A Gênese
Capítulo I — Caráter da revelação espírita
1. Pode o Espiritismo ser considerado uma revelação? Neste caso, qual o seu caráter? Em que se funda a sua autenticidade? A quem e de que maneira foi ela feita? É a doutrina espírita uma revelação, no sentido teológico da palavra, ou por outra, é, no seu todo, o produto do ensino oculto vindo do Alto? É absoluta ou suscetível de modificações? Trazendo aos homens a verdade integral, a revelação não teria por efeito impedi-los de fazer uso das suas faculdades, pois que lhes pouparia o trabalho da investigação? Qual a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis e superiores à humanidade? Qual a utilidade da moral que pregam, se essa moral não é diversa da do Cristo, já conhecida? Quais as verdades novas que eles nos trazem? Precisará o homem de uma revelação? E não poderá achar em si mesmo e em sua consciência tudo quanto é mister para se conduzir na vida? Tais as questões sobre que importa nos fixemos.
2. Definamos primeiro o sentido da palavra revelação. Revelar, do latim revelare, de raiz velum, véu, significa literalmente sair de sob o véu — e, figuradamente, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Em sua acepção vulgar mais genérica, essa palavra se emprega a respeito de qualquer coisa ignota que é divulgada, de qualquer ideia nova que nos põe ao corrente do que não sabíamos. Deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da natureza são revelações, e pode dizer-se que há para a humanidade uma revelação incessante. A astronomia revelou o mundo astral, que não conhecíamos; a geologia revelou a formação da Terra; a química, a lei das afinidades; a fisiologia, as funções do organismo, etc.; Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier foram reveladores.
3. A característica essencial de qualquer revelação tem que ser a verdade. Revelar um segredo é tornar conhecido um fato; se é falso, já não é um fato e, por consequência, não existe revelação. Toda revelação desmentida por fatos deixa de o ser, se for atribuída a Deus. Não podendo Deus mentir, nem se enganar, ela não pode emanar dele: deve ser considerada produto de uma concepção humana.
4. Qual o papel do professor diante dos seus discípulos, senão o de um revelador? O professor lhes ensina o que eles não sabem, o que não teriam tempo, nem possibilidade de descobrir por si mesmos, porque a ciência é obra coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trazem, cada qual, o seu contingente de observações aproveitáveis àqueles que vêm depois. O ensino é, portanto, na realidade, a revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feitas por homens que as conhecem a outros que as ignoram e que, se assim não fora, as teriam ignorado sempre.
5. Mas, o professor não ensina senão o que aprendeu: é um
revelador de segunda ordem; o homem de gênio ensina o
que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; traz a
luz que pouco a pouco se vulgariza. Que seria da humanidade
sem a revelação dos homens de gênio, que aparecem
de tempos a tempos?
Mas, quem são esses homens de gênio? E, por que são
homens de gênio? Donde vieram? Que é feito deles? Notemos
que na sua maioria denotam, ao nascer, faculdades
transcendentes e alguns conhecimentos inatos, que com
pouco trabalho desenvolvem. Pertencem realmente à humanidade,
pois nascem, vivem e morrem como nós. Onde,
porém, adquiriram esses conhecimentos que não puderam
aprender durante a vida? Dir-se-á, com os materialistas,
que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade
e de melhor qualidade? Neste caso, não teriam mais
mérito que um legume maior e mais saboroso do que outro. Dir-se-á, como certos espiritualistas, que Deus lhes
deu uma alma mais favorecida que a do comum dos homens?
Suposição igualmente ilógica, pois que tacharia Deus
de parcial. A única solução racional do problema está na
preexistência da alma e na pluralidade das vidas. O homem
de gênio é um Espírito que tem vivido mais tempo;
que, por conseguinte, adquiriu e progrediu mais do que
aqueles que estão menos adiantados. Encarnando, traz o
que sabe e, como sabe muito mais do que os outros e não
precisa aprender, é chamado homem de gênio. Mas seu saber é fruto de um trabalho anterior e não resultado de um privilégio.
Antes de renascer, era ele, pois, Espírito adiantado:
reencarna para fazer que os outros aproveitem do que já
sabe, ou para adquirir mais do que possui.
Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos
e pelos esforços da sua inteligência; mas, entregues às
próprias forças, só muito lentamente progrediriam, se não
fossem auxiliados por outros mais adiantados, como o estudante
o é pelos professores. Todos os povos tiveram homens
de gênio, surgidos em diversas épocas, para dar-lhes
impulso e tirá-los da inércia.
6. Desde que se admite a solicitude de Deus para com as
suas criaturas, por que não se há de admitir que Espíritos
capazes, por sua energia e superioridade de conhecimento,
de fazerem que a humanidade avance, encarnem pela vontade
de Deus, com o fim de ativarem o progresso em determinado
sentido? Por que não admitir que eles recebam missões,
como um embaixador as recebe do seu soberano? Tal
o papel dos grandes gênios. Que vêm eles fazer, senão ensinar
aos homens verdades que estes ignoram e ainda ignorariam
durante largos períodos, a fim de lhes dar um ponto
de apoio mediante o qual possam elevar-se mais rapidamente?
Esses gênios, que aparecem através dos séculos
como estrelas brilhantes, deixando longo traço luminoso
sobre a humanidade, são missionários ou, se o quiserem,
messias. O que de novo ensinam aos homens, quer na ordem
física, quer na ordem filosófica, são revelações. Se Deus
suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com
mais forte razão, suscitá-los para as verdades morais, que
constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os
filósofos cujas ideias atravessam os séculos.
7. No sentido especial da fé religiosa, a revelação se diz
mais particularmente das coisas espirituais que o homem
não pode descobrir por meio da inteligência, nem com o
auxílio dos sentidos e cujo conhecimento lhe dão Deus ou
seus mensageiros, quer por meio da palavra direta, quer
pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a
homens predispostos, designados sob o nome de profetas
ou messias, isto é, enviados ou missionários, incumbidos
de transmiti-la aos homens. Considerada debaixo deste
ponto de vista, a revelação implica a passividade absoluta e
é aceita sem verificação, sem exame, nem discussão.
8. Todas as religiões tiveram seus reveladores e estes, embora
longe estivessem de conhecer toda a verdade, tinham
uma razão de ser providencial, porque eram apropriados ao
tempo e ao meio em que viviam, ao caráter particular dos
povos a quem falavam e aos quais eram relativamente
superiores. Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram de
agitar os espíritos e, por isso mesmo, de semear os germens
do progresso, que mais tarde haviam de desenvolver-se, ou
se desenvolverão à luz brilhante do Cristianismo. É, pois, injusto se lhes lance anátema em nome da
ortodoxia, porque dia virá em que todas essas crenças tão
diversas na forma, mas que repousam realmente sobre um
mesmo princípio fundamental — Deus e a imortalidade da
alma, se fundirão numa grande e vasta unidade, logo que a
razão triunfe dos preconceitos. Infelizmente, as religiões hão sido sempre instrumentos
de dominação; o papel de profeta há tentado as ambições secundárias e tem-se visto surgir uma multidão de
pretensos reveladores ou messias, que, valendo-se do
prestígio deste nome, exploram a credulidade em proveito
do seu orgulho, da sua ganância, ou da sua indolência,
achando mais cômodo viver à custa dos iludidos. A religião
cristã não pôde evitar esses parasitas. A tal propósito, chamamos particularmente a atenção
para o capítulo XXI de
O Evangelho segundo o Espiritismo, “Haverá falsos Cristos e falsos profetas”.
9. Haverá revelações diretas de Deus aos homens? É uma
questão que não ousaríamos resolver, nem afirmativamente,
nem negativamente, de maneira absoluta. O fato não é
radicalmente impossível, mas nada nos dá dele prova
certa. O que não padece dúvida é que os Espíritos mais
próximos de Deus pela perfeição se imbuem do seu pensamento
e podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados,
segundo a ordem hierárquica a que pertencem e
o grau a que chegaram de saber, esses podem tirar dos
seus próprios conhecimentos as instruções que ministram,
ou recebê-las de Espíritos mais elevados, mesmo dos
mensageiros diretos de Deus, os quais, falando em nome
de Deus, têm sido às vezes tomados pelo próprio Deus. As comunicações deste gênero nada têm de estranho
para quem conhece os fenômenos espíritas e a maneira pela
qual se estabelecem as relações entre os encarnados e os
desencarnados. As instruções podem ser transmitidas por
diversos meios: pela simples inspiração, pela audição da
palavra, pela visibilidade dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições, quer em sonho, quer em estado de vigília,
do que há muitos exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos
livros sagrados de todos os povos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que quase todos
os reveladores são médiuns inspirados, audientes ou videntes.
Daí, entretanto, não se deve concluir que todos os
médiuns sejam reveladores, nem, ainda menos, intermediários
diretos da Divindade ou dos seus mensageiros.
10. Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a
missão de transmiti-la; mas, sabe-se hoje que nem todos
os Espíritos são perfeitos e que existem muitos que se apresentam
sob falsas aparências, o que levou S. João a dizer:
“Não acrediteis em todos os Espíritos; vede antes se os
Espíritos são de Deus.” (Epíst. 1.ª, 4:4.) Pode, pois, haver revelações sérias e verdadeiras como
as há apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação eivada de
erros ou sujeita a modificação não pode emanar de Deus. É
assim que a lei do Decálogo tem todos os caracteres de sua
origem, enquanto que as outras leis moisaicas, fundamentalmente
transitórias, muitas vezes em contradição com a
lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu.
Com o abrandarem-se os costumes do povo, essas leis por
si mesmas caíram em desuso, ao passo que o Decálogo ficou
sempre de pé, como farol da humanidade. O Cristo fez
dele a base do seu edifício, abolindo as outras leis. Se estas
fossem obra de Deus, seriam conservadas intactas. O Cristo
e Moisés foram os dois grandes reveladores que mudaram
a face do mundo e nisso está a prova da sua missão
divina. Uma obra puramente humana careceria de tal poder.
11. Importante revelação se opera na época atual e mostra
a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo
espiritual. Não é novo, sem dúvida, esse conhecimento;
mas ficara até aos nossos dias, de certo modo, como letra
morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A ignorância
das leis que regem essas relações o abafara sob a superstição;
o homem era incapaz de tirar daí qualquer dedução salutar; estava reservado à nossa época desembaraçá-lo
dos acessórios ridículos, compreender-lhe o alcance e fazer
surgir a luz destinada a clarear o caminho do futuro.
12. O Espiritismo, dando-nos a conhecer o mundo invisível
que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos,
assim como as leis que o regem, suas relações com o
mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam
e, por conseguinte, o destino do homem depois da
morte, é uma verdadeira revelação, na acepção científica
da palavra.
13. Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação
científica. Participa da primeira, porque foi providencial
o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa,
nem de um desígnio premeditado do homem; porque os
pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que
deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os
homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam
aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer,
hoje que estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda,
por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum,
mas ministrado a todos do mesmo modo; por não
serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos,
dispensados do trabalho da observação e da pesquisa,
por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque
não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado;
enfim, porque a doutrina não foi ditada completa,
nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo
trabalho do homem, da observação dos fatos que os
Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe
dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de
tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o
que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem
e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração
fruto do trabalho do homem.
14. Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente
da mesma forma que as ciências positivas — aplicando
o método experimental. Fatos novos se apresentam, que
não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa,
compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas,
chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências
e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu
nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como
hipóteses a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o
perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos,
quando essa existência ressaltou evidente da observação
dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros
princípios. Não foram os fatos que vieram
a posteriori confirmar
a teoria: a teoria é que veio subsequentemente explicar
e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se
que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto
da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o
método experimental; até então, acreditou-se que esse
método também só era aplicável à matéria, ao passo que o
é também às coisas metafísicas.
15. Citemos um exemplo. Passa-se no mundo dos Espíritos
um fato muito singular, de que seguramente ninguém
houvera suspeitado: o de haver Espíritos que se não consideram
mortos. Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem
perfeitamente esse fato, não vieram dizer antecipadamente:
“Há Espíritos que julgam viver ainda a vida
terrestre, que conservam seus gostos, costumes e instintos.”
Provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria
para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos
incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem
deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações ordinárias,
deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía
uma das fases da vida espírita; pode-se então estudar
todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer
que tal situação é sobretudo própria de Espíritos
pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros
de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas,
meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação.
O mesmo se deu com relação a todos os outros
princípios da doutrina.
16. Assim como a ciência propriamente dita tem por objeto
o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do
Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual.
Ora, como este último princípio é uma das forças da natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material
e reciprocamente, segue-se que o conhecimento de um
não pode estar completo sem o conhecimento do outro. O
Espiritismo e a ciência se completam reciprocamente; a
ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de
explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo,
sem a ciência, faltariam apoio e controle. O
estudo das leis da matéria tinha que preceder o da espiritualidade,
porque a matéria é que primeiro fere os sentidos.
Se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas
científicas, teria abortado, como tudo quanto surge antes
do tempo.
17. Todas as ciências se encadeiam e sucedem numa ordem
racional; nascem umas das outras, à proporção que
acham ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores.
A astronomia, uma das primeiras cultivadas, conservou
os erros da infância, até ao momento em que a física
veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a química,
nada podendo sem a física, teve de acompanhá-la de
perto, para depois marcharem ambas de acordo, amparando-se
uma à outra. A anatomia, a fisiologia, a zoologia, a botânica, a mineralogia só se tornaram ciências sérias com
o auxílio das luzes que lhes trouxeram a física e a química.
À geologia, nascida ontem, sem a astronomia, a física,
a química e todas as outras, teriam faltado elementos de
vitalidade; ela só podia vir depois daquelas.
18. A ciência moderna abandonou os quatro elementos
primitivos dos antigos e, de observação em observação,
chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as
transformações da matéria; mas, a matéria, por si só, é
inerte; carecendo de vida, de pensamento, de sentimento,
precisa estar unida ao princípio espiritual. O Espiritismo
não descobriu, nem inventou este princípio; mas, foi o primeiro
a demonstrar-lhe, por provas inconcussas, a existência;
estudou-o, analisou-o e tornou-lhe evidente a ação.
Ao elemento material, juntou ele o elemento espiritual*. Elemento
material e elemento espiritual, esses os dois princípios,
as duas forças vivas da natureza. Pela união indissolúvel
deles, facilmente se explica uma multidão de fatos até
então inexplicáveis.
O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do universo, toca forçosamente na maior parte das ciências; só podia, portanto, vir depois da elaboração delas; nasceu pela força mesma das coisas, pela impossibilidade de tudo se explicar com o auxílio apenas das leis da matéria.
* A palavra elemento não é empregada aqui no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constitutiva de um todo. Neste sentido, pode dizer-se que o elemento espiritual tem parte ativa na economia do universo, como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram no cálculo de uma população; que o elemento religioso entra na educação; ou que na Argélia existem o elemento árabe e o elemento europeu.19. Acusam-no de parentesco com a magia e a feitiçaria;
esquecem, porém, que a astronomia tem por irmã mais velha
a astrologia judiciária, ainda não muito distante de nós;
que a química é filha da alquimia, com a qual nenhum
homem sensato ousaria hoje ocupar-se. Ninguém nega, entretanto, que na astrologia e na alquimia estivesse o
gérmen das verdades de que saíram as ciências atuais.
Apesar das suas ridículas fórmulas, a alquimia encaminhou
a descoberta dos corpos simples e da lei das afinidades.
A astrologia se apoiava na posição e no movimento
dos astros, que ela estudara; mas, na ignorância das verdadeiras
leis que regem o mecanismo do universo, os astros
eram, para o vulgo, seres misteriosos, aos quais a superstição
atribuía uma influência moral e um sentido
revelador. Quando Galileu, Newton e Kepler tornaram conhecidas
essas leis, quando o telescópio rasgou o véu e
mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que algumas
criaturas acharam indiscreto, os planetas apareceram
como simples mundos semelhantes ao nosso e todo o
castelo do maravilhoso desmoronou. O mesmo se dá com o Espiritismo, relativamente à
magia e à feitiçaria, que se apoiavam também na manifestação
dos Espíritos, como a astrologia no movimento dos
astros; mas, ignorantes das leis que regem o mundo espiritual,
misturavam, com essas relações, práticas e crenças
ridículas, com as quais o moderno Espiritismo, fruto da
experiência e da observação, acabou. Certamente, a distância
que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é
maior do que a que existe entre a astronomia e a astrologia,
a química e a alquimia. Confundi-las é provar que de
nenhuma se sabe patavina.
20. O simples fato de poder o homem comunicar-se com os
seres do mundo espiritual traz consequências incalculáveis da mais alta gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância, quanto a ele
hão de voltar todos os homens, sem exceção. O conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar,
generalizando-se, profunda modificação nos costumes,
caráter, hábitos, assim como nas crenças, que tão grande
influência exercem sobre as relações sociais. É uma revolução completa a operar-se nas ideias, revolução tanto maior,
tanto mais poderosa, quanto não se circunscreve a um povo,
nem a uma casta, visto que atinge simultaneamente, pelo
coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos
os cultos.
Razão há, pois, para que o Espiritismo seja considerado
a terceira das grandes revelações. Vejamos em que essas
revelações diferem e qual o laço que as liga entre si.
21. Moisés, como profeta, revelou aos homens a existência
de um Deus único, soberano Senhor e Criador de todas
as coisas; promulgou a lei do Sinai e lançou as bases da
verdadeira fé. Como homem, foi o legislador do povo pelo
qual essa primitiva fé, purificando-se, havia de espalhar-se
por sobre a Terra.
22. O Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e divino
e rejeitando o que era transitório, puramente disciplinar e
de concepção humana, acrescentou a revelação da vida
futura, de que Moisés não falara, assim como a das penas e
recompensas que aguardam o homem depois da morte.
23. A parte mais importante da revelação do Cristo, no sentido
de fonte primária, de pedra angular de toda a sua doutrina, é o ponto de vista inteiramente novo sob que considera
ele a Divindade. Esta já não é o Deus terrível, ciumento,
vingativo de Moisés; o Deus cruel e implacável, que rega a
terra com o sangue humano, que ordena o massacre e o
extermínio dos povos, sem excetuar as mulheres, as crianças e os velhos, e que castiga aqueles que poupam as vítimas;
já não é o Deus injusto, que pune um povo inteiro
pela falta do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa
do inocente, que fere os filhos pelas faltas dos pais; mas,
um Deus clemente, soberanamente justo e bom, cheio de
mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido
e dá a cada um segundo as suas obras. Já não é o
Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos,
presidindo aos combates para sustentar a sua própria causa
contra o Deus dos outros povos; mas, o Pai comum do
gênero humano, que estende a sua proteção por sobre todos
os seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus
que recompensa e pune só pelos bens da Terra, que faz
consistir a glória e a felicidade na escravidão dos povos
rivais e na multiplicidade da progenitura, mas, sim, um
Deus que diz aos homens: “A vossa verdadeira pátria não é
neste mundo, mas no reino celestial, lá onde os humildes
de coração serão elevados e os orgulhosos serão humilhados.”
Já não é o Deus que faz da vingança uma virtude e
ordena se retribua olho por olho, dente por dente; mas, o
Deus de misericórdia, que diz: “Perdoai as ofensas, se quereis
ser perdoados; fazei o bem em troca do mal; não façais o
que não quereis vos façam.” Já não é o Deus mesquinho e
meticuloso, que impõe, sob as mais rigorosas penas, o modo
como quer ser adorado, que se ofende pela inobservância
de uma fórmula; mas, o Deus grande, que vê o pensamento
e que se não honra com a forma. Enfim, já não é o Deus
que quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado.
24. Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas e o
objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões é
conforme à ideia que elas dão de Deus. As religiões que fazem
de Deus um ser vingativo e cruel julgam honrá-lo com
atos de crueldade, com fogueiras e torturas; as que têm um
Deus parcial e cioso são intolerantes e mais ou menos meticulosas
na forma, por crerem-no mais ou menos contaminado
das fraquezas e ninharias humanas.
25. Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter que ele
atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente
justo, bom e misericordioso, ele fez do amor de Deus
e da caridade para com o próximo a condição indeclinável
da salvação, dizendo:
Amai a Deus sobre todas as coisas e o
vosso próximo como a vós mesmos; nisto estão toda a lei e os
profetas; não existe outra lei.
Sobre esta crença, assentou o
princípio da igualdade dos homens perante Deus e o da
fraternidade universal. Mas, fora possível amar o Deus de
Moisés? Não; só se podia temê-lo.
A revelação dos verdadeiros atributos da Divindade,
de par com a da imortalidade da alma e da vida futura,
modificava profundamente as relações mútuas dos homens,
impunha-lhes novas obrigações, fazia-os encarar a vida
presente sob outro aspecto e tinha, por isso mesmo, de
reagir contra os costumes e as relações sociais. É esse incontestavelmente,
por suas consequências, o ponto capital
da revelação do Cristo, cuja importância não foi compreendida
suficientemente e, contrista dizê-lo, é também o ponto
de que mais a humanidade se tem afastado, que mais há
desconhecido na interpretação dos seus ensinos.
26. Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das coisas que vos
digo ainda não as compreendeis e muitas outras teria a dizer, que
não compreenderíeis; por isso é que vos falo por parábolas; mais
tarde, porém, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito de Verdade,
que restabelecerá todas as coisas e vo-las explicará todas.” (S. João,
14,16; S. Mateus, 17.)
Se ele não disse tudo quanto poderia dizer, é que
julgou conveniente deixar certas verdades na sombra, até
que os homens chegassem ao estado de compreendê-las.
Como ele próprio o confessou, seu ensino era incompleto,
pois anunciava a vinda daquele que o completaria; previra,
pois, que suas palavras não seriam bem interpretadas, e que
os homens se desviariam do seu ensino; em suma, que desfariam
o que ele fez, uma vez que todas as coisas hão de ser
restabelecidas: ora, só se restabelece aquilo que foi desfeito.
27. Por que chama ele Consolador ao novo messias? Este
nome, significativo e sem ambiguidade, encerra toda uma
revelação. Assim, ele previa que os homens teriam necessidade
de consolações, o que implica a insuficiência daquelas
que eles achariam na crença que iam fundar. Talvez nunca
o Cristo fosse tão claro, tão explícito, como nestas últimas
palavras, às quais poucas pessoas deram atenção bastante,
provavelmente porque evitaram esclarecê-las e aprofundar-lhes
o sentido profético.
28. Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de maneira
completa, é que faltavam aos homens conhecimentos
que eles só podiam adquirir com o tempo e sem os quais
não o compreenderiam; há muitas coisas que teriam parecido
absurdas no estado dos conhecimentos de então. Completar
o seu ensino deve entender-se no sentido de explicar
e desenvolver, não no de ajuntar-lhe verdades novas, porque
tudo nele se encontra em estado de gérmen, faltando-lhe só a chave para se apreender o sentido das palavras.
29. Mas, quem toma a liberdade de interpretar as Escrituras
Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as necessárias
luzes, senão os teólogos? Quem o ousa? Primeiro,
a ciência, que a ninguém pede permissão para dar a
conhecer as leis da natureza e que salta por sobre os erros e os
preconceitos. –– Quem tem esse direito? Neste século de
emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o
direito de exame pertence a todos, e as Escrituras não são
mais a arca santa na qual ninguém se atreveria a tocar
com a ponta do dedo, sem correr o risco de ser fulminado.
Quanto às luzes especiais, necessárias, sem contestar as
dos teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade
Média, e, em particular, os Pais da Igreja, eles, contudo,
não o eram bastante para não condenarem como heresia o
movimento da Terra e a crença nos antípodas. Mesmo sem
ir tão longe, os teólogos dos nossos dias não lançaram
anátema à teoria dos períodos de formação da Terra?
Os homens só puderam explicar as Escrituras com o
auxílio do que sabiam, das noções falsas ou incompletas
que tinham sobre as leis da natureza, mais tarde reveladas
pela ciência. Eis por que os próprios teólogos, de muito
boa-fé, se enganaram sobre o sentido de certas palavras e
fatos do Evangelho. Querendo a todo custo encontrar nele
a confirmação de uma ideia preconcebida, giraram sempre
no mesmo círculo, sem abandonar o seu ponto de vista, de
modo que só viam o que queriam ver. Por muito instruídos
que fossem, eles não podiam compreender causas dependentes
de leis que lhes eram desconhecidas.
Mas, quem julgará das interpretações diversas e muitas
vezes contraditórias, fora do campo da teologia? O futuro,
a lógica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos,
à medida que novos fatos e novas leis se forem
revelando, saberão separar da realidade os sistemas utópicos.
Ora, as ciências tornam conhecidas algumas leis; o
Espiritismo revela outras; todas são indispensáveis à inteligência
dos Textos Sagrados de todas as religiões, desde
Confúcio e Buda até o Cristianismo. Quanto à teologia, essa
não poderá judiciosamente alegar contradições da ciência,
visto como também ela nem sempre está de acordo consigo
mesma.
30. O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo,
como este partiu das de Moisés, é consequência direta
da sua doutrina. À ideia vaga da vida futura acrescenta a
revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e
povoa o espaço, e com isso precisa a crença, dá-lhe um
corpo, uma consistência, uma realidade à ideia. Define os
laços que unem a alma ao corpo e levanta o véu que ocultava
aos homens os mistérios do nascimento e da morte. Pelo
Espiritismo, o homem sabe donde vem, para onde vai, por
que está na Terra, por que sofre temporariamente e vê
por toda parte a justiça de Deus.
Sabe que a alma progride
incessantemente, através de uma série de existências sucessivas,
até atingir o grau de perfeição que a aproxima de
Deus. Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de
origem, são criadas iguais, com idêntica aptidão para progredir,
em virtude do seu livre-arbítrio; que todas são da
mesma essência e que não há entre elas diferença, senão
quanto ao progresso realizado; que todas têm o mesmo destino
e alcançarão a mesma meta, mais ou menos rapidamente,
pelo trabalho e boa vontade.
Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais
favorecidas umas do que outras; que Deus a nenhuma criou
privilegiada e dispensada do trabalho imposto às outras
para progredirem; que não há seres perpetuamente votados
ao mal e ao sofrimento; que os que se designam pelo
nome de demônios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos,
que praticam o mal no espaço, como o praticavam
na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; que os
anjos ou Espíritos puros não são seres à parte na criação,
mas Espíritos que chegaram à meta, depois de terem percorrido
a estrada do progresso; que, por essa forma, não há
criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres
inteligentes, mas que toda a criação deriva da grande
lei de unidade que rege o universo e que todos os seres
gravitam para um fim comum, que é a perfeição, sem que
uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos
filhos das suas próprias obras.
31. Pelas relações que hoje pode estabelecer com aqueles
que deixaram a Terra, possui o homem não só a prova material
da existência e da individualidade da alma, como também
compreende a solidariedade que liga os vivos aos mortos
deste mundo e os deste mundo aos dos outros planetas.
Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos, acompanha-os em suas migrações, aprecia-lhes as alegrias e as
penas; sabe a razão por que são felizes ou infelizes e a sorte
que lhes está reservada, conforme o bem ou o mal que fizerem.
Essas relações iniciam o homem na vida futura, que
ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas
peripécias; o futuro já não é uma vaga esperança: é um fato
positivo, uma certeza matemática. Desde então, a morte
nada mais tem de aterrador, por lhe ser a libertação, a
porta da verdadeira vida.
32. Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe
que a felicidade e a desdita, na vida espiritual, são inerentes
ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual
sofre as consequências diretas e naturais de suas faltas,
ou, por outra, que é punido no que pecou; que essas consequências
duram tanto quanto a causa que as produziu;
que, por conseguinte, o culpado sofreria eternamente, se
persistisse no mal, mas que o sofrimento cessa com o arrependimento
e a reparação; ora, como depende de cada um
o seu aperfeiçoamento, todos podem, em virtude do
livre-arbítrio, prolongar ou abreviar seus sofrimentos, como
o doente sofre, pelos seus excessos, enquanto não lhes põe
termo.
33. Se a razão repele, como incompatível com a bondade de
Deus, a ideia das penas irremissíveis, perpétuas e absolutas,
muitas vezes infligidas por uma única falta; a dos suplícios
do inferno, que não podem ser minorados nem sequer
pelo arrependimento mais ardente e mais sincero, a
mesma razão se inclina diante dessa justiça distributiva e
imparcial, que leva tudo em conta, que nunca fecha a porta
ao arrependimento e estende constantemente a mão ao
náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.
34. A pluralidade das existências, cujo princípio o Cristo
estabeleceu no Evangelho, sem todavia defini-lo como a
muitos outros, é uma das mais importantes leis reveladas
pelo Espiritismo, pois que lhe demonstra a realidade e a
necessidade para o progresso. Com esta lei, o homem explica
todas as aparentes anomalias da vida humana; as
diferenças de posição social; as mortes prematuras que,
sem a reencarnação, tornariam inúteis à alma as existências
breves; a desigualdade de aptidões intelectuais e morais,
pela ancianidade do Espírito que mais ou menos aprendeu
e progrediu, e traz, nascendo, o que adquiriu em suas
existências anteriores (n.º 5).
35. Com a doutrina da criação da alma no instante do nascimento,
vem-se a cair no sistema das criações privilegiadas;
os homens são estranhos uns aos outros; nada os liga; os laços de família são puramente carnais; não são de nenhum
modo solidários com um passado em que não existiam;
com a doutrina do nada após a morte, todas as relações
cessam com a vida; os seres humanos não são solidários
no futuro. Pela reencarnação, são solidários no passado e
no futuro e, como as suas relações se perpetuam, tanto no
mundo espiritual como no corporal, a fraternidade tem por
base as próprias leis da natureza; o bem tem um objetivo e
o mal consequências inevitáveis.
36. Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de
raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, grande senhor ou proletário, chefe ou
subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos
os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e
da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais
forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da
reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei
da natureza o princípio da fraternidade universal, também
funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e,
por conseguinte, o da liberdade.
37. Tirai ao homem o espírito livre e independente, sobrevivente
à matéria, e fareis dele uma simples máquina organizada,
sem finalidade, nem responsabilidade, sem outro
freio além da lei civil, e própria a ser explorada como um
animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada
obsta a que aumente os gozos do presente; se sofre, só tem
a perspectiva do desespero e o nada como refúgio. Com a
certeza do futuro, com a de encontrar de novo aqueles
a quem amou e com o temor de tornar a ver aqueles a quem
ofendeu, todas as suas ideias mudam. O Espiritismo, ainda
que só fizesse forrar o homem à dúvida relativamente à
vida futura, teria feito mais pelo seu aperfeiçoamento moral
do que todas as leis disciplinares, que o detêm algumas
vezes, mas que o não transformam.
38. Sem a preexistência da alma, a doutrina do pecado
original não seria somente inconciliável com a justiça de
Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pela falta
de um só; seria também um contrassenso, e tanto menos
justificável quanto, segundo essa doutrina, a alma não existia
na época a que se pretende fazer que a sua responsabilidade remonte. Com a preexistência, o homem traz, ao
renascer, o gérmen das suas imperfeições, dos defeitos de
que se não corrigiu e que se traduzem pelos instintos naturais
e pelos pendores para tal ou tal vício. É esse o seu
verdadeiro pecado original, cujas consequências naturalmente
sofre, mas com a diferença capital de que sofre a
pena das suas próprias faltas, e não das de outrem; e com
a outra diferença, ao mesmo tempo consoladora, animadora
e soberanamente equitativa, de que cada existência lhe
oferece os meios de se redimir pela reparação e de progredir,
quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo
novos conhecimentos e, assim, até que, suficientemente
purificado, não necessite mais da vida corporal, e possa viver exclusivamente a vida espiritual, eterna e
bem-aventurada.
Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente
traz, ao renascer, qualidades naturais, como o que progrediu
intelectualmente traz ideias inatas; identificado com o
bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer,
sem pensar. Aquele que é obrigado a combater as suas más
tendências vive ainda em luta; o primeiro já venceu, o segundo
procura vencer. Existe, pois, a virtude original, como
existe o saber original, e o pecado ou, antes, o vício original.
39. O Espiritismo experimental estudou as propriedades
dos fluidos espirituais e a ação deles sobre a matéria. Demonstrou
a existência do perispírito, suspeitado desde a
antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de corpo
espiritual, isto é, corpo fluídico da alma, depois da destruição do corpo tangível. Sabe-se hoje que esse invólucro é
inseparável da alma; forma um dos elementos constitutivos do ser humano; é o veículo da transmissão do pensamento;
e, durante a vida do corpo, serve de laço entre o
Espírito e a matéria. O perispírito representa importantíssimo
papel no organismo e numa multidão de afecções, que
se ligam à fisiologia, assim como à psicologia.
40. O estudo das propriedades do perispírito, dos fluidos
espirituais e dos atributos fisiológicos da alma abre novos
horizontes à ciência e dá a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos até então, por falta de conhecimento
da lei que os rege — fenômenos negados pelo materialismo,
por se prenderem à espiritualidade, e qualificados
como milagres ou sortilégios por outras crenças. Tais são,
entre muitos, os fenômenos da vista dupla, da visão a distância,
do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos
psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos
pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da
transmissão do pensamento, da fascinação, das curas instantâneas,
das obsessões e possessões, etc. Demonstrando
que esses fenômenos repousam em leis naturais, como os
fenômenos elétricos, e em que condições normais se podem
reproduzir, o Espiritismo derroca o império do maravilhoso
e do sobrenatural e, conseguintemente, a fonte da maior
parte das superstições. Se faz se creia na possibilidade de
certas coisas consideradas por alguns como quiméricas,
também impede que se creia em muitas outras, das quais
ele demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.
41. O Espiritismo, longe de negar ou destruir o Evangelho,
vem, ao contrário, confirmar, explicar e desenvolver, pelas
novas leis da natureza, que revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; elucida os pontos obscuros do ensino cristão,
de tal sorte que aqueles para quem eram ininteligíveis certas
partes do Evangelho, ou pareciam inadmissíveis, as
compreendem e admitem, sem dificuldade, com o auxílio
desta doutrina; veem melhor o seu alcance e podem distinguir
entre a realidade e a alegoria; o Cristo lhes parece maior:
já não é simplesmente um filósofo — é um Messias divino.
42. Demais, se se considerar o poder moralizador do Espiritismo,
pela finalidade que assina a todas as ações da vida,
por tornar quase tangíveis as consequências do bem e do
mal, pela força moral, a coragem e as consolações que dá
nas aflições, mediante inalterável confiança no futuro, pela
ideia de ter cada um perto de si os seres a quem amou, a
certeza de os rever, a possibilidade de confabular com eles;
enfim, pela certeza de que tudo quanto se fez, quanto se
adquiriu em inteligência, sabedoria, moralidade, até à última
hora da vida, não fica perdido, que tudo aproveita ao
adiantamento do Espírito, reconhece-se que o Espiritismo
realiza todas as promessas do Cristo a respeito do
Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade
que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa
da sua vinda se acha por essa forma cumprida,
porque, de fato, é ele o verdadeiro Consolador.*
* Muitos pais deploram a morte prematura dos filhos, para cuja educação
fizeram grandes sacrifícios, e dizem consigo mesmos que tudo
foi em pura perda. À luz do Espiritismo, porém, não lamentam esses
sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza
de que veriam morrer seus filhos, porque sabem que se estes não a
aproveitam na vida presente, essa educação servirá, primeiro que tudo, para o seu adiantamento espiritual; e, mais, que serão aquisições
novas para outra existência e que, quando voltarem a este
mundo, terão um patrimônio intelectual que os tornará mais aptos
a adquirirem novos conhecimentos.
Tais essas crianças que trazem, ao nascer, ideias inatas — que
sabem, por assim dizer, sem precisarem aprender.
Se os pais não têm a satisfação imediata de ver os filhos aproveitarem
da educação que lhes deram, gozá-la-ão certamente mais
tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez sejam eles
de novo os pais desses mesmos filhos, que se apontam como afortunadamente
dotados pela natureza e que devem as suas aptidões a
uma educação precedente; assim também, se os filhos se desviam
para o mal, pela negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais
tarde desgostos e pesares que aqueles suscitarão em nova existência.
(
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, n.º 21, “Mortes prematuras”.)
43. Se a estes resultados adicionarmos a rapidez prodigiosa
da propagação do Espiritismo, apesar de tudo quanto
fazem por abatê-lo, não se poderá negar que a sua vinda
seja providencial, visto como ele triunfa de todas as forças
e de toda a má vontade dos homens. A facilidade com que é
aceito por grande número de pessoas, sem constrangimento,
apenas pelo poder da ideia, prova que ele corresponde a
uma necessidade, qual a de crer o homem em alguma coisa
para encher o vácuo aberto pela incredulidade e que,
portanto, veio no momento preciso.
44. São em grande número os aflitos; não é, pois, de admirar
que tanta gente acolha uma doutrina que consola, de
preferência às que desesperam, porque aos deserdados, mais
do que aos felizes do mundo, é que o Espiritismo se dirige.
O doente vê chegar o médico com maior satisfação do que
aquele que está bem de saúde; ora, os aflitos são os
doentes e o Consolador é o médico.
Vós que combateis o Espiritismo, se quereis que o abandonemos
para vos seguir, dai-nos mais e melhor do que ele;
curai com maior segurança as feridas da alma. Dai
mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, maiores certezas; fazei do futuro um
quadro mais racional, mais sedutor; não julgueis, porém,
vencê-lo com a perspectiva do nada, com a alternativa das
chamas do inferno, ou com a inútil contemplação perpétua.
45. A primeira revelação teve a sua personificação em Moisés,
a segunda no Cristo; a terceira não na tem em indivíduo
algum. As duas primeiras foram individuais; a terceira é coletiva; e aí está um caráter essencial de grande importância.
Ela é coletiva no sentido de não ser feita ou dada como
privilégio a pessoa alguma; ninguém, por consequência, pode
inculcar-se como seu profeta exclusivo; foi espalhada
simultaneamente, por sobre a Terra, a milhões de pessoas,
de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a
mais alta da escala, conforme esta predição registrada pelo
autor dos Atos dos Apóstolos: “Nos últimos tempos, disse o
Senhor, derramarei o meu espírito sobre toda a carne; os
vossos filhos e filhas profetizarão, os mancebos terão
visões, e os velhos, sonhos.” (Atos, 2:17–18.) Ela não
proveio de nenhum culto especial, a fim de servir um dia, a
todos, de ponto de ligação.*
* O nosso papel pessoal, no grande movimento de ideias que se prepara
pelo Espiritismo, e que começa a operar-se, é o de um observador
atento, que estuda os fatos para lhes descobrir a causa e tirar-lhes as consequências. Confrontamos todos os que nos têm sido
possível reunir, comparamos e comentamos as instruções dadas
pelos Espíritos em todos os pontos do globo e depois coordenamos
metodicamente o conjunto; em suma, estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações, sem atribuirmos aos nossos
trabalhos valor maior do que o de uma obra filosófica deduzida da
observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe
da doutrina, nem procurarmos impor as nossas ideias a quem quer
que seja. Publicando-as, usamos de um direito comum, e aqueles
que as aceitaram o fizeram livremente. Se essas ideias acharam
numerosas simpatias, é porque tiveram a vantagem de corresponder
às aspirações de avultado número de criaturas, mas disso não
colhemos vaidade alguma, dado que a sua origem não nos pertence.
O nosso maior mérito é a perseverança e a dedicação à causa
que abraçamos. Em tudo isso, fizemos o que outro qualquer poderia
ter feito como nós, razão pela qual nunca tivemos a pretensão
de nos julgarmos profeta ou messias, nem, ainda menos, de nos
apresentarmos como tal.
46. As duas primeiras revelações sendo fruto do ensino
pessoal, ficaram forçosamente localizadas, isto é, apareceram
num só ponto, em torno do qual a ideia se propagou
pouco a pouco; mas, foram precisos muitos séculos para
que atingissem as extremidades do mundo, sem mesmo o
invadirem inteiramente. A terceira tem isto de particular:
não estando personificada em um só indivíduo, surgiu simultaneamente
em milhares de pontos diferentes, que se
tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se
esses centros, seus raios se reúnem pouco a pouco, como
os círculos formados por uma multidão de pedras lançadas
na água, de tal sorte que, em dado tempo, acabarão por
cobrir toda a superfície do globo. Essa uma das causas da rápida propagação da
doutrina. Se ela tivesse surgido num só ponto, se fosse obra exclusiva de um homem, houvera formado seitas em
torno dela; e talvez decorresse meio século sem que ela
atingisse os limites do país onde começara, ao passo que,
após dez anos, já estende raízes de um polo a outro.
47. Esta circunstância, inaudita na história das doutrinas,
lhe dá força excepcional e irresistível poder de ação; de fato,
se a perseguirem num ponto, em determinado país, será
materialmente impossível que a persigam em toda parte e
em todos os países. Em contraposição a um lugar onde lhe
embaracem a marcha, haverá mil outros em que florescerá.
Ainda mais: se a ferirem num indivíduo, não poderão feri-la
nos Espíritos, que são a fonte donde ela promana. Ora,
como os Espíritos estão em toda parte e existirão sempre,
se, por um acaso impossível, conseguissem sufocá-la em
todo o globo, ela reapareceria pouco tempo depois, porque
repousa sobre um fato que está na natureza e não se podem
suprimir as leis da natureza. Eis aí o de que se devem
persuadir aqueles que sonham com o aniquilamento do
Espiritismo. (
Revista espírita, n.º de fevereiro de 1865: “Da perpetuidade
do Espiritismo”.)
48. Entretanto, disseminados os centros, poderiam ainda
permanecer por muito tempo isolados uns dos outros, confinados
como estão alguns em países longínquos. Faltava
entre eles uma ligação, que os pusesse em comunhão de
ideias com seus irmãos em crença, informando-os do que
se fazia algures. Esse traço de união, que na antiguidade
teria faltado ao Espiritismo, hoje existe nas publicações que
vão a toda parte, condensando, sob uma forma única, concisa e metódica, o ensino dado universalmente sob formas
múltiplas e nas diversas línguas.
49. As duas primeiras revelações só podiam resultar de um
ensino direto; como os homens não estivessem ainda bastante
adiantados a fim de concorrerem para a sua elaboração, elas tinham que ser impostas pela fé, sob a autoridade
da palavra do Mestre.
Contudo, notam-se entre as duas bem sensível diferença,
devida ao progresso dos costumes e das ideias, se
bem que feitas ao mesmo povo e no mesmo meio, mas com
dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta,
despótica; não admite discussão e se impõe ao povo
pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente
aceita e só se impõe pela persuasão; foi controvertida
desde o tempo do seu fundador, que não desdenhava de
discutir com os seus adversários.
50. A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e madureza intelectual, em que a inteligência, já desenvolvida,
não se resigna a representar papel passivo; em
que o homem nada aceita às cegas, mas quer ver aonde o
conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa —
tinha ela que ser ao mesmo tempo o produto de um ensino
e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre exame. Os Espíritos
não ensinam senão justamente o que é mister para
guiá-lo no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o
que o homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho
da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência
à sua custa. Fornecem-lhe o princípio, os materiais;
cabe-lhe a ele aproveitá-los e pô-los em obra (n.º 15).
51. Tendo sido os elementos da revelação espírita ministrados
simultaneamente em muitos pontos, a homens de
todas as condições sociais e de diversos graus de instrução, é claro que as observações não podiam ser feitas em
toda parte com o mesmo resultado; que as consequências a
tirar, a dedução das leis que regem esta ordem de fenômenos,
em suma, a conclusão sobre que haviam de firmar-se
as ideias não podiam sair senão do conjunto e da correlação dos fatos. Ora, cada centro isolado, circunscrito dentro
de um círculo restrito, não vendo as mais das vezes senão
uma ordem particular de fatos, não raro contraditórios na
aparência, geralmente provindo de uma mesma categoria
de Espíritos e, ao demais, embaraçados por influências locais
e pelo espírito de partido, se achava na impossibilidade
material de abranger o conjunto e, por isso mesmo, incapaz
de conjugar as observações isoladas a um princípio
comum. Apreciando cada qual os fatos sob o ponto de vista
dos seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião
especial dos Espíritos que se manifestassem, bem cedo
teriam surgido tantas teorias e sistemas, quantos fossem
os centros, todos incompletos por falta de elementos de
comparação e exame. Numa palavra, cada qual se teria
imobilizado na sua revelação parcial, julgando possuir toda
a verdade, ignorando que em cem outros lugares se
obtinha mais ou melhor.
52. Além disso, convém notar que em parte alguma o ensino
espírita foi dado integralmente; ele diz respeito a tão
grande número de observações, a assuntos tão diferentes,
exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais,
que impossível era acharem-se reunidas num mesmo ponto
todas as condições necessárias. Tendo o ensino que ser
coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho,
disseminando os assuntos de estudo e observação como,
em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um
mesmo objeto é repartida por diversos operários.
A revelação fez-se assim parcialmente em diversos lugares
e por uma multidão de intermediários e é dessa maneira
que prossegue ainda, pois que nem tudo foi revelado.
Cada centro encontra nos outros centros o complemento
do que obtém, e foi o conjunto, a coordenação de todos os
ensinos parciais que constituíram a doutrina espírita. Era, pois, necessário grupar os fatos espalhados, para
se lhes apreender a correlação, reunir os documentos diversos,
as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos
e sobre todos os assuntos, para as comparar, analisar,
estudar-lhes as analogias e as diferenças. Vindo as comunicações
de Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos,
era preciso apreciar o grau de confiança que a
razão permitia conceder-lhes, distinguir as ideias sistemáticas
individuais ou isoladas das que tinham a sanção do ensino
geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas, afastar
as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da
ciência positiva e da lógica, utilizar igualmente os erros, as
informações fornecidas pelos Espíritos, mesmo os da mais
baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo
invisível e formar com isso um todo homogêneo.
Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração,
independente de qualquer ideia preconcebida, de todo prejuízo
de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente,
embora contrária às opiniões pessoais. Este centro se
formou por si mesmo, pela força das coisas e sem desígnio
premeditado.*
* O Livro dos Espíritos, a primeira obra que levou o Espiritismo a ser
considerado de um ponto de vista filosófico, pela dedução das consequências
morais dos fatos; que considerou todas as partes da doutrina,
tocando nas questões mais importantes que ela suscita, foi,
desde o seu aparecimento, o ponto para onde convergiram espontaneamente
os trabalhos individuais. É notório que da publicação
desse livro data a era do Espiritismo filosófico, até então conservado
no domínio das experiências curiosas. Se esse livro conquistou
as simpatias da maioria é que exprimia os sentimentos dela,
correspondia às suas aspirações e encerrava também a confirmação e a explicação racional do que cada um obtinha em particular.
Se estivesse em desacordo com o ensino geral dos Espíritos, teria
caído no descrédito e no esquecimento. Ora, qual foi aquele ponto
de convergência? Decerto não foi o homem, que nada vale por si
mesmo, que morre e desaparece; mas, a ideia, que não fenece quando
emana de uma fonte superior ao homem.
Essa espontânea concentração de forças dispersas deu lugar a
uma amplíssima correspondência, monumento único no mundo,
quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde
se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos
múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações,
os desfalecimentos; arquivos preciosos para a posteridade,
que poderá julgar os homens e as coisas através de documentos
autênticos. Em presença desses testemunhos inexpugnáveis, a que
se reduzirão, com o tempo, todas as falsas alegações da inveja e do ciúme?. . .
53. De todas essas coisas, originou-se dupla corrente de
ideias: umas, dirigindo-se das extremidades para o centro;
as outras encaminhando-se do centro para a circunferência.
Desse modo, a doutrina caminhou rapidamente para a unidade,
malgrado à diversidade das fontes donde promanou;
os sistemas divergentes ruíram pouco a pouco, devido ao
isolamento em que ficaram, diante do ascendente da opinião
da maioria, em a qual não encontraram repercussão
simpática. Desde então, uma comunhão de ideias se estabeleceu
entre os diversos centros parciais. Falando a mesma
linguagem espiritual, eles se entendem e estimam, de
um extremo a outro do mundo. Sentiram-se assim mais fortes os espíritas, lutaram
com mais coragem, caminharam com passo mais firme,
desde que não mais se viram insulados, desde que perceberam
um ponto de apoio, um laço a prendê-los à grande
família. Não mais lhes pareceram singulares, anormais, nem
contraditórios os fenômenos que presenciavam, desde que
puderam conjugá-los a leis gerais e descobrir um fim
grandioso e humanitário em todo o conjunto.* Mas, como se há de saber se um princípio é ensinado por toda parte, ou se apenas exprime uma opinião pessoal? Não estando os grupos independentes em condições de saber o que se diz alhures, necessário se fazia que um centro reunisse todas as instruções, para proceder a uma espécie de apuro das vozes e transmitir a todos a opinião da maioria.**
* Significativo testemunho, tão notável quão tocante, dessa comunhão
de ideias que se estabeleceu entre os espíritas, pela conformidade
de suas crenças, são os pedidos de preces que nos chegam
dos mais distantes países, desde o Peru até as extremidades da
Ásia, feitos por pessoas de religiões e nacionalidades diversas e as
quais nunca vimos. Não é isso um prelúdio da grande unificação
que se prepara? Não é a prova de que por toda parte o Espiritismo
lança raízes fortes? Digno de nota é que, de todos os grupos que se têm formado com
a intenção premeditada de abrir cisão, proclamando princípios
divergentes, do mesmo modo que de todos quantos, apoiando-se em razões de amor-próprio ou outras quaisquer, para não parecer
que se submetem à lei comum, se consideraram fortes o bastante
para caminhar sozinhos, possuidores de luzes suficientes para prescindirem
de conselhos, nenhum chegou a construir uma ideia que
fosse preponderante e viável. Todos se extinguiram ou vegetaram
na sombra. Nem de outro modo poderia ser, dado que, para se
exalçarem, em vez de se esforçarem por proporcionar maior soma
de satisfações, rejeitavam princípios da doutrina, precisamente o
que de mais atraente há nela, o que de mais consolador ela contém
e de mais racional. Se houvessem compreendido a força dos elementos
morais que lhe constituíram a unidade, não se teriam embalado
com ilusões quiméricas. Ao contrário, tomando como se fosse
o universo o pequeno círculo que constituíam, não viram nos
adeptos mais do que uma camarilha facilmente derrubável por outra
camarilha. Era equivocar-se de modo singular, no tocante aos
caracteres essenciais da doutrina e semelhante erro só decepções
podia acarretar. Em lugar de romperem a unidade, quebraram o
único laço que lhes podia dar força e vida. (Veja-se:
Revista espírita,
abril de 1866: “O Espiritismo sem os Espíritos: o
Espiritismo independente”.)
** Esse o objeto das nossas publicações, que se podem considerar o
resultado de um trabalho de apuro. Nelas, todas as opiniões são
discutidas, mas as questões somente são apresentadas em forma
de princípios, depois de haverem recebido a consagração de todas
as comprovações, as quais, só elas, lhes podem imprimir força de
lei e permitir afirmações. Eis por que não preconizamos levianamente
nenhuma teoria e é nisso exatamente que a doutrina, decorrendo
do ensino geral, não representa produto de um sistema
preconcebido. É também donde tira a sua força e o que lhe garante
o futuro.
54. Nenhuma ciência existe que haja saído prontinha do
cérebro de um homem. Todas, sem exceção de nenhuma,
são fruto de observações sucessivas, apoiadas em observações precedentes, como em um ponto conhecido, para chegar
ao desconhecido. Foi assim que os Espíritos procederam,
com relação ao Espiritismo. Daí o ser gradativo o ensino
que ministram. Eles não enfrentam as questões, senão à
medida que os princípios sobre que hajam de apoiar-se estejam
suficientemente elaborados e amadurecida bastante
a opinião para os assimilar. É mesmo de notar-se que, de
todas as vezes que os centros particulares têm querido tratar
de questões prematuras, não obtiveram mais do que
respostas contraditórias, nada concludentes. Quando, ao
contrário, chega o momento oportuno, o ensino se generaliza
e se unifica na quase universalidade dos centros.
