e peço ao Senhor que me conceda a força de suportar esta dura expiação. Ela é igual, posso dizê-lo, ao mal que fiz. Não quero procurar desculpar meus crimes; mas ao menos, salvo os poucos instantes de terror que precederam, para cada uma das minhas vítimas, o momento da morte, a dor, uma vez cometido o crime, cessou para elas, e aquelas que tinham terminado suas provas terrestres foram receber a recompensa que as esperava. Mas, desde meu retorno ao mundo dos Espíritos, não cessei de sofrer as dores do inferno, exceto nos momentos bem curtos em que me comuniquei.
Os padres, apesar do seu quadro assustador das penas que os condenados sentem, não têm senão uma ideia bem fraca dos verdadeiros sofrimentos que a justiça de Deus inflige aos seus filhos que violaram sua lei de amor e de caridade. Como fazer crer a pessoas sensatas que uma alma, ou seja, algo que não é material, possa sofrer em contato com o fogo material? É absurdo, e eis porque tantos criminosos se riem dessas pinturas fantásticas do inferno. Mas não acontece o mesmo com a dor moral que o condenado suporta, após a morte física. Orai por mim, para que o desespero não se apodere de mim.
IV
Agradeço-vos pelo objetivo que me fazeis entrever, objetivo glorioso ao qual sei que chegarei quando me tiver purificado. Sofro muito, e, no entanto, parece-me que meus sofrimentos diminuem. Não posso acreditar que, no mundo dos Espíritos, a dor diminui porque nos acostumamos a ela pouco a pouco. Não. Compreendo que vossas boas preces aumentaram minhas forças, e se minhas dores são as mesmas, sendo maior a minha força, sofro menos. Meu pensamento se reporta à minha última existência, às faltas que eu poderia ter evitado se tivesse sabido orar. Compreendo hoje a eficácia da prece; compreendo a força dessas mulheres honestas e piedosas, fracas na carne, mas fortes pela fé; compreendo esse mistério que os falsos sábios da terra não compreendem. Prece! Só essa palavra já excita a zombaria dos espíritos fortes. Espero por eles no mundo dos Espíritos, e quando o véu que lhes oculta a verdade se rasgar para eles, por sua vez virão prosternar-se aos pés do Eterno que eles desconheceram, e ficarão felizes de se humilhar para se reabilitarem de seus pecados e de seus crimes! Compreenderão a virtude da prece. Orar é amar; amar é orar! Então, eles amarão o Senhor e dirigir-lhe-ão suas preces de amor e de reconhecimento, e, regenerados pelo sofrimento, pois deverão sofrer, orarão como eu para ter a força de expiar e de sofrer, orarão para agradecer ao Senhor o perdão que terão merecido por sua submissão e sua resignação. Oremos, irmão, para me fortalecer mais ainda... Oh! obrigado, irmão, pela tua caridade, pois sou perdoado. Deus me livra da visão das minhas vítimas. Oh! meu Deus, sede abençoado durante toda a eternidade pela graça que me concedeis! Ó meu Deus! sinto a enormidade dos meus crimes, e precipito-me diante de vossa onipotência. Senhor! Eu vos amo de todo o coração, e peço-vos a graça de me permitir, quando vossa vontade me enviar para suportar na terra novas provas, vir aqui, missionário de paz e de caridade, ensinar as crianças a pronunciar vosso nome com respeito. Peço-vos poder ensiná-las a amar-vos, vós Pai de todas as criaturas. Oh! obrigado, meu Deus! Sou um Espírito arrependido, e meu arrependimento é sincero. Eu vos amo, tanto quanto meu coração tão impuro pode compreender esse sentimento, pura emanação de vossa divindade. Irmão, oremos, pois meu coração transborda de reconhecimento. Sou livre, quebrei meus ferros, não sou mais um reprovado, sou um Espírito sofredor, mas arrependido, e gostaria que meu exemplo pudesse reter no umbral do crime todas essas mãos criminosas que vejo prestes a se levantar. Oh! parai, irmãos, parai! Pois as torturas que preparais para vós mesmos serão atrozes. Não acrediteis que o Senhor se deixará sempre enternecer tão prontamente pela prece de seus filhos. São séculos de tortura que vos esperam.
O guia do médium. Tu não compreendes, dizes, as palavras do Espírito. Dá-te conta da sua emoção e do seu reconhecimento para com o Senhor; ele não crê poder melhor exprimi-la e prová-la do que tentando deter todos esses criminosos que ele vê e que tu não podes ver. Ele gostaria que suas palavras chegassem até eles, e o que ele não te disse, porque ainda o ignora, é que lhe será permitido começar missões reparadoras. Ele irá para perto de seus cúmplices procurar inspirar-lhes arrependimento, e introduzir nos seus corações o germe do remorso. Às vezes veem-se na terra pessoas que se acreditava serem honestas virem aos pés de um padre acusar-se de um crime. É o remorso que lhes dita a confissão da falta. E se o véu que te separa do mundo invisível se levantasse, verias com frequência um Espírito que foi o cúmplice ou o instigador do crime, vir, como fará Jacques Latour, procurar reparar sua falta, inspirando o remorso ao Espírito encarnado.
Teu guia protetor. A médium de Bruxelas, que tivera a primeira comunicação de Latour, recebeu dele mais tarde a comunicação seguinte:
“Não temais mais nada de mim; estou mais tranquilo, porém ainda estou sofrendo. Deus teve compaixão de mim, pois viu meu arrependimento. Agora, sofro desse arrependimento que me mostra a enormidade das minhas faltas.
“Se eu tivesse sido bem guiado na vida, não teria feito todo o mal que fiz; mas meus instintos não foram reprimidos, e obedeci a eles, não tendo conhecido nenhum freio. Se todos os homens pensassem mais em Deus, ou pelo menos se todos os homens acreditassem nele, não se cometeriam mais semelhantes crimes.
“Mas a justiça dos homens é mal entendida; por uma falta, às vezes leve, um homem é encerrado numa prisão que é sempre um lugar de perdição e de perversão. Ele sai dali completamente perdido pelos maus conselhos e os maus exemplos que de lá tirou. Se, no entanto, sua natureza for suficientemente boa e suficientemente forte para resistir ao mau exemplo, ao sair da prisão todas as portas lhe são fechadas, todas as mãos se retiram diante dele, todos os corações honestos o repelem. O que lhe resta? O desprezo e a miséria; o abandono, o desespero, se sentir em si boas resoluções para voltar ao bem; a miséria impele-o a tudo. Então também ele despreza seu semelhante, odeia-o, e perde toda consciência do bem e do mal, visto que se vê repelido, ele que no entanto tomara a resolução de se tornar um homem de bem. Para conseguir o necessário, ele rouba, e às vezes mata; depois, guilhotinam-no!
“Meu Deus, no momento em que minhas alucinações vão se reapoderar de mim, sinto vossa mão que se estende para mim; sinto vossa bondade que me envolve e me protege. Obrigado, meu Deus! na minha próxima existência, empregarei a minha inteligência, o meu bem para socorrer os desgraçados que sucumbiram e para preservá-los da queda.
“Obrigado, vós a quem não repugna comunicar comigo; não tenhais temor; vedes que não sou mau. Quando pensardes em mim, não imagineis o retrato que vistes de mim, mas imaginai uma pobre alma desolada que vos agradece a vossa indulgência. Adeus; evocai-me ainda, e pedi a Deus por mim.” LATOUR.
Estudo sobre o Espírito de Jacques Latour. Não se pode desconhecer a profundidade e o alto alcance de algumas das palavras que esta comunicação encerra; ela oferece ademais um dos aspectos do mundo dos Espíritos castigados, acima do qual, porém, se entrevê a misericórdia de Deus. A alegoria mitológica das Eumênides não é tão ridícula quanto se crê, e os demônios, carrascos oficiais do mundo invisível, que as substituem na crença moderna, são menos racionais, com seus chifres e seus pés de cabra, do que aquelas vítimas servindo elas próprias para castigar o culpado.
Admitindo-se a identidade desse Espírito, ficar-se-á talvez espantado com uma mudança tão rápida no seu estado moral; é, assim como fizemos observar em outra ocasião, que há com frequência mais recursos num Espírito brutalmente mau, do que naquele que é dominado pelo orgulho, ou que esconde seus vícios sob o manto da hipocrisia. Esse rápido retorno a melhores
sentimentos indica uma natureza mais selvagem do que perversa, à qual faltou apenas uma boa direção. Comparando sua linguagem com a de um outro criminoso mencionado a seguir, sob o título de: Castigo pela luz, é fácil ver qual dos dois é mais avançado moralmente, apesar da diferença de sua instrução e posição social; um obedecia a um instinto natural de ferocidade, a uma espécie de sobre-excitação, ao passo que o outro trazia para a perpetração de seus crimes a calma e o sangue-frio de uma lenta e perseverante combinação, e depois da morte desafiava ainda o castigo por orgulho; ele sofre, mas não quer admiti-lo; o outro é subjugado imediatamente. Pode-se assim prever qual dos dois sofrerá por mais tempo.
“Estou sofrendo, diz o Espírito de Latour, deste arrependimento que me mostra a enormidade das minhas faltas.” Há aí um pensamento profundo. O Espírito não compreende realmente a gravidade de seus crimes a não ser quando se arrepende deles; o arrependimento traz pesar, o remorso, sentimento doloroso que é a transição do mal ao bem, da doença moral à saúde moral. É para escapar disso que os Espíritos perversos se obstinam contra a voz de sua consciência, como aqueles doentes que repelem o remédio que deve curá-los; eles procuram se iludir, se atordoar persistindo no mal. Latour chegou àquele período em que a insensibilidade acaba por ceder; o remorso entrou no seu coração; seguiu-se o arrependimento; ele compreende a extensão do mal que fez; vê sua abjeção, e sofre por isso; eis porque ele diz: “Estou sofrendo desse arrependimento.” Na sua existência anterior, ele deve ter sido pior do que nesta, pois se se tivesse arrependido como o faz hoje, sua vida teria sido melhor. As resoluções que ele toma agora influenciarão sua existência terrestre futura; aquela que acaba de deixar, por mais criminosa que tenha sido, assinalou para ele uma etapa de progresso. É mais do que provável que antes de começá-la, ele era, enquanto na erraticidade, um desses maus Espíritos rebeldes, obstinados no mal, como se veem tantos. Muitas pessoas perguntaram que proveito se podia tirar das existências passadas, visto que não se guarda lembrança do que se foi nem do que se fez. Esta pergunta é completamente resolvida pelo fato de que, se o mal que cometemos está apagado, e se não resta nenhum traço dele no nosso coração, a recordação seria inútil, visto que não temos que nos preocupar com ele. Quanto àquele do qual não nos corrigimos inteiramente, nós o conhecemos pelas nossas tendências atuais; é a estas que devemos dirigir toda a nossa atenção. Basta saber o que somos, sem que seja necessário saber o que fomos. Quando se considera a dificuldade, durante a vida, da reabilitação do culpado mais arrependido, a reprovação da qual ele é objeto, deve-se abençoar Deus por ter jogado um véu sobre o passado. Se Latour tivesse sido condenadoa tempo, e mesmo se tivesse sido absolvido, seus antecedentes tê-lo-iam feitorejeitar pela sociedade. Quem teria querido, apesar do seu arrependimento, admiti-lo na sua intimidade? Os sentimentos que ele manifesta hoje como Espírito dão-nos a esperança de que, na sua próxima existência terrestre, ele será um homem de bem, estimado e considerado; mas suponde que se saiba que ele foi Latour, a reprovação ainda o perseguirá. O véu jogado sobre seu passado abre-lhe a porta da reabilitação; ele poderá sentar-se sem temor e sem vergonha entre as pessoas mais honestas. Quantos há que gostariam a qualquer preço de poder apagar da memória dos homens certos anos de sua existência!
Encontre-se uma doutrina que se concilie melhor do que esta com a justiça e a bondade de Deus! Além disso, esta doutrina não é uma teoria, mas um resultado de observações. Não foram os espíritas que a imaginaram; eles viram e observaram as diferentes situações nas quais os Espíritos se apresentam; procuraram explicá-las, e dessa explicação saiu a doutrina. Se a
aceitaram, é porque ela resulta dos fatos, e que ela lhes pareceu mais racional do que todas aquelas emitidas até hoje sobre o futuro da alma. Não se pode recusar a essas comunicações um alto ensinamento moral? O Espírito pôde ser, deve mesmo ter sido ajudado nas suas reflexões e sobretudo na escolha de suas expressões, por Espíritos mais avançados; mas, em semelhante caso, estes últimos não o assistem senão na forma e não nofundo, e nunca põem o Espírito inferior em contradição consigo mesmo. Eles puderam poetizar em Latour a forma do arrependimento, mas não o teriam feito exprimir o arrependimento contra sua vontade, porque o Espírito tem seu livrearbítrio; eles viam nele o germe de bons sentimentos, é por isso que o ajudarama expressar-se, e assim contribuíram para desenvolvê-los ao mesmo tempo que chamaram sobre ele a comiseração. Haverá algo de mais comovente, de mais moral, de natureza a impressionar mais vivamente do que o quadro deste grande criminoso arrependido, exalando seu desespero e seus remorsos; o qual, no meio de suas torturas, perseguido pelo olhar incessante de suas vítimas, eleva seu pensamento a Deus para implorar sua misericórdia? Não está aí um salutar exemplo para os culpados? Compreende-se a natureza de suas angústias; elas são racionais, terríveis, ainda que simples e sem encenação fantasmagórica. Talvez pudéssemos espantar-nos com tão grande mudança num homem como Latour; mas por que ele não se teria arrependido? Por que não haveria nele uma corda sensível vibrante? O culpado seria então destinado ao mal para todo o sempre? Não chega um momento em que se faz a luz na sua alma? Esse momento chegara para Latour. Está precisamente aí o lado moral de suas comunicações; é o entendimento que ele tem de sua situação; são seus pesares, seus projetos de reparação que são eminentemente instrutivos. O que se teria achado de extraordinário em que ele se arrependesse sinceramente antes de morrer; que ele tivesse dito antes o que disse depois? Não se têm inúmeros exemplos disso? Um retorno ao bem antes de sua morte teria passado por fraqueza os olhos da maioria de seus semelhantes; sua voz de além-túmulo é a revelação do futuro que os espera. Ele está absolutamente certo quando diz que seu exemplo é mais próprio a emendar os culpados do que a perspectiva das chamas do inferno e mesmo do cadafalso. Então, por que não lho dariam nas prisões? Isso faria refletir mais de um, tal como temos já vários exemplos. Mas como acreditar na eficácia das palavras de um morto, quando se crê que quando se morre acaba tudo? No entanto, virá um dia em que se reconhecerá esta verdade de que os mortos podem vir instruir os vivos. Há várias outras instruções importantes a tirar destas comunicações; primeiro, é a confirmação deste princípio de eterna justiça, de que o arrependimento não basta para colocar o culpado na categoria dos eleitos. O arrependimento é o primeiro passo para a reabilitação que apela para a misericórdia de Deus; é o prelúdio do perdão e do abreviamento dos sofrimentos; mas Deus não absolve sem condição; é preciso a expiação e sobretudo a reparação; é o que Latour compreende, e é para isso que ele se prepara.
Em segundo lugar, se se comparar este criminoso ao de Castelnaudary, encontra-se uma grande diferença no castigo que lhes é infligido. Neste último, o arrependimento foi tardio e por conseguinte a pena mais longa. Esta pena é ademais quase material, ao passo que em Latour o sofrimento é antes moral; é que, como dissemos anteriormente, em um a inteligência estava bem menos desenvolvida do que no outro; era preciso algo que pudesse impressionar seus sentidos obtusos; mas as penas morais não são menos dolorosas para aquele que chegou ao grau exigido para as compreender; pode-se avaliá-las pelas queixas que Latour exala; não é a cólera, é a expressão dos remorsos logo seguida de arrependimento e desejo de reparar, a fim de aperfeiçoar-se.
Capítulo VII - Espíritos endurecidos
Lapommeray
Castigo pela luz.
Numa das sessões da Sociedade de Paris em que se discutira a questão da perturbação que segue geralmente a morte, um Espírito ao qual ninguém fizera alusão e que não se pensava evocar, manifesta-se espontaneamente pela comunicação seguinte; embora não fosse assinada, reconheceu-se aí sem dificuldade um grande criminoso que a justiça humana acabara de castigar.
“O que dizeis da perturbação? Por que essas palavras vãs? Vós sois sonhadores e utopistas. Ignorais perfeitamente as coisas das quais pretendeis ocupar-vos. Não, senhores, a perturbação não existe, exceto talvez nos vossos cérebros. Eu estou morto tão francamente quanto possível, e vejo claro em mim, à minha volta, em toda a parte!... A vida é uma lúgubre comédia! Inábeis, aqueles que são retirados de cena antes que a cortina caia!... A morte é um terror, um castigo, um desejo, segundo a fraqueza ou a força daqueles que a temem, a enfrentam ou a imploram. Para todos, ela é uma amarga zombaria!... A luz me ofusca, e penetra, como uma flecha pontiaguda, a sutileza de meu ser... Castigaram-me com as trevas da prisão, e acreditaram castigar-me com as trevas do túmulo, ou aquelas sonhadas pelas superstições católicas. Pois bem, sois vós, senhores, que sofreis com a obscuridade, e eu, o degradado social, pairo acima de vós... quero permanecer, eu!... Fortalecido pelo pensamento, desdenho dos avisos que soam à minha volta... Vejo claramente... Um crime! É uma palavra! O crime existe em toda a parte. Quando é executado por massas de homens é glorificado; no particular, é banido. Absurdo!
