Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Contendo

Os fatos de manifestação de Espíritos, bem como todas as notícias relativas ao Espiritismo.
O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e do mundo invisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a natureza do homem e seu futuro.
A história do Espiritismo na antiguidade; suas relações com o magnetismo e o sonambulismo; a explicação de lendas e crenças populares, da mitologia de todos os países, etc.

Publicada sob a direção
do sr. Allan Kardec.

Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente.
A potência da causa inteligente se dá em razão da grandeza do efeito.








Janeiro

INTRODUÇÃO

A rapidez com que em todas as partes do mundo se propagaram os estranhos fenômenos das manifestações espíritas é uma prova do interesse que despertam. A princípio simples objeto de curiosidade, não tardaram em chamar a atenção de homens sérios que, desde o início, entreviram a inevitável influência que viriam a ter sobre o estado moral da sociedade. Cada dia se tornam mais populares as ideias novas que deles surgem, e nada lhes barrará o progresso, pela simples razão de que estes fenômenos estão ao alcance de todos, ou de quase todos, e nenhum poder humano lhes impedirá a manifestação. Se os abafam num ponto, aparecem em cem outros. Aqueles, pois, que neles descobrissem um inconveniente qualquer, seriam constrangidos, pela mesma força dos fatos, a lhes sofrer as consequências, como acontece às indústrias novas que, de começo, ferem interesses particulares, mas, ao final das contas, todos se acomodam, porque não poderia ser de outro modo.

O que não foi feito e dito contra o magnetismo! Entretanto, todos os raios lançados contra ele, todas as armas com que foi ferido, inclusive o ridículo, esbarraram ante a realidade e apenas serviram para colocá-lo em maior evidência. É que o magnetismo é uma força natural, e ante as forças naturais o homem é um pigmeu, semelhante a esses cachorrinhos que ladram inutilmente contra tudo quanto lhes mete medo.

Dá-se com as manifestações espíritas o mesmo que com o sonambulismo: se elas não se produzirem à luz do dia e publicamente, ninguém impedirá que ocorram na intimidade, pois cada família pode descobrir um médium entre os seus membros, desde as crianças até os velhos, bem como pode encontrar um sonâmbulo. Assim, quem poderá impedir que o primeiro que encontre seja médium e sonâmbulo? Sem dúvida, os que o combatem não pensaram nisso. Insistimos: quando uma força está na natureza, pode ser paralisada por um instante, mas nunca aniquilada! Apenas poder-se-á desviar o seu curso. Ora, a força que se revela no fenômeno das manifestações, seja qual for a sua causa, está na natureza, assim como o magnetismo, e não será aniquilada, como o não será a força elétrica. O que é preciso é que seja observada e estudada em todas as suas fases, a fim de se deduzirem as leis que a regem. Se for um erro e uma ilusão, o tempo fará justiça; se for a verdade, esta é como o vapor: quanto mais comprimido, maior será a sua força de expansão.

Admiram-se de que enquanto na América só os Estados Unidos possuem dezessete jornais consagrados ao assunto, sem contar um sem-número de escritos não periódicos, a França, o país da Europa onde mais rapidamente as ideias se aclimataram, não possua nenhum*. Seria desnecessário contestar a utilidade de um órgão especial que ponha o público a par do progresso desta nova ciência e a premuna contra os exageros da credulidade, tanto quanto do cepticismo. É uma tal lacuna que nos propomos preencher com a publicação desta Revista, com o fito de oferecer um meio de comunicação a todos quantos se interessam por estas questões e de ligar, por um laço comum, os que compreendem a doutrina espírita sob seu verdadeiro ponto de vista moral: a prática do bem e a caridade evangélica para com todos.


* Até agora não existe na Europa senão um jornal consagrado à doutrina espírita — o Journal de l’âme, publicado em Genebra pelo Dr. Boessinger. Na América o único Jornal em francês é o Spiritualiste de la Nouvelle-Orléans, publicado por Barthès.


Se se tratasse apenas de uma coleta de fatos, fácil seria a tarefa. Eles se multiplicam em toda parte com tal rapidez que não faltaria matéria, mas os fatos, por si sós, tornam-se monótonos pela repetição e, principalmente, pela similitude. O que é necessário ao homem que pensa é algo que lhe fale à inteligência. Faz poucos anos que se manifestaram os primeiros fenômenos e já estamos longe das mesas girantes e falantes, que representaram sua infância. Hoje é uma ciência que descobre todo um mundo de mistérios; que patenteia as verdades eternas apenas pressentidas por nosso espírito. É uma doutrina sublime que mostra ao homem o caminho do dever e descobre o mais vasto campo jamais apresentado à observação do filósofo. Nossa obra seria, pois, incompleta e estéril se nos mantivéssemos nos estreitos limites de uma revista anedótica, cujo interesse em breve teria passado.

Talvez nos contestem a denominação de ciência que damos ao Espiritismo. Ele não teria, sem dúvida e em nenhum caso, as características de uma ciência exata e precisamente nisso está o erro dos que o pretendem julgar e experimentar como uma análise química ou um problema de matemática; já é bastante que seja uma ciência filosófica. Toda ciência deve basear-se em fatos, mas estes, por si sós, não constituem a ciência. Ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos: é o conjunto de leis que os regem. Chegou o Espiritismo ao estado de ciência? Se se trata de uma ciência acabada, sem dúvida será prematuro responder afirmativamente, mas as observações já são hoje bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios gerais, onde começa a ciência.

O exame raciocinado dos fatos e das consequências deles decorrentes é, pois, um complemento, sem o qual nossa publicação seria de medíocre utilidade e apenas ofereceria um interesse secundário a quem reflete e quer dar-se conta do que vê. Contudo, como nosso objetivo é chegar à verdade, acolheremos todas as observações que nos forem dirigidas e, tanto quanto o permitir o estado dos conhecimentos adquiridos, procuraremos resolver as dúvidas e esclarecer os pontos ainda obscuros. Nossa Revista será, assim, uma tribuna, na qual, entretanto, a discussão jamais deverá afastar-se das normas das mais estritas conveniências. Numa palavra, discutiremos, mas não disputaremos. As inconveniências de linguagem jamais foram boas razões aos olhos da gente sensata: é a arma daqueles que não possuem algo melhor, e que se volta contra quem a maneja.

Embora os fenômenos de que nos ocupamos se tenham produzido, nos últimos tempos, de maneira mais geral, tudo prova que têm ocorrido desde as eras mais remotas. Não acontece com os fenômenos naturais o mesmo que acontece nas invenções que acompanham o progresso do espírito humano, pois desde que estão na ordem das coisas, sua causa é tão antiga quanto o mundo e os seus efeitos devem ter-se produzido em todas as épocas. Portanto, o que hoje testemunhamos não é uma descoberta moderna: é o despertar da antiguidade, mas da antiguidade desembaraçada do envoltório místico que gerou as superstições; da antiguidade esclarecida pela civilização e pelo progresso no campo das coisas positivas.

A consequência capital que decorre desses fenômenos é a comunicação que os homens podem estabelecer com os seres do mundo incorpóreo e, dentro de certos limites, o conhecimento que podem adquirir de seu estado futuro. O fato das comu­nicações com o mundo invisível acha-se, em termos inequívocos, nos livros bíblicos. Mas de um lado, para alguns cépticos, a Bíblia não é autoridade suficiente; do outro, para os crentes, são fatos sobrenaturais, suscitados por um favor especial da Divindade. Não representariam, então, para todo o mundo, uma prova da generalidade dessas manifestações, se as não encontrássemos em mil outras fontes diversas. A existência dos Espíritos e sua intervenção no mundo corpóreo é atestada e demonstrada, não como um fato excepcional, mas como um princípio geral, em Santo Agostinho, São Jerônimo, São João Crisóstomo e São Gregório Nazianzeno e muitos outros Pais da Igreja. Esta crença forma, além disso, a base de todos os sistemas religiosos. Os mais sábios filósofos da antiguidade a admitiam: Platão, Zoroastro, Confúcio, Apuleio, Pitágoras, Apolônio de Tiana e tantos outros. Encontramo-la no mistério e nos oráculos, entre os gregos, os egípcios, os hindus, os caldeus, os romanos, os persas, os chineses. Vemo-la sobreviver a todas as vicissitudes dos povos, a todas as perseguições, e desafiar todas as revoluções físicas e morais da humanidade.

Mais tarde a encontramos entre os adivinhos e feiticeiros da Idade Média; nos Willis e nas Valquírias dos escandinavos; nos Elfos dos teutões; nos Leschios e nos Domeschnios Doughi dos eslavos; nos Ourisks e nos Brownies da Escócia; nos Poulpicans e nos Tensarpoulicts dos bretões; nos Cemis dos caraíbas; numa palavra, em toda a falange de ninfas, gênios bons e maus, silfos, gnomos, fadas e duendes, com os quais todas as nações encheram o espaço.

Encontramos a prática das evocações nos povos da Sibéria, no Kamtchatka, na Islândia, entre os índios da América do Norte ou os aborígines do México e do Peru, na Polinésia e até entre os estúpidos selvagens da Nova Holanda.

Não será por alguns absurdos de que essa crença se cercou ou se revestiu em vários tempos e lugares que se há de desconhecer que parte de um mesmo princípio, mais ou menos desfigurado. Ora, uma doutrina não se torna universal, não sobrevive a milhares de gerações, não se implanta de um polo a outro, entre os povos mais diversificados e em todos os graus da escala social, se não estiver fundada em algo de positivo.

O que será esse algo? É o que nos demonstram as recentes manifestações. Procurar as relações possivelmente existentes entre essas manifestações e todas essas crenças é buscar a verdade.

A história da doutrina espírita é, de certo modo, a história do espírito humano. Teremos que estudá-la em todas as fontes, que nos facultarão um veio inesgotável de observações tão instrutivas quão interessantes, sobre os fatos geralmente pouco conhecidos. Esta parte nos dará oportunidade de explicar a origem de uma porção de lendas e de crenças populares que participam da verdade, da alegoria e da superstição.

No que concerne às manifestações atuais, relataremos todos os fenômenos patentes que testemunharmos ou que chegarem ao nosso conhecimento, sempre que nos parecerem merecedores da atenção dos nossos leitores. Do mesmo modo o faremos em relação aos efeitos espontâneos, por vezes produzidos entre pessoas alheias às práticas espíritas, que ora revelam um poder oculto, ora a independência da alma. Tais são as visões, as aparições, a dupla vista, os pressentimentos, os avisos íntimos, as vozes secretas, etc.

Ao relato dos fatos juntaremos a explicação, tal qual ressalta do conjunto dos princípios. A este respeito faremos notar que esses princípios são decorrentes do ensino dado pelos Espíritos, e que faremos sempre abstração de nossas próprias ideias. Não se trata, pois, de uma teoria pessoal, mas da que nos foi comunicada e da qual seremos simples intérpretes.

Largo espaço será igualmente reservado às comunicações escritas ou verbais dos Espíritos, desde que tenham um fim útil, assim como às evocações de personagens antigas ou atuais, conhecidas ou obscuras, sem desprezar as evocações íntimas que, muitas vezes, nem por isso são menos instrutivas. Numa palavra: abarcaremos todas as fases das manifestações materiais e inteligentes do mundo incorpóreo.

A doutrina espírita oferece-nos enfim a solução possível e racional de uma porção de fenômenos morais e antropológicos que testemunhamos diariamente e cuja explicação inutilmente buscaríamos em todas as doutrinas conhecidas. Nesta categoria colocaremos, por exemplo, a simultaneidade de pensamentos, as anomalias de certos caracteres, as simpatias e antipatias, os conhecimentos intuitivos, as aptidões, as propensões, os destinos que parecem marcas da fatalidade e, num quadro mais geral, o caráter distintivo dos povos, seu progresso ou sua degenerescência, etc.

À citação dos fatos juntaremos a pesquisa das causas que poderiam tê-los produzido. Da apreciação dos atos brotarão, naturalmente, ensinamentos úteis, quanto à linha de conduta mais conforme à sã moral.

Em suas instruções os Espíritos superiores têm sempre o objetivo de despertar nos homens o amor do bem pela prática dos preceitos evangélicos, por isso mesmo traçam-nos o pensamento que deve presidir à redação desta coletânea.

Como se vê, nosso quadro compreende tudo quanto se liga ao conhecimento da parte metafísica do homem. Estudá-la-emos no seu estado presente e no futuro, pois estudar a natureza dos Espíritos é estudar o homem, porque este um dia participará do mundo dos Espíritos. Eis por que adicionamos, ao título principal, o subtítulo jornal de estudos psicológicos, a fim de dar a compreender toda a sua importância.

Nota: Por mais abundantes que sejam nossas observações pessoais e as fontes onde as colhemos, nem dissimulamos as dificuldades da tarefa, nem nossa insuficiência. Para suplementá-la, contamos com o concurso benévolo de todos quantos se interessam por esses problemas. Seremos, pois, gratos pelas comunicações que nos forem transmitidas sobre os diversos assuntos de nossos estudos. Neste propósito chamamos a atenção para os dez pontos seguintes, sobre os quais nos poderão fornecer documentos:

1.o) Manifestações materiais ou inteligentes obtidas em reuniões a que estiveram presentes;

2.o) Fatos de lucidez sonambúlica e de êxtase;

3.o) Fatos de segunda vista, previsões, pressentimentos, etc.;

4.o) Fatos relativos ao poder oculto atribuído, com ou sem razão, a certas pessoas;

5.o) Lendas e crenças populares;

6.o) Fatos de visões e aparições;

7.o) Fenômenos psicológicos particulares que por vezes ocorrem no momento da morte;

8.o) Problemas morais e psicológicos a resolver;

9.o) Fatos morais, atos notáveis de devotamento e abnegação cuja propagação pode servir de exemplo útil;

10.o) Indicações de obras antigas ou modernas, francesas ou estrangeiras, nas quais se encontrem fatos relativos à manifestação de inteligências ocultas com a designação e, se possível, a citação das passagens. O mesmo no que concerne à opinião emitida sobre a existência dos Espíritos e suas relações com os homens, por autores antigos ou modernos, cujo nome e saber lhes dão autoridade.

Só publicaremos o nome das pessoas que nos enviarem comunicações se recebermos formal autorização.