Há, todavia, capital diferença entre a marcha do Espiritismo
e a das ciências; a de que estas não atingiram o
ponto que alcançaram, senão após longos intervalos, ao
passo que alguns anos bastaram ao Espiritismo, quando
não a galgar o ponto culminante, pelo menos a recolher
uma soma de observações bem grande para formar uma
doutrina. Decorre esse fato de ser inumerável a multidão
de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram
simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus
conhecimentos. Resultou daí que todas as partes da doutrina,
em vez de serem elaboradas sucessivamente durante
longos anos, o foram quase ao mesmo tempo, em alguns
anos apenas, e que bastou reuni-las para que estruturassem
um todo.
Quis Deus fosse assim, primeiro para que o edifício
mais rapidamente chegasse ao ápice; em seguida para que
se pudesse, por meio da comparação, conseguir uma verificação,
a bem dizer imediata e permanente, da universalidade
do ensino, nenhuma de suas partes tendo valor, nem
autoridade, a não ser pela sua conexão com o conjunto,
devendo todos harmonizar-se, colocado cada um no devido
lugar e vindo cada um na hora oportuna.
Não confiando a um único Espírito o encargo de promulgar
a doutrina, quis Deus, também, que, assim o mais
pequenino, como o maior, tanto entre os Espíritos, quanto
entre os homens, trouxesse sua pedra para o edifício, a fim
de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa,
que faltou a todas as doutrinas decorrentes de um
tronco único. Por outro lado, dispondo todo Espírito, como todo homem,
apenas de limitada soma de conhecimentos, não estavam
eles aptos, individualmente, a tratar
ex professo das
inúmeras questões que o Espiritismo envolve. Essa ainda
uma razão por que, em cumprimento dos desígnios do
Criador, não podia a doutrina ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium. Tinha que emergir da coletividade
dos trabalhos, comprovados uns pelos outros.*
* Veja-se, em O Evangelho segundo o Espiritismo, “Introdução”, item
II, e na
Revista espírita, abril de 1864, “Autoridade da doutrina espírita; controle universal do ensino dos Espíritos”.
55. Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das
condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se
em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente
progressiva, como todas as ciências de observação.
Pela sua substância, alia-se à ciência que, sendo a exposição das leis da natureza, com relação a certa ordem de
fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas
leis. As descobertas que a ciência realiza, longe de o rebaixarem,
glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens
edificaram sobre as falsas ideias que formaram de Deus.
O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto
senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o
que ressalta logicamente da observação. Entendendo com todos
os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das
suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas
progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que
hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado
o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. Deixando de
ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial.
Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais
será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem
estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se
modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar,
ele a aceitará. *
* Diante de declarações tão nítidas e tão categóricas, quais as que se
contêm neste capítulo, caem por terra todas as alegações de tendências
ao absolutismo e à autocracia dos princípios, bem como
todas as falsas assimilações que algumas pessoas prevenidas ou
mal informadas emprestam à doutrina. Não são novas, aliás, estas
declarações; temo-las repetido muitíssimas vezes nos nossos escritos,
para que nenhuma dúvida persista a tal respeito. Elas, ao
demais, assinalam o verdadeiro papel que nos cabe, único que
ambicionamos: o de mero trabalhador.
56. Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos,
uma vez que não difere da do Cristo? Precisa o homem de
uma revelação? Não pode achar em si próprio tudo o que lhe é
necessário para conduzir-se?
Do ponto de vista moral, é fora de dúvida que Deus
outorgou ao homem um guia, dando-lhe a consciência, que
lhe diz: “Não faças a outrem o que não quererias te fizessem.”
A moral natural está positivamente inscrita no coração dos homens; porém, sabem todos lê-la nesse livro?
Nunca lhe desprezaram os sábios preceitos? Que fizeram
da moral do Cristo? Como a praticam mesmo aqueles que a
ensinam? Reprovareis que um pai repita a seus filhos dez
vezes, cem vezes as mesmas instruções, desde que eles não
as sigam? Por que haveria Deus de fazer menos do que um
pai de família? Por que não enviaria, de tempos a tempos,
mensageiros especiais aos homens, para lhes lembrar os
deveres e reconduzi-los ao bom caminho, quando deste se
afastam; para abrir os olhos da inteligência aos que os trazem
fechados, assim como os homens mais adiantados
enviam missionários aos selvagens e aos bárbaros?
A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela
razão de que não há outra melhor. Mas, então, de que serve
o ensino deles, se apenas repisam o que já sabemos? Outro
tanto se poderia dizer da moral do Cristo, que já Sócrates e
Platão ensinaram quinhentos anos antes e em termos quase
idênticos. O mesmo se poderia dizer também das de todos
os moralistas, que nada mais fazem do que repetir a
mesma coisa em todos os tons e sob todas as formas. Pois
bem! os Espíritos vêm, muito simplesmente, aumentar o número dos moralistas, com a diferença de que, manifestando-se
por toda parte, tanto se fazem ouvir na choupana,
como no palácio, assim pelos ignorantes, como pelos
instruídos.
O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do
Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam
as noções vagas que se tinham da alma, de seu passado e
de seu futuro, dando por sanção à doutrina cristã as próprias leis da natureza. Com o auxílio das novas luzes que o
Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem se reconhece
solidário com todos os seres e compreende essa solidariedade;
a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade
social; ele faz por convicção o que fazia unicamente
por dever, e o faz melhor.
Somente quando praticarem a moral do Cristo, poderão
os homens dizer que não mais precisam de moralistas
encarnados ou desencarnados. Mas, também, Deus,
então, já não lhos enviará.
57. Uma das questões mais importantes, entre as propostas
no começo deste capítulo, é a seguinte: Que autoridade
tem a revelação espírita, uma vez que emana de seres de
limitadas luzes e não infalíveis?
A objeção seria ponderosa, se essa revelação consistisse
apenas no ensino dos Espíritos, se deles exclusivamente
a devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos
fechados. Perde, porém, todo valor, desde que o homem
concorra para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério;
desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho
das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos.
Ora, as manifestações, nas suas inumeráveis modalidades,
são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias,
que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que
reveladores, no sentido usual do termo. Ele lhes submete
os dizeres ao cadinho da lógica e do bom senso: desta maneira
se beneficia dos conhecimentos especiais de que os
Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem
abdicar o uso da própria razão.
Sendo os Espíritos unicamente as almas dos homens,
comunicando-nos com eles não saímos fora da humanidade,
circunstância capital a considerar-se. Os homens de
gênio, que foram fachos da humanidade, vieram do mundo
dos Espíritos e para lá voltaram, ao deixarem a Terra. Dado
que os Espíritos podem comunicar-se com os homens, esses
mesmos gênios podem dar-lhes instruções sob a forma
espiritual, como o fizeram sob a forma corpórea. Podem
instruir-nos, depois de terem morrido, tal qual faziam quando
vivos; apenas, são invisíveis, em vez de serem visíveis;
essa a única diferença. Não devem ser menores do que eram
a experiência e o saber que possuem e, se a palavra deles,
como homens, tinha autoridade, não na pode ter menos somente por estarem no mundo dos Espíritos.
58. Mas, nem só os Espíritos superiores se manifestam;
fazem-no igualmente os de todas as categorias e preciso
era que assim acontecesse, para nos iniciarmos no que respeita
ao verdadeiro caráter do mundo espiritual, apresentando-se-nos
este por todas as suas faces. Daí resulta serem
mais íntimas as relações entre o mundo visível e o
mundo invisível e mais evidente a conexidade entre os dois.
Vemos assim mais claramente donde procedemos e para onde
iremos. Esse o objeto essencial das manifestações. Todos os
Espíritos, pois, qualquer que seja o grau de elevação em que
se encontrem, alguma coisa nos ensinam; cabe-nos,
porém, a nós, visto que eles são mais ou menos esclarecidos,
discernir o que há de bom ou de mau no que nos digam
e tirar, do ensino que nos deem, o proveito possível.
Ora, todos, quaisquer que sejam, nos podem ensinar ou
revelar coisas que ignoramos e que sem eles nunca
saberíamos.
59. Os grandes Espíritos encarnados são, sem contradita,
individualidades poderosas, mas de ação restrita e de lenta
propagação. Viesse um só dentre eles, embora fosse Elias
ou Moisés, Sócrates ou Platão, revelar, nos tempos modernos,
aos homens, as condições do mundo espiritual, quem
provaria a veracidade das suas asserções, nesta época de
cepticismo? Não o tomariam por sonhador ou utopista?
Mesmo que fosse verdade absoluta o que dissesse, séculos
se escoariam antes que as massas humanas lhe aceitassem
as ideias. Deus, em sua sabedoria, não quis que assim
acontecesse; quis que o ensino fosse dado pelos próprios
Espíritos, não por encarnados, a fim de que aqueles convencessem
da sua existência a estes últimos e quis que
isso ocorresse por toda a Terra simultaneamente, quer para
que o ensino se propagasse com maior rapidez, quer
para que, coincidindo em toda parte, constituísse uma prova
da verdade, tendo assim cada um o meio de convencer-se
a si próprio.
60. Os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo
e das pesquisas o homem, nem para lhe transmitirem, inteiramente
pronta, nenhuma ciência. Com relação ao que o
homem pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue
às suas próprias forças. Isso sabem-no hoje perfeitamente
os espíritas. De há muito, a experiência há demonstrado
ser errôneo atribuir-se aos Espíritos todo o saber e toda a
sabedoria e supor-se que baste a quem quer que seja dirigir-se
ao primeiro Espírito que se apresente para conhecer
todas as coisas. Saídos da humanidade, eles constituem
uma de suas faces. Assim como na Terra, no plano invisível
também os há superiores e vulgares; muitos, pois, que,
científica e filosoficamente, sabem menos do que certos
homens; eles dizem o que sabem, nem mais, nem menos.
Do mesmo modo que os homens, os Espíritos mais adiantados
podem instruir-nos sobre maior porção de coisas,
dar-nos opiniões mais judiciosas, do que os atrasados. Pedir
o homem conselhos aos Espíritos não é entrar em entendimento
com potências sobrenaturais; é tratar com seus
iguais, com aqueles mesmos a quem ele se dirigiria neste
mundo; a seus parentes, seus amigos, ou a indivíduos mais
esclarecidos do que ele. Disto é que importa se convençam
todos e é o que ignoram os que, não tendo estudado o Espiritismo,
fazem ideia completamente falsa da natureza do
mundo dos Espíritos e das relações com o além-túmulo.
61. Qual, então, a utilidade dessas manifestações, ou, se o
preferirem, dessa revelação, uma vez que os Espíritos não
sabem mais do que nós, ou não nos dizem tudo o que sabem?
Primeiramente, como já o declaramos, eles se abstém
de nos dar o que podemos adquirir pelo trabalho; em segundo
lugar, há coisas cuja revelação não lhes é permitida,
porque o grau do nosso adiantamento não nas comporta.
Afora isto, as condições da nova existência em que se acham
lhes dilatam o círculo das percepções: eles veem o que não
viam na Terra; libertos dos entraves da matéria, isentos
dos cuidados da vida corpórea, apreciam as coisas de um
ponto de vista mais elevado e, portanto, mais são; a perspicácia
de que gozam abrange mais vasto horizonte; compreendem
seus erros, retificam suas ideias e se desembaraçam
dos prejuízos humanos. É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos com
relação à humanidade corpórea e daí vem a possibilidade
de serem seus conselhos, segundo o grau de adiantamento
que alcançaram, mais judiciosos e desinteressados do que
os dos encarnados. O meio em que se encontram lhes permite,
ao demais, iniciar-nos nas coisas, que ignoramos,
relativas à vida futura e que não podemos aprender no meio
em que estamos. Até ao presente, o homem apenas formulara
hipóteses sobre o seu porvir; tal a razão por que suas
crenças a esse respeito se fracionaram em tão numerosos e
divergentes sistemas, desde o nadismo até as concepções
fantásticas do inferno e do paraíso. Hoje, são as testemunhas
oculares, os próprios atores da vida de além-túmulo
que nos vêm dizer em que se tornaram e só eles o podiam
fazer. Suas manifestações, conseguintemente, serviram para
dar-nos a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do
qual nem suspeitávamos e só esse conhecimento seria de capital importância, dado mesmo que nada mais pudessem
os Espíritos ensinar-nos.
Se fordes a um país que ainda não conheçais, recusareis
as informações que vos dê o mais humilde campônio que
encontrardes? Deixareis de interrogá-lo sobre o estado dos
caminhos, simplesmente por ser ele um camponês? Certamente
não esperareis obter, por seu intermédio, esclarecimentos
de grande alcance, mas, de acordo com o que ele é
na sua esfera, poderá, sobre alguns pontos, informar-vos
melhor do que um sábio, que não conheça o país. Tirareis
das suas indicações deduções que ele próprio não tiraria,
sem que por isso deixe de ser um instrumento útil às vossas
observações, embora apenas servisse para vos informar
acerca dos costumes dos camponeses. Outro tanto se
dá no que concerne às nossas relações com os Espíritos,
entre os quais o menos qualificado pode servir para nos
ensinar alguma coisa.
62. Uma comparação vulgar tornará ainda melhor
compreensível a situação.
Parte para destino longínquo um navio carregado de
emigrantes. Leva homens de todas as condições, parentes
e amigos dos que ficam. Vem-se a saber que esse navio
naufragou. Nenhum vestígio resta dele, nenhuma notícia
chega sobre a sua sorte. Acredita-se que todos os passageiros
pereceram e o luto penetra em todas as suas famílias.
Entretanto, a equipagem inteira, sem faltar um único homem,
foi ter a uma ilha desconhecida, abundante e fértil, onde todos passam a viver ditosos, sob um céu clemente.
Ninguém, todavia, sabe disso. Ora, um belo dia, outro navio
aporta a essa terra e lá encontra sãos e salvos os náufragos.
A feliz nova se espalha com a rapidez do relâmpago.
Exclamam todos: “Não estão perdidos os nossos amigos!” E
rendem graças a Deus. Não podem ver-se uns aos outros,
mas correspondem-se; permutam demonstrações de afeto
e, assim, a alegria substitui a tristeza.
Tal a imagem da vida terrena e da vida de além-túmulo,
antes e depois da revelação moderna. A última, semelhante
ao segundo navio, nos traz a boa-nova da sobrevivência
dos que nos são caros e a certeza de que a eles nos reuniremos
um dia. Deixa de existir a dúvida sobre a sorte deles e
a nossa. O desânimo se desfaz diante da esperança. Mas, outros resultados fecundam essa revelação.
Achando madura a humanidade para penetrar o mistério
do seu destino e contemplar, a sangue-frio, novas maravilhas,
permitiu Deus fosse erguido o véu que ocultava o
mundo invisível ao mundo visível. Nada têm de extra-humanas
as manifestações; é a humanidade espiritual que vem
conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe: “Nós existimos, logo, o nada não existe; eis o que somos
e o que sereis; o futuro vos pertence, como a nós.
Caminhais nas trevas, vimos clarear-vos o caminho e traçar-vos o roteiro; andais ao acaso, vimos apontar-vos a
meta. A vida terrena era, para vós, tudo, porque nada víeis
além dela; vimos dizer-vos, mostrando a vida espiritual: a
vida terrestre nada é. A vossa visão se detinha no túmulo, nós vos desvendamos, para lá deste, um esplêndido horizonte.
Não sabíeis por que sofreis na Terra; agora, no
sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem nenhum fruto
aparente produzia para o futuro. Doravante, ele terá
uma finalidade e constituirá uma necessidade; a fraternidade,
que não passava de bela teoria, assenta agora
numa lei da natureza. Sob o domínio da crença de que
tudo acaba com a vida, a imensidade é o vazio, o egoísmo
reina soberano entre vós e a vossa palavra de ordem é:
“Cada um por si.” Com a certeza do porvir, os espaços
infinitos se povoam ao infinito, em parte alguma há o
vazio e a solidão; a solidariedade liga todos os seres,
aquém e além da tumba. É o reino da caridade, sob a
divisa: “Um por todos e todos por um.” Enfim, ao termo
da vida, dizíeis eterno adeus aos que vos são caros;
agora, dir-lhes-eis: ‘Até breve!’”
Tais, em resumo, os resultados da revelação nova,
que veio encher o vácuo que a incredulidade cavara, levantar
os ânimos abatidos pela dúvida ou pela perspectiva
do nada e imprimir a todas as coisas uma razão de
ser. Carecerá de importância esse resultado, apenas porque
os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência,
dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios
de se enriquecerem sem trabalho? Nem só, entretanto, à
vida futura dizem respeito os frutos que o homem deve
colher dela. Ele os saboreará na Terra, pela transformação que estas novas crenças hão de necessariamente
operar no seu caráter, nos seus gostos, nas suas tendências
e, por conseguinte, nos hábitos e nas relações sociais. Pondo fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da
incredulidade, elas preparam o do bem, que é o reino de
Deus, anunciado pelo Cristo.*
* A anteposição do artigo à palavra Cristo (do grego Christos, ungido),
empregada em sentido absoluto, é mais correta, atento que
essa palavra não é o nome do Messias de Nazaré, mas uma qualidade
tomada substantivamente. Dir-se-á, pois:
Jesus era Cristo;
era o
Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de
Cristo, ao passo que se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em
Jesus-Cristo, as duas palavras reunidas formam um só nome próprio. É pela mesma razão que se diz: o Buda; Gautama conquistou
a dignidade de
Buda por suas virtudes e austeridades. Diz-se: a vida
do Buda, do mesmo modo que: o exército do Faraó e não de Faraó;
Henrique IV era
rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei.
Capítulo II — Deus
Existência de Deus.
1. Sendo Deus a causa primária de todas as coisas, a origem
de tudo o que existe, a base sobre que repousa o edifício da criação, é também o ponto que importa consideremos
antes de tudo.
2. Constitui princípio elementar que pelos seus efeitos é
que se julga de uma causa, mesmo quando ela se conserve
oculta. Se, fendendo os ares, um pássaro é atingido por mortífero
grão de chumbo, deduz-se que hábil atirador o alvejou,
ainda que este último não seja visto. Nem sempre, pois,
se faz necessário vejamos uma coisa, para sabermos que
ela existe. Em tudo, observando os efeitos é que se chega
ao conhecimento das causas.
3. Outro princípio igualmente elementar e que, de tão verdadeiro,
passou a axioma é o de que todo efeito inteligente
tem que decorrer de uma causa inteligente.
Se perguntassem qual o construtor de certo mecanismo
engenhoso, que pensaríamos de quem respondesse que
ele se fez a si mesmo? Quando se contempla uma
obra-prima da arte ou da indústria, diz-se que há de tê-la
produzido um homem de gênio, porque só uma alta inteligência
poderia concebê-la. Reconhece-se, no entanto, que
ela é obra de um homem, por se verificar que não está acima
da capacidade humana; mas, a ninguém acudirá a ideia
de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante,
nem, ainda menos, que é trabalho de um animal, ou
produto do acaso.
4. Em toda parte se reconhece a presença do homem pelas
suas obras. A existência dos homens antediluvianos não se
provaria unicamente por meio dos fósseis humanos: provou-a
também, e com muita certeza, a presença, nos terrenos
daquela época, de objetos trabalhados pelos homens. Um
fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo
bastarão para lhe atestar a presença. Pela grosseria ou
perfeição do trabalho, reconhecer-se-á o grau de inteligência
ou de adiantamento dos que o executaram. Se, pois,
achando-vos numa região habitada exclusivamente por selvagens,
descobrirdes uma estátua digna de Fídias, não
hesitareis em dizer que, sendo incapazes de tê-la feito os
selvagens, ela é obra de uma inteligência superior à destes.
5. Pois bem! Lançando o olhar em torno de si, sobre as
obras da natureza, notando a providência, a sabedoria, a
harmonia que presidem a essas obras, reconhece o observador
não haver nenhuma que não ultrapasse os limites da
mais portentosa inteligência humana. Ora, desde que o
homem não as pode produzir, é que elas são produto de
uma inteligência superior à humanidade, a menos se
sustente que há efeitos sem causa.
6. A isto opõem alguns o seguinte raciocínio: As obras ditas da natureza são produzidas por forças
materiais que atuam mecanicamente, em virtude das leis
de atração e repulsão; as moléculas dos corpos inertes se
agregam e desagregam sob o império dessas leis. As plantas
nascem, brotam, crescem e se multiplicam sempre da
mesma maneira, cada uma na sua espécie, por efeito daquelas
mesmas leis; cada indivíduo se assemelha ao de quem
ele proveio; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração
se acham subordinados a causas materiais, tais como
o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. O mesmo se dá
com os animais. Os astros se formam pela atração molecular
e se movem perpetuamente em suas órbitas por efeito da
gravitação. Essa regularidade mecânica no emprego das
forças naturais não acusa a ação de qualquer inteligência
livre. O homem movimenta o braço quando quer e como
quer; aquele, porém, que o movimentasse no mesmo sentido,
desde o nascimento até a morte, seria um autômato.
Ora, as forças orgânicas da natureza são puramente
automáticas.
Tudo isso é verdade; mas, essas forças são efeitos que
hão de ter uma causa e ninguém pretende que elas constituam
a Divindade. Elas são materiais e mecânicas; não são
de si mesmas inteligentes, também isto é verdade; mas,
são postas em ação, distribuídas, apropriadas às necessidades
de cada coisa por uma inteligência que não é a dos
homens. A aplicação útil dessas forças é um efeito inteligente,
que denota uma causa inteligente. Um pêndulo se
move com automática regularidade e é nessa regularidade
que lhe está o mérito. É toda material a força que o faz
mover-se e nada tem de inteligente. Mas, que seria esse
pêndulo, se uma inteligência não houvesse combinado, calculado,
distribuído o emprego daquela força, para fazê-lo
andar com precisão? Do fato de não estar a inteligência no
mecanismo do pêndulo e do de que ninguém a vê, seria
racional deduzir-se que ela não existe? Apreciamo-la pelos
seus efeitos.
A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro;
a engenhosidade do mecanismo lhe atesta a inteligência
e o saber. Quando um relógio vos dá, no momento preciso,
a indicação de que necessitais, já vos terá vindo à
mente dizer: "aí está um relógio bem inteligente"?
Outro tanto ocorre com o mecanismo do universo: Deus
não se mostra, mas se revela pelas suas obras.
7. A existência de Deus é, pois, uma realidade comprovada
não só pela revelação, como pela evidência material dos
fatos. Os povos selvagens nenhuma revelação tiveram; entretanto,
creem instintivamente na existência de um poder
sobre-humano. Eles veem coisas que estão acima das possibilidades
do homem e deduzem que essas coisas provêm
de um ente superior à humanidade. Não demonstram
raciocinar com mais lógica do que os que pretendem que
tais coisas se fizeram a si mesmas?
Da natureza divina.
8. Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus.
Para compreendê-lo, ainda nos falta o sentido próprio, que
só se adquire por meio da completa depuração do Espírito.
Mas, se não pode penetrar na essência de Deus, o homem,
desde que aceite como premissa a sua existência, pode,
pelo raciocínio, chegar a conhecer-lhe os atributos necessários,
porquanto, vendo o que ele absolutamente não pode
ser, sem deixar de ser Deus, deduz daí o que ele deve ser. Sem o conhecimento dos atributos de Deus, impossível seria compreender-se a obra da criação. Esse o ponto
de partida de todas as crenças religiosas e é por não se
terem reportado a isso, como ao farol capaz de as orientar,
que a maioria das religiões errou em seus dogmas. As que
não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos
deuses; as que não lhe atribuíram soberana bondade fizeram
dele um Deus cioso, colérico, parcial e vingativo.
9. Deus é a suprema e soberana inteligência. É limitada a
inteligência do homem, pois que não pode fazer, nem compreender
tudo o que existe. A de Deus, abrangendo o infinito,
tem que ser infinita. Se a supuséssemos limitada num
ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente,
capaz de compreender e fazer o que o primeiro não
faria e assim por diante, até ao infinito.
10. Deus é eterno, isto é, não teve começo e não terá fim. Se
tivesse tido princípio, houvera saído do nada. Ora, não sendo
o nada coisa alguma, coisa nenhuma pode produzir. Ou,
então, teria sido criado por outro ser anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. Se lhe supuséssemos um começo
ou fim, poderíamos conceber uma entidade existente antes
dele e capaz de lhe sobreviver, e assim por diante, ao infinito.
11. Deus é imutável. Se estivesse sujeito a mudanças,
nenhuma estabilidade teriam as leis que regem o universo.
12. Deus é imaterial, isto é, a sua natureza difere de tudo o
que chamamos
matéria. De outro modo, não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria. Deus carece de forma apreciável pelos nossos sentidos,
sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o
olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, nada mais
conhecendo além de si mesmo, toma a si próprio por termo
de comparação para tudo o que não compreende. São ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura
de um ancião de longas barbas e envolto num manto.
Têm o inconveniente de rebaixar o Ente Supremo até às
mesquinhas proporções da humanidade. Daí a lhe emprestarem
as paixões humanas e a fazerem-no um Deus colérico
e cioso não vai mais que um passo.
13. Deus é onipotente. Se não possuísse o poder supremo,
sempre se poderia conceber uma entidade mais poderosa e
assim por diante, até chegar-se ao ser cuja potencialidade
nenhum outro ultrapassasse. Esse então é que seria Deus.
14. Deus é soberanamente justo e bom. A providencial
sabedoria das leis divinas se revela nas mais pequeninas
coisas, como nas maiores, não permitindo essa sabedoria
que se duvide da sua justiça, nem da sua bondade. O fato do ser infinita uma qualidade, exclui a possibilidade
de uma qualidade contrária, porque esta a apoucaria
ou anularia. Um ser infinitamente bom não poderia conter
a mais insignificante parcela de malignidade, nem o ser
infinitamente mau conter a mais insignificante parcela de
bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de
um negro absoluto, com a mais ligeira nuança de branco,
nem de um branco absoluto com a mais pequenina
mancha preta. Deus, pois, não poderia ser simultaneamente bom e
mau, porque então, não possuindo qualquer dessas duas
qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas
estariam sujeitas ao seu capricho e para nenhuma haveria
estabilidade. Não poderia ele, por conseguinte, deixar
de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau. Ora,
como suas obras dão testemunho da sua sabedoria, da sua
bondade e da sua solicitude, concluir-se-á que, não podendo
ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar de ser Deus,
ele necessariamente tem de ser infinitamente bom. A soberana bondade implica a soberana justiça, porquanto,
se ele procedesse injustamente ou com parcialidade
numa só circunstância que fosse, ou com relação a uma
só de suas criaturas, já não seria soberanamente justo e,
em consequência, já não seria soberanamente bom.
15. Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber-se
Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus,
pois sempre se poderia conceber um ser que possuísse
o que lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo,
faz-se mister que ele seja infinito em tudo.
Sendo infinitos, os atributos de Deus não são suscetíveis nem de aumento, nem de diminuição, visto que do contrário
não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se lhe
tirassem a qualquer dos atributos a mais mínima parcela,
já não haveria Deus, pois que poderia existir um ser mais
perfeito.
16. Deus é único. A unicidade de Deus é consequência do
fato de serem infinitas as suas perfeições. Não poderia existir
outro Deus, salvo sob a condição de ser igualmente infinito
em todas as coisas, visto que, se houvesse entre eles a mais
ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado
ao poder desse outro e, então, não seria Deus. Se houvesse
entre ambos igualdade absoluta, isso equivaleria a existir,
de toda eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma
vontade, um mesmo poder. Confundidos assim, quanto à
identidade, não haveria, em realidade, mais que um único
Deus. Se cada um tivesse atribuições especiais, um não
faria o que o outro fizesse; mas, então, não existiria igualdade
perfeita entre eles, pois que nenhum possuiria a
autoridade soberana.
17. A ignorância do princípio de que são infinitas as perfeições de Deus foi que gerou o politeísmo, culto adotado por
todos os povos primitivos, que davam o atributo de divindade
a todo poder que lhes parecia acima dos poderes inerentes
à humanidade. Mais tarde, a razão os levou a reunir
essas diversas potências numa só. Depois, à proporção que
os homens foram compreendendo a essência dos atributos
divinos, retiraram dos símbolos, que haviam criado, a crença
que implicava a negação desses atributos.
18. Em resumo, Deus não pode ser Deus, senão sob a condição
de que nenhum outro o ultrapasse, porquanto o ser
que o excedesse no que quer que fosse, ainda que apenas
na grossura de um cabelo, é que seria o verdadeiro Deus.
Para que tal não se dê, indispensável se torna que ele seja
infinito em tudo.
É assim que, comprovada pelas suas obras a existência
de Deus, por simples dedução lógica se chega a determinar
os atributos que o caracterizam.
19. Deus é, pois, a inteligência suprema e soberana, é único,
eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente
justo e bom, infinito em todas as perfeições, e não pode ser
diverso disso.
Tal o eixo sobre que repousa o edifício universal. Esse o
farol cujos raios se estendem por sobre o universo inteiro,
única luz capaz de guiar o homem na pesquisa da
verdade. Orientando-se por essa luz, ele nunca se transviará.
Se, portanto, o homem há errado tantas vezes, é unicamente
por não ter seguido o roteiro que lhe estava indicado. Tal também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas
e religiosas. Para apreciá-las, dispõe o homem de uma
medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar
a si mesmo que toda teoria, todo princípio, todo dogma,
toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só
que seja desses atributos, que tenda não tanto a anulá-lo, mas
simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade. Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há
de verdadeiro o que não se afaste, nem um til, das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela
de cujos artigos de fé nenhum esteja em oposição àquelas
qualidades; aquela cujos dogmas todos suportem a prova
dessa verificação sem nada sofrerem.
A Providência.
20. A providência é a solicitude de Deus para com as suas
criaturas. Ele está em toda parte, tudo vê, a tudo preside,
mesmo às coisas mais mínimas. É nisto que consiste a ação
providencial.
“Como pode Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior
a tudo, imiscuir-se em pormenores ínfimos, preocupar-se
com os menores atos e os menores pensamentos de
cada indivíduo?” Esta a interrogação que a si mesmo dirige
o incrédulo, concluindo por dizer que, admitida a existência
de Deus, só se pode admitir, quanto à sua ação, que ela
se exerça sobre as leis gerais do universo; que este funcione
de toda a eternidade em virtude dessas leis, às quais
toda criatura se acha submetida na esfera de suas atividades,
sem que haja mister a intervenção incessante da
Providência.
21. No estado de inferioridade em que ainda se encontram,
só muito dificilmente podem os homens compreender que
Deus seja infinito. Vendo-se limitados e circunscritos, eles
o imaginam também circunscrito e limitado. Imaginando-o
circunscrito, figuram-no quais eles são, à imagem e semelhança
deles. Os quadros em que o vemos com traços humanos
não contribuem pouco para entreter esse erro no
espírito das massas, que nele adoram mais a forma que o
pensamento. Para a maioria, é ele um soberano poderoso,
sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos
céus. Tendo restritas suas faculdades e percepções, não
compreendem que Deus possa e se digne de intervir diretamente
nas pequeninas coisas.
22. Impotente para compreender a essência mesma da Divindade,
o homem não pode fazer dela mais do que uma
ideia aproximativa, mediante comparações necessariamente
muito imperfeitas, mas que, ao menos, servem para lhe
mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista,
lhe parece impossível.
Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar
todos os corpos. Sendo ininteligente, esse fluido atua mecanicamente,
por meio tão só das forças materiais. Se, porém,
o supusermos dotado de inteligência, de faculdades
perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas
com discernimento, com vontade e liberdade: verá, ouvirá e
sentirá.
23. As propriedades do fluido perispirítico dão-nos disso
uma ideia. Ele não é de si mesmo inteligente, pois que é
matéria, mas serve de veículo ao pensamento, às sensações e percepções do Espírito. Esse fluido não é o pensamento
do Espírito; é, porém, o agente e o intermediário
desse pensamento. Sendo quem o transmite, fica, de certo
modo, impregnado do pensamento transmitido. Na impossibilidade
em que nos achamos de o isolar, a nós nos parece
que ele, o pensamento, faz coro com o fluido, que com
este se confunde, como sucede com o som e o ar, de maneira
que podemos, a bem dizer, materializá-lo. Assim como
dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o
efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.
24. Seja ou não assim no que concerne ao pensamento de
Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente,
quer por intermédio de um fluido, para facilitarmos a compreensão
à nossa inteligência, figuremo-lo sob a forma concreta
de um fluido inteligente que enche o universo infinito
e penetra todas as partes da criação: a natureza inteira
mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio
de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm
as mesmas propriedades que ele, cada átomo desse fluido,
se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento,
isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o
mesmo fluido em toda parte, tudo está submetido à sua
ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude. Nenhum
ser haverá, por mais ínfimo que o suponhamos, que
não esteja saturado dele. Achamo-nos então, constantemente,
em presença da Divindade; nenhuma das nossas
ações lhe podemos subtrair ao olhar; o nosso pensamento
está em contato ininterrupto com o seu pensamento,
havendo, pois, razão para dizer-se que Deus vê os mais
profundos refolhos do nosso coração. Estamos nele, como
ele está em nós, segundo a palavra do Cristo.
Para estender a sua solicitude a todas as criaturas,
não precisa Deus lançar o olhar do alto da imensidade. As
nossas preces, para que ele as ouça, não precisam transpor
o espaço, nem ser ditas com voz retumbante, pois que,
estando de contínuo ao nosso lado, os nossos pensamentos
repercutem nele. Os nossos pensamentos são como os
sons de um sino, que fazem vibrar todas as moléculas do ar
ambiente.
25. Longe de nós a ideia de materializar a Divindade. A
imagem de um fluido inteligente universal evidentemente
não passa de uma comparação apropriada a dar de Deus
uma ideia mais exata do que os quadros que o apresentam
debaixo de uma figura humana. Destina-se ela a fazer compreensível
a possibilidade que tem Deus de estar em toda
parte e de se ocupar com todas as coisas.
26. Temos constantemente sob as vistas um exemplo que
nos permite fazer ideia do modo por que talvez se exerça a
ação de Deus sobre as partes mais íntimas de todos os seres
e, conseguintemente, do modo por que lhe chegam as mais
sutis impressões de nossa alma. Esse exemplo tiramo-lo
de certa instrução que a tal respeito deu um Espírito.
27. “O homem é um pequeno mundo, que tem como diretor
o Espírito e como dirigido o corpo. Nesse universo, o corpo
representará uma criação cujo Deus seria o Espírito.
(Compreendei bem que aqui há uma simples questão de
analogia e não de identidade.) Os membros desse corpo, os
diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos,
as articulações são outras tantas individualidades materiais,
se assim se pode dizer, localizadas em pontos especiais
do referido corpo. Se bem seja considerável o número
de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e diferente,
a ninguém é lícito supor que se possam produzir
movimentos, ou uma impressão em qualquer lugar, sem
que o Espírito tenha consciência do que ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito
as sente todas, distingue, analisa, assina a cada uma
a causa determinante e o ponto em que se produziu, tudo
por meio do fluido perispirítico.
Análogo fenômeno ocorre entre Deus e a criação. Deus
está em toda parte, na natureza, como o Espírito está em
toda parte, no corpo. Todos os elementos da criação se
acham em relação constante com ele, como todas as células
do corpo humano se acham em contato imediato com
o ser espiritual. Não há, pois, razão para que fenômenos da
mesma ordem não se produzam de maneira idêntica, num
e noutro caso. Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura
pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento,
os diferentes órgãos estão a vibrar; o Espírito ressente
todas as manifestações, as distingue e localiza. As diferentes
criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem
diversamente: Deus sabe o que se passa e assina a cada
um o que lhe diz respeito. Daí se pode igualmente deduzir a solidariedade da
matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos
os seres de um mundo, a de todos os mundos e, por fim, de
todas as criações com o Criador.” (Quinemant, Sociedade
de Paris, 1867.)
28. Compreendemos o efeito: já é muito. Do efeito remontamos
à causa e julgamos da sua grandeza pela do efeito.
Escapa-nos, porém, a sua essência íntima, como a da causa
de uma imensidade de fenômenos. Conhecemos os
efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação;
calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima
do princípio que os produz. Será então racional neguemos
o princípio divino, porque não o compreendemos?
29. Nada obsta a que se admita, para o princípio da soberana
inteligência, um centro de ação, um foco principal a
irradiar incessantemente, inundando o universo com seus
eflúvios, como o Sol com a sua luz. Mas onde esse foco? É
o que ninguém pode dizer. Provavelmente, não se acha
fixado em determinado ponto, como não o está a sua ação,
sendo também provável que percorra constantemente as
regiões do espaço sem fim. Se simples Espíritos têm o dom
da ubiquidade, em Deus há de ser sem limites essa faculdade.
Enchendo Deus o universo, poder-se-ia ainda admitir,
a título de hipótese, que esse foco não precisa
transportar-se, por se formar em todas as partes onde a
soberana vontade julga conveniente que ele se produza,
donde o poder dizer-se que está em toda parte e em parte
nenhuma.
30. Diante desses problemas insondáveis, cumpre que
a nossa razão se humilhe. Deus existe: disso não poderemos
duvidar. É infinitamente justo e bom: essa a sua
essência. A tudo se estende a sua solicitude: compreendemo-lo.
Só o nosso bem, portanto, pode ele querer,
donde se segue que devemos confiar nele: é o essencial.
Quanto ao mais, esperemos que nos tenhamos tornado
dignos de o compreender.
A visão de Deus.
31. Se Deus está em toda parte, por que não o vemos?
Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? Tais as perguntas
que se formulam todos os dias.
À primeira é fácil responder. Por serem limitadas as
percepções dos nossos órgãos visuais, elas os tornam inaptos
à visão de certas coisas, mesmo materiais. Alguns fluidos
nos fogem totalmente à visão e aos instrumentos de
análise; entretanto, não duvidamos da existência deles.
Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a
transporta; vemos os corpos em movimento sob a influência
da força de gravitação, mas não vemos essa força.
32. Os nossos órgãos materiais não podem perceber as coisas
de essência espiritual. Unicamente com a visão espiritual
é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo
imaterial. Somente a nossa alma, portanto, pode ter a percepção
de Deus. Dar-se-á que ela o veja logo após a morte?
A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo nos
podem instruir. Por elas sabemos que a visão de Deus constitui
privilégio das mais purificadas almas e que bem
poucas, ao deixarem o envoltório terrestre, se encontram
no grau de desmaterialização necessária a tal efeito. Uma
comparação vulgar o tornará facilmente compreensível.
33. Uma pessoa que se ache no fundo de um vale, envolvido
por densa bruma, não vê o Sol. Entretanto, pela luz
difusa, percebe que está fazendo Sol. Se entra a subir a
montanha, à medida que for ascendendo, o nevoeiro se irá
tornando mais fraco, a luz cada vez mais viva. Contudo,
ainda não verá o Sol. Só depois que se haja elevado acima
da camada brumosa e chegado a um ponto onde o ar esteja
perfeitamente límpido, ela o contemplará em todo o seu
esplendor.
O mesmo se dá com a alma. O envoltório perispirítico,
conquanto nos seja invisível e impalpável, é, com relação a
ela, verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas
percepções. Ele, porém, se espiritualiza, à proporção que a
alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são
quais camadas nevoentas que lhe obscurecem a visão. Cada
imperfeição de que ela se desfaz é uma mácula a menos;
todavia, só depois de se haver depurado completamente é
que goza da plenitude das suas faculdades.
34. Sendo Deus a essência divina por excelência, unicamente
os Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização
o podem perceber. Pelo fato de não o verem,
não se segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes
dele do que os outros; esses Espíritos, como os demais,
como todos os seres da natureza, se encontram mergulhados
no fluido divino, do mesmo modo que nós o
estamos na luz. O que há é que as imperfeições daqueles
Espíritos são vapores que os impedem de vê-lo. Quando o
nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não
lhes é preciso subir, nem procurá-lo nas profundezas do
infinito. Desimpedida a visão espiritual das belidas que a
obscureciam, eles o verão de todo lugar onde se achem,
mesmo da Terra, porquanto Deus está em toda parte.
35. O Espírito só se depura com o tempo, sendo as diversas
encarnações o alambique em cujo fundo deixa de cada
vez algumas impurezas. Com o abandonar o seu invólucro
corpóreo, os Espíritos não se despojam instantaneamente
de suas imperfeições, razão por que, depois da morte, não
veem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à
medida que se depuram, têm dele uma intuição mais clara.
Não o veem, mas compreendem-no melhor; a luz é menos
difusa. Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus lhes
proíbe respondam a uma dada pergunta, não é que Deus
lhes apareça, ou dirija a palavra, para lhes ordenar ou proibir
isto ou aquilo, não; eles, porém, o sentem; recebem os
eflúvios do seu pensamento, como nos sucede com relação
aos Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora
não os vejamos.
36. Nenhum homem, conseguintemente, pode ver a Deus
com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a
alguns, só o seria no estado de êxtase, quando a alma se
acha tão desprendida dos laços da matéria que torna possível
o fato durante a encarnação. Tal privilégio, aliás, exclusivamente
pertenceria a almas de eleição, encarnadas
em missão, que não em expiação. Mas, como os Espíritos
da mais elevada categoria refulgem de ofuscante brilho, pode
dar-se que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados,
maravilhados com o esplendor de que aqueles
se mostram cercados, suponham estar vendo o próprio Deus.
É como quem vê um ministro e o toma pelo seu soberano.
37. Sob que aparência se apresenta Deus aos que se tornaram
dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob
uma figura humana, ou como um foco de resplendente luz?
A linguagem humana é impotente para dizê-lo, porque não
existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de
nos facultar uma ideia de tal coisa. Somos quais cegos
de nascença a quem procurassem inutilmente fazer
compreendessem o brilho do Sol. A nossa linguagem é
limitada pelas nossas necessidades e pelo círculo das nossas
ideias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas
da civilização; a dos povos mais civilizados é
extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus,
a nossa inteligência muito restrita para os compreender e a
nossa vista, por muito fraca, ficaria deslumbrada.
Capítulo III — O bem e o mal
Origem do bem e do mal.
1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo
sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é
infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que
seja ininteligente, mau e injusto. O mal que observamos
não pode ter nele a sua origem.
2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial,
quer se lhe chame Arimane, quer Satanás, ou ele seria igual
a Deus, e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de
toda a eternidade como ele, ou lhe seria inferior. No primeiro caso, haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, procurando cada uma desfazer o que
fizesse a outra, contrariando-se mutuamente, hipótese esta
inconciliável com a unidade de vistas que se revela na
estrutura do universo. No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe
estaria subordinado. Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se fora criado, só o poderia ter sido por Deus, que, então, houvera criado o Espírito do mal, o que implicaria
negação da bondade infinita. (Veja-se:
O Céu e o Inferno,
cap. IX: “Os demônios”.)
3. Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a humanidade, formam duas categorias que importa
distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos
que lhe independem da vontade. Entre os últimos, cumpre
se incluam os flagelos naturais. O homem, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos desígnios do Criador;
aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade,
dos interesses factícios e convencionais que criou para si
mesmo e que não se compreendem na ordem da natureza.
Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mau e injusto
aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a
razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo
traz o sinete da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que lhe não seja compreensível.
4. O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo
auxílio lhe é possível conjurar, ou, pelo menos, atenuar os efeitos de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele
adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização sábia e previdente, chegará mesmo a lhes neutralizar as consequências, quando não possam ser inteiramente evitados.
Assim, com referência, até, aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da natureza e para o futuro, mas
que, no presente, causam danos, facultou Deus ao homem
os meios de lhes paralisar os efeitos. Assim é que ele saneia as regiões insalubres, imuniza
contra os miasmas pestíferos, fertiliza terras áridas e se
industria em preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera e se coloca
ao abrigo das intempéries. É assim, finalmente, que, pouco
a pouco, a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio
das quais melhora as condições de habitabilidade do globo
e aumenta o seu próprio bem-estar.
5. Tendo o homem que progredir, os males a que se acha
exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se ele nada houvesse de temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar
o melhor; o espírito se lhe entorpeceria na inatividade; nada
inventaria, nem descobriria.
A dor é o aguilhão que o impele para a frente, na senda do progresso.
6. Porém, os males mais numerosos são os que o homem
cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do
seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí a causa das guerras e das calamidades
que estas acarretam, das dissenções, das injustiças, da
opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das
enfermidades. Deus promulgou leis plenas de sabedoria, tendo por
único objetivo o bem. Em si mesmo encontra o homem tudo
o que lhe é necessário para cumpri-las. A consciência lhe
traça a rota, a lei divina lhe está gravada no coração e, ao
demais, Deus lha lembra constantemente por intermédio
de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte.
Se o
homem se conformasse rigorosamente com as leis divinas,
não há duvidar de que se pouparia aos mais agudos males e
viveria ditoso na Terra
. Se assim procede, é por virtude do
seu livre-arbítrio: sofre então as consequências do seu
proceder. (
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, n.os 4,
5, 6 e seguintes.)
7. Entretanto, Deus, todo bondade, pôs o remédio ao lado
do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o remédio. Um
momento chega em que o excesso do mal moral se torna
intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de
vida. Instruído pela experiência, ele se sente compelido a
procurar no bem o remédio, sempre por efeito do seu
livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. A
necessidade, pois, o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu
a melhorar as condições materiais da sua existência (n.
o 5).
8. Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, como o frio
é a ausência do calor
. Assim como o frio não é um fluido
especial, também o mal não é atributo distinto; um é o negativo do outro
. Onde não existe o bem, forçosamente existe o
mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem.
Deus
somente quer o bem; só do homem procede o mal. Se na criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia
evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO
,
tendo simultaneamente o livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitá-lo-á sempre que o queira.
Tomemos para termo de comparação um fato vulgar.
Sabe um proprietário que nos confins de suas terras há um
lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por
lá se aventurasse. Que faz, a fim de prevenir os acidentes?
Manda colocar perto um aviso, tornando defeso ao transeunte ir mais longe, por motivo do perigo. Aí está a lei, que
é sábia e previdente. Se, apesar de tudo, um imprudente
desatende o aviso, vai além do ponto onde este se encontra e
sai-se mal, de quem se pode ele queixar, senão de si próprio? Outro tanto se dá com o mal: evitá-lo-ia o homem, se
cumprisse as leis divinas. Por exemplo: Deus pôs limite à
satisfação das necessidades: desse limite a saciedade adverte o homem; se este o ultrapassa, fá-lo voluntariamente.
As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem
resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus.
9. Decorrendo, o mal, das imperfeições do homem, e tendo
sido este criado por Deus, dir-se-á, Deus não deixa de ter
criado, se não o mal, pelo menos, a causa do mal; se
houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria. Se fora criado perfeito, o homem fatalmente penderia
para o bem. Ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não
pende fatalmente nem para o bem, nem para o mal. Quis
Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso resulte do seu trabalho, a fim de que lhe pertença o
fruto deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que por sua vontade pratique. A questão,
pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da
sua propensão para o mal. *
* O erro está em pretender-se que a alma haja saído perfeita das
mãos do Criador, quando este, ao contrário, quis que a perfeição
resulte da depuração gradual do Espírito e seja obra sua. Houve
Deus por bem que a alma, dotada de livre-arbítrio, pudesse optar
entre o bem e o mal e chegasse a suas finalidades últimas de forma
militante e resistindo ao mal. Se houvera criado a alma tão perfeita
quanto ele e, ao sair-lhe ela das mãos, a houvesse associado à sua
beatitude eterna, Deus tê-la-ia feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio. (Bonnamy,
A Razão do Espiritismo, cap. VI.)10. Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de umas e outros se acham no instinto de conservação, instinto que se encontra em toda a pujança nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. O instinto se enfraquece, à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.
O Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, somente
às exigências materiais lhe cumpre satisfazer e, para tal, o
exercício das paixões constitui uma necessidade para o efeito
da conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente
falando
. Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e
semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que
o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo,
avança pela senda providencial que se lhe acha traçada e
se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se
deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o
bruto. Nessa situação,
o que era outrora um bem, porque
era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num
mal, não só porque já não constitui uma necessidade, como
porque se torna prejudicial à espiritualização do ser
. Muita
coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O mal é, pois, relativo, e a responsabilidade é proporcionada ao grau de adiantamento.
Todas as paixões têm, portanto, uma utilidade providencial, visto que, a não ser assim, Deus teria feito coisas
inúteis e, até, nocivas. No abuso é que reside o mal e o
homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde,
esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe
entre o bem e o mal.
O instinto e a inteligência.
11. Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e o outro começa? Será o instinto uma inteligência rudimentar, ou será uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria? O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos
a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles
. Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o
ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para
a terra nutriente; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme se lhe faz necessário; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio,
ou se lhe agarram com as gavinhas. É pelo instinto que os
animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que
buscam, conforme a estação, os climas propícios;
que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte,
segundo as espécies, leitos macios e abrigos para as suas
progênies, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam;
que a mãe choca os filhos e que estes procuram o seio materno. No homem, só em começo da vida o instinto domina
com exclusividade; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para
exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que
tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um
risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do
corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o
brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar, etc.
12. A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos,
premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade
das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo
exclusivo da alma.
Todo ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente. Um é livre, o outro
não o é
. O instinto é guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato de ser livre, está, por vezes,
sujeita a errar. Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente; revela,
entretanto,
uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se admitir que o instinto procede da matéria, ter-se-á
de admitir que a matéria é inteligente, até mesmo bem mais
inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto
não se engana, ao passo que a inteligência se equivoca. Se se considerar o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar que, em certos casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar que torne
possível se executem atos que esta não pode realizar?
Se ele é atributo de um princípio espiritual de especial natureza, qual vem a ser esse princípio? Pois que o instinto se
apaga, dar-se-á que esse princípio se destrua? Se os
animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o
destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos,
o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a
bondade de Deus. (Cap. II, 19.)
13. Segundo outros sistemas, o instinto e a inteligência procederiam de um único princípio. Chegado a certo grau de
desenvolvimento, esse princípio, que primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto, passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre. Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e entra a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a
inteligência voltaria ao seu estado primitivo e, quando o
homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é
admissível.
Aliás, é frequente o instinto e a inteligência se revelarem simultaneamente no mesmo ato. No caminhar, por
exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem
põe maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso
pensar; quando, porém, ele quer acelerar ou demorar o passo, levantar o pé ou desviar-se de um tropeço, há cálculo,
combinação; ele age com deliberado propósito
. A impulsão
involuntária do movimento é o ato instintivo; a calculada direção do movimento é o ato inteligente
. O animal carnívoro é
impelido pelo instinto a se alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para segurar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.
14. Outra hipótese que, em suma, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que
o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo
espiritual com o mundo corpóreo. Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm
por missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios
fluídicos; que o homem age muitas vezes de modo
inconsciente, sob a ação desses eflúvios. Sabe-se, ao demais, que o instinto, que por si mesmo
produz atos inconscientes, predomina nas crianças e, em
geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma, nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, seria efeito da
ação direta dos protetores invisíveis que supririam
a imperfeição da inteligência, provocando os atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria qual a
andadeira com que se amparam as crianças que ainda não
sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa gradualmente de usar a andadeira, à medida que a criança se
equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam entregues
a si mesmos os seus protegidos, à medida que estes se
tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência. Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, sê-lo-ia de uma inteligência estranha,
na plenitude da sua força, inteligência protetora, supletiva da insuficiência, quer de uma inteligência
mais jovem, que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer
por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém,
momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como
se dá com o homem na infância e nos casos de idiotia e de
afecções mentais.
Diz-se proverbialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios. É mais veraz do que se
supõe esse ditado. Aquele deus, outro não é senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão.
15. Nesta ordem de ideias, ainda mais longe se pode ir. Por
muito racional que seja, essa teoria não resolve todas as
dificuldades da questão. Se observarmos os efeitos do instinto, notaremos, em
primeiro lugar, uma unidade de vistas e de conjunto, uma
segurança de resultados, que cessam logo que a inteligência o substitui. Demais, reconheceremos profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante
unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento e esta é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão
harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em
todos os climas, com uma regularidade, uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade
no que resulta das faculdades instintivas é um fato característico, que forçosamente implica
a unidade da causa. Se a
causa fosse inerente a cada individualidade, haveria tantas
variedades de instintos quantos fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante, há de ter uma causa geral, uniforme e constante;
um efeito que atesta sabedoria e previdência há de ter uma
causa sábia e previdente. Ora, uma causa dessa natureza,
sendo por força inteligente, não pode ser exclusivamente
material. Não se nos deparando nas criaturas, encarnadas ou
desencarnadas, as qualidades necessárias à produção de
tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao próprio
Criador. Se nos reportamos à explicação dada sobre a maneira por que se pode conceber a ação providencial (cap. II,
n.o 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido
divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a
todos os movimentos instintivos que se efetuam para o bem
de cada indivíduo. Tanto mais ativa é essa solicitude, quanto
menos recursos tem o indivíduo em si mesmo e na sua inteligência. Por isso é que ela se mostra maior e mais absoluta
nos animais e nos seres inferiores, do que no homem.
Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja
um guia seguro. O instinto materno, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. Em razão das
suas consequências, não devia ele ser entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio.
Por intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas
criaturas que nascem
.
16. Esta teoria de nenhum modo anula o papel dos Espíritos protetores, cujo concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas, deve-se notar que a ação desses
Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido e
que em parte nenhuma apresenta a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz ele
próprio os cegos, porém confia a inteligências livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a
responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores constitui um dever que eles aceitam voluntariamente
e lhes é um meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma por que o desempenhem.
17. Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida como solução definitiva.
A questão, sem dúvida, será resolvida um dia, quando se
houverem reunido os elementos de observação que ainda
faltam. Até lá, temos que limitar-nos a submeter as diversas opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que
a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade
será decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus,
isto é, com a bondade suprema e a suprema justiça. (Cap.
II, n.
o 19.)
18. Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma
no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes aquele
e estas se confundem nos efeitos. Há, contudo, entre
esses dois princípios, diferenças que muito importa se
considerem.
O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, ao cabo
de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial.
Enfraquece-se pela predominância da inteligência. As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o serem as criaturas solicitadas por
uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais
do que o instinto, do organismo. O que, acima de tudo, as
distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam,
ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os
indivíduos. São úteis, como estimulante, até à eclosão do
senso moral, que faz nasça de um ser passivo, um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, como
nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização
retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.
19. O homem que só pelo instinto agisse constantemente
poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua
inteligência. Seria qual criança que não deixasse as
andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros.
Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito
inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau.
O instinto
se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço
da vontade podem domar-se.
Destruição dos seres vivos uns pelos outros.
20. A destruição recíproca dos seres vivos é, dentre as leis
da natureza, uma das que, à primeira vista, menos parecem
conciliar-se com a bondade de Deus. Pergunta-se
por que lhes criou ele a necessidade de mutuamente
se destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros. Para quem apenas vê a matéria e restringe à vida presente a sua visão, há de isso, com efeito, parecer uma imperfeição na obra divina. É que, em geral, os homens apreciam
a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo-lhe
a sabedoria pelo juízo que dela formam, pensam que Deus
não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam.
Não lhes permitindo a curta visão, de que dispõem, apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa
decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira essência, e o
da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe
a sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde
apenas vê uma anomalia e uma contradição.
21. A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não
está no invólucro corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive
ao corpo
. Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte,
mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito
mude mais ou menos frequentemente de envoltório?! Não
deixa por isso de ser Espírito. É precisamente como se um
homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não
deixaria por isso de ser homem.
Por meio do incessante espetáculo da destruição, ensina Deus aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual,
fazendo que a desejem como uma compensação. Objetar-se-á: não podia Deus chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se
entredestruírem? Desde que na sua obra tudo é sabedoria,
devemos supor que esta não existirá mais num ponto do que noutros; se não o compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, podemos
tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso,
tomando por bússola este princípio:
Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a
sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que
ultrapasse o nosso entendimento.
22. Uma primeira utilidade, que se apresenta de tal destruição, utilidade, sem dúvida, puramente física, é esta: os
corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, matérias que só elas contêm os elementos
nutritivos necessários à transformação deles. Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, precisando
os corpos ser constantemente renovados, a Providência faz
que sirvam ao seu mútuo entretenimento. Eis por que os
seres se nutrem uns dos outros. Mas, então, é o corpo que
se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere.
Fica apenas despojado do seu envoltório.*
* Veja-se:
Revue spirite, agosto de 1864, pág. 241, “Extinção das raças”.
23. Há também considerações morais de ordem elevada. — É necessária a luta para o desenvolvimento do Espírito. Na luta é que ele exercita suas faculdades. O que ataca
em busca do alimento e o que se defende para conservar a
vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em
consequência, suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o mais forte ou o
mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais; ulteriormente, o Espírito, que não morreu, tomará
outra.
24. Nos seres inferiores da criação, naqueles a quem ainda
falta o senso moral, em os quais a inteligência ainda não
substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel senão a
satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das mais
imperiosas dessas necessidades é a da alimentação. Eles,
pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou
defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado
os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma
se elabora e ensaia para a vida.
No homem, há um período de transição em que ele mal
se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por móvel a satisfação das
necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se
o instinto animal e o sentimento moral; luta então o homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à
sua ambição, ao seu orgulho, à necessidade, que experimenta, de dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir.
Todavia, à medida que o senso moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir,
acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa.
O homem ganha horror ao sangue.
Contudo, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando a esse ponto,
que parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito.
Só à custa de muita atividade adquire conhecimento, experiência e se despoja dos últimos vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que era,
se torna puramente intelectual. O homem luta contra as
dificuldades, não mais contra os seus semelhantes.*
* Sem prejulgar das consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos demonstrar, mediante essa explicação, que a
destruição de uns seres vivos por outros em nada infirma a sabedoria divina e que, nas leis da natureza, tudo se encadeia. Esse
encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do
princípio espiritual. Muitas questões permanecem insolúveis, por
só se levar em conta a matéria.
As doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua própria destruição. Têm contra si não só o antagonismo em que se
acham com as aspirações da universalidade dos homens e suas
consequências morais, que farão sejam elas repelidas como
dissolventes da sociedade, mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de tudo o que resulta do progresso.
O desenvolvimento intelectual conduz o homem à pesquisa das
causas. Ora, por pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a
impotência do materialismo para tudo explicar. Como é possível
que doutrinas que não satisfazem ao coração, nem à razão, nem à
inteligência, que deixam problemáticas as mais vitais questões,
venham a prevalecer? O progresso das ideias matará o materialismo,
como matou o fanatismo.
Capítulo IV — Papel da ciência na gênese
1. A história da origem de quase todos os povos antigos se
confunde com a de suas religiões, donde o terem sido religiosos os seus primeiros livros. E como todas as religiões
se ligam ao princípio das coisas, que é também o da humanidade, elas deram, sobre a formação e o arranjo do universo, explicações em concordância com o estado dos conhecimentos da época e de seus fundadores. Daí resultou
que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os
primeiros livros de ciência, como foram, durante largo
período, o código único das leis civis.
2. Nas eras primitivas, sendo necessariamente muito imperfeitos os meios de observação, muito eivadas de erros
grosseiros haviam de ser as primeiras teorias sobre o sistema do mundo. Mas, ainda quando esses meios fossem tão
completos quanto o são hoje, os homens não teriam sabido
utilizá-los. Aliás, tais meios não podiam ser senão fruto do
desenvolvimento da inteligência e do consequente conhecimento das leis da natureza. À medida que o homem se foi
adiantando no conhecimento dessas leis, também foi penetrando os mistérios da criação e retificando as ideias que
formara acerca da origem das coisas.
3. Impotente se mostrou ele para resolver o problema da
criação, até ao momento em que a ciência lhe forneceu
para isso a chave. Teve de esperar que a astronomia lhe
abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar aí o olhar; que, pelo poder do cálculo, possível se lhe
tornasse determinar com rigorosa exatidão o movimento, a
posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a química lhe mostrasse
as transformações da matéria e a mineralogia os materiais
que formam a superfície do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler, nas camadas terrestres, a formação gradual
desse mesmo globo. À botânica, à zoologia, à paleontologia,
à antropologia coube iniciá-lo na filiação e sucessão dos
seres organizados. Com a arqueologia pode ele acompanhar os traços que a humanidade deixou através das idades. Numa palavra, completando-se umas às outras, todas
as ciências houveram de contribuir com o que era indispensável para o conhecimento da história do mundo. Em
falta dessas contribuições, teve o homem como guia as suas
primeiras hipóteses.
Por isso, antes que ele entrasse na posse daqueles elementos de apreciação, todos os comentadores da Gênese,
cuja razão esbarrava em impossibilidades materiais, giravam dentro de um círculo, sem conseguirem dele sair. Só o
lograram quando a ciência abriu caminho, fendendo o velho edifício das crenças. Tudo então mudou de aspecto.
Uma vez achado o fio condutor, as dificuldades prontamente
se aplanaram. Em vez de uma Gênese imaginária, surgiu
uma Gênese positiva e, de certo modo, experimental. O campo do universo se distendeu ao infinito. Acompanhou-se a
formação gradual da Terra e dos astros, segundo leis eternas e imutáveis, que demonstram muito melhor a grandeza e a sabedoria de Deus, do que uma criação miraculosa,
tirada repentinamente do nada, qual mutação à vista, por
efeito de súbita ideia da Divindade, após uma eternidade
de inação.
Pois que é impossível se conceba a Gênese sem os dados que a ciência fornece, pode dizer-se com inteira verdade que:
a ciência é chamada a constituir a verdadeira Gênese, segundo a lei da natureza.
4. No ponto a que chegou em o século dezenove, venceu a
ciência todas as dificuldades do problema da Gênese? Não, decerto; mas, não há contestar que destruiu, sem
remissão, todos os erros capitais e lhe lançou os fundamentos essenciais sobre dados irrecusáveis. Os pontos ainda
duvidosos não passam, a bem dizer, de questões de
minúcias, cuja solução, qualquer que venha a ser no futuro, não poderá prejudicar o conjunto. Ao demais, malgrado
aos recursos que ela há tido à sua disposição, faltou-lhe,
até agora, um elemento importante, sem o qual jamais a
obra poderia completar-se.
5. De todas as gêneses antigas, a que mais se aproxima
dos modernos dados científicos, sem embargo dos erros que
contém, postos hoje em evidência, é incontestavelmente a
de Moisés. Alguns desses erros são mesmo mais aparentes
do que reais e provêm, ou de falsa interpretação atribuída a
certos termos, cuja primitiva significação se perdeu, ao
passarem de língua em língua pela tradução, ou cuja acepção mudou com os costumes dos povos, ou, também,
decorrem da forma alegórica peculiar ao estilo oriental e
que foi tomada ao pé da letra, em vez de se lhe procurar o
espírito.
6. A Bíblia, evidentemente, encerra fatos que a razão, desenvolvida pela ciência, não poderia hoje aceitar e outros
que parecem estranhos e derivam de costumes que já não
são os nossos. Mas, a par disso, haveria parcialidade em se
não reconhecer que ela guarda grandes e belas coisas. A
alegoria ocupa ali considerável espaço, ocultando sob o seu
véu sublimes verdades, que se patenteiam, desde que se
desça ao âmago do pensamento, pois que logo desaparece
o absurdo.
Por que então não se lhe ergueu mais cedo o véu? De
um lado, por falta de luzes que só a ciência e uma sã filosofia podiam fornecer e, de outro lado, por efeito do princípio
da imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito ultracego à letra, e, assim, pelo temor de comprometer a estrutura das crenças, erguida sobre o sentido literal.
Partindo, tais crenças, de um ponto primitivo, houve o receio de que, se se rompesse o primeiro anel da cadeia, todas as malhas da rede acabassem separando-se. Fecharam-se então os olhos obstinadamente. Mas, fechar os olhos
ao perigo não é evitá-lo. Quando uma construção se afasta
do prumo, não manda a prudência que se substituam imediatamente as pedras ruins por pedras boas, em vez de se
esperar, pelo respeito que infunda a vetustez do edifício,
que o mal se torne irremediável e que se faça preciso
reconstruí-lo de cima a baixo?
7. Levando suas investigações às entranhas da Terra e às
profundezas dos céus, demonstrou a ciência, de maneira
irrefragável, os erros da Gênese moisaica tomada ao pé da
letra e a impossibilidade material de se terem as coisas passado como são ali textualmente referidas. Ora, assim procedendo, a ciência, do mesmo passo, fundo golpe desferiu
em crenças seculares. A fé ortodoxa se sobressaltou, porque julgou que lhe tiravam a pedra fundamental. Mas, com
quem havia de estar a razão: com a ciência, que caminhava prudente e progressivamente pelos terrenos sólidos dos
algarismos e da observação, sem nada afirmar antes de ter
em mãos as provas, ou com uma narrativa escrita quando
faltavam absolutamente os meios de observação? No fim das contas, quem há de levar a melhor: aquele que diz 2 e 2
fazem 5 e se nega a verificar, ou aquele que diz que 2 e
2 fazem 4 e o prova?
8. Mas, objetam, se a Bíblia é uma revelação divina, então
Deus se enganou. Se não é uma revelação divina, carece de
autoridade e a religião desmorona, à falta de base. Uma de duas: ou a ciência está em erro, ou tem razão.
Se tem razão, não pode fazer seja verdadeira uma opinião
que lhe é contrária. Não há revelação que se possa sobrepor à autoridade dos fatos.
Incontestavelmente, não é possível que Deus, sendo
todo verdade, induza os homens em erro, nem ciente, nem
inscientemente, pois, do contrário, não seria Deus. Logo,
se os fatos contradizem as palavras que lhe são atribuídas,
o que se deve logicamente concluir é que ele não as pronunciou, ou que tais palavras foram entendidas em sentido oposto ao que lhes é próprio.
Se, com semelhantes contradições, a religião sofre dano,
a culpa não é da ciência, que não pode fazer que o que é
deixe de ser; mas, dos homens, por haverem, prematuramente, estabelecido dogmas absolutos, de cujo prevalecimento hão feito questão de vida ou de morte, sobre hipóteses suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.
Há coisas com cujo sacrifício temos de resignar-nos,
bom ou mau grado, quando não consigamos evitá-lo. Desde que o mundo marcha, sem que a vontade de alguns possa detê-lo, o mais sensato é que o acompanhemos e nos
acomodemos com o novo estado de coisas, em vez de
nos agarrarmos ao passado que se esboroa, com o risco de
sermos arrastados na queda.
9. Para guardar respeito a textos considerados sagrados, dever-se-ia
obrigar a ciência a calar-se? Fora tão impossível isso, como
impedir que a Terra gire. As religiões, sejam quais forem,
jamais ganharam coisa alguma em sustentar erros manifestos. A ciência tem por missão descobrir as leis da natureza. Ora, sendo essas leis obra de Deus, não podem ser
contrárias a religiões que se baseiem na verdade. Lançar
anátema ao progresso, por atentatório à religião, é lançá-lo
à própria obra de Deus. É ao demais, trabalho inútil, porquanto nem todos os anátemas do mundo seriam capazes
de obstar a que a ciência avance e a que a verdade abra
caminho.
Se a religião se nega a avançar com a ciência,
esta avança sozinha
.
10. Somente as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência, as quais funestas só o são às que se deixam distanciar das ideias progressivas, imobilizando-se
no absolutismo de suas crenças. Elas, em geral, fazem tão
mesquinha ideia da Divindade, que não compreendem que
assimilar as leis da natureza, que a ciência revela, é glorificar a Deus em suas obras. Na sua cegueira, porém, preferem render homenagem ao Espírito do mal, atribuindo-lhe
essas leis.
Uma religião que não estivesse, por nenhum ponto, em contradição com as leis da natureza, nada teria que
temer do progresso e seria invulnerável.
11. A Gênese se divide em duas partes: a história da formação do mundo material e da humanidade considerada em
seu duplo princípio, corporal e espiritual. A ciência se tem
limitado à pesquisa das leis que regem a matéria. No próprio homem, ela apenas há estudado o envoltório carnal.
Por esse lado, chegou a inteirar-se, com exatidão, das partes principais do mecanismo do universo e do organismo
humano. Assim, sobre esse ponto capital, pode completar
a Gênese de Moisés e retificar-lhe as partes defeituosas.
Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de ideias, que não
são do domínio da ciência propriamente dita e das quais,
por este motivo, não tem ela feito objeto de suas investigações. A filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais
particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado,
sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão
desde a mais pura espiritualidade, até a negação do princípio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as
ideias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem
decisão o assunto, por falta de verificação suficiente.
12. Esta questão, no entanto, é a mais importante para o
homem, por isso que envolve o problema do seu passado e
do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente
o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde ele
veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a
sorte que lhe está reservada.
Sobre todos esses pontos, a ciência se conserva muda.
A filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido
diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem se
discuta, o que faz com que muitas pessoas se lhe coloquem
do lado, de preferência a seguirem a religião, que não
discute.
13. Todas as religiões são acordes quanto ao princípio da
existência da alma, sem, contudo, o demonstrarem. Não o
são, porém, nem quanto à sua origem, nem com relação ao
seu passado e ao seu futuro, nem, principalmente, e isso é
o essencial, quanto às condições de que depende a sua sorte vindoura. Em sua maioria, elas apresentam, do futuro
da alma, e o impõem à crença de seus adeptos, um quadro
que somente a fé cega pode aceitar, visto que não suporta
exame sério. Ligado aos seus dogmas, às ideias que nos
tempos primitivos se faziam do mundo material e do mecanismo do universo, o destino que elas atribuem à alma não
se concilia com o estado atual dos conhecimentos. Não podendo, pois, senão perder com o exame e a discussão, as
religiões acham mais simples proscrever um e outra.
14. Dessas divergências no tocante ao futuro do homem
nasceram a dúvida e a incredulidade. Entretanto, a incredulidade dá lugar a um penoso vácuo. O homem encara com ansiedade o desconhecido em que tem fatalmente de
penetrar. Gela-o a ideia do nada. Diz-lhe a consciência que
alguma coisa lhe está reservada para além do presente. Que
será? Sua razão, com o desenvolvimento que alcançou, já
lhe não permite admitir as histórias com que o acalentaram na infância, nem aceitar como realidade a alegoria.
Qual o sentido dessa alegoria? A ciência lhe rasgou um
canto do véu; não lhe revelou, porém, o que mais lhe importa saber. Ele interroga em vão, nada lhe responde ela de
maneira peremptória e apropriada a lhe acalmar as
apreensões. Por toda parte depara com a afirmação a se
chocar com a negação, sem que de um lado ou de outro se
apresentem provas positivas. Daí a incerteza, e
a incerteza
sobre o que concerne à vida futura faz que o homem se atire,
tomado de uma espécie de frenesi, para as coisas da vida
material
.
Esse o inevitável efeito das épocas de transição: rui o
edifício do passado, sem que ainda o do futuro se ache
construído. O homem se assemelha ao adolescente que, já
não tendo a crença ingênua dos seus primeiros anos, ainda
não possui os conhecimentos próprios da maturidade.
Apenas sente vagas aspirações, que não sabe definir.
15. Se a questão do homem espiritual permaneceu, até aos
dias atuais, em estado de teoria, é que faltavam os meios
de observação direta, existentes para comprovar o estado
do mundo material, conservando-se, portanto, aberto o campo às concepções do espírito humano. Enquanto o homem
não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, andou a errar de sistema em
sistema, no tocante ao mecanismo do universo e à formação da Terra. O que se deu na ordem física, deu-se também
na ordem moral. Para fixar as ideias, faltou o elemento essencial: o conhecimento das leis a que se acha sujeito o
princípio espiritual. Estava reservado à nossa época esse
conhecimento, como o esteve aos dois últimos séculos o
das leis da matéria.
16. Até ao presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na metafísica, foi puramente especulativo e teórico. No Espiritismo, é inteiramente experimental. Com o
auxílio da faculdade mediúnica, mais desenvolvida presentemente e, sobretudo, generalizada e mais bem estudada, o
homem se achou de posse de um novo instrumento de observação. A mediunidade foi, para o mundo espiritual, o
que o telescópio foi para o mundo astral e o microscópio
para o dos infinitamente pequenos. Permitiu se explorassem, estudassem, por assim dizer,
de visu, as relações daquele mundo com o mundo corpóreo; que, no homem vivo,
se destacasse do ser material o ser inteligente e que se observassem os dois a atuar separadamente. Uma vez
estabelecidas relações com os habitantes do mundo espiritual, possível se tornou ao homem seguir a alma em sua
marcha ascendente, em suas migrações, em suas transformações. Pode-se, enfim, estudar o elemento espiritual.
Eis aí o de que careciam os anteriores comentadores da
Gênese, para a compreenderem e lhe retificarem os erros.
17. Estando o mundo espiritual e o mundo material em incessante contato, os dois são solidários; ambos têm a sua
parcela de ação na Gênese. Sem o conhecimento das leis
que regem o primeiro, tão impossível seria constituir-se
uma Gênese completa, quanto a um estatuário dar vida a
uma estátua. Somente agora, conquanto nem a ciência material, nem a ciência espiritual hajam dito a última palavra, possui o homem os dois elementos próprios a lançar
luz sobre esse imenso problema. Eram-lhe absolutamente
indispensáveis essas duas chaves para chegar a uma
solução, embora aproximativa.
Capítulo V — Antigos e modernos sistemas do mundo
1. A primeira ideia que os homens formaram da Terra, do
movimento dos astros e da constituição do universo, há
de, a princípio, ter-se baseado unicamente no que os sentidos percebiam. Ignorando as mais elementares leis da física e as forças da natureza, não dispondo senão da vista
como meio de observação, apenas pelas aparências podiam
eles julgar. Vendo o Sol aparecer pela manhã, de um lado do horizonte, e desaparecer, à tarde, do lado oposto, concluíram
naturalmente que ele girava em torno da Terra, conservando-se esta imóvel. Se lhes dissessem então que o contrário
é o que se dá, responderiam não ser possível tal coisa,
objetando: vemos que o Sol muda de lugar e não sentimos
que a Terra se mexa.
2. A pequena extensão das viagens, que naquela época raramente iam além dos limites da tribo ou do vale, não permitia se comprovasse a esfericidade da Terra. Como, ao
demais, haviam de supor que a Terra fosse uma bola? Os
seres, em tal caso, somente no ponto mais elevado poderiam manter-se e, supondo-a habitada em toda a superfície, como viveriam eles no hemisfério oposto, com a cabeça
para baixo e os pés para cima? Ainda menos possível houvera parecido isso com o movimento de rotação. Quando,
mesmo aos nossos dias, em que se conhece a lei de
gravitação, se veem pessoas relativamente esclarecidas não
perceberem esse fenômeno, como nos surpreendermos de
que homens das primeiras idades não o tenham sequer suspeitado? Para eles, pois, a Terra era uma superfície plana e circular, qual uma mó de moinho, estendendo-se a perder de
vista na direção horizontal. Daí a expressão ainda em uso:
Ir ao fim do mundo. Desconheciam-lhe os limites, a espessura, o interior, a face inferior, o que lhe ficava por baixo.*
* “A mitologia hindu ensinava que, ao entardecer, o astro do dia se despojava de sua luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega figurava puxado por quatro cavalos o carro de Apolo. Anaximandro, de Mileto, sustentava, ao que refere Plutarco, que o sol era um carro cheio de fogo muito vivo, que se escapava por uma abertura circular. Epicuro, segundo uns, teria emitido a opinião de que o Sol se acendia pela manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; segundo outros, ele considerava esse astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras o tomava por um ferro esbraseado, do tamanho do Peloponeso. Coisa singular! os antigos eram tão invencivelmente induzidos a considerar real a grandeza aparente desse astro, que perseguiram o filósofo temerário por haver atribuído aquele volume ao facho do dia, fazendo-se necessária toda a autoridade de Péricles para salvá-lo de uma condenação à morte e para que essa pena fosse comutada na de exílio.” (Flammarion, Estudos e leituras sobre a astronomia, pág. 6.)
Diante de tais ideias, emitidas no quinto século antes do Cristo, ao tempo da maior prosperidade da Grécia, não devem causar espanto aquelas que os homens das primeiras idades faziam sobre o sistema do mundo.
3. Por se mostrar sob forma côncava, o céu, na crença vulgar, era tido como uma abóbada real, cujos bordos inferiores repousavam na Terra e lhe marcavam os confins, vasta
cúpula cuja capacidade o ar enchia completamente. Sem
nenhuma noção do espaço infinito, incapazes mesmo de o
conceberem, imaginavam os homens que essa abóbada era
constituída de matéria sólida, donde a denominação de
firmamento que lhe foi dada e que sobreviveu à crença, significando: firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego herma, hermatos, firme, sustentáculo, suporte, ponto de apoio).
4. As estrelas, de cuja natureza não podiam suspeitar, eram
simplesmente pontos luminosos, de volumes diversos,
engastados na abóbada, como lâmpadas suspensas, dispostas sobre uma única superfície e, por conseguinte, todas à
mesma distância da Terra, tais como as que se veem no interior de certas cúpulas, pintadas de azul, figurando a do céu. Se bem hoje sejam outras as ideias, o uso das expressões antigas se conservou. Ainda se diz, por comparação:
a
abóbada estrelada
; sob a cúpula do céu.
5. Igualmente desconhecida era então a formação das nuvens pela evaporação das águas da Terra. A ninguém podia
acudir a ideia de que a chuva, que cai do céu, tivesse origem na Terra, donde ninguém a via subir. Daí a crença na
existência de
águas superiores e de águas inferiores, de fontes celestes e de fontes terrestres, de reservatórios colocados nas altas regiões — suposição que concordava perfeitamente com a ideia de uma abóbada sólida, capaz de os
sustentar. As águas superiores, escapando-se pelas frestas da abóbada, caíam em chuva e, conforme fossem mais ou
menos largas as frestas, a chuva era branda, torrencial ou
diluviana.
6. A ignorância completa do conjunto do universo e das
leis que o regem, da natureza, da constituição e da destinação dos astros, que, aliás, pareciam tão pequenos, comparativamente à Terra, fez necessariamente fosse esta considerada como a coisa principal, o fim único da criação e os
astros como acessórios, exclusivamente criados em intenção dos seus habitantes. Esse preconceito se perpetuou até
aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência, que
mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quanta
gente ainda acredita que as estrelas são ornamentos do
céu, destinados a recrear a vista dos habitantes da Terra!
7. Não tardou, porém, se apercebessem do movimento aparente das estrelas, que se deslocam em massa do oriente
para o ocidente, despontando ao anoitecer e ocultando-se
pela manhã, e conservando suas respectivas posições. Semelhante observação, contudo, não teve, durante longo tempo, outra consequência que não fosse a de confirmar a ideia de uma abóbada sólida, a arrastar consigo as estrelas, no
seu movimento de rotação. Essas ideias primárias, simplistas, constituíram, no
curso de largos períodos seculares, o fundo das crenças religiosas e serviram de base a todas as cosmogonias antigas.
8. Mais tarde, pela direção do movimento das estrelas e pelo
periódico retorno delas, na mesma ordem, percebeu-se
que a abóbada celeste não podia ser apenas uma semiesfera posta sobre a Terra, mas uma esfera inteira, oca, em
cujo centro se achava a Terra, sempre chata, ou, quando
muito, convexa e habitada somente na superfície superior.
Já era um progresso.
Mas, qual o suporte da Terra? Fora inútil mencionar
todas as suposições ridículas, geradas pela imaginação,
desde a dos indianos, que a diziam suportada por quatro
elefantes brancos, pousados estes sobre as asas de um
imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que nada
sabiam a respeito.
9. Entretanto, uma opinião geralmente espalhada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou, por outra, nas
profundezas da Terra, ou debaixo desta, não sabia bem, a
morada dos réprobos, chamada
inferno, isto é, lugares inferiores, e nos lugares altos, além da região das estrelas, a
morada dos bem-aventurados. A palavra
inferno se conservou até aos nossos dias, se bem haja perdido a significação
etimológica, desde que a geologia retirou das entranhas da
Terra o lugar dos suplícios eternos e a astronomia demonstrou que no espaço infinito não há baixo nem alto.
10. Sob o céu puro da Caldéia, da Índia e do Egito, berço
das mais antigas civilizações, o movimento dos astros foi
observado com tanta exatidão quanta o permitia a falta de
instrumentos especiais. Notou-se, primeiramente, que certas estrelas tinham movimento próprio, independente da
mesma, o que não consentia a suposição de que se achassem presas à abóbada. Chamaram-lhes
estrelas errantes
ou planetas, para distingui-las das estrelas fixas. Calcularam-se-lhes os movimentos e os retornos periódicos.
No movimento diurno da esfera estrelada, foi notada a
imobilidade da estrela Polar, em cujo derredor as outras
descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos, uns maiores, outros menores, conforme a distância em que se encontravam da estrela central. Foi o primeiro passo para o conhecimento da obliquidade do eixo do
mundo. Viagens mais longas deram lugar a que se observasse a diferença dos aspectos do céu, segundo as latitudes e as estações. A verificação de que a elevação da Estrela
Polar acima do horizonte variava com a latitude, abriu
caminho para a percepção da redondeza da Terra. Foi assim que, pouco a pouco, chegaram a fazer uma ideia mais
exata do sistema do mundo.
Pelo ano 600 antes de J.C., Tales, de Mileto (Ásia Menor), descobriu a esfericidade da Terra, a obliquidade da
eclíptica e a causa dos eclipses.
Um século depois, Pitágoras, de Samos, descobre o movimento diurno da Terra, sobre o próprio eixo, seu movimento anual em torno do Sol, e incorpora os planetas e os
cometas ao sistema solar.
Hiparco, de Alexandria (Egito), 160 anos antes de J.C., inventa o astrolábio, calcula e prediz os eclipses, observa
as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das
revoluções da Lua.
Embora preciosíssimas para o progresso da ciência,
essas descobertas levaram perto de 2.000 anos a se popularizarem. Não dispondo então senão de raros manuscritos
para se propagarem, as ideias novas permaneciam como
patrimônio de alguns filósofos, que as ensinavam a discípulos privilegiados. As massas, que ninguém cuidava de esclarecer, nenhum proveito tiravam delas e continuavam a nutrir-se das velhas crenças.
11. Por cerca do ano 140 da era cristã, Ptolomeu, um dos homens mais ilustres da Escola de Alexandria, combinando
suas próprias ideias com as crenças vulgares e com algumas das mais recentes descobertas astronômicas, compôs
um sistema que se pode qualificar de misto, que traz o seu
nome e que, por perto de quinze séculos, foi o único que o
mundo civilizado adotou.
Segundo o sistema de Ptolomeu, a Terra é uma esfera
posta no centro do universo e composta de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Essa a primeira região, dita
elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze
céus, ou esferas concêntricas, a girar em torno da Terra, a
saber: o céu da Lua, os de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de
Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo
cristalino e, finalmente, do primeiro móvel, que dava movimento a todos os céus inferiores e os obrigava a fazer uma
revolução em vinte e quatro horas. Para além dos onze céus
estava o
Empíreo, habitação dos bem-aventurados, denominação tirada do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se acreditava que essa região resplandecia de luz, como
o fogo.
Por longo tempo prevaleceu a crença em muitos céus
superpostos, cujo número, entretanto, variava. O sétimo
era geralmente tido como o mais elevado, donde a expressão:
ser arrebatado ao sétimo céu. São Paulo disse que fora
elevado ao terceiro céu.
Afora o movimento comum, os astros, segundo Ptolomeu, tinham movimentos próprios, mais ou menos dilatados, conforme a distância em que se achavam do centro.
As estrelas fixas faziam uma revolução em 25.816 anos,
avaliação esta que denota conhecimento da precessão dos
equinócios, que se realiza em 25.868 anos.
12. No começo do século dezesseis, Copérnico, astrônomo
célebre, nascido em Thorn (Prússia), no ano de 1472 e morto
no de 1543, reconsiderou as ideias de Pitágoras e concebeu
um sistema que, confirmado todos os dias por novas observações, teve acolhimento favorável e não tardou a
desbancar o de Ptolomeu. Segundo o sistema de Copérnico, o Sol está no centro e ao seu derredor os astros descrevem órbitas circulares, sendo a Lua um satélite da Terra.
Decorrido um século, em 1609, Galileu, natural de Florença, inventa o telescópio; em 1610, descobre os quatro satélites de Júpiter e lhe calcula as revoluções; reconhece
que os planetas não têm luz própria como as estrelas, mas
que são iluminados pelo Sol; que são esferas semelhantes
à Terra; observa-lhes as fases e determina o tempo que duram as rotações deles em torno de seus eixos, oferecendo
assim, por provas materiais, sanção definitiva ao sistema
de Copérnico.
Ruiu então a construção dos céus superpostos; reconheceu-se que os planetas são mundos semelhantes à Terra e, sem dúvida, habitados, como esta; que as estrelas são inumeráveis sóis, prováveis centros de outros tantos sistemas planetários, sendo o próprio Sol reconhecido como uma
estrela, centro de um turbilhão de planetas que se lhe acham
sujeitos.
As estrelas deixaram de estar confinadas numa zona da
esfera celeste, para estarem irregularmente disseminadas pelo
espaço sem limites, encontrando-se a distâncias incomensuráveis umas das outras as que parecem tocar-se,
sendo as aparentemente menores as mais afastadas de nós
e as maiores as que nos estão mais perto, porém, ainda
assim, a centenas de bilhões de léguas.
Os grupos que tomaram o nome de constelações mais não
são do que agregados aparentes, causados pela distância;
suas figuras não passam de efeitos de perspectiva, como as
que as luzes espalhadas por uma vasta planície, ou as árvores de uma floresta formam, aos olhos de quem as observa colocado num ponto fixo. Na realidade, porém, tais agrupamentos não existem. Se nos pudéssemos transportar para
a reunião dessas constelações, à medida que nos aproximássemos dela, a sua forma se desmancharia e novos
grupos se nos desenhariam à vista.
Ora, não existindo esses agrupamentos senão na aparência, é ilusória a significação que uma supersticiosa crença
vulgar lhe atribui e somente na imaginação pode existir.
Para se distinguirem as constelações, deram-se-lhes
nomes como estes:
Leão, Touro, Gêmeos, Virgem, Balança,
Capricórnio, Câncer, Órion, Hércules, Grande Ursa
ou Carro
de David, Pequena Ursa, Lira,
etc., e, para representá-las,
atribuíram-se-lhes as formas que esses nomes lembram, fantasiosas em sua maioria, e em nenhum caso guardando qualquer relação com os grupos de estrelas assim
chamados. Fora, pois, inútil procurar no céu tais formas.
A crença na influência das constelações, sobretudo das
que constituem os doze signos do zodíaco, proveio da ideia
ligada aos nomes que elas trazem. Se à que se chama
leão
fosse dada o nome de asno ou de ovelha, certamente lhe
teriam atribuído outra influência.
13. A partir de Copérnico e Galileu, as velhas cosmogonias
deixaram para sempre de subsistir. A astronomia só podia
avançar, não recuar. A História diz das lutas que esses homens de gênio tiveram de sustentar contra os preconceitos
e, sobretudo, contra o espírito de seita, interessado em
manter erros sobre os quais se haviam fundado crenças,
supostamente firmadas em bases inabaláveis. Bastou a invenção de um instrumento de óptica para derrocar uma
construção de muitos milhares de anos. Nada, é claro, poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal.
Graças à tipografia, o público, iniciado nas novas ideias,
entrou a não se deixar embalar com ilusões e tomou parte
na luta. Já não era contra indivíduos que os sustentadores
das velhas ideias tinham de combater, mas contra a
opinião geral, que esposava a causa da verdade.
Quão grande é o universo em face das mesquinhas
proporções que nossos pais lhe assinavam! Quanto é sublime a obra de Deus, desde que a vemos realizar-se conformemente às eternas leis da natureza! Mas, também, quanto tempo, que de esforços do gênio, que de devotamentos se fizeram necessários para descerrar os olhos às criaturas e arrancar-lhes, afinal, a venda da ignorância!
14. Estava desde então aberto o caminho em que ilustres e
numerosos sábios iam entrar, a fim de completarem a obra
encetada. Na Alemanha, Kepler descobre as célebres leis
que lhe conservam o nome e por meio das quais se reconhece que as órbitas que os planetas descrevem não são
circulares, mas elipses, um de cujos focos o Sol ocupa.
Newton, na Inglaterra, descobre a lei da gravitação universal. Laplace, na França, cria a mecânica celeste. Finalmente, a astronomia deixa de ser um sistema fundado em conjeturas ou probabilidades e torna-se uma ciência assente
nas mais rigorosas bases, as do cálculo e da geometria.
Fica assim lançada uma das pedras fundamentais da
Gênese, cerca de 3.300 anos depois de Moisés.
Capítulo VI — Uranografia geral
O espaço e o tempo.
1. Já muitas definições de espaço foram dadas, sendo a
principal esta:
o espaço é a extensão que separa dois corpos, da qual certos sofistas deduziram que onde não haja
corpos não haverá espaço. Nisto foi que se basearam alguns doutores em teologia para estabelecer que o espaço é
necessariamente finito, alegando que certo número de corpos finitos não poderiam formar uma série infinita e que,
onde acabassem os corpos, igualmente o espaço acabaria. Também definiram o espaço como sendo o lugar onde
se movem os mundos, o vazio onde a matéria atua, etc.
Deixemos todas essas definições, que nada definem, nos
tratados onde repousam.
Espaço é uma dessas palavras que exprimem uma ideia
primitiva e axiomática, de si mesma evidente, e a cujo respeito as diversas definições que se possam dar nada mais
fazem do que obscurecer. Todos sabemos o que é o espaço e eu apenas quero firmar que ele é infinito, a fim de que
os nossos estudos ulteriores não encontrem uma barreira
opondo-se às investigações do nosso olhar.
Ora, digo que o espaço é infinito, pela razão de ser
impossível imaginar-se-lhe um limite qualquer e porque,
apesar da dificuldade com que topamos para conceber o
infinito, mais fácil nos é avançar eternamente pelo espaço,
em pensamento, do que parar num ponto qualquer, depois
do qual não mais encontrássemos extensão a percorrer. Para figurarmos, quanto no-lo permitam as nossas
limitadas faculdades, a infinidade do espaço, suponhamos
que, partindo da Terra, perdida no meio do infinito, para um
ponto qualquer do universo, com a velocidade prodigiosa
da centelha elétrica, que percorre
milhares de léguas por
segundo
, e que, havendo percorrido milhões de léguas mal
tenhamos deixado este globo, nos achamos num lugar donde apenas o divisamos sob o aspecto de pálida estrela. Passado um instante, seguindo sempre a mesma direção, chegamos a essas estrelas longínquas que mal percebeis da vossa estação terrestre. Daí, não só a Terra nos desaparece
inteiramente do olhar nas profundezas do céu, como também o próprio Sol, com todo o seu esplendor, se há eclipsado pela extensão que dele nos separa. Animados sempre da
mesma velocidade do relâmpago, a cada passo que avançamos na extensão, transpomos sistemas de mundos, ilhas
de luz etérea, estradas estelíferas, paragens suntuosas onde
Deus semeou mundos na mesma profusão com que semeou
as plantas nas pradarias terrenas.
Ora, há apenas poucos minutos que caminhamos e já
centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da
Terra, bilhões de mundos nos passaram sob as vistas e,
entretanto, escutai! em realidade, não avançamos um só
passo que seja no universo. Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de
séculos, milhões de períodos cem vezes seculares e
sempre
com a mesma velocidade do relâmpago
, nem um passo igualmente teremos avançado, qualquer que seja o lado para
onde nos dirijamos e qualquer que seja o ponto para onde
nos encaminhemos, a partir desse grãozinho invisível
donde saímos e a que chamamos Terra. Eis aí o que é o espaço!
2. Como a palavra espaço, tempo é também um termo já
por si mesmo definido. Dele se faz ideia mais exata, relacionando-o com o todo infinito. O tempo é a sucessão das coisas. Está ligado à eternidade, do mesmo modo que as coisas estão ligadas ao infinito. Suponhamo-nos na origem do nosso mundo, na época
primitiva em que a Terra ainda não se movia sob a divina
impulsão; numa palavra: no começo da gênese. O tempo
então ainda não saíra do misterioso berço da natureza e
ninguém pode dizer em que época de séculos nos achamos,
porquanto o balancim dos séculos ainda não foi posto
em movimento.
Mas, silêncio! soa na sineta eterna a primeira hora de
uma Terra insulada, o planeta se move no espaço e desde
então há
tarde e manhã. Para lá da Terra, a eternidade
permanece impassível e imóvel, embora o tempo marche
com relação a muitos outros mundos. Para a Terra, o
tempo a substitui e durante uma determinada série de
gerações contar-se-ão os anos e os séculos. Transportemo-nos agora ao último dia desse mundo, à
hora em que, curvado sob o peso da vetustez, ele se apagará
do livro da vida para aí não mais reaparecer. Interrompe-se
então a sucessão dos eventos; cessam os movimentos terrestres que mediam o tempo e o tempo acaba com eles. Esta simples exposição das coisas que dão nascimento
ao tempo, que o alimentam e deixam que ele se extinga, basta
para mostrar que, visto do ponto em que houvemos de colocar-nos para os nossos estudos, o tempo é uma gota d’água
que cai da nuvem no mar e cuja queda é medida.
Tantos mundos na vasta amplidão, quantos tempos
diversos e incompatíveis. Fora dos mundos, somente a eternidade substitui essas efêmeras sucessões e enche tranquilamente da sua luz imóvel a imensidade dos céus. Imensidade
sem limites e eternidade sem limites, tais as duas grandes
propriedades da natureza universal.
O olhar do observador, que atravessa, sem jamais encontrar o que o detenha, as incomensuráveis distâncias do
espaço, e o do geólogo, que remonta além dos limites das
idades, ou que desce às profundezas da eternidade de faces
escancaradas, onde ambos um dia se perderão, atuam em
concordância, cada um na sua direção, para adquirir esta
dupla noção do infinito: extensão e duração. Dentro desta ordem de ideias, fácil nos será conceber
que, sendo o tempo apenas a relação das coisas transitórias
e dependendo unicamente das coisas que se medem, se
tomássemos os séculos terrestres por unidade e os
empilhássemos aos milheiros, para formar um número colossal, esse número nunca representaria mais que um ponto
na eternidade, do mesmo modo que milhares de léguas
adicionadas a milhares de léguas não dão mais que um
ponto na extensão. Assim, por exemplo, estando os séculos fora da vida
etérea da alma, poderíamos escrever um número tão longo
quanto o equador terrestre e supor-nos envelhecidos desse
número de séculos, sem que na realidade nossa alma conte
um dia a mais. E juntando, a esse número indefinível de
séculos, uma série de números semelhantes, longa como
daqui ao Sol, ou ainda mais consideráveis, se imaginássemos viver durante uma sucessão prodigiosa de períodos
seculares representados pela adição de tais números, quando chegássemos ao termo, o inconcebível amontoado de
séculos que nos passaria sobre a cabeça seria como se não
existisse: diante de nós estaria sempre toda a eternidade.
O tempo é apenas uma medida relativa da sucessão
das coisas transitórias; a eternidade não é suscetível de
medida alguma, do ponto de vista da duração; para ela,
não há começo, nem fim: tudo lhe é presente. Se séculos de séculos são menos que um segundo,
relativamente à eternidade, que vem a ser a duração da
vida humana?!
A matéria.
3. À primeira vista, não há o que pareça tão profundamente variado, nem tão essencialmente distinto, como as diversas substâncias que compõem o mundo. Entre os objetos que a arte ou a natureza nos fazem passar diariamente
ante o olhar, haverá duas que revelem perfeita identidade,
ou, sequer, paridade de composição? Quanta dessemelhança, sob os aspectos da solidez, da compressibilidade, do
peso e das múltiplas propriedades dos corpos, entre os gases atmosféricos e um filete de ouro, entre a molécula aquosa
da nuvem e a do mineral que forma a carcaça óssea do
globo! que diversidade entre o tecido químico das variadas
plantas que adornam o reino vegetal e o dos representantes não menos numerosos da animalidade na Terra! Entretanto, podemos estabelecer como princípio absoluto que todas as substâncias, conhecidas e desconhecidas, por mais dessemelhantes que pareçam, quer do ponto
de vista da constituição íntima, quer pelo prisma de suas
ações recíprocas, são, de fato, apenas modos diversos sob
que a matéria se apresenta; variedades em que ela se transforma sob a direção das forças inumeráveis que a governam.
4. A química, cujos progressos foram tão rápidos depois
da minha época, em a qual seus próprios adeptos ainda a
relegavam para o domínio secreto da magia; ciência que se
pode considerar, com justiça, filha do século da observação
e baseada unicamente, de maneira bem mais sólida do que
suas irmãs mais velhas, no método experimental; a química, digo, fez tábua rasa dos quatro elementos primitivos
que os antigos concordaram em reconhecer na natureza;
mostrou que o elemento terrestre mais não é do que a combinação de diversas substâncias variadas ao infinito; que o
ar e a água são igualmente decomponíveis e produtos
de certo número de equivalentes de gás; que o fogo, longe de
ser também um elemento principal, é apenas um estado da
matéria, resultante do movimento universal a que esta se
acha submetida e de uma combustão sensível ou latente. Em compensação, fez surgir considerável número de
princípios, até então desconhecidos, que lhe pareceram formar, por determinadas combinações, as diversas substâncias, os diversos corpos que ela estudou e que atuam
simultaneamente, segundo certas leis e em certas proporções, nos trabalhos que se realizam dentro do grande laboratório da natureza. Deu a esses princípios o nome de
corpos simples, indicando de tal modo que os considera
primitivos e indecomponíveis e que nenhuma operação, até
hoje, pôde reduzi-los a frações relativamente mais simples
do que eles próprios.*
* Os principais corpos simples são: entre os não-metálicos, o oxigênio,
o hidrogênio, o azoto, o cloro, o carbono, o fósforo, o enxofre, o iodo;
entre os metálicos, o ouro, a prata, a platina, o mercúrio, o chumbo,
o estanho, o zinco, o ferro, o cobre, o arsênico, o sódio, o potássio,
o cálcio, o alumínio, etc.
5. Mas, onde param as apreciações do homem, mesmo ajudadas pelos mais impressionantes sentidos artificiais, prossegue a obra da natureza; onde o vulgo toma a aparência
como realidade, onde o prático levanta o véu e percebe o
começo das coisas, o olhar daquele que pode apreender
o modo de agir da natureza apenas vê, nos materiais constitutivos do mundo, a
matéria cósmica primitiva, simples e
una, diversificada em certas regiões na época do aparecimento destas, repartida em corpos solidários entre si, enquanto têm vida, e que um dia se desmembram, por efeitos
da decomposição no receptáculo da extensão.
6. Há questões que nós mesmos, Espíritos amantes da
ciência, não podemos aprofundar e sobre as quais não poderemos emitir senão opiniões pessoais, mais ou menos
hipotéticas. Sobre essas questões, calar-me-ei, ou justificarei a minha maneira de ver. A com que nos ocupamos,
porém, não pertence a esse número. Àqueles, portanto, que
fossem tentados a enxergar nas minhas palavras unicamente uma teoria ousada, direi: abarcai, se for possível,
com olhar investigador, a multiplicidade das operações da
natureza e reconhecereis que, se se não admitir a unidade
da matéria, impossível será explicar, já não direi somente
os sóis e as esferas, mas, sem ir tão longe, a germinação de
uma semente na terra, ou a produção dum inseto.
7. Se se observa tão grande diversidade na matéria, é porque, sendo em número ilimitado as forças que hão presidido às suas transformações e as condições em que estas se
produziram, também as várias combinações da matéria não
podiam deixar de ser ilimitadas. Logo, quer a substância que se considere pertença aos
fluidos propriamente ditos, isto é, aos corpos imponderáveis,
quer revista os caracteres e as propriedades ordinárias da
matéria, não há, em todo o universo, senão uma única substância primitiva: o
cosmo, ou matéria cósmica dos uranógrafos.
As leis e as forças.
8. Se um desses seres desconhecidos que consomem a sua
efêmera existência no fundo das tenebrosas regiões do
oceano; se um desses poligástricos, uma dessas nereidas
— miseráveis animáculos que da natureza mais não conhecem do que os peixes ictiófagos e as florestas submarinas — recebesse de repente o dom da inteligência, a faculdade de estudar o seu mundo e de basear suas apreciações
num raciocínio conjetural extensivo à universalidade das
coisas, que ideia faria da natureza viva que se desenvolve
no meio por ele habitado e do mundo terrestre que escapa
ao campo de suas observações? Se, agora, por maravilhoso efeito do poder da sua nova
faculdade, esse mesmo ser chegasse a elevar-se, acima das
suas trevas eternas, a galgar a superfície do mar, não distante das margens opulentas de uma ilha de esplêndida vegetação, banhada pelo Sol fecundante, dispensador de calor
benéfico, que juízo faria ele das suas antecipadas teorias
sobre a criação universal? Não as baniria, de pronto, substituindo-as por uma apreciação mais ampla, relativamente
tão incompleta quanto a primeira? Tal, ó homens, a
imagem da vossa ciência toda especulativa. *
* Tal também a situação dos negadores do mundo dos Espíritos,
quando, após se haverem despojado do envoltório carnal, contemplam, desdobrados às suas vistas, os horizontes desse mundo. Compreendem, então, quão ocas eram as teorias com que pretendiam
tudo explicar por meio exclusivamente da matéria. Contudo, esses
horizontes ainda lhes ocultam mistérios que só posteriormente se
lhes desvendam, à medida que, depurando-se, eles se elevam. Desde, porém, os seus primeiros momentos no outro mundo, veem-se
forçados a reconhecer a própria cegueira e quão longe estavam da
verdade.
9. Vindo, pois, tratar aqui da questão das leis e das forças
que regem o universo, eu, que apenas sou, como vós, um
ser relativamente ignorante, em face da ciência real,
malgrado a aparente superioridade que, com relação aos
meus irmãos da Terra, me advém da possibilidade de estudar problemas naturais que lhes são interditos na posição
em que eles se encontram como terrícolas, trago por único
objetivo dar-vos uma noção geral das leis universais, sem
explicar pormenorizadamente o modo de ação e a natureza
das forças especiais que lhes são dependentes.
10. Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os
corpos. Esse fluido é o
éter ou matéria cósmica primitiva,
geradora do mundo e dos seres. São-lhe inerentes as forças
que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que regem o mundo. Essas múltiplas
forças, indefinidamente variadas segundo as combinações
da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas
em seus modos de ação, segundo as circunstâncias e os
meios, são conhecidas na Terra sob os nomes de
gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade
ativa
. Os movimentos vibratórios do agente são conhecidos
sob os nomes de
som, calor, luz, etc. Em outros mundos,
elas se apresentam sob outros aspectos, revelam outros caracteres desconhecidos na Terra e, na imensa amplidão
dos céus, forças em número indefinito se têm desenvolvido
numa escala inimaginável, cuja grandeza tão incapazes somos de avaliar, como o é o crustáceo, no fundo do oceano,
para apreender a universalidade dos fenômenos terrestres.* Ora, assim como só há uma substância simples, primitiva, geradora de todos os corpos, mas diversificada em
suas combinações, também todas essas forças dependem
de uma lei universal diversificada em seus efeitos e que,
pelos desígnios eternos, foi soberanamente imposta à
criação, para lhe imprimir harmonia e estabilidade.
* Tudo reportamos ao que conhecemos e do que escapa à percepção
dos nossos sentidos não compreendemos mais do que compreende
o cego de nascença acerca dos efeitos da luz e da utilidade dos
olhos. Possível é, pois, que noutros meios o fluido cósmico possua
propriedades, seja suscetível de combinações de que não fazemos
nenhuma ideia, produza efeitos apropriados a necessidades que desconhecemos, dando lugar a percepções novas ou a outros modos de
percepção. Não compreendemos, por exemplo, que se possa ver sem
os olhos do corpo e sem a luz. Quem nos diz, porém, que não existam outros agentes, afora a luz, aos quais são adequados organismos especiais? A vista sonambúlica, que nem a distância, nem
os obstáculos materiais, nem a obscuridade detêm, nos oferece um
exemplo disso. Suponhamos que, num mundo qualquer, os seres
sejam normalmente o que só excepcionalmente o são os
nossos sonâmbulos; eles, sem precisarem da nossa luz, nem
dos nossos olhos, verão o que não podemos ver. O mesmo se dá
com todas as outras sensações. As condições de vitalidade e de
perceptibilidade, as sensações e as necessidades variam de conformidade com os meios.