“Não quero ser lastimado... não peço nada... basto-me a mim mesmo e saberei lutar contra esta odiosa luz.
“Aquele que ontem era um homem.”
Tendo esta comunicação sido analisada na sessão seguinte, reconheceuse, no próprio cinismo da linguagem, um grave ensinamento, e viu-se na situação desse infeliz uma nova fase do castigo que aguarda o culpado. Com efeito, ao passo que uns estão mergulhados nas trevas ou num isolamento absoluto, outros suportam, durante longos anos, as angústias de sua última hora, ou creem estar ainda neste mundo, a luz brilha para este; seu Espírito goza da plenitude de suas faculdades; ele sabe perfeitamente que morreu, e não se queixa de nada; não pede nenhuma assistência, e desafia ainda as leis divinas e humanas. Então ele escaparia à punição? Não, mas a justiça de Deus cumpre-se de todas as formas, e o que causa a alegria de uns é para outros um tormento; esta luz constitui o suplício contra o qual ele se obstina, e apesar de seu orgulho, ele o confessa quando diz: “Eu me basto e saberei lutar contra estaodiosa luz;” e nesta outra frase: “A luz me ofusca e penetra, como uma flecha pontiaguda, a sutileza de meu ser.” Estas palavras: sutileza de meu ser, são características; ele reconhece que seu corpo é fluídico e penetrável pela luz da qual não pode escapar, e essa luz o transpassa como uma flecha pontiaguda.
Este Espírito está colocado aqui entre os endurecidos porque ficou muito tempo sem manifestar o menor arrependimento. É um exemplo desta verdade que o progresso moral nem sempre acompanha o progresso intelectual. Pouco a pouco, no entanto, ele se emendou, e mais tarde deu comunicações sabiamente ponderadas e instrutivas. Hoje em dia ele pode ser colocado entre os Espíritos arrependidos.
Nossos guias espirituais, solicitados a dar sua apreciação sobre este assunto, ditaram as três comunicações a seguir, e que merecem uma atenção séria.
I
Os Espíritos na erraticidade estão evidentemente, do ponto de vista das existências, inativos e à espera; porém, eles podem expiar, desde que seu orgulho, a tenacidade formidável e renitente de seus erros não os retenham, no momento de sua ascensão progressiva. Tendes um exemplo terrível disso na última comunicação desse criminoso endurecido se debatendo contra a justiça divina que o constrange após a justiça dos homens. Então, neste caso, a expiação, ou antes o sofrimento fatal que os oprime, em vez de lhes trazer proveito e fazê-los sentir o profundo significado das suas penas, exalta-os na revolta, e fá-los lançar esses murmúrios que as Escrituras, na sua poética eloquência, chamam ranger de dentes; imagem por excelência! Sinal do sofrimento abatido, mas insubmisso! Perdido na dor, mas cuja revolta é ainda bastante forte para recusar reconhecer a verdade da pena e a verdade da recompensa!
Os grandes erros continuam frequentemente, e mesmo quase sempre, no mundo dos Espíritos; igualmente as grandes consciências criminosas. Ser ele mesmo apesar de tudo, e pavonear-se diante do Infinito, parece-se com essa cegueira do homem que contempla as estrelas e que as toma pelos arabescos de um teto, tal como o temiam os gauleses do tempo de Alexandre.
Existe o infinito moral! Miserável, ínfimo é aquele que, sob o pretexto de continuar as lutas e as bravatas abjetas da terra, não vê mais longe no outro mundo do que via aqui embaixo! Àquele a cegueira, o desprezo dos outros, a egoísta e mesquinha personalidade e o cessar do progresso! É mais do que verdadeiro, ó homens, que há um acordo secreto entre a imortalidade de um nome puro deixado na terra, e a imortalidade que guardam realmente os Espíritos em suas provas sucessivas.
LAMENNAIS.
II
Precipitar um homem nas trevas ou nas ondas de claridade: o resultado não é o mesmo? Em ambos os casos, ele não vê nada daquilo que o rodeia, e habituar-se-á mesmo mais rapidamente à escuridão do que à triste claridade elétrica na qual pode estar imerso. Portanto, o Espírito que se comunicou na última sessão exprime bem a verdade da sua situação, quando exclama: “Oh! livrar-me-ei desta odiosa luz!” Com efeito, essa luz é tanto mais terrível, tanto mais assustadora, quanto ela o transpassa completamente, e torna visíveis e aparentes seus mais secretos pensamentos. Está aí um dos lados mais rudes de seu castigo espiritual. Ele se acha, por assim dizer, internado na casa de vidro que Sócrates pedia, e aí está ainda um ensinamento, pois o que teria sido a alegria e a consolação do sábio, se torna a punição infamante e contínua do mau, do criminoso, do parricida, assustado com sua própria personalidade. Compreendeis vós, meus filhos, a dor e o terror que devem constranger aquele que, durante uma existência sinistra, se comprazia a combinar, a maquinar os mais tristes crimes no fundo do seu ser, onde ele se refugiava como uma fera na sua caverna, e o qual, hoje, se acha expulso desse covil íntimo, no qual se furtava aos olhares e à investigação de seus contemporâneos? Agora sua máscara de impassibilidade lhe é arrancada, e cada um dos seus pensamentos se reflete sucessivamente na sua fronte! Sim, doravante, nenhum repouso, nenhum asilo para esse formidável criminoso. Cada mau pensamento, e Deus sabe se sua alma os exprime, se trai fora e dentro dele, como a um choque elétrico superior. Ele quer se ocultar da multidão, e a luz odiosa o transpassa continuamente. Ele quer fugir, ele foge numa corrida arquejante e desesperada através dos espaços incomensuráveis, e em toda parte a luz! Em toda parte os olhares que mergulham nele! E ele se precipita de novo perseguindo a escuridão, em busca da noite, e a sombra e a noite não existem mais para ele. Ele pede o auxílio da morte; mas a morte não é senão uma palavra vazia de sentido. O desafortunado continua a fugir! Caminha para a loucura espiritual, castigo terrível! dor pavorosa! na qual ele se debaterá consigo mesmo para se livrar de si mesmo. Pois tal é a lei suprema para além da terra: é o culpado que se torna para si mesmo seu mais inexorável castigo. Quanto tempo durará isso? Até à hora em que a sua vontade, por fim vencida, se curvar sob o aperto pungente do remorso, e em que sua fronte soberba se humilhar diante de suas vítimas apaziguadas e diante dos Espíritos de justiça. E notai a alta lógica das leis imutáveis, ainda nisso ele cumprirá o que escrevia nessa altiva comunicação, tão nítida, tão lúcida e tão tristemente plena de si mesmo, que ele deu sexta-feira passada, entregando-se por um ato de sua própria vontade.
ERASTO.
III
A justiça humana não leva em conta a individualidade dos seres que castiga; medindo o crime pelo próprio crime, ela atinge indistintamente aqueles que o cometeram, e a mesma pena atinge o culpado sem distinção de sexo, e seja qual for sua educação. A justiça divina procede de outro modo; as punições correspondem ao grau de avanço dos seres aos quais elas são infligidas; a igualdade do crime não constitui a igualdade entre os indivíduos; dois homens culpados pelo mesmo artigo podem ficar separados pela distância das provas que mergulham um na opacidade intelectual dos primeiros círculos iniciadores, ao passo que o outro, tendo-os ultrapassado, possui a lucidez que libera o Espírito da perturbação. Não são mais então as trevas que castigam, mas a acuidade da luz espiritual; ela transpassa a inteligência terrestre, e fá-lo sentir a angústia de uma ferida exposta. Os seres desencarnados perseguidos pela representação material de seu crime, sofrem o choque da eletricidade física: eles sofrem pelos sentidos; aqueles que já estão desmaterializados pelo Espírito sentem uma dor muito superior, que aniquila, em suas ondas amargas, a lembrança dos fatos, para deixar subsistir apenas a ciência de suas causas.
O homem pode, portanto, apesar da criminalidade de suas ações, possuir um avanço interior, e, enquanto as paixões o faziam agir como um bruto, suas faculdades aguçadas o elevam acima da espessa atmosfera das camadas inferiores. A ausência de ponderação, de equilíbrio entre o progresso moral e o progresso intelectual, produz as anomalias muito frequentes nas épocas de materialismo e de transição.
A luz que tortura o Espírito culpado é, portanto, o raio espiritual inundando de claridade os refúgios secretos do seu orgulho, e descobrindo-lhe a inanidade de seu ser fragmentário. Esses são os primeiros sintomas e as primeiras angústias da agonia espiritual que anunciam a separação ou dissolução dos elementos intelectuais, materiais, que compõem a primitiva dualidade humana, e devem desaparecer na grande unidade do ser acabado.
JEAN REYNAUD.
Observação: Estas três comunicações obtidas simultaneamente completam-se umas às outras, e apresentam o castigo sob um novo aspecto eminentemente filosófico e racional. É provável que os Espíritos, querendo tratar esta questão a partir de um exemplo, tenham provocado, com essa finalidade, a comunicação espontânea do Espírito culpado.
Ao lado deste quadro apanhado em flagrante, eis, para estabelecer um paralelo, o que um pregador, pregando a quaresma em Montreuil-sur-Mer, em
1864, traçava do inferno:
“O fogo do inferno é milhões de vezes mais intenso do que o da terra, e se um dos corpos que ali queimam sem se consumir viesse a ser lançado no nosso planeta, ele o empestaria de uma ponta a outra! O inferno é uma vasta e sombria caverna, eriçada de pregos pontiagudos, de lâminas de espadas bem aceradas, de lâminas de navalhas bem afiladas, na qual são precipitadas as almas dos condenados eternos.” (Ver a Revista espírita, julho de 1864, página 199.)
Angèle - Nulidade sobre a terra
Um Espírito se apresenta espontaneamente ao médium sob o nome de Angèle.
1. Vós vos arrependeis de vossas faltas? – R. Não. – Então por que vindes a mim? – R. Para fazer uma tentativa. – Então não sois feliz? – R. Não. – Estais sofrendo? – R. Não. – O que vos falta então? – R. A paz.
Observação: Certos Espíritos não consideram como sofrimentos senão os que lhes lembram as dores físicas, embora convindo que seu estado moral é intolerável.
2. Como pode faltar-vos a paz na vida espiritual? – R. Um arrependimento do passado. P. – O arrependimento do passado é um remorso; vós vos arrependeis então? – R. Não; é por temor do futuro. P. – Que temeis vós? – R. O desconhecido.
3. Quereis dizer-me o que fizestes em vossa última existência? Isso talvez me ajude a vos esclarecer. – R. Nada.
4. Em que posição social estáveis? – R. Média. P. – Fostes casada? – R. Casada e mãe. P. – Cumpristes com zelo os deveres dessa dupla posição? – R. Não; meu marido me aborrecia, meus filhos também.
5. Como se passou vossa vida? – R. A divertir-me enquanto solteira, a aborrecer-me casada. P. – Quais eram vossas ocupações? – R. Nenhuma. P. – Então quem cuidava de vossa casa? – R. A doméstica.
6. Não é nessa inutilidade que é preciso procurar a causa de vossos arrependimentos e de vossos temores? – R. Talvez tenhas razão. P. – Não basta convir. Quereis, para reparar essa existência inútil, ajudar os Espíritos culpados que sofrem à vossa volta? – R. Como? – Ajudando-os a se aperfeiçoarem pelos vossos conselhos e vossas preces. – R. Não sei rezar. P. – Nós o faremos juntos, aprendereis; quereis? – R. Não. P. – Por quê? – R. O fadiga. Instrução do guia do médium.
Nós damos-te instruções pondo-te sob os olhos os diversos graus de sofrimento e de posição dos Espíritos condenados à expiação em consequência de suas faltas.
Angèle era uma dessas criaturas sem iniciativa, cuja vida é tão inútil para os outros quanto para elas mesmas. Amando apenas o prazer, incapaz de procurar no estudo, no cumprimento dos deveres da família e da sociedade essas satisfações do coração que são as únicas que podem dar encanto à vida, porque pertencem a todas as idades, ela não pôde empregar seus jovens anos senão em distrações frívolas; depois, quando os deveres sérios chegaram, o mundo havia feito o vazio em torno dela, porque ela havia feito o vazio no seu coração. Sem defeitos sérios, mas sem qualidades, ela fez a infelicidade do marido, perdeu o futuro de seus filhos, arruinou o bem-estar deles por sua incúria e sua preguiça. Falseou o julgamento e o coração deles, primeiro pelo seu exemplo, depois abandonando-os aos cuidados dos domésticos que nem mesmo tomava o cuidado de escolher. Sua vida foi inútil para o bem e por isso mesmo culpada, pois o mal nasce do bem negligenciado. Compreendei bem todos que não basta abster-vos das faltas: é preciso praticar as virtudes que lhes são opostas. Estudai os mandamentos do
Senhor, meditai sobre eles, e compreendei que, se eles vos colocam uma barreira que vos detém à beira do mau caminho, eles vos forçam ao mesmo tempo a voltar atrás para tomar o caminho oposto que leva ao bem. O mal é oposto ao bem; portanto, aquele que o quer evitar deve entrar no caminho oposto, sem o quê sua vida é nula; suas obras estão mortas e Deus nosso pai não é o Deus dos mortos, mas o Deus dos vivos.
P. Posso vos perguntar qual fora a existência anterior de Angèle? A última devia ser sua consequência.
R. Ela havia vivido na preguiça beata e na inutilidade da vida monástica.
Preguiçosa e egoísta por gosto, ela quis tentar a vida de família, mas o Espírito progrediu muito pouco. Ela repeliu sempre a voz íntima que lhe mostrava o perigo; o declive era suave, ela preferiu deixar-se ir a fazer um esforço para se deter no início. Hoje ela ainda compreende o perigo que existe em se manter nessa neutralidade, mas não se sente com força para tentar o menor esforço para daí sair. Orai por ela, despertai-a; forçai seus olhos a se abrirem para a luz: é um dever, não negligencieis nenhum. O homem foi criado para a atividade: atividade de espírito, é sua essência; atividade do corpo, é uma necessidade. Preenchei, portanto, as condições de vossa existência, como Espírito destinado à paz eterna. Como corpo destinado ao serviço do Espírito, vosso corpo não é senão uma máquina submetida à vossa inteligência; trabalhai, cultivai então a inteligência, a fim de que ela dê uma impulsão salutar ao instrumento, que deve ajudar o Espírito a cumprir sua tarefa; não lhe deis repouso nem trégua, e lembrai-vos de que a paz à qual aspirais não vos será dada senão depois do trabalho; portanto, durante todo o tempo em que tiverdes negligenciado o trabalho, todo esse tempo durará para vós a ansiedade da espera.
Trabalhai, trabalhai sem cessar; cumpri todos os vossos deveres sem exceção; cumpri-os com zelo, com coragem, com perseverança, e vossa fé vos sustentará. Aquele que cumpre com consciência a tarefa mais ingrata, mais vil em vossa sociedade, é cem vezes mais elevado aos olhos do Altíssimo, do que aquele que impõe essa tarefa aos outros e negligencia a sua. Tudo consiste em degraus para subir ao céu: não os quebreis, pois, sob vossos pés, e contai que estais cercados de amigos que vos estendem a mão, e apoiam aqueles que põem sua força no Senhor.
MONOD
Um Espírito aborrecido
Este Espírito apresenta-se espontaneamente ao médium, e reclama preces.
1. O que vos leva a pedir preces? – R. Estou cansado de vagar sem objetivo. P. – Há muito tempo que estais nessa posição? – R. Cento e oitenta anos aproximadamente. – O que fizestes na terra? – R. Nada de bom.
2. Qual é vossa posição entre os Espíritos? – R. Estou entre os entediados. P. – Isso não forma uma categoria. – R. Tudo forma categoria entre nós. Cada sensação encontra ou seus semelhantes, ou seus simpatizantes que se reúnem.
3. Por que, se não estáveis condenado ao sofrimento, permanecestes tanto tempo sem vos aperfeiçoardes? – R. Estava condenado ao tédio, é um sofrimento entre nós; tudo o que não é alegria é dor. P. – Fostes, portanto, forçado a permanecer errante contra vossa vontade? – R. São causas demasiado sutis para vossa inteligência material. P. – Tentai fazer-me compreendê-las; será um começo de utilidade para vós. – R. Eu não poderia, porque não tem termo de comparação. Uma vida extinta na terra deixa ao Espírito que não a aproveitou, o que o fogo deixa ao papel que consumiu: faíscas, que lembram às cinzas ainda unidas entre si o que foram e a causa do seu nascimento, ou se quiseres, da destruição do papel. Essas faíscas são a lembrança dos laços terrestres que percorrem o Espírito até que ele tenha dispersado as cinzas de seu corpo. Somente então ele se reencontra, essência etérea, e deseja o progresso.