DIFERENTES FORMAS DE MANIFESTAÇÕES

Os Espíritos atestam sua presença de várias maneiras, con­forme sua aptidão, vontade e maior ou menor elevação. Todos os fenômenos de que teremos ocasião de tratar ligam-se, na­turalmente, a um ou outro desses modos de comunicação. Para facilitar a compreensão dos fatos julgamos, pois, um dever, abrir a série de nossos artigos com um quadro das diversas formas de manifestações. Podem ser assim resumidas:

1.º) Ação oculta, quando nada tem de ostensiva. Tais são, por exemplo, as inspirações ou sugestões de pensamentos, os avisos íntimos, a influência sobre os acontecimentos, etc.

2.º) Ação patente ou manifestação, quando é de qualquer maneira provável.

3.º) Manifestações físicas ou materiais; são as que se tra­duzem por fenômenos sensíveis, tais como ruídos, movimentos e deslocamentos de objetos. Essas manifestações não trazem fre­quentemente nenhuma mensagem; só têm por fim chamar atenção para qualquer coisa e convencer-nos da presença de um poder sobre-humano.

4.º) Manifestações visuais ou aparições, quando o Espírito se mostra sob uma forma qualquer, sem ter nenhuma das propriedades conhecidas da matéria.

5.º) Manifestações inteligentes, quando revelam um pensa­mento. Toda manifestação que tem sentido, mesmo quando não passa de simples movimento ou ruído, que acusa certa liberdade de ação, corresponde a um pensamento ou obedece a uma vontade, é uma manifestação inteligente. E as há em todos os graus.

6.º) As comunicações são manifestações inteligentes, que têm como objetivo uma troca de ideias entre o homem e os Espí­ritos.

A natureza dessas comunicações varia segundo a elevação ou a inferioridade, o saber ou a ignorância do Espírito que se manifesta e conforme a natureza do assunto de que se trata. Po­dem ser frívolas, grosseiras, sérias ou instrutivas.

As comunicações frívolas procedem de Espíritos levianos, zombeteiros e travessos, mais malandros que maus, e que ne­nhuma importância ligam ao que dizem.

As comunicações grosseiras traduzem-se por expressões que chocam o decoro. Procedem de Espíritos inferiores ou que ainda não se despojaram de todas as impurezas da matéria.

As comunicações sérias são graves quanto ao assunto e a maneira por que são feitas. A linguagem dos Espíritos supe­riores é sempre digna e isenta de trivialidade. toda comuni­cação que exclui a frivolidade e a grosseria e que tem um fim útil, mesmo de interesse particular, é por isso mesmo séria.

As comunicações instrutivas são as comunicações sérias, cujo principal objetivo é um ensinamento qualquer, dado pelo Espírito sobre as ciências, a moral, a filosofia, etc. São mais ou menos profundas e mais ou menos verdadeiras, con­forme o grau de elevação e de desmaterialização do Espírito. Para tirar proveito real destas comunicações, devem elas ser regulares e seguidas com perseverança. Os Espíritos sérios li­gam-se àqueles que querem instruir-se e os ajudam, ao passo que deixam aos Espíritos levianos a tarefa de divertir com suas facécias àqueles que não veem nessas manifestações senão um passatempo. Só pela regularidade e pela frequência das comunicações é que se pode apreciar o valor moral e intelectual dos Espíritos com os quais nos entretemos, bem como o grau de confiança que merecem. Se é necessário ter experiência para julgar os homens, mais ainda o é para julgar os Espíritos.

VÁRIOS MODOS DE COMUNICAÇÃO

As comunicações inteligentes entre os Espíritos e os homens podem dar-se por sinais, pela escrita e pela palavra.

Os sinais consistem no movimento significativo de certos objetos e, mais frequentemente, nos ruídos ou golpes vibrados. Quando esses fenômenos têm sentido, não permitem dúvidas quanto à intervenção de uma inteligência oculta, porquanto se todo efeito tem uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.

Sob a influência de certas pessoas, designadas pelo nome de médiuns, e algumas vezes espontaneamente, um objeto qualquer pode executar movimentos convencionados, dar um determinado número de pancadas e assim responder, pelo sim e pelo não ou pela designação das letras do alfabeto.

As pancadas podem ser ouvidas sem nenhum movimento aparente e sem causa ostensiva, quer na superfície, quer nos próprios tecidos dos corpos inertes, numa parede, numa pedra, num móvel ou em qualquer outro objeto. De todos esses objetos, por serem os mais cômodos, dada a sua mobilidade e pela facilidade com que nos colocamos em sua volta, são as mesas os mais frequentemente utilizados, daí a designação geral do fenômeno pelas expressões triviais de mesas falantes e de dança das mesas, expressões que convém banir, primeiro pelo que têm de ridículo, depois porque podem induzir em erro, levando a crer que, nesse particular, as mesas tenham qualquer influência especial.

Daremos a este modo de comunicação o nome de sematologia espírita, expressão que dá uma perfeita ideia e compreende todas as variedades de comunicações por sinais, movimento de corpos ou pancadas. Um de nossos correspondentes propunha-nos se designasse especialmente este último meio, o das pancadas, pelo vocábulo tiptologia.

O segundo modo de comunicação é a escrita. Designá-lo-emos pelo nome de psicografia, igualmente empregado por um correspondente.

Para se comunicarem pela escrita, os Espíritos empregam como intermediários certas pessoas dotadas da faculdade de escrever sob a influência da força oculta que as dirige e que obedecem a um poder evidentemente estranho ao seu controle, pois não podem parar nem prosseguir à vontade e, na maioria dos casos, não têm consciência do que escrevem. A mão é agitada por um movimento involuntário, quase febril; tomam o lápis, malgrado seu, e assim o largam. Nem a vontade, nem o desejo podem fazê-los prosseguir, caso não devam. Eis a psicografia direta.

A escrita também é obtida pela só imposição das mãos sobre um objeto colocado de modo conveniente e munido de um lápis ou qualquer outro instrumento para escrever. Os objetos mais geralmente empregados são as pranchetas ou as cestas convenientemente preparadas. A força oculta que age sobre a pessoa transmite-se ao objeto, o qual se torna, destarte, uma espécie de apêndice da mão e lhe imprime um movimento necessário para traçar os caracteres. Eis a psicografia indireta.

As comunicações transmitidas pela psicografia são mais ou menos extensas, conforme o grau da faculdade mediadora. Uns apenas obtêm palavras; noutros a faculdade se desenvolve pelo exercício e escrevem frases completas e, por vezes, dissertações desenvolvidas sobre assuntos propostos ou abordados espontaneamente pelos Espíritos, sem que se lhes tenha feito qualquer pergunta.

Às vezes a escrita é clara e legível; outras vezes só é decifrável por quem a escreveu, e este então a lê por uma espécie de intuição ou dupla vista.

Pela mão da mesma pessoa, a escrita às vezes muda, em geral de maneira completa, com a inteligência oculta que se manifesta, e o mesmo tipo de letra se reproduz sempre que se manifesta a mesma entidade. Isto, entretanto, nada tem de absoluto.

Os Espíritos transmitem por vezes certas comunicações escritas sem intervenção direta. Neste caso os caracteres são traçados espontaneamente por um poder extrahumano, visível ou não. Como é útil que cada coisa tenha o seu nome, a fim de nos podermos entender, chamaremos esse modo de comunicação escrita de espiritografia, para distingui-la da psicografia, ou escrita obtida por um médium. A diferença desses dois vocábulos é fácil de apreender. Na psicografia, a alma do médium representa, necessariamente, um certo papel, pelo menos como intermediária, ao passo que na espiritografia é o Espírito que age diretamente, por si mesmo.

O terceiro modo de comunicação é a palavra. Certas pessoas sofrem nos órgãos vocais a influência de um poder oculto, semelhante ao que se faz sentir na mão dos que escrevem. Transmitem pela palavra tudo aquilo que os outros fazem pela escrita.

Como as comunicações escritas, as verbais se dão por vezes sem a mediação corpórea. Palavras e frases podem soar aos nossos ouvidos e em nosso cérebro sem causa física aparente. Os Espíritos também nos podem aparecer em sonho ou no estado de vigília e dirigir-nos a palavra, para nos darem avisos e instruções.

Para seguir o mesmo sistema de nomenclatura adotado para as comunicações escritas, deveríamos chamar a palavra transmitida pelo médium de psicologia e a que provém diretamente do Espírito de espiritologia. Mas o vocábulo psicologia já tem uma acepção conhecida e não a podemos transformar. Chamaremos, pois, todas as comunicações verbais de espiritologia: as primeiras serão a espiritologia mediata e as últimas a espiritologia direta.

Dos vários meios de comunicação, é a sematologia o mais incompleto. É muito lento e só dificilmente se presta a desenvolvimentos de certa extensão. Os Espíritos superiores não o empregam de boa vontade, já pela lentidão, já porque as respostas sim ou não são incompletas e sujeitas a erros. Para o ensino, preferem as mais rápidas: a escrita e a palavra.

A escrita e a palavra são, com efeito, meios mais completos para a transmissão do pensamento dos Espíritos, seja pela precisão das respostas, seja pela extensão do desenvolvimento que comportam. Tem a escrita a vantagem de deixar traços materiais e de ser um dos meios mais adequados de combate à dúvida. Aliás, não temos a liberdade de escolha: os Espíritos comunicam-se pelos meios que julgam adequados, e isto depende das aptidões.

RESPOSTAS DOS ESPÍRITOS A ALGUMAS PERGUNTAS

P. — Como podem os Espíritos agir sobre a matéria? Isto parece contrário a todas as ideias que fazemos da natureza dos Espíritos.

R. — Em vossa opinião, o Espírito nada é, e isto é um erro. Já vos dissemos que o Espírito é alguma coisa, e por isso pode agir por si mesmo, mas o vosso mundo é muito grosseiro para que ele possa fazê-lo sem um intermediário, isto é, sem um laço que una o Espírito à matéria.

Observação. — Sendo imaterial, ou pelo menos impalpável, o laço que une o Espírito à matéria, esta resposta não resolveria a questão se não tivéssemos o exemplo de forças igualmente imponderáveis que agem sobre a matéria: assim é que o pensamento é a causa primeira de todos os movimentos voluntários; que a eletricidade derruba, levanta e transporta massas inertes. Porque se lhe desconhece o móvel, seria ilógico concluir que não existe. Pode, pois, o Espírito ter suas alavancas, para nós desconhecidas. A natureza nos prova diariamente que seu poder não se limita ao testemunho dos nossos sentidos. Nos fenômenos espíritas, a causa imediata é incontestavelmente um agente físico, mas a causa primeira é uma inteligência que age sobre esse agente, como o nosso pensamento age sobre os nossos membros. Quando queremos bater, o nosso braço é que age; não é o pensamento que bate, mas é ele que dirige o braço.

P. — Entre os Espíritos que produzem efeitos materiais, os que costumamos chamar de batedores formam uma classe especial? ou são os mesmos que produzem os movimentos e os ruídos?

R. — O mesmo Espírito pode, por certo, produzir efeitos diversos, mas há os que se ocupam mais particularmente de certas coisas, assim como entre vós tendes os ferreiros e os carregadores.

P. — O Espírito que age sobre um corpo sólido, para mover ou para bater, penetra na substância do corpo ou age fora dela?

R. — Uma coisa e outra. Já dissemos que a matéria não é um obstáculo para os Espíritos, porque eles tudo penetram.

P. — As manifestações materiais, tais como os ruídos, os movimentos de objetos e todos os fenômenos que nos apraz provocar frequentemente, são produzidos indistintamente pelos Espíritos superiores e pelos inferiores?

R. — São apenas os Espíritos inferiores que se ocupam dessas coisas. Os Espíritos superiores por vezes os empregam como farias com um carregador, a fim de chamar a atenção. Podes crer que os Espíritos de uma categoria superior estejam às vossas ordens para vos divertir com travessuras? É como se perguntasses se, no teu mundo, são os homens sábios e sérios que fazem papel de palhaços e bufões.

Observação. — Os Espíritos que se revelam por efeitos materiais, em geral são de ordem inferior. Divertem ou espantam aqueles para quem os espetáculos visuais têm mais atração que o exercício da inteligência; são, de certo modo, os saltimbancos do mundo espírita. Por vezes agem espontaneamente; outras, por ordem de Espíritos superiores.

Se as comunicações dos Espíritos superiores oferecem um interesse mais sério, as manifestações físicas têm igualmente utilidade para o observador; revelam-nos forças desconhecidas da natureza, e dão-nos meios de estudar o caráter e, se assim podemos dizer, os costumes de todas as classes da população espírita.

P. — Como provar que o poder oculto que age nas manifestações espíritas está fora do homem? Não poderíamos pensar que reside em nós mesmos, isto é, que agimos sob o impulso do nosso próprio Espírito?

R. — Quando uma coisa é feita contra a tua vontade e o teu desejo, é que não és tu que a produzes, embora muitas vezes sejas a alavanca de que se serve o Espírito para agir, e tua vontade lhe venha em auxílio; podes ser para ele um instrumento mais ou menos cômodo.

Obsevação. — É sobretudo nas comunicações inteligentes que se patenteia a intervenção de um poder estranho. Quando espontâneas e estranhas ao nosso pensamento e ao nosso controle; quando respondem a perguntas cuja solução é desconhecida pelos assistentes, devemos procurar fora de nós a causa dessas comunicações. Isto se torna evidente para quem quer que observe os fatos com atenção e perseverança. As nuanças de detalhes escapam ao observador superficial.

P. — Todos os Espíritos são capazes de dar manifestações inteligentes?

R. — Sim, pois todos eles são inteligências. Como, porém, os há de todos os graus, como entre vós, uns dizem coisas sem sentido ou estúpidas, e outros coisas sensatas.

P. — Todos os Espíritos estão aptos a compreender as perguntas que se lhes fazem?

R. — Não. Os Espíritos inferiores são incapazes de compreender certas perguntas, o que não os impede de responderem certo ou errado. É ainda como entre vós.