11. A natureza jamais se encontra em oposição a si mesma. Uma só é a divisa do brasão do universo: unidade-variedade. Remontando à escala dos mundos, encontra-se
unidade de harmonia e de criação, ao mesmo tempo que
uma variedade infinita no imenso jardim de estrelas. Percorrendo os degraus da vida, desde o último dos seres até
Deus, patenteia-se a grande lei de continuidade. Considerando as forças em si mesmas, pode-se formar com elas
uma série, cuja resultante, confundindo-se com a geratriz,
é a lei universal. Não podeis apreciar esta lei em toda a sua extensão,
por serem restritas e limitadas as forças que a representam
no campo das vossas observações. Entretanto, a gravitação
e a eletricidade podem ser consideradas como uma larga
aplicação da lei primordial, que impera para lá dos céus. Todas essas forças são eternas — explicaremos esse
termo — e universais, como a criação. Sendo inerentes ao
fluido cósmico, elas atuam necessariamente em tudo e em
toda parte, modificando suas ações pela simultaneidade ou
pela sucessividade, predominando aqui, apagando-se ali,
pujantes e ativas em certos pontos, latentes ou ocultas
noutros, mas, afinal, preparando, dirigindo, conservando e
destruindo os mundos em seus diversos períodos de vida,
governando os maravilhosos trabalhos da natureza, onde
quer que eles se executem, assegurando para sempre o
eterno esplendor da criação.
A criação primária.
12. Depois de termos considerado o universo sob os pontos de vista gerais da sua composição, das suas leis e das
suas propriedades, podemos estender os nossos estudos
ao modo de formação que deu origem aos mundos e aos
seres. Desceremos, em seguida, à criação da Terra, em particular, e ao seu estado atual na universalidade das coisas
e daí, tomando esse globo por ponto de partida e por unidade relativa, procederemos aos nossos estudos planetários e
siderais.
13. Se bem compreendemos a relação, ou, antes, a oposição entre a eternidade e o tempo, se nos familiarizamos
com a ideia de que o tempo não é mais do que uma medida
relativa da sucessão das coisas transitórias, ao passo que a
eternidade é essencialmente una, imóvel e permanente,
insuscetível de qualquer medida, do ponto de vista da
duração, compreenderemos que para ela não há começo,
nem fim. Doutro lado, se fazemos ideia exata — embora, necessariamente, muito fraca — da infinidade do poder divino,
compreenderemos como é possível que o universo haja existido sempre e sempre exista. Desde que Deus existiu, suas
perfeições eternas falaram. Antes que houvessem nascido
os tempos, a eternidade incomensurável recebeu a palavra
divina e fecundou o espaço, eterno quanto ela.
14. Existindo, por sua natureza, desde toda a eternidade,
Deus criou desde toda eternidade e não poderia ser de outro modo, visto que, por mais longínqua que seja a época a
que recuemos, pela imaginação, os supostos limites da
criação, haverá sempre, além desse limite, uma eternidade
— ponderai bem esta ideia —, uma eternidade durante a
qual as divinas hipóstases, as volições infinitas teriam permanecido sepultadas em muda letargia inativa e infecunda,
uma eternidade de morte aparente para o Pai eterno que dá
vida aos seres; de mutismo indiferente para o Verbo que os
governa; de esterilidade fria e egoísta para o Espírito de
amor e vivificação. Compreendamos melhor a grandeza da ação divina e a
sua perpetuidade sob a mão do Ser absoluto! Deus é o Sol
dos seres, é a Luz do mundo. Ora, a aparição do Sol dá
nascimento instantâneo a ondas de luz que se vão espalhando por todos os lados, na extensão. Do mesmo modo, o
universo, nascido do Eterno, remonta aos períodos
inimagináveis do infinito de duração, ao
Fiat lux! do início.
15. O começo absoluto das coisas remonta, pois, a Deus.
As sucessivas aparições delas no domínio da existência
constituem a ordem da criação perpétua. Que mortal poderia dizer das magnificências desconhecidas e soberbamente veladas sob a noite das idades
que se desdobraram nesses tempos antigos, em que nenhuma das maravilhas do universo atual existia; nessa
época primitiva em que, tendo-se feito ouvir a voz do Senhor, os materiais que no futuro haviam de agregar-se por
si mesmos e simetricamente, para formar o templo da natureza, se encontraram de súbito no seio dos vácuos infinitos; quando aquela voz misteriosa, que toda criatura venera
e estima como a de uma mãe, produziu notas harmoniosamente variadas, para irem vibrar juntas e modular o
concerto dos céus imensos! O mundo, no nascedouro, não se apresentou assente
na sua virilidade e na plenitude da sua vida, não. O poder
criador nunca se contradiz e, como todas as coisas, o universo nasceu criança. Revestido das leis mencionadas acima e da impulsão inicial inerente à sua formação mesma, a
matéria cósmica primitiva fez que sucessivamente nascessem turbilhões, aglomerações desse fluido difuso,
amontoados de matéria nebulosa que se cindiram por si
próprios e se modificaram ao infinito para gerar, nas
regiões incomensuráveis da amplidão, diversos centros de
criações simultâneas ou sucessivas. Em virtude das forças que predominaram sobre um ou
sobre outro deles e das circunstâncias ulteriores que presidiram aos seus desenvolvimentos, esses centros primitivos
se tornaram focos de uma vida especial: uns, menos disseminados no espaço e mais ricos em princípios e em forças
atuantes, começaram desde logo a sua particular vida astral; os outros, ocupando ilimitada extensão, cresceram com
lentidão extrema, ou de novo se dividiram em outros
centros secundários.
16. Transportando-nos a alguns milhões de séculos somente, acima da época atual, verificamos que a nossa Terra
ainda não existe, que mesmo o nosso sistema solar ainda
não começou as evoluções da vida planetária; mas, que,
entretanto, já esplêndidos sóis iluminam o éter; já planetas
habitados dão vida e existência a uma multidão de seres,
nossos predecessores na carreira humana, que as produções opulentas de uma natureza desconhecida e os maravilhosos fenômenos do céu desdobram, sob outros olhares,
os quadros da imensa criação. Que digo! Já deixaram de
existir esplendores que muito antes fizeram palpitar o coração de outros mortais, sob o pensamento da potência
infinita! E nós, pobres seres pequeninos, que viemos após
uma eternidade de vida, nós nos cremos contemporâneos
da criação! Ainda uma vez; compreendamos melhor a natureza.
Saibamos que atrás de nós, como à nossa frente, está a
eternidade; que o espaço é teatro de inimaginável sucessão e
simultaneidade de criações. Tais nebulosas, que mal percebemos nos mais longínquos pontos do céu, são aglomerados
de sóis em vias de formação; tais outras são vias lácteas de
mundos habitados; outras, finalmente, sedes de catástrofes
e de deperecimento. Saibamos que, assim como estamos
colocados no meio de uma infinidade de mundos, também
estamos no meio de uma dupla infinidade de durações,
anteriores e ulteriores; que a criação universal não se acha
restrita a nós, que não nos é lícito aplicar essa expressão à
formação isolada do nosso pequenino globo.
A criação universal.
17. Após haver remontado, tanto quanto o permitia a nossa fraqueza, em direção à fonte oculta donde dimanam os
mundos, como de um rio as gotas d'água, consideremos a
marcha das criações sucessivas e dos seus desenvolvimentos seriais. A matéria cósmica primitiva continha os elementos materiais, fluídicos e vitais de todos os universos que estadeiam
suas magnificências diante da eternidade. Ela é a mãe fecunda de todas as coisas, a primeira avó e, sobretudo, a
eterna geratriz. Absolutamente não desapareceu essa substância donde provêm as esferas siderais; não morreu essa
potência, pois que ainda, incessantemente, dá à luz novas
criações e incessantemente recebe, reconstituídos, os
princípios dos mundos que se apagam do livro eterno. A substância etérea, mais ou menos rarefeita, que se
difunde pelos espaços interplanetários; esse fluido cósmico
que enche o mundo, mais ou menos rarefeito, nas regiões
imensas, opulentas de aglomerações de estrelas; mais ou
menos condensado onde o céu astral ainda não brilha; mais
ou menos modificado por diversas combinações, de acordo
com as localidades da extensão, nada mais é do que a substância primitiva onde residem as forças universais, donde
a natureza há tirado todas as coisas.*
* Se perguntásseis qual o princípio dessas forças e como pode esse
princípio estar na substância mesma que o produz, responderíamos que a mecânica numerosos exemplos nos oferece desse fato. A
elasticidade, que faz com que uma mola se distenda, não está na
própria mola e não depende do modo de agregação das moléculas?
O corpo que obedece à força centrífuga recebe a sua impulsão do
movimento primitivo que lhe foi impresso.
18. Esse fluido penetra os corpos, como um oceano imenso. É nele que reside o princípio vital que dá origem à vida
dos seres e a perpetua em cada globo, conforme à condição
deste, princípio que, em estado latente, se conserva adormecido onde a voz de um ser não o chama. Toda criatura,
mineral, vegetal, animal ou qualquer outra — porquanto
há muitos outros reinos naturais, de cuja existência nem
sequer suspeitais — sabe, em virtude desse princípio vital e
universal, apropriar as condições de sua existência e de
sua duração. As moléculas do mineral têm uma certa soma dessa
vida, do mesmo modo que a semente do embrião, e se grupam, como no organismo, em figuras simétricas que
constituem os indivíduos. Muito importa nos compenetremos da noção de que a
matéria cósmica primitiva se achava revestida, não só das
leis que asseguram a estabilidade dos mundos, como também do universal princípio vital que forma gerações espontâneas em cada mundo, à medida que se apresentam as
condições da existência sucessiva dos seres e quando soa a
hora do aparecimento dos filhos da vida, durante o período
criador. Efetua-se assim a criação universal. É, pois, exato dizer-se que, sendo as operações da natureza a expressão da
vontade divina, Deus há criado sempre, cria incessantemente e nunca deixará de criar.
19. Até aqui, porém, temos guardado silêncio sobre o mundo espiritual, que também faz parte da criação e cumpre
seus destinos conforme as augustas prescrições do Senhor. Acerca do modo da criação dos Espíritos, entretanto,
não posso ministrar mais que um ensino muito restrito,
em virtude da minha própria ignorância e também porque
tenho ainda de calar-me no que concerne a certas
questões, se bem já me haja sido dado aprofundá-las. Aos que desejem religiosamente conhecer e se mostrem humildes perante Deus, direi, rogando-lhes, todavia,
que nenhum sistema prematuro baseiem nas minhas palavras, o seguinte: O Espírito não chega a receber a iluminação divina, que lhe dá, simultaneamente com o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, sem
haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra da sua
individualização. Unicamente a datar do dia em que o Senhor lhe imprime na fronte o seu tipo augusto, o Espírito
toma lugar no seio das humanidades. De novo peço: não construais sobre as minhas palavras os vossos raciocínios, tão tristemente célebres na história da Metafísica. Eu preferiria mil vezes calar-me sobre
tão elevadas questões, tão acima das nossas meditações
ordinárias, a vos expor a desnaturar o sentido de meu ensino e a vos lançar, por culpa minha, nos inextricáveis dédalos
do deísmo ou do fatalismo.
Os sóis e os planetas.
20. Sucedeu que, num ponto do universo, perdido entre as
miríades de mundos, a matéria cósmica se condensou sob
a forma de imensa nebulosa, animada esta das leis universais que regem a matéria. Em virtude dessas leis,
notadamente da força molecular de atração, tomou ela a
forma de um esferoide, a única que pode assumir uma massa
de matéria insulada no espaço. O movimento circular produzido pela gravitação, rigorosamente igual, de todas as zonas moleculares em direção
ao centro, logo modificou a esfera primitiva, a fim de a
conduzir, de movimento em movimento, à forma lenticular.
Falamos do conjunto da nebulosa.
21. Novas forças surgiram em consequência desse movimento de rotação: a força centrípeta e a força centrífuga, a
primeira tendendo a reunir todas as partes no centro, tendendo a segunda a afastá-las dele. Ora, acelerando-se o
movimento, à medida que a nebulosa se condensa, e aumentando o seu raio, à medida que ela se aproxima da forma lenticular, a força centrífuga, incessantemente desenvolvida por essas duas causas, predominou de pronto sobre
a atração central. Assim como um movimento demasiado rápido da funda lhe quebra a corda, indo o projetil cair longe, também a
predominância da força centrífuga destacou o circo equatorial da nebulosa e desse anel uma nova massa se formou,
isolada da primeira, mas, todavia, submetida ao seu império. Aquela massa conservou o seu movimento equatorial
que, modificado, se lhe tornou movimento de translação
em torno do astro solar. Ao demais, o seu novo estado lhe
dá um movimento de rotação em torno do próprio centro.
22. A nebulosa geratriz, que deu origem a esse novo mundo, condensou-se e retomou a forma esférica; mas, como o
primitivo calor, desenvolvido por seus diversos movimentos, só com extrema lentidão se atenuasse, o fenômeno que
acabamos de descrever se reproduzirá muitas vezes e durante longo período, enquanto a nebulosa não se haja tornado bastante densa, bastante sólida, para oferecer resistência eficaz às modificações de forma, que o seu movimento
de rotação sucessivamente lhe imprime. Ela, pois, não terá dado nascimento a um só astro,
mas a centenas de mundos destacados do foco central,
saídos dela pelo modo de formação mencionado acima. Ora,
cada um de seus mundos, revestido, como o mundo primitivo, das forças naturais que presidem à criação dos universos, gerará sucessivamente novos globos que desde então lhe gravitarão em torno, como ele, juntamente com seus
irmãos, gravita em torno do foco que lhes deu existência e
vida. Cada um desses mundos será um Sol, centro de um
turbilhão de planetas sucessivamente destacados do seu
equador. Esses planetas receberão uma vida especial,
particular, embora dependente do astro que os gerou.
23. Os planetas são, assim, formados de massas de matéria condensada, porém, ainda não solidificada, destacadas
da massa central pela ação de força centrífuga e que tomam, em virtude das leis do movimento, a forma esferoidal,
mais ou menos elíptica, conforme o grau de fluidez que
conservaram. Um desses planetas será a Terra que, antes
de se resfriar e revestir de uma crosta sólida, dará nascimento à Lua, pelo mesmo processo de formação astral a
que ela própria deveu a sua existência. A Terra, doravante
inscrita no livro da vida, berço de criaturas cuja fraqueza
as asas da divina Providência protege, nova corda colocada
na harpa infinita e que, no lugar que ocupa, tem de vibrar
no concerto universal dos mundos.
Os satélites.
24. Antes que as massas planetárias houvessem atingido
um grau de resfriamento bastante a lhes operar a solidificação, massas menores, verdadeiros glóbulos líquidos, se
desprenderam de algumas no plano equatorial, plano em que é maior a força centrífuga, e, por efeito das mesmas
leis, adquiriram um movimento de translação em torno do
planeta que as gerou, como sucedeu a estes com relação ao
astro central que lhes deu origem. Foi assim que a Terra deu nascimento à Lua, cuja
massa, menos considerável, teve que sofrer um resfriamento
mais rápido. Ora, as leis e as forças que presidiram ao fato
de ela se destacar do equador terreno, e o seu movimento
de translação no mesmo plano, agiram de tal sorte que esse
mundo, em vez de revestir a forma esferoidal, tomou a de
um globo ovoide, isto é, a forma alongada de um ovo, com o
centro de gravidade fixado na parte inferior.
25. As condições em que se efetuou a desagregação da Lua
pouco lhe permitiram afastar-se da Terra e a constrangeram a conservar-se perpetuamente suspensa no seu
firmamento, como uma figura ovoide cujas partes mais pesadas formaram a face inferior voltada para a Terra e cujas
partes menos densas lhe constituíram o vértice, se com
essa palavra se designar a face que, do lado oposto à Terra,
se eleva para o céu. É o que faz que esse astro nos apresente
sempre a mesma face. Para melhor compreender-se o seu
estado geológico, pode ele ser comparado a um globo de cortiça, tendo formada de chumbo a face voltada para a Terra. Daí, duas naturezas essencialmente distintas na superfície do mundo lunar: uma, sem qualquer analogia com
o nosso, porquanto lhe são desconhecidos os corpos fluidos e etéreos; a outra, leve, relativamente à Terra, pois que
todas as substâncias menos densas se encaminharam para
esse hemisfério. A primeira, perpetuamente voltada para a
Terra, sem águas e sem atmosfera, a não ser, aqui e ali, nos
limites desse hemisfério subterrestre; a outra, rica de
fluidos, perpetuamente oposta ao nosso mundo.*
* Esta teoria da Lua, nova inteiramente, explica, pela lei da gravitação,
o motivo por que esse astro apresenta sempre a mesma face para a
Terra. Tendo o centro de gravidade num dos pontos de sua superfície, em vez de estar no centro da esfera, e sendo, em consequência, atraído para a Terra por uma força maior do que a que atrai as
partes mais leves, a Lua pode ser tida como uma dessas figuras
chamadas vulgarmente joão-paulino, que se levantam constantemente sobre a sua base, ao passo que os planetas, cujo centro de
gravidade está a distâncias iguais da superfície, giram regularmente sobre o próprio eixo. Os fluidos vivificantes, gasosos ou líquidos,
por virtude da sua leveza específica, se encontrariam acumulados
no hemisfério superior, perenemente oposto à Terra. O hemisfério
inferior, o único que vemos, seria desprovido de tais fluidos e, por
isso, impróprio à vida que, entretanto, reinaria no outro. Se, pois, o
hemisfério superior é habitado, seus habitantes jamais viram a Terra,
a menos que excursionem pelo outro, o que lhes seria impossível,
desde que este carece das condições indispensáveis à vitalidade. Por muito racional e científica que seja essa teoria, como ainda
não foi confirmada por nenhuma observação direta, somente a título de hipótese pode ser aceita e como ideia capaz de servir de
baliza à ciência. Não se pode, porém, deixar de convir em que é a
única, até ao presente, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.
26. O número e o estado dos satélites de cada planeta têm
variado de acordo com as condições especiais em que eles
se formaram. Alguns não deram origem a nenhum astro
secundário, como se verifica com Mercúrio, Vênus e Marte, ao passo que outros, como a Terra, Júpiter, Saturno,
etc., formaram um ou vários desses astros secundários.
27. Além de seus satélites ou luas, o planeta Saturno apresenta o fenômeno especial do anel que, visto de longe, parece cercá-lo de uma como auréola branca. Esse anel é,
com efeito, o resultado de uma separação que se operou no
equador de Saturno, ainda nos tempos primitivos, do mesmo modo que uma zona equatorial se escapou da Terra
para formar o seu satélite. A diferença consiste em que o
anel de Saturno se formou, em todas as suas partes, de
moléculas homogêneas, provavelmente já em certo estado
de condensação, e pode, dessa maneira, continuar o seu
movimento de rotação no mesmo sentido e em tempo quase igual ao do que anima o planeta. Se um dos pontos desse anel houvesse ficado mais denso do que outro, uma ou
muitas aglomerações de substância se teriam subitamente
operado e Saturno contaria muitos satélites a mais. Desde
a época da sua formação, esse anel se solidificou, do
mesmo modo que os outros corpos planetários.
Os cometas.
28. Astros errantes, os cometas, ainda mais do que os planetas, que conservaram a denominação etimológica, serão
os guias que nos ajudarão a transpor os limites do sistema
a que pertence a Terra e nos levarão às regiões longínquas
da extensão sideral. Mas, antes de explorarmos os domínios celestes, com
o auxílio desses viajantes do universo, bom será demos a
conhecer, tanto quanto possível, a natureza intrínseca
deles e o papel que lhes cabe na economia planetária.
29. Alguns hão visto, nesses astros dotados de cabeleira,
mundos nascentes, a elaborarem, no primitivo caos em que se acham, as condições de vida e de existência, que tocam
em partilha às terras habitadas; outros imaginaram que
esses corpos extraordinários eram mundos em estado de
destruição e, para muitos, a singular aparência que têm foi
motivo de apreciações errôneas acerca da natureza deles,
isso a tal ponto que não houve, inclusive na astrologia judiciária, quem não os considerasse como pressagiadores de
desgraças, enviados, por desígnios providenciais, à Terra,
espantada e tremente.
30. A lei de variedade se aplica em tão larga escala nos
trabalhos da natureza, que admira hajam os naturalistas,
os astrônomos e os filósofos fabricado tantos sistemas para
assimilar os cometas aos astros planetários e para somente verem neles astros em graus mais ou menos adiantados
de desenvolvimento ou de caducidade. Entretanto, os quadros da natureza deveriam bastar amplamente para afastar o observador da preocupação de perquirir relações
inexistentes e deixar aos cometas o papel modesto, porém,
útil, de astros errantes, que servem de exploradores aos
impérios solares. Porque, os corpos celestes de que tratamos são coisa muito diversa dos corpos planetários; não
têm por destinação, como estes, servir de habitação a humanidades. Vão sucessivamente de sóis em sóis, enriquecendo-se, às vezes, pelo caminho, de fragmentos planetários
reduzidos ao estado de vapor, haurir, nos focos solares, os
princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre
os mundos terrestres. (Cap. IX, n.
o 12.)
31. Se, quando um desses astros se aproxima do nosso
pequenino globo, para lhe atravessar a órbita e voltar ao
seu apogeu, situado a uma distância incomensurável do
Sol, o acompanhássemos, pelo pensamento, para visitar
com ele as províncias siderais, transporíamos a prodigiosa
extensão de matéria etérea que separa das estrelas mais
próximas o Sol e, observando os movimentos combinados
desse astro, que se suporia desgarrado no deserto infinito,
ainda aí encontraríamos uma prova eloquente da universalidade das leis da natureza, que atuam a distâncias que a
mais ativa imaginação mal pode conceber. Aí, a forma elíptica toma a forma parabólica e a marcha se torna tão lenta que o cometa não chega a percorrer
mais que alguns metros, no mesmo tempo durante o qual,
em seu perigeu, percorria muitos milhares de léguas. Talvez um sol mais poderoso, mais importante do que o que
ele acaba de deixar, exerça sobre esse cometa uma atração
preponderante e o receba na categoria de seus súditos.
Então, na vossa pequenina Terra, em vão as crianças espantadas lhe aguardarão o retorno, que haviam predito,
baseando-se em observações incompletas. Nesse caso, nós,
que pelo pensamento acompanhamos a essas regiões desconhecidas o cometa errante, depararemos com uma nação nova, que os olhares terrenos não podem encontrar,
inimaginável para os Espíritos que habitam a Terra, inconcebível mesmo para as suas mentes, porquanto ela será
teatro de inexploradas maravilhas. Chegamos ao mundo astral, nesse mundo deslumbrante dos vastos sóis que irradiam pelo espaço infinito e que
são as flores brilhantes do magnífico jardim da criação. Lá
chegados, apenas saberemos o que é a Terra.
A Via Láctea.
32. Pelas belas noites estreladas e sem luar, toda gente há
contemplado essa faixa esbranquiçada que atravessa o céu
de uma extremidade a outra e que os antigos cognominaram
de Via Láctea, por motivo da sua aparência leitosa. Esse
clarão difuso o olho do telescópio o tem longamente explorado nos modernos tempos; essa estrada de poeira de ouro,
esse regato de leite da mitologia antiga se transformou num
vasto campo de inconcebíveis maravilhas. As pesquisas dos
observadores conduziram ao conhecimento da sua natureza e revelaram que, ali, onde o olhar errante apenas percebia uma fraca luminosidade, há milhões de sóis mais luminosos e mais importantes do que o que nos clareia a Terra.
33. Com efeito, a Via Láctea é uma campina matizada de
flores solares e planetárias, que brilham em toda a sua enorme extensão. O nosso Sol e todos os corpos que o acompanham fazem parte desse conjunto de globos radiosos que
formam a Via-Láctea. Malgrado, porém, às suas proporções gigantescas, relativamente à Terra, e à grandeza do
seu império, ele, o Sol, ocupa inapreciável lugar em tão
vasta criação. Podem contar-se por uma trintena de milhões os sóis que, à sua semelhança, gravitam nessa imensa região, afastados uns dos outros de mais de cem mil
vezes o raio da órbita terrestre.*
* Mais de 3 trilhões e 400 bilhões de léguas
.34. Por esse cálculo aproximativo se pode julgar da extensão de tal região sideral e da relação que existe entre o
nosso sistema planetário e a universalidade dos sistemas
que ela contém. Pode-se igualmente julgar da exiguidade
do domínio solar e,
a fortiori, do nada que é a nossa pequenina Terra. Que seria, então, se se considerassem os seres
que o povoam!
Digo — “do nada”— porque as nossas determinações
se aplicam não só à extensão material, física, dos corpos
que estudamos — o que pouco seria — mas, também e sobretudo, ao estado moral deles como habitação e ao grau
que ocupam na eterna hierarquia dos seres. A criação se
mostra aí em toda a sua majestade, engendrando e propagando, em torno do mundo solar e em cada um dos sistemas que o rodeiam por todos os lados, as manifestações da
vida e da inteligência.
35. Assim, fica-se conhecendo a posição que o nosso Sol
ou a Terra ocupam no mundo das estrelas. Ainda maior
peso ganharão estas considerações, se refletirmos sobre o
estado mesmo da Via Láctea que, na imensidade das criações siderais, não representa mais do que um ponto insensível e inapreciável, vista de longe, porquanto ela não é mais
do que uma nebulosa estelar, entre os milhões das que existem no espaço. Se ela nos parece mais vasta e mais rica do
que outras, é pela única razão de que nos cerca e se desenvolve em toda a sua extensão sob os nossos olhares, ao
passo que as outras, sumidas nas profundezas insondáveis, mal se deixam entrever.
36. Ora, sabendo-se que a Terra nada é, ou quase nada, no
sistema solar; que este nada é, ou quase nada, na
Via Láctea; esta por sua vez, nada, ou quase nada, na universalidade das nebulosas e essa própria universalidade bem
pouca coisa dentro do imensurável infinito, começa-se a
compreender o que é o globo terrestre.
As estrelas fixas.
37. As estrelas chamadas “fixas” e que constelam os dois
hemisférios do firmamento não se acham de todo isentas
de qualquer atração exterior, como geralmente se supõe.
Longe disso: elas pertencem todas a uma mesma aglomeração de astros estelares, aglomeração que não é senão a
grande nebulosa de que fazemos parte e cujo plano equatorial, projetado no céu, recebeu o nome de Via Láctea. Todos os sóis que a constituem são solidários; suas múltiplas
influências reagem perpetuamente umas sobre as outras e a
gravitação universal as grupa todas numa mesma família.
38. Esses diversos sóis estão, na sua maioria, como o nosso, cercados de mundos secundários, que eles iluminam e
fecundam por intermédio das mesmas leis que presidem à
vida do nosso sistema planetário. Uns, como Sírio, são milhares de milhões de vezes mais grandiosos e magnificentes
em dimensões e em riquezas do que o nosso e muito mais
importante é o papel que desempenham no universo. Também planetas em muito maior número e muito superiores
aos nossos os cercam. Outros são muito dessemelhantes
pelas suas funções astrais. É assim que certo número desses sóis, verdadeiros gêmeos da ordem sideral, são acompanhados de seus irmãos da mesma idade, e formam, no
espaço, sistemas binários, aos quais a natureza outorgou funções inteiramente diversas das que tocaram ao nosso
Sol*. Lá, os anos não se medem pelos mesmos períodos,
nem os dias pelos mesmos sóis e esses mundos, iluminados por um duplo facho, foram dotados de condições de
existência inimagináveis por parte dos que ainda não saíram deste pequenino mundo terrestre. Outros astros, sem cortejo, privados de planetas, receberam elementos de habitabilidade melhores do que os conferidos a qualquer dos demais. Na sua imensidade, as leis
da natureza se diversificam e, se a unidade é a grande expressão do universo, a variedade infinita é igualmente seu
eterno atributo.
*
É o a que se dá, em astronomia, o nome de “estrelas duplas”. São
dois sóis, um dos quais gira em torno do outro, como um planeta
em torno do seu sol. De que singular e magnífico espetáculo não
gozarão os habitantes dos mundos que formam esses sistemas
iluminados por duplo sol! Mas, também, quão diferentes não hão
de ser neles as condições da vitalidade!
Numa comunicação dada ulteriormente, acrescentou o Espírito
Galileu: “Há mesmo sistemas ainda mais complicados, em que diferentes sóis desempenham, uns com relação a outros, o papel de
satélites. Produzem-se então maravilhosos efeitos de luz, para os
habitantes dos globos que tais sóis iluminam, tanto mais quanto,
sem embargo da aparente proximidade em que se encontram uns
dos outros, podem mundos habitados circular entre eles e receber
alternativamente as ondas de luz diversamente coloridas, cuja
reunião recompõe a luz branca.”
39. Malgrado ao prodigioso número dessas estrelas e de
seus sistemas, malgrado as distâncias incomensuráveis que
as separam, elas pertencem todas à mesma nebulosa estelar
que os mais possantes telescópios mal conseguem atravessar e que as concepções da mais ousada imaginação apenas logram alcançar, nebulosa que, entretanto, é simplesmente uma unidade na ordem das nebulosas que compõem
o mundo astral.
40. As estrelas chamadas fixas não estão imóveis na
amplidão. As constelações que se figuraram na abóbada do
firmamento não são reais criações simbólicas. A
distância
a que se acham da Terra e a perspectiva sob a qual se mede,
da estação terrena, o universo, constituem as duas causas
dessa dupla ilusão de óptica. (Capítulo V, n.
o 12.)
41. Vimos que a totalidade dos astros que cintilam na
cúpula azulada se acha encerrada numa aglomeração cósmica, numa mesma nebulosa a que chamais Via Láctea.
Mas, por pertencerem todos ao mesmo grupo, não se segue
que esses astros não estejam animados todos de movimento de translação no espaço, cada um com o seu. Em parte
nenhuma existe o repouso absoluto. Eles têm a regê-los as
leis universais da gravitação e rolam no espaço ilimitado
sob a impulsão incessante dessa força imensa. Rolam, não
segundo roteiros traçados pelo acaso, mas segundo órbitas
fechadas, cujo centro um astro superior ocupa. Para
tornar, por meio de um exemplo, mais compreensíveis as
minhas palavras, falarei de modo especial do vosso Sol.
42. Sabe-se, em consequência de modernas observações,
que ele não é fixo, nem central, como se acreditava nos
primeiros tempos da nova astronomia; que avança pelo espaço, arrastando consigo o seu vasto sistema de planetas,
de satélites e de cometas. Ora, não é fortuita esta marcha e ele não vai, errando
pelos vácuos infinitos, transviar seus filhos e seus súditos,
longe das regiões que lhe estão assinadas. Não, sua órbita
é determinada e, em concorrência com outros sóis da mesma ordem e rodeados todos de certo número de terras habitadas, ele gravita em torno de um sol central. Seu movimento de gravitação, como o dos sóis seus irmãos, é
inapreciável a observações anuais, porque somente grande
número de períodos seculares seriam suficientes para
marcar um desses anos astrais.
43. O sol central, de que acabamos de falar, também é um
globo secundário relativamente a outro ainda mais importante, a cujo derredor ele perpetua uma marcha lenta e
compassada, na companhia de outros sóis da mesma
ordem.
Poderíamos comprovar esta subordinação sucessiva de
sóis a sóis, até sentirmos cansada a imaginação de subir
através de tal hierarquia, porquanto, não o esqueçamos,
em números redondos, uma trintena de milhões de sóis se
pode contar na Via Láctea, subordinados uns aos outros,
como rodas gigantescas de uma engrenagem imensa.
44. E esses astros, em números incontáveis, vivem vida
solidária. Assim como, na economia do vosso mundinho
terrestre, nada se acha isolado, também nada o está no universo incomensurável. De longe, ao olhar investigador do filósofo que pudesse
abarcar o quadro que o espaço e o tempo desdobram, esses
sistemas de sistemas pareceriam uma poeira de grãos de ouro levantada em turbilhão pelo sopro divino, que faz voem
nos céus os mundos siderais, como voam os grãos de areia
no dorso do deserto. Em parte nenhuma há imobilidade, nem silêncio, nem
noite! O grande espetáculo que então se nos desdobraria
ante os olhos seria a criação real, imensa e cheia da vida
etérea, que no seu formidável conjunto o olhar infinito do
Criador abrange. Mas, até aqui, temos falado de uma única nebulosa,
que com os milhões de sóis, e os seus milhões de terras
habitadas, forma apenas, como já o dissemos, uma ilha no
arquipélago infinito.
Os desertos do espaço.
45. Inimaginável deserto, sem limites, se estende para lá
da aglomeração de estrelas de que vimos de tratar, e a envolve. A solidões sucedem solidões e incomensuráveis planícies do vácuo se distendem pela amplidão em fora. Os
amontoados de matéria cósmica se encontram isolados no
espaço como ilhas flutuantes de enormíssimo arquipélago.
Se quisermos, de alguma forma, apreciar a distância enorme que separa o aglomerado de estrelas, de que fazemos
parte, dos outros aglomerados mais próximos, precisamos
saber que essas ilhas estelares se encontram disseminadas
e raras no vastíssimo oceano dos céus, e que a extensão
que as separa, umas das outras, é incomparavelmente maior
do que as que lhes medem as respectivas dimensões. Ora, a nebulosa estelar mede, como já vimos, em números redondos, mil vezes a distância das estrelas mais aproximadas, tomada por unidade essa distância, isto é,
alguns cem mil trilhões de léguas. A distância que existe
entre elas, sendo muito mais vasta, não poderia ser expressa por números acessíveis à compreensão do nosso espírito. Só a imaginação, em suas concepções mais altas, é capaz de transpor tão prodigiosa imensidade, essas solidões
mudas e baldas de toda aparência de vida, e de encarar, de
certa maneira, a ideia dessa infinidade relativa.
46. Todavia, o deserto celeste, que envolve o nosso universo sideral e que parece estender-se como sendo os afastados confins do nosso mundo astral, abrangem-no a visão e
o poder infinito do Altíssimo que, além desses céus dos
nossos céus, desenvolveu a trama da sua criação ilimitada.
47. Além de tão vastas solidões, com efeito, rebrilham mundos em sua magnificência, tanto quanto nas regiões acessíveis às investigações humanas; para lá desses desertos,
vagam, no éter límpido, esplêndidos oásis, que sem cessar
renovam as cenas admiráveis da existência e da vida. Sucedem-se lá os agregados longínquos de substância cósmica, que o profundo olhar do telescópio percebe através das
regiões transparentes do nosso céu e a que dais o nome de
nebulosas irresolúveis, as quais vos parecem ligeiras nuvens de poeira branca, perdidas num ponto desconhecido
do espaço etéreo. Lá se revelam e desdobram novos mundos, cujas condições variadas e diversas das que são peculiares ao vosso globo lhes dão uma vida que as vossas concepções não podem imaginar, nem os vossos estudos
comprovar. É lá que em toda a sua plenitude resplandece o
poder criador. Àquele que vem das regiões que o vosso sistema ocupa, outras leis se deparam em ação e cujas forças regem as manifestações da vida. E os novos caminhos que
se nos apresentam em tão singulares regiões abrem-nos
surpreendentes perspectivas.*
* Dá-se, em astronomia, o nome de nebulosas irresolúveis àquelas
em cujo seio ainda se não puderam distinguir as estrelas que as
compõem. Foram, a princípio, consideradas acervos de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos; hoje, porém,
geralmente se entende que essa aparência é devida ao afastamento e
que, com instrumentos bastante poderosos, todas seriam resolúveis.
Uma comparação familiar pode dar ideia, embora muito imperfeita, das nebulosas resolúveis: são os grupos de centelhas
projetadas pelas bombas dos fogos de artifício, no momento de explodirem. Cada uma dessas centelhas figurará uma estrela e o conjunto delas a nebulosa, ou grupo de estrelas reunidas num ponto
do espaço e submetidas a uma lei comum de atração e de movimento. Vistas de certa distância, mal se distinguem essas centelhas, tendo o grupo por elas formado a aparência de uma nuvenzinha
de fumaça. Não seria exata esta comparação, se se tratasse de
massas de matéria cósmica condensada.
A nossa Via Láctea é uma dessas nebulosas. Conta perto de 30
milhões de estrelas ou sóis que ocupam nada menos de algumas
centenas de trilhões de léguas de extensão e, entretanto, não é a
maior. Suponhamos uma média de 20 planetas habitados circulando em torno de cada sol: teremos 600 milhões de mundos só
para o nosso grupo.
Se nos pudéssemos transportar da nossa nebulosa para outra,
aí estaríamos como em meio da nossa Via Láctea, porém com um
céu estrelado de aspecto inteiramente diverso e este, malgrado às
suas dimensões colossais, nos pareceria, de longe, um pequenino
floco lenticular perdido no infinito. Mas, antes de atingirmos a nova
nebulosa, seríamos qual viajante que deixa uma cidade e percorre
vasto país inabitado, antes que chegue a outra cidade. Teríamos
transposto incomensuráveis espaços desprovidos de estrelas e de
mundos, o que Galileu denominou os desertos do espaço. À medida que avançássemos, veríamos a nossa nebulosa afastar-se atrás
de nós, diminuindo de extensão às nossas vistas, ao mesmo tempo
que, diante de nós, se apresentaria aquela para a qual nos dirigíssemos, cada vez mais distinta, semelhante à massa de centelhas de bomba de fogos de artifício. Transportando-nos pelo pensamento às regiões do espaço além do arquipélago da nossa nebulosa,
veremos em torno de nós milhões de arquipélagos semelhantes e
de formas diversas, contendo cada um milhões de sóis e centenas
de milhões de mundos habitados.
Tudo o que nos possa identificar com a imensidade da extensão
e com a estrutura do universo é de utilidade para a ampliação das ideias, tão restritas pelas crenças vulgares. Deus avulta aos
nossos olhos, à medida que melhor compreendemos a grandeza de
suas obras e nossa infimidade. Estamos longe, como se vê, da crença que a Gênese moisaica implantou e que fez da nossa pequenina,
imperceptível Terra, a criação principal de Deus e dos seus habitantes os únicos objetos da sua solicitude. Compreendemos a vaidade dos homens que crêem que tudo no universo foi feito para
eles e dos que ousam discutir a existência do Ente supremo. Dentro de alguns séculos, causará espanto que uma religião feita para
glorificar a Deus o tenha rebaixado a tão mesquinhas proporções e
que haja repelido, como concepção do espírito do mal, as descobertas que somente vieram aumentar a nossa admiração pela sua onipotência, iniciando-nos nos grandiosos mistérios da criação. Ainda
maior será o espanto, quando souberem que elas foram repelidas
porque emancipariam o espírito dos homens e tirariam a preponderância dos que se diziam representantes de Deus na Terra.
Eterna sucessão dos mundos.
48. Vimos que uma única lei, primordial e geral, foi outorgada ao universo, para lhe assegurar eternamente a estabilidade, e que essa lei geral nos é perceptível aos sentidos
por muitas ações particulares que nomeamos forças diretrizes da natureza. Vamos agora mostrar que a harmonia
do mundo inteiro, considerada sob o duplo aspecto da
eternidade e do espaço, é garantida por essa lei suprema.
49. Com efeito, se remontarmos à origem primária das primitivas aglomerações da substância cósmica, notaremos
que já então, sob o império dessa lei, a matéria sofre as
transformações necessárias, que levam do gérmen ao fruto
maduro, e que, sob a impulsão das diversas forças nascidas dessa lei, ela percorre a escala das revoluções periódicas. Primeiramente, centro fluídico dos movimentos; em
seguida, gerador dos mundos; mais tarde, núcleo central e
atrativo das esferas que lhe nasceram do seio. Já sabemos que essas leis presidem à história do Cosmo; o que agora importa saber é que elas presidem igualmente à destruição dos astros, porquanto a morte não é
apenas uma metamorfose do ser vivo, mas também uma
transformação da matéria inanimada. Se é exato dizer-se,
em sentido literal, que a vida só é acessível à foice da morte, não menos exato é dizer-se que para a substância é de
toda necessidade sofrer as transformações inerentes à sua
constituição.
50. Temos aqui um mundo que, desde o primitivo berço,
percorreu toda a extensão dos anos que a sua organização
especial lhe permitia percorrer. Extinguiu-se-lhe o foco interior da existência, seus elementos perderam a virtude inicial; os fenômenos da natureza, que reclamavam, para se
produzirem, a presença e a ação das forças outorgadas a
esse mundo, já não mais podem produzir-se, porque a alavanca da atividade delas já não dispõe do ponto de apoio
que lhe era indispensável. Ora, dar-se-á que essa terra extinta e sem vida vai continuar a gravitar nos espaços celestes, sem uma finalidade, e
passar como cinza inútil pelo turbilhão dos céus? Dar-se-á
permaneça inscrita no livro da vida universal, quando já se
tornou letra morta e vazia de sentido? Não. As mesmas leis
que a elevaram acima do caos tenebroso e que a galardoaram
com os esplendores da vida, as mesmas forças que a governaram durante os séculos da sua adolescência, que lhe firmaram os primeiros passos na existência e que a conduziram à idade madura e à velhice, vão também presidir à
desagregação de seus elementos constitutivos, a fim de os
restituir ao laboratório onde a potência criadora haure incessantemente as condições da estabilidade geral. Esses
elementos vão retornar à massa comum do éter, para se
assimilarem a outros corpos, ou para regenerarem outros
sóis. E a morte não será um acontecimento inútil, nem para
a Terra que consideramos, nem para suas irmãs. Noutras
regiões, ela renovará outras criações de natureza diferente
e, lá onde os sistemas de mundos se desvaneceram, em
breve renascerá outro jardim de flores mais brilhantes e
mais perfumadas.
51. Desse modo, a eternidade real e efetiva do universo se
acha garantida pelas mesmas leis que dirigem as operações do tempo. Desse modo, mundos sucedem a mundos,
sóis a sóis, sem que o imenso mecanismo dos vastos céus
jamais seja atingido nas suas gigantescas molas. Onde os vossos olhos admiram esplêndidas estrelas
na abóbada da noite, onde o vosso espírito contempla
irradiações magníficas que resplandecem nos espaços distantes, de há muito o dedo da morte extinguiu esses
esplendores, de há muito o vazio sucedeu a esses deslumbramentos e já recebem mesmo novas criações ainda desconhecidas. A distância imensa a que se encontram esses
astros, por efeito da qual a luz que nos enviam gasta milhares de anos a chegar até nós, faz com que somente
hoje recebamos os raios que eles nos enviaram longo tempo antes da criação da Terra e com que ainda os admiremos durante milhares de anos após a sua desaparição real.* Que são os seis mil anos da humanidade histórica,
diante dos períodos seculares? Segundos em vossos séculos. Que são as vossas observações astronômicas, diante do
estado absoluto do mundo? A sombra eclipsada pelo Sol.
*
Há aqui um efeito do tempo que a luz gasta para atravessar o espaço. Sendo de 70.000 léguas por segundo a sua velocidade, ela nos
chega do Sol em 8 minutos e 13 segundos. Daí resulta que, se um
fenômeno se passa na superfície do Sol, não o percebemos senão 8
minutos mais tarde e, pela mesma razão, ainda o veremos 8 minutos depois da sua cessação. Se, em virtude do seu afastamento, a
luz de uma estrela consome mil anos para nos chegar, só mil anos
depois da sua formação veremos essa estrela. (Veja-se, para explicação e descrição completa desse fenômeno, a
Revue spirite de
março e maio de 1867, págs. 93 e 151, resenha de Lumen, por
C. Flammarion.)52. Logo, reconheçamos, aqui como nos nossos outros estudos, que a Terra e o homem são nada em confronto com
o que existe e que as mais colossais operações do nosso
pensamento ainda se estendem apenas sobre um campo
imperceptível, diante da imensidade e da eternidade de um
universo que nunca terá fim. E, quando esses períodos da nossa imortalidade nos
houverem passado sobre as cabeças, quando a história atual
da Terra nos aparecer qual sombra vaporosa no fundo da
nossa lembrança; quando, durante séculos incontáveis,
houvermos habitado esses diversos degraus da nossa hierarquia cosmológica; quando os mais longínquos domínios das idades futuras tiverem sido por nós perlustrados em
inúmeras peregrinações, teremos diante de nós a sucessão
ilimitada dos mundos e por perspectiva a eternidade imóvel.
A vida universal.
53. Essa imortalidade das almas, tendo por base o sistema
do mundo físico, pareceu imaginária a certos pensadores
prevenidos; qualificaram-na ironicamente de imortalidade
viajora e não compreenderam que só ela é verdadeira ante
o espetáculo da criação. Entretanto, pode-se tornar
compreensível toda a sua grandeza, quase diríamos: toda a
sua perfeição.
54. Que as obras de Deus sejam criadas para o pensamento e a inteligência; que os mundos sejam moradas de seres
que as contemplam e lhes descobrem, sob o véu, o poder e
a sabedoria daquele que as formou, são questões que já
nos não oferecem dúvida; mas, que sejam solidárias as
almas que as povoam, é o que importa saber.
55. Com efeito, a inteligência humana encontra dificuldade em considerar esses globos radiosos que cintilam na
amplidão como simples massas de matéria inerte e sem
vida. Custa-lhe a pensar que não haja, nessas regiões distantes, magníficos crepúsculos e noites esplendorosas, sóis
fecundos e dias transbordantes de luz, vales e montanhas,
onde as produções múltiplas da natureza desenvolvam toda
a sua luxuriante pompa. Custa-lhe a imaginar, digo, que o
espetáculo divino em que a alma pode retemperar-se como
em sua própria vida, seja baldo da existência e carente de
qualquer ser pensante que o possa conhecer.
56. Mas, a essa ideia eminentemente justa da criação, faz-se mister acrescentar a da humanidade solidária e é nisso
que consiste o mistério da eternidade futura. Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e os laços de uma fraternidade que ainda
não sabeis apreciar foram postos a esses mundos.
Se os
astros que se harmonizam em seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não o são por seres desconhecidos
uns dos outros, mas, ao contrário, por seres que trazem marcado na fronte o mesmo destino, que se hão de encontrar
temporariamente, segundo suas funções de vida, e encontrar de novo, segundo suas mútuas simpatias.
É a grande
família dos Espíritos que povoam as terras celestes; é a
grande irradiação do Espírito divino que abrange a extensão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final
da perfeição espiritual.
57. Por que singular aberração se há podido crer fosse mister negar à imortalidade as vastas regiões do éter, quando a
encerravam dentro de um limite inadmissível e de uma
dualidade absoluta? O verdadeiro sistema do mundo deveria, então, preceder à verdadeira doutrina dogmática e a
Ciência preceder à Teologia? Esta se transviará tanto que
irá colocar sua base sobre a Metafísica? A resposta é fácil e
mostra que a nova filosofia se sentará triunfante nas ruínas da antiga, porque sua base se terá erguido vitoriosa
sobre os antigos erros.
Diversidade dos mundos.
58. Acompanhando-nos em nossas excursões celestes,
visitastes conosco as regiões imensas do espaço. Debaixo
das nossas vistas, os sóis sucederam aos sóis, os sistemas
aos sistemas, as nebulosas às nebulosas; diante dos nossos passos, desenrolou-se o panorama esplêndido da harmonia do Cosmo e antegozamos a ideia do infinito, que
somente de acordo com a nossa perfectibilidade futura poderemos compreender em toda a sua extensão. Os mistérios
do éter nos desvendaram o seu enigma até aqui indecifrável
e, pelo menos, concebemos a ideia da universalidade das
coisas. Cumpre que agora nos detenhamos a refletir.
59. É belo, sem dúvida, haver reconhecido quanto é ínfima
a Terra e medíocre a sua importância na hierarquia dos
mundos; é belo haver abatido a presunção humana, que
nos é tão cara, e nos termos humilhado ante a grandeza
absoluta; ainda mais belo, no entanto, será que interpretemos em sentido moral o espetáculo de que fomos testemunhas. Quero falar do poder infinito da natureza e da ideia
que devemos fazer do seu modo de ação nos diversos
domínios do vasto universo.
60. Acostumados, como estamos, a julgar das coisas pela
nossa insignificante e pobre habitação, imaginamos que a
natureza não pode ou não teve de agir sobre os outros
mundos, senão segundo as regras que lhe conhecemos na
Terra. Ora, precisamente neste ponto é que importa
reformemos a nossa maneira de ver. Lançai por um instante o olhar sobre uma região qualquer do vosso globo e sobre uma das produções da vossa
natureza. Não reconhecereis aí o cunho de uma variedade
infinita e a prova de uma atividade sem par? Não vedes na
asa de um passarinho das Canárias, na pétala de um botão
de rosa entreaberto a prestigiosa fecundidade dessa bela
natureza? Apliquem-se aos seres que adejam nos ares os vossos
estudos, desçam eles à violeta dos prados, mergulhem nas
profundezas do oceano, em tudo e por toda a parte lereis
esta verdade universal: A natureza onipotente age conforme os lugares, os tempos e as circunstâncias; ela é una em
sua harmonia geral, mas múltipla em suas produções;
brinca com um Sol, como com uma gota d’água; povoa de
seres vivos um mundo imenso com a mesma facilidade com
que faz se abra o ovo posto pela borboleta.
61. Ora, se é tal a variedade que a natureza nos há podido
evidenciar em todos os sítios deste pequeno mundo tão acanhado, tão limitado, quão mais ampliado não deveis considerar esse modo de ação, ponderando nas perspectivas dos
mundos enormes! Quão mais desenvolvida e pujante não a
deveis reconhecer, operando nesses mundos maravilhosos
que, muito mais do que a Terra, lhe atestam a inapreciável
perfeição! Não vejais, pois, em torno de cada um dos sóis do espaço, apenas sistemas planetários semelhantes ao vosso
sistema planetário; não vejais, nesses planetas desconhecidos, apenas os três reinos que se estadeiam ao vosso derredor. Pensai, ao contrário, que, assim como nenhum rosto
de homem se assemelha a outro rosto em todo o gênero
humano, também uma portentosa diversidade, inimaginável,
se acha espalhada pelas moradas eternas que vogam no
seio dos espaços. Do fato de que a vossa natureza animada começa no
zoófito para terminar no homem, de que a atmosfera alimenta a vida terrestre, de que o elemento líquido a renova
incessantemente, de que as vossas estações fazem se sucedam nessa vida os fenômenos que as distinguem, não
concluais que os milhões e milhões de terras que rolam
pela amplidão sejam semelhantes à que habitais. Longe
disso, aquelas diferem, de acordo com as diversas condições que lhes foram prescritas e de acordo com o papel que
a cada uma coube no cenário do mundo. São pedrarias
variegadas de um imenso mosaico, as diversificadas flores
de admirável parque.
Capítulo VII — Esboço geológico da Terra
Períodos geológicos.
1. A Terra conserva em si os traços evidentes da sua formação. Acompanham-se-lhe
as fases com precisão matemática, nos diferentes terrenos que lhe constituem o
arcabouço. O conjunto desses estudos forma a ciência chamada geologia, ciência
nascida deste século [XIX] e que projetou luz sobre a tão controvertida questão da
origem do globo terreno e da dos seres vivos que o habitam. Neste ponto, não há
simples hipótese; há o resultado rigoroso da observação dos fatos e, diante dos fatos,
nenhuma dúvida se justifica. A história da formação da Terra está escrita nas
camadas geológicas, de maneira bem mais certa do que nos livros preconcebidos,
porque é a própria natureza que fala, que se põe a nu, e não a imaginação dos
homens a criar sistemas. Desde que se notem traços de fogo, pode dizer-se com
certeza que houve fogo ali; onde se vejam os da água, pode dizer-se que a água ali
esteve; desde que se observem os de animais, pode dizer-se que viveram aí animais.
A geologia é, pois, uma ciência toda de observação; só tira deduções do
que vê; sobre os pontos duvidosos, nada afirma; não emite opiniões discutíveis, por
esperar de observações mais completas a solução procurada. Sem as descobertas da
geologia, como sem as da astronomia, a gênese do mundo ainda estaria nas trevas
da lenda. Graças a elas, o homem conhece hoje a história da sua habitação, tendo desmoronado, para não mais tornar a erguer-se, a estrutura de fábulas que lhe rodeavam o berço.
2. Em todos os terrenos onde existam valas, escavações naturais ou praticadas pelo
homem, nota-se o a que se chama estratificações, isto é, camadas superpostas. Os
que apresentam essa disposição se designam pelo nome de terrenos estratificados.