4. Quem pode vos ocasionar o tédio de que vos queixais? – R. Consequência da existência. O tédio é o filho da ociosidade; eu não soube empregar os longos anos que passei na terra, sua consequência se faz sentir em nosso mundo.
5. Os Espíritos que, como vós, vagam atormentados pelo tédio, não podem fazer cessar esse estado quando querem? – R. Não, eles nem sempre podem, porque o tédio lhes paralisa a vontade. Eles sofrem as consequências de sua existência; foram inúteis, não tiveram nenhuma iniciativa, não encontram nenhuma ajuda entre si. Ficam abandonados a si mesmos até que a lassidão desse estado neutro os faça desejar mudar; então, à menor vontade que desperta neles, eles encontram apoio e bons conselhos para auxiliar seus esforços e perseverar.
6. Podeis dizer-me alguma coisa sobre a vossa vida terrestre? – R. Ah, bem pouca coisa, deves compreendê-lo. O tédio, a inutilidade, a ociosidade provêm da preguiça; a preguiça é mãe da ignorância.
7. Vossas existências anteriores não vos fizeram avançar? – R. Sim, todas, mas muito fracamente, pois todas foram o reflexo umas das outras. Sempre há progresso, mas tão pouco sensível, que é inapreciável para nós.
8. Aguardando que recomeceis uma outra existência, quereis vir mais frequentemente perto de mim? – R. Chama-me para me coagires a isso; prestarme- ás um favor.
9. Podeis dizer-me por que vossa letra muda frequentemente? – R. Porque perguntas muito; isso me cansa, e preciso de ajuda.
O guia do médium. É o trabalho da inteligência que o cansa e que nos obriga a lhe prestar ajuda para que ele possa responder às tuas perguntas. É um desocupado do mundo dos Espíritos como o foi do mundo terrestre. Trouxemo-lo para tentar tirá-lo da apatia desse tédio que é um verdadeiro sofrimento, mais penoso às vezes do que os sofrimentos agudos, pois ela pode prolongar-se indefinidamente. Consegues imaginar a tortura da perspectiva de um tédio sem fim? A maioria dos Espíritos dessa categoria busca uma existência terrestre apenas como distração, e para romper a insuportável monotonia de sua existência espiritual; assim eles chegam aí muitas vezes sem resoluções tomadas para o bem, é por isso que devem recomeçar até que, enfim, o progresso real se faça sentir neles.
A rainha de Oude
Morta na França em 1858.
1. Que sensação experimentastes ao deixar a vida terrestre? – R. Não saberia dizê-lo; ainda experimento perturbação. P. – Sois feliz? – R. Lamento a vida... não sei... sinto uma dor pungente; a vida me teria libertado dela... gostaria que meu corpo se levantasse do sepulcro.
2. Lamentais não ter sido sepultada no vosso país e de tê-lo sido entre os cristãos? – R. Sim, a terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo. P. – O que pensais da cerimônia fúnebre prestada aos vossos restos mortais? – R. Foi bem pouca coisa; eu era rainha, e nem todos se ajoelharam diante de mim... Deixaime... obrigam-me a falar... não quero que saibais o que sou agora... eu fui rainha, sabei-o bem.
3. Respeitamos vossa posição, e pedimos-vos que aceiteis responder para nossa instrução. Pensais que vosso filho recuperará um dia os Estados de seu pai? – R. Certamente, meu sangue reinará; ele é digno disso. P. – Atribuís à reintegração de vosso filho a mesma importância que quando viva? – R. Meu sangue não pode ser confundido na multidão.
4. Não foi possível escrever na vossa certidão de óbito o vosso lugar de nascimento; poderíeis dizê-lo agora? – R. Nasci do mais nobre sangue da Índia. Creio que nasci em Delhi.
5. Vós que vivestes nos esplendores do luxo, e que estivestes rodeada de honras, o que pensais disso agora? – R. Elas me eram devidas. P. – A posição que ocupastes na terra vos dá uma posição mais elevada no mundo em que estais hoje? – R. Sou sempre rainha... enviem-me escravos para me servir!... Não sei: não parece que se preocupem comigo aqui... no entanto, eu sou sempre eu.
6. Pertencíeis à religião muçulmana, ou a uma religião hindu? – R. Muçulmana; mas eu era demasiado grande para me ocupar de Deus. P. – Que diferença fazeis entre a religião que professáveis e a religião cristã, para a felicidade da humanidade. – R. A religião cristã é absurda; diz que todos são irmãos. P. – Qual é vossa opinião sobre Maomé? – R. Ele não era filho de rei. P.
– Credes que ele tinha uma missão divina? – R. Que me importa isso! P. – Qual é vossa opinião sobre o Cristo? – R. O filho do carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.
7. O que pensais do uso que subtrai as mulheres muçulmanas dos olhares dos homens? – R. Penso que as mulheres são feitas para dominar: eu era mulher. P. – Invejastes algumas vezes a liberdade de que gozam as mulheres na Europa? – R. Não; que me importava a liberdade delas! São servidas de joelhos?
8. Recordais-vos de ter tido outras existências na terra antes desta que acabais de deixar? – R. Devo ter sido sempre rainha.
9. Por que viestes tão prontamente ao nosso apelo? – R. Eu não o quis; forçaram-me a isso... Pensas que eu me teria dignado a responder? O que sois vós perto de mim? P. – Quem vos forçou a vir? – R. Não o sei... porém, não deve haver alguém maior do que eu.
10. Sob que forma estais aqui? – R. Sou sempre rainha... pensas que cessei de sê-lo? Vós sois pouco respeitosos... sabei que se fala de outro modo com rainhas.
11. Se pudéssemos ver-vos, ver-vos-íamos com vossos adornos, vossas joias? – R. Certamente! P. – Como explicar que tendo deixado tudo isso, vosso Espírito lhes tenha conservado a aparência, sobretudo de vossos adornos? – R. Eles não me deixaram... Continuo tão bela como era... não sei que ideia fazeis de mim! É verdade que jamais me vistes.
12. Que impressão experimentais de vos encontrardes entre nós? – R. Se eu pudesse, não estaria aqui; vós me tratais com tão pouco respeito!
São Luís. Deixai-a, pobre desorientada; tende compaixão de sua cegueira; que ela vos sirva de exemplo, não sabeis quanto sofre seu orgulho.
Observação: Ao evocar essa grandeza decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas de grande profundidade, tendo em vista o gênero de educação das mulheres daquele país; mas pensávamos encontrar nesse Espírito, senão filosofia, ao menos um sentimento mais verdadeiro da realidade, e ideias mais sãs sobre as vaidades e as grandezas daqui debaixo. Longe disso: nele as ideias terrestres conservaram toda a sua força; é o orgulho que nada perdeu de suas ilusões, que luta contra sua própria fraqueza, e que deve efetivamente sofrer muito com a sua impotência.
Xumène
(Bordeaux, 1862.)
Sob este nome, um Espírito se apresenta espontaneamente ao médium habituado a este gênero de manifestações, pois sua missão parece ser a de assistir os Espíritos inferiores que seu guia espiritual lhe traz, com o duplo objetivo de sua própria instrução e do adiantamento deles.
P. Quem sois? Este nome é de um homem ou de uma mulher? – R. Homem, e tão desgraçado quanto possível. Sofro todos os tormentos do inferno.
P. Se o inferno não existe, como podeis experimentar-lhe os tormentos? –
R. Pergunta inútil. P. – Se eu o entendo, outros podem ter necessidade de explicações. – R. Não me incomodo com isso.
P. O egoísmo não está entre as causas de vossos sofrimentos? – R. Talvez.
P. Se quereis ser aliviado, começai por repudiar vossas más inclinações. –
R. Não te incomodes com isso, não te diz respeito; começa orando por mim como pelos outros, depois veremos. P. – Se não me ajudardes com vosso arrependimento, a prece será pouco eficaz. – R. Se falares em vez de orar, avançar-me-ás pouco.
P. Desejais então avançar? – R. Talvez; não se sabe. Vejamos se a prece alivia os sofrimentos; é o essencial. P. – Então juntai-vos a mim com a vontade firme de obter dela algum alívio. – R. Vai em frente.
P. (Após uma prece do médium.) Estais satisfeito? – R. Não como eu gostaria. P. – Um remédio aplicado pela primeira vez não pode curar imediatamente uma doença antiga. – R. É possível. P. – Quereis voltar? – R. Sim, se me chamares.
O guia do médium. Minha filha, terás dificuldades com esse Espírito endurecido, mas não haveria mérito em salvar aqueles que não se perderam! Coragem! Persevera, e conseguirás. Não há tamanhos culpados que não se possa reconduzir pela persuasão e pelo exemplo, pois os Espíritos mais perversos acabam por se emendar com o tempo; se não se consegue imediatamente reconduzi-los aos bons sentimentos, o que muitas vezes é impossível, o esforço feito não será em vão. As ideias que a eles forem lançadas agitam-nos e fazem-nos refletir mesmo a seu malgrado; são sementes que cedo ou tarde darão seus frutos. Não se abate uma rocha ao primeiro golpe de picareta.
Isto que te digo, minha filha, aplica-se também aos encarnados, e deves compreender porque o Espiritismo, mesmo entre firmes crentes, não faz imediatamente homens perfeitos. A crença é um primeiro passo; a fé vem em seguida, e a transformação terá sua vez; mas para muitos será necessário vir retemperar-se no mundo dos Espíritos.
Observação: Entre os endurecidos, não há somente Espíritos perversos e maus. Há muitos que, sem procurar fazer mal, ficam para trás por orgulho, indiferença ou apatia. Não são menos infelizes por isso, pois sofrem tanto mais com sua inércia quanto não têm por compensação as distrações do mundo; a perspectiva do infinito torna sua posição intolerável, e, no entanto, eles não têm a força nem a vontade de sair disso. São aqueles que, na encarnação, levam essas existências ociosas, inúteis para eles mesmos e para os outros, e que muitas vezes acabam por se suicidar, sem motivos sérios, por desgosto da vida.
Esses Espíritos são em geral mais difíceis de trazer de volta ao bem do que aqueles que são francamente maus, porque, nestes últimos, há energia; uma vez esclarecidos, são tão ardentes para o bem quanto o foram para o mal. Aos outros, será talvez preciso de muitas existências para progredirem sensivelmente; mas pouco a pouco, vencidos pelo tédio, como outros pelo sofrimento, procurarão uma distração numa ocupação qualquer que, mais tarde, se tornará para eles uma necessidade.
Capítulo VIII - Expiações terrestres
Marcel
O menino do n° 4
Num hospital de província estava uma criança de oito a dez anos, num estado difícil de descrever; era designada apenas sob o n0 4. Inteiramente disforme, seja por deformidade natural, seja em consequência da doença, suas pernas tortas alcançavam-lhe o pescoço; sua magreza era tamanha que a pele se dilacerava sob a saliência dos ossos; seu corpo era uma ferida só e seus sofrimentos atrozes. Pertencia a uma pobre família israelita, e essa triste posição durava há quatro anos. Sua inteligência era notável para a idade; sua doçura, sua paciência e resignação eram edificantes. O médico, sob cujo cuidado ele se encontrava, tocado de compaixão por esse pobre ser de algum modo abandonado, pois não parecia que os pais o viessem ver com frequência, interessou-se por ele, e tinha prazer em conversar com ele, encantado com sua razão precoce. Não só o tratava com bondade, mas, quando suas ocupações lhe permitiam, vinha ler para ele, e espantava-se com a retidão de seu julgamento sobre coisas que pareciam acima da sua idade.
Um dia, a criança disse-lhe: “Doutor, tende a bondade de me dar mais pílulas, como as últimas que me receitastes. – E por que isso, minha criança? disse o médico; dei-te o suficiente, e temeria que uma quantidade maior te fizesse mal. – É que, como vedes, retomou a criança, eu sofro tanto que por mais que me esforce para não gritar, e peça a Deus que me dê força para não incomodar os outros doentes que estão ao meu lado, muitas vezes tenho muita dificuldade para me impedir de fazê-lo; essas pílulas me adormecem, e durante esse tempo ao menos eu não incomodo ninguém.”
Essas palavras bastam para mostrar a elevação da alma que esse corpo disforme encerrava. De onde extraíra essa criança sentimentos desses? Não podia ser do meio onde fora criado, e, aliás, na idade em que começou a sofrer, ainda não podia compreender nenhum raciocínio; eles eram portanto inatos nele; mas então, com tão nobres instintos, por que Deus o condenava a uma vida tão miserável e tão dolorosa, admitindo que ele tivesse criado essa alma ao mesmo tempo que esse corpo, instrumento de tão cruéis sofrimentos? Ou é preciso negar a bondade de Deus, ou é preciso admitir uma causa anterior, ou seja, a preexistência da alma e a pluralidade das existências. Essa criança morreu, e seus últimos pensamentos foram para Deus e para o médico caridoso que tivera compaixão dele.
Algum tempo depois ela foi evocada na Sociedade de Paris, onde deu a comunicação seguinte. (1863)
“Vós me chamastes; vim fazer com que minha voz se ouça além deste recinto para atingir todos os corações; que o eco que ela fizer vibrar se ouça até na solidão deles; ela lhes recordará que a agonia da terra prepara as alegrias do céu, e que o sofrimento não é senão a casca amarga de um fruto deleitável que dá coragem e resignação. Ela lhes dirá que na cama onde jaz a miséria, estão os enviados de Deus, cuja missão é ensinar à humanidade que não há dor que não se possa suportar com a ajuda do Onipotente e dos bons Espíritos. Ela lhes dirá ainda para escutar as queixas misturando-se às preces, e para compreender-lhes a harmonia piedosa, tão diferente dos acentos culpados da queixa misturando-se às blasfêmias.
“Um de vossos bons Espíritos, grande apóstolo do Espiritismo, teve a bondade de me deixar este lugar esta noite; também 39 devo dizer-vos por minha vez algumas palavras sobre o progresso da vossa doutrina. Ela deve ajudar em sua missão aqueles que se encarnam entre vós para aprender a sofrer. O Espiritismo será o poste indicador; eles terão o exemplo e a voz; é então que as queixas serão transformadas em gritos de alegria e em choros de júbilo.”
P. Parece, segundo o que acabais de dizer, que vossos sofrimentos não eram a expiação de faltas anteriores?
R. Eles não eram uma expiação direta, mas ficai seguros de que toda dor tem sua causa justa. Aquele que conhecestes tão miserável foi belo, grande, rico e adulado; eu tinha aduladores e cortesãos: fui vaidoso por isso e orgulhoso. Não há muito tempo fui bem culpado; reneguei Deus e fiz mal ao meu próximo; mas expiei-o cruelmente, primeiro no mundo dos Espíritos, e em seguida na terra. O que suportei durante alguns anos somente nesta última e curtíssima existência, sofri-o durante uma vida inteira até à extrema velhice. Pelo meu arrependimento, recobrei a graça diante do Senhor, que se dignou a me confiar várias missões, das quais conheceis a última. Eu a solicitei para terminar meu aperfeiçoamento. Adeus, meus amigos, voltarei algumas vezes ao vosso meio. Minha missão é consolar e não instruir; mas há tantos aqui cujas feridas estão escondidas que ficarão contentes com a minha vinda.
Pobre pequeno ser sofredor, fraco, ulceroso e disforme! Quantos gemidos deixava ouvir neste asilo de miséria e de lágrimas! E apesar da sua pouca idade, como era resignado, e como sua alma já compreendia a finalidade dos sofrimentos! Ele bem sentia que no além-túmulo lhe aguardava uma recompensa para tantas queixas abafadas! Também, como rezava por aqueles que não tinham, como ele, coragem para suportar seus males, por aqueles sobretudo que lançavam ao céu blasfêmias em vez de preces!
Se a agonia foi longa, a hora da morte não foi terrível; os membros convulsionados torciam-se sem dúvida, e mostravam aos assistentes um corpo deformado revoltando-se contra a morte, a lei da carne que quer viver apesar de tudo; mas um anjo planava acima do leito do moribundo e cicatrizava seu coração; depois, ele levou nas suas asas brancas essa alma tão bela que escapava desse corpo informe pronunciando estas palavras: Glória vos seja prestada, ó meu Deus! E essa alma elevada para o Onipotente, feliz, exclamou: Eis-me, Senhor; vós me havíeis dado a missão de aprender a sofrer; suportei dignamente a prova?
E agora o Espírito da pobre criança retomou suas proporções; plana no espaço, indo do fraco ao pequeno, dizendo a todos: Esperança e coragem. Desprendido de toda matéria e de toda mácula, ele está aí perto de vós, fala-vos,não mais com sua voz débil e queixosa, mas com másculos acentos; ele vos disse: Aqueles que me olharam, viram a criança que não murmurava; extraíram daí a calma para seus males, e seus corações se fortaleceram na doce confiança em Deus; eis a finalidade da minha curta passagem na terra.