Observação. — Por aí se vê quanto é essencial estar atento contra a crença no ilimitado saber dos Espíritos. Eles são como os homens; não basta interrogar o primeiro que aparece para ter uma resposta sensata: é preciso saber a quem nos dirigimos. Aquele que deseja conhecer os costumes de um povo deve estudá-los de um extremo a outro da escala. Ver apenas uma classe é fazer uma ideia falsa, pois se julga o todo pela parte. A população dos Espíritos é como a nossa; há de tudo: o bom, o mau, o sublime, o trivial, o saber e a ignorância. Quem não os houver observado seriamente, em todos os graus, não se pode gabar de conhecê-los. As manifestações físicas dão-nos a conhecer os Espíritos de camadas inferiores; são a rua e a choupana. As comunicações instrutivas e sábias põem-nos em contato com os Espíritos elevados; são a elite social: o castelo, o Instituto.

MANIFESTAÇÕES FÍSICAS

Lemos o seguinte no Le Spiritualiste de la Nouvelle-Orléans, de fevereiro de 1857:

“Ultimamente perguntamos se todos os Espíritos, indistintamente, fazem mover as mesas, produzem ruídos, etc., e logo a mão de uma senhora, bastante séria para brincar com essas coisas, traçou violentamente estas palavras: “Quem faz dançarem os macacos pelas ruas? Serão os homens superiores?”

“Um amigo, de origem espanhola, espiritualista, falecido no verão passado, deu-nos diversas comunicações, numa das quais encontramos a seguinte passagem:

“As manifestações que buscais não se acham no número das que mais agradam aos Espíritos sérios e elevados. Não obstante, concordamos que têm sua utilidade, porque talvez mais que qualquer outra podem servir para convencer os homens de hoje. Para obter tais manifestações, é absolutamente preciso que se desenvolvam certos médiuns, cuja constituição física esteja em harmonia com os Espíritos que podem produzi-las. Não duvidamos de que as vejais mais tarde desenvolver-se entre nós: então não serão estas pancadinhas que ouvireis, mas ruídos semelhantes ao crepitar da fuzilaria entremeado do troar do canhão.”

“Num recanto da cidade acha-se uma casa habitada por uma família alemã. Nela se ouvem ruídos estranhos, enquanto certos objetos são deslocados. Foi o que nos asseguraram, pois não o verificamos. Pensando que o dono da casa nos pudesse esclarecer, convidamo-lo para algumas sessões dedicadas a esse gênero de manifestações e, mais tarde, a esposa desse honrado senhor não quis que ele continuasse entre nós porque, disse-nos ele, o barulho aumentou em sua casa. A este respeito, eis o que nos foi escrito pela mão da senhora . . .:

“Não podemos impedir que Espíritos imperfeitos façam barulho ou outras coisas aborrecidas e mesmo apavorantes; o fato de estarem em contato conosco, que somos bem intencionados, não diminui a influência que exercem sobre o médium em questão”.

Chamamos a atenção para a perfeita concordância que existe entre o que os Espíritos disseram em Nova Orléans, com relação à fonte de manifestações físicas, e o que nos foi dito a nós próprios. Com efeito, nada pintaria essa origem com mais vigor que esta resposta, ao mesmo tempo espiritual e profunda: “Quem faz dançarem os macacos pelas ruas? Serão os homens superiores?”

Teremos ocasião de transcrever de jornais da América numerosos exemplos desse tipo de manifestações, bem mais extraordinárias do que as que acabamos de citar. Sem dúvida responder-nos-ão com o provérbio: “A boa mentira vem de longe”. Quando coisas assim tão maravilhosas nos vêm de 2000 léguas, mas não as podemos verificar, a dúvida é admissível, mas esses fenômenos atravessaram os mares com o sr. Home, que deles nos deu provas. É verdade que o Sr. Home não foi para um teatro a fim de operar os seus prodígios e que nem todo mundo, pagando a entrada, pôde vê-los. Por isso, muitos o consideram um hábil prestidigitador, sem refletir que a fina flor da sociedade, testemunha desses fenômenos, não se prestaria de bom grado a lhe servir de parceira. Se o sr. Home fosse um charlatão, não teria tido o cuidado de recusar magníficas ofertas de muitos estabelecimentos públicos e ter-se-ia locupletado. Seu desinteresse é a resposta mais peremptória que se pode dar aos seus detratores. Um charlatanismo desinteressado seria uma insensatez e uma monstruosidade. Mais tarde falaremos pormenorizadamente do sr. Home e da missão que o conduziu à França. Enquanto isso, eis um fato de manifestação espontânea que nos relatou distinto médico, de toda a confiança, e que é tanto mais autêntico porque as coisas aconteceram com seu testemunho pessoal.

Uma distinta família tinha como empregada uma moça órfã, de catorze anos, cujo caráter, naturalmente bondoso e delicado, lhe havia granjeado a afeição dos patrões. No mesmo quarteirão morava uma família cuja senhora, não se sabe por que, havia tomado birra à mocinha, a ponto de torná-la objeto de toda sorte de atrevimentos. Um dia, ao chegar em casa, a vizinha apareceu furiosa, armada de uma vassoura, querendo bater-lhe. Apavorada, a moça atirou-se à porta tentando tocar a campainha, mas infelizmente o cordão estava partido e ela não o alcançava. Eis, porém, que a campainha tocou por si mesma e vieram abrir. Na perturbação, ela não se deu conta do que se havia passado, mas depois a campainha continuou tocando de vez em quando, sem uma causa conhecida, tanto de dia como à noite. Quando iam atender à porta, não encontravam ninguém. Os vizinhos do quarteirão foram acusados por essa pilhéria de mau gosto. A queixa foi levada ao comissário de polícia, que abriu inquérito e procurou ver se algum fio secreto se comunicava com o exterior, mas nada pôde descobrir. Entretanto, as coisas continuavam mais insistentemente, em detrimento do repouso de todos, e sobretudo da pequena criada, acusada como a causa do barulho. Depois de aconselhados, os patrões resolveram afastá-la, colocando-a em casa de amigos, no campo. Desde então a campainha ficou quieta, e nada de semelhante se produziu no novo domicílio da pequena órfã.

Este, como muitos outros fatos que teremos a relatar, não se deu nas margens do Missouri ou do Ohio, mas em Paris, na travessa dos Panoramas. Cabe agora explicá-lo. A mocinha não tocava a campainha, é claro; estava aterrada com o que se passava para pensar numa brincadeira, na qual fosse ela própria a primeira vítima. Não menos certo é que o toque da campainha era devido à sua presença, pois que o efeito cessou quando ela se foi. O médico que testemunhou o fato explica-o como uma poderosa ação magnética exercida inconscientemente pela mocinha. Esta explicação, de modo algum nos parece concludente: por que, ao partir, teria ela perdido tal poder? Diz ele que o terror inspirado pela presença da vizinha devia produzir na moça uma superexcitação de natureza a desenvolver a ação magnética, e que o efeito cessara com a causa. Confessamos que o argumento não nos convence. Se a intervenção de um poder oculto não está demonstrada peremptoriamente, pelo menos é provável, conforme casos análogos que conhecemos. Admitindo, pois, tal intervenção, diremos que nas circunstâncias em que o fato se produziu pela primeira vez, um Espírito protetor provavelmente quis subtrair a mocinha ao perigo que corria; que, a despeito da afeição que os patrões lhe tinham, talvez fosse de seu interesse que ela saísse daquela casa; eis porque o barulho continuou até que ela partisse.


OS DIABRETES

A intervenção dos seres incorpóreos nas coisas da vida particular faz parte das crenças populares de todos os tempos. Por certo não entra na mente das pessoas sensatas tomar ao pé da letra todas essas lendas, todas as histórias diabólicas e todos os contos ridículos que se repetem prazerosamente ao pé do fogo. Entretanto, esses fenômenos, dos quais somos testemunhas, provam que tais contos se baseiam em alguma coisa, pois aquilo que hoje se passa deve ter-se passado em outras épocas. Tire-se deles aquilo que de maravilhoso e fantástico lhes deu a superstição e ter-se-ão todos os caracteres, fatos e gestos de nossos Espíritos modernos: uns bons, benfeitores, obsequiosos, gostando de servir, como os bons Brownies; outros, mais ou menos maliciosos, brincalhões, caprichosos e mesmo maus, como os Gobelins da Normandia, que se encontram na Escócia sob o nome de Bogles, na Inglaterra como Bogherts, na Irlanda como Cluricaunes e na Alemanha como Pucks. Conforme a tradição popular, esses diabretes penetram nas casas onde procuram todas as ocasiões para as pilhérias de mau gosto. “Batem às portas, deslocam móveis, dão pancadas nos tonéis, marteladas no soalho e no forro, assoviam baixinho, soltam suspiros lamentosos, puxam as cortinas e os lençóis dos que estão deitados, etc.”

O Boghert dos ingleses exerce suas perversidades principalmente contra as crianças, às quais parece ter aversão. “Frequentemente toma-lhes a fatia de pão com manteiga ou a tigela de leite; durante a noite agita as cortinas do leito; sobe e desce escadas com grande ruído; atira pratos e causa estragos nas casas.”

Em certos lugares da França, os Gobelins são considerados como espécies de demônios familiares que se tem o cuidado de alimentar com as mais delicadas iguarias, porque trazem aos seus amos trigo roubado no celeiro alheio. É realmente curioso encontrar esta velha superstição da Gália antiga entre os Borussianos do século X (os prussianos de hoje). Seus Koltkys, ou demônios familiares, também iam roubar trigo nos celeiros e o traziam às pessoas afeiçoadas.

Quem não reconhece nessas diabruras — posta de lado a indelicadeza do trigo roubado, com que os faltosos se desculpavam à custa da reputação dos Espíritos — quem, dizíamos nós, não reconhece os Espíritos batedores e aqueles que, sem injúria, podem ser chamados de perturbadores? O fato semelhante descrito pouco acima, da mocinha da travessa dos Panoramas, se tivesse ocorrido no campo, sem dúvida seria levado à conta do Gobelin do lugar, depois ampliado pela imaginação fecunda das comadres; alguém mesmo teria visto o diabrete pendurado na campainha, dando risadas, fazendo macaquices para os bobos que fossem abrir a porta.



Evocações particulares.

Mamãe, aqui estou!

A sra . . . havia perdido, meses antes, a filha única, de catorze anos, objeto de toda a sua ternura e muito digna de seus lamentos, pelas qualidades que prometiam torná-la uma senhora perfeita. A moça falecera de longa e dolorosa enfermidade. Inconsolável com a perda, dia a dia a mãe via sua saúde alterar-se e repetia incessantemente que em breve iria reunir-se à filha. Informada da possibilidade de se comunicar com os seres de além-túmulo, a Sra... resolveu procurar, na conversa com a filha, um alívio para a sua pena. Uma senhora de seu conhecimento era médium, mas pouco afeitas uma e outra a semelhantes evocações, principalmente numa circunstância tão solene, pediram-me assistência. Éramos apenas três: a mãe, a médium e eu. Eis o resultado dessa primeira sessão.

A mãe: Em nome de Deus Todo-Poderoso, Espírito de Júlia, minha filha querida, peço-te que venhas, se Deus o permitir.

Júlia: Mamãe, aqui estou!

A mãe: És tu, minha filha, que me respondes? Como posso saber que és tu?

Júlia: Lili.

(Era o apelido familiar, dado à moça em sua infância. Nem a médium o sabia, nem eu, pois há muitos anos só a chamam Júlia. Com este sinal, a identidade era evidente. Não podendo dominar sua emoção, a mãe rompeu em soluços).

Júlia: Mãe, por que te afliges? Sou feliz, muito feliz. Não sofro mais e vejo-te sempre.

A mãe: Mas eu não te vejo! Onde estás?

Júlia: Aqui ao teu lado, com a minha mão sobre a sra. X (a médium) para que escreva o que te digo. Vê a minha letra (a letra era realmente a da moça).

A mãe: Dizes: minha mão. Então tens corpo?

Júlia: Não tenho mais o corpo que tanto me fez sofrer, mas tenho a sua aparência. Não estás contente porque não sofro mais e porque posso conversar contigo?

A mãe: Se eu te visse, te reconheceria, então?

Júlia: Sim, sem dúvida; e já me viste muitas vezes em teus sonhos.

A mãe: Eu realmente te revi nos meus sonhos, mas pensei que fosse efeito da imaginação, uma lembrança.

Júlia: Não. Sou eu mesma que estou sempre contigo e te procuro consolar; fui eu quem te inspirou a ideia de me evocar. Tenho muitas coisas a te dizer. Desconfia do sr. Z . . . Ele não é sincero.

(Esse senhor, conhecido apenas da mãe, citado assim espontaneamente, era uma nova prova de identidade do Espírito que se manifestava.)

A mãe: Que pode fazer contra mim o sr. Z?

Júlia: Não te posso dizer. Isto me é vedado. Posso apenas te advertir que desconfies dele.

A mãe: Estás entre os anjos?

Júlia: Oh! ainda não. Não sou bastante perfeita.

A mãe: Entretanto, não te conhecia nenhum defeito. Eras boa, meiga, amorosa e benevolente para com todos. Então isto não basta?

Júlia: Para ti, mãe querida, eu não tinha defeitos, e eu o acreditava, pois mo dizias tantas vezes! Mas agora vejo o que me falta para ser perfeita.

A mãe: Como conseguirás essas qualidades que te faltam?

Júlia: Em novas existências, que serão cada vez mais felizes.

A mãe: É na Terra que terás novas existências?

Júlia: Nada sei a respeito.

A mãe: Desde que não fizeste o mal em tua vida, por que sofreste tanto?

Júlia: Prova! Prova! Eu a suportei com paciência, pela minha confiança em Deus. Hoje sou muito feliz por isto. Até breve, querida mamãe!

Ante fatos como este, quem ousará falar do nada do túmulo, quando a vida futura se nos revela, por assim dizer, palpável? Essa mãe, minada pelo desgosto, experimenta hoje uma felicidade inefável em poder conversar com a filha; entre elas não há mais separação; suas almas se confundem e se expandem na intimidade espiritual, pela troca de seus pensamentos.

Apesar da discrição em que envolvemos este relato, não o teríamos publicado se não tivéssemos tido autorização formal. Aquela mãe nos dizia: Possam todos quantos perderam suas afeições terrenas experimentar a mesma consolação que experimento!

Acrescentaremos apenas uma palavra aos que negam a existência dos bons Espíritos. Perguntaremos como poderiam provar que o Espírito desta jovem era um demônio malfazejo!

Uma conversão.

Embora sob outro ponto de vista, não será menor o interesse oferecido pela evocação seguinte.