Essas camadas, de espessura que varia desde alguns centímetros até 100 metros e
mais, se distinguem entre si pela cor e pela natureza das substâncias de que se
compõem. Os trabalhos de arte, a perfuração de poços, a exploração de pedreiras e,
sobretudo, de minas, facultaram observá-las até grande profundidade.
3. São em geral homogêneas as camadas, isto é, cada uma constituída da mesma
substância, ou de substâncias diversas, mas que existiram juntas e formaram um
todo compacto. A linha de separação que as isola umas das outras é sempre
nitidamente sulcada, como nas fiadas de uma construção. Em nenhuma parte se
apresentam misturadas e sumidas umas nas outras, nos pontos de seus respectivos
limites, como se dá, por exemplo, com as cores do prisma e do arco-íris.
Por esses caracteres, reconhece-se que elas se formaram sucessivamente,
depositando-se uma sobre outra, em condições e por causas diferentes. As mais
profundas são, naturalmente, as que se formaram em primeiro lugar, tendo-se
formado posteriormente as mais superficiais. A última de todas, a que se acha na
superfície, é a camada da terra vegetal, que deve suas propriedades aos detritos de
matérias orgânicas provenientes das plantas e dos animais.
4. As camadas inferiores, colocadas abaixo da camada vegetal, receberam em
geologia o nome de rochas, palavra que, nessa acepção, nem sempre implica a ideia
de uma substância pedrosa, significando antes um leito ou banco feito de uma
substância mineral qualquer. Umas são formadas de areia, de argila ou de terra
argilosa, de marna, de seixos rolados; outras o são de pedras propriamente ditas,
mais ou menos duras, tais como os grés, os mármores, a cré, os calcáreos ou pedras
calcáreas, as pedras molares, ou carvões de pedra, os asfaltos, etc. Diz-se que uma
rocha é mais ou menos possante, conforme é mais ou menos considerável a sua
espessura.
Mediante o exame da natureza dessas rochas ou camadas, reconhece-se, por
sinais certos, que umas provêm de matérias fundidas e, às vezes, vitrificadas sob a
ação do fogo; outras, de substâncias terrosas depostas pelas águas; algumas de tais
substâncias se conservaram desagregadas, como as areias; outras, a princípio em
estado pastoso, sob a ação de certos agentes químicos ou por outras causas,
endureceram e adquiriram, com o tempo, a consistência da pedra. Os bancos de
pedras superpostas denunciam depósitos sucessivos. O fogo e a água participaram,
pois, da formação dos materiais que compõem o arcabouço sólido do globo
terráqueo.
5. A posição normal das camadas terrosas ou pedregosas, provenientes de depósitos
aquosos, é a horizontal. Ao vermos essas planícies imensas, que por vezes se
estendem a perder de vista, de perfeita horizontalidade, lisas como se as tivessem nivelado com um rolo compressor, ou esses vales profundos, tão planos como a
superfície de um lago, podemos estar certos de que, em época mais ou menos
afastada, tais lugares estiveram por longo tempo cobertos de águas tranquilas que, ao
se retirarem, deixaram em seco as terras que elas depositaram enquanto ali
permaneceram. Retiradas as águas, essas terras se cobriram de vegetação. Se, em
vez de terras gordas, limosas, argilosas, ou marnosas, próprias a assimilar os
princípios nutritivos, as águas apenas depositaram areias silicosas, sem agregação,
temos as planícies arenosas que constituem as charnecas e os desertos, dos quais nos
podem dar pequena ideia os depósitos que ficam das inundações parciais e os que
formam as aluviões na embocadura dos rios.
6. Conquanto a horizontal seja a posição mais generalizada e a que normalmente
assumem as formações aquosas, não é raro verem-se, nos países montanhosos e em
extensões bem grandes, rochas duras, cuja natureza indica que foram formadas em
posição inclinada e, até por vezes, vertical. Ora, como, segundo as leis de equilíbrio
dos líquidos e da gravidade, os depósitos aquosos somente em planos horizontais
podem formar-se, pois os que se formam sobre planos inclinados são arrastados
pelas correntes e pelo próprio peso para as baixadas, evidente se torna que tais
depósitos foram levantados por uma força qualquer, depois de se terem solidificado
ou transformado em pedras.
Destas considerações se pode concluir, com certeza, que todas as camadas
pedrosas que, provindo de depósitos aquosos, se encontram em posição
perfeitamente horizontal, foram formadas, durante séculos, por águas tranquilas e
que, todas as vezes que se achem em posição inclinada, o solo foi convulsionado e
deslocado posteriormente, por subversões gerais ou parciais, mais ou menos
consideráveis.
7. Um fato característico e da mais alta importância, pelo testemunho irrecusável
que oferece, consiste no existirem, em quantidades enormes, despojos fósseis de
animais e vegetais, dentro das diferentes camadas. Como esses despojos se
encontram até nas mais duras pedras, há de concluir-se que a existência de tais seres
é anterior à formação das aludidas pedras. Ora, se levarmos em conta o prodigioso
número de séculos que foram necessários para que se lhes produzisse o
endurecimento e para que elas alcançassem o estado em que se acham desde tempos
imemoriais, chega-se forçosamente à conclusão de que o aparecimento de seres
orgânicos na Terra se perde na noite das idades e é muito anterior, por conseguinte, à
data que lhes assina a gênese.*
*Fóssil, do latim fossilia, fossilis, derivado de fossa, e de fodere, cavar, escavar a terra, é uma palavra
que em geologia se emprega designando corpos ou despojos de corpos orgânicos de seres que viveram
anteriormente às épocas históricas. Por extensão, diz-se igualmente das substâncias minerais que revelam
traços da presença de seres organizados, quais as marcas deixadas por vegetais ou animais.
O termo petrificado se emprega relativamente aos corpos que se transformaram em pedra,
pela infiltração de matérias silicosas ou calcáreas nos tecidos orgânicos. Todas as petrificações
necessariamente são fósseis, mas nem todos os fósseis são petrificações.
Nos objetos que se revestem de uma camada pedregosa quando mergulhados em certas águas
carregadas de substâncias calcáreas, como as do regato de Saint Allyre, perto de Clermont, no Auvergne
(França), não são petrificações propriamente ditas, porém simples incrustações.
Os monumentos, inscrições e objetos produzidos por fabricação humana, esses pertencem à arqueologia.
8. Entre os despojos de vegetais e animais, alguns há que se mostram penetrados em
todos os pontos de sua substância, sem que isso lhes alterasse a forma, de matérias
silicosas ou calcáreas que os transformaram em pedras, algumas das quais
apresentam a dureza do mármore. São as petrificações propriamente ditas. Outros
foram apenas envolvidos pela matéria no estado de flacidez; são encontrados
intactos e, alguns, inteiros, nas mais duras pedras. Outros, finalmente, apenas
deixaram marcas, mas de uma nitidez e uma delicadeza perfeitas. No interior de
certas pedras, encontraram-se até marcas de passos e, pela forma do pé, dos dedos e
das unhas, chegou-se a reconhecer a espécie animal a que pertenceram.
9. Os fósseis de animais absolutamente não contêm, e isso é fácil de conceber-se,
senão as partes sólidas e resistentes, isto é, as ossaturas, as escamas e os cornos; são,
não raro, esqueletos completos; as mais das vezes, no entanto, são apenas partes
destacadas, mas cuja procedência facilmente se reconhece. Examinando-se uma
queixada, um dente, logo se vê se pertence a um animal herbívoro, ou carnívoro.
Como todas as partes do animal guardam necessária correlação, a forma da cabeça,
de uma omoplata, de um osso da perna, de um pé, basta para determinar o porte, a
forma geral, o gênero de vida do animal* . Os animais terrestres têm uma
organização que não permite sejam confundidos com os animais aquáticos.
São extremamente numerosos os peixes e os moluscos testáceos fósseis; só
estes últimos formam, às vezes, bancos inteiros de grande espessura. Pela natureza
deles, verifica-se sem dificuldade se são animais marinhos ou de água doce.
* No ponto a que Jorge Cuvier levou a ciência paleontológica, um só osso basta frequentemente para
determinar o gênero, a espécie, a forma de um animal, seus hábitos, e para o reconstruir todo inteiro.
10. Os seixos rolados, que em certos lugares formam rochas formidáveis, constituem
inequívoco indício da origem deles. São arredondados como os calhaus de beira
mar, sinal certo do atrito que sofreram, por efeito das águas. As regiões onde eles se
encontram enterrados, em massas consideráveis, foram incontestavelmente ocupadas
pelo oceano, ou, durante longo tempo, por outras águas movediças, ou
violentamente agitadas.
11. Além disso, os terrenos das diversas formações se caracterizam pela natureza
mesma dos fósseis que encerram. As mais antigas contêm espécies animais ou
vegetais que desapareceram inteiramente da superfície do planeta. Também
desapareceram algumas espécies mais recentes; conservaram-se, porém, outras
análogas, que apenas diferem daquelas pelo porte e por alguns matizes de forma.
Outras, finalmente, cujos últimos representantes ainda vemos, tendem
evidentemente a desaparecer em futuro mais ou menos próximo, tais como os
elefantes, os rinocerontes, os hipopótamos, etc. Assim à medida que as camadas
terrestres se aproximam da nossa época, as espécies animais e vegetais também se
aproximam das que hoje existem.
As perturbações, os cataclismos que se produziram na Terra, desde a sua
origem, lhe mudaram as condições de aptidão para entretenimento da vida e fizeram
desaparecessem gerações inteiras de seres vivos.
12. Interrogando-se a natureza das camadas geológicas, vem-se a saber, de modo
mais positivo, se, na época de sua formação, a região onde elas se apresentam era
ocupada pelo mar, pelos lagos, ou por florestas e planícies povoadas de animais
terrestres. Conseguintemente, se, numa mesma região, se encontra uma série de
camadas superpostas, contendo alternativamente fósseis marinhos, terrestres e de
água doce, muitas vezes repetidas, constitui esse fato prova irrecusável de que essa
região foi muitas vezes invadida pelo mar, coberta de lagos e posta a seco.
E quantos séculos de séculos, certamente, quantos milhares de séculos,
talvez, não foram precisos para que cada período se completasse! Que força
poderosa não foi necessária para deslocar e recolocar o oceano, levantar montanhas!
Por quantas revoluções físicas, comoções violentas não teve a Terra de passar, antes
de ser qual a vemos desde os tempos históricos! E querer-se que tudo isso fosse obra
executada em menos tempo do que o que leva uma planta para germinar!
13. O estudo das camadas geológicas atesta, como já se disse, formações sucessivas,
que mudaram o aspecto do globo e lhe dividem a história em muitas épocas, que
constituem os chamados períodos geológicos, cujo conhecimento é essencial para a
determinação da gênese. São em número de seis os principais, designados pelos
nomes de períodos primário, de transição, secundário, terciário, diluviano, pós
diluviano ou atual. Os terrenos formados durante cada período também se chamam:
terrenos primitivos, de transição, secundários, etc. Diz-se, pois, que tal ou tal
camada ou rocha, tal ou tal fóssil se encontram nos terrenos de tal ou tal período.
14. Cumpre se note que o número desses períodos não é absoluto, pois depende dos
sistemas de classificação. Nos seis principais, mencionados acima, só se
compreendem os que estão assinalados por uma mudança notável e geral no estado
do planeta; mas, a observação prova que muitas formações sucessivas se operaram,
enquanto durou cada um deles. Por isso é que são divididos em seis períodos
caracterizados pela natureza dos terrenos e que elevam a vinte e seis o número das
formações gerais bem assinaladas, sem contar os que provém de modificações
devidas a causas puramente locais.
Estado primitivo do globo.
15. O achatamento dos polos e outros fatos concludentes são indícios certos de que o
estado da Terra, na sua origem, deve ter sido o de fluidez ou de flacidez, estado esse
oriundo de se achar a matéria ou liquefeita pela ação do fogo, ou diluída pela da
água.
Costuma-se dizer, proverbialmente: não há fumaça sem fogo.
Rigorosamente verdadeira, esta sentença constitui uma aplicação do princípio: não
há efeito sem causa. Pela mesma razão, pode-se dizer: não há fogo sem um foco.
Ora, pelos fatos que se passam sob as nossas vistas, não é apenas fumaça o que se
produz na Terra, mas fogo bastante real, que há de ter um foco. Vindo esse fogo do
interior do planeta e não do alto, o foco lhe há de estar no interior e, como o fogo é
permanente, o foco também o há de ser.
O calor, cujo aumento é progressivo à medida que se penetra no interior da
Terra e que, a certa profundidade, chega a uma temperatura altíssima; as fontes
térmicas, tanto mais quentes, quanto mais profunda lhes está a nascente; os fogos e
as massas de matéria fundida esbraseada que os vulcões vomitam, como por vastos
respiradouros, ou pelas fendas que alguns tremores de terra abrem, não deixam
dúvida sobre a existência de um fogo interior.
16. A experiência demonstra que a temperatura se eleva de um grau a cada 30
metros de profundidade, donde se segue que, a uma profundidade de 300 metros, o
aumento é de 10 graus; a 3.000 metros, de 100 graus, temperatura da água a ferver; a
30.000 metros, ou seja, 7 ou 8 léguas, de 1.000 graus; a 25 léguas, de mais de 3.300
graus, temperatura a que nenhuma matéria conhecida resiste à fusão. Daí ao centro,
ainda há um espaço de mais de 1.400 léguas, ou 2.800 léguas em diâmetro, espaço
que seria ocupado por matérias fundidas.
Conquanto não haja aí mais do que uma conjetura, julgando da causa pelo
efeito, tem ela todos os caracteres da probabilidade e leva à conclusão de que a Terra
ainda é uma massa incandescente recoberta de uma crosta sólida da espessura de 25
léguas no máximo, o que é apenas a 120.
a parte do seu diâmetro. Proporcionalmente,
seria muito menos do que a espessura da mais delgada casca de laranja.
Aliás, é muito variável a espessura da crosta terrestre, porquanto há zonas,
sobretudo nos terrenos vulcânicos, onde o calor e a flexibilidade do solo indicam
que ela é pouco considerável. A elevada temperatura das águas termais constitui
igualmente indício de proximidade do foco central.
17. Assim sendo, evidente se torna que o primitivo estado de fluidez ou de flacidez
da Terra há de ter tido como causa a ação do calor e não a da água. Em sua origem,
pois, a Terra era uma massa incandescente. Em virtude da irradiação do calórico,
deu-se o que se dá com toda matéria em fusão: ela esfriou pouco a pouco,
principiando o resfriamento, como era natural, pela superfície, que então endureceu,
ao passo que o interior se conservou fluido. Pode-se assim comparar a Terra a um
bloco de carvão ao sair ígneo da fornalha e cuja superfície se apaga e resfria, ao
contacto do ar, mantendo-se-lhe o interior em estado de ignição, conforme se
verificará, quebrando-o.
18. Na época em que o globo terrestre era uma massa incandescente, não continha
nenhum átomo a mais, nem a menos do que hoje; apenas, sob a influência da alta
temperatura, a maior parte das substâncias que a compõem e que vemos sob a forma
de líquidos ou de sólidos, de terras, de pedras, de metais e de cristais se achavam em
estado muito diferente. Sofreram unicamente uma transformação. Em consequência
do resfriamento, os elementos formaram novas combinações. O ar, enormemente
dilatado, decerto se estendia a uma distância imensa; toda a água, forçosamente
transformada em vapor, se encontrava misturada com o ar; todas as matérias
suscetíveis de se volatilizarem, tais como os metais, o enxofre, o carbono, se
achavam em estado de gás. O da atmosfera nada tinha, portanto, de comparável ao
que é hoje; a densidade de todos esses vapores lhe dava uma opacidade que nenhum
raio de sol podia atravessar. Se nessa época um ser vivo pudesse existir na
superfície do planeta, apenas seria iluminado pelos revérberos sinistros da fornalha
que lhe estava sob os pés e da atmosfera esbraseada; ele nem sequer suspeitaria da
existência do Sol.
Período primário.
19. O primeiro efeito do resfriamento foi a solidificação da superfície exterior da
massa em fusão e a formação aí de uma crosta resistente que, delgada a princípio,
gradativamente se espessou. Essa crosta constitui a pedra chamada granito, de
extrema dureza, assim denominada pelo seu aspecto granuloso. Nela se distinguem
três substâncias principais: o feldspato, o quartzo ou cristal de rocha e a mica. Esta
última tem brilho metálico, embora não seja um metal.
A camada granítica foi, pois, a primeira que se formou no globo, é a que o
envolve por completo, constituindo de certo modo o seu arcabouço ósseo. É o
produto direto da consolidação da matéria fundida. Sobre ela e nas cavidades que
apresentava a sua superfície torturada foi que se depositaram sucessivamente as
camadas dos outros terrenos, posteriormente formados. O que a distingue destes
últimos é a ausência de toda e qualquer estratificação; quer dizer: ela forma uma
massa compacta e uniforme em toda a sua espessura, que não é disposta em
camadas. A efervescência da matéria incandescente havia de produzir nela
numerosas e profundas fendas, pelas quais essa mesma matéria extravasava.
20. O efeito seguinte do resfriamento foi a liquefação de algumas matérias contidas
no ar em estado de vapor, as quais se precipitaram na superfície do solo. Houve
então chuvas e lagos de enxofre e de betume, verdadeiros regatos de ferro, cobre,
chumbo e outros metais fundidos. Infiltrando-se pelas fissuras, essas matérias
constituíram os veios e filões metálicos.
Sob o influxo desses diversos agentes, a superfície granítica experimentou
alternativas decomposições. Produziram se misturas, que formaram os terrenos
primitivos propriamente ditos, distintos da rocha granítica, mas em massas confusas
e sem estratificação regular.
Vieram, a seguir, as águas que, caindo sobre um solo ardente, se
vaporizavam de novo, recaíam em chuvas torrenciais e assim sucessivamente, até
que a temperatura lhes facultou permanecerem no solo em estado líquido.
É a formação dos terrenos graníticos que dá começo à série dos períodos
geológicos, aos quais conviria se acrescentasse o do estado primitivo, de
incandescência do globo.
21. Tal o aspecto do primeiro período, verdadeiro caos de todos os elementos
confundidos, à procura de estabilização, período em que nenhum ser vivo podia
existir. Por isso mesmo, um de seus caracteres distintivos, em geologia, é a ausência
de qualquer vestígio de vida vegetal ou animal.
Impossível se torna assinar duração determinada a esse período, do mesmo
modo que aos que se lhe seguiram. Mas, dado o tempo que se faz mister para que
uma bala de determinado volume, aquecida até ao branco, se resfrie na superfície, ao
ponto de permitir que uma gota d’água possa sobre ela permanecer em estado
líquido, calculou-se que, se essa bala tivesse o tamanho da Terra, necessários seriam
mais de um milhão de anos.
Período de transição.
22. No começo do período de transição, ainda pequena era a espessura da sólida
crosta granítica, que, portanto, resistência muito fraca oferecia à efervescência das
matérias enfogadas que ela cobria e comprimia. Produziam-se, pois, intumescências,
despedaçamentos numerosos, por onde se escapava a lava interior. O solo
apresentava desigualdades pouco consideráveis.
As águas, pouco profundas, cobriam quase toda a superfície do globo, com
exceção das partes soerguidas, que, formando terrenos baixos, eram frequentemente
alagados.
O ar gradativamente se purgara das matérias mais pesadas,
temporariamente em estado gasoso, as quais, condensando-se por efeito do
resfriamento, se haviam precipitado na superfície do solo, sendo depois arrastadas e
dissolvidas pelas águas.
Quando se fala de resfriamento naquela época, deve-se entender essa
palavra em sentido relativo, isto é, em relação ao estado primitivo, porquanto a
temperatura ainda havia de ser ardente.
Os espessos vapores aquosos que se elevavam de todos os lados da imensa
superfície líquida, recaíam em chuvas copiosas e quentes, que obscureciam o ar.
Entretanto, os raios do Sol começavam a aparecer, através dessa atmosfera brumosa.
Uma das últimas substâncias de que o ar teve de expurgar se, por ser
gasoso o seu estado natural, foi o ácido carbônico, então um dos seus componentes.
23. Por essa época, entraram a formar-se as camadas de terrenos de sedimento,
depositadas pelas águas carregadas de limo e de matérias diversas, apropriadas à
vida orgânica.
Surgem aí os primeiros seres vivos do reino vegetal e do reino animal.
Deles se encontram vestígios, a princípio em número reduzido, porém, depois, cada
vez mais frequentes, à medida que se vai passando às camadas mais elevadas dessa
formação. É digno de nota que por toda parte a vida se manifesta, logo que lhe são
propícias as condições, nascendo cada espécie desde que se realizam as condições
próprias à sua existência.
24. Os primeiros seres orgânicos que apareceram na Terra foram os vegetais de
organização menos complicada, designados em botânica sob os nomes de
criptógamos, acotiledôneos, monocotiledôneos, isto é, liquens, cogumelos, musgos,
fetos e plantas herbáceas. Absolutamente, ainda se não veem árvores de tronco
lenhoso, mas, apenas, as do gênero palmeira, cuja haste esponjosa é análoga à das
ervas.
Os animais desse período, que apareceram em seguida aos primeiros
vegetais, eram exclusivamente marinhos: primeiramente, polipeiros, raiados,
zoófitos, animais cuja organização simples e, por assim dizer, rudimentar, se
aproxima, no máximo grau, da dos vegetais. Mais tarde, aparecem crustáceos e
peixes de espécies que já não existem.
25. Sob o império do calor e da umidade e em virtude do excesso de ácido carbônico
espalhado no ar, gás impróprio à respiração dos animais terrestres, mas necessário às
plantas, os terrenos expostos se cobriram rapidamente de uma vegetação pujante, ao
mesmo tempo que as plantas aquáticas se multiplicavam no seio dos pântanos.
Plantas que, nos dias atuais, são simples ervas de alguns centímetros, atingiam altura
e grossura prodigiosas. Assim é que havia florestas de fetos arborescentes de 8 a 10
metros de altura e de proporcional grossura. Licopódios (marroio, gênero de musgo),
do mesmo porte; cavalinhos*, de 4 a 5 metros, e cuja altura não passa hoje de um
metro, e uma infinidade de espécies que não mais existem. Pelos fins do período,
começam a aparecer algumas árvores do gênero conífero ou pinheiros.
* Planta dos pauis, vulgarmente chamada cavalinho ou cauda de cavalo.
26. Em consequência do deslocamento das águas, os terrenos que produziam essas
massas de vegetais foram submergidos, cobertos de novos sedimentos terrosos,
enquanto os que se achavam emersos se adornavam, a seu turno, de vegetação
semelhante. Houve assim muitas gerações de vegetais alternativamente aniquiladas e
renovadas. O mesmo não se deu com os animais que, sendo todos aquáticos, não
estavam sujeitos a essas alternativas.
Acumulados durante longa série de séculos, esses destroços formaram
camadas de grande espessura. Sob a ação do calor, da umidade, da pressão exercida,
pelos posteriores depósitos terrosos e, sem dúvida, de diversos agentes químicos,
dos gases, dos ácidos e dos sais produzidos pela combinação dos elementos
primitivos, aquelas matérias vegetais sofreram uma fermentação que as converteu
em hulha ou carvão de pedra. As minas de hulha são, pois, produto direto da
decomposição dos acervos de vegetais acumulados durante o período de transição. É
por isso que são encontrados em quase todas as regiões*.
* A turfa se formou da mesma maneira, pela decomposição dos amontoados de vegetais, em terrenos pantanosos; mas, com a diferença de que, sendo de formação muito mais recente e sem dúvida noutras
condições, ela não teve tempo de se carbonizar.
27. Os restos fósseis da pujante vegetação dessa época, achando-se hoje sob os gelos
das terras polares, tanto quanto na zona tórrida, segue-se que, uma vez que a
vegetação era uniforme, também a temperatura o havia de ser. Os polos, portanto,
não se achavam cobertos de gelo, como agora. É que, então, a Terra tirava de si
mesma o calor, do fogo central que aquecia de igual modo toda a camada sólida,
ainda pouco espessa. Esse calor era superior de muito ao que podia provir dos raios
solares, enfraquecidos, ao demais, pela densidade da atmosfera. Só mais tarde,
quando a ação do calor central se tornou muito fraca ou nula sobre a superfície
exterior do globo, a do Sol passou a preponderar e as regiões polares, que apenas
recebiam raios oblíquos, portadores de pequena quantidade de calor, se cobriram de
gelo. Compreende-se que na época de que falamos e ainda muito tempo depois, o
gelo era desconhecido na Terra. Deve ter sido muito longo esse período, a julgar pelo número e pela
espessura das camadas de hulha.*
* Na baía de Fundy (Nova Escócia), o sr. Lyell encontrou, numa camada de hulha de espessura de 400
metros, 68 níveis diferentes, apresentando traços evidentes de muitos solos de florestas, de cujas árvores
os troncos ainda estavam guarnecidos de suas raízes. (L. Figuier.)
Não dando mais de mil anos para a formação de cada um desses níveis, já teríamos 68.000
anos só para essa camada de hulha.
Período secundário.
28. Com o período de transição desaparecem a vegetação colossal e os animais que
caracterizavam a época, ou porque as condições atmosféricas já não fossem as
mesmas, ou porque uma série de cataclismos haja aniquilado tudo o que tinha vida
na Terra. É provável que as duas causas tenham contribuído para essa mudança, por
isso que, de um lado, o estudo dos terrenos que assinalam o fim desse período
comprova a ocorrência de grandes subversões oriundas de levantamentos e erupções
que derramaram sobre o solo grandes quantidades de lavas, e, de outro lado, porque
grandes mudanças se operaram nos três reinos.
29. O período secundário se caracteriza, sob o aspecto mineral, por numerosas e
fortes camadas que atestam uma formação lenta no seio das águas e marcam
diferentes épocas bem caracterizadas.
A vegetação é menos rápida e menos colossal que no período precedente,
sem dúvida em virtude da diminuição do calor e da umidade e de modificações
sobrevindas aos elementos constitutivos da atmosfera. Às plantas herbáceas e
polpudas, juntam-se as de caule lenhoso e as primeiras árvores propriamente ditas.
30. Ainda são aquáticos os animais, ou, quando nada, anfíbios, a vida vegetal
progride pouco na terra seca. Desenvolve-se no seio dos mares uma prodigiosa
quantidade de animais de conchas, devido à formação das matérias calcáreas.
Nascem novos peixes, de organização mais aperfeiçoada do que no período anterior.
Aparecem os primeiros cetáceos. Os mais característicos animais dessa época são os
reptis monstruosos, entre os quais se notam:
O ictiossauro, espécie de peixe lagarto que chegava a ter 10 metros de
comprido e cujas mandíbulas, prodigiosamente alongadas, eram armadas de 180
dentes. Sua forma geral lembra um pouco a do crocodilo, mas sem couraça
escamosa. Seus olhos tinham o volume da cabeça de um homem; possuía barbatanas como a baleia e, como esta, expelia água por aberturas próprias para isso.
O
plesiossauro, outro reptil marinho, tão grande quanto o ictiossauro, e cujo pescoço,
excessivamente longo, se dobrava, como o do cisne, e lhe dava a aparência de
enorme serpente ligada a um corpo de tartaruga. Tinha a cabeça do lagarto e os
dentes do crocodilo. Sua pele devia ser lisa, qual a do precedente, porquanto não se
lhe descobriu nenhum vestígio de escamas ou de concha.*
O teleossauro, que mais se aproxima dos crocodilos atuais, parecendo estes
um seu diminutivo. Como os últimos, tinha uma couraça escamosa e vivia, ao
mesmo tempo, na água e em terra. Seu talhe era de cerca de 10 metros, dos quais 3
ou 4 só para a cabeça. A boca tinha de abertura 2 metros.
O megalossauro, grande lagarto, espécie de crocodilo, de 14 a 15 metros de
comprimento. Essencialmente carnívoro, nutria-se de reptis, de pequenos crocodilos
e de tartarugas. Sua formidável mandíbula era armada de dentes em forma de lâmina
de podadeira, de gume duplo, recurvados para trás, de tal jeito que, uma vez
enterrados na presa, impossível se tornaria a esta desprender-se.
O iguanodonte, o maior dos lagartos que já apareceram na Terra. Tinha de
20 a 25 metros da cabeça à extremidade da cauda e sobre o focinho um chifre ósseo,
semelhante ao do iguano da atualidade, do qual parece que não diferia senão pelo
tamanho. O último tem apenas 1 metro de comprido. A forma dos dentes prova que
ele era herbívoro e a dos pés que era animal terrestre.
O pterodáctilo, animal estranho, do tamanho de um cisne, participando,
simultaneamente, do reptil pelo corpo, do pássaro pela cabeça e do morcego pela
membrana carnuda que lhe religava os dedos prodigiosamente longos. Essa
membrana lhe servia de paraquedas quando se precipitava sobre a presa do alto de
uma árvore ou de um rochedo. Não possuía bico córneo, como os pássaros, mas os
ossos das mandíbulas, do comprimento da metade do corpo e guarnecidos de dentes,
terminavam em ponta como um bico.
*
O primeiro fóssil deste animal foi descoberto na Inglaterra, em 1823. Depois, encontraram-se outros
na França e na Alemanha.
31. Durante esse período, que há de ter sido muito longo, como o atestam o número
e a pujança das camadas geológicas, a vida animal tomou enorme desenvolvimento
no seio das águas, tal qual se dera com a vegetação no período que findara. Mais
depurado e mais favorável à respiração, o ar começou a permitir que alguns animais
vivessem em terra. O mar se deslocou muitas vezes, mas sem abalos violentos. Com
esse período, desaparecem, por sua vez, aquelas raças de gigantescos animais
aquáticos, substituídos mais tarde por espécies análogas, de formas menos
desproporcionadas e de menor porte.
32. O orgulho levou o homem a dizer que todos os animais foram criados por sua
causa e para satisfação de suas necessidades. Mas, qual o número dos que lhe
servem diretamente, dos que lhe foi possível submeter, comparado ao número
incalculável daqueles com os quais nunca teve ele, nem nunca terá, quaisquer
relações? Como se pode sustentar semelhante tese, em face das inumeráveis espécies
que exclusivamente povoaram a Terra por milhares e milhares de séculos, antes que
ele aí surgisse, e que afinal desapareceram? Poder-se-á afirmar que elas foram
criadas em seu proveito? Entretanto, tinham todas a sua razão de ser, a sua utilidade.
Deus, decerto, não as criou por simples capricho da sua vontade, para dar a si
mesmo, em seguida, o prazer de as aniquilar, pois que todas tinham vida, instintos,
sensação de dor e de bem-estar. Com que fim ele o fez? Com um fim que há de ter
sido soberanamente sábio, embora ainda o não compreendamos. Certamente, um dia
será dado ao homem conhecê-lo, para confusão do seu orgulho; mas, enquanto isso
não se verifica, como se lhe ampliam as ideias ante os novos horizontes em que lhe é
permitido, agora, mergulhar a vista, em presença do imponente espetáculo dessa
criação, tão majestosa no seu lento caminhar, tão admirável na sua previdência, tão
pontual, tão precisa e tão invariável nos seus resultados!
Período terciário.
33. Com o período terciário nova ordem de coisas começa para a Terra. O estado da
sua superfície muda completamente de aspecto; modificam-se profundamente as
condições de vitalidade e se aproximam do estado atual. Os primeiros tempos desse
período se assinalam por uma interrupção da produção vegetal e animal; tudo revela
traços de uma destruição quase geral dos seres vivos, depois do que aparecem
sucessivamente novas espécies, cuja organização, mais perfeita, se adapta à natureza
do meio onde são chamados a viver.
34. Durante os períodos anteriores, a crosta sólida do globo, em virtude da sua
pequena espessura, apresentava, como já se disse, bem fraca resistência à ação do
fogo interior. Facilmente despedaçado, esse envoltório permitia que as matérias em
fusão se derramassem livremente pela superfície do solo. Outro tanto já não se deu
quando este ganhou certa espessura. Então, comprimidas de todos os lados, as
matérias esbraseadas, como a água em ebulição num vaso fechado, acabaram por
produzir uma espécie de explosão. Violentamente quebrada num sem número de
pontos, a massa granítica ficou crivada de fendas, como um vaso rachado. Ao longo
dessas fendas, a crosta sólida, levantada e deprimida, formou os picos, as cadeias de
montanhas e suas ramificações. Certas partes do envoltório não chegaram a ser
despedaçadas, foram apenas soerguidas, enquanto que, noutros pontos,
decalcamentos e escavações se produziram.
A superfície do solo tornou-se então muito desigual; as águas que, até
aquele momento, a cobriam de maneira quase uniforme na maior parte da sua
extensão, foram impelidas para os lugares mais baixos, deixando em seco vastos
continentes, ou cumes isolados de montanhas, formando ilhas.
Tal o grande fenômeno que se operou no período terciário e que
transformou o aspecto do globo. Ele não se produziu instantânea, nem
simultaneamente em todos os pontos, mas sucessivamente e em épocas mais ou
menos distanciadas.
35. Uma das primeiras consequências desses levantamentos foi, como já ficou dito,
a inclinação das camadas de sedimento, primitivamente horizontais e assim
conservadas onde quer que o solo não houvesse sofrido subversões. Foi, portanto, nos flancos e
nas proximidades das montanhas que essas inclinações mais se pronunciaram.
36. Nas regiões onde as camadas de sedimento conservaram a horizontalidade, para
se chegar às de formação primária, tem-se que atravessar todas as outras, até
considerável profundidade, ao cabo da qual se encontra inevitavelmente a rocha
granítica. Quando, porém, se ergueram em montanhas, aquelas camadas foram
levadas acima do seu nível normal, indo às vezes até a grande altura, de tal sorte
que, feito um corte vertical no flanco da montanha, elas se mostram em toda a sua
espessura e superpostas como as fiadas de uma construção.
É assim que a grandes elevações se encontram enormes bancos de conchas,
primitivamente formados no fundo dos mares. Está hoje perfeitamente comprovado
que em nenhuma época o mar há podido alcançar semelhantes alturas, visto que para
tanto não bastariam todas as águas existentes na Terra, ainda mesmo que fossem em
quantidade cem vezes maior.
Ter-se-ia, pois, de supor que a quantidade de água diminuiu e, então,
caberia perguntar o que fora feito da porção que desapareceu. Os levantamentos,
fato hoje incontestável, explicam de maneira lógica e rigorosa os depósitos marinhos
que se encontram em certas montanhas.*
*
Camadas de calcáreo conchífero foram encontradas nos Andes, América, a 5.000 metros acima do
nível do oceano.
37. Nos lugares onde o levantamento da rocha primitiva produziu completa
rasgadura do solo, quer pela rapidez do fenômeno, quer pela forma, altura e volume
da massa levantada, o granito foi posto a nu, qual um dente que irrompeu da
gengiva. Levantadas, quebradas e arrumadas, as camadas que o revestiam ficaram a
descoberto. É assim que terrenos pertencentes às mais antigas formações e que, na
posição primitiva, se achavam a grande profundidade, compõem hoje o solo de
certas regiões.
38. Deslocada por efeito dos soerguimentos, a massa granítica deixou nalguns sítios
fendas por onde se escapa o fogo interior e se escoam as matérias em fusão; os
vulcões, que são como que chaminés da imensa fornalha, ou, melhor, válvulas de
segurança que, dando saída ao excesso das matérias ígneas, preservam o globo de
comoções muito mais terríveis. Daí o poder dizer-se que os vulcões em atividade são
uma segurança para o conjunto da superfície do solo.
Da intensidade desse fogo é possível fazer-se ideia, ponderando-se que no
seio mesmo dos mares se abrem vulcões e que a massa de água que os recobre e neles
penetra não consegue extingui-los.
39. Os levantamentos operados na massa sólida necessariamente deslocaram as
águas, sendo estas impelidas para as partes côncavas, que ao mesmo tempo se haviam tornado mais profundas pela elevação dos terrenos emergidos e pela
depressão de outros. Mas, esses terrenos tornados baixos, levantados por sua vez ora
num ponto, ora noutro, expulsaram as águas, que refluíram para outros lugares e
assim por diante, até que houvessem podido tomar um leito mais estável.
Os sucessivos deslocamentos dessa massa líquida forçosamente
trabalharam e torturaram a superfície do solo. As águas, escoando-se, arrastaram
consigo uma parte dos terrenos de formações anteriores, postos a descoberto pelos
levantamentos, desnudaram algumas montanhas que eles cobriam e lhes deixaram à
mostra a base granítica ou calcárea. Profundos vales foram cavados, enquanto outros
eram aterrados.
Há, pois, montanhas diretamente formadas pelo fogo central:
principalmente as graníticas; outras, devidas à ação das águas que, arrastando as
terras móveis e as matérias solúveis, cavaram vales em torno de uma base resistente,
calcárea, ou de outra natureza.
As matérias carreadas pelas correntes d’água formaram as camadas do
período terciário, que facilmente se distinguem das dos precedentes, menos pela
composição, que é quase a mesma, do que pela disposição.
As camadas dos períodos primário, de transição e secundário, formadas
sobre uma superfície pouco acidentada, são mais ou menos uniformes na Terra toda;
as do período terciário, formadas, ao invés, sobre base muito desigual e pela ação
carreadora das águas, apresentam caráter mais local. Por toda parte, fazendo-se
escavações de certa profundidade, encontram-se todas as camadas anteriores, na
ordem em que se formaram, ao passo que não se encontra por toda parte o terreno
terciário, nem todas as suas camadas.
40. Durante os reviramentos do solo, ocorridos no princípio deste período, a vida
orgânica, como é fácil de conceber-se, teve que ficar estacionária por algum tempo,
o que se reconhece examinando terrenos baldos de fósseis. Desde, porém, que
sobreveio um estado mais calmo, reapareceram os vegetais e os animais. Estando
mudadas as condições de vitalidade, mais depurada a atmosfera, formaram-se novas
espécies, com organização mais perfeita. As plantas, sob o ponto de vista da
estrutura, diferem pouco das de hoje.
41. No correr dos dois períodos precedentes, eram pouco extensos os terrenos que as
águas não cobriam; eram, ainda assim, pantanosos e com frequência ficavam
submersos. Essa a razão por que só havia animais aquáticos ou anfíbios. O período
terciário, em o qual vários continentes se formaram, caracterizou-se pelo
aparecimento dos animais terrestres.
Assim como o período de transição assistiu ao nascimento de uma
vegetação colossal, o período secundário ao de reptis monstruosos, também o
terciário presenciou o de gigantescos mamíferos, quais o elefante, o rinoceronte, o
hipopótamo, o paleotério, o megatério, o dinotério, o mastodonte, o mamute, etc.
Estes dois últimos, variedades do elefante, tinham de 5 a 6 metros de altura e suas
defesas chegavam a 4 metros de comprimento. Também assistiu, esse período, ao
nascimento dos pássaros, bem como à maioria das espécies animais que ainda hoje
existem. Algumas, das dessa época, sobreviveram aos cataclismos posteriores;
outras, qualificadas genericamente de animais antediluvianos, desapareceram
completamente, ou foram substituídas por espécies análogas, de formas menos
pesadas e menos maciças, cujos primeiros tipos foram como que esboços. Tais o
“felis speloea”, animal carnívoro do tamanho de um touro, com os caracteres
anatômicos do tigre e do leão; o “cervus megaceron”, variedade do cervo, cujos
chifres, compridos de 3 metros, eram espaçados de 3 a 4 nas extremidades.
Período diluviano.
42. Este período teve a assinalá-lo um dos maiores cataclismos que revolveram o
globo, cuja superfície ele mudou mais uma vez de aspecto, destruindo uma
imensidade de espécies vivas, das quais apenas restam despojos. Por toda a parte
deixou traços que atestam a sua generalidade. As águas, violentamente arremessadas
fora dos respectivos leitos, invadiram os continentes, arrastando consigo as terras e
os rochedos, desnudando as montanhas, desarraigando as florestas seculares. Os
novos depósitos que elas formaram são designados, em geologia, pelo nome de
terrenos diluvianos.
43. Um dos vestígios mais significativos desse grande desastre são os penedos
chamados blocos erráticos. Dá-se essa denominação a rochedos de granito que se
encontram isolados nas planícies, repousando sobre terrenos terciários e no meio de
terrenos diluvianos, algumas vezes a muitas centenas de léguas das montanhas
donde foram arrancados. É claro que só a violência das correntes há podido
transportá-los a tão grandes distâncias.*
*Um desses blocos, evidentemente provindo, pela sua composição, das montanhas da Noruega, serve de
pedestal à estátua de Pedro, o Grande, em S. Petersburgo.
44. Outro fato não menos característico e cuja causa se não descobriu ainda é que só
nos terrenos diluvianos se encontram os primeiros aerólitos. Pois que somente nessa
época eles começaram a cair, segue-se que anteriormente não existia a causa que os
produz.
45. Foi também por essa época que os polos começaram a cobrir-se de gelo e que se
formaram as geleiras das montanhas, o que indica notável mudança na temperatura
da Terra, mudança que deve ter sido súbita, porquanto, se se houvesse operado
gradualmente, os animais, como os elefantes, que hoje só vivem nos climas quentes
e que são encontrados em tão grande número no estado fóssil nas terras polares,
teriam tido de retirar-se pouco a pouco para as regiões mais temperadas. Tudo
denota, ao contrário, que eles provavelmente foram colhidos de surpresa por um
grande frio e sitiados pelos gelos.*
*
Em 1771, o naturalista russo Pallas encontrou nos gelos do Norte o corpo inteiro de um mamute
revestido da pele e conservando parte das suas carnes. Em 1799, descobriu-se outro, igualmente
encerrado num enorme bloco de gelo, na embocadura do Lena, na Sibéria, e que foi descrito pelo
naturalista Adams. Os iacutos das circunvizinhanças lhe despedaçaram as carnes para alimentar seus cães.
A pele se achava coberta de pêlos negros e o pescoço guarnecia o espessa crina. A cabeça sem as
defesas, que mediam mais de 4 metros, pesava mais de 200 quilos. Seu esqueleto está no museu de S.
Petersburgo. Nas ilhas e nas bordas do mar glacial encontra se tão grande quantidade de defesas, que
elas fazem objeto de considerável comércio, sob o nome de marfim fóssil ou da Sibéria.
46. Esse foi, pois, o verdadeiro dilúvio universal. Dividem se as opiniões
relativamente às causas que devam tê-lo produzido. Quaisquer, porém, que elas
sejam, o que é certo é que o fato se deu.
A suposição mais generalizada é a de que uma brusca mudança sofreu a
posição do eixo e dos pólos da Terra; daí uma projeção geral das águas sobre a
superfície. Se a mudança se houvesse processado lentamente, a retirada das águas
teria sido gradual, sem abalos, no passo que tudo indica uma comoção violenta e
inopinada. Ignorando qual a verdadeira causa, temos que ficar no campo das
hipóteses.
O deslocamento repentino das águas também pode ter ocasionado o
levantamento de certas partes da crosta sólida e a formação de novas montanhas
dentro dos mares, conforme se verificou em começo do período terciário. Mas, além
de que, então, o cataclismo não teria sido geral, isso não explicaria a mudança
subitânea da temperatura dos polos.
47. Na tormenta determinada pelo deslocamento das águas, pereceram muitos
animais; outros, a fim de escaparem à inundação, se retiraram para os lugares altos,
para as cavernas e fendas, onde sucumbiram em massa, ou de fome, ou
entredevorando-se, ou, ainda, talvez, pela irrupção das águas nos sítios onde se
tinham refugiado e donde não puderam fugir. Assim se explica a grande quantidade
de ossadas de animais diversos, carnívoros e outros, que são encontrados de mistura
em certas cavernas, que por essa razão foram chamadas brechas ou cavernas
ossosas. São encontradas as mais das vezes sob as estalagmites. Nalgumas, as
ossadas parecem ter sido arrastadas para ali pela correnteza das águas.*
*
Conhece-se grande número de cavernas semelhantes, algumas de enorme extensão. Várias existem, no
México, de muitas léguas. A de Aldesberg, em Carniola (Áustria), tem nada menos de três léguas. Uma
das mais notáveis é a de Gailenreuth, no Würtemberg. Há muitas delas na França, na Inglaterra, na
Alemanha, na Itália (Sicília) e outros países da Europa.
Período pós-diluviano ou atual. Nascimento do homem.
48. Uma vez restabelecido o equilíbrio na superfície do planeta, prontamente a vida
vegetal e animal retomou o seu curso. Consolidado, o solo assumiu uma colocação
mais estável; o ar, purificado, se tornara apropriado a órgãos mais delicados. O Sol,
brilhando em todo o seu esplendor através de uma atmosfera límpida, difundia, com
a luz, um calor menos sufocante e mais vivificador do que o da fornalha interna. A
Terra se povoava de animais menos ferozes e mais sociáveis; mais suculentos, os
vegetais proporcionavam alimentação menos grosseira; tudo, enfim, se achava
preparado no planeta para o novo hóspede que o viria habitar. Apareceu então o
homem, último ser da criação, aquele cuja inteligência concorreria, dali em diante,
para o progresso geral, progredindo ele próprio.
49. O homem só terá existido na Terra depois do período diluviano, ou terá surgido
antes dessa época? Questão é esta muito controvertida hoje, mas cuja solução, seja
qual for, nada mudará no conjunto dos fatos verificados, nem fará que o
aparecimento da espécie humana não seja anterior, de muitos milhares de anos, à
data que lhe assina a Gênese bíblica.
O que fez se supusesse que o advento dos homens ocorreu posteriormente
ao dilúvio foi o fato de se não ter achado vestígio autêntico da sua existência no
período anterior. As ossadas descobertas em diversos lugares e que geraram a crença
na existência de uma raça de gigantes antediluvianos foram reconhecidas como de
elefantes.
O que está fora de dúvida é que não existia o homem, nem no período
primário, nem no de transição, nem no secundário, não só porque nenhum traço dele
se descobriu, como também porque não havia para ele condições de vitalidade. Se o
seu aparecimento se deu no terciário, só pode ter sido no fim do período e bem
pouco então se há de ele ter multiplicado.
Ao demais, por haver sido curto, o período antediluviano não determinou
mudanças notáveis nas condições atmosféricas, tanto que eram os mesmos os
animais, antes e depois dele; não é, pois, impossível que o aparecimento do homem
tenha precedido esse grande cataclismo; está hoje comprovada a existência do
macaco naquela época e recentes descobertas parecem confirmar a do homem.*
Como quer que seja, tenha o homem aparecido ou não antes do grande
dilúvio universal, o que é certo é que o seu papel humanitário somente no período
pósdiluviano começou a esboçar-se. Pode-se, portanto, considerar caracterizado
pela sua presença esse período.
*
Veja-se: "O homem antediluviano", por Boucher de Perthes. — "Os instrumentos de pedra", idem. — "Discurso sobre as revoluções do globo", por Jorge Cuvier, anotado pelo Dr. Hoefer.
Capítulo VIII — Teorias sobre a formação da Terra
Teoria da projeção.
1. De todas as teorias concernentes à origem da Terra, a que alcançou maior voga,
nestes últimos tempos, é a de Buffon, quer pela posição que ele desfrutava no mundo
sábio, quer pela razão de não se saber mais do que ele disse naquela época.
Vendo que todos os planetas se movem na mesma direção, do ocidente para
o oriente, e no mesmo plano, a percorrer órbitas cuja inclinação não passa de 7 graus
e meio, concluiu Buffon, dessa uniformidade, que eles hão de ter sido postos em
movimento pela mesma causa.
De igual ponto de vista, formulou a suposição de que, sendo o Sol uma
massa incandescente em fusão, um cometa se haja chocado com ele e, raspando-lhe
a superfície, tenha destacado desta uma porção que, projetada no espaço pela
violência do choque, se dividiu em muitos fragmentos, formando esses fragmentos
os planetas, que continuaram a mover-se circularmente, pela combinação das forças
centrífuga e centrípeta, no sentido dado pela direção do choque primitivo, isto é, no
plano da elíptica.
Os planetas seriam assim partes da substância incandescente do Sol e, por
conseguinte, também teriam sido incandescentes, em sua origem. Levaram para se
resfriar e consolidar tempo proporcionado aos seus volumes respectivos e, quando a
temperatura o permitiu a vida lhes despontou na superfície.
Em virtude do gradual abaixamento do calor central, a Terra chegaria, ao
cabo de certo tempo, a um estado de resfriamento completo; a massa líquida se congelaria inteiramente e o ar, cada vez mais condensado, acabaria por desaparecer.
O abaixamento da temperatura, tornando impossível a vida, acarretaria a diminuição,
depois o desaparecimento de todos os seres organizados. Tendo começado pelos
polos, o resfriamento ganharia pouco a pouco todas as regiões, até ao Equador.
Tal, segundo Buffon, o estado atual da Lua que, menor do que a Terra, seria
hoje um mundo extinto, do qual a vida se acha para sempre excluída. O próprio Sol
viria a ter, afinal, a mesma sorte. De acordo com os seus cálculos, a Terra teria gasto
cerca de 74.000 anos para chegar à sua temperatura atual e dentro de 93.000 anos
veria o termo da existência da natureza organizada.
2. A teoria de Buffon, contraditada pelas novas descobertas da ciência, está
presentemente abandonada, quase de todo, pelas razões seguintes:
1.o. Durante longo tempo, acreditou-se que os cometas eram corpos sólidos,
cujo encontro com um planeta podia ocasionar a destruição deste último. Nessa
hipótese, a suposição de Buffon nada tinha de improvável. Sabe-se, porém, agora,
que os cometas são formados de uma matéria gasosa, bastante rarefeita, entretanto,
para que se possam perceber estrelas de grandeza média através de seus núcleos.
Nessas condições, oferecendo menos resistência do que o Sol, impossível é que,
num choque violento com este, eles sejam capazes de arremessar ao longe qualquer
porção da massa solar.
2.o. A natureza incandescente do Sol é também uma hipótese, que nada, até
ao presente, confirma, que, ao contrário, as observações parecem desmentir. Se bem
ainda não haja certeza quanto à sua natureza, os poderosos meios de observação de
que hoje dispõe a ciência hão permitido que ele seja melhor estudado, de modo a
admitir-se, em geral, que é um globo composto de matéria sólida, cercada de uma
atmosfera luminosa, ou fotosfera, que não se acha em contacto com a sua
superfície.*
3.o. Ao tempo de Buffon, somente se conheciam os seis planetas de que os
antigos eram conhecedores: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno.
Descobriram-se depois outros em grande número, três dos quais, principalmente,
Juno, Ceres e Palas, têm suas órbitas inclinadas de 13, 10 e 34 graus, o que não
concorda com um movimento único de projeção.**
4.o. Reconheceram-se absolutamente inexatos os cálculos de Buffon acerca
do resfriamento, desde que Fourier descobriu a lei do decrescimento do calor. A
Terra não precisou apenas de 74.000 anos para chegar à sua temperatura atual, mas
de alguns milhões de anos.
5.o. Buffon unicamente considerou o calor central da Terra, sem levar em
conta o dos raios solares. Ora, é sabido hoje, em presença de dados científicos de
rigorosa precisão, obtidos pela experiência, que, em virtude da espessura da crosta
terrestre, o calor interno do globo não contribui, de há muito, senão em parcela
insignificante, para a temperatura da superfície exterior. São periódicas as variações
que essa temperatura sofre e devidas à ação preponderante do calor solar (cap. VII,
n.
o 25). Permanente que é o efeito dessa causa, ao passo que o do calor central é nulo,
ou quase nulo, a diminuição deste não pode trazer à superfície da Terra sensíveis
modificações. Para que a Terra se tornasse inabitável pelo resfriamento, fora
necessária a extinção do Sol. ***
* Completa dissertação, à altura da ciência moderna, sobre a natureza do Sol e dos cometas, se encontra
nos "Estudos e leituras sobre a Astronomia", de Camilo Flammarion
** Nota constante na edição da FEB Editora: Os planetóides Juno, Ceres e Palas, bem como centenas de outros, estão localizados
entre as órbitas de Júpiter e Marte.
*** Vejam-se, para maiores esclarecimentos sobre este assunto e sobre a lei do decrescimento do calor: "Cartas acerca das revoluções do globo", pelo Dr. Bertrand, ex-aluno da Escola Politécnica de Paris, carta
II. — Esta obra, à altura da ciência moderna, escrita com simplicidade e sem espírito de sistema, encerra
um estudo geológico de grande interesse.