SANTO AGOSTINHO.
Szymel Slizgol
Era um pobre israelita de Vilna, morto em maio de 1865. Durante trinta anos mendigara, de gamela na mão. Por toda parte, na cidade, seu grito era conhecido: “lembrai-vos dos pobres, das viúvas e dos órfãos!” Durante esse tempo, Slizgol reunira 90.000 rublos, mas não guardou um único copeque para si mesmo. Aliviava os doentes que ele mesmo tratava; pagava o ensino das pobres crianças, distribuía aos necessitados os comestíveis que lhe davam. A noite era dedicada à preparação de rapé que o mendigo vendia para se sustentar. O que lhe sobrava pertencia aos pobres. Szymel era sozinho no mundo. No dia do seu enterro, uma grande parte da população da cidade seguiu seu cortejo fúnebre, e as lojas ficaram fechadas.
(Sociedade Espírita de Paris, 15 de junho de 1865.)
Evocação. – Bastante feliz, e tendo enfim alcançado a plenitude de minha ambição, que paguei bem caro, estou aqui, no meio de vós desde o começo da reunião desta noite. Agradeço-vos por vos ocupardes do Espírito do pobre mendigo que, com alegria, vai tentar responder às vossas perguntas.
P. Uma carta de Vilna fez-nos conhecer as particularidades mais notáveis da vossa existência. É pela simpatia que elas nos inspiram que tivemos o desejo de conversar convosco. Agradecemos por terdes vindo ao nosso chamado, e uma vez que tendes a bondade de nos responder, ficaremos felizes, para a nossa instrução, de conhecer vossa situação como Espírito e as causas que motivaram o gênero de vossa última existência.
R. Primeiramente, concedei ao meu Espírito, que compreende sua verdadeira posição, o favor de vos dizer sua opinião sobre um pensamento que vos veio a meu respeito; peço vossos conselhos se ela estiver errada.
Vós achais singular que a manifestação pública tenha tomado tal desenvolvimento para prestar homenagem ao homem de nada, que soube, pela sua caridade, atrair para si tal simpatia. – Não digo isso para vós, caro mestre, nem para ti, caro médium, nem para todos vós, espíritas verdadeiros e sinceros, mas falo para as pessoas indiferentes à crença. – Não há nisso nada de espantoso. A força da pressão moral que a prática do bem exerce sobre a humanidade é tal que, por mais materiais que sejamos, inclinamo-nos sempre; saudamos o bem, a despeito da tendência que temos para o mal.
Agora, chego às vossas perguntas que, da vossa parte, não são ditadas pela curiosidade, mas formuladas unicamente tendo em vista a instrução geral. Vou então, visto que tenho essa liberdade, dizer-vos, o mais brevemente possível, quais são as causas que motivaram e determinaram minha última existência.
Há vários séculos, eu vivia com o título de rei, ou pelo menos de príncipe soberano. No meu círculo de poder, relativamente estrito se comparado aos vossos Estados atuais, eu era o senhor absoluto do destino dos meus súditos; eu agia como tirano, digamos a palavra: como carrasco. De caráter imperioso, violento, avaro e sensual, vós vedes daqui qual devia ser o destino dos pobres seres que viviam sob as minhas leis. Eu abusava do meu poder para oprimir o fraco, para recorrer aos serviços de toda espécie de ofícios, de trabalhos, de paixões e de dores, para o serviço de minhas próprias paixões. Assim, eu taxava o produto da mendicância; ninguém podia mendigar, sem que previamente eu tivesse pegado para mim grande parte daquilo que a compaixão humana deixava cair na gamela da miséria. Mais do que isso: a fim de não diminuir a quantidade de mendigos entre meus súditos, proibi os infelizes de darem a seus amigos, a seus pais, a seus próximos, a pequena parte que restava a esses pobres seres. Numa palavra, fui tudo o que há de mais implacável para com o sofrimento e a miséria.
Perdi, enfim, o que chamais vida, em tormentos e sofrimentos horríveis; minha morte foi um exemplo de terror para todos aqueles que, como eu, mas numa escala menor, compartilhavam minha maneira de ver. Permaneci no estado de Espírito errante durante três séculos e meio, e quando ao fim desse lapso de tempo, compreendi que o objetivo da encarnação era completamente diferente daquele que meus sentidos grosseiros e obtusos me haviam feito perseguir, obtive, graças a preces, resignação e lamentos, a permissão de tomar a tarefa material de suportar os mesmos sofrimentos, e mais ainda, que eu
fizera sofrer. Obtive essa permissão, e Deus deixou-me o direito, pelo meu livrearbítrio, de ampliar meus sofrimentos morais e físicos. Graças ao auxílio dos bons Espíritos que me assistiam, persisti na minha resolução de praticar o bem, e agradeço-lhes por isso, pois eles me impediram de sucumbir na tarefa que eu assumira.
Terminei enfim uma existência que resgatou, pela sua abnegação e sua caridade, o que a outra tivera de cruel e injusto. Nasci de pais pobres; órfão desde cedo, aprendi a bastar-me a mim mesmo na idade em que se é ainda considerado como incapaz de compreender. Vivi sozinho, sem amor, sem afeições, e mesmo, no começo da vida, suportei a brutalidade que exercera sobre os outros. Diz-se que as somas recolhidas por mim foram todas consagradas ao alívio de meus semelhantes; é um fato exato, e sem ênfase como sem orgulho, acrescento que muitas vezes, ao preço de privações relativamente fortes, fortíssimas, aumentei o bem que a caridade pública me permitia fazer.
Morri com calma, confiante no prêmio que havia obtido a reparação feita pela minha última existência, e sou recompensado além de minhas secretas aspirações. Sou hoje feliz, muito feliz por poder dizer-vos que todo aquele que se elevar será abaixado, e que aquele que se humilhar será elevado.
P. Dizei-nos, peço-vos, em que consistiu a vossa expiação no mundo dos Espíritos, e quanto tempo ela durou desde a vossa morte até o momento em que vosso destino foi abrandado pelo efeito do arrependimento e das boas resoluções que tomastes. Dizei-nos também o que provocou em vós essa mudança nas vossas ideias no estado de Espírito.
R. Vós me trazeis de volta à memória recordações bem dolorosas! Como sofri... Mas não me queixo: recordo-me!... Quereis saber de que natureza foi a minha expiação; ei-la em todo o seu terrível horror. Carrasco, como vos disse, de toda espécie de bons sentimentos, permaneci muito tempo, muito tempo, ligado pelo meu perispírito ao meu corpo em decomposição. Eu me senti, até à sua completa putrefação, roído pelos vermes que me faziam sofrer muito! Logo que me libertei dos laços que me prendiam ao instrumento do meu suplício, sofri outro ainda mais cruel. Depois do sofrimento físico, veio o sofrimento moral, e este durou muito mais tempo ainda do que o primeiro. Fui posto na presença de todas as vítimas que eu havia torturado. Periodicamente, e por uma força maior do que a minha, era colocado de novo diante de minhas ações culpadas. Eu via física e moralmente todas as dores que fizera suportar. Oh! meus amigos, quão terrível é a visão constante daqueles a quem se fez mal! Vós tendes um pequeno exemplo disso entre vós na confrontação do acusado com sua vítima. Eis, de forma sucinta, o que sofri durante dois séculos e meio, até que Deus, tocado pela minha dor e meu arrependimento, solicitado pelos guias que me assistiam, permitisse que eu seguisse a vida de expiação que conheceis.
P. Um motivo particular vos impeliu a escolher vossa última existência na religião israelita? – R. Não escolhida por mim, mas que eu aceitei segundo o conselho dos meus guias. A religião israelita acrescentava uma pequena humilhação à minha vida de expiação; pois, em certos países sobretudo, a maioria dos encarnados despreza os israelitas, e particularmente os judeus
mendigos.
P. Na vossa última existência, com que idade começastes a executar as resoluções que havíeis tomado? Como esse pensamento vos veio? Enquanto exercíeis assim a caridade com tanta abnegação, tínheis alguma intuição da causa que vos impelia?
R. Eu nasci de pais pobres, mas inteligentes e avarentos. Ainda jovem, fui privado da afeição e das carícias da minha mãe. Senti com sua perda uma mágoa tanto mais viva quanto meu pai, dominado pela paixão do ganho, me abandonava inteiramente. Meus irmãos e minhas irmãs, todos mais velhos do que eu, não pareciam perceber meus sofrimentos. Um outro judeu, movido por um pensamento mais egoísta do que caridoso, me recolheu e me mandou aprender a trabalhar. Ele recuperou amplamente, pelo produto dos meus trabalhos que frequentemente ultrapassavam as minhas forças, o que eu podia lhe ter custado. Mais tarde, libertei-me dessa sujeição e trabalhei para mim. Mas, em toda a parte, na atividade como no repouso, eu era perseguido pela recordação das carícias da minha mãe, e à medida que ficava mais velho, sua lembrança se gravava mais profundamente na minha memória, e eu tinha ainda mais saudades dos seus cuidados e do seu amor.
Logo passei a ser o único da família; a morte, em alguns meses, levou toda a minha família. Foi então que começou a revelar-se a maneira pela qual eu devia passar o resto da minha existência. Dois dos meus irmãos haviam deixado órfãos. Comovido pela recordação do que eu sofrera, quis preservar esses pobres pequenos seres de uma juventude semelhante à minha, e não sendo o meu trabalho suficiente para nos fazer subsistir a todos, comecei a estender a mão, não para mim, mas para os outros. Deus não devia me deixar o consolo de gozar dos meus esforços; os pobres pequenos me deixaram para sempre. Eu via bem o que lhes havia faltado: era a mãe. Resolvi então pedir a caridade para as viúvas desgraçadas que, não podendo arcar consigo mesmas e com seus filhos, se impunham privações que as conduziam ao túmulo, deixando pobres órfãos que ficavam assim abandonados e entregues aos tormentos que eu mesmo suportara.
Eu tinha trinta anos quando, cheio de força e de saúde, me viram mendigar para a viúva e o órfão. O começo foi penoso, e precisei suportar mais de uma palavra humilhante. Mas, quando viram que eu realmente distribuía tudo aquilo que recebia em nome dos meus pobres; quando me viram juntar a isso ainda a sobra do meu trabalho, adquiri uma espécie de consideração que não deixava de ter para mim um certo encanto. Vivi sessenta e alguns anos, e nunca faltei à tarefa que me impusera.
Também nunca um aviso da consciência veio me fazer supor que um motivo anterior à minha existência fosse a razão da minha maneira de agir. Somente, um dia antes de começar a estender a mão, ouvi estas palavras: “Não façais aos outros aquilo que não gostaríeis que vos fizessem.” Fiquei tocado pela moralidade geral contida nessas poucas palavras, e com frequência surpreendia-me a acrescentar-lhes estas: “Mas fazei-lhes ao contrário o que gostaríeis que vos fosse feito.” A recordação da minha mãe e a dos meus sofrimentos ajudando, continuei a avançar numa carreira que minha consciência me dizia ser boa. Vou terminar esta longa comunicação dizendo-vos obrigado!
Ainda não sou perfeito, mas sabendo que o mal leva somente ao mal, farei de novo, como o fiz, o bem para colher felicidade.
SZYMEL SLIZGOL.
Julienne-Marie
A mendiga
No município de Villate, perto de Nozai (Loire-Inferior), havia uma pobre mulher, chamada Julienne-Marie, velha, enferma, e que vivia da caridade pública. Um dia, ela caiu num lago, de onde foi retirada por um habitante da região, o Sr. A...., que lhe prestava habitualmente auxílio. Transportada a seu domicílio, morreu pouco tempo depois por causa das consequências do acidente. A opinião geral era que ela quis suicidar-se. No próprio dia da morte, aquele que a salvara, que é espírita e médium, sentiu sobre toda a sua pessoa como o roçar de alguém que estaria perto dele, sem todavia entender a causa disso; logo que soube da morte de Jeanne-Marie, veio-lhe o pensamento de que talvez seu Espírito tivesse vindo visitá-lo. Seguindo a opinião de um dos seus amigos, membro da Sociedade Espírita de Paris, ao qual contara o que se passara, ele fez a evocação dessa mulher, com o objetivo de lhe ser útil; mas, previamente, pediu conselho aos seus guias protetores, dos quais recebeu a resposta seguinte:
“Tu podes, e isso lhe dará prazer, embora o favor que propões fazer-lhe seja inútil; ela é feliz e inteiramente devotada àqueles que foram compassivos para com ela. Tu és um de seus bons amigos; ela não te deixa e conversa frequentemente contigo sem que saibas. Cedo ou tarde os favores prestados são recompensados, se não for pelo devedor das obrigações, é por aqueles que se interessam por ele, antes da sua morte como depois; quando o Espírito não teve tempo de se reconhecer, são outros Espíritos simpáticos que testemunham em seu nome todo o seu reconhecimento. Eis o que explica o que sentiste no dia da sua morte. Agora é ela que te ajuda no bem que queres fazer. Lembra-te do que Jesus disse: “Aquele que foi rebaixado será elevado;” terás a medida dos serviços que ela pode prestar-te, se todavia não lhe pedires assistência senão para ser útil ao teu próximo.”
Evocação. Boa Julienne-Marie, sois feliz, é tudo o que eu queria saber; isso não me impedirá de pensar frequentemente em vós, e de nunca vos esquecer nas minhas preces.
R. Confia em Deus; inspira aos teus doentes uma fé sincera, e terás sucesso quase sempre. Nunca te ocupes da recompensa que advirá, ela será além da tua expectativa. Deus sabe sempre recompensar como merece aquele que se consagra ao alívio dos seus semelhantes, e realiza suas ações por altruísmo; sem isso tudo não passa de ilusão e quimera; é preciso de fé antes de tudo; de outro modo, nada. Lembra-te desta máxima, e ficarás espantado com os resultados que obterás. Os dois doentes que curaste são a prova disso; nas circunstâncias em que se encontravam, com os simples remédios, terias fracassado. Quando pedires a Deus para permitir aos bons Espíritos que derramem sobre ti seu fluido benfazejo, se esse pedido não te faz sentir estremecimento involuntário, é que tua prece não é assaz fervorosa para ser escutada; ela só o é nas condições que te indico. Foi o que experimentaste quando disseste do fundo do coração:
“Deus onipotente, Deus misericordioso, Deus de bondade sem limite, escutai a minha prece, e permiti aos bons Espíritos assistir-me na cura de...; tende compaixão dele, meu Deus, e devolvei-lhe a saúde; sem vós, eu nada posso. Que a vossa vontade seja feita.”
Fizeste bem de não desdenhar os humildes; a voz daquele que sofreu e suportou com resignação as misérias deste mundo é sempre escutada; e como vês, um serviço prestado recebe sempre sua recompensa. Agora, uma palavra sobre mim, e isso confirmará o que foi dito antes.
O Espiritismo explica-te minha linguagem como Espírito: não preciso entrar em detalhes a esse respeito. Creio igualmente inútil contar-te minha existência precedente. A posição em que me conheceste nesta terra deve te fazer compreender e apreciar minhas outras existências, que nem sempre foram sem mácula. Destinada a uma vida de miséria, enferma e sem poder trabalhar, mendiguei toda a minha vida. Não entesourei; na velhice, minhas pequenas economias se limitavam a uma centena de francos, que eu reservava para quando as pernas não me pudessem mais carregar. Deus julgou minha provação e minha expiação suficientes, e lhes pôs termo libertando-me, sem sofrimento, da vida terrestre, pois eu não me suicidei como acreditaram primeiro. Morri subitamente à beira do lago, no momento em que dirigia minha última prece a Deus; a inclinação do terreno é a causa da presença do meu corpo na água.
Não sofri; estou feliz de ter podido cumprir minha missão sem entraves e com resignação. Tornei-me útil, na medida das minhas forças e dos meus meios, e evitei fazer o mal ao meu próximo. Hoje recebo a recompensa por isso, e dou graças a Deus, nosso divino Mestre, que adoça a amargura das provas fazendonos esquecer, durante a vida, nossas antigas existências, e põe em nosso caminho almas caridosas para nos ajudar a suportar o fardo das nossas faltas passadas.
Persevera tu também, e como eu, serás recompensado. Agradeço-te tuas boas preces e o serviço que me prestaste; não o esquecerei nunca. Um dia rever-nos-emos, e muitas coisas te serão explicadas; no momento, seria supérfluo. Fica sabendo somente que te sou inteiramente devotada, e que estarei sempre perto de ti quando precisares de mim para aliviar aquele que sofre. A pobre boa mulher, JULIENNE-MARIE.
Tendo o Espírito de Julienne-Marie sido evocado na Sociedade de Paris, em 10 de junho de 1864, ditou a comunicação seguinte.