Um senhor, que designaremos pelo nome de Georges, farmacêutico numa cidade do Sul, há muito havia perdido o pai, objeto de toda a sua ternura e de profunda veneração. O velho Sr. Georges — o pai — aliava a uma instrução muito vasta todas as qualidades que marcam o homem de bem, embora professasse ideias materialistas. A esse respeito o filho partilhava das mesmas ideias, se não ultrapassava as do pai; duvidava de tudo: de Deus, da alma, da vida futura. O Espiritismo não se adaptava a tais pensamentos. A leitura de O Livro dos Espíritos, entretanto, provocou-lhe uma certa reação, corroborada por uma conversa direta que tivemos com ele. Ele dizia: “Se meu pai pudesse me responder, eu não duvidaria mais.” Foi então que se fez a evocação seguinte, na qual encontramos diversos ensinamentos.

1. Em nome do Todo-Poderoso, Espírito de meu pai, eu lhe peço que se manifeste. O senhor está junto de mim?

— Sim.

2. Por que o senhor não se manifesta diretamente a mim, quando tanto nos amamos?

— Mais tarde.

3. Poderemos nos encontrar um dia?

— Sim, breve.

4. Amar-nos-emos como nesta vida?

— Mais.

5. Em que meio o senhor se acha?

— Sou feliz.

6. O senhor reencarnou ou está errante?

— Errante por pouco tempo.

7. Que sensação experimentou ao deixar o envoltório corporal?

— De perturbação.

8. Quanto tempo durou a perturbação?

— Pouco para mim, muito para você.

9. Pode avaliar a sua duração, de acordo com o nosso modo de contar?

— Dez anos para você, dez minutos para mim

10. Mas não faz tanto tempo que eu o perdi. Não foi há apenas quatro meses?

— Se você, como vivo, estivesse em meu lugar, teria sentido aquele tempo.

11. Crê agora em um Deus justo e bom?

— Sim.

12. Quando vivo na Terra também acreditava?

— Eu tinha a presciência, mas não acreditava.

13. Deus é Todo-Poderoso?

— Não subi até ele para avaliar o seu poder. Só ele conhece os limites de seu poder, porque só ele é seu igual.

14. Ele se ocupa com os homens?

— Sim.

15. Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos?

— Se você fizer o mal, sofrerá.

16. Serei recompensado se fizer o bem?

— Avançará em seu caminho.

17. Estou no bom caminho?

— Faça o bem e estará.

18. Creio ser bom, mas seria melhor se um dia pudesse encontrá-lo, como recompensa.

— Que este pensamento o sustente e o encoraje.

19. Meu filho será bom como seu avô?

— Desenvolva suas virtudes e extirpe seus vícios.

20. Isto é tão maravilhoso que chego a não crer que nos comunicamos neste momento.

— De onde lhe vem a dúvida?

21. É que, partilhando de suas opiniões filosóficas, fui levado a atribuir tudo à matéria.

Você vê de noite aquilo que vê de dia?

22. Ó, meu pai! Então eu me acho na noite?

— Sim.

23. Que é o que o senhor vê de mais maravilhoso?

— Explique-se melhor.

24. Encontrou minha mãe, minha irmã e Ana, a boa Ana?

— Eu as revi.

25. O senhor volta a vê-las quando quer?

— Sim.

26. É penoso ou agradável para o senhor, que eu me comunique consigo?

— É uma felicidade para mim, se eu puder conduzi-lo ao bem.

27. Voltando para casa, que poderia fazer para me comunicar com o senhor, já que isto me dá prazer? Isto serviria para que me conduzisse melhor e me ajudaria a educar os meus filhos.

— Cada vez que um movimento o levar ao bem, siga-o. Eu o inspirarei.

28. Calo-me com receio de importuná-lo.

— Fale ainda, se quiser.

29. Já que o permite, farei mais algumas perguntas. De que afecção o senhor morreu?

— Minha prova havia chegado ao termo.

30. Onde o senhor contraiu o abscesso pulmonar que se manifestou?

— Pouco importa. O corpo nada é. O Espírito é tudo.

31. Qual a natureza da doença que me desperta tão frequentemente durante a noite?

— Sabê-lo-á mais tarde.

32. Considero minha afecção grave e queria ainda viver para os meus filhos.

— Ela não o é. O coração do homem é uma máquina de vida. Deixe a natureza agir.

33. Considerando-se que o senhor está aqui presente, sob que forma se acha?

— Sob a aparência de minha forma corpórea.

34. O senhor está num lugar determinado?

— Sim; por detrás de Ermance (a médium).

35. Poderia tornar-se visível?

— Não vale a pena. Vocês teriam medo.

36. O senhor tem uma opinião sobre cada um de nós, aqui presentes?

— Sim.

37. Quer dizer alguma coisa a cada um de nós?

— Em que sentido me faz esta pergunta?

38. Do ponto de vista moral.

— De outra vez. Por hoje basta.

O efeito que esta comunicação produziu no sr. Georges foi imenso, e uma luz inteiramente nova já parecia clarear-lhe as ideias. Numa sessão a que compareceu no dia seguinte, em casa da sra. Roger, sonâmbula, acabou de dissipar as poucas dúvidas que lhe poderiam restar. Eis um resumo da carta que a respeito nos escreveu:

“Essa senhora entrou espontaneamente comigo em detalhes tão precisos em relação a meu pai, minha mãe, meus filhos e minha saúde; descreveu com tal exatidão todas as circunstâncias de minha vida, lembrando mesmo fatos que de há muito me haviam sido varridos da memória; numa palavra, deu-me provas tão patentes dessa maravilhosa faculdade de que são dotados os sonâmbulos lúcidos, que desde então foi completa em mim a reação das ideias. Na evocação, meu pai havia revelado a sua presença. Na sessão de sonambulismo, por assim dizer, eu era testemunha ocular da vida extracorpórea, a vida da alma. Para descrever com tanta minúcia e exatidão, e a duzentas léguas de distância, aquilo que só de mim era conhecido, era preciso ver. Ora, de vez que isto não era possível com os olhos do corpo, havia então um laço misterioso, invisível, que ligava a sonâmbula às pessoas e às coisas ausentes que ela jamais tinha visto. Havia, pois, algo fora da matéria. Que podia ser essa coisa senão aquilo que se chama alma, o ser inteligente do qual o corpo é simples envoltório, mas cuja ação se estende muito além de nossa esfera de atividade?”

Atualmente o sr. Georges não só deixou de ser materialista, mas é um dos adeptos mais fervorosos e mais dedicados do Espiritismo, o que o faz duplamente feliz, pela confiança que agora tem no futuro e pelo prazer que experimenta em praticar o bem.

Esta evocação, inicialmente muito simples, não é menos notável em muitos aspectos. O caráter do velho Georges reflete-se nas respostas breves e sentenciosas que estavam em seus hábitos. Ele falava pouco; jamais dizia uma palavra inútil. Mas já não é o céptico que fala. Ele reconhece seu erro; seu Espírito é mais livre, mais clarividente, e retrata a unidade e o poder de Deus por estas palavras admiráveis: “Só ele é seu igual.” Ele, que em vida tudo atribuía à matéria, diz agora: “O corpo nada é. O Espírito é tudo.” E esta outra frase sublime: “Você vê de noite aquilo que vê de dia?”

Para o observador atento, tudo tem um alcance, e é assim que a cada passo ele encontra a confirmação das grandes verdades ensinadas pelos Espíritos.


OS MÉDIUNS JULGADOS

Os antagonistas da doutrina espírita agarraram-se solícitos a um artigo publicado pelo Scientific American de 11 de julho último, sob o título Les médiums jugés. Vários jornais franceses o reproduziram como um argumento irretorquível. Nós mesmos o reproduzimos, acrescentando algumas observações que lhe mostram o valor.

“Há algum tempo, por intermédio do Boston Courier, havia sido feita uma oferta de 500 dólares a quem quer que, em presença e conforme a vontade de um certo número de professores da Universidade de Cambridge, reproduzisse alguns desses fenômenos misteriosos que os espiritualistas dizem ter sido frequentemente produzidos por intermédio de agentes chamados médiuns.

“O desafio foi aceito pelo Dr. Gardner e por várias pessoas que se gabavam de estar em comunicação com os Espíritos. Os concorrentes reuniram-se no edifício Albion, em Boston, na última semana de junho, prontos para a prova de seu poder sobrenatural. Entre eles notavam-se as senhoritas Fox, que se haviam tornado célebres por sua proeminência nesse gênero. A comissão examinadora das pretensões dos aspirantes ao prêmio era composta pelos Professores Pierce, Agassiz, Gould e Horsford, de Cambridge, todos eles sábios de nomeada. As tentativas espiritualistas duraram vários dias. Jamais os médiuns tiveram tão bela oportunidade de evidenciar seu talento ou sua inspiração. Entretanto, como os sacerdotes de Baal nos dias de Elias, em vão invocaram suas divindades, como demonstra a seguinte passagem do relatório da comissão:

“A comissão declara que o Dr. Gardner, não tendo conseguido apresentar um agente ou “médium” que, da sala vizinha, revelasse a palavra pedida aos Espíritos; que lesse a palavra inglesa escrita no interior de um livro ou sobre uma folha de papel dobrada; que respondesse a uma pergunta que só as inteligências superiores podem saber; que fizesse soar um piano sem tocá-lo, ou mover-se uma pequena mesa de um só pé sem o auxílio das mãos; como se mostrou incapaz de dar à comissão o testemunho de um fenômeno que, mesmo com a mais elástica interpretação e a maior boa vontade, pudesse ser considerado como equivalente ao das provas pedidas; de um fenômeno para cuja produção fosse exigida a intervenção de um Espírito, supondo, ou pelo menos implicando tal intervenção; de um fenômeno até aqui desconhecido pela Ciência ou cuja causa não fosse palpável e imediatamente assinalada pela comissão, não tem o direito de exigir do Courier de Boston o pagamento da soma oferecida de 500 dólares.”

“A experiência feita nos Estados Unidos em relação aos médiuns lembra outra, feita na França há cerca de dez anos, pró ou contra os sonâmbulos lúcidos, isto é, magnetizados. A Academia de Ciências recebeu a incumbência de conferir um prêmio de 2.500 francos ao sensitivo magnético que lesse com os olhos vendados.

Habitualmente, todos os sonâmbulos faziam tais exercícios nos salões ou nos palcos: Liam em livros fechados e decifravam uma carta, sentando-se sobre ela ou pondo-a sobre o peito, fechada e bem dobrada; mas perante a Academia não leram absolutamente nada e o prêmio não foi conquistado por ninguém.”

Esta tentativa prova, mais uma vez, a absoluta ignorância, por parte dos nossos antagonistas, dos princípios sobre os quais repousam os fenômenos das manifestações espíritas. Eles têm a ideia fixa de que tais fenômenos devem obedecer à vontade e produzir-se com uma precisão mecânica. Eles esquecem completamente, ou antes, não sabem que a causa de tais fenômenos é inteiramente moral e que as inteligências que são os agentes imediatos não obedecem ao capricho de quem quer que seja — médiuns ou outras pessoas.

Os Espíritos agem quando lhes apraz e perante quem lhes agrada. Por vezes, quando menos se espera sua manifestação é que ela ocorre com mais energia, e quando a solicitamos ela não se verifica.

Os Espíritos têm maneiras de comportar-se para nós desconhecidas. O que está fora da matéria não pode submeter-se ao cadinho da matéria. Julgá-los do nosso ponto de vista é enganar-se. Se acharem útil manifestar-se por sinais particulares, fá-lo-ão, mas nunca à nossa vontade, nem para satisfazer uma vã curiosidade.

Além disso, deve-se levar em conta uma causa muito conhecida, que afasta os Espíritos: sua antipatia por certas pessoas, principalmente pelas que querem submeter à prova sua perspicácia, fazendo perguntas sobre coisas conhecidas. Pensam que quando uma coisa existe, eles devem saber; ora, é precisamente porque uma coisa nos é conhecida ou que nós temos meios de verificá-la que eles não se dão ao trabalho de responder. Tal suspeita os irrita e nada se obtém de satisfatório; ela afasta sempre os Espíritos sérios que de boa vontade não falam senão aos que se lhes dirigem com confiança e sem segundas intenções.

Não temos um exemplo diariamente entre nós? Homens superiores e que têm consciência de seu valor não gostam de responder a todas as perguntas ingênuas que visam submetê-los a um exame de primeiras letras. Que diriam se lhes objetássemos: “Mas se o senhor não responde é porque não sabe!” Voltar-nos-iam as costas. É o que fazem os Espíritos.

Então direis: Se assim é, qual o meio de nos convencermos? No próprio interesse da doutrina dos Espíritos, não devem eles desejar fazer prosélitos? Responderemos que é muito orgulho julgar-se alguém indispensável ao êxito de uma causa. Ora, os Espíritos não gostam dos orgulhosos. Eles convencem a quem querem; quanto aos que acreditam em sua importância pessoal, eles lhes provam o pouco caso que lhes fazem, não lhes dando ouvidos.

Vejamos, para finalizar, sua resposta a duas perguntas sobre o assunto:

P. — Pode-se pedir aos Espíritos provas materiais de sua existência e de seu poder?

R. — Sem dúvida podem provocar-se certas manifestações, mas nem todos estão aptos a isto, e muitas vezes aquilo que se pede não se alcança. Eles não se dobram aos caprichos dos homens.

P. — Mas, quando alguém pede provas para se convencer, não haveria conveniência em ser atendido, pois que seria um adepto a mais?

R. — Os Espíritos só fazem o que querem e o que lhes é permitido. Falando convosco e respondendo às vossas perguntas, atestam a sua presença: isto deve bastar à gente séria, que busca a verdade na palavra.

Os escribas e fariseus disseram a Jesus: “Mestre, gostaríamos de ver-te fazer algum prodígio”. Jesus respondeu: “Esta geração má e adúltera pede um prodígio, mas não lhe será dado prodígio outro que o do profeta Jonas.” (São Mateus.)