Teoria da condensação.
3. A teoria da formação da Terra pela condensação da matéria cósmica é a que hoje
prevalece na ciência, como sendo a que a observação melhor justifica, a que resolve
maior número de dificuldades e que se apoia, mais do que todas as outras, no grande
princípio da unidade universal. É a que deixamos exposta acima, no cap. VI, "Uranografia geral".
Estas duas teorias, como se vê, conduzem ao mesmo resultado: estado
primitivo, de incandescência, do globo; formação de uma crosta sólida pelo
resfriamento; existência do fogo central e aparecimento da vida orgânica, logo que a
temperatura a tornou possível. Diferem, no entanto, em pontos essenciais e é
provável que, se Buffon vivesse atualmente, adotaria outras ideias.
A geologia toma a Terra no ponto em que é possível a observação direta.
Seu estado anterior, por escapar à observação, só pode ser conjetural. Ora, entre duas
hipóteses, o bom senso diz que se deve preferir a que a lógica sanciona e que mais
acorde se mostra com os fatos observados.
Teoria da incrustação.
4. Apenas por não deixar de mencioná-la, falamos desta teoria, que nada tem de
científica, mas, que, entretanto, conseguiu certa repercussão nos últimos tempos e
seduziu algumas pessoas. Acha-se resumida na carta seguinte:
“Deus, segundo a Bíblia, criou o mundo em seis dias, quatro mil anos antes
da era cristã. Essa afirmativa os geólogos a contestam, firmados no estudo dos
fósseis e dos milhares de caracteres incontestáveis de vetustez que transportam a
origem da Terra a milhões de anos. Entretanto, a Escritura disse a verdade e também
os geólogos. E foi um simples campônio* quem os pôs de acordo ensinando que o
nosso globo não é mais do que um planeta incrustativo, muito moderno, composto
de materiais muito antigos.
“Após o arrebatamento do planeta desconhecido, que chegara à maturidade,
ou de harmonia com o que existiu no lugar que hoje ocupamos, a alma da Terra
recebeu ordem de reunir seus satélites, para formar a Terra atual, segundo as regras
do progresso em tudo e por tudo. Quatro apenas desses astros concordaram com a associação que lhes era proposta. Só a Lua persistiu na sua autonomia, visto que
também os globos têm o seu livre arbítrio. Para proceder a essa fusão, a alma da
Terra dirigiu aos satélites um raio magnético atrativo, que pôs em estado cataléptico
todo o mobiliário vegetal, animal e hominal que eles possuíam e que trouxeram para
a comunidade. A operação teve por únicas testemunhas a alma da Terra e os grandes
mensageiros celestes que a ajudaram nessa grande obra, abrindo aqueles globos para
lhes dar entranhas comuns. Praticada a soldadura, as águas se escoaram para os
vazios que a ausência da Lua deixara. As atmosferas se confundiram e começou o
despertar ou a ressurreição dos germens que estavam em catalepsia. O homem foi o
último a ser tirado do estado de hipnotismo e se viu cercado da luxuriante vegetação
do paraíso terrestre e dos animais que pastavam em paz ao seu derredor. Tudo isto se
podia fazer em seis dias, com obreiros tão poderosos como os que Deus encarregara
da tarefa. O planeta Ásia trouxe a raça amarela, a de civilização mais antiga; o África
a raça negra; o Europa a raça branca e o América a raça vermelha.
“Assim, certos animais, de que apenas os despojos são encontrados, nunca
teriam vivido na Terra atual, mas teriam sido transportados de outros mundos
desmanchados pela velhice. Os fósseis, que se encontram em climas sob os quais
não teriam podido existir neste mundo, viviam sem dúvida em zonas muito
diferentes nos globos onde nasceram. Tais despojos na Terra se encontram nos
pólos, ao passo que os animais viviam no Equador dos globos a que pertenciam.”
*
Miguel de Figagnères (Var), autor da Chave da Vida.
5. Esta teoria tem contra si os mais positivos dados da ciência experimental, além de
que deixa intacta a questão mesma que ela pretende resolver, a questão da origem.
Diz, é certo, como a Terra se teria formado, mas não diz como se formaram os
quatro mundos que se reuniram para constituí-la.
Se as coisas se houvessem passado assim, como se explicaria a inexistência
absoluta de quaisquer vestígios daquelas imensas soldaduras, não obstante terem ido
até às entranhas do globo? Cada um daqueles mundos, o Ásia, o África, o Europa e
o América, que se pretende haverem trazido os materiais que lhes eram próprios,
teria uma geologia particular, diferente da dos demais, o que não é exato. Ao
contrário, vê-se, primeiramente, que o núcleo granítico é uniforme, de composição
homogênea em todas as partes do globo, sem solução de continuidade. Depois, as
cama das geológicas se apresentam de formação igual, idênticas quanto à constituição, superpostas, em toda parte, na mesma ordem, contínuas, sem
interrupção, de um lado a outro dos mares, da Europa à Ásia, à África, à América, e
reciprocamente. Essas camadas que dão testemunho das transformações do globo,
atestam que tais transformações se operaram em toda a sua superfície e não, apenas,
numa porção desta; mostram os períodos de aparecimento, existência, e
desaparecimento das mesmas espécies animais e vegetais, nas diferentes partes do
mundo, igualmente; mostram a fauna e a flora desses períodos recuados a
marcharem simultaneamente por toda parte, sob a influência de uma temperatura
uniforme, e a mudar por toda parte de caráter, à medida que a temperatura se
modifica. Semelhante estado de coisas não se concilia com a formação da Terra por
adjunção de muitos mundos diferentes.
Ao demais, é de perguntar-se o que teria sido feito do mar, que ocupa o
vazio deixado pela Lua, se esta não se houvesse recusado a reunir-se às suas irmãs.
Que aconteceria à Terra atual, se um dia a Lua tivesse a fantasia de vir tomar o seu
lugar, expulsando deste o mar?
6. Semelhante sistema seduziu algumas pessoas, porque parecia explicar a presença
das diferentes raças de homens na Terra e a localização delas. Mas, uma vez que
essas raças puderam proliferar em mundos distintos, por que não teriam podido
desenvolver-se em pontos diversos do mesmo globo? É querer resolver uma
dificuldade por meio de outra dificuldade maior. Efetivamente, quaisquer que
fossem a rapidez e a destreza com que a operação se praticasse, aquela junção não
se houvera podido realizar sem violentos abalos. Quanto mais rápida ela fosse, tanto
mais desastrosos haviam de ser os cataclismos. Parece, pois, impossível que seres
apenas mergulhados em sono cataléptico hajam podido resistir-lhes, para, em
seguida, despertarem tranquilamente. Se fossem unicamente germens, em que
consistiriam? Como é que seres inteiramente formados se reduziriam ao estado de
germens? Restaria sempre a questão de saber-se como esses germens novamente se
desenvolveram. Ainda aí, teríamos a Terra a formar-se por processo miraculoso,
processo, porém, menos poético e menos grandioso do que o da Gênese bíblica,
enquanto que as leis naturais dão, da sua formação, uma explicação muito mais
completa e, sobretudo, mais racional, deduzida da observação.*
A concordância que, por meio desse sistema, se pretende estabelecer, entre a Gênese bíblica e a ciência, é inteiramente ilusória, pois que a própria ciência o contradiz.
O autor da carta acima, homem de grande saber, seduzido, um instante, por essa teoria, logo lhe descobriu os lados vulneráveis e não tardou a combatê-la com as armas da ciência.
* Quando tal sistema se liga a toda uma cosmogonia, é de perguntar-se sobre que base racional pode o
resto assentar.
Alma da Terra.
7. A alma da Terra desempenhou papel principal na teoria da incrustação. Vejamos
se esta ideia tem melhor fundamento.
O desenvolvimento orgânico está sempre em relação com o
desenvolvimento do princípio intelectual. O organismo se completa à medida que se
multiplicam as faculdades da alma. A escala orgânica acompanha constantemente,
em todos os seres, a progressão da inteligência, desde o pólipo até o homem, e não
podia ser de outro modo, pois que a alma precisa de um instrumento apropriado à
importância das funções que lhe compete desempenhar. De que serviria à ostra
possuir a inteligência do macaco, sem os órgãos necessários à sua manifestação? Se,
portanto, a Terra fosse um ser animado, servindo de corpo a uma alma especial, essa
alma, por efeito mesmo da sua constituição, teria de ser ainda mais rudimentar do
que a do pólipo, visto que a Terra não tem, sequer, a vitalidade da planta, ao passo
que, pelo papel que lhe atribuíram à alma, fizeram dela um ser dotado de razão e do
mais completo livre-arbítrio, em resumo: um como Espírito superior, o que não é
racional, porquanto nunca nenhum Espírito se achou menos bem aquinhoado, nem
mais aprisionado. Ampliada neste sentido, a ideia da alma da Terra tem, então, de
ser arrolada entre as concepções sistemáticas e quiméricas.
Por alma da Terra pode entender-se, mais racionalmente, a coletividade
dos Espíritos incumbidos da elaboração e da direção de seus elementos
constitutivos, o que já supõe certo grau de desenvolvimento intelectual; ou, melhor
ainda: o Espírito a quem está confiada a alta direção dos destinos morais e do
progresso de seus habitantes, missão que somente pode ser atribuída a um ser
eminentemente superior em saber e em sabedoria. Em tal caso, esse Espírito não é,
propriamente falando, a alma da Terra, porquanto não se acha encarnado nela, nem
subordinado ao seu estado material. É um chefe preposto ao seu governo, como um
general o é ao comando de um exército.
Um Espírito, incumbido de missão tão importante qual a do governo de um
mundo, não poderia ter caprichos, ou, então, teríamos de reconhecer em Deus a
imprevidência de confiar a execução de suas leis a seres capazes de lhes contravir, a
seu bel-prazer. Ora, segundo a doutrina da incrustação, a má vontade da alma da Lua
é que houvera dado causa a que a Terra ficasse incompleta. Há ideias que a si
mesmas se refutam. (
Revue de setembro de 1868, pág. 261.)
Capítulo IX — Revoluções do globo
Revoluções gerais ou parciais.
1. Os períodos geológicos marcam as fases do aspecto geral do globo, em consequência das suas transformações. Mas, com exceção do período diluviano, que
se caracterizou por uma subversão repentina, todos os demais transcorreram
lentamente, sem transições bruscas. Durante todo o tempo que os elementos
constitutivos do globo levaram para tomar suas posições definitivas, as mutações
houveram de ser gerais. Uma vez consolidada a base, só se devem ter produzido
modificações parciais, na superfície.
2. Além das revoluções gerais, a Terra experimentou grande número de perturbações
locais, que mudaram o aspecto de certas regiões. Como no tocante às outras duas
causas contribuíram para essas perturbações: o fogo e a água. O fogo atuou produzindo: ou erupções vulcânicas que sepultaram, sob
espessas camadas de cinzas e lavas, os terrenos circunjacentes, fazendo desaparecer
cidades com seus habitantes; ou terremotos; ou levantamentos da crosta sólida, que
impeliam as águas para as regiões mais baixas; ou o afundamento, em maior ou
menor extensão, dessa mesma crosta, nalguns lugares, para onde as águas se
precipitaram, deixando em seco outros lugares. Foi assim que surgiram ilhas no
meio do oceano, enquanto que outras desapareceram; que porções de continentes se
separaram e formaram ilhas; que braços de mar, secados, ligaram ilhas e continentes. Quanto à água, essa atuou, produzindo: ou a irrupção ou a retirada do mar
nalgumas costas; ou desmoronamentos que, interceptando as correntes líquidas,
formaram lagos; ou transbordamentos e inundações; ou, enfim, aterros nas
embocaduras dos rios. Esses aterros, rechaçando o mar, criaram novos territórios. Tal a origem do delta do Nilo, ou Baixo Egito; do delta do Ródano, ou Camarga.
Idade das montanhas.
3. Examinando-se os terrenos dilacerados pelo erguimento das montanhas e das
camadas que lhes formam os contrafortes, possível se torna determinar-lhes a idade
geológica. Por idade geológica das montanhas, não se deve entender o número de
anos que elas contam de existência, mas o período em que se formaram e, portanto, a relativa ancianidade que apresentam. Fora errôneo acreditar-se que semelhante
ancianidade corresponde à elevação que lhes é própria, ou à natureza
exclusivamente granítica que revelem, uma vez que a massa de granito, ao dar-se o
seu levantamento, pode ter perfurado e separado as camadas superpostas.
Comprovou-se assim, por meio da observação, que as montanhas dos
Vosges, da Bretanha e da Côte-d’Or, na França, que não são muito elevadas, pertencem às mais antigas formações. Datam do período de transição, senão
anteriores aos depósitos de hulha. O Jura se formou no meado do período
secundário; é contemporâneo dos reptis gigantes. Os Pirineus se formaram mais
tarde, no começo do período terciário. O Monte Branco e o grupo dos Alpes
ocidentais são posteriores aos Pirineus e datam da metade do período terciário. Os
Alpes orientais, que compreendem as montanhas do Tirol, são ainda mais recentes, porquanto só se formaram pelos fins desse mesmo período. Algumas montanhas da
Ásia são mesmo posteriores ao período diluviano, ou lhe são contemporâneas.
Esses levantamentos hão de ter ocasionado grandes perturbações locais e
inundações mais ou menos consideráveis, pelo deslocamento das águas, pela
interrupção e mudança do curso dos rios.*
* O século passado registrou notável exemplo de um fenômeno desse gênero. A seis dias de marcha da
cidade de México, existia, em 1750, uma região fértil e bem cultivada, onde davam em abundância arroz, milho e bananas. No mês de junho, pavorosos tremores de terra abalaram o solo, renovando-se
continuamente durante dois meses inteiros. Na noite de 28 para 29 de setembro, violenta convulsão se produziu; um território de muitas léguas de extensão entrou a erguer-se pouco a pouco e acabou por alcançar a altitude de 500 pés, numa superfície de 10 léguas quadradas. O terreno ondulava, como as vagas do mar ao sopro da tempestade, milhares de montículos se elevavam e afundavam alternativamente; afinal, abriu-se um abismo de perto de 3 léguas, donde eram lançados à prodigiosa altura fumo, fogo, pedras esbraseadas e cinzas. Seis montanhas surgiram desse abismo hiante, entre as quais o vulcão a que
foi dado o nome de Jorullo, que agora se eleva a 550 metros acima da antiga planície. No momento em
que principiaram os abalos do solo, os dois rios Cuitimba e San Pedro, refluindo, inundaram toda a planície hoje ocupada pelo Jorullo; no terreno, porém, que sem cessar se elevava, outro sorvedouro se
abriu e os absorveu. Os dois reapareceram mais tarde, a oeste, num ponto muito afastado de seus antigos
leitos. (Luiz Figuier, A Terra antes do dilúvio, pág. 370.)
Dilúvio bíblico.
4. O dilúvio bíblico, também conhecido pela denominação de “grande dilúvio
asiático”, é fato cuja realidade não se pode contestar. Deve tê-lo ocasionado o
levantamento de uma parte das montanhas daquela região, como o do México. Corrobora esta opinião a existência de um mar interior, que ia outrora do mar Negro
ao oceano Boreal, comprovada pelas observações geológicas. O mar de Azov, o mar
Cáspio, cujas águas são salgadas, embora nenhuma comunicação tenham com
nenhum outro mar; o lago Aral e os inúmeros lagos espalhados pelas imensas
planícies da Tartália e as estepes da Rússia parecem restos daquele antigo mar. Por
ocasião do levantamento das montanhas do Cáucaso, posterior ao dilúvio universal, parte daquelas águas foi recalcada para o norte, na direção do oceano Boreal; outra
parte, para o sul, em direção ao oceano Índico. Estas inundaram e devastaram
precisamente a Mesopotâmia e toda a região em que habitaram os antepassados do
povo hebreu. Embora esse dilúvio se tenha estendido por uma superfície muito
grande, é atualmente ponto averiguado que ele foi apenas local; que não pode ter
sido causado pela chuva, pois, por muito copiosa que esta fosse e ainda que se
prolongasse por quarenta dias, o cálculo prova que a quantidade d’água caída das
nuvens não podia bastar para cobrir toda a terra, até acima das mais altas
montanhas.
Para os homens de então, que não conheciam mais do que uma extensão
muito limitada da superfície do globo e que nenhuma ideia tinham da sua
configuração, desde que a inundação invadiu os países conhecidos, invadida fora, para eles, a Terra inteira. Se a essa crença aditarmos a forma imaginosa e hiperbólica
da descrição, forma peculiar ao estilo oriental, já não nos surpreenderá o exagero da
narração bíblica.
5. O dilúvio asiático foi evidentemente posterior ao aparecimento do homem na
Terra, visto que a lembrança dele se conservou pela tradição em todos os povos
daquela parte do mundo, os quais o consagraram em suas teogonias*.
É igualmente posterior ao grande dilúvio universal que assinalou o início do
atual período geológico. Quando se fala de homens e de animais antediluvianos, a
referência é àquele primeiro cataclismo.
* A lenda indiana sobre o dilúvio refere, segundo o livro dos Vedas, que Brama, transformado em peixe,
se dirigiu ao piedoso monarca Vaivaswata e lhe disse: “Chegou o momento da dissolução do universo; em breve estará destruído tudo o que existe na Terra. Tens que construir um navio em que embarcarás, depois de teres embarcado sementes de todos os vegetais. Esperar-me-ás nesse navio e eu virei ter contigo, trazendo à cabeça um chifre pelo qual me reconhecerás.” O santo obedeceu; construiu um navio, embarcou nele e o atou por um cabo muito forte ao chifre do peixe. O navio foi rebocado durante muitos anos com extrema rapidez, por entre as trevas de uma tremenda tempestade, abordando, afinal, ao cume do monte Himawat (Himalaia). Brama ordenou em seguida a Vaivaswata que criasse todos os seres e com
eles povoasse a Terra. É flagrante a analogia desta lenda com a narrativa bíblica de Noé. Da Índia ela passara ao Egito, como uma multidão de outras crenças. Ora, sendo o livro dos Vedas anteriores ao de Moisés, a narração que naquele se encontra, do dilúvio, não pode ser uma cópia da deste último. O que é provável é
que Moisés, que aprendera as doutrinas dos sacerdotes egípcios, haja tomado a estes a sua descrição.
5. O dilúvio asiático foi evidentemente posterior ao aparecimento do homem na
Terra, visto que a lembrança dele se conservou pela tradição em todos os povos
daquela parte do mundo, os quais o consagraram em suas teogonias*.
É igualmente posterior ao grande dilúvio universal que assinalou o início do
atual período geológico. Quando se fala de homens e de animais antediluvianos, a
referência é àquele primeiro cataclismo.
* A lenda indiana sobre o dilúvio refere, segundo o livro dos Vedas, que Brama, transformado em peixe,
se dirigiu ao piedoso monarca Vaivaswata e lhe disse: “Chegou o momento da dissolução do universo; em breve estará destruído tudo o que existe na Terra. Tens que construir um navio em que embarcarás, depois de teres embarcado sementes de todos os vegetais. Esperar-me-ás nesse navio e eu virei ter contigo, trazendo à cabeça um chifre pelo qual me reconhecerás.” O santo obedeceu; construiu um navio, embarcou nele e o atou por um cabo muito forte ao chifre do peixe. O navio foi rebocado durante muitos anos com extrema rapidez, por entre as trevas de uma tremenda tempestade, abordando, afinal, ao cume do monte Himawat (Himalaia). Brama ordenou em seguida a Vaivaswata que criasse todos os seres e com
eles povoasse a Terra. É flagrante a analogia desta lenda com a narrativa bíblica de Noé. Da Índia ela passara ao Egito, como uma multidão de outras crenças. Ora, sendo o livro dos Vedas anteriores ao de Moisés, a narração que naquele se encontra, do dilúvio, não pode ser uma cópia da deste último. O que é provável é
que Moisés, que aprendera as doutrinas dos sacerdotes egípcios, haja tomado a estes a sua descrição.
Revoluções periódicas.
6. Além do seu movimento ânuo em torno do Sol, origem das estações, do seu
movimento de rotação sobre si mesma em 24 horas, origem do dia e da noite, tem a
Terra um terceiro movimento que se completa em cerca de 25.000 anos, ou, mais
exatamente, em 25.868 anos, e que produz o fenômeno denominado, em astronomia, precessão dos equinócios (cap. V, n.
o 11). Este movimento, que não se pode explicar
em poucas palavras, sem o auxílio de figuras e sem uma demonstração geométrica, consiste numa espécie de oscilação circular, que se há comparado à de um pião a
morrer, e por virtude da qual o eixo da Terra, mudando de inclinação, descreve um
duplo cone cujo vértice está no centro do planeta, abrangendo as bases desses cones
a superfície circunscrita pelos círculos polares, isto é, uma amplitude de 23 e 1/2
graus de raio.
7. O equinócio é o instante em que o Sol, passando de um hemisfério a outro, se
encontra perpendicular ao equador, o que acontece duas vezes por ano, a 21 de
março, quando o Sol passa para o hemisfério boreal, e a 22 de setembro, quando
volta ao hemisfério austral.
Mas, em consequência da gradual mudança na obliquidade do eixo, o que
acarreta outra mudança na obliquidade do equador sobre a eclíptica, o momento do
equinócio avança cada ano de alguns minutos (25 minutos e 7 segundos). A esse
avanço é que se deu o nome de precessão dos equinócios (do latim
proecedere, caminhar para diante, composto de proe, adiante, e cedere, ir-se).
Com o tempo, esses poucos minutos fazem horas, dias, meses e anos,
resultando daí que o equinócio da primavera, que agora se verifica no mês de março, em dado tempo se verificará em fevereiro, depois em janeiro, depois em dezembro. Então o mês de dezembro terá a temperatura de março e março a de junho e assim
por diante, até que, voltando ao mês de março, as coisas se encontrarão de novo no
estado atual, o que se dará ao cabo de 25.868 anos, para recomeçar indefinidamente
a mesma revolução.*
* A precessão dos equinócios ocasiona outra mudança: a que se opera na posição dos signos do zodíaco. Girando a Terra ao derredor do Sol em um ano, à medida que ela avança, o Sol, cada mês, se encontra
diante de uma constelação. Estas são em número de doze, a saber: o Carneiro, o Touro, os Gêmeos, o Câncer, o Leão, a Virgem, a Balança, o Escorpião, o Sagitário, o Capricórnio, o Aquário, os Peixes. São chamadas constelações zodiacais, ou signos do zodíaco, e formam um círculo no plano do equador
terrestre. Conforme o mês do nascimento de um indivíduo dizia-se que ele nascera sob tal ou tal signo;
daí os prognósticos da astrologia. Mas, em virtude da precessão dos equinócios, acontece que os meses já não correspondem às mesmas constelações. Um que nasça no mês de julho já não está no signo do Leão, porém no do Câncer. Cai assim a ideia supersticiosa da influência dos signos. (Cap. V, nº 12.)
8. Desse movimento cônico do eixo, resulta que os polos da Terra não olham
constantemente os mesmos pontos do céu; que a Estrela Polar não será sempre
estrela polar; que os pólos gradualmente se inclinam mais ou menos para o Sol e
recebem dele raios mais ou menos diretos, donde se segue que a Islândia e a
Lapônia, por exemplo, localizadas sob o círculo polar, poderão, em dado tempo,
receber raios solares como se estivessem na latitude da Espanha e da Itália e que, na
posição do extremo oposto, a Espanha e a Itália poderão ter a temperatura da
Islândia e da Lapônia, e assim por diante, a cada renovação do período de 25.000
anos.*
* O deslocamento gradual das linhas isotérmicas, fenômeno que a ciência reconhece de modo tão
positivo como o do deslocamento do mar, é um fato material que apoia esta teoria.
9. Ainda não puderam ser determinadas com precisão as consequências deste
movimento, porque somente se há podido observar uma pequena parte da sua
revolução. A respeito, pois, não há mais do que presunções, algumas das quais com
caráter de probabilidade.
Essas consequências são:
1.ª. O aquecimento e o resfriamento alternativos dos polos e, por
conseguinte, a fusão dos gelos polares durante a metade do período de 25.000 anos e
a nova formação deles durante a outra metade desse período. Resultaria daí não
estarem os polos condenados a uma perpétua esterilidade, cabendo-lhes gozar a seu
turno dos benefícios da fertilidade.
2.ª. O deslocamento gradativo do mar, fazendo-o invadir pouco a pouco
umas terras e pôr a descoberto outras, para de novo as abandonar, voltando ao seu
leito anterior. Esse movimento periódico, indefinidamente renovado, constituiria
uma verdadeira maré universal de 25.000 anos.
A lentidão com que se opera esse movimento do mar torna-o quase
imperceptível para cada geração. Faz-se, porém, sensível ao cabo de alguns séculos. Nenhum cataclismo súbito pode ele causar, porque os homens se retiram, de geração
em geração, à proporção que o mar avança, e avançam pelas terras donde o mar se
retira. É a essa causa, mais que provável, que alguns sábios atribuem o afastamento
do mar de certas costas e a invasão de outras por ele.
10. O deslocamento demorado, gradual e periódico do mar é fato que a experiência
comprova e numerosos exemplos confirmam, em todos os pontos do globo. Tem por
efeito o entretenimento das forças produtivas da Terra. A longa imersão é para os
terrenos um tempo de repouso, durante o qual eles recuperam os princípios vitais
esgotados por uma não menos longa produção. Os imensos depósitos de matérias
orgânicas, formados pela permanência das águas durante séculos e séculos, são
adubações naturais, periodicamente renovadas, e as gerações se sucedem sem se
aperceberem de tais mudanças.*
* Entre os fatos mais recentes que provam o deslocamento do mar, podem citar-se estes:
No golfo da Gasconha, entre o velho Soulac e a Torre de Cordouan, quando o mar está calmo, percebe-se no fundo da água trechos de muralha: são os restos da antiga e grande cidade de Noviomagus,
invadida pelas ondas em 580. O rochedo de Cordouan, que se achava então ligado à margem, está agora a 12 quilômetros.
No mar da Mancha, sobre a costa do Havre, as águas dia a dia ganham terreno e minam as penedias de Sainte Adresse, que pouco a pouco desmoronam. A dois quilômetros da costa entre Sainte Adresse e o cabo de Hève, existe um banco que outrora se achava à vista e ligado à terra firme. Antigos documentos atestam que nesse lugar, por sobre o qual hoje se navega, existia a aldeia de Saint Denis chef de Caux. Tendo o mar invadido, no décimo quarto século, o terreno, a igreja foi tragada em 1378. Dizem que, com bom tempo, se lhe vêem os restos no fundo do mar.
Em quase toda a extensão do litoral da Holanda, o mar só é contido a poder de diques, que de
tempos a tempos se rompem. O antigo lago de Flevo, que se reuniu ao mar em 1225, forma hoje o golfo
de Zuyder zée. Essa irrupção do oceano tragou muitas povoações. Segundo isto, o território de Paris e da França toda seria de novo ocupado pelo mar, como já o
foi muitas vezes, conforme o demonstram as observações geológicas. Então, as partes montanhosas
formarão ilhas, como o são agora Jersey, Guernesey e a Inglaterra, outrora contíguas ao continente. Navegar-se-á por sobre regiões que atualmente se percorrem de caminho de ferro; os navios aportarão a Montmartre, ao monte Valeriano, aos outeiros de Saint Cloud e de Meudon; os bosques e
florestas, agora lugares de passeio, ficarão sepultados nas águas, cobertos de limo e povoados de peixes, que substituirão as aves. O dilúvio bíblico não pode ter tido essa causa, pois que foi repentina a invasão das águas e de
curta duração a permanência delas, ao passo que, de outro modo, essa permanência houvera sido de muitos milhares de anos e ainda duraria, sem que os homens dessem por isso.
Cataclismos futuros.
11. As grandes comoções telúricas se têm produzido nas épocas em que a crosta
sólida da Terra, pela sua fraca espessura, quase nenhuma resistência oferecia à
efervescência das matérias em ignição no seu interior. Tais comoções foram
diminuindo, à proporção que aquela crosta se consolidava. Numerosos vulcões já se
acham extintos, outros os terrenos de formação posterior soterraram.
Ainda, certamente, poderão produzir-se perturbações locais, por efeito de
erupções vulcânicas, da eclosão de alguns vulcões novos, de inundações repentinas
de algumas regiões; poderão do mar surgir ilhas e outras ser por ele tragadas; mas, passou o tempo dos cataclismos gerais, como os que assinalaram os grandes
períodos geológicos. A Terra adquiriu uma estabilidade que, sem ser absolutamente
invariável, coloca doravante o gênero humano ao abrigo de perturbações gerais, a
menos que intervenham causas desconhecidas, a ela estranhas e que de modo
nenhum se possam prever.
12. Quanto aos cometas, estamos hoje perfeitamente tranquilizados com relação à
influência que exercem, mais salutar do que nociva, por parecerem eles destinados a
reabastecer os mundos, se assim nos podemos exprimir, trazendo-lhes os princípios
vitais que eles armazenam em sua corrida pelo espaço e com o se aproximarem dos
sóis. Assim, pois, seriam antes fontes de prosperidades, do que mensageiros de
desgraças.
A natureza fluídica, já bem comprovada (cap. VI, n.o 28 e seguintes), que
lhes é própria afasta todo receio de choques violentos, porquanto, se um deles
encontrasse a Terra, esta o atravessaria, como se passasse através de um nevoeiro.
Ainda menos de temer é a cauda que arrastam, visto que essa mais não é do
que a reflexão da luz solar na imensa atmosfera que os envolve, tanto assim que se
mostra constantemente dirigida para o lado oposto ao Sol, mudando de direção
conformemente à posição deste astro. Essa matéria gasosa também poderia, em
virtude da rapidez com que eles caminham, constituir uma espécie de cabeleira, semelhante à esteira deixada por um navio em marcha, ou à fumaça de uma
locomotiva. Aliás, muitos cometas já se têm aproximado da Terra, sem lhe causarem
qualquer dano. Em virtude das suas respectivas densidades, a Terra exerceria sobre o
cometa uma atração maior do que a dele sobre ela. Somente uns restos de velhos
preconceitos podem fazer que a presença de um cometa inspire terror.*
* O cometa de 1861 atravessou a órbita da Terra num ponto do qual esta se achava a uma distância de
apenas 20 horas. A Terra esteve, portanto, mergulhada na atmosfera dele, sem que daí resultasse nenhum
acidente.
13. Deve-se igualmente lançar ao rol das hipóteses quiméricas a possibilidade do
encontro da Terra com outro planeta. A regularidade e a invariabilidade das leis que
presidem aos movimentos dos corpos celestes tornam carente de toda probabilidade
semelhante encontro.
A Terra, no entanto, terá um fim. Como? Isso ainda permanece no domínio
das conjeturas; mas, visto estar ela ainda longe da perfeição que pode alcançar e da
vetustez que lhe indicaria o declínio, seus habitantes atuais podem estar certos de
que tal não se dará ao tempo deles. (Cap. VI, n.os 48 e seguintes.)
14. Fisicamente, a Terra teve as convulsões da sua infância; entrou agora num
período de relativa estabilidade: na do progresso pacífico, que se efetua pelo regular
retorno dos mesmos fenômenos físicos e pelo concurso inteligente do homem. Está, porém, ainda, em pleno trabalho de gestação do progresso moral. Aí residirá a
causa das suas maiores comoções. Até que a humanidade se haja avantajado
suficientemente em perfeição, pela inteligência e pela observância das leis divinas, as maiores perturbações ainda serão causadas pelos homens, mais do que pela
natureza, isto é, serão antes morais e sociais do que físicas.
Aumento ou diminuição do volume da Terra.
15. O volume da Terra aumenta, diminui, ou permanece estacionário?
Alguns, para sustentar que o volume da Terra aumenta, se fundam em que
as plantas dão ao solo mais do que dele tiram, o que, se num sentido é exato, noutro
não o é. As plantas se nutrem tanto, e até mais, das substâncias gasosas que haurem
na atmosfera, quanto das que sugam pelas raízes. Ora, a atmosfera faz parte
integrante do globo; os gases que a constituem provêm da decomposição dos corpos
sólidos e estes, recompondo-se, retomam o que lhe haviam dado. É uma troca, ou,
antes, uma perpétua transformação, de tal sorte que, operando-se o crescimento
deles com o auxílio dos elementos constitutivos do globo, os despojos dos vegetais e
dos animais, por muito consideráveis que sejam, não lhe aumentam de um átomo a
massa. Se, por essa causa, a parte sólida do globo aumentasse de modo permanente,
isso se daria à custa da atmosfera, que diminuiria de outro tanto e acabaria por se
tornar imprópria à vida, se não recuperasse, pela decomposição dos corpos sólidos, o
que perde pela composição deles.
Na origem da Terra, as primeiras camadas geológicas se formaram das
matérias sólidas momentaneamente volatilizadas, por efeito da alta temperatura, e
que, condensadas mais tarde pelo resfriamento, se precipitaram. Incontestavelmente, elas elevaram um pouco a superfície do solo, mas sem acrescentarem coisa alguma à
massa total, pois que ali apenas havia um deslocamento de matéria. Quando, expurgada dos elementos que continha em suspensão, a atmosfera se encontrou no
estado normal, as coisas tomaram o curso regular em que depois seguiram. Hoje, a
menor modificação na constituição da atmosfera acarretaria, forçosamente, a
destruição dos atuais habitantes da Terra; mas, também é provável que novas raças
se formassem noutras condições.
Considerada desse ponto de vista, a massa do globo, isto é, a soma das
moléculas que compõem o conjunto de suas partes sólidas, líquidas e gasosas, é
incontestavelmente a mesma, desde a sua origem. Se o globo experimentasse uma
dilatação ou uma condensação, seu volume aumentaria ou diminuiria, sem que a
massa sofresse qualquer alteração. Portanto, se a Terra aumentasse de massa, o fato
seria efeito de uma causa estranha, pois que ela não poderia tirar de si mesma os
elementos necessários ao seu aumento.
Há uma opinião segundo a qual o globo aumentaria de massa e de volume
pelo afluxo da matéria cósmica interplanetária. Esta ideia nada tem de irracional, mas é por demais hipotética para ser admitida em princípio. Não passa de um
sistema combatido por sistemas contrários, sobre os quais a ciência ainda nada
estabeleceu. Eis aqui, a tal respeito, a opinião do eminente Espírito que ditou os
sábios estudos uranográficos insertos acima, no capítulo VI:
“Os mundos se esgotam pelo envelhecimento e tendem a dissolver-se para
servir de elementos de formação a outros universos. Restituem pouco a pouco ao
fluido cósmico universal do espaço o que dele tiraram para formar-se. Além disso,
todos os corpos se gastam pelo atrito; o movimento rápido e incessante do globo
através do fluido cósmico dá em resultado diminuir-se-lhe constantemente a massa, se bem que de quantidade inapreciável em determinado tempo.*
“A existência dos mundos pode, a meu ver, dividir-se em três períodos. — Primeiro período: condensação da matéria, período esse em que o volume do globo
diminui consideravelmente, conservando-se a mesma a massa. É o período da
infância. — Segundo período: contração, solidificação da crosta; eclosão dos
germens, desenvolvimento da vida até à aparição do tipo mais aperfeiçoado. Nesse
momento, o globo está em toda a sua plenitude, é a época da virilidade; ele perde, mas muito pouco, os seus elementos constitutivos. À medida que seus habitantes
progridem espiritualmente, passa ele ao período de decrescimento material; sofre
perdas, não só em consequência do atrito, mas também pela desagregação das
moléculas, como uma pedra dura que, corroída pelo tempo, acaba reduzida a poeira. Em seu duplo movimento de rotação e translação, ele entrega ao espaço parcelas
fluidificadas da sua substância, até ao momento em que se completa a sua
dissolução.
“Mas, então, como o poder de atração está na razão direta da massa, não
digo do volume, diminuída a massa do globo, modificam-se as suas condições de
equilíbrio no espaço. Dominado por planetas mais poderosos, aos quais ele não pode
fazer contrapeso, resultam daí desvios nos seus movimentos e, portanto, também
profundas mudanças nas condições da vida em sua superfície. Assim, nascimento,
vida e morte; ou infância, virilidade, decrepitude são as três fases por que passa toda
aglomeração de matéria orgânica ou inorgânica. Indestrutível, só o Espírito, que não
é matéria.” (Galileu, Sociedade de Paris, 1868.)
* No seu movimento de translação em torno do Sol, a velocidade da Terra é de 400 léguas por minuto. Sendo de 9.000 léguas a sua circunferência, em seu movimento de rotação ao redor do seu eixo, cada ponto do equador percorre 9.000 léguas em 24 horas, ou 6,3 léguas por minuto.
Capítulo X — Gênese orgânica
Formação primária dos seres vivos.
1. Tempo houve em que não existiam animais; logo, eles tiveram começo. Cada
espécie foi aparecendo, à proporção que o globo adquiria as condições necessárias à
existência delas. Isto é positivo. Como se formaram os primeiros indivíduos de cada
espécie? Compreende-se que, existindo um primeiro casal, os indivíduos se
multiplicaram. Mas, esse primeiro casal, donde saiu? É um desses mistérios que
entendem com o princípio das coisas e sobre os quais apenas se podem formular
hipóteses. A ciência ainda não pode resolver o problema; pode entretanto, pelo
menos, encaminhá-lo para a solução.
2. É esta a questão primordial que se apresenta: cada espécie animal saiu de um
casal primitivo ou de muitos casais criados, ou, se o preferirem, germinados
simultaneamente em diversos lugares?
Esta última suposição é a mais provável. Pode-se mesmo dizer que ressalta
da observação. Com efeito, o estudo das camadas geológicas atesta, nos terrenos de
idêntica formação, e em proporções enormes, a presença das mesmas espécies em
pontos do globo muito afastados uns dos outros. Essa multiplicação tão generalizada
e, de certo modo, contemporânea, fora impossível com um único tipo primitivo.
Doutro lado, a vida de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo nascente, está sujeita a tantas vicissitudes, que toda uma criação poderia ficar comprometida sem a pluralidade dos tipos, o que implicaria uma imprevidência inadmissível da
parte do Criador supremo. Aliás, se, num ponto, um tipo se pode formar, em muitos
outros pontos ele se poderia formar igualmente, por efeito da mesma causa.
Tudo, pois, concorre a provar que houve criação simultânea e múltipla dos
primeiros casais de cada espécie animal e vegetal.
3. A formação dos primeiros seres vivos se pode deduzir, por analogia, da mesma lei
em virtude da qual se formaram e formam todos os dias os corpos inorgânicos. À
medida que se aprofunda o estudo das leis da natureza, as engrenagens que, de
início, pareciam tão complicadas se vão simplificando e confundindo na grande lei
de unidade que preside a toda a obra da criação. Isso se compreenderá melhor,
quando estiver compreendida a formação dos corpos inorgânicos, que é o degrau
primário daquela outra.
4. A química considera elementares umas tantas substâncias, como o oxigênio, o
hidrogênio, o azoto, o carbono, o cloro, o iodo, o flúor, o enxofre, o fósforo e todos
os metais. Combinando-se, elas formam os corpos compostos: os óxidos, os ácidos, os álcalis, os saís e as inúmeras variedades que resultam da combinação destes.
A combinação de dois corpos para formar um terceiro exige especial
concurso de circunstâncias: seja um determinado grau de calor, de sequidão, ou de
umidade; seja o movimento ou o repouso; seja uma corrente elétrica, etc. Se essas
circunstâncias não se verificarem, a combinação não se operará.
5. Quando há combinação, os corpos componentes perdem suas propriedades
características, enquanto o composto que deles resulta adquire outras, diferentes das
daqueles. É assim, por exemplo, que o oxigênio e o hidrogênio, que são gases
invisíveis, quimicamente combinados formam a água, que é líquida, sólida, ou
vaporosa, conforme a temperatura. Na água, a bem dizer, já não há oxigênio nem
hidrogênio, mas um corpo novo. Decomposta essa água, os dois gases, tornados
livres, recobram suas propriedades: já não há água. A mesma quantidade desse
líquido pode ser assim, alternativamente, decomposta e recomposta, ao infinito.
6. A composição e decomposição dos corpos se dão em virtude do grau de afinidade
que os princípios elementares guardam entre si. A formação da água, por exemplo,
resulta da afinidade recíproca que existe entre o oxigênio e o hidrogênio; mas, se se
puser em contacto com a água um corpo que tenha com o oxigênio mais afinidade
do que a que este tem com o hidrogênio, a água se decompõe: o oxigênio é
absorvido e o hidrogênio se liberta. Já não haverá água.
7. Os corpos compostos se formam sempre em proporções definidas, isto é, pela
combinação de uma certa quantidade dos princípios constituintes. Assim, para
formar a água, são necessárias uma parte de oxigênio e duas de hidrogênio. Se duas
partes de oxigênio forem combinadas com duas de hidrogênio, em vez de água ter-se-á o deutóxido de hidrogênio, líquido corrosivo, formado, no entanto, dos mesmos
elementos que entram na composição da água, porém noutra proporção.
8. Tal, em poucas palavras, a lei que preside à formação de todos os corpos da natureza. A inumerável variedade deles resulta de um número pequeno de
princípios elementares combinados em proporções diferentes.
Por exemplo: o oxigênio, combinado em certas proporções, com o carbono, o enxofre, o fósforo, forma os ácidos carbônico, sulfúrico, fosfórico; o oxigênio e o
ferro formam o óxido de ferro ou ferrugem; o oxigênio e o chumbo, ambos
inofensivos, dão origem aos óxidos de chumbo, tais como o itargírio, o alvaiade, o
mínio, que são venenosos. O oxigênio, com os metais chamados cálcio, sódio, potássio, forma a cal, a soda, a potassa. A cal, unida ao ácido carbônico, forma os
carbonatos de cal ou pedras calcáreas, tais como o mármore, a cré, as estalactites das
grutas; unida ao ácido sulfúrico, forma o sulfato de cálcio ou gesso e o alabastro; ao
ácido fosfórico, o fosfato de cal, base sólida, dos ossos; o cloro e o hidrogênio
formam o ácido clorídrico ou hidroclórico; o cloro e o sódio formam o cloreto de
sódio ou sal marinho.
9. Todas essas combinações e milhares de outras se obtêm artificialmente, em
pequenas quantidades, nos laboratórios de química; elas se operam em larga escala
no grande laboratório da natureza.
Em sua origem, a Terra não continha essas matérias em combinação, mas, apenas, volatilizados, seus princípios constitutivos. Quando as terras calcáreas e
outras, tornadas pedrosas com o tempo, se lhe depositaram na superfície, aquelas
matérias não existiam inteiramente formadas; porém, no ar se encontravam, em
estado gasoso, todas as substâncias primitivas. Precipitadas por efeito do
resfriamento, essas substâncias, sob o império de circunstâncias favoráveis, se
combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares. Foi então que se
formaram as diversas variedades de carbonatos, de sulfatos, etc., a princípio em
dissolução nas águas, depositadas, depois, na superfície do solo.
Suponhamos que, por uma causa qualquer, a Terra voltasse ao estado
primitivo de incandescência: tudo se decomporia; os elementos se separariam; todas
as substâncias fusíveis se fundiriam; todas as que são volatilizáveis se volatilizariam. Depois, outro resfriamento determinaria nova precipitação e de novo se formariam
as antigas combinações.
10. Estas considerações provam quanto a química era necessária para a inteligência
da Gênese. Antes de se conhecerem as leis da afinidade molecular, não era possível
compreender-se a formação da Terra. Esta ciência lançou grande luz sobre a
questão, como o fizeram a astronomia e a geologia, doutros pontos de vista.
11. Na formação dos corpos sólidos, um dos mais notáveis fenômenos é o da cristalização, que consiste na forma regular que assumem certas substâncias, ao passarem do estado líquido, ou gasoso, ao estado sólido. Essa forma, que varia de acordo com a natureza da substância, é geralmente a de sólidos geométricos, tais como o prisma, o romboide, o cubo, a pirâmide. Toda gente conhece os cristais de açúcar cândi; os cristais de rocha, ou sílica cristalizada, são prismas de seis faces que terminam em pirâmide igualmente hexagonal. O diamante é carbono puro, ou carvão cristalizado. Os desenhos que no inverno se produzem sobre as vidraças são devidos à cristalização do vapor d’água durante a congelação, sob a forma de agulhas prismáticas.
A disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de cada corpo. Essas partículas, para nós infinitamente pequenas, mas que não deixam por isso de ocupar um certo espaço, solicitadas umas para as outras pela atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de maneira a tomar cada uma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de atração e a constituir um conjunto simétrico.
A cristalização só se opera em certas circunstâncias favoráveis, fora das quais ela não pode dar-se. São condições essenciais o grau da temperatura e o repouso absoluto. Compreende-se que um calor muito forte, mantendo afastadas as moléculas, não lhes permitiria condensarem-se e que a agitação, impossibilitando-lhes um arranjo simétrico, não lhes consentiria formar senão uma massa confusa e irregular, donde o não haver cristalização propriamente dita.
12. A lei que preside à formação dos minerais conduz naturalmente à formação dos
corpos orgânicos.
A análise química mostra que todas as substâncias vegetais e animais são
compostas dos mesmos elementos que os corpos inorgânicos. Desses elementos, são
o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono os que desempenham papel principal. Os outros entram acessoriamente. Como no reino mineral, a diferença de proporções
na combinação dos referidos elementos produz todas as variedades de substâncias
orgânicas e suas diversas propriedades, tais como: os músculos, os ossos, o sangue, a bílis, os nervos, a matéria cerebral, a gordura, nos animais; a seiva, a madeira, as
folhas, os frutos, as essências, os óleos, as resinas, etc., nos vegetais. Assim, na
formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial entra que igualmente
não se encontre no reino mineral.*
* O quadro abaixo, da análise de algumas substâncias, mostra a diferença de propriedades que resulta da
só diferença na proporção em que entram os elementos constituintes. Sobre 100 partes, temos:
|
Carbono
|
Hidrogênio
|
Oxigênio
|
Nitrogênio
|
Açúcar de cana
|
42.470
|
6.900
|
50.530
|
-
|
Açúcar de uva
|
36.710
|
6.780
|
56.510
|
-
|
Alcool
|
51.980
|
13.700
|
34.320
|
-
|
Azeite de oliveira
|
77.210
|
13.360
|
9.430
|
-
|
Óleo de nozes
|
79.774
|
10.570
|
9.122
|
0,534
|
Gordura
|
78.996
|
11.700
|
9.304
|
-
|
Fibrina
|
53.360
|
7.021
|
19.686
|
19.934
|
13. Alguns exemplos comuns darão a compreender as transformações que se operam
no reino orgânico, pela só modificação dos elementos constitutivos. No suco da uva, não há vinho, nem álcool, mas apenas água e açúcar.
Quando o suco fica maduro e são propícias as condições, produz-se nele um trabalho
íntimo a que se dá o nome de fermentação. Por esse trabalho, uma parte do açúcar se
decompõe; o oxigênio, o hidrogênio e o carbono se separam e combinam nas
proporções necessárias a produzir o álcool, de sorte que, em se bebendo suco de uva, não se bebe realmente álcool, pois que este ainda não existe. Ele se forma das partes
constituintes da água e do açúcar, sem que haja, em suma, uma molécula a mais ou a
menos.
No pão e nos legumes que se comem, não há certamente carne, nem
sangue, nem osso, nem bílis, nem matéria cerebral; entretanto, esses mesmos
alimentos, decompondo-se e recompondo-se pelo trabalho da digestão, produzem
aquelas diferentes substâncias tão só pela transmutação de seus elementos
constitutivos.
Na semente de uma árvore, tampouco há madeiras, folhas, flores ou frutos e
fora erro pueril crer-se que a árvore inteira, sob microscópica forma, ali se encontra. Quase não há, sequer, na semente, oxigênio, hidrogênio e carbono em quantidade
necessária a formar uma folha da árvore. Ela contém um gérmen que desabrocha, em
sendo favoráveis as condições. Esse gérmen se desenvolve por efeito dos sucos que
haure da terra e dos gases que aspira do ar. Tais sucos, que não são lenho, nem
folhas, nem flores, nem frutos, infiltrando-se na planta, lhe formam a seiva, como
nos animais formam o sangue. Levada pela circulação a todas as partes do vegetal, a
seiva, conforme o órgão a que vai ter e onde sofre uma elaboração especial, se
transforma em lenho, folhas e frutos, como o sangue se transforma em carne, osso, bílis, etc. Contudo, são sempre os mesmos elementos: oxigênio, hidrogênio, azoto e
carbono, diversamente combinados.
14. As diferentes combinações dos elementos, para formação das substâncias
minerais, vegetais e animais, não podem, pois, operar-se, a não ser nos meios e em
circunstâncias propícias; fora dessas circunstâncias, os princípios elementares estão
numa espécie de inércia. Mas, desde que as circunstâncias se tornam favoráveis, começa um trabalho de elaboração; as moléculas entram em movimento, agitam-se, atraem-se, aproximando-se e se separam em virtude da lei de afinidades e, por suas
múltiplas combinações, compõem a infinita variedade das substâncias. Desapareçam
essas condições e o trabalho subitamente cessa, para recomeçar quando elas de novo
se apresentarem. É assim que a vegetação se ativa, enfraquece, para e prossegue, sob
a ação do calor, da luz, da umidade, do frio ou da seca; que esta planta prospera, num clima ou num terreno, e se estiola ou perece noutros.
15. O que diariamente se passa às nossas vistas pode colocar-nos na pista do que se
passou na origem dos tempos, porquanto as leis da natureza não variam.
Visto que são os mesmos os elementos constitutivos dos seres orgânicos e
inorgânicos; que os sabemos a formar incessantemente, em dadas circunstâncias, as
pedras, as plantas e os frutos, podemos concluir daí que os corpos dos primeiros
seres vivos se formaram, como as primeiras pedras, pela reunião das moléculas
elementares, em virtude da lei de afinidade, à medida que as condições da vitalidade
do globo foram propícias a esta ou àquela espécie.
A semelhança de forma e de cores, na reprodução dos indivíduos de cada
espécie, pode comparar-se à semelhança de forma de cada espécie de cristal. Justapondo-se, sob a ação da mesma lei, as moléculas produzem conjunto análogo.
Princípio vital.
16. Dizendo que as plantas e os animais são formados dos mesmos princípios
constituintes dos minerais, falamos em sentido exclusivamente material, pois que
aqui apenas do corpo se trata. Sem falar do princípio inteligente, que é questão à parte, há, na matéria
orgânica, um princípio especial, inapreensível e que ainda não pode ser definido: o
princípio vital. Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto;
mas, nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das
substâncias inorgânicas. A química, que decompõe e recompõe a maior parte dos
corpos inorgânicos, também conseguiu decompor os corpos orgânicos; jamais chegou, porém, a reconstituir, sequer, uma folha morta, prova evidente de que há nestes
últimos o que quer que seja, inexistente nos outros.
17. Será o princípio vital alguma coisa particular, que tenha existência própria? Ou,
integrado no sistema da unidade do elemento gerador, apenas será um estado
especial, uma das modificações do fluido cósmico, pela qual este se torne princípio
de vida, como se torna luz, fogo, calor, eletricidade? É neste último sentido que as
comunicações acima reproduzidas resolvem a questão. (Cap. VI, "Uranografia
geral".)
Seja, porém, qual for a opinião que se tenha sobre a natureza do princípio
vital, o certo é que ele existe, pois que se lhe apreciam os efeitos. Pode-se, portanto,
logicamente, admitir que, ao se formarem, os seres orgânicos assimilaram o
princípio vital, por ser necessário à destinação deles; ou, se o preferirem, que esse
princípio se desenvolveu em cada indivíduo, por efeito mesmo da combinação dos
elementos, tal como se desenvolvem, dadas certas circunstâncias, o calor, a luz e a
eletricidade.
18. Combinando-se sem o princípio vital, o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o
carbono unicamente teriam formado um mineral ou corpo inorgânico; o princípio
vital, modificando a constituição molecular desse corpo, dá-lhe propriedades
especiais. Em lugar de uma molécula mineral, tem-se uma molécula de matéria
orgânica.