“Obrigada por terdes aceitado admitir-me no vosso meio, caro presidente; sentistes bem que minhas existências anteriores eram mais elevadas como posição social; se voltei para suportar esta prova da pobreza, era para me punir de um vaidoso orgulho que me fizera repelir o que era pobre e miserável. Então sofri esta lei justa do talião, que me tornou a mais horrível pobre desta região; e, como para me provar a bondade de Deus, eu não era repelida por todos: esse era todo o meu temor; assim suportei minha prova sem murmurar, pressentindo uma vida melhor da qual eu não devia mais voltar a esta terra de exílio e de calamidade.
“Que felicidade, no dia em que nossa alma, ainda jovem, pode voltar à vida espiritual para rever os seres amados! Pois também eu amei e estou feliz de ter reencontrado aqueles que me precederam. Obrigada a esse bom Sr. A... que me abriu a porta do reconhecimento; sem a sua mediunidade, eu não teria podido agradecer-lhe, provar-lhe que minha alma não esquece as felizes influências do seu bom coração, e recomendar-lhe propagar sua divina crença. Ele é chamado a reconduzir almas desgarradas; que ele se persuada do meu apoio. Sim, eu posso devolver-lhe elevado ao cêntuplo o que ele me fez, instruindo-o na via que seguis. Agradecei ao Senhor ter permitido que os Espíritos possam dar-vos instruções para encorajar o pobre nas suas penas e deter o rico em seu orgulho. Sabei compreender a vergonha que há em repelir um desgraçado; que eu vos sirva de exemplo, a fim de evitardes vir como eu expiar vossas faltas por essas dolorosas posições sociais que vos colocam tão baixo, e fazem de vós o refugo da sociedade.”
JULIENNEMARIE.
Tendo esta comunicação sido transmitida ao Sr. A..., ele obteve por seu lado a que segue, e que é sua confirmação: P. Boa Julienne-Marie, visto que quereis ajudar-me com vossos bons conselhos, a fim de me fazer progredir no caminho da nossa divina doutrina, tende a bondade de vos comunicar comigo; farei todos os esforços para aproveitar vossos ensinamentos.
R. Lembra-te da recomendação que te vou fazer, e nunca te afastes dela. Sê sempre caridoso na medida dos teus meios; tu compreendes suficientemente a caridade tal como se deve praticá-la em todas as posições da vida terrestre. Não preciso então vir dar-te um ensinamento a esse respeito, tu mesmo serás o melhor juiz, seguindo, todavia, a voz da tua consciência que nunca te enganará, quando a escutares sinceramente.
Não te iludas sobre as missões que tendes de cumprir; pequenos e grandes têm a sua; a minha foi penosa, mas eu merecia semelhante punição pelas minhas existências anteriores, como vim confessar ao bom presidente da Sociedade matriz de Paris, à qual vos ligareis todos um dia. Esse dia não está tão distante quanto pensas; o Espiritismo caminha a passos de gigante, apesar de tudo o que se faz para entravá-lo. Caminhai então todos sem temor, fervorosos adeptos da doutrina, e vossos esforços serão coroados de sucesso. O que vos importa o que se dirá de vós! Colocai-vos acima de uma crítica irrisória que recairá sobre os adversários do Espiritismo.
Orgulhosos! Eles se creem fortes e pensam abater-vos facilmente; vós, meus bons amigos, ficai tranquilos, e não temais medir-vos com eles; é mais fácil vencê-los do que credes; muitos deles têm medo e temem que a verdade venha enfim ofuscar-lhes os olhos; aguardai, e eles virão por sua vez ajudar no coroamento do edifício.
JULIENNE-MARIE.
Observação: Este fato encerra muitos ensinamentos para todo aquele que meditar sobre as palavras deste Espírito nestas três comunicações; todos os grandes princípios do Espiritismo se encontram aqui reunidos. Desde a primeira, o Espírito mostra sua superioridade por sua linguagem; semelhante a uma fada benfazeja, esta mulher, hoje resplandecente, e como metamorfoseada, vem proteger aquele que não a repeliu sob os andrajos da miséria. É uma aplicação destas máximas do Evangelho: “Os grandes serão rebaixados e os pequenos serão elevados; bem-aventurados os humildes; bem-aventurados os aflitos, pois eles serão consolados; não desprezeis os pequenos, pois aquele que é pequeno neste mundo pode ser maior do que credes.”
Max
O mendigo
Num vilarejo da Baviera morreu, por volta do ano de 1850, um velho quase centenário, conhecido pelo nome de pai Max. Ninguém conhecia exatamente sua origem, pois ele não tinha família. Há cerca de meio século, achacado por enfermidades que não lhe permitiam ganhar a vida trabalhando, não tinha outros recursos senão a caridade pública que dissimulava indo vender nas quintas e nos castelos almanaques e pequenos objetos. Haviam-lhe dado o apelido de conde Max, e as crianças só o chamavam por Senhor conde, o que o fazia sorrir sem se ofender. Por que esse título? Ninguém poderia dizer; tornarase um hábito. Era talvez por causa de sua fisionomia e das suas maneiras cuja distinção contrastava com os andrajos. Vários anos depois da morte, ele apareceu em sonho à filha do proprietário de um dos castelos onde ele recebia hospitalidade na estrebaria, pois não tinha domicílio próprio. Ele disse-lhe:
“Agradeço-vos por vos terdes lembrado do pobre Max em vossas preces, pois elas foram ouvidas pelo Senhor. Desejais saber quem eu sou, alma caridosa que vos interessastes pelo desgraçado mendigo; vou satisfazer-vos; será para todos uma grande instrução.”
“Há cerca de um século e meio, eu era um rico e poderoso senhor desta região, mas vaidoso, orgulhoso e enfatuado com minha nobreza. Minha imensa fortuna jamais serviu senão para os meus prazeres, e ela mal bastava para isso, pois eu era jogador, devasso e passava a vida em orgias. Meus vassalos, que eu acreditava terem sido criados para meu uso como os animais das quintas, eram sobrecarregados de impostos e maltratados para proverem minhas prodigalidades. Eu permanecia surdo às queixas deles como às de todos os desgraçados, e, na minha opinião, eles deviam considerar-se muito honrados de servir meus caprichos. Morri numa idade pouco avançada, esgotado pelos excessos, mas sem ter experimentado nenhuma verdadeira desgraça; tudo parecia, ao contrário, me sorrir, de sorte que eu era aos olhos de todos um dos felizardos do mundo: minha posição valeu-me suntuosa cerimônia fúnebre, os estroinas lamentaram em mim o faustoso senhor, mas nenhuma lágrima foi derramada sobre o meu túmulo, nenhuma prece do coração foi dirigida a Deus por mim, e minha memória foi amaldiçoada por todos aqueles cuja miséria eu aumentara. Ah! Como é terrível a maldição daqueles cuja desgraça fizemos! Ela não cessou de retinir nos meus ouvidos durante longos anos que me pareceram uma eternidade! E com a morte de cada uma das minhas vítimas, era uma nova figura ameaçadora ou irônica que se erguia diante de mim e me perseguia sem trégua, sem que eu pudesse encontrar um canto escuro para me subtrair da sua vista! Nem um olhar amigo! Meus antigos companheiros de devassidão, desgraçados como eu, fugiam de mim e pareciam dizer-me com desdém: “Não podes mais pagar os nossos prazeres.” Oh! como eu teria então pago caro por um instante de repouso, um copo d’água para saciar a sede ardente que me devorava! Mas não possuía mais nada, e todo o ouro que eu semeei às mancheias na terra não produziu uma única bênção, nem uma única, ouvis, minha criança!
“Enfim, oprimido pelo cansaço, esgotado como um viajante estafado que não vê o fim de sua estrada, gritei: “Meu Deus, tende compaixão de mim! Quando acabará esta horrível situação?” Então uma voz, a primeira que ouvia desde que deixara a terra, disse-me: “Quando quiseres. – O que é preciso fazer, grande Deus? respondi; dizei: submeto-me a tudo. – É preciso arrependeres-te; humilhares-te diante daqueles que humilhaste; pedir-lhes para interceder por ti, pois a prece do ofendido que perdoa é sempre agradável ao Senhor.” Humilheime, pedi a meus vassalos, meus servidores, que estavam ali à minha frente, e
cujas figuras, cada vez mais benevolentes, acabaram por desaparecer. Então, foi como uma nova vida para mim; a esperança substituiu o desespero e agradeci a Deus com todas as forças da minha alma. A voz me disse em seguida: “Príncipe!” e eu respondi: “Não há aqui outro príncipe senão o Deus onipotente que humilha os soberbos. Perdoai-me, Senhor, pois pequei; fazei de mim o servidor dos meus servidores, se tal é a vossa vontade.”
“Alguns anos mais tarde, nasci de novo, mas desta vez de uma família de pobres aldeões. Meus pais morreram quando eu ainda era criança, e fiquei no mundo sozinho e sem apoio. Ganhei a vida como pude, ora como servente de pedreiro, ora como moço de quinta, mas sempre honestamente, pois desta vez acreditava em Deus. Na idade de quarenta anos, uma doença paralisou-me todos os membros, e precisei mendigar durante mais de cinquenta anos nessas mesmas terras das quais havia sido o senhor absoluto; receber um pedaço de pão nas propriedades que possuíra, e onde, por uma amarga irrisão, me apelidaram senhor conde, demasiado feliz por encontrar um abrigo na estrebaria do castelo que fora meu. No meu sono, divertia-me a percorrer esse mesmo castelo onde reinara como déspota; quantas vezes, nos meus sonhos, me revi ali no meio da minha antiga fortuna! Essas visões deixavam-me ao acordar um indefinível sentimento de amargor e de lamentos; mas jamais uma queixa escapou da minha boca; e quando Deus quis chamar-me a si, bendisse-o por me ter dado a coragem de suportar sem murmúrio esta longa e penosa provação cuja recompensa recebo hoje; e vós, minha filha, bendigo-vos por terdes orado por mim.”
Observação: Recomendamos este fato àqueles que pretendem que os homens não teriam mais freio se não tivessem diante deles o espectro das penas eternas, e perguntamos se a perspectiva de um castigo como o do pai Marx é menos feita para deter no caminho do mal do que a de torturas sem fim nas quais já não se crê.
História de um empregado doméstico
Numa família de alta posição, havia um jovem empregado doméstico cujo rosto inteligente e fino nos impressionou pelo seu ar distinto; nada, em suas maneiras, expressava baixeza; sua diligência no serviço de seus patrões não tinha nada da obsequiosidade servil própria das pessoas nessa condição. No ano seguinte, tendo voltado a visitar essa família, não vimos mais esse rapaz e perguntamos se fora despedido. “Não, foi-nos respondido: ele foi passar alguns dias na sua terra, e morreu lá. Lamentamos muito, pois era um excelente servidor, e que tinha sentimentos verdadeiramente acima de sua posição. Ele era muito apegado a nós, e deu-nos provas de um grande devotamento.” Mais tarde, veio-nos o pensamento de evocar esse rapaz, e eis o que ele nos disse:
“Na minha penúltima encarnação, eu era, como se diz na terra, de uma excelente família, mas arruinada pelas prodigalidades do meu pai. Fiquei órfão muito cedo e sem recursos. Um amigo do meu pai acolheu-me; educou-me como filho e mandou dar-me uma bela educação da qual me envaideci um pouco demais. Esse amigo é hoje o Sr. de G..., a serviço do qual me vistes. Eu quis, na minha última existência, expiar meu orgulho nascendo numa condição servil, e encontrei aí a ocasião de provar minha lealdade ao meu benfeitor. Até lhe salvei a vida sem que ele tenha jamais desconfiado. Era ao mesmo tempo uma prova da qual saí vitorioso, visto que tive suficiente força para não me deixar corromper pelo contato de uma companhia quase sempre viciosa; apesar dos maus exemplos, permaneci puro, e agradeço a Deus por isso, pois sou recompensado pela felicidade de que gozo.
P. Em que circunstâncias salvastes a vida do Sr. de G...? – R. Num passeio a cavalo no qual eu o seguia sozinho, percebi uma grande árvore que caía ao lado dele e que ele não via; chamo-o dando um grito terrível; ele se vira vivamente, e durante esse tempo a árvore cai-lhe aos pés; sem o movimento que provoquei, ele seria esmagado.
O Sr. de G..., a quem o fato foi relatado, lembrou-se dele perfeitamente.
P. Por que morrestes tão jovem? – R. Deus julgara minha prova suficiente.
P. Como pudestes beneficiar-vos dessa prova, visto que não tínheis lembrança da causa que a motivara? – R. Na minha humilde posição, restavame um instinto de orgulho que fui bastante feliz de poder dominar, o que fez com que a prova me beneficiasse, sem isso teria ainda que recomeçá-la. Meu Espírito se lembrava em seus momentos de liberdade, e restava-me disso ao despertar um desejo intuitivo de resistir às minhas tendências que sentia serem más. Tive mais mérito ao lutar assim do que se me tivesse lembrado claramente do passado. A lembrança de minha antiga posição teria exaltado meu orgulho e ter-me-ia perturbado, ao passo que não tive que combater senão os arrebatamentos da minha nova posição.
P. Vós recebestes uma brilhante educação, de que vos serviu isso na vossa última existência, visto que não vos recordáveis dos conhecimentos que havíeis adquirido? – R. Esses conhecimentos teriam sido inúteis, até mesmo um contrassenso na minha nova posição; permaneceram latentes, e hoje eu os reencontro. No entanto, eles não me foram inúteis, pois desenvolveram minha inteligência; eu tinha instintivamente gosto pelas coisas elevadas, o que me inspirava repulsa pelos exemplos baixos e ignóbeis que tinha sob os olhos; sem essa educação, eu não teria sido senão um criado.
P. Os exemplos dos servidores dedicados a seus patrões até à abnegação têm por causa relações anteriores? – R. Não tenhais dúvida; é pelo menos o caso mais comum. Esses servidores são por vezes membros da família, ou, como eu, devedores que pagam uma dívida de reconhecimento, e cujo devotamento os ajuda a avançar. Vós não sabeis todos os efeitos de simpatia ou de antipatia que essas relações anteriores produzem no mundo. Não, a morte não interrompe essas relações, que se perpetuam com frequência de século em século.
P. Por que esses exemplos de dedicação de servidores são tão raros hoje em dia? – R. É preciso acusar o espírito de egoísmo e de orgulho do vosso século, desenvolvido pela incredulidade e as ideias materialistas. A fé verdadeira vai-se, substituída pela cupidez e o desejo de ganho, e com ela os devotamentos. O Espiritismo, reconduzindo os homens ao sentimento do verdadeiro, fará renascer as virtudes esquecidas.
Observação: Nada pode fazer ressaltar, melhor do que este exemplo, o benefício do esquecimento das existências anteriores. Se o Sr. de G... se tivesse lembrado do que fora seu jovem doméstico, teria ficado muito incomodado com ele, e nem o teria mantido nessa condição; teria assim entravado a prova que foi proveitosa para ambos.
Antonio B...
O Sr. Antonio B...., escritor de mérito, estimado por seus concidadãos, tendo cumprido com distinção e integridade funções públicas na Lombardia, caiu, por volta de 1850, em consequência de um ataque de apoplexia, num estado de morte aparente que se tomou, infelizmente, como ocorre às vezes, pela morte real. O erro era tanto mais fácil quanto se acreditava perceber no corpo sinais de decomposição. Quinze dias depois do enterro, uma circunstância fortuita determinou a família a pedir a exumação; tratava-se de um medalhão esquecido por descuido dentro do caixão; mas o estupor dos assistentes foi grande quando, na abertura, se reconheceu que o corpo mudara de posição, que se voltara, e, coisa horrível! que uma das mãos estava parcialmente comida pelo defunto. Ficou então manifesto que o desgraçado Antonio B... fora enterrado vivo; ele devia ter sucumbido às pressões do desespero e da fome.
Tendo o Sr. Antonio B... sido evocado na Sociedade de Paris, em agosto de 1861, a pedido de um de seus parentes, deu as explicações seguintes:
1. Evocação. – O que quereis de mim?
2. Um de vossos parentes nos pediu para vos evocarmos; fazemo-lo com prazer, e ficaremos felizes se quiserdes ter a bondade de nos responder. – R. Sim, respondo-vos de bom grado.
3. Recordais-vos das circunstâncias da vossa morte? – R. Ah! Certamente que as recordo; por que despertar essa lembrança de castigo?
4. É certo que fostes enterrado vivo por engano? – R. Isso devia ser assim, pois a morte aparente teve todos os caracteres de uma morte real; eu estava quase exangue. Não se deve imputar a ninguém um fato previsto desde antes do meu nascimento.
5. Se estas perguntas são de natureza a vos afligir, devemos parar com elas? – Não, continuai.
6. Gostaríamos de vos saber feliz, pois deixastes a reputação de um homem de bem. – R. Agradeço-vos muito; sei que rezareis por mim. Vou tentar responder, mas se fracassar, um de vossos guias me suprirá.