Acrescentaremos ainda que é conhecer muito pouco a natureza e a causa das manifestações, pensar em excitá-las por um prêmio qualquer. Os Espíritos desprezam a cupidez, tanto quanto o orgulho e o egoísmo. Esta condição única pode ser para eles um motivo para não se manifestarem. Sabei, portanto, que obtereis cem vezes mais de um médium desinteressado que daquele movido pelo engodo do lucro, e que um milhão não o levaria a fazer o que não deve. Se algo há para estranhar, é o fato de se encontrarem médiuns capazes de submeter-se a uma prova que tinha por objetivo uma soma em dinheiro.

VISÕES

Lemos no Courrier de Lyon:

“Na noite de 27 para 28 de agosto de 1857, um caso singular de visão intuitiva se passou em Croix-Rousse, nas seguintes condições:

“Há cerca de três meses o casal B. . ., dignos tecelões, movidos por louvável comiseração, recolheram em casa, como empregada, uma mocinha atoleimada, que vivia nas imediações de Bourgoing.

“Domingo passado, entre duas e três horas da manhã, o casal foi acordado pelos gritos lancinantes da empregada, que dormia num sótão contíguo ao quarto deles. Acendendo a lâmpada, a senhora subiu e encontrou a empregada debulhada em lágrimas e num indescritível estado de exaltação de espírito, torcendo os braços em terríveis convulsões e chamando por sua mãe que, dizia ela, acabara de ver morrer diante de seus olhos.

“Depois de haver consolado a pobrezinha como melhor lhe foi possível, a senhora voltou ao quarto. O incidente quase fora esquecido quando ontem, terça-feira, no período da tarde, o carteiro trouxe à senhora B. . . uma carta do tutor da mocinha, informando que na noite de domingo para segunda-feira, entre duas e três horas da manhã, sua mãe havia morrido em consequência de uma queda do alto de uma escada.

“A pobre idiota partiu ontem pela manhã para Bourgoing, acompanhada pelo sr. B. . ., seu patrão, a fim de receber o quinhão na herança de sua mãe, cujo fim deplorável vira tão tristemente em sonho.”

Os fatos desta natureza não são raros, e teremos frequentes ocasiões de descrever alguns de autenticidade incontestável. Por vezes se produzem durante o sono, como um sonho. Ora, como os sonhos não passam de um estado sonambúlico natural e incompleto, designaremos as visões que ocorrem nesse estado como visões sonambúlicas, para distingui-las das que se dão em vigília e a que chamaremos visões pela dupla vista. Por fim, chamaremos de visões extáticas as que se verificam no êxtase. Geralmente têm como objeto seres e coisas do mundo incorpóreo. O fato que segue pertence à segunda categoria.

Um armador nosso conhecido, residente em Paris, há poucos dias contou-nos o seguinte:

“No último mês de abril, sentindo-me indisposto, fui passear com meu sócio nas Tulherias. Estava um dia magnífico; o jardim regurgitava de gente. De repente a multidão desaparece ante os meus olhos; não sinto mais o meu corpo e sou como que transportado, e vejo distintamente um navio entrando no porto do Havre. Reconheço-o como sendo o Clémence, que esperávamos das Antilhas. Vi-o atracar ao cais e distinguia bem os mastros, as velas, os marinheiros e os menores detalhes, como se eu lá estivesse. Então disse ao meu companheiro: ‘Eis o Clémence que chega. Receberemos notícia ainda hoje. Sua travessia foi feliz’. Chegando em casa, entregaram-me um telegrama. Antes de o ler declarei: ‘É o aviso da chegada do Clémence, que entrou no Havre às três horas’. O telegrama realmente confirmava a entrada, exatamente à hora em que me encontrava nas Tulherias”.

Quando as visões têm como assunto seres do mundo incorpóreo, aparentemente poder-se-ia levá-las à conta da imaginação, classificando-as de alucinações, porque nada lhes poderia demonstrar a exatidão. Mas nos dois casos referidos aparece a realidade mais material e positiva. Desafiamos todos os fisiologistas e todos os filósofos a que no-los expliquem pelos sistemas comuns. Só a doutrina espírita pode fazê-lo, por meio da emancipação da alma que, escapando momentaneamente das fraldas materiais, transporta-se para além da esfera de atividade corporal. No primeiro caso descrito, é provável que a alma da mãe tivesse vindo ver a filha e avisá-la de sua morte, mas no segundo o que é certo é que o navio não veio encontrar o armador nas Tulherias. Há que concordar que foi a alma deste que foi vê-lo no Havre.

RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DOS ESPÍRITOS E DE SUAS MANIFESTAÇÕES

Se as primeiras manifestações espíritas fizeram numerosos adeptos, não só encontraram muita incredulidade, mas adversários encarniçados e, muitas vezes até, interessados no seu descrédito. Hoje os fatos falaram tão alto que é forçoso reconhecer a evidência, e se existem ainda incrédulos sistemáticos, podemos predizer-lhes com segurança que dentro de poucos anos dar-se-á com os Espíritos o mesmo que com a maioria das descobertas que foram por todos os modos combatidas e consideradas como utopia por aqueles cujo saber deveria tê-los tornado menos cépticos quanto ao que se relacionava com o progresso. Entre os que não quiseram aprofundar-se neste estranho fenômeno, já vemos muitos concordando que nosso século é tão fecundo em coisas extraordinárias e que a natureza tem tantas reservas desconhecidas, que seria mais que leviandade negar a possibilidade daquilo que a gente não compreende. Estes dão provas de sabedoria.

Eis uma autoridade contra a qual não se poderia levantar suspeita de levianamente aceitar uma mistificação: é um dos principais jornais eclesiásticos de Roma, o Civiltà Cattolica. Reproduzimos a seguir um artigo publicado por esse jornal no mês de março último, onde se vê que seria difícil provar a existência e a manifestação dos Espíritos por argumentos mais peremptórios. É verdade que divergimos quanto à natureza dos Espíritos, porque ele só admite a manifestação dos maus, ao passo que nós admitimos a dos bons e dos maus. É um ponto do qual trataremos mais tarde, com todo o desenvolvimento necessário. O reconhecimento das manifestações espíritas por uma autoridade tão grave e tão respeitável é ponto capital. Resta portanto julgar. É o que faremos no próximo número. Reproduzindo o artigo, L’Univers o precede das seguintes e sábias reflexões:

“Quando do aparecimento de uma obra publicada em Ferrara sobre a prática do magnetismo animal, referimos aos nossos leitores os sábios artigos que eram estampados na Civiltà Cattolica, de Roma, sobre a Necromancia moderna, reservando-nos para dar mais amplas informações. Damos hoje o último desses artigos, que contém nalgumas páginas as conclusões da revista romana.

“Além do interesse naturalmente ligado ao assunto e da confiança que deve inspirar um trabalho publicado no Civiltà, a oportunidade especial da questão, neste momento, dispensa-nos de chamar a atenção para uma matéria que muitas pessoas, na teoria como na prática, trataram de maneira tão pouco séria, a despeito da regra de vulgar prudência, a qual recomenda que os fatos sejam examinados com tanto maior circunspecção quanto mais extraordinários forem.”

Eis o artigo:

“De todas as teorias lançadas para explicar naturalmente os vários fenômenos conhecidos como espiritualismo americano, nenhuma atinge o objetivo e, ainda menos, consegue dar a razão de todos os fenômenos. Se uma ou outra dessas hipóteses basta para explicar alguns, muitos ficarão inexplicáveis. O embuste, a mentira, o exagero, as alucinações sem dúvida devem ter uma grande parte nos fatos referidos; mas, feito o desconto, resta ainda tal volume que, para lhes negar a realidade, seria preciso recusar fé à autoridade dos sentidos e ao testemunho humano.

“Entre os fatos em questão, um certo número se explica pela teoria mecânica ou mecânico-fisiológica; resta, porém, uma parte — e muito mais considerável — que de modo algum se presta a uma explicação deste gênero. A esta ordem de fatos ligam-se todos os fenômenos nos quais, dizem, os efeitos obtidos ultrapassam, evidentemente, a intensidade da força motriz que deveria produzi-los. Tais são:

“1º. Os movimentos, os sobressaltos violentos de massas pesadas e solidamente equilibradas, à simples pressão e leve toque das mãos;

“2º. Os efeitos e os movimentos produzidos sem nenhum contato, consequentemente sem qualquer impulso mecânico mediato ou imediato;

“3º. Esses outros efeitos, de natureza a manifestar, em quem os produz, uma inteligência e uma vontade distintas das dos experimentadores.

“Para dar a razão destas três ordens de fatos diversos, temos ainda a teoria do magnetismo. Mas, por maiores que sejam as concessões que estejamos dispostos a fazer, e mesmo admitindo, de olhos fechados, todas as hipóteses gratuitas sobre as quais se fundam; todos os erros e absurdos de que está repleta, bem como as faculdades miraculosas por ela atribuídas à vontade humana, ao fluido nervoso ou a quaisquer outros agentes magnéticos, jamais essa teoria poderá, com o auxílio de seus princípios, explicar como uma mesa magnetizada por um médium manifesta nos seus movimentos inteligência e vontade próprias, isto é, distintas das do médium e por vezes contrárias e superiores à sua inteligência e à sua vontade.

“Como dar a razão de semelhantes fenômenos? Queremos, também nós, recorrer não sabemos a que causas ocultas; a que forças ainda desconhecidas na Natureza; a explicações novas de certas faculdades, de certas leis até agora conservadas em inércia e como que adormecidas no seio da Criação? Isto equivaleria a confessar abertamente a nossa ignorância e levar o problema a aumentar o número dos enigmas cuja decifração o pobre espírito humano não pôde dar até o presente e não o poderá jamais. Aliás, não hesitamos em confessar nossa ignorância em relação a muitos dos fenômenos em apreço, cuja natureza é tão equívoca e tão obscura que a atitude mais inteligente, parece-nos, é não tentar explicá-los. Em compensação, há outros cuja explicação não nos parece difícil, posto seja impossível buscá-la em causas naturais. Por que então hesitaríamos em recorrer a causas pertencentes à ordem sobrenatural? Talvez fôssemos desviados pelas objeções contrapostas pelos cépticos e pelos que, negando essa ordem sobrenatural, nos digam que é impossível definir até onde chegam as forças da Natureza; que o campo ainda não descoberto pelas Ciências Físicas não tem limites; que ninguém conhece suficientemente os limites da ordem natural para poder indicar com precisão o ponto onde esta termina e onde a outra começa.

“Parece-nos fácil a resposta a semelhante objeção: admitindo que se não possa determinar de modo preciso o ponto de divisão destas duas ordens opostas, a natural e a sobrenatural, não se segue que jamais seja possível definir com certeza se um dado efeito pertence a esta ou àquela. Quem pode distinguir no arco-íris o ponto exato onde acaba uma das cores e começa a outra? Quem pode fixar o momento preciso em que termina o dia e começa a noite? Entretanto, não há ninguém tão bitolado para concluir que não se pode saber se tal zona do arco-íris é vermelha ou amarela, ou se a tal hora é dia ou noite. Quem não percebe que para conhecer a natureza de um fato, de modo algum é preciso ultrapassar o limite onde começa ou onde acaba a categoria à qual o mesmo pertence, e que basta constatar se tem os caracteres peculiares a essa mesma categoria?

“Apliquemos esta observação tão simples à seguinte questão: não podemos dizer até onde vão as forças da Natureza; não obstante, dando-se um fato, muitas vezes podemos, conforme seus caracteres, dizer com certeza que pertence à ordem sobrenatural. E para não sair do nosso problema, entre os fenômenos das mesas falantes há muitos que, em nossa opinião, manifestam esses caracteres da mais evidente maneira; tais são aqueles nos quais o agente que move as mesas age como causa inteligente e livre, ao mesmo tempo que mostra uma inteligência e uma vontade próprias, isto é, superiores ou contrárias à inteligência e à vontade dos médiuns, dos experimentadores, dos assistentes; numa palavra, distintas dessas, qualquer que seja a maneira por que tal distinção se afirme. Em casos tais, seja como for, somos forçados a admitir que esse agente é um Espírito e não é um espírito humano; e que assim, está fora desta ordem, dessas causas que costumamos chamar de naturais, dessas que dizemos ultrapassarem as forças do homem.

“São estes precisamente os fenômenos que, como dissemos acima, resistiram a qualquer teoria baseada em princípios puramente naturais, enquanto que na nossa, sua explicação é mais fácil e mais clara, pois todos sabem que o poder dos Espíritos sobre a matéria ultrapassa de muito as forças do homem, e porque não há efeito maravilhoso, entre os citados da necromancia moderna, que não possa ser atribuído à sua ação.

“Sabemos muito bem que alguns leitores, vendo-nos trazer à cena os Espíritos, sorrir-nos-ão com piedade. Sem falar dos que, como bons materialistas, não acreditam na existência dos Espíritos e consideram como fábula tudo quanto não seja matéria ponderável e palpável, como também os que, admitindo que existam Espíritos, lhes negam qualquer influência ou intervenção, no que respeita ao nosso mundo.

“Há em nossos dias muitas criaturas que, concedendo aos Espíritos o que nenhum bom católico lhes poderia recusar, isto é, a existência e a faculdade de interferir nos fatos da vida humana de modo oculto ou patente, ordinário ou extraordinário, não obstante parece que desmentem sua fé na prática e consideram como uma vergonha, como um excesso de credulidade, como uma superstição própria das mulheres velhas, admitir a ação desses mesmos Espíritos em certos casos especiais, contentando-se em não negá-la em tese.

“Realmente, há um século zombou-se tanto da simplicidade da Idade Média, quando por toda parte viam-se Espíritos maléficos e feiticeiros e tanto se deblaterou a tal respeito, que não é de admirar que tantas cabeças fracas, que querem parecer fortes, tenham, de então por diante, repugnância e uma espécie de vergonha em crer na intervenção dos Espíritos. Mas este excesso de incredulidade não é menos desarrazoado do que noutras épocas o foi a atitude contrária; e se, em assunto semelhante, a excessiva credulidade arrasta a vãs superstições, por outro lado nada querer admitir conduz diretamente à impiedade do naturalismo. O homem sensato, o cristão prudente deve, pois, evitar igualmente os dois extremos, mantendo-se firme na linha média, pois nela é que estão a verdade e a virtude. Agora, na questão das mesas falantes, para que lado nos inclinaria uma fé prudente?