A atividade do princípio vital é alimentada durante a vida pela ação do
funcionamento dos órgãos, do mesmo modo que o calor, pelo movimento de rotação
de uma roda. Cessada aquela ação, por motivo da morte, o princípio vital se
extingue, como o calor, quando a roda deixa de girar. Mas, o efeito produzido por
esse princípio sobre o estado molecular do corpo subsiste, mesmo depois dele
extinto, como a carbonização da madeira subsiste à extinção do calor. Na análise dos
corpos orgânicos, a química encontra os elementos que os constituem: oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; mas, não pode reconstituir aqueles corpos, porque, já
não existindo a causa, não lhe é possível reproduzir o efeito, ao passo que possível
lhe é reconstituir uma pedra.
19. Tomamos para termo de comparação o calor que se desenvolve pelo movimento
de uma roda, por ser um efeito vulgar, que todo mundo conhece, e mais fácil de
compreender-se. Mais exato, no entanto, houvéramos sido, dizendo que, na
combinação dos elementos para formarem os corpos orgânicos, desenvolve-se
eletricidade. Os corpos orgânicos seriam, então, verdadeiras pilhas elétricas, que
funcionam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de produzir
eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar, quando tais condições desaparecem:
é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não seria mais do que uma
espécie particular de eletricidade, denominada eletricidade animal, que durante a
vida se desprende pela ação dos órgãos e cuja produção cessa, quando da morte, por
se extinguir tal ação.
Geração espontânea.
20. É natural se pergunte por que não mais se formam seres vivos nas mesmas
condições em que se formaram os primeiros que surgiram na Terra.
Sobre esse ponto, não pode deixar de lançar luz a questão da geração
espontânea, que tanto preocupa a ciência, embora ainda esteja diversamente
resolvida. O problema é este: Formam-se, nos tempos atuais, seres orgânicos pela
simples reunião dos elementos que os constituem, sem germens, previamente
produzidos pelo modo ordinário de geração, ou, por outra, sem pais nem mães?
Os partidários da geração espontânea respondem afirmativamente, apoiando-se em observações diretas, que parecem concludentes. Pensam outros que
todos os seres vivos se reproduzem uns pelos outros, firmados sobre o fato, que a
experiência comprova, de que os germens de certas espécies vegetais e animais, mesmo dispersos, conservam latente vitalidade, durante longo tempo, até que as
circunstâncias lhes favoreçam a eclosão. Esta maneira de entender deixa sempre em
aberto a questão da formação dos primeiros tipos de cada espécie.
21. Sem discutir os dois sistemas, convém acentuar que o princípio da geração
espontânea evidentemente só se pode aplicar aos seres das ordens mais ínfimas do
reino vegetal e do reino animal, àqueles em os quais a vida começa a despontar e
cujo organismo, extremamente simples, é, de certo modo, rudimentar. Foram esses, com efeito, os primeiros que apareceram na Terra e cuja formação houve de ser
espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga à que se
produziu nas primeiras idades do mundo.
22. Mas, então, por que não se formam da mesma maneira os seres de complexa
organização? Que esses seres não existiram sempre, é fato positivo; logo, tiveram
um começo. Se o musgo, o líquen, o zoófito, o infusório, os vermes intestinais e
outros podem produzir-se espontaneamente, por que não se dá o mesmo com as
árvores, os peixes, os cães, os cavalos?
Param aí, por enquanto, as investigações; desaparece o fio condutor e, até
que ele seja encontrado, fica aberto o campo às hipóteses. Fora, pois, imprudente e
prematuro apresentar meros sistemas como verdades absolutas.
23. Se a geração espontânea é fato demonstrado, por muito limitado que seja, não
deixa de constituir um fato capital, um marco de natureza a indicar o caminho para
novas observações. Sabe-se que os seres orgânicos complexos não se produzem
dessa maneira; mas, quem sabe como eles começaram? Quem conhece o segredo de
todas as transformações? Vendo o carvalho sair da glande, quem pode afirmar que
não exista um laço misterioso entre o pólipo e o elefante? (N.
o 25.)
No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos estabelecer a
teoria da geração espontânea permanente, senão como hipótese, mas como hipótese
provável e que um dia, talvez, tome lugar entre as verdades científicas incontestes.*
* Revue spirite, julho de 1868, pág. 201: “Desenvolvimento da teoria da geração espontânea”.
Escala dos seres orgânicos.
24. Entre o reino vegetal e o reino animal, nenhuma delimitação há nitidamente
marcada. Nos confins dos dois reinos estão os zoófitos ou animais plantas, cujo
nome indica que eles participam de um e outro: serve-lhes de traço de união.
Como os animais, as plantas nascem, vivem, crescem, nutrem-se, respiram,
reproduzem-se e morrem. Como aqueles, precisam elas de luz, de calor e de água;
estiolam-se e morrem, desde que lhes faltem esses elementos. A absorção de um ar
viciado e de substâncias deletérias as envenena. Oferecem como caráter distintivo
mais acentuado conservarem-se presas ao solo e tirarem dele a nutrição, sem se
deslocarem.
O zoófito tem a aparência exterior da planta. Como planta, mantém-se
preso ao solo; como animal, a vida nele se acha mais acentuada: tira do meio
ambiente a sua alimentação.
Um degrau acima, o animal é livre e procura o alimento: em primeiro lugar,
vêm as inúmeras variedades de pólipos, de corpos gelatinosos, sem órgãos bem
definidos, só diferindo das plantas pela faculdade da locomoção; seguem-se, na
ordem do desenvolvimento dos órgãos, da atividade vital e do instinto, os helmintos
ou vermes intestinais; os moluscos, animais carnudos sem ossos, alguns deles nus, como as lesmas, os polvos, outros providos de conchas, como o caracol, a ostra; os
crustáceos, cuja pele é revestida de uma crosta dura, como o caranguejo, a lagosta;
os insetos, aos quais a vida assume prodigiosa atividade e se manifesta o instinto
engenhoso, como a formiga, a abelha, a aranha. Alguns se metamorfoseiam, como a
lagarta, que se transforma em elegante borboleta. Vem depois a ordem dos
vertebrados, animais de esqueleto ósseo, ordem que abrange os peixes, os reptis, os
pássaros; seguem-se, por fim, os mamíferos cuja organização é a mais completa.
25. Se se considerarem apenas os dois pontos extremos da cadeia, nenhuma analogia
aparente haverá; mas, se se passar de um anel a outro sem solução de continuidade, chega-se, sem transição brusca, da planta aos animais vertebrados. Compreende-se
então a possibilidade de que os animais de organização complexa não sejam mais do
que uma transformação, ou, se quiserem, um desenvolvimento gradual, a princípio
insensível, da espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente, até ao primitivo ser elementar. Entre a glande e o carvalho é grande a diferença; entretanto, se acompanharmos passo a passo o desenvolvimento da glande, chegaremos ao
carvalho e já não nos admiraremos de que este proceda de tão pequena semente. Ora, se a glande encerra em latência os elementos próprios à formação de uma
árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do oução ao elefante? (N.
o 23.)
De acordo com o que fica dito, concebece-se que não exista geração
espontânea senão para os seres orgânicos elementares; as espécies superiores seriam
produto das transformações sucessivas desses mesmos seres, realizadas à proporção
que as condições atmosféricas se lhes foram tornando propícias. Adquirindo cada
espécie a faculdade de reproduzir-se, os cruzamentos acarretaram inúmeras
variedades. Depois, uma vez instalada em condições favoráveis, quem nos diz que
os germens primitivos donde ela surgiu não desapareceram para sempre, por inúteis?
Quem nos diz que o nosso oução atual seja idêntico ao que, de transformação em
transformação, produziu o elefante? Explicar-se-ia assim porque não há geração
espontânea entre os animais de complexa organização.
Esta teoria, sem estar admitida ainda, de maneira definitiva, é a que tende
evidentemente a predominar hoje na ciência. Os observadores sérios aceitam-na
como a mais racional.
O homem corpóreo.
26. Do ponto de vista corpóreo e puramente anatômico, o homem pertence à classe
dos mamíferos, dos quais unicamente difere por alguns matizes na forma exterior.
Quanto ao mais, a mesma composição de todos os animais, os mesmos órgãos, as
mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de
reprodução. Ele nasce, vive e morre nas mesmas condições e, quando morre, seu
corpo se decompõe, como tudo o que vive. Não há, em seu sangue, na sua carne, em
seus ossos, um átomo diferente dos que se encontram no corpo dos animais. Como
estes, ao morrer, restitui à terra o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono que se
haviam combinado para formá-lo; e esses elementos, por meio de novas
combinações, vão formar outros corpos minerais, vegetais e animais. É tão grande a
analogia, que se estudam as suas funções orgânicas em certos animais, quando as
experiências não podem ser feitas nele próprio.
27. Na classe dos mamíferos, o homem pertence à ordem dos bímanos. Logo abaixo
dele vêm os quadrúmanos (animais de quatro mãos) ou macacos, alguns dos quais, como o orangotango, o chimpanzé, o jocó, têm certos ademanes do homem, a tal
ponto que, por muito tempo, foram denominados: homens das florestas. Como o
homem, esses macacos caminham eretos, usam cajados, constroem choças e levam à
boca, com a mão, os alimentos: sinais característicos.
28. Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, do ponto de vista do
organismo, é-se forçado a reconhecer que, desde o líquen até a árvore e desde o
zoófito até o homem, há uma cadeia que se eleva gradativamente, sem solução de
continuidade e cujos anéis todos têm um ponto de contacto com o anel precedente.
Acompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um
aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior. Visto que
são idênticas às dos outros corpos as condições do corpo do homem, química e
constitucionalmente; visto que ele nasce, vive e morre da mesma maneira, também
nas mesmas condições que os outros se há de ele ter formado.
29. Ainda que isso lhe fira o orgulho, tem o homem que se resignar a não ver no seu
corpo material mais do que o último anel da animalidade na Terra. Aí está o
inexorável argumento dos fatos, contra o qual seria inútil protestar.
Todavia, quanto mais o corpo diminui de valor aos seus olhos, tanto mais
cresce de importância o princípio espiritual. Se o primeiro o nivela ao bruto, o
segundo o eleva a incomensurável altura. Vemos o limite extremo do animal: não
vemos o limite a que chegará o espírito do homem.
30. O materialismo pode por aí ver que o Espiritismo, longe de temer as descobertas
da ciência e o seu positivismo, lhe vai ao encontro e os provoca, por possuir a
certeza de que o princípio espiritual, que tem existência própria, em nada pode com
elas sofrer.
O Espiritismo marcha ao lado do materialismo, no campo da matéria;
admite tudo o que o segundo admite; mas, avança para além do ponto onde este
último para. O Espiritismo e o materialismo são como dois viajantes que caminham
juntos, partindo de um mesmo ponto; chegados a certa distância, diz um: “Não
posso ir mais longe.” O outro prossegue e descobre um novo mundo. Por que, então, há de o primeiro dizer que o segundo é louco, somente porque, entrevendo novos
horizontes, se decide a transpor os limites onde ao outro convém deter-se? Também
Cristóvão Colombo não foi tachado de louco, porque acreditava na existência de um
mundo, para lá do oceano? Quantos a história não conta desses loucos sublimes, que hão feito que a humanidade avançasse e aos quais se tecem coroas, depois de se
lhes haver atirado lama?
Pois bem! o Espiritismo, a loucura do século dezenove, segundo os que se
obstinam em permanecer na margem terrena, nos patenteia todo um mundo, mundo
bem mais importante para o homem, do que a América, porquanto nem todos os
homens vão à América, ao passo que todos, sem exceção de nenhum, vão ao dos
Espíritos, fazendo incessantes travessias de um para o outro. Galgado o ponto em
que nos achamos com relação à Gênese, o materialismo se detém, enquanto o
Espiritismo prossegue em suas pesquisas no domínio da Gênese espiritual.
Capítulo XI — Gênese espiritual
Princípio espiritual.
1. A existência do princípio espiritual é um fato que, por assim dizer, não precisa de
demonstração, do mesmo modo que o da existência do princípio material. É, de certa
forma, uma verdade axiomática. Ele se afirma pelos seus efeitos, como a matéria
pelos que lhe são próprios.
De acordo com este princípio: “Todo efeito tendo uma causa, todo efeito
inteligente há de ter uma causa inteligente”, ninguém há que não faça distinção entre
o movimento mecânico de um sino que o vento agite e o movimento desse mesmo
sino para dar um sinal, um aviso, atestando, só por isso, que obedece a um
pensamento, a uma intenção. Ora, não podendo acudir a ninguém a ideia de atribuir
pensamento à matéria do sino, tem-se de concluir que o move uma inteligência à
qual ele serve de instrumento para que ela se manifeste.
Pela mesma razão, ninguém terá a ideia de atribuir pensamento ao corpo de
um homem morto. Se, pois, vivo, o homem pensa, é que há nele alguma coisa que
não há quando está morto. A diferença que existe entre ele e o sino é que a
inteligência, que faz com que este se mova, está fora dele, ao passo que está no
homem a que faz que este obre.
2. O princípio espiritual é corolário da existência de Deus; sem esse princípio, Deus
não teria razão de ser, visto que não se poderia conceber a soberana inteligência a reinar, pela eternidade em fora, unicamente sobre a matéria bruta, como não se
poderia conceber que um monarca terreno, durante toda a sua vida, reinasse
exclusivamente sobre pedras. Não se podendo admitir Deus sem os atributos
essenciais da Divindade: a justiça e a bondade, inúteis seriam essas qualidades, se
ele as houvesse de exercitar somente sobre a matéria.
4. É inata no homem a ideia da perpetuidade do ser espiritual; essa ideia se acha nele
em estado de intuição e de aspiração. O homem compreende que somente aí está a
compensação às misérias da vida. Essa a razão por que sempre houve e haverá cada
vez mais espiritualistas do que materialistas e mais devotos do que ateus.
À ideia intuitiva e à força do raciocínio o Espiritismo junta a sanção dos
fatos, a prova material da existência do ser espiritual, da sua sobrevivência, da sua
imortalidade e da sua individualidade. Torna precisa e define o que aquela ideia
tinha de vago e de abstrato. Mostra o ser inteligente a atuar fora da matéria, quer
depois, quer durante a vida do corpo.
4. É inata no homem a ideia da perpetuidade do ser espiritual; essa ideia se acha nele
em estado de intuição e de aspiração. O homem compreende que somente aí está a
compensação às misérias da vida. Essa a razão por que sempre houve e haverá cada
vez mais espiritualistas do que materialistas e mais devotos do que ateus.
À ideia intuitiva e à força do raciocínio o Espiritismo junta a sanção dos
fatos, a prova material da existência do ser espiritual, da sua sobrevivência, da sua
imortalidade e da sua individualidade. Torna precisa e define o que aquela ideia
tinha de vago e de abstrato. Mostra o ser inteligente a atuar fora da matéria, quer
depois, quer durante a vida do corpo.
5. São a mesma coisa o princípio espiritual e o princípio vital?
Partindo, como sempre, da observação dos fatos, diremos que, se o
princípio vital fosse inseparável do princípio inteligente, haveria certa razão para
que os confundíssemos. Mas, havendo, como há, seres que vivem e não pensam, quais as plantas; corpos humanos que ainda se revelam animados de vida orgânica
quando já não há qualquer manifestação de pensamento; uma vez que no ser vivo se
produzem movimentos vitais independentes de qualquer intervenção da vontade;
que durante o sono a vida orgânica se conserva em plena atividade, enquanto que a
vida intelectual por nenhum sinal exterior se manifesta, é cabível se admita que a
vida orgânica reside num princípio inerente à matéria, independente da vida
espiritual, que é inerente ao Espírito. Ora, desde que a matéria tem uma vitalidade
independente do Espírito e que o Espírito tem uma vitalidade independente da
matéria, evidente se torna que essa dupla vitalidade repousa em dois princípios
diferentes. (Cap. X, n.os 16 a 19.)
6. Terá o princípio espiritual sua fonte de origem no elemento cósmico universal?
Será ele apenas uma transformação, um modo de existência desse elemento, como a
luz, a eletricidade, o calor, etc.?
Se fosse assim, o princípio espiritual sofreria as vicissitudes da matéria;
extinguir-se-ia pela desagregação, como o princípio vital; momentânea seria, como a
do corpo, a existência do ser inteligente que, então, ao morrer, volveria ao nada, ou,
o que daria na mesma, ao todo universal. Seria, numa palavra, a sanção das
doutrinas materialistas.
As propriedades sui generis que se reconhecem ao princípio espiritual
provam que ele tem existência própria, pois que, se sua origem estivesse na matéria, aquelas propriedades lhe faltariam. Desde que a inteligência e o pensamento não
podem ser atributos da matéria, chega-se, remontando dos efeitos à causa, à
conclusão de que o elemento material e o elemento espiritual são os dois princípios
constitutivos do universo. Individualizado, o elemento espiritual constitui os seres
chamados Espíritos, como, individualizado, o elemento material constitui os
diferentes corpos da natureza, orgânicos e inorgânicos.
7. Admitido o ser espiritual e não podendo ele proceder da matéria, qual a sua
origem, seu ponto de partida?
Aqui, falecem absolutamente os meios de investigação, como para tudo o
que diz respeito à origem das coisas. O homem apenas pode comprovar o que existe;
acerca de tudo o mais, apenas lhe é dado formular hipóteses e, quer porque esse
conhecimento esteja fora do alcance da sua inteligência atual, quer porque lhe seja
inútil ou prejudicial presentemente, Deus não lho outorga, nem mesmo pela
revelação.
O que Deus permite que seus mensageiros lhe digam e o que, aliás, o
próprio homem pode deduzir do princípio da soberana justiça, atributo essencial da
Divindade, é que todos procedem do mesmo ponto de partida; que todos são criados
simples e ignorantes, com igual aptidão para progredir pelas suas atividades
individuais; que todos atingirão o grau máximo da perfeição com seus esforços
pessoais; que todos, sendo filhos do mesmo Pai, são objeto de igual solicitude; que
nenhum há mais favorecido ou melhor dotado do que os outros, nem dispensado do
trabalho imposto aos demais para atingirem a meta.
8. Ao mesmo tempo que criou, desde toda a eternidade, mundos materiais, Deus há
criado, desde toda a eternidade, seres espirituais. Se assim não fora, os mundos
materiais careceriam de finalidade. Mais fácil seria conceberem-se os seres
espirituais sem os mundos materiais, do que estes últimos sem aqueles. Os mundos
materiais é que teriam de fornecer aos seres espirituais elementos de atividade para o
desenvolvimento de suas inteligências.
9. Progredir é condição normal dos seres espirituais e a perfeição relativa o fim que
lhes cumpre alcançar. Ora, havendo Deus criado desde toda a eternidade, e criando
incessantemente, também desde toda a eternidade tem havido seres que atingiram o
ponto culminante da escala. Antes que existisse a Terra, mundos sem conta haviam
sucedido a mundos e, quando a Terra saiu do caos dos elementos, o espaço estava
povoado de seres espirituais em todos os graus de adiantamento, desde os que
surgiam para a vida até os que, desde toda a eternidade, haviam tomado lugar entre
os puros Espíritos, vulgarmente chamados anjos.
União do princípio espiritual à matéria.
10. Tendo a matéria que ser objeto do trabalho do Espírito para desenvolvimento de
suas faculdades, era necessário que ele pudesse atuar sobre ela, pelo que veio habitá-la, como o lenhador habita a floresta. Tendo a matéria que ser, no mesmo tempo, objeto e instrumento do trabalho, Deus, em vez de unir o Espírito à pedra rígida, criou, para seu uso, corpos organizados, flexíveis, capazes de receber todas as
impulsões da sua vontade e de se prestarem a todos os seus movimentos.
O corpo é, pois, simultaneamente, o envoltório e o instrumento do Espírito
e, à medida que este adquire novas aptidões, reveste outro invólucro apropriado ao
novo gênero de trabalho que lhe cabe executar, tal qual se faz com o operário, a
quem é dado instrumento menos grosseiro, à proporção que ele se vai mostrando
apto a executar obra mais bem cuidada.
11. Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito que modela o seu
envoltório e o apropria às suas novas necessidades; aperfeiçoa-o e lhe desenvolve e
completa o organismo, à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas
faculdades; numa palavra, talha-o de acordo com a sua inteligência. Deus lhe
fornece os materiais; cabe-lhe a ele empregá-los. É assim que as raças adiantadas
têm um organismo ou, se quiserem, um aparelhamento cerebral mais aperfeiçoado
do que as raças primitivas. Desse modo igualmente se explica o cunho especial que
o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia e às linhas do corpo. (Cap. VIII, n.o 7: Alma da Terra.)
12. Desde que um Espírito nasce para a vida espiritual, tem, por adiantar-se, que
fazer uso de suas faculdades, rudimentares a princípio. Por isso é que reveste um
envoltório adequado ao seu estado de infância intelectual, envoltório que ele
abandona para tomar outro, à proporção que se lhe aumentam as forças. Ora como
em todos os tempos houve mundos e esses mundos deram nascimento a corpos
organizados próprios a receber Espíritos, em todos os tempos os Espíritos, qualquer
que fosse o grau de adiantamento que houvessem alcançado, encontraram os
elementos necessários à sua vida carnal.
13. Por ser exclusivamente material, o corpo sofre as vicissitudes da matéria. Depois
de funcionar por algum tempo, ele se desorganiza e decompõe. O princípio vital, não
mais encontrando elemento para sua atividade, se extingue e o corpo morre. O
Espírito, para quem, este, carente de vida, se torna inútil, deixa-o, como se deixa
uma casa em ruínas, ou uma roupa imprestável.
14. O corpo, conseguintemente, não passa de um envoltório destinado a receber o
Espírito. Desde então, pouco importam a sua origem e os materiais que entraram na
sua construção. Seja ou não o corpo do homem uma criação especial, o que não
padece dúvida é que tem a formá-lo os mesmos elementos que o dos animais, a
animá-lo o mesmo princípio vital, ou, por outra, a aquecê-lo o mesmo fogo, como
tem a iluminá-lo a mesma luz e se acha sujeito às mesmas vicissitudes e às mesmas
necessidades. É um ponto este que não sofre contestação.
A não se considerar, pois, senão a matéria, abstraindo do Espírito, o homem
nada tem que o distinga do animal. Tudo, porém, muda de aspecto, logo que se
estabelece distinção entre a habitação e o habitante.
Ou numa choupana, ou envergando as vestes de um campônio, um nobre
senhor não deixa de o ser. O mesmo se dá com o homem: não é a sua vestidura de
carne que o coloca acima do bruto e faz dele um ser à parte; é o seu ser espiritual, seu Espírito.
Hipótese sobre a origem do corpo humano.
15. Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do
macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação
do segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do
homem. Bem pode dar-se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos
primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar
na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais
adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já
pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser
homem.
Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de
modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a
origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a
semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu
Espírito e o do macaco.
16. Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a influência e por efeito da
atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se
nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto (n.
o 11). Melhorados, os
corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições, como sucede com
as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se
afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do
mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o
Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que
ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou
tronco.
Como em a natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros
homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não
muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo
comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta
parecença com o macaco, que só lhes falta ser peludos, para se tornar completa a
semelhança.
Encarnação dos Espíritos.
17. O Espiritismo ensina de que maneira se opera a união do Espírito com o corpo, na encarnação.
Pela sua essência espiritual, o Espírito é um ser indefinido, abstrato, que
não pode ter ação direta sobre a matéria, sendo-lhe indispensável um intermediário, que é o envoltório fluídico, o qual, de certo modo, faz parte integrante dele. É
semimaterial esse envoltório, isto é, pertence à matéria pela sua origem e à
espiritualidade pela sua natureza etérea. Como toda matéria, ele é extraído do fluido
cósmico universal que, nessa circunstância, sofre uma modificação especial. Esse
envoltório, denominado perispírito, faz de um ser abstrato, do Espírito, um ser
concreto, definido, apreensível pelo pensamento. Torna-o apto a atuar sobre a
matéria tangível, conforme se dá com todos os fluidos imponderáveis, que são, como se sabe, os mais poderosos motores.
O fluido perispirítico constitui, pois, o traço de união entre o Espírito e a
matéria. Enquanto aquele se acha unido ao corpo, serve-lhe ele de veículo ao
pensamento, para transmitir o movimento às diversas partes do organismo, as quais
atuam sob a impulsão da sua vontade e para fazer que repercutam no Espírito as
sensações que os agentes exteriores produzam. Servem-he de fios condutores os
nervos como, no telégrafo, ao fluido elétrico serve de condutor o fio metálico.
18. Quando o Espírito tem de encarnar num corpo humano em vias de formação, um
laço fluídico, que mais não é do que uma expansão do seu perispírito, o liga ao
gérmen que o atrai por uma força irresistível, desde o momento da concepção. À
medida que o gérmen se desenvolve, o laço se encurta. Sob a influência do princípio
vitomaterial do gérmen, o perispírito, que possui certas propriedades da matéria, se
une, molécula a molécula, ao corpo em formação, donde o poder dizer-se que o
Espírito, por intermédio do seu perispírito, se enraíza, de certa maneira, nesse
gérmen, como uma planta na terra. Quando o gérmen chega ao seu pleno
desenvolvimento, completa é a união; nasce então o ser para a vida exterior.
Por um efeito contrário, a união do perispírito e da matéria carnal, que se
efetuara sob a influência do princípio vital do gérmen, cessa, desde que esse
princípio deixa de atuar, em consequência da desorganização do corpo. Mantida que
era por uma força atuante, tal união se desfaz, logo que essa força deixa de atuar.
Então, o perispírito se desprende, molécula a molécula, conforme se unira, e ao
Espírito é restituída a liberdade. Assim, não é a partida do Espírito que causa a
morte do corpo; esta é que determina a partida do Espírito.
Dado que, um instante após a morte, completa é a integração do Espírito;
que suas faculdades adquirem até maior poder de penetração, ao passo que o
princípio de vida se acha extinto no corpo, provado evidentemente fica que são
distintos o princípio vital e o princípio espiritual.
19. O Espiritismo, pelos fatos cuja observação ele faculta, dá a conhecer os
fenômenos que acompanham essa separação, que, às vezes, é rápida, fácil, suave e
insensível, ao passo que doutras é lenta, laboriosa, horrivelmente penosa, conforme
o estado moral do Espírito, e pode durar meses inteiros.
20. Um fenômeno particular, que a observação igualmente assinala, acompanha
sempre a encarnação do Espírito. Desde que este é apanhado no laço fluídico que o
prende ao gérmen, entra em estado de perturbação, que aumenta, à medida que o
laço se aperta, perdendo o Espírito, nos últimos momentos, toda a consciência de si
próprio, de sorte que jamais presencia o seu nascimento. Quando a criança respira, começa o Espírito a recobrar as faculdades, que se desenvolvem à proporção que se
formam e consolidam os órgãos que lhes hão de servir às manifestações.
21. Mas, ao mesmo tempo que o Espírito recobra a consciência de si mesmo, perde a
lembrança do seu passado, sem perder as faculdades, as qualidades e as aptidões
anteriormente adquiridas, que haviam ficado temporariamente em estado de latência
e que, voltando à atividade, vão ajudá-lo a fazer mais e melhor do que antes. Ele
renasce qual se fizera pelo seu trabalho anterior; o seu renascimento lhe é um novo
ponto de partida, um novo degrau a subir. Ainda aí a bondade do Criador se
manifesta, porquanto, adicionada aos amargores de uma nova existência, a
lembrança, muitas vezes aflitiva e humilhante, do passado, poderia turbá-lo e lhe
criar embaraços. Ele apenas se lembra do que aprendeu, por lhe ser isso útil. Se às
vezes lhe é dado ter uma intuição dos acontecimentos passados, essa intuição é
como a lembrança de um sonho fugitivo. Ei-lo, pois, novo homem por mais antigo
que seja como Espírito. Adota novos processos, auxiliado pelas suas aquisições
precedentes. Quando retorna à vida espiritual, seu passado se lhe desdobra diante
dos olhos e ele julga de como empregou o tempo, se bem ou mal.
22. Não há, portanto, solução de continuidade na vida espiritual, sem embargo do
esquecimento do passado. Cada Espírito é sempre o mesmo eu, antes, durante e
depois da encarnação, sendo esta, apenas, uma fase da sua existência. O próprio
esquecimento se dá tão-só no curso da vida exterior de relação. Durante o sono, desprendido, em parte, dos liames carnais, restituído à liberdade e à vida espiritual, o
Espírito se lembra, pois que, então, já não tem a visão tão obscurecida pela matéria.
23. Tomando-se a humanidade no grau mais ínfimo da escala espiritual, como se
encontra entre os mais atrasados selvagens, perguntar-se-á se é aí o ponto inicial da
alma humana.
Na opinião de alguns filósofos espiritualistas, o princípio inteligente, distinto do princípio material, se individualiza e elabora, passando pelos diversos
graus da animalidade. É aí que a alma se ensaia para a vida e desenvolve, pelo
exercício, suas primeiras faculdades. Esse seria para ela, por assim dizer, o período
de incubação. Chegada ao grau de desenvolvimento que esse estado comporta, ela
recebe as faculdades especiais que constituem a alma humana. Haveria assim
filiação espiritual do animal para o homem, como há filiação corporal.
Este sistema, fundado na grande lei de unidade que preside à criação, corresponde, forçoso é convir, à justiça e à bondade do Criador; dá uma saída, uma
finalidade, um destino aos animais, que deixam então de formar uma categoria de
seres deserdados, para terem, no futuro que lhes está reservado, uma compensação a
seus sofrimentos. O que constitui o homem espiritual não é a sua origem: são os
atributos especiais de que ele se apresenta dotado ao entrar na humanidade, atributos
que o transformam, tornando-o um ser distinto, como o fruto saboroso é distinto da
raiz amarga que lhe deu origem. Por haver passado pela fieira da animalidade, o
homem não deixaria de ser homem; já não seria animal, como o fruto não é a raiz, como o sábio não é o feto informe que o pôs no mundo.
Mas, este sistema levanta múltiplas questões, cujos prós e contras não é
oportuno discutir aqui, como não o é o exame das diferentes hipóteses que se têm
formulado sobre este assunto. Sem, pois, pesquisarmos a origem do Espírito, sem
procurarmos conhecer as fieiras pelas quais haja ele, porventura, passado, tomamo-lo ao entrar na humanidade, no ponto em que, dotado de senso moral e de livre-arbítrio, começa a pesar-lhe a responsabilidade dos seus atos.
24. A obrigação que tem o Espírito encarnado de prover ao alimento do corpo, à sua
segurança, ao seu bem-estar, o força a empregar suas faculdades em investigações, a
exercitá-las e desenvolvê-las. Útil, portanto, ao seu adiantamento é a sua união com
a matéria. Daí o constituir uma necessidade a encarnação. Além disso, pelo trabalho
inteligente que ele executa em seu proveito, sobre a matéria, auxilia a transformação
e o progresso material do globo que lhe serve de habitação. É assim que, progredindo, colabora na obra do Criador, da qual se torna fator inconsciente.
25. Todavia, a encarnação do Espírito não é constante, nem perpétua: é transitória. Deixando um corpo, ele não retoma imediatamente outro. Durante mais ou menos
considerável lapso de tempo, vive da vida espiritual, que é sua vida normal, de tal
sorte que insignificante vem a ser o tempo que lhe duram as encarnações, se
comparado ao que passa no estado de Espírito livre.
No intervalo de suas encarnações, o Espírito progride igualmente, no
sentido de que aplica ao seu adiantamento os conhecimentos e a experiência que
alcançou no decorrer da vida corporal; examina o que fez enquanto habitou a Terra, passa em revista o que aprendeu, reconhece suas faltas, traça planos e toma
resoluções pelas quais conta guiar-se em nova existência, com a ideia de melhor se
conduzir. Desse jeito, cada existência representa um passo para a frente no caminho
do progresso, uma espécie de escola de aplicação.
26. Normalmente, a encarnação não é uma punição para o Espírito, conforme
pensam alguns, mas uma condição inerente à inferioridade do Espírito e um meio de progredir. (
O Céu e o Inferno, cap. III, n.os 8 e seguintes.)
À medida que progride moralmente, o Espírito se desmaterializa, isto é, depura-se, com o subtrair-se à influência da matéria; sua vida se espiritualiza, suas
faculdades e percepções se ampliam; sua felicidade se torna proporcional ao
progresso realizado. Entretanto, como atua em virtude do seu livre-arbítrio, pode ele, por negligência ou má vontade, retardar o seu avanço; prolonga, conseguintemente, a duração de suas encarnações materiais, que, então, se lhe tornam uma punição, pois que, por falta sua, ele permanece nas categorias inferiores, obrigado a
recomeçar a mesma tarefa. Depende, pois, do Espírito abreviar, pelo trabalho de
depuração executado sobre si mesmo, a extensão do período das encarnações.
27. O progresso material de um planeta acompanha o progresso moral de seus
habitantes. Ora, sendo incessante, como é, a criação dos mundos e dos Espíritos e
progredindo estes mais ou menos rapidamente, conforme o uso que façam do livre-arbítrio, segue-se que há mundos mais ou menos antigos, em graus diversos de
adiantamento físico e moral, onde é mais ou menos material a encarnação e onde, por conseguinte, o trabalho, para os Espíritos, é mais ou menos rude. Deste ponto de
vista, a Terra é um dos menos adiantados. Povoada de Espíritos relativamente
inferiores, a vida corpórea é aí mais penosa do que noutros orbes, havendo-os
também mais atrasados, onde a existência é ainda mais penosa do que na Terra e em
confronto com os quais esta seria, relativamente, um mundo ditoso.
28. Quando, em um mundo, os Espíritos hão realizado a soma de progresso que o
estado desse mundo comporta, deixam-no para encarnar em outro mais adiantado, onde adquiram novos conhecimentos e assim por diante, até que, não lhes sendo
mais de proveito algum a encarnação em corpos materiais, passam a viver
exclusivamente da vida espiritual, em a qual continuam a progredir, mas noutro
sentido e por outros meios. Chegados ao ponto culminante do progresso, gozam da
suprema felicidade. Admitidos nos conselhos do Onipotente, conhecem-lhe o
pensamento e se tornam seus mensageiros, seus ministros diretos no governo dos
mundos, tendo sob suas ordens os Espíritos de todos os graus de adiantamento.
Assim, qualquer que seja o grau em que se achem na hierarquia espiritual, do mais ínfimo ao mais elevado, têm eles suas atribuições no grande mecanismo do
universo; todos são úteis ao conjunto, ao mesmo tempo que a si próprios. Aos
menos adiantados, como a simples serviçais, incumbe o desempenho, a princípio
inconsciente, depois, cada vez mais inteligente, de tarefas materiais. Por toda parte, no mundo espiritual, atividade, em nenhum ponto a ociosidade inútil.
A coletividade dos Espíritos constitui, de certo modo, a alma do universo. Por toda parte, o elemento espiritual é que atua em tudo, sob o influxo do
pensamento divino. Sem esse elemento, só há matéria inerte, carente de finalidade, de inteligência, tendo por único motor as forças materiais, cuja exclusividade deixa
insolúveis uma imensidade de problemas. Com a ação do elemento espiritual
individualizado, tudo tem uma finalidade, uma razão de ser, tudo se explica. Prescindindo da espiritualidade, o homem esbarra em dificuldades insuperáveis.
29. Quando a Terra se encontrou em condições climáticas apropriadas à existência
da espécie humana, encarnaram nela Espíritos humanos. Donde vinham? Quer eles
tenham sido criados naquele momento, quer tenham procedido, completamente
formados, do espaço, de outros mundos, ou da própria Terra, a presença deles nesta, a partir de certa época, é um fato, pois que antes deles só animais havia. Revestiram se de corpos adequados às suas necessidades especiais, às suas aptidões, e que,
fisiologicamente, tinham as características da animalidade. Sob a influência deles e
por meio do exercício de suas faculdades, esses corpos se modificaram e
aperfeiçoaram: é o que a observação comprova. Deixemos então de lado a questão
da origem, insolúvel por enquanto; consideremos o Espírito, não em seu ponto de
partida, mas no momento em que, manifestando-se nele os primeiros germens do
livre-arbítrio e do senso moral o vemos a desempenhar o seu papel humanitário, sem
cogitarmos do meio onde haja transcorrido o período de sua infância, ou, se o
preferirem, de sua incubação. Malgrado à analogia do seu envoltório com o dos
animais, poderemos diferençá-lo destes últimos pelas faculdades intelectuais e
morais que o caracterizam, como, debaixo das mesmas vestes grosseiras, distinguimos o rústico do homem civilizado.
30. Conquanto devessem ser pouco adiantados os primeiros que vieram, pela razão
mesma de terem de encarnar em corpos muito imperfeitos, diferenças sensíveis
haveria decerto entre seus caracteres e aptidões. Os que se assemelhavam, naturalmente se agruparam por analogia e simpatia. Achou-se a Terra, assim, povoada de Espíritos de diversas categorias, mais ou menos aptos ou rebeldes ao
progresso. Recebendo os corpos a impressão do caráter do Espírito e procriando-se
esses corpos na conformidade dos respectivos tipos, resultaram daí diferentes raças, quer quanto ao físico, quer quanto ao moral (n.
o 11). Continuando a encarnar entre os
que se lhes assemelhavam, os Espíritos similares perpetuaram o caráter distintivo,
físico e moral, das raças e dos povos, caráter que só com o tempo desaparece, mediante a fusão e o progresso deles. (
Revue spirite, julho de 1860, página 198: “Frenologia e Fisiognomonia”.)
31. Podem comparar-se os Espíritos que vieram povoar a Terra a esses bandos de
emigrantes de origens diversas, que vão estabelecer-se numa terra virgem, onde
encontram madeira e pedra para erguerem habitações, cada um dando à sua um
cunho especial, de acordo com o grau do seu saber e com o seu gênio particular.
Grupam-se então por analogia de origens e de gostos, acabando os grupos por
formar tribos, em seguida povos, cada qual com costumes e caracteres próprios.
32. Não foi, portanto, uniforme o progresso em toda a espécie humana. Como era
natural, as raças mais inteligentes adiantaram-se às outras, mesmo sem se levar em
conta que muitos Espíritos recém-nascidos para a vida espiritual, vindo encarnar na
Terra juntamente com os primeiros aí chegados, tornaram ainda mais sensível a
diferença em matéria de progresso. Fora, com efeito, impossível atribuir-se a mesma
ancianidade de criação aos selvagens, que mal se distinguem do macaco, e aos
chineses, nem, ainda menos, aos europeus civilizados.
Entretanto, os Espíritos dos selvagens também fazem parte da humanidade
e alcançarão um dia o nível em que se acham seus irmãos mais velhos. Mas, sem
dúvida, não será em corpos da mesma raça física, impróprios a um certo
desenvolvimento intelectual e moral. Quando o instrumento já não estiver em
correspondência com o progresso que hajam alcançado, eles emigrarão daquele
meio, para encarnar noutro mais elevado e assim por diante, até que tenham
conquistado todas as graduações terrestres, ponto em que deixarão a Terra, para
passar a mundos mais avançados. (
Revue spirite, abril de 1862, pág. 97: “Perfectibilidade da raça negra”.)
Reencarnações.
33. O princípio da reencarnação é uma consequência necessária da lei de progresso. Sem a reencarnação, como se explicaria a diferença que existe entre o presente
estado social e o dos tempos de barbárie? Se as almas são criadas ao mesmo tempo
que os corpos, as que nascem hoje são tão novas, tão primitivas, quanto as que
viviam há mil anos; acrescentemos que nenhuma conexão haveria entre elas, nenhuma relação necessária; seriam de todo estranhas umas às outras. Por que, então, as de hoje haviam de ser melhor dotadas por Deus, do que as que as
precederam? Por que têm aquelas melhor compreensão? Por que possuem instintos
mais apurados, costumes mais brandos? Por que têm a intuição de certas coisas, sem
as haverem aprendido? Duvidamos de que alguém saia desses dilemas, a menos
admita que Deus cria almas de diversas qualidades, de acordo com os tempos e
lugares, proposição inconciliável com a ideia de uma justiça soberana. (Cap. II, n.
o
10.)
Admiti, ao contrário, que as almas de agora já viveram em tempos
distantes; que possivelmente foram bárbaras como os séculos em que estiveram no
mundo, mas que progrediram; que para cada nova existência trazem o que
adquiriram nas existências precedentes; que, por conseguinte, as dos tempos
civilizados não são almas criadas mais perfeitas, porém que se aperfeiçoaram por si
mesmas com o tempo, e tereis a única explicação plausível da causa do progresso
social. (
O Livro dos Espíritos, Parte 2.ª, caps. IV e V.)
34. Pensam alguns que as diferentes existências da alma se efetuam, passando elas
de mundo em mundo e não num mesmo orbe, onde cada Espírito viria uma única
vez.
Seria admissível esta doutrina, se todos os habitantes da Terra estivessem
no mesmo nível intelectual e moral. Eles então só poderiam progredir indo de um
mundo a outro e nenhuma utilidade lhes adviria da encarnação na Terra. Desde que
aí se notam a inteligência e a moralidade em todos os graus, desde a selvajaria que
beira o animal até a mais adiantada civilização, é evidente que esse mundo constitui
um vasto campo de progresso. Por que haveria o selvagem de ir procurar alhures o
grau de progresso logo acima do em que ele está, quando esse grau se lhe acha ao
lado e assim sucessivamente? Por que não teria podido o homem adiantado fazer os
seus primeiros estágios senão em mundos inferiores, quando ao seu derredor estão
seres análogos aos desses mundos? quando, não só de povo a povo, mas no seio do
mesmo povo e da mesma família, há diferentes graus de adiantamento? Se fosse
assim, Deus houvera feito coisa inútil, colocando lado a lado a ignorância e o saber, a barbaria e a civilização, o bem e o mal, quando precisamente esse contacto é que
faz que os retardatários avancem.
Não há, pois, necessidade de que os homens mudem de mundo a cada etapa
de aperfeiçoamento, como não há de que o estudante mude de colégio para passar de
uma classe a outra. Longe de ser isso vantagem para o progresso, ser-lhe-ia um
entrave, porquanto o Espírito ficaria privado do exemplo que lhe oferece a
observação do que ocorre nos graus mais elevados e da possibilidade de reparar seus
erros no mesmo meio e em presença dos a quem ofendeu, possibilidade que é, para
ele, o mais poderoso modo de realizar o seu progresso moral. Após curta coabitação, dispersando-se os Espíritos e tornando-se estranhos uns aos outros, romper-se-iam
os laços de família, à falta de tempo para se consolidarem.
Ao inconveniente moral se juntaria um inconveniente material. A natureza
dos elementos, as leis orgânicas, as condições de existência variam, de acordo com
os mundos; sob esse aspecto, não há dois perfeitamente idênticos. Os tratados de física, de química, de anatomia, de medicina, de botânica, etc., para nada
serviriam nos outros mundos; entretanto, não fica perdido o que neles se aprende;
não só isso desenvolve a inteligência, como também as ideias que se colhem de tais
obras auxiliam a aquisição de outras. (Cap. VI, n.
os 61 e seguintes.) Se apenas uma
única vez fizesse o Espírito a sua aparição, frequentemente brevíssima, num mesmo
mundo, em cada imigração ele se acharia em condições inteiramente diversas;
operaria de cada vez sobre elementos novos, com força e segundo leis que
desconheceria, antes de ter tido tempo de elaborar os elementos conhecidos, de os
estudar, de os aplicar. Teria de fazer, de cada vez, um novo aprendizado e essas
mudanças contínuas representariam um obstáculo ao progresso. O Espírito, portanto,
tem que permanecer no mesmo mundo, até que haja adquirido a soma de
conhecimentos e o grau de perfeição que esse mundo comporta. (N.
o 31.)
Que os Espíritos deixem, por um mundo mais adiantado, aquele do qual
nada mais podem auferir, é como deve ser e é. Tal o princípio. Se alguns há que
antecipadamente deixam o mundo em que vinham encarnando, é isso devido a
causas individuais que Deus pesa em sua sabedoria.
Tudo na criação tem uma finalidade, sem o que Deus não seria nem
prudente, nem sábio. Ora, se a Terra se destinasse a ser uma única etapa do
progresso para cada indivíduo, que utilidade haveria, para os Espíritos das crianças
que morrem em tenra idade, vir passar aí alguns anos, alguns meses, algumas horas, durante os quais nada podem haurir dele? O mesmo ocorre se pondere com
referência aos idiotas e aos cretinos. Uma teoria somente é boa sob a condição de
resolver todas as questões a que diz respeito. A questão das mortes prematuras há
sido uma pedra de tropeço para todas as doutrinas, exceto para a doutrina espírita, que a resolveu de maneira racional e completa.
Para o progresso daqueles que cumprem na Terra uma missão normal, há
vantagem real em volverem ao mesmo meio para aí continuarem o que deixaram
inacabado, muitas vezes na mesma família ou em contacto com as mesmas pessoas, a fim de repararem o mal que tenham feito, ou de sofrerem a pena de talião.
Emigrações e imigrações dos Espíritos.
35. No intervalo de suas existências corporais, os Espíritos se encontram no estado
de erraticidade e formam a população espiritual ambiente da Terra. Pelas mortes e
pelos nascimentos, as duas populações, terrestre e espiritual, deságuam
incessantemente uma na outra. Há, pois, diariamente, emigrações do mundo
corpóreo para o mundo espiritual e imigrações deste para aquele: é o estado normal.
36. Em certas épocas, determinadas pela sabedoria divina, essas emigrações e
imigrações se operam por massas mais ou menos consideráveis, em virtude das grandes revoluções que lhes ocasionam a partida simultânea em quantidades
enormes, logo substituídas por equivalentes quantidades de encarnações. Os flagelos
destruidores e os cataclismos devem, portanto, considerar-se como ocasiões de
chegadas e partidas coletivas, meios providenciais de renovamento da população
corporal do globo, de ela se retemperar pela introdução de novos elementos
espirituais mais depurados. Na destruição, que por essas catástrofes se verifica, de
grande número de corpos, nada mais há do que rompimento de vestiduras; nenhum
Espírito perece; eles apenas mudam de planos; em vez de partirem isoladamente, partem em bandos, essa a única diferença, visto que, ou por uma causa ou por outra,
fatalmente têm que partir, cedo ou tarde.
As renovações rápidas, quase instantâneas, que se produzem no elemento
espiritual da população, por efeito dos flagelos destruidores, apressam o progresso
social; sem as emigrações e imigrações que de tempos a tempos lhe vêm dar
violento impulso, só com extrema lentidão esse progresso se realizaria.
É de notar-se que todas as grandes calamidades que dizimam as populações
são sempre seguidas de uma era de progresso de ordem física, intelectual, ou moral
e, por conseguinte, no estado social das nações que as experimentam. É que elas têm
por fim operar uma remodelação na população espiritual, que é a população normal
e ativa do globo.
37. Essa transfusão, que se efetua entre a população encarnada e desencarnada de
um planeta, igualmente se efetua entre os mundos, quer individualmente, nas
condições normais, quer por massas, em circunstâncias especiais. Há, pois, emigrações e imigrações coletivas de um mundo para outro, donde resulta a
introdução, na população de um deles, de elementos inteiramente novos. Novas
raças de Espíritos, vindo misturar-se às existentes, constituem novas raças de
homens. Ora, como os Espíritos nunca mais perdem o que adquiriram, consigo
trazem eles sempre a inteligência e a intuição dos conhecimentos que possuem, o
que faz que imprimam o caráter que lhes é peculiar à raça corpórea que venham
animar. Para isso, só necessitam de que novos corpos sejam criados para serem por
eles usados. Uma vez que a espécie corporal existe, eles encontram sempre corpos
prontos para os receber. Não são mais, portanto, do que novos habitantes. Em
chegando à Terra, integram-lhe, a princípio, a população espiritual; depois, encarnam, como os outros.
36. Em certas épocas, determinadas pela sabedoria divina, essas emigrações e
imigrações se operam por massas mais ou menos consideráveis, em virtude das grandes revoluções que lhes ocasionam a partida simultânea em quantidades
enormes, logo substituídas por equivalentes quantidades de encarnações. Os flagelos
destruidores e os cataclismos devem, portanto, considerar-se como ocasiões de
chegadas e partidas coletivas, meios providenciais de renovamento da população
corporal do globo, de ela se retemperar pela introdução de novos elementos
espirituais mais depurados. Na destruição, que por essas catástrofes se verifica, de
grande número de corpos, nada mais há do que rompimento de vestiduras; nenhum
Espírito perece; eles apenas mudam de planos; em vez de partirem isoladamente, partem em bandos, essa a única diferença, visto que, ou por uma causa ou por outra,
fatalmente têm que partir, cedo ou tarde.
As renovações rápidas, quase instantâneas, que se produzem no elemento
espiritual da população, por efeito dos flagelos destruidores, apressam o progresso
social; sem as emigrações e imigrações que de tempos a tempos lhe vêm dar
violento impulso, só com extrema lentidão esse progresso se realizaria.
É de notar-se que todas as grandes calamidades que dizimam as populações
são sempre seguidas de uma era de progresso de ordem física, intelectual, ou moral
e, por conseguinte, no estado social das nações que as experimentam. É que elas têm
por fim operar uma remodelação na população espiritual, que é a população normal
e ativa do globo.
37. Essa transfusão, que se efetua entre a população encarnada e desencarnada de
um planeta, igualmente se efetua entre os mundos, quer individualmente, nas
condições normais, quer por massas, em circunstâncias especiais. Há, pois, emigrações e imigrações coletivas de um mundo para outro, donde resulta a
introdução, na população de um deles, de elementos inteiramente novos. Novas
raças de Espíritos, vindo misturar-se às existentes, constituem novas raças de
homens. Ora, como os Espíritos nunca mais perdem o que adquiriram, consigo
trazem eles sempre a inteligência e a intuição dos conhecimentos que possuem, o
que faz que imprimam o caráter que lhes é peculiar à raça corpórea que venham
animar. Para isso, só necessitam de que novos corpos sejam criados para serem por
eles usados. Uma vez que a espécie corporal existe, eles encontram sempre corpos
prontos para os receber. Não são mais, portanto, do que novos habitantes. Em
chegando à Terra, integram-lhe, a princípio, a população espiritual; depois, encarnam, como os outros.
37. Essa transfusão, que se efetua entre a população encarnada e desencarnada de
um planeta, igualmente se efetua entre os mundos, quer individualmente, nas
condições normais, quer por massas, em circunstâncias especiais. Há, pois, emigrações e imigrações coletivas de um mundo para outro, donde resulta a
introdução, na população de um deles, de elementos inteiramente novos. Novas
raças de Espíritos, vindo misturar-se às existentes, constituem novas raças de
homens. Ora, como os Espíritos nunca mais perdem o que adquiriram, consigo
trazem eles sempre a inteligência e a intuição dos conhecimentos que possuem, o
que faz que imprimam o caráter que lhes é peculiar à raça corpórea que venham
animar. Para isso, só necessitam de que novos corpos sejam criados para serem por
eles usados. Uma vez que a espécie corporal existe, eles encontram sempre corpos
prontos para os receber. Não são mais, portanto, do que novos habitantes. Em
chegando à Terra, integram-lhe, a princípio, a população espiritual; depois, encarnam, como os outros.
Raça adâmica.
38. De acordo com o ensino dos Espíritos, foi uma dessas grandes imigrações, ou, se
quiserem, uma dessas colônias de Espíritos, vinda de outra esfera, que deu origem à
raça simbolizada na pessoa de Adão e, por essa razão mesma, chamada raça
adâmica. Quando ela aqui chegou, a Terra já estava povoada desde tempos
imemoriais, como a América, quando aí chegaram os europeus.
Mais adiantada do que as que a tinham precedido neste planeta, a raça
adâmica é, com efeito, a mais inteligente, a que impele ao progresso todas as outras. A Gênese no-la mostra, desde os seus primórdios, industriosa, apta às artes e às ciências, sem haver passado aqui pela infância espiritual, o que não se dá com as
raças primitivas, mas concorda com a opinião de que ela se compunha de Espíritos
que já tinham progredido bastante. Tudo prova que a raça adâmica não é antiga na
Terra e nada se opõe a que seja considerada como habitando este globo desde apenas
alguns milhares de anos, o que não estaria em contradição nem com os fatos
geológicos, nem com as observações antropológicas, antes tenderia a confirmá-las.