7. Podeis descrever as sensações que experimentastes naquele terrível momento? – R. Oh! que dolorosa prova! Sentir-se encerrado entre quatro pranchas, de maneira a não poder mexer-se nem mudar de posição! Não poder chamar; a voz já não ressoava, num meio privado de ar. Oh! que tortura a de um desgraçado que se esforça em vão para aspirar numa atmosfera insuficiente e desprovida da parte respirável! Infelizmente, eu estava como um condenado na boca de um forno, exceto o calor. Oh! não desejo a ninguém semelhantes torturas. Não, não desejo a ninguém um fim como o meu! Infelizmente! cruel punição de uma cruel e feroz existência! Não me pergunteis no que eu pensava, mas eu mergulhava no passado e entrevia vagamente o futuro.
8. Dizeis: cruel punição de uma feroz existência; mas vossa reputação, até agora intacta, não deixava supor nada semelhante. Podeis explicar-nos isso? – R. O que é a duração da existência na eternidade! Certamente, tentei agir bem na minha última encarnação; mas este fim fora aceito por mim antes de reentrar na humanidade. Ah! Por que interrogar-me sobre esse passado doloroso que só eu conhecia, assim como os Espíritos, ministros do Onipotente? Sabei então, já que é preciso dizer-vos tudo, que numa existência anterior, eu emparedara uma mulher, a minha! viva num jazigo! Foi a lei do talião que tive de aplicar a mim mesmo. Dente por dente, olho por olho.
9. Agradecemos-vos por terdes tido a bondade de responder às nossas perguntas, e pedimos a Deus para vos perdoar o passado em vista do mérito de vossa última existência. – R. Voltarei mais tarde; no mais, o Espírito de Erasto completará.
Instrução do guia do médium. O que deveis retirar deste ensinamento, é que todas as vossas existências dependem umas das outras, e que nenhuma é independente das outras; as preocupações, os aborrecimentos, como as grandes dores que atingem os homens, são sempre as consequências de uma vida anterior criminosa ou mal empregada. No entanto, devo dizer-vos, os fins semelhantes ao de Antonio B... são raros, e se este homem, cuja última existência foi isenta de reprovação, acabou desta maneira, foi porque ele mesmo solicitara semelhante morte, a fim de abreviar o tempo de sua erraticidade e alcançar mais rapidamente as esferas elevadas. Com efeito, após um período de perturbação e de sofrimento moral para expiar ainda seu crime horrendo, ele lhe será perdoado e ele se elevará a um mundo melhor onde reencontrará sua vítima, que o espera, e que já lhe perdoou há muito tempo. Sabei portanto aproveitar este exemplo cruel, para suportar com paciência, ó meus caros espíritas, os sofrimentos corporais, os sofrimentos morais, e todas as pequenas misérias da vida. P. Que proveito pode a humanidade retirar de semelhantes punições? – R. Os castigos não são feitos para desenvolver a humanidade, mas para punir o indivíduo culpado. Com efeito, a humanidade não tem nenhum interesse em ver sofrer um dos seus. Aqui a punição foi apropriada à falta. Por que há loucos? Por que há cretinos? Por que há pessoas paralisadas? Por que há os que morrem no fogo? Por que os que vivem anos nas torturas de uma longa agonia, não podendo viver nem morrer? Ah! Crede-me, respeitai a vontade soberana e não procureis sondar a razão dos decretos providenciais; sabei que Deus é justo e faz bem aquilo que faz.
ERASTO.
Observação: Não há neste fato um grande e terrível ensinamento? Assim a justiça de Deus atinge sempre o culpado e, por ser às vezes tardia, não segue menos o seu curso. Não é eminentemente moral saber que, se grandes culpados terminam sua existência pacificamente, e muitas vezes na abundância dos bens terrestres, a hora da expiação soará cedo ou tarde? Penas desta natureza se compreendem, não só porque estão de algum modo sob os nossos olhos, mas porque são lógicas; acredita-se nelas, porque a razão as admite. Portanto, uma existência honrosa não isenta das provas da vida, porque estas foram escolhidas ou aceitas como complemento de expiação; é o suplemento de uma dívida que se quita antes de receber o prêmio do progresso realizado.
Se considerarmos o quanto, nos séculos passados, eram frequentes, mesmo nas classes mais elevadas e mais esclarecidas, os atos de barbárie que tanto nos revoltam hoje; quantos homicídios eram cometidos nessas épocas em que não se dava importância à vida de seu semelhante, em que o poderoso esmagava o fraco sem escrúpulo, compreenderemos quantos deve haver, entreos homens de hoje, que têm de lavar seu passado; não será mais de espantar o número tão considerável de pessoas que morrem vítimas de acidentes isolados ou de catástrofes gerais. O despotismo, o fanatismo, a ignorância e os preconceitos da Idade Média e dos séculos que a seguiram, legaram às gerações futuras uma dívida imensa, que ainda não está liquidada. Muitas desgraças parecem-nos imerecidas apenas porque não vemos senão o momento atual.
Letil
O Sr. Letil, fabricante perto de Paris, morreu em abril de 1864, de uma maneira horrível. Tendo uma caldeira de verniz em ebulição pegado fogo e se derramado sobre ele, num piscar de olhos ele ficou coberto por uma matéria incandescente, e compreendeu imediatamente que estava perdido. Sozinho na oficina, naquele momento, com um jovem aprendiz, teve a coragem de ir ter a seu domicílio, a uma distância de mais de duzentos metros. Logo que lhe puderam prestar os primeiros socorros, as carnes estavam queimadas e soltavam-se aos pedaços; os ossos de uma parte do corpo e do rosto estavam a descoberto. Ele viveu assim doze horas nos mais horríveis sofrimentos, conservando apesar disso toda a sua presença de espírito até o último momento, e pondo ordem em seus negócios com uma perfeita lucidez. Durante essa cruel agonia, não deixou ouvir nenhuma queixa, nenhum murmúrio, e morreu orando a Deus. Era um homem muito honrado, de caráter doce e benevolente, amado e estimado por todos aqueles que o conheceram. Abraçara as ideias espíritas com entusiasmo, mas sem reflexão suficiente; sendo ele mesmo um pouco médium, devido à pouca reflexão, foi joguete de inúmeras mistificações as quais, no entanto, não lhe abalaram a fé. Sua confiança no que lhe diziam os Espíritos era levada, em certas circunstâncias, até a ingenuidade. Evocado na Sociedade de Paris, em 29 de abril de 1864, poucos dias após sua morte, e ainda sob a impressão da terrível cena de que fora vítima, deu a comunicação seguinte:
“Uma tristeza profunda me oprime! Aterrorizado ainda pela minha morte trágica, creio estar sob o ferro de um carrasco. Como sofri! Oh! como sofri! Estou tremendo. Parece-me que ainda sinto o cheiro fétido que as minhas carnes queimadas lançavam à minha volta. Agonia de doze horas, como fizeste sofrer o Espírito culpado! Ele sofreu sem murmurar, assim Deus vai dar-lhe seu perdão.
“Ó minha bem-amada! Não chores mais por mim, minhas dores vão acalmar-se. Não sofro mais realmente, mas a recordação equivale à realidade. Meu conhecimento do Espiritismo me ajuda muito; vejo agora que, sem essa doce crença, teria permanecido no delírio em que fui jogado por essa morte horrível.
“Mas tenho um consolador que não me deixou desde meu último suspiro; eu ainda falava e já o via perto de mim; parecia-me que era um reflexo das minhas dores que me dava vertigem, e me mostrava fantasmas... não: era meu anjo protetor que, silencioso e mudo, me consolava pelo coração. Assim que eu disse adeus à terra, ele me disse: “Vem, meu filho, e vê outra vez a luz.” Respirei mais livremente, acreditando sair de um sonho horrendo; falei da minha esposa bem-amada, da corajosa criança que me ajudara. “Estão todos na terra, disse-me ele; tu, meu filho, estás entre nós.” Procurei minha casa; o anjo deixoume entrar lá, acompanhando-me. Vi todo mundo em lágrimas; tudo estava triste e de luto naquela pacífica casa de outrora. Não pude aguentar muito tempo a vista desse doloroso espetáculo; demasiado comovido, disse ao meu guia: “Ó meu bom anjo, vamos sair daqui! – Sim, vamos, disse o anjo, e procuremos o repouso.”
“Desde então, sofro menos; se eu não visse minha esposa inconsolável, meus amigos tão tristes, eu estaria quase feliz.
“Meu bom guia, meu querido anjo, teve a bondade de me dizer porque tive uma morte tão dolorosa, e para vosso ensinamento, meus filhos, vou fazer-vos uma confissão.
“Há dois séculos, mandei pôr numa fogueira uma jovem, inocente como se é na sua idade, ela tinha por volta de 12 a 14 anos. Do que a acusavam? Infelizmente, de ter sido cúmplice de uma intriga contra a política sacerdotal. Eu era italiano, e juiz inquisidor; os carrascos não ousavam tocar o corpo da jovem: eu mesmo fui juiz e carrasco. Ó justiça, justiça de Deus, tu és grande! Submetime a ela; prometera tanto não fraquejar no dia do combate que tive força para manter a palavra; não murmurei, e vós me perdoastes, ó meu Deus! Então quando se apagará da minha memória a recordação da minha pobre vítima inocente? É isso o que me faz sofrer? É preciso também que ela me perdoe.
“Ó vós, filhos da nova doutrina, vós dizeis às vezes: Não nos lembramos do que fizemos anteriormente, por isso não podemos evitar os males aos quais nos expomos pelo esquecimento do passado. Ó meus irmãos! Bendizei Deus; se ele vos tivesse deixado a lembrança, não haveria para vós nenhum repouso na terra. Incessantemente perseguidos pelo remorso e pela vergonha, poderíeis ter um único instante de paz?
“O esquecimento é um benefício; a lembrança aqui é uma tortura. Ainda alguns dias, e como recompensa pela paciência com a qual suportei minhas dores, Deus vai dar-me o esquecimento da minha falta. Eis a promessa que acaba de me ser feita pelo meu bom anjo.”
O caráter do Sr. Letil, em sua última existência, prova quanto seu Espírito se aperfeiçoara. Sua conduta foi o resultado de seu arrependimento e das resoluções que tomara; mas isso não bastava; precisava selar suas resoluções com uma grande expiação; precisava suportar como homem o que fizera os outros suportar; a resignação, nessa terrível circunstância, era para ele a maior prova, e, felizmente para ele, não sucumbiu. O conhecimento do Espiritismo contribuiu muito sem dúvida para manter-lhe a coragem pela fé sincera que lhe dera no futuro; ele sabia que as dores da vida são provas e expiações, e submetera-se a elas sem murmurar, dizendo: Deus é justo; eu o mereci, sem dúvida.
Um cientista ambicioso
A Sra. B..., de Bordeaux, não sofreu as pungentes angústias da miséria, mas foi toda a vida uma mártir de dores físicas pelas incontáveis doenças graves de que foi acometida, durante setenta anos, desde a idade de cinco meses, e que, quase todo ano, a puseram à porta do túmulo. Foi envenenada três vezes pelos ensaios feitos nela pela ciência incerta, e seu temperamento, arruinado pelos remédios tanto quanto pelas doenças, deixou-a até o fim dos seus dias vítima de intoleráveis sofrimentos que nada podia acalmar. Sua filha, espírita cristã e médium, pedia a Deus, nas suas preces, para aliviar suas cruéis provações, mas seu guia espiritual lhe disse para pedir simplesmente para ela as suportar com paciência e resignação, e ditou-lhe as instruções seguintes:
“Tudo tem sua razão de ser na existência humana; não há um único dos sofrimentos que causastes que não encontre um eco nos sofrimentos que suportais; nem um de vossos excessos que não encontre um contrapeso em uma de vossas privações; nem uma lágrima cai de vossos olhos sem ter de lavar uma falta, às vezes um crime. Aguentai então com paciência e resignação vossas dores físicas ou morais, por mais cruéis que vos pareçam, e pensai no cultivador cujos membros pendem de cansaço, mas que continua sua obra sem se deter, pois tem sempre diante dele as espigas douradas que serão os frutos da sua perseverança. Tal é o destino do infeliz que sofre na vossa terra; a aspiração para a felicidade que deve ser o fruto da sua paciência, torná-lo-á forte contra as dores passageiras da humanidade. “Assim ocorre com tua mãe; cada dor que ela aceita como uma expiação é uma mancha apagada do seu passado, e quanto mais cedo todas as manchas forem apagadas, mais cedo ela será feliz. Somente a falta de resignação torna o sofrimento estéril, pois então as provas deverão recomeçar. Portanto, o que é mais útil para ela é a coragem e a submissão; é o que é preciso pedir a Deus e aos bons Espíritos que lhe concedam.
“Tua mãe foi outrora um bom médico, muito conhecido numa classe em que nada custa para assegurar o bem-estar, e na qual ele foi cumulado de dons e de honrarias. Ambicioso por glória e riquezas, querendo alcançar o apogeu da ciência, não em vista de aliviar seus irmãos, pois não era filantropo, mas em vista de aumentar sua reputação, e, por conseguinte, sua clientela, nada lhe custou para levar a bom fim seus estudos. A mãe era martirizada em seu leito de sofrimento, porque ele previa um estudo nas convulsões que provocava; a criança era submetida às experiências que deviam dar-lhe a chave de certos fenômenos; o velho via apressar seu fim; o homem vigoroso sentia-se enfraquecido pelos experimentos que deviam constatar a ação de tal ou qual beberagem, e todas essas experiências eram tentadas no desgraçado sem desconfiança. A satisfação da cupidez e do orgulho, a sede de ouro e de reputação, tais foram os motivos de sua conduta. Foram precisos séculos e terríveis provas para domar esse Espírito orgulhoso e ambicioso; depois o arrependimento começou sua obra de regeneração, e a reparação está terminando, pois as provas desta última existência são brandas perto das que ele aguentou. Portanto, coragem, se a pena foi longa e cruel, a recompensa concedida à paciência, à resignação e à humildade será grande.
“Coragem, vós todos que sofreis; pensai no pouco tempo que dura vossa existência material; pensai nas alegrias da eternidade; chamai a vós a esperança, esta amiga devotada de todo coração sofredor; chamai a vós a fé, irmã da esperança; a fé que vos mostra o céu onde a esperança vos faz penetrar antes do tempo. Chamai também a vós estes amigos que o Senhor vos dá, que vos rodeiam, vos apoiam e vos amam, e cuja constante solicitude vos leva de volta àquele que havíeis ofendido ao transgredir as suas leis.”
Observação: Após a morte, a senhora B... deu, quer à sua filha, quer à Sociedade Espírita de Paris, comunicações em que se refletem as mais eminentes qualidades, e em que ela confirma o que fora dito de seus antecedentes.
Charles de Saint-G..., idiota
(Sociedade Espírita de Paris, 1860.)
Charles de Saint-G... era um jovem idiota de treze anos de idade, vivo, e cujas faculdades intelectuais eram de tal nulidade que não conhecia seus pais e mal podia pegar sua comida. Havia nele cessação completa de desenvolvimento em todo o sistema orgânico.
1. A São Luís. Gostaríeis de dizer-nos se podemos fazer a evocação do Espírito desta criança? – R. Podeis evocá-lo como se evocásseis o Espírito de um morto.
2. Vossa resposta nos faria supor que a evocação poderia fazer-se a qualquer momento. – R. Sim; sua alma está ligada ao seu corpo por laços materiais, mas não por laços espirituais; ela sempre pode se desprender.
3. Evocação de Ch. de Saint-G... – Sou um pobre Espírito preso à terra como um pássaro por uma pata.
4. Em vosso estado atual, como Espírito, tendes consciência de vossa nulidade neste mundo? – Certamente; sinto bem o meu cativeiro.
5. Quando o vosso corpo dorme, e que o vosso Espírito se desprende, tendes as ideias tão lúcidas como se estivésseis num estado normal? – R. Quando meu infeliz corpo descansa, fico um pouco mais livre para me elevar ao céu a que aspiro.
6. Experimentais, como Espírito, um sentimento penoso por vosso estado corporal? – R. Sim, visto que é uma punição.
7. Lembrais-vos de vossa existência anterior? – R. Oh! sim; ela é a causa de meu presente exílio.
8. Qual era essa existência? – R. Um jovem libertino sob Henrique III.
9. Dizeis que vossa condição atual é uma punição; então não a escolhestes? – Não.
10. Como pode vossa existência atual servir para vosso aperfeiçoamento no estado de nulidade em que estais? – R. Ela não é nula para mim diante de Deus que ma impôs.
11. Prevedes a duração de vossa existência atual? – R. Não; ainda alguns anos, e voltarei à minha pátria.
12. Desde vossa existência anterior até vossa encarnação atual, o que fizestes como Espírito? – R. É porque eu era um Espírito leviano que Deus me aprisionou.
13. Em vosso estado de vigília, tendes consciência do que se passa à vossa volta, e isso apesar da imperfeição de vossos órgãos? – R. Eu vejo, ouço, mas meu corpo não compreende nem vê nada.
14. Podemos fazer alguma coisa que vos seja útil? – R. Nada.
15. A São Luís. As preces por um Espírito reencarnado podem ter a mesma eficácia do que para um Espírito errante? – R. As preces são sempre boas e agradáveis a Deus; na posição desse pobre Espírito, elas não lhe podem servir de nada; servir-lhe-ão mais tarde, pois Deus as levará em conta.