“A primeira e mais sábia das regras impostas por essa prudência ensina que, para explicar os fenômenos que apresentam um caráter extraordinário, não devemos recorrer a causas sobrenaturais senão quando as de ordem natural não bastam para explicá-los. Disto decorre, por outro lado, a obrigação de admitir as primeiras quando as últimas são insuficientes. É justamente o nosso caso. Com efeito, entre os fenômenos de que falamos, uns há para os quais nenhuma teoria, nenhuma causa puramente natural seria suficiente para lhe dar a razão de ser. Assim, pois, não só é prudente, mas necessário mesmo, procurar sua explicação na ordem sobrenatural ou, por outras palavras, atribuí-los a puros Espíritos, pois fora e acima da Natureza não existe outra causa possível.

“Eis uma segunda regra, um criterium infalível para dizer, a respeito de um fato qualquer, se pertence à ordem natural ou à sobrenatural: é examinar bem os seus caracteres e, de acordo com eles, determinar a natureza da causa que o produziu. Ora, os mais maravilhosos fatos nesse gênero, que nenhuma outra teoria pode explicar, oferecem caracteres tais que não só demonstram uma causa inteligente e livre, mas ainda dotada de uma inteligência e de uma vontade que nada têm de humano. Então, essa causa não pode deixar de ser um puro Espírito.

“Assim, por dois caminhos, um indireto e negativo, que procede por exclusão, outro direto e positivo, fundado sobre a natureza mesma dos fatos observados, chegamos a idêntica conclusão, isto é: entre os fenômenos da necromancia moderna, há pelo menos uma categoria de fatos que, sem sombra de dúvida, são produzidos por Espíritos. Somos levados a tal conclusão por um raciocínio tão simples e tão natural que, aceitando-o, longe do temor de ceder a uma imprudente credulidade, julgaríamos, ao contrário, recusando admiti-lo, dar provas de uma fraqueza e de uma incoerência de espírito injustificável. Para confirmar a nossa assertiva, não faltam argumentos; faltam-nos, entretanto, espaço e tempo para aqui desenvolvê-los. O que até agora dissemos é suficiente e pode resumir-se nas quatro seguintes proposições:

“1.º) Entre os fenômenos em questão, postos de lado os que razoavelmente podem ser atribuídos à impostura, às alucinações e aos exageros, outros há, em grande número, de cuja realidade não é possível duvidar sem violar todas as leis de uma crítica sadia.

“2.º) Todas as teorias naturais que expusemos e discutimos acima são insuficientes para explicar satisfatoriamente todos esses fatos. Se explicam uns, deixam o maior número — e estes são os mais difíceis ─ absolutamente não explicados e inexplicáveis.

“3.º) Implicando a ação de uma causa inteligente fora do homem, os fenômenos desta última ordem só podem ser explicados pela intervenção dos Espíritos, seja qual for, aliás, o caráter desses Espíritos, assunto de que nos ocuparemos a seguir.

“4.º) Todos esses fatos podem dividir-se em quatro categorias: Muitos devem ser rejeitados como falsos ou como produtos da fraude. Quanto aos outros, os mais simples, os mais fáceis de compreender, tais como as mesas girantes, em determinadas circunstâncias admitem uma explicação puramente natural; por exemplo, a do impulso mecânico. Uma terceira classe compõe-se dos fenômenos mais extraordinários e mais misteriosos, sobre cuja natureza ficamos em dúvida, porque, embora pareçam ultrapassar as forças da Natureza, não apresentam contudo caracteres tais que, evidentemente, para explicá-los, devamos recorrer a uma causa sobrenatural. Enfim, agrupamos na quarta categoria os fatos que, oferecendo esses caracteres de maneira evidente, devem ser atribuídos à operação invisível de puros Espíritos.

“Mas, como são esses Espíritos? Bons ou maus? Anjos ou demônios? Almas felizes ou condenadas? A resposta a esta última parte do problema não pode oferecer dúvidas, por pouco que sejam considerados, de um lado, a natureza dos diversos Espíritos e do outro, o caráter de suas manifestações. É o que nos falta mostrar.”


HISTÓRIA DE JOANA D'ARC DITADA POR ELA PRÓPRIA À SENHORITA ERMANCE DUFAUX


É uma pergunta que nos tem sido feita muitas vezes, esta de saber se os Espíritos que respondem com maior ou menor precisão às perguntas que lhes são dirigidas poderiam fazer um trabalho de fôlego. A prova está na obra a que nos referimos, pois aqui já não se trata de uma série de perguntas e respostas, mas de uma narração completa e ordenada, como o faria um historiador, e contendo uma infinidade de detalhes pouco ou nada conhecidos sobre a vida da heroína.

Aos que poderiam crer que a senhorita Dufaux inspirou-se em conhecimentos pessoais, respondemos que ela escreveu o livro na idade de catorze anos; que sua instrução era a das meninas de família decente, educadas com cuidado, mas, ainda quando tivesse uma memória fenomenal, não seria nos livros clássicos que iria encontrar documentos íntimos, dificilmente encontradiços nos arquivos da época. Sabemos que os incrédulos farão sempre mil e uma objeções, mas para nós, que vimos a médium operar, a origem do livro não pode ser posta em dúvida.

Embora a faculdade da senhorita Dufaux se preste à evocação de qualquer Espírito, de que nós mesmos fizemos prova em comunicações pessoais que nos foram transmitidas, sua especialidade é a história. Ela escreveu do mesmo modo a de Luís XI e a de Carlos VIII que, como a de Joana d’Arc, serão publicadas.

Passou-se com ela um curioso fenômeno. A princípio, era boa médium psicógrafa e escrevia com grande facilidade. Pouco a pouco tornou-se médium falante e, à medida que essa nova faculdade se desenvolveu, a primeira se atenuou. Hoje escreve pouco e com dificuldade, mas o que é original é que, falando, sente a necessidade de estar com um lápis na mão e de fingir que escreve. É necessária outra pessoa para registrar suas palavras, como as da Sibila. Como todos os médiuns favorecidos pelos bons Espíritos, jamais recebeu comunicações que não fossem de ordem elevada.

Voltaremos à história de Joana d’Arc para explicar os fatos de sua vida, relacionados com o mundo invisível; então citaremos o que a respeito ela ditou ao seu mais notável intérprete. (1 vol. in-12, 3 fr.; Dentu, Palais-Royal.)


O LIVRO DOS ESPÍRITOS*

CONTENDO OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA ESPÍRITA

Sobre a natureza do mundo incorpóreo, suas manifestações e suas relações com os homens; as leis morais, a vida presente, a vida futura e o futuro da humanidade.

ESCRITO DE ACORDO COM O DITADO
E PUBLICADO POR ORDEM DOS ESPÍRITOS SUPERIORES

Por Allan Kardec

Como o indica o título, esta obra não é uma doutrina pessoal: é o resultado do ensino direto dos próprios Espíritos sobre os mistérios do mundo onde estaremos um dia e sobre todas as questões que interessam à humanidade; eles nos dão de algum modo um código de vida, traçando-nos a rota da felicidade porvindoura. Como este livro não é fruto de nossas ideias, pois sobre muitos pontos importantes tínhamos uma maneira de ver bem diversa, nossa modéstia nada teria a sofrer com elogios. Preferimos, entretanto, deixar que falem os que estão inteiramente desinteressados por esta questão. Sobre este livro, o Courrier de Paris, de 11 de junho de 1857, estampou o seguinte artigo: —

A doutrina espírita.

"Faz pouco tempo publicou o editor Dentu uma obra deveras notável, diríamos mesmo muito curiosa, se não houvesse coisas às quais repugna qualquer classificação banal.

"O Livro dos Espíritos, do Sr. Allan Kardec, é uma página nova do próprio grande livro do infinito e, estamos persuadidos, uma marca será posta nessa página. Seria lamentável que pensassem estarmos aqui a fazer reclame bibliográfico: se tal se pudesse admitir, preferiríamos quebrar a pena. Não conhecemos absolutamente o autor, mas proclamamos bem alto que gostaríamos de conhecê-lo. Quem escreveu aquela introdução que abre O Livro dos Espíritos deve ter a alma aberta a todos os sentimentos nobres.

"Aliás, para que não se ponha em dúvida a nossa boa-fé e nos acusem de partidarismo, diremos com toda a sinceridade que jamais fizemos um estudo aprofundado das questões sobrenaturais. Apenas, se os fatos produzidos nos causaram admiração, pelo menos não nos levaram a dar de ombros. Somos um pouco da classe chamada dos sonhadores, porque não pensamos como todo o mundo. A vinte léguas de Paris, ao cair da tarde, quando em nossa volta tínhamos apenas algumas cabanas esparsas, pensamos naturalmente em coisas muito diversas da bolsa, do macadame dos bulevares ou nas corridas de Longchamp. Muitas vezes nos interrogávamos e, durante muito tempo, antes de ter ouvido falar em médiuns, a respeito do que se passava nas regiões que se convencionou chamar o Alto. Há tempos chegamos mesmo a esboçar uma teoria sobre os mundos invisíveis, guardando-a ciosamente para nós e nos sentimos muito felizes porque a encontramos, quase que por inteiro, no livro do sr. Allan Kardec.

"A todos os deserdados da Terra; a todos quantos marcham e que, nas suas quedas, regam com as lágrimas o pó da estrada, diremos: Lede o Livro dos Espíritos. Ele vos tornará mais fortes. Também aos felizes, aos que pelo caminho só encontram as aclamações e os sorrisos da fortuna, diremos: Estudai-o e ele vos tornará melhores.

"O corpo da obra, diz o sr. Allan Kardec, deve ser atribuído inteiramente aos Espíritos que o ditaram. Está admiravelmente dividido no sistema de perguntas e respostas. Por vezes estas últimas são sublimes, o que não nos surpreende. Mas não foi necessário um grande mérito a quem soube provocá-las?

"Desafiamos os mais incrédulos a rir quando lerem esse livro em silêncio e na solidão. Todos honrarão aquele que lhe escreveu o prefácio.

"A doutrina se resume em duas palavras: Não façais aos outros o que não quereis que vos façam. Lamentamos que o Sr. Allan Kardec não tivesse acrescentado: e fazei aos outros como quereríeis que vos fizessem. Aliás, o livro o diz claramente, sem o que a doutrina não seria completa. Não basta não fazer o mal; é preciso ainda que se faça o bem. Se fores apenas homem de bem, só terás cumprido a metade do dever. Sois um átomo imperceptível desta grande máquina chamada mundo, na qual nada é inútil. Não nos digam que é possível ser útil sem fazer o bem. Seríamos forçados a escrever um livro para responder.

"Lendo as admiráveis respostas dos Espíritos na obra do sr. Kardec, dissemos a nós mesmo que havia um belo livro a escrever. Logo verificamos, entretanto, o nosso engano. O livro já está escrito. Procurando completá-lo, apenas o estragaríamos.

"O senhor é homem de estudo e tem aquela boa-fé que apenas necessita instruir-se? Então leia o livro primeiro, sobre a doutrina espírita.

"O senhor está na classe das criaturas que apenas se ocupam consigo mesmas e que, como se costuma dizer, fazem os seus negócios muito tranquilamente e nada enxergam além dos próprios interesses? Leia as Leis morais.

"A desgraça o persegue encarniçadamente e a dúvida o tortura por vezes no seu abraço gelado? Estude o terceiro livro: Esperanças e Consolações.

"Todos quantos aninham pensamentos nobres no coração e acreditam no bem, leiam o livro da primeira à última página.

"Aos que encontrassem ali matéria para zombarias, o nosso sincero lamento.

"G. Du Chalard."

Das numerosas cartas que nos têm sido dirigidas desde a publicação do Livro dos Espíritos, citaremos apenas duas, porque, de certo modo, resumem a impressão produzida pelo livro e o fim essencialmente moral dos princípios que o mesmo encerra: —

"Bordéus, 25 de abril de 1857.

"Senhor,

"V. S.ª submeteu minha paciência a uma grande prova, pelo retardamento da publicação do Livro dos Espíritos, há tanto tempo anunciado. Felizmente não perdi com a espera, porque ele ultrapassa toda ideia que eu havia feito, baseado no prospecto. Impossível descrever o efeito em mim produzido. Sinto-me como um homem que saiu da escuridão. Parece-me que uma porta, até hoje fechada, abriu-se subitamente e minhas ideias ampliaram-se em poucas horas! Oh! Quanto a humanidade e todas essas miseráveis preocupações me parecem mesquinhas e pueris ao lado desse futuro de que não duvidava, mas que me era de tal modo obscurecido pelos preconceitos, que eu apenas o imaginava! Graças ao ensino dos Espíritos, agora ele se me apresenta sob uma forma definida, perceptível, mas grande, bela, e em harmonia com a majestade do Criador.

"Quem quer que leia esse livro meditando, como eu, nele encontrará inesgotável tesouro de consolações, pois que ele abarca todas as fases da existência. Em minha vida sofri perdas que me afetaram vivamente; hoje não me causam nenhum desgosto e toda a minha preocupação é empregar utilmente o tempo e minhas faculdades para acelerar meu progresso, pois agora para mim o bem tem uma finalidade e compreendo que uma vida inútil é uma vida egoística, que não nos ajudará a avançar na vida futura.

"Se todos os homens que pensam como eu e como o senhor, e que são muitos, ao que espero, para honra da humanidade, pudessem entender-se, reunir-se e trabalhar de comum acordo, que poder não teriam para apressar essa regeneração que nos é anunciada!

"Quando eu for a Paris terei a honra de procurá-lo e, se não for abusar do seu tempo, pedir-lhe-ei mais explicações sobre certos trechos e alguns conselhos sobre a aplicação das leis morais em certas circunstâncias que me são pessoais.

"Receba, senhor, a expressão de todo o meu reconhecimento, porque o senhor me proporcionou um grande bem, mostrando-me o único caminho da felicidade real neste mundo e, quiçá, além disso, um lugar melhor no outro.

"Seu dedicado,
"D. . .
Capitão reformado"

"Lyon, 4 de julho de 1857.

"Senhor,

"Não sei como lhe exprimir o meu reconhecimento pela publicação do Livro dos Espíritos, que acabo de reler. Como tudo quanto o senhor nos ensina é consolador para a nossa pobre humanidade! Por mim confesso que me sinto mais forte e mais encorajado para suportar as penas e os aborrecimentos ligados à minha pobre existência.