39. No estado atual dos conhecimentos, não é admissível a doutrina segundo a qual
todo o gênero humano procede de uma individualidade única, de há seis mil anos
somente a esta parte. Tomadas à ordem física e à ordem moral, as considerações que
a contradizem se resumem no seguinte:
Do ponto de vista fisiológico, algumas raças apresentam característicos
tipos particulares, que não permitem se lhes assinale uma origem comum. Há
diferenças que evidentemente não são simples efeito do clima, pois que os brancos
que se reproduzem nos países dos negros não se tornam negros e reciprocamente. O
ardor do Sol tosta e brune a epiderme, porém nunca transformou um branco em
negro, nem lhe achatou o nariz, ou mudou a forma dos traços da fisionomia, nem lhe
tornou lanzudo e encarapinhado o cabelo comprido e sedoso. Sabe-se hoje que a cor
do negro provém de um tecido especial subcutâneo, peculiar à espécie.
Há-se, pois, de considerar as raças negras, mongólicas, caucásicas como
tendo origem própria, como tendo nascido simultânea ou sucessivamente em
diversas partes do globo. O cruzamento delas produziu as raças mistas secundárias. Os caracteres fisiológicos das raças primitivas constituem indício evidente de que
elas procedem de tipos especiais. As mesmas considerações se aplicam, conseguintemente, assim aos homens, quanto aos animais, no que concerne à
pluralidade dos troncos. (Cap. X, n.
os 2 e seguintes.)
40. Adão e seus descendentes são apresentados na Gênese como homens
sobremaneira inteligentes, pois que, desde a segunda geração, constroem cidades, cultivam a terra, trabalham os metais. São rápidos e duradouros seus progressos nas
artes e nas ciências. Não se conceberia, portanto, que esse tronco tenha tido, como
ramos, numerosos povos tão atrasados, de inteligência tão rudimentar, que ainda em
nossos dias rastejam a animalidade, que hajam perdido todos os traços e, até, a
menor lembrança do que faziam seus pais. Tão radical diferença nas aptidões
intelectuais e no desenvolvimento moral atesta, com evidência não menor, uma
diferença de origem.
41. Independentemente dos fatos geológicos, da população do globo se tira a prova
da existência do homem na Terra, antes da época fixada pela Gênese. Sem falar da
cronologia chinesa, que remonta, dizem, a trinta mil anos, documentos mais
autênticos provam que o Egito, a Índia e outros países já eram povoados e
floresciam, pelo menos, três mil anos antes da era cristã, mil anos, portanto, depois
da criação do primeiro homem, segundo a cronologia bíblica. Documentos e
observações recentes não consentem hoje dúvida alguma quanto às relações que
existiram entre a América e os antigos egípcios, donde se tem de concluir que essa
região já era povoada naquela época. Forçoso então seria admitir-se que, em mil anos, a posteridade de um único homem pôde povoar a maior parte da Terra. Ora, semelhante fecundidade estaria em antagonismo com todas as leis antropológicas.*
* Na Exposição Universal de 1867, apresentaram-se antiguidades do México que nenhuma dúvida deixam sobre as relações que os povos desse país tiveram com os antigos egípcios. O Sr. Léon Méchedin, numa nota afixada no templo mexicano da Exposição, assim se exprimia:
“Não é conveniente se publiquem, prematuramente, as descobertas feitas, do ponto de vista da história do homem, pela recente expedição científica do México. Entretanto, nada se opõe a que o público
saiba, desde já, que a exploração assinalou a existência de grande numero de cidades desaparecidas com o
tempo, mas que a picareta e o incêndio podem retirar de suas mortalhas. As escavações puseram a descoberto, por toda parte, três camadas de civilizações, que dão ao mundo americano uma antiguidade
fabulosa.”
É assim que todos os dias a ciência opõe o desmentido dos fatos à doutrina que limita a 6.000
anos a aparição do homem na Terra e pretende fazê-lo derivar de um tronco único.
42. Ainda mais evidente se torna a impossibilidade, desde que se admita, com a
Gênese, que o dilúvio destruiu todo o gênero humano, com exceção de Noé e de sua
família, que não era numerosa, no ano de 1656 do mundo, ou seja, 2.348 anos antes
da era cristã. Em realidade, pois, daquele patriarca é que dataria o povoamento da
Terra. Ora, quando os hebreus se estabeleceram no Egito, 612 anos após o dilúvio, já
o Egito era um poderoso império, que teria sido povoado, sem falar de outros países, em menos de seis séculos, só pelos descendentes de Noé, o que não é admissível.
Notemos, de passagem, que os egípcios acolheram os hebreus como
estrangeiros. Seria de espantar que houvessem perdido a lembrança de uma tão
próxima comunidade de origem, quando conservaram religiosamente os
monumentos de sua história.
Rigorosa lógica, com os fatos a corroborá-la da maneira mais peremptória, mostra, pois, que o homem está na Terra desde tempo indeterminado, muito anterior
à época que a Gênese assinala. O mesmo ocorre com a diversidade dos troncos
primitivos, porquanto demonstrar a impossibilidade de uma proposição é demonstrar
a proposição contrária. Se a geologia descobrir traços autênticos da presença do
homem antes do grande período diluviano, ainda mais completa é a demonstração.
Doutrina dos anjos decaídos e da perda do paraíso.
43. Os mundos progridem, fisicamente, pela elaboração da matéria e, moralmente, pela purificação dos Espíritos que os habitam. A felicidade neles está na razão direta
da predominância do bem sobre o mal e a predominância do bem resulta do
adiantamento moral dos Espíritos. O progresso intelectual não basta, pois que com a
inteligência podem eles fazer o mal.
Logo que um mundo tem chegado a um de seus períodos de transformação, a fim de ascender na hierarquia dos mundos, operam-se mutações na sua população
encarnada e desencarnada. É quando se dão as grandes emigrações e imigrações (n.
os 34 e 35). Os que, apesar da sua inteligência e do seu saber, perseveraram no mal, sempre revoltados contra Deus e suas leis, se tornariam daí em diante um embaraço
ao ulterior progresso moral, uma causa permanente de perturbação para a tranquilidade e a felicidade dos bons, pelo que são excluídos da humanidade a que
até então pertenceram e tangidos para mundos menos adiantados, onde aplicarão a
inteligência e a intuição dos conhecimentos que adquiriram ao progresso daqueles
entre os quais passam a viver, ao mesmo tempo que expiarão, por uma série de
existências penosas e por meio de árduo trabalho, suas passadas faltas e seu
voluntário endurecimento.
Que serão tais seres, entre essas outras populações, para eles novas, ainda
na infância da barbárie, senão anjos ou Espíritos decaídos, ali vindos em expiação?
Não é, precisamente, para eles, um paraíso perdido a terra donde foram expulsos?
Essa terra não lhes era um lugar de delícias, em comparação com o meio ingrato
onde vão ficar relegados por milhares de séculos, até que hajam merecido libertar-se dele? A vaga lembrança intuitiva que guardam da terra donde vieram é uma como
longínqua miragem a lhes recordar o que perderam por culpa própria.
44. Mas, ao mesmo tempo que os maus se afastam do mundo em que habitavam, Espíritos melhores aí os substituem, vindos quer da erraticidade, concernente a esse
mundo, quer de um mundo menos adiantado, que mereceram abandonar; Espíritos
esses para os quais a nova habitação é uma recompensa. Assim renovada e depurada
a população espiritual dos seus piores elementos, ao cabo de algum tempo o estado
moral do mundo se encontra melhorado.
São às vezes parciais essas mutações, isto é, circunscritas a um povo, a uma
raça; doutras vezes, são gerais, quando chega para o globo o período de renovação.
45. A raça adâmica apresenta todos os caracteres de uma raça proscrita. Os Espíritos
que a integram foram exilados para a Terra, já povoada, mas de homens primitivos,
imersos na ignorância, que aqueles tiveram por missão fazer progredir, levando-lhes
as luzes de uma inteligência desenvolvida. Não é esse, com efeito, o papel que essa
raça há desempenhado até hoje? Sua superioridade intelectual prova que o mundo
donde vieram os Espíritos que a compõem era mais adiantado do que a Terra. Havendo entrado esse mundo numa nova fase de progresso e não tendo tais Espíritos
querido, pela sua obstinação, colocar-se à altura desse progresso, lá estariam
deslocados e constituiriam um obstáculo à marcha providencial das coisas. Foram, em consequência, desterrados de lá e substituídos por outros que isso mereceram.
Relegando aquela raça para esta terra de labor e de sofrimentos, teve Deus
razão para lhe dizer: “Dela tirarás o alimento com o suor da tua fronte”. Na sua
mansuetude, prometeu-lhe que lhe enviaria um salvador, isto é, um que a
esclareceria sobre o caminho que lhe cumpria tomar, para sair desse lugar de
miséria, desse inferno, e ganhar a felicidade dos eleitos. Esse salvador ele, com
efeito, lho enviou, na pessoa do Cristo, que lhe ensinou a lei de amor e de caridade
que ela desconhecia e que seria a verdadeira âncora de salvação.
É igualmente com o objetivo de fazer que a humanidade se adiante em
determinado sentido que Espíritos superiores, embora sem as qualidades do Cristo, encarnam de tempos a tempos na Terra para desempenhar missões especiais, proveitosas, simultaneamente, ao adiantamento pessoal deles, se as cumprirem de
acordo com os desígnios do Criador.
46. Sem a reencarnação, a missão do Cristo seria um contra-senso, assim como a
promessa feita por Deus. Suponhamos, com efeito, que a alma de cada homem seja
criada por ocasião do nascimento do corpo e não faça mais do que aparecer e
desaparecer da Terra: nenhuma relação haveria entre as que vieram desde Adão até
Jesus Cristo, nem entre as que vieram depois; todas são estranhas umas às outras. A
promessa que Deus fez de um salvador não poderia entender-se com os
descendentes de Adão, uma vez que suas almas ainda não estavam criadas. Para que
a missão do Cristo pudesse corresponder às palavras de Deus, fora mister se
aplicassem às mesmas almas. Se estas são novas, não podem estar maculadas pela
falta do primeiro pai, que é apenas pai carnal e não pai espiritual. A não ser assim, Deus houvera criado almas com a mácula de uma falta que não podia deixar nelas
vestígio, pois que elas não existiam. A doutrina vulgar do pecado original implica, conseguintemente, a necessidade de uma relação entre as almas do tempo do Cristo
e as do tempo de Adão; implica, portanto, a reencarnação.
Dizei que todas essas almas faziam parte da colônia de Espíritos exilados
na Terra ao tempo de Adão e que se achavam manchadas dos vícios que lhes
acarretaram ser excluídas de um mundo melhor e tereis a única interpretação
racional do pecado original, pecado peculiar a cada indivíduo e não resultado da
responsabilidade da falta de outrem a quem ele jamais conheceu.
Dizei que essas
almas ou Espíritos renascem diversas vezes na Terra para a vida corpórea, a fim de
progredirem, depurando-se; que o Cristo veio esclarecer essas mesmas almas, não só
acerca de suas vidas passadas, como também com relação às suas vidas ulteriores e
então, mas só então, lhe dareis à missão um sentido real e sério, que a razão pode
aceitar.
47. Um exemplo familiar, mas frisante pela analogia, ainda mais compreensíveis
tornará os princípios que acabam de ser expostos.
A 24 de maio de 1861, a fragata Ifigênia transportou à Nova Caledônia uma
companhia disciplinar composta de 291 homens. À chegada, o comandante lhes
baixou uma ordem do dia concebida assim:
“Pondo os pés nesta terra longínqua, já sem dúvida compreendestes o papel
que vos está reservado.
“A exemplo dos bravos soldados da nossa marinha, que servem sob as
vossas vistas, ajudar-nos-eis a levar com brilho o facho da civilização ao seio das
tribos selvagens da Nova Caledônia. Não é uma bela e nobre missão, pergunto?
Desempenhá-la-eis dignamente.
“Escutai a palavra e os conselhos dos vossos chefes. Estou à frente deles. Entendei bem as minhas palavras.
“A escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos
suboficiais e cabos constitui garantia certa de que todos os esforços serão tentados
para fazer-vos excelentes soldados, digo mais: para vos elevar à altura de bons
cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se o quiserdes.
“A nossa disciplina é severa e assim tem que ser. Colocada em nossas
mãos, ela será firme e inflexível, ficai sabendo, do mesmo modo que, justa e
paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação. . .”
Aí tendes um punhado de homens expulsos, pelo seu mau proceder, de um
país civilizado e mandados, por punição, para o meio de um povo bárbaro. Que lhes
diz o chefe? — “Infringistes as leis do vosso país; nele vos tornastes causa de
perturbação e escândalo e fostes expulsos; mandam-vos para aqui, mas aqui podeis
resgatar o vosso passado; podeis, pelo trabalho, criar-vos aqui uma posição honrosa
e tornar-vos cidadãos honestos. Tendes uma bela missão a cumprir: levar a
civilização a estas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos
distinguir os que procederem bem. Tendes nas mãos a vossa sorte; podeis melhorá-la, se o quiserdes, porque tendes o livre-arbítrio.”
Para aqueles homens, lançados ao seio da selvajaria, a mãe-pátria não é um
paraíso que eles perderam pelas suas próprias faltas e por se rebelarem contra a lei?
Naquela terra distante, não são eles anjos decaídos? A linguagem do chefe não é
idêntica à de que usou Deus falando aos Espíritos exilados na Terra: “Desobedecestes às minhas leis e, por isso, eu vos expulsei do mundo onde podíeis
viver ditosos e em paz. Aqui, estareis condenados ao trabalho; mas, podereis, pelo
vosso bom procedimento, merecer perdão e reganhar a pátria que perdestes por
vossa falta, isto é, o céu?”
48. À primeira vista, a ideia de decaimento parece em contradição com o princípio
segundo o qual os Espíritos não podem retrogradar. Deve-se, porém, considerar que
não se trata de um retrocesso ao estado primitivo. O Espírito, ainda que numa
posição inferior, nada perde do que adquiriu; seu desenvolvimento moral e
intelectual é o mesmo, qualquer que seja o meio onde se ache colocado. Ele está na
situação do homem do mundo condenado à prisão por seus delitos. Certamente, esse
homem se encontra degradado, decaído, do ponto de vista social, mas não se torna
nem mais estúpido, nem mais ignorante.
49. Será crível, perguntamos agora, que esses homens mandados para a Nova
Caledônia vão transformar-se de súbito em modelos de virtude? Que vão abjurar
repentinamente seus erros do passado? Para supor tal coisa, fora necessário
desconhecer a humanidade. Pela mesma razão, os Espíritos da raça adâmica, uma
vez transplantados para a terra do exílio, não se despojaram instantaneamente do seu
orgulho e de seus maus instintos; ainda por muito tempo conservaram as tendências
que traziam, um resto da velha levedura. Ora, não é esse o pecado original?
Capítulo XII — Gênese moisaica
Os seis dias.
1. — CAPÍTULO I. — 1. No começo criou Deus o Céu e a Terra. —
2. A Terra era uniforme e inteiramente nua; as trevas cobriam a
face do abismo, e o Espírito de Deus flutuava sobre as águas. — 3.
Ora Deus disse: Faça-se a luz; e a luz foi feita. — 4. Deus viu que
a luz era boa e separou a luz das trevas. — 5. Deu à luz o nome de
dia e às trevas o nome de noite, e da tarde e da manhã se fez o
primeiro dia. —
6. Disse Deus também: Faça-se o Firmamento no meio das
águas e que ele separe das águas as águas.
— 7. E Deus fez o
Firmamento e separou as águas que estavam debaixo do
Firmamento das que estavam acima do Firmamento. E assim se
fez. — 8. E Deus deu ao Firmamento o nome de céu; da tarde e da
manhã se fez o segundo dia. —
9. Disse Deus ainda: Reúnam-se num só lugar as águas que
estão sob o céu e apareça o elemento árido. E assim se fez.
—
10. Deus deu ao elemento árido o nome de terra e chamou mar a
todas as águas reunidas. E viu que isso estava bem.
— 11. Disse
mais: Produza a terra a erva verde que traz a semente e árvores
frutíferas que deem frutos cada um de uma espécie, e que contenham
em si mesmas as suas sementes, para se reproduzirem na
terra. E assim se fez. — 12. A terra então produziu a erva verde
que trazia consigo a sua semente, conforme a espécie, e árvores
frutíferas que continham em si mesmas suas sementes, cada uma
de acordo com a sua espécie. E Deus viu que estava bom. —
13. E da tarde e da manhã se fez o terceiro dia. —
14. Deus disse também: Façam-se corpos de luz no
firmamento do céu, a fim de que separem o dia da noite e sirvam
de sinais para marcar o tempo e as estações, os dias e os anos.
—
15. Brilhem eles no firmamento do céu e iluminem a Terra. E
assim se fez. — 16. Deus então fez dois grandes corpos luminosos,
um, maior, para presidir ao dia, o outro, menor, para presidir
à noite; fez também as estrelas. — 17. E os pôs no firmamento do
céu, para brilharem sobre a Terra. — 18. Para presidirem ao dia e
à noite e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que estava
bom. — 19. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia. —
20. Disse Deus ainda: Produzam as águas animais vivos que
nadem nas águas e pássaros que voem sobre a Terra debaixo do
firmamento do céu.
— 21. Deus então criou os grandes peixes e
todos os animais que têm vida e movimento, que as águas produziram,
cada um de uma espécie, e criou também todos os pássaros,
cada um de uma espécie. Viu que estava bom. — 22. E os
abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas
do mar; e que os pássaros se multipliquem sobre a Terra. — 23. E
da tarde e da manhã se fez o quinto dia. — 24. Também disse Deus: Produza a Terra animais vivos, cada
um de sua espécie, os animais domésticos e os armais selvagens,
em suas diferentes espécies. E assim se fez.
— 25. Deus fez, pois,
os animais selvagens da Terra em suas espécies, os animais domésticos e todos os reptis, cada um de sua espécie. E Deus viu
que estava bom. — 26. Disse, em seguida: Façamos o homem a nossa imagem e
semelhança e que ele mande sobre os peixes do mar, os pássaros
do céu, os animais, sobre toda a Terra e sobre todos os reptis que
se movem na terra.
— 27. Deus então criou o homem à sua imagem
e o criou à imagem de Deus e o criou macho e fêmea. — 28.
Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei
a Terra e sujeitai-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre os
pássaros do céu e sobre todos os animais que se movem na terra. — 29. Disse Deus ainda: Dei-vos todas as ervas que trazem sua
semente à terra e todas as árvores que encerram em si mesmas
suas sementes, cada uma de uma espécie, a fim de que vos sirvam
de alimento. — 30. E dei-as a todos os animais da terra, a
todos os pássaros do céu, a tudo o que se move na Terra e que é
vivo e animado, a fim de que tenham com que se alimentar. E
assim se fez. — 31. Deus viu todas as coisas que havia feito; eram
todas muito boas. — 32. E da tarde e da manhã se fez o sexto dia.
CAPÍTULO II. — 1. O Céu e a Terra ficaram, pois, acabados
assim com todos os seus ornamentos. — 2. Deus terminou no
sétimo dia toda a obra que fizera e repousou nesse sétimo dia,
após haver acabado todas as suas obras. — 3. Abençoou o sétimo
dia e o santificou, porque cessara nesse dia de produzir todas as
obras que criara. — 4. Tal a origem do Céu e da Terra e é assim
que eles foram criados no dia que o Senhor fez um e outro. — 5.
E que criou todas as plantas dos campos antes que houvessem
saído da terra e todas as ervas das planícies antes que houvessem
germinado. Porque, o Senhor Deus ainda não tinha feito que
chovesse sobre a terra e não havia homem para lavrá-la. — 6. Mas
da terra se elevava uma fonte que lhe regava toda a superfície. — 7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do limo da terra e
lhe espalhou sobre o rosto um sopro de vida, e o homem se
tornou vivente e animado.
2. Depois das explanações contidas nos capítulos precedentes
sobre a origem e a constituição do universo, conformemente
aos dados fornecidos pela ciência, quanto à parte
material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual,
convém ponhamos em confronto com tudo isso o próprio
texto da Gênese de Moisés, a fim de que cada um faça a
comparação e julgue com conhecimento de causa. Algumas
explicações complementares bastarão para tornar compreensíveis
as partes que precisam de esclarecimentos
especiais.
3. Sobre alguns pontos, há, sem dúvida, notável concordância
entre a Gênese moisaica e a doutrina científica; mas,
fora erro acreditar que basta se substituam os seis dias de
24 horas da criação por seis períodos indeterminados, para
se tornar completa a analogia. Não menor erro seria o acreditar-se
que, afora o sentido alegórico de algumas palavras,
a Gênese e a ciência caminham lado a lado, sendo
uma, como se vê, simples paráfrase da outra.
4. Notemos, em primeiro lugar, que, como já se disse (cap.
VII, n.
o 14), é inteiramente arbitrário o número de seis períodos
geológicos, pois que se eleva a mais de vinte e cinco o
das formações bem caracterizadas, número que, ao demais,
apenas determina as grandes fases gerais. Ele só foi adotado,
em começo, para encaixar as coisas, o mais possível, no
texto bíblico, numa época, aliás pouco distante, em que se
entendia que a ciência devia ser controlada pela Bíblia.
Essa a razão por que os autores da maior parte das teorias
cosmogônicas, tendo em vista facilitar-lhe a aceitação, se esforçaram por pôr-se de acordo com o texto sagrado. Logo
que se apoiou no método experimental, a ciência sentiu-se
mais forte e se emancipou. Hoje, é ela que controla a Bíblia.
Doutro lado, a geologia, tomando por ponto de partida
unicamente a formação dos terrenos graníticos, não abrange,
no cômputo de seus períodos, o estado primitivo da Terra.
Tampouco se ocupa com o Sol, com a Lua e com as estrelas,
nem com o conjunto do universo, assuntos esses que
pertencem à astronomia. Para enquadrar tudo na Gênese,
cumpre se acrescente um primeiro período, que abarque
essa ordem de fenômenos e ao qual se poderia chamar —
período astronômico.
Além disso, nem todos os geólogos consideram o
diluviano como formando um período distinto, mas como
um fato transitório e passageiro, que não mudou sensivelmente
o estado climático do globo, nem marcou uma fase
nova para as espécies vegetais e animais, pois que, com
poucas exceções, as mesmas espécies se encontram, assim
antes, como depois do dilúvio. Pode-se, pois, abstrair desse
período, sem menosprezo da verdade.
5. O quadro comparativo aqui abaixo, em o qual se acham
resumidos os fenômenos que caracterizam cada um dos
seis períodos, permite se considere o conjunto e se notem
as relações e as diferenças que existem entre os referidos
períodos e a Gênese bíblica.
CIÊNCIA
|
GÊNESE
|
I. PERÍODO ASTRONÔMICO. —
Aglomeração da matéria cósmica
universal, num ponto do espaço,
em nebulosa que deu origem,
pela condensação da
matéria em diversos pontos, às
estrelas, ao Sol, à Terra, à Lua
e a todos os planetas.
Estado primitivo, fluídico
e incandescente da Terra. —
Atmosfera imensa carregada de
toda a água em vapor e de todas
as matérias volatilizáveis
|
1.º DIA. — O Céu e a Terra. — A
luz.
|
II. PERÍODO PRIMÁRIO. — Endurecimento
da superfície da
Terra, pelo resfriamento; formação das camadas graníticas. —
Atmosfera espessa e ardente,
impenetrável aos raios solares.
— Precipitação gradual da água
e das matérias sólidas volatilizadas
no ar. — Ausência completa
de vida orgânica.
|
2.º DIA. — O Firmamento. — Separação
das águas que estão
acima do Firmamento das que
lhe estão debaixo.
|
III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO.
— As águas cobrem toda a superfície
do globo. — Primeiros
depósitos de sedimentos formados
pelas águas. — Calor úmido.
— O Sol começa a atravessar
a atmosfera brumosa. —
Primeiros seres organizados da mais rudimentar constituição.
— Liquens, musgos, fetos,
licopódios, plantas herbáceas.
Vegetação colossal. — Primeiros
animais marinhos: zoófitos,
polipeiros, crustáceos. — Depósitos de hulha.
|
3.º DIA. — As águas que estão
debaixo do Firmamento se reúnem; aparece o elemento árido.
— A terra e os mares. — As
plantas.
|
IV. PERÍODO SECUNDÁRIO. —
Superfície da Terra pouco acidentada;
águas pouco profundas
e paludosas. Temperatura menos
ardente; atmosfera mais depurada.
Consideráveis depósitos
de calcáreos pelas águas. — Vegetação
menos colossal; novas
espécies; plantas lenhosas; primeiras
árvores. — Peixes;
cetáceos; animais aquáticos
e anfíbios.
|
4.º DIA. — O Sol, a Lua e as
estrelas.
|
V. PERÍODO TERCIÁRIO. —
Grandes intumescimentos da
crosta sólida; formação dos
continentes. Retirada das
águas para os lugares baixos;
formação dos mares. — Atmosfera
depurada; temperatura
atual produzida pelo calor
solar. — Gigantescos animais
terrestres. Vegetais e animais
da atualidade. Pássaros.
DILÚVIO UNIVERSAL
|
5.º DIA. — Os peixes e os
pássaros.
|
VI. PERÍODO QUATERNÁRIO
OU PÓS-DILUVIANO. — Terrenos
de aluvião. — Vegetais e
animais da atualidade. — O
homem.
|
6.º DIA. — Os animais terrestres.
— O homem
|
6. Desse quadro comparativo, o primeiro fato que ressalta
é que a obra de cada um dos seis dias não corresponde de
maneira rigorosa, como o supõem muitos, a cada um dos
seis períodos geológicos. A concordância mais notável se
verifica na sucessão dos seres orgânicos, que é quase a
mesma, com pequena diferença, e no aparecimento do
homem, por último. É esse um fato importante.
Há também coincidência, não quanto à ordem numérica dos períodos, mas quanto ao fato em si, na passagem
em que se lê que, ao terceiro dia, “as águas que estão debaixo
do céu se reuniram num só lugar e apareceu o elemento
árido.” É a expressão do que ocorreu no período
terciário, quando as elevações da crosta sólida puseram a
descoberto os continentes e repeliram as águas, que foram
formar os mares. Foi somente então que apareceram os
animais terrestres, segundo a geologia e segundo Moisés.
7. Dizendo que a criação foi feita em seis dias, terá Moisés
querido falar de dias de 24 horas, ou terá empregado essa
palavra no sentido de período, de duração? É mais provável
a primeira hipótese, se nos ativermos ao texto acima: primeiramente,
porque esse é o sentido próprio da palavra
hebraica
iôm, traduzida por dia; depois, a referência à tarde
e à manhã, como limitações de cada um dos seis dias, dá lugar a que se suponha haja ele querido falar de dias
comuns. Não se pode conceber qualquer dúvida a tal respeito,
estando dito, no versículo 5: “Ele deu à luz o nome de
dia e às trevas o nome de noite; e da tarde e da manhã se
fez o primeiro dia.” Isto, evidentemente, só se pode aplicar
ao dia de 24 horas, constituído de períodos de luz e de
trevas. Ainda mais preciso se torna o sentido, quando ele
diz, no versículo 17, falando do Sol, da Lua e das estrelas:
“Colocou-as no firmamento do céu, para luzirem sobre a
Terra; para presidirem ao dia e à noite e para separarem a
luz das trevas. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia.”
Aliás, tudo, na criação, era miraculoso e, desde que se
envereda pela senda dos milagres, pode-se perfeitamente
crer que a Terra foi feita em seis vezes 24 horas, sobretudo
quando se ignoram as primeiras leis naturais. Todos os
povos civilizados partilharam dessa crença, até ao momento
em que a geologia surgiu a lhe demonstrar a impossibilidade.
8. Um dos pontos que mais criticados têm sido na Gênese é
o da criação do Sol depois da luz. Tentaram explicá-lo, com
o auxílio mesmo dos dados fornecidos pela geologia, dizendo
que, nos primeiros tempos de sua formação, por se achar
carregada de vapores densos e opacos, a atmosfera terrestre
não permitia se visse o Sol que, assim, efetivamente não
existia para a Terra. Semelhante explicação seria, porventura,
admissível se, naquela época, já houvesse na Terra
habitantes que verificassem a presença ou a ausência do
Sol. Ora, segundo o próprio Moisés, então, somente
plantas havia, as quais, contudo, não teriam podido
crescer e multiplicar-se sem o calor solar.
Há, pois, evidentemente, um anacronismo na ordem
que Moisés estabeleceu para a criação do Sol; mas, involuntariamente
ou não, ele não errou, dizendo que a luz
precedeu o Sol.
O Sol não é o princípio da luz universal; é uma concentração
do elemento luminoso em um ponto, ou, por outra,
do fluido que, em dadas circunstâncias, adquire as propriedades
luminosas. Esse fluido, que é a causa, havia
necessariamente de preceder ao Sol, que é apenas um efeito.
O Sol é causa, relativamente à luz que dele se irradia; é
efeito, com relação à que recebeu.
Numa câmara escura, uma vela acesa é um pequeno
sol. Que é que se fez para acender a vela? Desenvolveu-se a
propriedade iluminante do fluido luminoso e concentrou-se
num ponto esse fluido. A vela é a causa da luz que se difunde
pela câmara; mas, se não existira o princípio luminoso
antes da vela, esta não pudera ter sido acesa.
O mesmo se dá com o Sol. O erro provém da ideia falsa,
alimentada por longo tempo, de que o universo inteiro
começou com a Terra. Daí o não compreenderem que o Sol
pudesse ser criado depois da luz. Em princípio, pois, a
asserção de Moisés é perfeitamente exata: é falsa no fazer
crer que a Terra tenha sido criada antes do Sol. Estando,
pelo seu movimento de translação, sujeita a esse último, a
Terra houve de ser formada depois dele. É o que Moisés
não podia saber, pois que ignorava a lei de gravitação.
Com a mesma ideia se depara na Gênese dos antigos
persas. No primeiro capítulo do Vendedad, Ormuz, narrando
a origem do mundo, diz: “Eu criei a luz que foi iluminar o Sol, a Lua e as estrelas.” (Dicionário de Mitologia Universal.)
A forma, aqui, é sem dúvida mais clara e mais científica
do que em Moisés e não reclama comentários.
9. Moisés, evidentemente, partilhava das mais primitivas
crenças sobre a cosmogonia. Como os do seu tempo, ele
acreditava na solidez da abóbada celeste e em reservatórios
superiores para as águas. Essa ideia se acha expressa sem
alegoria, nem ambiguidade, neste passo (versículos 6 e
seguintes): “Deus disse: Faça-se o Firmamento no meio das
águas para separar das águas as águas. Deus fez o Firmamento
e separou as águas que estavam debaixo do Firmamento das
que estavam por cima do Firmamento.” (Veja-se: cap. V,
Antigos e modernos sistemas do mundo, n.os 3, 4 e 5.)
Segundo uma crença antiga, a água era tida como o
princípio primitivo, o elemento gerador, pelo que Moisés não
fala da criação das águas, parecendo que já elas existiam.
“As trevas cobriam o abismo”, isto é, as profundezas do
espaço, que a imaginação imprecisamente figurava ocupada
pelas águas e em trevas, antes da criação da luz. Eis aí
por que Moisés diz: “O Espírito de Deus era levado (ou
boiava) sobre as águas.” Tida a Terra como formada no meio
das águas, era preciso insulá-la. Imaginou-se então que
Deus fizera o Firmamento, uma abóbada sólida, para
separar as águas de cima das que estavam sobre a Terra.
A fim de compreendermos certas partes da Gênese,
faz-se indispensável que nos coloquemos no ponto de vista
das ideias cosmogônicas da época que ela reflete.
10. Em face dos progressos da física e da astronomia, é
insustentável semelhante doutrina*. Entretanto, Moisés
atribui ao próprio Deus aquelas palavras. Ora, visto que
elas exprimem um fato notoriamente falso, uma de duas:
ou Deus se enganou em a narrativa que fez da sua obra, ou
essa narrativa não é de origem divina. Não sendo admissível
a primeira hipótese, forçoso é concluir que Moisés apenas
exprimiu suas próprias ideias. (Cap. I, n.o 3.)
* Embora muito grosseiro o erro de tal crença, com ela ainda se
embalam presentemente as crianças, como se se tratara de uma
verdade sagrada. Só a tremer ousam os educadores aventurar-se
a uma tímida interpretação. Como quererem que isso não venha
mais tarde a fazer incrédulos?11. Ele se houve com mais acerto, dizendo que Deus formou
o homem do limo da Terra*. A ciência, com efeito,
mostra (cap. X) que o corpo do homem se compõe de
elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao
limo da terra.
A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria,
aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra,
mas profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que
a mulher é da mesma natureza que o homem, que é por
conseguinte igual a este perante Deus e não uma criatura à
parte, feita para ser escravizada e tratada qual hilota. Tendo-a
como saída da própria carne do homem, a imagem da
igualdade é bem mais expressiva, do que se ela fora tida como formada, separadamente, do mesmo limo. Equivale a
dizer ao homem que ela é sua igual e não sua escrava, que
ele a deve amar como parte de si mesmo.
* O termo hebreu haadam, homem, do qual se compôs Adão e o
termo
haadama, terra, têm a mesma raiz.
12. Para espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis
gerais, incapazes de apreender o conjunto e de conceber o
infinito, essa criação milagrosa e instantânea apresentava
qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O quadro
do universo tirado do nada em alguns dias, por um só
ato da vontade criadora, era, para tais espíritos, o sinal
mais evidente do poder de Deus. Que configuração, com
efeito, mais sublime e mais poética desse poder, do que a
que estas palavras traçam: “Deus disse: Faça-se a luz; e a
luz foi feita!” Deus, a criar o universo pela ação lenta e
gradual das leis da natureza, lhes houvera parecido menor
e menos poderoso. Fazia-se-lhes indispensável qualquer
coisa de maravilhoso, que saísse dos moldes comuns, do
contrário teriam dito que Deus não era mais hábil do que
os homens. Uma teoria científica e racional da criação os
deixaria frios e indiferentes.
Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; ao contrário,
estudemo-la, como se estuda a história da infância dos
povos. Trata-se de uma época rica de alegorias, cujo sentido
oculto se deve pesquisar; que se devem comentar e explicar
com o auxílio das luzes da razão e da ciência. Fazendo,
porém, ressaltar as suas belezas poéticas e os seus
ensinamentos velados pela forma imaginosa, cumpre se lhe
apontem expressamente os erros, no próprio interesse da
religião. Esta será muito mais respeitada, quando esses erros
deixarem de ser impostos à fé, como verdade, e Deus parecerá maior e mais poderoso, quando não lhe envolverem
o nome em fatos de pura invenção.
Perda do paraíso.
13. — CAPÍTULO II. — 9. Ora, o Senhor Deus plantara desde o
começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara.
— O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie
de árvores belas ao olhar e cujo fruto era agradável ao paladar e,
no meio do paraíso*, a árvore da vida, com a árvore da ciência do
bem e do mal. (Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra (min haadama)
toda árvore bela de ver-se e boa para comer-se e a árvore da vida
(vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do bem
e do mal.) 15. O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou no paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. — 16. Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do
paraíso. (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (hal haadam) dizendo:
De toda árvore do jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas
absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto,
logo que o comeres, morrerás com toda a certeza. (E da
árvore do bem e do mal (oumehetz hadaat tob vara) não comerás,
pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
* “Paraíso”, do latim paradisus, derivado do grego: paradeisos, jardim,
vergel, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado
na Gênese é
hagan, que tem a mesma significação.
14. — CAPÍTULO III. — 1. Ora, a serpente era o mais fino de
todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela
disse à mulher: Por que vos ordenou Deus que não comêsseis os
frutos de todas as árvores do paraíso? (E a serpente (nâhâsch) era
mais astuta do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim
havia feito; ela disse à mulher (el haïscha): Terá dito Eloim: Não
comereis de nenhuma árvore do jardim?) — 2. A mulher respondeu:
Comemos dos frutos de todas as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente, do fruto (miperi) das árvores
do jardim podemos comer.) — 3. Mas, quanto ao fruto da árvore
que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não comêssemos
dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o
perigo de morrer. — 4. A serpente replicou à mulher: Certamente
não morrereis. — 5. Mas, é que Deus sabe que, assim houverdes
comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses,
conhecendo o bem e o mal. — 6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era
bom de comer; que era belo e agradável à vista. E, tomando dele,
o comeu e o deu a seu marido, que também comeu. (Ela viu, a
mulher, que ela era boa, a árvore como o alimento, e que era desejável a árvore para compreender (léaskil), e tomou de seu fruto, etc.) — 8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à
tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram
para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de
diante da sua face. — 9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde
estás? — 10. Adão lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive
medo, porque estava nu, essa a razão por que me escondi. — 11.
O Senhor lhe retrucou: E como soubeste que estavas nu, senão
porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que
comêsseis? — 12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deste
por companheira me apresentou o fruto dessa árvore e eu dele
comi. — 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso?
Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto. — 14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito
isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da
terra; rojar-te-ás sobre o ventre e comerás a terra por todos os
dias de tua vida. — 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher,
entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás
morder-lhe o calcanhar. — 16. Deus disse também à mulher: Afligir-te-ei com muitos
males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a
dominação de teu marido e ele te dominará. — 17. Disse em seguida a Adão: Por haveres escutado a voz de
tua mulher e haveres comido do fruto da árvore de que te proibi
que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e
só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante
toda a tua vida. — 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te
alimentarás com a erva da terra. — 19. E comerás o teu pão com
o suor do teu rosto, até que voltes à terra donde foste tirado,
porque és pó e em pó te tornarás. — 20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a
vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher
vestiduras de peles com que os cobriu. — 22. E disse: Eis aí Adão
feito um de nós, sabendo o bem e o mal. Impeçamos, pois, agora,
que ele deite a mão à árvore da vida, que também tome do seu
fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente. (Ele disse,
Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento
do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da
árvore da vida (veata pen ischlachyado velakach mehetz
hachayim); comerá dela e viverá eternamente.) — 23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de
que fosse trabalhar no cultivo da terra donde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins* diante do jardim
de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem
o caminho que levava à árvore da vida.
* Do hebreu cherub, keroub, boi, charab, lavrar; anjos do segundo
coro da primeira hierarquia, que eram representados com quatro
asas, quatro faces e pés de boi.
15. Sob uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos
ativermos à forma, a alegoria oculta frequentemente as
maiores verdades. Haverá fábula mais absurda, à primeira
vista, do que a de Saturno, o deus que devorava pedras,
tomando-as por seus filhos? Todavia, que de mais profundamente
filosófico e verdadeiro do que essa figura, se lhe
procuramos o sentido moral! Saturno é a personificação do
tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é o pai de
tudo o que existe; mas, também, tudo se destrói com o
tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto
que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma
alegoria, escapa a semelhante destruição? Somente
Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio espiritual,
que é indestrutível. É mesmo tão natural essa imagem,
que, na linguagem moderna, sem alusão à Fábula
antiga, se diz, de uma coisa que afinal se deteriorou, ter sido
devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade,
do que um vasto quadro alegórico das diversas faces,
boas e más, da humanidade. Para quem lhe busca o espírito,
é um curso completo da mais alta filosofia, como
acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em
tomarem a forma pelo fundo.
16. Outro tanto se dá com a Gênese, onde se tem que perceber
grandes verdades morais debaixo das figuras materiais
que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como
se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as
cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão personifica a humanidade; sua falta individualiza
a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos
materiais a que ele não sabe resistir.*
A árvore, como árvore de vida, é o emblema da vida
espiritual; como árvore da ciência, é o da consciência, que
o homem adquire, do bem e do mal, pelo desenvolvimento
da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual
ele escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a
alma do homem, deixando de ser guiada unicamente pelos
instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na responsabilidade
dos seus atos.
O fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais
do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência;
concretiza, numa figura única, os motivos de arrastamento
ao mal. O comer é sucumbir à tentação. A árvore se ergue
no meio do jardim de delícias, para mostrar que a sedução
está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se dá
preponderância aos gozos materiais, o homem se prende à
Terra e se afasta do seu destino espiritual.**
A morte de que ele é ameaçado, caso infrinja a proibição que se lhe faz, é um aviso das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação das leis divinas
que Deus lhe gravou na consciência. É por demais
evidente que aqui não se trata da morte corporal, pois que,
depois de cometida a falta, Adão ainda viveu longo tempo,
mas, sim, da morte espiritual, ou, por outras palavras, da
perda dos bens que resultam do adiantamento moral,
perda figurada pela sua expulsão do jardim de delícias.
* Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebreia haadam
não é um nome próprio, mas significa: o homem em geral, a humanidade,
o que destrói toda a estrutura levantada sobre a personalidade
de Adão.
** Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só
se encontra nas versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções que em francês, sem determinação
de espécie e pode ser tomado em sentido material, moral, alegórico,
em sentido próprio e figurado. Para os israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem muitas acepções, cada
um a entende como quer, contanto que a interpretação não seja
contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por
malum, que se aplica tanto à maçã, como a qualquer espécie de
frutos. Deriva do grego melon, particípio do verbo
melo, interessar,
cuidar, atrair.
17. A serpente está longe hoje de ser tida como tipo da
astúcia. Ela, pois, entra aqui mais pela sua forma do que
pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos,
que se insinuam como a serpente e da qual, por essa
razão, o homem, muitas vezes, não desconfia. Ao demais,
se a serpente, por haver enganado a mulher, é que foi condenada
a andar de rojo sobre o ventre, dever-se-á deduzir
que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, não
era serpente. Por que, então, se há de impor à fé ingênua e
crédula das crianças, como verdades, tão evidentes
alegorias, com o que, falseando-se-lhes o juízo, se faz que
mais tarde venham a considerar a Bíblia um tecido de
fábulas absurdas?
Deve-se, além disso, notar que o termo hebreu
nâhâsch, traduzido por serpente, vem da raiz nâhâsch,
que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas,
podendo, pois, significar: encantador, adivinho. Com
esta acepção, ele é encontrado na própria Gênese, 44:5 e
15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco
de Benjamim: “A taça que roubaste é a em que meu Senhor
bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch)*. — Ignoras
que não há quem me iguale na ciência de adivinhar
(nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não há encantamentos
(nâhâsch) em Jacob, nem adivinhos em Israel.” Daí
o haver a palavra nâhâsch tomado também a significação
de serpente, réptil que os encantadores tinham a pretensão
de encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na
versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson, corromperam
o texto hebreu em muitos lugares — versão essa
escrita em grego no segundo século da era cristã. As suas
inexatidões resultaram, sem dúvida, das modificações que
a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, porquanto
o hebreu do tempo de Moisés era uma língua morta,
que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo
e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos.**
É, pois, provável que Moisés tenha apresentado como
sedutor da mulher o desejo de conhecer as coisas ocultas,
suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que concorda com
o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por
outro lado, com estas palavras: “Deus sabe que, logo que
houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e
sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que era cobiçável
a árvore para compreender (léaskil) e tomou do seu fruto.”
Não se deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre
os hebreus a arte da adivinhação praticada pelos
egípcios, como o prova o haver proibido que aqueles interrogassem
os mortos e o Espírito Piton. (
O Céu e o Inferno
segundo o Espiritismo
, cap. XII.)
* Deste fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade pelo copo d’água? (Revue spirite, de junho do 1868,
pág. 161.)
** O termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de
negro, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos
e da adivinhação. Talvez também por isso é que as esfinges,
de origem assíria, eram representadas por uma figura de negro.
18. A passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à
tarde, quando se levanta vento brando”, é uma imagem ingênua
e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar;
mas, nada tem que surpreenda, se nos reportamos à
idéia que os hebreus dos tempos primitivos faziam de Deus.
Para aquelas inteligências frustas, incapazes de conceber abstrações,
Deus havia de ter uma forma concreta e eles tudo
referiam à humanidade, como único ponto que conheciam.
Moisés, por isso, lhes falava como a crianças, por meio de imagens
sensíveis. No caso de que se trata, tem-se personificada a
Potência soberana, como os pagãos personificavam, em figuras
alegóricas, as virtudes, os vícios e as idéias abstratas. Mais
tarde, os homens despojaram da forma a ideia, do mesmo
modo que a criança, tornada adulta, procura o sentido moral
dos contos com que a acalentaram. Deve-se, portanto, considerar
essa passagem como uma alegoria, figurando a Divindade
a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno
Deus, percorrendo o jardim, do lado donde vem o dia.”
19. Se a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido
um fruto, ela não poderia, incontestavelmente, pela sua
natureza quase pueril, justificar o rigor com que foi punida.
Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o
fato seja qual geralmente o supõem; se o fosse, teríamos
Deus, considerando-o irremissível crime, a condenar a sua
própria obra, pois que ele criara o homem para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar
no fruto da árvore e com ela se houvesse conformado
escrupulosamente, onde estaria a humanidade e que teria
sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra;
a prova disso está nas próprias palavras que lhes dirige
logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam
no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei
e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio.”
(Gênese,1:28.) Uma vez que a multiplicação era lei
já no paraíso terrenal, a expulsão deles dali não pode ter
tido como causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de
vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o olhar de
Deus e que os levou a se ocultarem. Mas, essa própria vergonha
é uma figura por comparação: simboliza a confusão
que todo culpado experimenta em presença de quem foi
por ele ofendido.
20. Qual, então, em definitiva, a falta tão grande que mereceu
acarretar a reprovação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi
tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pode definir
logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram
dentro de um círculo vicioso.
Sabemos hoje que essa falta não é um ato isolado, pessoal,
de um indivíduo, mas que compreende, sob um único
fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se
culpada e que se resumem nisto: infração da lei de Deus.
Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este
a humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.
21. Dizendo a Adão que ele tiraria da terra a alimentação
com o suor de seu rosto, Deus simboliza a obrigação do
trabalho; mas, por que fez do trabalho uma punição? Que
seria da inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse
pelo trabalho? Que seria da Terra, se não fosse fecundada,
transformada, saneada pelo trabalho inteligente do homem?
Lá está dito (Gênese, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda
não havia feito chover sobre a Terra e não havia nela homens
que a cultivassem. O Senhor formou então, do limo da
terra, o homem.” Essas palavras, aproximadas destas outras:
Enchei a Terra, provam que o homem, desde a sua origem,
estava destinado a ocupar toda a Terra e a cultivá-la,
assim como, ao demais, que o paraíso não era um lugar
circunscrito, a um canto do globo. Se a cultura da terra
houvesse de ser uma consequência da falta de Adão, seguir-se-ia
que, se Adão não tivesse pecado, a Terra permaneceria
inculta e os desígnios de Deus não se teriam
cumprido.
Por que disse ele à mulher que, em consequência de
haver cometido a falta, pariria com dor? Como pode a dor
do parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo
e quando está provado, fisiologicamente, que é uma necessidade?
Como pode ser punição uma coisa que se produz
segundo as leis da natureza? É o que os teólogos absolutamente
ainda não explicaram e que não poderão explicar,
enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se
colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras
que parecem tão contraditórias.
22. Notemos, antes de tudo, que se, no momento de serem
criados os dois, as almas de Adão e Eva tivessem vindo do
nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser bisonhos
em todas as coisas; haviam, pois, de ignorar o que é morrer.
Estando sós na Terra, como estavam, enquanto viveram
no paraíso, não tinham assistido à morte de ninguém. Como,
então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como teria Eva podido
compreender que parir com dor seria uma punição, visto
que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera
filhos e era a única mulher existente no mundo?
Nenhum sentido, portanto, deviam ter, para Adão e
Eva, as palavras de Deus. Mal surgidos do nada, eles não
podiam saber como nem por que haviam surgido dali; não
podiam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição
que lhes era feita. Sem nenhuma experiência das condições
da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento,
o que ainda mais incompreensível torna a
terrível responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e
sobre a humanidade inteira.
23. Entretanto, o que constitui para a Teologia um beco
sem saída, o Espiritismo o explica sem dificuldade e de
maneira racional, pela anterioridade da alma e pela pluralidade
das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia
na vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão
e Eva já tivessem vivido e tudo logo se justifica: Deus não
lhes fala como a crianças, mas como a seres em estado de o
compreenderem e que o compreendem, prova evidente de
que ambos trazem aquisições anteriormente realizadas.
Admitamos, ao demais, que hajam vivido em um mundo mais
adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho
do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado
contra a lei de Deus, figurada na desobediência,
tenham sido afastados de lá e exilados, por punição, para a
Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido
a um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus
assistia razão para lhes dizer: “No mundo onde, daqui em
diante, ides viver, cultivareis a terra e dela tirareis o alimento,
com o suor da vossa fronte”; e, à mulher: “Parirás
com dor,” porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI,
n.
os 31 e seguintes.)
O paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente
procurados na Terra, era, por conseguinte, a figura do mundo
ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a raça dos Espíritos que ele
personifica. A expulsa do paraíso marca o momento em que
esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do mundo
terráqueo e a mudança de situação foi a consequência da expulsão.
O anjo que, empunhando uma espada flamejante, veda
a entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em que se
acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores, antes que o mereçam pela sua depuração.
(Veja-se, adiante, o cap. XIV, n.
os 8 e seguintes.)
24. Caim, depois do assassínio de Abel, responde ao Senhor: A
minha iniquidade é extremamente grande, para que me possa ser
perdoada. — Vós me expulsais hoje de cima da Terra e eu me irei
ocultar da vossa face. Irei fugitivo e vagabundo pela Terra e qualquer
um então que me encontre matar-me-á. — O Senhor lhe
respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto severamente punido
será quem matar Caim.” E o Senhor pôs um sinal sobre Caim,
a fim de que não o matassem os que viessem a encontrá-lo.
Tendo-se retirado de diante do Senhor, Caim ficou vagabundo
pela Terra e habitou a região oriental do Éden. — Havendo
conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Henoch. Ele construiu
(vaïehi bôné; literalmente: estava construindo) uma cidade
a que chamou Henoch (Enoquia) do nome de seu filho. (Gênese,
4:13 a 16.)
25. Se nos apegarmos à letra da Gênese, eis as consequências
a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós no
mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente
tiveram os dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se
Caim retirado para outra região depois de haver assassinado
o irmão, não tornou a ver seus pais, que de novo ficaram
isolados. Só muito mais tarde, na idade de cento e
trinta anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou
Seth, depois de cujo nascimento, ele ainda viveu,
segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais
filhos e filhas.
Quando, pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden,
somente havia na Terra três pessoas: seu pai e sua mãe, e
ele, sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve mulher e
um filho. Que mulher podia ser essa e onde pudera ele
desposá-la? O texto hebreu diz: Ele estava construindo
uma cidade e não: ele construiu, o que indica ação presente
e não ulterior. Mas, uma cidade pressupõe a existência de
habitantes, visto não ser de presumir que Caim a fizesse
para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar
sozinho.
Dessa própria narrativa, portanto, se tem de inferir que
a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos descendentes
de Adão, que então se reduziam a um só: Caim.
Aliás, a presença de outros habitantes ressalta igualmente
destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo
e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da resposta
que Deus lhe deu. Quem poderia ele temer que o matasse e
que utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo
de ser morto, uma vez que ele a ninguém iria encontrar?
Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de
Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, donde se
deduz esta consequência, tirada do texto mesmo da Gênese:
Adão não é nem o primeiro, nem o único pai do gênero
humano. (Cap. XI, n.
o 34.)*
* Não é nova esta ideia. La Peyrère, sábio teólogo do século dezessete,
em seu livro
Preadamitas, escrito em latim e publicado em 1655,
extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a
prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão e
essa opinião é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.26. Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo
ministrou acerca das relações do princípio espiritual com o
princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união
com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através
de sucessivas existências e através dos mundos, que são
outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca
da sua gradual libertação da influência da matéria, mediante
o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores
bons ou maus e de suas aptidões, do fenômeno do nascimento
e da morte, da situação do Espírito na erraticidade
e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por
se melhorar e da sua perseverança no bem, para que se
fizesse luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o homem sabe doravante donde vem,
para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Sabe
que tem nas mãos o seu futuro e que a duração do seu
cativeiro neste mundo unicamente dele depende. Despida
da alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta
grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela
confundirá a incredulidade e triunfará.