Observação: Esta evocação confirma o que sempre foi dito sobre os idiotas. Sua nulidade moral não se deve à nulidade de seu Espírito, o qual, fazendo abstração dos órgãos, goza de todas as suas faculdades. A imperfeição dos órgãos não é senão um obstáculo à livre manifestação dos pensamentos: ela não os aniquila. É o caso de um homem vigoroso cujos membros seriam comprimidos por amarras.
Instrução de um Espírito sobre os idiotas e os cretinos dada na Sociedade de Paris.
Os cretinos são seres punidos na terra pelo mau uso que fizeram de poderosas faculdades; sua alma está aprisionada num corpo cujos órgãos impotentes não podem expressar seus pensamentos; esse mutismo moral e físico é uma das mais cruéis punições terrestres; frequentemente ela é escolhida pelos Espíritos arrependidos que querem resgatar suas faltas. Essa prova não é estéril, pois o Espírito não permanece estacionário na sua prisão de carne; esses olhos embrutecidos veem, esse cérebro deprimido concebe, mas nada se pode traduzir nem pela palavra nem pelo olhar, e, salvo o movimento, eles estão moralmente no estado dos letárgicos e dos catalépticos que veem e ouvem o que ocorre à volta deles sem poder expressá-lo. Quando tendes em sonho esses terríveis pesadelos em que quereis fugir de um perigo, que gritais para pedir socorro, enquanto vossa língua permanece presa ao palato e vossos pés ao chão, sentis por um instante o que o cretino sente sempre: paralisia do corpo unida à vida do Espírito. Quase todas as enfermidades têm assim sua razão de ser; nada se faz sem causa, e o que vós chamais injustiça do destino é a aplicação da mais alta justiça. A loucura é também uma punição do abuso de altas faculdades; o louco tem duas personalidades: aquela que delira e aquela que tem consciência de seus atos, sem poder dirigi-los. Quanto aos cretinos, a vida contemplativa e isolada de sua alma, que não tem as distrações do corpo, pode ser tão agitada quanto as existências mais complicadas pelos acontecimentos; alguns se revoltam contra seu suplício voluntário; lamentam tê-lo escolhido e sentem um desejo furioso de voltar a uma outra vida, desejo que os faz esquecer a resignação à vida presente, e o remorso pela vida passada da qual têm consciência, pois os cretinos e os loucos sabem mais do que vós, e sob sua impotência física esconde-se um poder moral do qual não tendes nenhuma ideia. Os atos de furor ou de imbecilidade aos quais seu corpo se entrega são julgados pelo ser interior que sofre por eles e deles se envergonha. Assim, ultrajá-los, injuriá-los, até maltratá-los, como se faz às vezes, é aumentar-lhes os sofrimentos, pois é fazê-los sentir mais duramente sua fraqueza e sua abjeção, e se eles pudessem, acusariam de covardia aqueles que agem dessa maneira apenas porque sabem que sua vítima não se pode defender. O cretinismo não é uma das leis de Deus, e a ciência pode fazê-lo desaparecer, pois ele é o resultado material da ignorância, da miséria e da imundície. Os novos meios de higiene que a ciência, que se tornou mais prática, pôs ao alcance de todos, tendem a destruí-lo. Sendo o progresso a condição expressa da humanidade, as provas impostas modificar-se-ão e seguirão a marcha dos séculos; tornar-se-ão todas morais, e quando a vossa terra, jovem ainda, tiver cumprido todas as fases da sua existência, tornar-se-á uma morada de felicidade como outros planetas mais avançados.
Pierre Jouty, pai do médium.
Observação: Houve um tempo em que se pôs em questão a alma dos cretinos, e perguntava-se se eles pertenciam verdadeiramente à espécie humana. A maneira pela qual o Espiritismo os faz considerar não é de uma alta moralidade e de um grande ensinamento? Não existe matéria para sérias reflexões ao pensar que esses corpos desgraciosos encerram almas que talvez brilharam no mundo, que são tão lúcidas e pensantes quanto as nossas, sob o espesso envoltório que lhes abafa as manifestações, e que um dia pode acontecer-nos o mesmo, se abusarmos das faculdades que nos atribuiu a Providência?
Como, além disso, poderia explicar-se o cretinismo; como fazê-lo concordar com a justiça e a bondade de Deus, sem admitir a pluralidade das existências? Se a alma já não viveu antes, é porque ela é criada ao mesmo tempo que o corpo; nessa hipótese, como justificar a criação de almas tão deserdadas quanto as dos cretinos, por parte de um Deus justo e bom? Pois aqui não se trata de um desses acidentes, como a loucura, por exemplo, que se pode prevenir ou curar; esses seres nascem e morrem no mesmo estado; não tendo nenhuma noção do bem e do mal, qual é seu destino na eternidade?
Serão eles felizes à semelhança dos homens inteligentes e trabalhadores? Mas por que esse favor, visto que eles nada fizeram de bem? Estarão eles naquilo que se chama o limbo, ou seja, num estado misto que não é nem a felicidade nem a infelicidade? Mas por que essa inferioridade eterna? É culpa deles se Deus os criou cretinos? Nós desafiamos todos aqueles que repelem a doutrina da reencarnação a sair deste impasse. Com a reencarnação, ao contrário, o que parece uma injustiça torna-se uma admirável justiça; o que é inexplicável explica-se da maneira mais racional.
Além disso, que saibamos, aqueles que repelem esta doutrina nunca a combateram com outros argumentos senão o da sua repugnância pessoal em voltar à Terra. A isso lhes respondemos: Para aí vos enviar novamente, Deus não pede a vossa autorização, como o juiz não consulta o gosto do condenado ao mandá-lo para a prisão. Cada um tem a possibilidade de não voltar aí, aperfeiçoando-se o suficiente para merecer passar a uma esfera mais elevada. Mas, nessas esferas felizes, o egoísmo e o orgulho não são admitidos; portanto, é preciso trabalhar para se despojar dessas enfermidades morais se se quiser subir de grau. Sabe-se que, em certas regiões, os cretinos, em vez de serem objeto de desprezo, são cercados de cuidados atenciosos. Esse sentimento não se deveria a uma intuição do verdadeiro estado desses desafortunados, tanto mais dignos de consideração quanto seu Espírito, que compreende sua posição, deve sofrer por se ver como refugo da sociedade? Considera-se aí até mesmo como um favor e uma bênção ter um desses seres numa família. Será superstição? É possível, porque entre os ignorantes, a superstição se mistura com as ideias mais santas das quais eles não se dão conta; em todos os casos, é, para os pais, uma ocasião de exercer uma caridade tanto mais meritória, quanto sendo geralmente pobres, é para eles uma carga sem compensação material. Há mais mérito em cercar de cuidados afetuosos uma criança defeituosa, do que aquela cujas qualidades oferecem uma compensação. Ora, sendo a caridade do coração uma das virtudes mais agradáveis a Deus, atrai sempre Sua bênção sobre aqueles que a praticam. Esse sentimento inato, nessas pessoas, equivale a esta prece: “Obrigado, meu Deus, por nos terdes dado por prova um ser fraco a apoiar, e um aflito a consolar.”
Adélaide-Marguerite Gosse
Era uma humilde e pobre criada da Normandia, perto de Harfleur. Aos onze anos, ela entrou para o serviço de ricos criadores de gado de sua região. Poucos anos depois, uma cheia do rio Sena carrega e afoga todos os animais! Outras desgraças ocorrem, seus patrões caem no infortúnio! Adelaide vincula seu destino ao deles, abafa a voz do egoísmo, e, não escutando senão seu generoso coração, fá-los aceitar quinhentos francos poupados por ela, e continua sem ordenado a servi-los; depois, por ocasião da morte deles, ela se apega à filha deles, viúva e sem recursos. Trabalha nos campos e traz seu ganho para casa. Casa-se, e, juntando a jornada do marido à sua, são agora os dois a sustentar a pobre mulher, que ainda chama “sua patroa!” Este sublime sacrifício durou cerca de meio século.
A Sociedade de Emulação de Rouen não deixou no esquecimento esta mulher digna de tanto respeito e admiração; outorgou-lhe uma medalha de honra e uma recompensa em dinheiro; as lojas maçônicas do Havre associaram-se a esse testemunho de estima e ofereceram-lhe uma pequena soma para acrescentar ao seu bem-estar. Por fim, a administração local ocupouse de seu destino com delicadeza, evitando ferir sua susceptibilidade. Um ataque de paralisia levou num instante e sem sofrimento este ser
benfazejo. Os últimos deveres foram-lhe prestados de maneira simples, mas decente; o secretário da prefeitura se colocara à frente do cortejo fúnebre.
(Sociedade de Paris, 27 de dezembro de 1861.)
Evocação. – Pedimos a Deus onipotente que permita ao Espírito de Marguerite Gosse comunicar-se conosco. – R. Sim, Deus aceita fazer-me essa graça.
P. Estamos felizes de vos testemunharmos nossa admiração pela conduta que mantivestes durante vossa existência terrestre, e esperamos que vossa abnegação tenha recebido sua recompensa. – R. Sim, Deus foi para sua serva cheio de amor e de misericórdia. O que eu fiz, o que vós achais bem, era natural.
P. Para nossa instrução, poderíeis dizer-nos qual foi a causa da humilde condição que ocupastes na terra? – R. Eu ocupara, em duas existências sucessivas, uma posição bastante elevada; o bem era fácil para mim; eu o realizava sem sacrifício, porque era rica; eu achava que avançava lentamente, por isso pedi para voltar numa condição mais ínfima em que teria eu mesma de lutar contra as privações, e preparara-me para isso por muito tempo. Deus apoiou minha coragem, e consegui chegar ao objetivo que me propusera, graças aos auxílios espirituais que Deus me deu.
P. Revistes vossos antigos patrões? Dizei-nos, por favor, qual é a vossa posição ante eles, e se vos considerais ainda como subordinada deles. – R. Sim, revi-os; eles estavam, à minha chegada, neste mundo. Dir-vos-ei, com toda a humildade, que eles me consideram como sendo bem superior a eles.
P. Tínheis um motivo particular para vos ligardes a eles mais do que a outros? – R. Nenhum motivo obrigatório; eu teria alcançado meu objetivo em qualquer outro lugar; escolhi-os para quitar uma dívida de reconhecimento para com eles. Outrora eles tinham sido bons para mim, e tinham-me ajudado.
P. Que futuro pressentis para vós? – R. Espero reencarnar num mundo onde a dor é desconhecida. Talvez me acheis bem presunçosa, mas respondovos com toda a vivacidade do meu caráter. De mais a mais, conformo-me à vontade de Deus.
P. Agradecemos-vos por terdes vindo ao nosso chamado, e não duvidamos de que Deus vos cobrirá com seus favores. – R. Obrigada. Possa Deus bendizer-vos e fazer-vos a todos, ao morrerdes, experimentar as alegrias tão puras que me foram atribuídas!
Clara Rivier
Clara Rivier era uma garota de dez anos, pertencendo a uma família de lavradores num vilarejo do sul da França; estava completamente enferma há quatro anos. Durante sua vida, nunca soltou uma única queixa, nem deu nenhum sinal de impaciência; embora desprovida de instrução, consolava a família aflita contando-lhe sobre a vida futura e a felicidade que ela devia encontrar lá. Morreu em setembro de 1862, depois de quatro dias de torturas e de convulsões, durante as quais não cessou de orar a Deus. “Não temfo a morte, dizia ela, visto que uma vida de felicidade me está reservada depois.”
Dizia ao pai, que chorava: “Consola-te, voltarei para te visitar; minha hora está próxima, sinto-o; mas, quando ela chegar, eu saberei e te prevenirei antes.” Com efeito, quando o momento fatal estava prestes a realizar-se, ela chamou todos os seus dizendo: “Não tenho mais do que cinco minutos de vida; dai-me as vossas mãos.” E expirou como anunciara.
Desde então, um Espírito batedor veio visitar a casa dos esposos Rivier, onde perturba tudo; bate na mesa, como se tivesse uma clava; agita os tecidos e as cortinas, mexe na louça. Esse Espírito aparece na forma de Clara à jovem irmã desta, que tem apenas cinco anos. De acordo com esta criança, sua irmã falou-lhe muitas vezes, e essas aparições fazem-na muitas vezes dar gritos de alegria, e dizer: “Mas vejam só como Clara está bonita!”
1. Evocação de Clara Rivier. – R. Estou perto de vós, disposta a responder.
2. De onde vos vinham, embora tão jovem e sem instrução, as ideias elevadas que exprimíeis sobre a vida futura antes da vossa morte? – R. Do pouco tempo que tinha de passar no vosso globo e da minha encarnação anterior. Eu era médium quando deixei a terra, e era médium ao voltar ao vosso meio. Era uma predestinação; eu sentia e via o que dizia.
3. Como explicar que uma criança de vossa idade não tenha feito nenhuma queixa durante quatro anos de sofrimentos? – R. Porque o sofrimento físico era controlado por um poder maior, o do meu anjo guardião, que eu via continuamente perto de mim; ele sabia aliviar tudo o que eu sentia; ele tornava minha vontade mais forte do que a dor.
4. Como fostes avisada do instante da vossa morte? – R. Meu anjo guardião mo dizia; ele nunca me enganou.
5. Vós dissestes ao vosso pai: “Consola-te, virei visitar-te.” Como explicar que imbuída de tão bons sentimentos para com vossos pais, vindes atormentálos após vossa morte, fazendo alarido na casa deles? – R. Tenho sem dúvida uma prova, ou antes uma missão a cumprir. Se venho rever meus pais, credes que seja por nada? Esses barulhos, essa perturbação, essas lutas trazidas pela minha presença são um aviso. Sou ajudada por outros Espíritos cuja turbulência tem um alcance, como eu tenho a minha ao aparecer à minha irmã. Graças a nós, muitas convicções vão nascer. Meus pais tinham uma prova a suportar; ela cessará em breve, mas somente depois de ter levado a convicção a uma
multidão de espíritos.
6. Assim, não sois vós pessoalmente que causais essa perturbação? – R. Sou ajudada por outros Espíritos que servem na prova reservada aos meus queridos pais.
7. Como explicar que vossa irmã vos tenha reconhecido, se não sois vós que produzis essas manifestações? – R. Minha irmã só viu a mim. Ela possui agora uma segunda vista, e não é a última vez que minha presença a virá consolar e encorajar.
8. Por que, tão jovem, fostes acometida de tantas enfermidades? – R. Eu tinha faltas anteriores a expiar; tinha abusado da saúde e da posição brilhante de que gozava na minha encarnação anterior; então Deus disse-me: “Gozaste grandemente, desmesuradamente, sofrerás igualmente; eras orgulhosa, serás humilde; eras orgulhosa de tua beleza e serás aniquilada; em vez da vaidade, esforçar-te-ás por adquirir caridade e bondade.” Fiz de acordo com a vontade de Deus, e meu anjo guardião ajudou-me.
9. Gostaríeis de mandar dizer alguma coisa aos vossos pais? – R. A pedido de um médium, meus pais fizeram muita caridade; tiveram razão de nem sempre orar com os lábios: é preciso fazê-lo com a mão e o coração. Dar àqueles que sofrem é orar, é ser espírita.
Deus deu a todas as almas o livre-arbítrio, ou seja, a faculdade de progredir; a todas ele deu a mesma aspiração, e é por isso que o vestido de burel toca de mais perto o vestido de brocado de ouro do que geralmente se pensa. Assim, diminuí as distâncias pela caridade; introduzi o pobre em vossa casa, encorajai-o, erguei-o, não o humilheis. Se se soubesse praticar em toda parte esta grande lei da consciência, não haveria, em épocas determinadas, estas grandes misérias que desonram os povos civilizados, e que Deus envia para os castigar e para lhes abrir os olhos.
Queridos pais, orai a Deus, amai-vos, praticai a lei do Cristo: não fazer aos outros o que não gostaríeis que vos fizessem: implorai a Deus que vos põe à prova, mostrando-vos que sua vontade é santa e grande como ele. Sabei, em vista do futuro, armar-vos de coragem e de perseverança, pois ainda sois chamados a sofrer: é preciso saber merecer uma boa posição num mundo melhor, onde a compreensão da justiça divina se torna a punição dos maus Espíritos.
Estarei sempre perto de vós, queridos pais. Adeus, ou melhor, até logo. Tende resignação, caridade, amor aos vossos semelhantes, e sereis felizes um dia.
CLARA.
Observação: Eis um belo pensamento: “O vestido de burel toca de mais perto do que se pensa o vestido de brocado de ouro.” É uma alusão aos Espíritos que, de uma existência à outra, passam de uma posição brilhante a uma posição humilde ou miserável, pois com frequência eles expiam num meio ínfimo o abuso que fizeram dos dons que Deus lhes concedera. É uma justiça que todo o mundo compreende. Um outro pensamento, não menos profundo, é o que atribui as calamidades dos povos à infração da lei de Deus, pois Deus castiga os povos como castiga os indivíduos. É certo que se eles praticassem a lei da caridade, não haveria nem guerras, nem grandes misérias. É à prática dessa lei que o Espiritismo conduz; seria então por isso que ele encontra inimigos tão encarniçados? As palavras desta garota aos pais são as de um demônio?