"Faço muitos amigos meus partilharem das convicções adquiridas na leitura de sua obra: todos se sentem muito felizes; compreendem agora as desigualdades das posições sociais e não murmuram contra a Providência; a esperança fundamentada num futuro mais feliz, desde que bem se conduzam, os conforta e lhes dá coragem.

"Queria eu, senhor, ser-lhe útil. Sou um simples filho do povo, que se criou numa posição insignificante pelo trabalho, mas a quem falta instrução, pois fui obrigado a trabalhar desde menino. Entretanto, sempre amei a Deus e fiz tudo quanto era possível para ser útil aos meus semelhantes. Eis por que procuro tudo que possa aumentar a felicidade de meus irmãos. Vamos nos reunir, diversos adeptos esparsos, e faremos esforços para ajudá-lo. O senhor levantou a bandeira e nossa obrigação é segui-lo. Contamos com o seu apoio e os seus conselhos.

"Subscrevo-me, senhor, se me permite chamá-lo de confrade, seu dedicado
"C. . ."

Muitas vezes nos foram dirigidas perguntas sobre a maneira por que foram obtidas as comunicações que constituem o Livro dos Espíritos. Resumimos aqui, com muito prazer, as respostas que temos dado a tais perguntas. É uma oportunidade para resgatarmos uma dívida de gratidão para com as pessoas que tiveram a boa vontade de nos prestar o seu concurso.

Como explicamos, as comunicações por meio de batidas, outrora chamadas tiptologia, são muito lentas e muito incompletas para um trabalho de fôlego, por isso tal recurso jamais foi utilizado. Tudo foi obtido pela escrita, por intermédio de diversos médiuns psicógrafos. Nós mesmos preparamos as perguntas e coordenamos o conjunto da obra. As respostas são, textualmente, as que nos deram os Espíritos. A maior parte delas foi escrita sob nossas vistas, outras foram tiradas de comunicações que nos foram remetidas por correspondentes ou que colhemos aqui e ali, onde estivemos fazendo estudos. Parece que para isso os Espíritos multiplicam aos nossos olhos os motivos de observação.

Os primeiros médiuns que concorreram para o nosso trabalho foram as senhoritas B. . ., cuja boa vontade jamais nos faltou. O livro foi quase todo escrito por seu intermédio e em presença de numeroso público que assistia às sessões, nas quais tinha o mais vivo interesse. Mais tarde os Espíritos recomendaram uma revisão completa em sessões particulares, tendo-se feito, então, todas as adições e correções que eles julgaram necessárias. Esta parte essencial do trabalho foi feita com o concurso da senhorita Japhet*, a qual se prestou com a melhor boa vontade e o mais completo desinteresse a todas as exigências dos Espíritos, porque eram eles que marcavam dia e hora para suas lições. O desinteresse não seria aqui um mérito especial, desde que os Espíritos reprovam qualquer tráfico que se possa fazer da sua presença, mas a senhorita Japhet, que é também uma notável sonâmbula, tinha seu tempo utilmente empregado, e compreendeu que também lhe daria uma aplicação proveitosa ao se consagrar à propagação da doutrina.

Quanto a nós, já o declaramos desde o princípio, e temos a satisfação de reafirmá-lo agora: jamais pensamos em fazer do Livro dos Espíritos objeto de especulação. Seu produto será aplicado a coisas de utilidade geral. Por isso seremos sempre gratos aos que, de coração e por amor ao bem, se associaram à obra a que nos consagramos.

Allan Kardec.


* Rua Tiquetonne, 14.

** Paris. Tipografia de Cosson & Cia., Rua do Four-Saint-Germain, 43.




Fevereiro

Diferentes ordens de Espíritos.

Um ponto capital na doutrina espírita é o das diferenças existentes entre os Espíritos, quer do ponto de vista intelectual, quer moral. Sobre o assunto, o seu ensino jamais variou. Contudo, é essencial saber que eles não pertencem eternamente à mesma ordem e que, em consequência, essas ordens não constituem espécies distintas: são diferentes graus do desenvolvimento. Seguem os Espíritos a marcha progressiva da natureza. Os das ordens inferiores são ainda imperfeitos; depois de depurados, atingem as ordens superiores; avançam na hierarquia, à medida que adquirem qualidades, experiência e conhecimentos que lhes faltam. A criança de peito não se assemelha ao que será na idade madura, contudo, é sempre o mesmo ser.

A classificação dos Espíritos é baseada em seu grau de progresso, nas qualidades adquiridas e nas imperfeições de que devem despojar-se. Aliás, tal classificação nada tem de absoluto. Cada categoria só apresenta um caráter marcante no seu conjunto, mas de um a outro grau, a transição é insensível e, nos limites, a nuança se apaga, como nos reinos da natureza, nas cores do arco-íris ou como nos vários períodos da vida humana. Pode-se pois formar um maior ou menor número de classes, conforme o ponto de vista sob o qual se considerar o assunto. Dá-se o mesmo em todos os sistemas de classificação científica: podem ser mais ou menos completos, mais ou menos racionais, mais ou menos cômodos para a inteligência, mas, sejam o que forem, nada mudam com relação aos fundamentos da ciência.

Interrogados sobre este assunto, os Espíritos poderão ter variado quanto ao número de categorias, mas sem que isso tenha importância. Críticos aproveitaram essa aparente contradição, sem atentar em que eles não ligam maior importância ao que é puramente convencional. Para eles o pensamento é tudo. Deixam-nos a forma e a escolha das expressões, as classificações — numa palavra, os sistemas.

Acrescentemos ainda esta consideração: Não se deve nunca perder de vista que entre os Espíritos, como entre os homens, há os muito ignorantes, e que nunca estamos suficientemente prevenidos contra a tendência de pensar que todos devem saber tudo, pelo fato de serem Espíritos. Toda classificação exige método, análise e conhecimento aprofundado da matéria. Ora, no mundo dos Espíritos, os que têm conhecimentos limitados, como os ignorantes daqui, são incapazes de uma visão de conjunto e de formular um sistema, e aqueles que são capazes podem variar nos detalhes, conforme seu ponto de vista, especialmente quando uma divisão nada tem de absoluto. Lineu, Jussieu e Tournefort seguiram cada qual um método. Nem por isso a botânica mudou. É que eles não inventaram as plantas nem os seus caracteres. Eles observaram as analogias, segundo as quais formaram grupos ou classes.

Foi assim que também nós procedemos. Não inventamos os Espíritos nem seus caracteres. Vimos e observamos; julgamo-los por suas palavras e atos, depois os classificamos por suas similitudes. Eis o que qualquer um, em nosso caso, poderia ter feito.

Entretanto, não podemos reivindicar a autoria de todo o trabalho. Se o quadro que damos a seguir não foi traçado textualmente pelos Espíritos, e se é nossa a iniciativa, todos os elementos que o compõem foram hauridos em seus ensinamentos. O que nos restava era apenas formular uma disposição material.

Os Espíritos geralmente admitem três categorias principais ou grandes divisões. Na última, na base da escala, estão os Espíritos imperfeitos, que devem ainda percorrer todas ou quase todas as etapas; são caracterizados pela predominância da matéria sobre o Espírito e pela inclinação para o mal. Os da segunda são caracterizados pela predominância do Espírito sobre a matéria e pelo desejo do bem: são os Espíritos bons. A primeira, enfim, compreende os Espíritos puros, os que atingiram o grau supremo de perfeição.

Esta divisão nos parece perfeitamente racional e apresenta caracteres bem definidos. Só nos restava destacar, em número suficiente de divisões, as nuanças principais do conjunto. Foi o que fizemos com o concurso dos Espíritos, cujas benévolas instruções jamais nos faltaram.

Com auxílio deste quadro será fácil determinar a categoria e o grau de superioridade ou inferioridade dos Espíritos com os quais podemo-nos entreter e, em consequência, o grau de confiança e de estima que merecem. Além do mais, isto nos interessa pessoalmente, porque, como por nossa alma pertencemos ao mundo espírita no qual entraremos assim que deixarmos nosso envoltório mortal, ele nos mostra o que devemos fazer para chegarmos à perfeição e ao bem supremo.

Contudo, observaremos que os Espíritos não pertencem sempre e exclusivamente a esta ou àquela classe. Seu progresso só se realiza gradativamente e, muitas vezes, mais num sentido que no outro, podendo eles reunir caracteres de várias categorias, o que é fácil de observar por sua linguagem e por seus atos.



Escala Espírita.



Terceira ordem: Espíritos imperfeitos.

Características gerais. — Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as más paixões que lhes são consequentes.

Têm a intuição de Deus, mas não o compreendem.

Nem todos são essencialmente maus; uns têm mais leviandade, inconsequência e malícia que verdadeira maldade. Outros nem fazem o bem nem o mal, mas pelo simples fato de não fazerem o bem, revelam inferioridade. Outros, ao contrário, alegram-se no mal e ficam satisfeitos quando encontram ocasião de praticá-lo.

Podem aliar a inteligência à maldade ou à malícia, mas, seja qual for o seu desenvolvimento intelectual, suas ideias são pouco elevadas e seus sentimentos mais ou menos abjetos.

Seus conhecimentos sobre as coisas do mundo espírita são limitados e o pouco que sabem se confunde com ideias e preconceitos da vida corpórea. Só nos podem dar noções falsas e incompletas, mas o observador atento descobre muitas vezes em suas comunicações, mesmo que imperfeitas, a confirmação das grandes verdades ensinadas pelos Espíritos superiores.

Seu caráter é revelado pela linguagem. Todo Espírito que, nas comunicações, trai um mau pensamento, pode ser classificado na terceira ordem; por conseguinte, todo mau pensamento que nos é sugerido vem de um Espírito dessa ordem.

Eles veem a felicidade dos bons, e isto lhes é um tormento incessante, pois experimentam todas as angústias produzidas pela inveja e pelo ciúme.

Conservam a lembrança e a percepção dos sofrimentos da vida corpórea, e tal impressão é por vezes mais penosa do que a realidade. Sofrem, pois, realmente, pelos males a que foram submetidos e pelos que fizeram outros sofrerem. Como sofrem por muito tempo, julgam que sofrerão eternamente. Para castigá-los, quer Deus que pensem assim. Podem ser divididos em quatro grupos principais:

Nona classe. Espíritos impuros.

Inclinados ao mal, objeto de suas preocupações. Como Espíritos, dão conselhos pérfidos, insuflam a discórdia e a desconfiança e tomam todas as máscaras para melhor enganar. Ligam-se às pessoas de caráter suficientemente fraco para cederem às suas sugestões, a fim de levá-las à perdição, satisfeitos por poderem retardar o progresso, levando-as a sucumbir nas provas que enfrentam.

Nas manifestações se lhes reconhece a linguagem. A trivialidade, a grosseria das expressões, tanto nos Espíritos como nos homens, são sempre indício de inferioridade moral, senão intelectual. Suas comunicações revelam a baixeza de suas inclinações. Se procuram enganar, falando de uma maneira sensata, não conseguem por muito tempo representar o papel e acabam sempre revelando sua origem.

Certos povos fizeram-nos divindades malfazejas; outros designam-nos como demônios, gênios do mal ou Espíritos do mal.

Quando encarnados, os seres vivos que animam são inclinados a todos os vícios que geram as paixões vis e degradantes: a sensualidade, a crueldade, a trapaça, a hipocrisia, a cupidez e a sórdida avareza.

Fazem o mal por prazer, o mais das vezes sem motivo e, pelo ódio ao bem, quase sempre elegem suas vítimas entre gente de bem. São flagelos para a humanidade, seja qual for a classe a que pertençam, e o verniz da civilização não os isenta do opróbrio e da ignomínia.

Oitava classe. Espíritos levianos.

São ignorantes, malévolos, inconsequentes e zombeteiros. Metem-se em tudo, e a tudo respondem sem preocupação com a verdade. Gostam de causar pequenos aborrecimentos e pequenas alegrias; de produzir discórdias; de induzir maliciosamente ao erro por mistificações e por travessuras. A esta classe pertencem os Espíritos vulgarmente designados sob os nomes de duendes, diabretes, trasgos, gnomos. Eles estão sob a dependência de Espíritos superiores, que muitas vezes os empregam como nós o fazemos com os criados e os operários.

Eles parecem, mais do que os outros, ligados à matéria, e aparentam ser os principais agentes das vicissitudes dos elementos do globo, quer vivam no ar, na água, no fogo, nos corpos sólidos ou nas entranhas da Terra. Muitas vezes manifestam sua presença por efeitos sensíveis, tais como pancadas, movimento e deslocamento anormal dos corpos sólidos, agitação do ar, etc., o que lhes valeu o nome de Espíritos batedores. Reconhece-se que tais fenômenos não são devidos a uma causa fortuita e natural quando têm um caráter intencional e inteligente. Todos os Espíritos podem produzir esses fenômenos, mas os Espíritos elevados em geral deixam essas atribuições aos inferiores, mais aptos para as coisas materiais do que para as inteligentes.

Em suas comunicações com os homens, sua linguagem é por vezes espirituosa e alegre, mas quase sempre sem profundidade. Apreendem os caprichos e o ridículo, que exprimem em traços mordazes e satíricos. Se por vezes tomam nomes fictícios, é mais por malícia do que por maldade.

Sétima classe. Espíritos pseudossábios.

De conhecimentos bastante extensos, julgam saber mais do que realmente sabem. Tendo feito algum progresso sob vários pontos de vista, sua linguagem tem um caráter sério e pode levar a enganos quanto à sua capacidade e às suas luzes, mas muito comumente é simples reflexo dos preconceitos e das ideias sistemáticas da vida terrena. É a mistura de algumas verdades ao lado dos maiores absurdos, em cujo meio sobressaem a presunção, o orgulho, a inveja e a teimosia, de que não se despojaram.

Sexta classe. Espíritos neutros.

Nem são bastante bons para fazerem o bem, nem bastante maus para fazerem o mal. Inclinam-se para um ou para o outro e não se alçam acima do vulgar na humanidade, tanto para o moral quanto para a inteligência. Apegam-se às coisas do mundo, de cujas alegrias grosseiras têm saudades.




Segunda ordem: Bons espíritos.