Françoise Vernhes
Cega de nascença, filha de um meeiro das proximidades de Toulouse, morta em 1855, com quarenta e cinco anos. Dedicava-se constantemente a ensinar o catecismo às crianças para prepará-las para a primeira comunhão.
Com a mudança do catecismo, ela não teve nenhuma dificuldade em ensinarlhes o novo, pois sabia ambos de cor. Numa noite de inverno, voltando de uma excursão a vários lugares em companhia da tia, era preciso atravessar uma floresta por caminhos horríveis e cheios de lama, e as duas mulheres deviam caminhar com precaução à beira das valas. A tia queria conduzi-la pela mão, mas ela respondeu-lhe: Não fiqueis em cuidados por mim, não corro nenhum perigo de cair, vejo sobre meu ombro uma luz que me guia, segui-me, sou eu que vou conduzir-vos. Chegaram assim em casa sem acidente, a cega
conduzindo aquela que podia servir-se dos olhos. Evocação em Paris, em maio de 1865.
P. Teríeis a bondade de nos dar a explicação da luz que vos guiava naquela noite escura, e que não era visível a não ser para vós? – R. Como! Pessoas que, como vós, estão em relação contínua com os Espíritos precisam de uma explicação para um semelhante fato! Era o meu anjo guardião que me guiava.
P. Era essa a nossa opinião, mas desejávamos ter a confirmação. Tínheis naquele momento consciência de que era vosso anjo guardião que vos servia de guia? – R. Não, reconheço; no entanto, eu acreditava numa proteção celeste. Pedira tanto tempo a nosso Deus bom e clemente para ter compaixão de mim!... e é tão cruel ser cego!... Sim, é bem cruel; mas também reconheço que é justiça. Aqueles que pecam pelos olhos devem ser punidos pelos olhos, e igualmente todas as faculdades de que os homens são dotados e das quais abusam. Não procureis portanto, para os inúmeros infortúnios que afligem a humanidade, outra causa a não ser aquela que lhe é natural: a expiação; expiação que não é meritória senão quando é cumprida com submissão, e que pode ser aliviada, se, pela prece, se atraírem as influências espirituais que protegem os culpados do penitenciário humano, e derramam a esperança e a consolação nos corações aflitos e sofredores.
P. Vós vos tínheis devotado à instrução religiosa das crianças pobres; tivestes dificuldade em adquirir os conhecimentos necessários ao ensino do catecismo que sabíeis de cor, apesar de vossa cegueira, e embora ele tivesse mudado? – R. Os cegos têm, em geral, os outros sentidos duplicados, se é que posso expressar-me assim. A observação não é uma das menores faculdade da natureza deles. Sua memória é como um escaninho onde são colocados com ordem, e para nunca desaparecerem, os ensinamentos cujas tendências e aptidões eles têm; não tendo nada exterior capaz de perturbar essa faculdade, resulta daí que ela pode ser desenvolvida de uma maneira notável pela educação. Não era o caso em que eu me encontrava, pois não recebera educação nenhuma. Só posso agradecer ainda mais a Deus por ter permitido que ela fosse suficiente para me permitir cumprir minha missão junto a essas crianças. Era ao mesmo tempo uma reparação pelo mau exemplo que eu lhes dera na minha existência anterior. Tudo é assunto sério para os espíritas; bastalhes olhar em torno deles, e isso lhes seria mais útil do que deixarem enganarse pelas sutilezas filosóficas de certos Espíritos que zombam deles, lisonjeando seu orgulho com frases de grande efeito, mas vazias de sentido. P. Pela vossa linguagem, nós vos julgamos avançada intelectualmente, assim como vossa conduta na Terra é uma prova de vosso avanço moral. – R. Ainda tenho muito a adquirir; mas há muitos na
Terra que passam por ignorantes porque sua inteligência está velada pela expiação; mas na morte esses véus caem, e esses pobres ignorantes são com frequência mais instruídos do que aqueles cujo desdém suscitavam. Acreditai-me, o orgulho é a pedra de toque pela qual se reconhecem os homens. Todos aqueles cujo coração é acessível à lisonja, ou que têm demasiada confiança em sua ciência, estão no mau caminho; em geral, não são sinceros; desconfiai deles. Sede humildes como o Cristo, e carregai como ele a vossa cruz com amor, a fim de terdes acesso ao reino dos céus.
FRANÇOISE VERNHES.
Anna Bitter
Ser atingido pela perda de um filho adorado é um desgosto doloroso; mas ver um filho único que dá as mais belas esperanças, no qual se concentraram suas únicas afeições, definhar sob seus olhos, extinguir-se sem sofrimentos, por uma causa desconhecida, uma dessas bizarrias da natureza que desconcertam a sagacidade da ciência; ter esgotado inutilmente todos os recursos da arte e adquirido a certeza de que não há nenhuma esperança, e aguentar essa angústia de cada dia durante longos anos sem lhe prever o fim, é um suplício cruel que a fortuna aumenta, em vez de aliviá-lo, porque se tem a esperança de ver um dia um ser querido desfrutar dela.
Tal era a situação do pai de Anna Bitter; assim, um desespero sombrio se apossara da sua alma, e seu caráter se azedava cada vez mais à vista desse espetáculo pungente cuja saída não podia ser senão fatal embora indeterminada. Um amigo da família, iniciado no Espiritismo, acreditou dever interrogar seu Espírito protetor a esse respeito, e recebeu dele a resposta seguinte:
“Aceito dar-te a explicação do estranho fenômeno que tens sob os olhos, porque sei que ao pedir-ma não és movido por uma indiscreta curiosidade, mas pelo interesse que diriges a essa pobre criança, e porque surgirá para ti, crente na justiça de Deus, um ensinamento valioso. Aqueles que o Senhor quer atingir devem curvar sua fronte e não o maldizer e se revoltar, pois ele nunca atinge sem causa. A pobre garota, cujo decreto de morte o Onipotente suspendera, deve em breve voltar para o nosso seio, pois Deus teve compaixão dela, e seu pai, esse desgraçado entre os homens, deve ser atingido na única afeição da sua vida, por ter troçado do coração e da confiança daqueles que o cercam. Por um momento seu arrependimento tocou o Altíssimo, e a morte suspendeu seu gládio sobre essa cabeça tão querida; mas a revolta voltou, e o castigo segue sempre a revolta. Felizes de vós quando é nesta terra que sois castigados! Orai, meus amigos, por essa pobre criança, cuja juventude tornará difíceis os últimos momentos; a seiva é tão abundante nesse pobre ser, apesar do seu estado de definhamento, que a alma se desprenderá com dificuldade. Oh! orai; mais tarde ela vos ajudará, e ela mesma vos consolará, pois seu Espírito é mais elevado do que o das pessoas que a rodeiam.
“Foi por uma permissão especial do Senhor que pude responder ao que me perguntaste, porque é preciso que esse Espírito seja ajudado a fim que o desprendimento seja mais fácil para ele.”
O pai morreu depois de ter sofrido o vazio do isolamento da perda da filha.
Eis as primeiras comunicações que ambos deram após a morte. A filha. Obrigada, meu amigo, por vos terdes interessado pela pobre criança, e por terdes seguido os conselhos do vosso bom guia. Sim, graças às vossas preces, pude deixar mais facilmente meu envoltório terrestre, pois meu pai, infelizmente, não orava: maldizia. No entanto, não lhe quero mal: era devido à sua grande ternura por mim. Peço a Deus para lhe fazer a graça de ser esclarecido antes de morrer; incito-o, encorajo-o; minha missão é aliviar seus últimos instantes. Por vezes um raio de luz divina parece penetrar até ele; mas não é senão um relâmpago passageiro, e ele volta logo às suas ideias iniciais. Há nele apenas um germe de fé asfixiado pelos interesses do mundo, e que só novas provas mais terríveis poderão desenvolver; pelo menos assim o temo. Quanto a mim, não tinha senão um resto de expiação a cumprir, é por isso que ela não foi muito dolorosa, nem muito difícil. Na minha estranha doença, eu não sofria; era antes um instrumento de provação para meu pai, pois ele sofria mais de me ver naquele estado do que eu; eu estava resignada, e ele não. Hoje estou recompensada, Deus fez-me a graça de abreviar minha estada na Terra, e agradeço-lhe. Estou feliz no meio dos bons Espíritos que me cercam; todos nos dedicamos às nossas ocupações com alegria, pois a inatividade seria um cruel suplício.
(O pai, aproximadamente um mês após a morte.) P. Nosso objetivo, ao chamar-vos, é inquirir sobre vossa situação no mundo dos Espíritos, para vos sermos úteis se estiver em nosso poder. – R. O mundo dos Espíritos! Não vejo nenhum. Não vejo senão os homens que conheci e dos quais nenhum pensa em mim e sente minha falta; pelo contrário, eles parecem estar contentes de se terem livrado de mim.
P. Dais-vos bem conta da vossa situação?
– R. Perfeitamente. Durante algum tempo acreditei ser ainda do vosso mundo, mas agora sei muito bem que não sou mais.
P. Como explicar então que não víeis outros Espíritos à vossa volta? – R. Ignoro-o; entretanto, tudo é claro à minha volta.
P. Não revistes vossa filha? – R. Não; ela morreu; procuro-a, chamo-a inutilmente. Que vazio horroroso sua morte me deixou na Terra! Ao morrer, eu me dizia que a reencontraria sem dúvida; mas nada; sempre o isolamento à minha volta; ninguém que me dirija uma palavra de consolo e de esperança. Adeus; vou procurar minha filha.
O guia do médium. Este homem não era ateu, nem materialista; mas era daqueles que creem vagamente, sem se preocupar com Deus nem com o futuro, absorvidos como estão pelos interesses da terra. Profundamente egoísta, teria sem dúvida sacrificado tudo para salvar a filha, mas teria também sacrificado sem escrúpulo todos os interesses de terceiros em seu benefício pessoal. Exceto por sua filha, não tinha apego por ninguém. Deus o puniu por isso, como sabeis; tirou-lhe sua única consolação na terra, e como ele não se arrependeu, ela também que lhe é tirada no mundo dos Espíritos. Ele não se interessava por ninguém na terra, ninguém se interessa por ele aqui; está sozinho, abandonado: essa é sua punição. A filha está perto dele, no entanto, mas ele não a vê; se a visse, não seria punido. O que ele faz? dirige-se a Deus? arrepende-se? Não; murmura continuamente; blasfema até; faz, numa palavra, como fazia na terra. Ajudai-o, pela prece e com conselhos, a sair de sua cegueira.
Joseph Maitre
O cego
Joseph Maître pertencia à classe média da sociedade; desfrutava de uma riqueza modesta que o protegia da necessidade. Seus pais tinham mandado dar-lhe uma boa educação e destinavam-no à indústria, mas aos vinte anos ele ficou cego. Morreu em 1845, por volta dos cinquenta anos. Uma segunda enfermidade veio abatê-lo; cerca de dez anos antes de morrer, ficou completamente surdo; de maneira que suas relações com os vivos ocorriam apenas pelo tato. Não poder mais ver já era bem penoso, mas não ouvir mais era um cruel suplício para aquele que, tendo desfrutado de todas as suas faculdades, devia sentir ainda mais os efeitos dessa dupla privação. O que poderia ter-lhe valido essa triste sina? Não era sua última existência, pois sua conduta fora sempre exemplar; era bom filho, de um caráter doce e benevolente, e quando se viu, além disso, privado de audição, aceitou essa nova prova com resignação, e nunca o ouviram murmurar uma queixa. Seus discursos denotavam uma perfeita lucidez de espírito, e uma inteligência pouco comum. Uma pessoa que o conhecera, presumindo que se poderiam retirar úteis instruções de uma conversa com seu Espírito ao chamá-lo, recebeu dele a comunicação seguinte, em resposta às perguntas que lhe foram dirigidas.
(Paris, 1863.)
Meus amigos, agradeço-vos por vos terdes lembrado de mim, embora talvez vós não tivésseis pensado nisso, se não tivésseis esperado tirar algum proveito da minha comunicação; mas sei que um motivo mais sério vos anima; é por isso que respondo com prazer ao vosso chamado, já que me permitem fazê-lo, feliz de poder servir à vossa instrução. Possa o meu exemplo acrescentar-se às inúmeras provas que Espíritos vos dão da justiça de Deus. Vós me conhecestes cego e surdo, e vós vos perguntastes o que eu fizera para merecer semelhante destino; vou dizer-vos. Sabei primeiro que é a segunda vez que fui privado da visão. Na minha existência anterior, que ocorreu no começo do século passado, fiquei cego aos trinta anos devido a excessos de todos os gêneros que arruinaram a minha saúde e enfraqueceram meus órgãos; era já uma punição por ter abusado dos dons que recebera da Providência, pois eu era amplamente dotado; mas, em vez de reconhecer que eu era a primeira causa da minha enfermidade, acusei por isso essa mesma Providência, na qual, além do mais, eu acreditava pouco. Blasfemei contra Deus, reneguei-o, acuseio, dizendo que, se ele existisse, devia ser injusto e mau, já que fazia sofrer assim as suas criaturas. Eu deveria ter me considerado feliz, pelo contrário, de não ser, como tantos outros miseráveis cegos, obrigado a mendigar o meu pão. Mas não; eu não pensava senão em mim, e na privação dos prazeres que me era imposta. Sob a influência dessas ideias e da minha falta de fé, eu me tornara rabugento, exigente, numa palavra, insuportável para aqueles que me rodeavam. A vida doravante não tinha objetivo para mim; eu não pensava no futuro que via como uma quimera. Depois de ter esgotado inutilmente todos os recursos da ciência, vendo minha cura impossível, resolvi acabar com a vida mais cedo, e suicidei-me.
Ao despertar, infelizmente, estava mergulhado nas mesmas trevas que durante minha vida. Entretanto, não tardei a reconhecer que não pertencia mais ao mundo corporal, mas era um Espírito cego. A vida de além-túmulo era, portanto, uma realidade! Em vão tentei tirar minha vida para mergulhar no nada: eu me debatia no vazio. Se esta vida devia ser eterna, como ouvira dizer, ficaria então durante a eternidade nessa situação? Esse pensamento era horrível. Eu não sofria, mas dizer-vos os tormentos e as angústias do meu espírito é coisa impossível. Quanto tempo durou isso? Ignoro-o; mas como esse tempo me pareceu longo! Esgotado, estafado, caí em mim, por fim; compreendi que um poder superior me sobrecarregava; disse a mim mesmo que se esse poder podia oprimir, podia também aliviar-me, e implorei sua compaixão. À medida que orava e que meu fervor aumentava, algo me dizia que essa cruel posição teria um fim. A luz se fez por fim; meu encantamento foi extremo quando entrevi as celestes claridades, e distingui os Espíritos que me cercavam sorrindo com benevolência, e os que flutuavam, radiosos, no espaço. Quis imitá-los, mas uma força invisível me reteve. Então um deles disse-me: “Deus, que tu desconheceste, teve em conta o teu retorno a ele, e permitiu-nos devolver-te a luz, mas tu não cedeste senão à coerção e ao cansaço. Se quiseres doravante participar da felicidade que se desfruta aqui, é preciso provar a sinceridade do teu arrependimento e dos teus bons sentimentos recomeçando tua prova terrestre, em condições em que estarás exposto a recair nos mesmos erros, pois esta nova prova será ainda mais rude do que a primeira.” Aceitei prontamente, prometendo a mim mesmo não mais falhar.
Voltei então à Terra na existência que conheceis. Não me custou ser bom, pois não era mau por natureza; tinha-me revoltado contra Deus, e Deus punirame. Voltei aqui com a fé inata, por isso não murmurei mais contra ele, e aceitei minha dupla enfermidade com resignação e como uma expiação que devia ter sua origem na soberana justiça. O isolamento em que fiquei nos últimos anos não foi nada desesperador, porque eu tinha fé no futuro e na misericórdia de Deus; foi muito proveitoso, pois durante essa longa noite, em que tudo era silêncio, minha alma, mais livre, se elevava para o Eterno, e entrevia o infinito pelo pensamento. Quando veio o fim do meu exílio, o mundo dos Espíritos não teve para mim senão esplendores e inefáveis prazeres. A comparação com o passado faz-me achar minha situação muito feliz relativamente, e dou graças a Deus; mas, quando olho adiante, vejo quão longe estou ainda da perfeita felicidade. Expiei, preciso reparar agora. Minha última existência foi proveitosa apenas para mim; espero em breve recomeçar uma nova em que poderei ser útil aos outros; será a reparação de minha inutilidade anterior; somente então avançarei no caminho bendito, aberto a todos os Espíritos de boa vontade.
Eis minha história, meus amigos, se meu exemplo puder esclarecer alguns dos meus irmãos encarnados e evitar-lhes o lamaçal em que eu caí, terei começado a pagar minha dívida.
JOSEPH.