Características gerais. — Predominância do Espírito sobre a matéria; desejo do bem. As qualidades e a capacidade de fazer o bem são proporcionais ao grau atingido: uns têm ciência; outros, sabedoria e bondade; os mais adiantados reúnem o saber às qualidades morais. Como não se acham completamente desmaterializados, conservam mais ou menos, conforme sua classe, os traços da existência corporal, tanto na forma da linguagem quanto nos hábitos, onde chegamos mesmo a descobrir certas manias, sem o que seriam Espíritos perfeitos.

Compreendem Deus e o infinito e já desfrutam da felicidade dos bons. Sentem-se felizes pelo bem que praticam e pelo mal que impedem. O amor que os une lhes é uma fonte de inefável felicidade, que não é alterada nem pela inveja, nem pelos pesares, nem pelos remorsos, nem por quaisquer outras das más paixões que atormentam os Espíritos imperfeitos, mas todos têm ainda que passar por provas, antes de atingirem a perfeição absoluta.

Como Espíritos, suscitam bons pensamentos; desviam os homens dos caminhos do mal; protegem em vida os que se tornam dignos dessa proteção e neutralizam a influência dos Espíritos imperfeitos sobre aqueles que não se comprazem em submeter-se a ela.

Quando encarnados, são bons e benevolentes para com os seus semelhantes. Não são movidos por orgulho ou egoísmo, nem pela ambição. Não experimentam ódio, rancor, inveja ou ciúme e fazem o bem pelo bem.

A esta ordem pertencem os Espíritos designados nas crenças vulgares como bons gênios, gênios protetores, Espíritos do bem. Nos tempos de superstição e de ignorância, foram transformados em divindades benfazejas.

Também podem ser divididos em quatro grupos principais:

Quinta classe. Espíritos benevolentes.

A bondade é sua qualidade predominante. Gostam de servir aos homens e de protegê-los, mas seu saber é limitado: seu progresso foi realizado mais no sentido moral que intelectual.

Quarta classe. Espíritos de ciência.

O que principalmente os distingue é a extensão dos conhecimentos. Preocupam-se menos com as questões morais do que com as científicas, para as quais têm maior aptidão, mas só encaram a ciência do ponto de vista da utilidade, nela não misturando nenhuma das paixões características dos Espíritos imperfeitos.

Terceira classe. Espíritos de sabedoria.

Seu caráter distintivo são as qualidades morais da mais elevada ordem. Seus conhecimentos não são ilimitados, mas são dotados de uma capacidade intelectual que lhes dá um juízo seguro sobre os homens e as coisas.

Segunda classe. Espíritos superiores.

Reúnem ciência, sabedoria e bondade. Sua linguagem constantemente digna e elevada só respira benevolência, e por vezes é sublime. Sua superioridade os torna, mais que os outros, aptos para nos darem as mais justas noções sobre as coisas do mundo incorpóreo, nos limites do conhecimento permitido ao homem. Comunicam-se de boa vontade com aqueles que de boa-fé procuram a verdade e cuja alma é bastante desprendida dos laços terrenos para compreendê-la, mas afastam-se dos que são animados pela curiosidade ou desviados da prática do bem pela influência da matéria.

Quando excepcionalmente reencarnam na Terra, é para cumprir uma missão de progresso. Oferecem-nos, então, o tipo da perfeição a que a humanidade pode aspirar neste mundo.




Primeira ordem: Espíritos puros.

Características gerais. ─ É nula a influência da matéria. Absoluta superioridade intelectual e moral em relação aos Espíritos de outras ordens.
Primeira classe. Espíritos puros.

Percorreram todos os graus da escala e se despojaram de todas as impurezas da matéria. Tendo atingido a suprema perfeição a que é susceptível a criatura, não têm que passar por provas nem por expiações. Não mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, têm a vida eterna que se realiza no seio de Deus.

Desfrutam de uma felicidade inalterável, pois já não se acham sujeitos às necessidades nem às vicissitudes da vida material, mas tal felicidade não é uma ociosidade monótona passada numa contemplação perpétua. Eles são os mensageiros e os ministros de Deus, cujas ordens executam para a manutenção da harmonia universal. Comandam todos os Espíritos que lhes são inferiores, ajudando-os a se aperfeiçoarem e designando-lhes missões. Assistir os homens em suas angústias, excitá-los ao bem ou à expiação das faltas que os afastam da suprema felicidade, são-lhes agradáveis ocupações. Por vezes são designados sob o nome de anjos, arcanjos ou serafins.

Os homens podem entrar em comunicação com eles, mas muito presunçoso seria aquele que pretendesse tê-los constantemente às suas ordens.



Quanto às suas qualidades íntimas, os Espíritos são de diferentes ordens, que percorrem sucessivamente à medida que se depuram. Como estado, podem estar encarnados, isto é, unidos a um corpo, num mundo qualquer, ou errantes, isto é, desligados de um corpo material e esperando nova encarnação para se melhorarem.

Os Espíritos errantes não formam uma categoria especial. Trata-se de um dos estados em que se podem encontrar.

O estado errante ou a erraticidade não significa inferioridade para os Espíritos, pois que nele podemos encontrá-los de todos os graus. Todo Espírito que não está encarnado é, por isso mesmo, errante, salvo os Espíritos puros, que, não devendo passar por outras encarnações, estão em estado definitivo.

Sendo a encarnação um estado transitório, a erraticidade é realmente o estado normal dos Espíritos, e esse estado não lhes é, forçosamente, uma expiação. Nesse estado são felizes ou desventurados, conforme seu grau de elevação e o bem ou o mal que hajam praticado.

Mademoiselle Clairon e o fantasma.

Esta história produziu celeuma em seu tempo, pela posição da heroína e pelo grande número de pessoas que a testemunharam. A despeito de sua singularidade, provavelmente teria sido esquecida se Mademoiselle Clairon não a tivesse consignado em suas Memórias, de onde extraímos o relato que se segue. A analogia que ela apresenta com alguns fatos que se passam em nossos dias dá-lhe um lugar natural nesta coletânea.

Como se sabe, Mademoiselle Clairon era tão notável por sua beleza como por seu talento como cantora e trágica. Ela havia inspirado a um jovem bretão, o Sr. de S. . ., uma dessas paixões que frequentemente decidem uma vida, quando não se tem suficiente força de caráter para triunfar. Mademoiselle Clairon a ela respondeu apenas com amizade. Entretanto, a assiduidade do Sr. de S. . . tornou-se de tal modo importuna que ela resolveu romper as relações em definitivo. A mágoa que ele sentiu produziu-lhe uma longa enfermidade, de que veio a morrer. Isto foi em 1743. Mas demos a palavra a Mademoiselle Clairon.

“Dois anos e meio haviam decorrido entre o dia em que nos conhecemos e a sua morte. Ele mandou pedir-me que concedesse aos seus últimos instantes a doçura de me ver. Minhas relações me impediram de fazê-lo. Morreu tendo ao seu redor apenas os criados e uma velha dama, única companhia que tinha desde muito tempo. Ele morava em Rempart, perto de Chaussée d’Antin, onde começavam a construir. Eu, na Rua de Bussy, perto da Rua do Sena e da abadia Saint-Germain. Eu estava com minha mãe, e vários amigos que foram jantar comigo. . . Acabara de cantar belas canções pastorais que haviam encantado os meus amigos quando, ao soarem as onze horas, ouvimos um grito agudíssimo. Sua modulação sombria e sua duração espantaram a todos; senti-me desfalecer e estive quase um quarto de hora desacordada. . .

“Todos da minha família, os amigos, os vizinhos, a própria polícia ouviam o mesmo grito, sempre à mesma hora, partindo sempre de sob as minhas janelas e como se viesse vagamente do ar. . . Raramente eu jantava na cidade, mas nesses dias nada se ouvia e, muitas vezes, quando perguntava a minha mãe e a meus domésticos se havia novidades, logo que me recolhia ao meu quarto, ele partia do meio de nós.

“Uma vez o presidente de B. . ., com quem eu havia jantado, quis acompanhar-me, para certificar-se de que nada aconteceria no caminho. Quando, à minha porta, me dava boa-noite, o grito partiu de entre ele e eu. Como toda Paris, ele sabia da história, entretanto foi levado para a carruagem mais morto do que vivo.

“Outra vez pedi ao meu camarada Rosely que me acompanhasse à Rua Saint-Honoré para escolher tecidos. O único assunto de nossa conversa foi o meu fantasma, como o chamavam. Esse jovem, muito talentoso, não acreditava em nada, mas tinha ficado impressionado com a minha aventura. Solicitava-me que evocasse o fantasma, prometendo-me acreditar se ele me respondesse. Fosse por fraqueza ou por audácia, fiz o que ele me pedia. O grito se ouviu três vezes, terrível por seu estrépito e pela rapidez. De volta, foi necessário o auxílio de todos para sermos tirados da carruagem, onde estávamos desacordados, tanto um como outro. Depois desta cena fiquei alguns meses sem nada ouvir. Julgava-me quite para sempre. Puro engano.

“Todos os espetáculos haviam sido transferidos para Versalhes, para o casamento do Delfim. Tinham-me arranjado um quarto na Avenida Saint-Cloud, que eu ocupava com a Sra. Grandval. Às três da manhã eu lhe disse: Estamos no fim do mundo; seria muito difícil que o grito nos viesse procurar aqui. . . Estalou! A Sra. Grandval pensou que o inferno inteiro estava no quarto. Correu, de camisola, de alto a baixo da casa, onde ninguém pôde pregar olhos durante a noite. Pelo menos foi a última vez que ouvimos.

“Sete ou oito dias depois, quando conversava com pessoas de minhas relações habituais, o toque das onze horas foi seguido de um tiro de fuzil, dado numa de minhas janelas. Todos nós ouvimos o tiro e vimos o fogo, mas a janela não sofreu nenhum dano. Concluímos todos que visavam a minha vida; que haviam errado o alvo e que era preciso, para o futuro, tomar precauções. O Sr. de Marville, então alferes de polícia, mandou vasculhar as casas localizadas em frente à minha. A rua ficou cheia de toda sorte de espias possíveis, mas, por mais cuidados que se tomassem, durante três meses a fio aquele tiro foi visto e ouvido, sempre à mesma hora, no mesmo caixilho, sem que, entretanto, jamais alguém tivesse podido ver de onde partia. O fato foi consignado nos registros policiais.

“Acostumada ao meu fantasma, que eu considerava um pobre diabo que se limitava a fazer estripulias, não me apercebi da hora. Como fazia calor, abri a janela malsinada e, com o intendente, nos debruçamos no balcão. Batem as onze horas, ouve-se o tiro e ambos somos atirados ao meio da sala, onde caímos como mortos. Tornando a nós mesmos e sentindo que tudo havia passado, examinando-nos para constatar que ambos havíamos recebido — ele na face esquerda e eu na face direita — a mais terrível bofetada que jamais poderia ser aplicada, nos pusemos a rir como dois loucos.

“Dois dias depois, convidada por Mademoiselle Dumesnil para uma festa à noite em sua casa, na Porta Branca, tomei uma carruagem às onze horas com minha camareira. Havia um belo luar e nós fomos conduzidas por bulevares que começavam a ser guarnecidos de casas. Perguntou-me a camareira:

“— Não foi aqui que morreu o Sr. de S. . .?

“— Segundo as informações que me deram, respondi-lhe eu, deve ter sido aqui — e apontei uma das duas casas à nossa frente.

“De uma delas partiu o mesmo tiro que me perseguia. Atravessou nossa carruagem, e o cocheiro disparou a viatura, crente de que era assaltado por ladrões.

“Chegamos ao destino tendo apenas nos refeito, pois devo confessar que de minha parte, durante muito tempo conservei uma impressão de terror. Mas esta façanha foi a última com arma de fogo.

“À explosão sucedeu um bater de palmas, com certo compasso e repetição. Esse ruído, ao qual a bondade do público me havia acostumado, passou-me despercebido durante algum tempo, mas os meus amigos o notaram. Disseram-me: ‘Nós temos espreitado. É às onze horas, quase à vossa porta, que a coisa se dá. Ouvimos mas não vemos ninguém. Não pode deixar de ser a continuação daquilo que a senhora tem experimentado.’ Como o ruído nada tinha de terrível, não lhe guardei o tempo de duração. Também não prestei atenção aos sons melodiosos que depois se ouviram. Parecia uma voz celeste dando o mote de uma ária nobre e tocante, prestes a ser cantada. Essa voz começava no quarteirão de Bussy e acabava em minha porta. Como acontecera antes com todos os outros sons, ouvia-se, mas nada se via. Por fim, tudo cessou em pouco mais de dois anos e meio.”

Algum tempo depois, Mademoiselle Clairon teve, por intermédio da senhora idosa que havia ficado como única amiga dedicada do Sr. de S. . . o seguinte relato de seus últimos instantes.

“Ele contava os minutos, disse-lhe ela, quando, às dez e meia, o lacaio veio dizer-lhe que, decididamente, a senhora não viria. Depois de um momento de silêncio tomou-me a mão num impulso desesperado, que me apavorou, e disse: Que cruel! ... ela nada ganhará com isto. Eu a perseguirei, tanto depois de morto quanto a persegui em vida! . . . Procurei acalmá-lo, mas estava morto”.

Na edição que temos em mãos, esta história é precedida da seguinte nota, sem assinatura:

“Eis uma anedota singularíssima, que provocou e provocará sem dúvida as mais diversas opiniões. A gente ama o maravilhoso, mesmo quando não acredita nele. Mademoiselle Clairon parece convencida da realidade dos fatos que descreve. Contentar-nos-emos em fazer notar que ao tempo em que foi ou se supôs atormentada por seu fantasma, ela tinha de vinte e dois anos e meio a vinte e cinco anos, que é a idade da inspiração e que esta faculdade nela era continuamente exercitada e exaltada pelo gênero de vida que levava, no teatro e fora dele. É preciso ainda lembrar que ela disse, no começo de suas memórias, que na infância foi entretida apenas com aventuras de aparições e de feiticeiros, que lhe diziam tratar-se de histórias verídicas.”

Só conhecemos o fato através do relato de Mademoiselle Clairon. Assim, só podemos julgar por indução. Ora, nosso raciocínio é o seguinte: Descrito pela mesma Mademoiselle Clairon nos seus mais minuciosos detalhes, o fato tem mais autenticidade do que se fora relatado por terceiros. Acrescente-se que quando escreveu a carta onde o fato vem descrito, contava cerca de sessenta anos e, pois, havia passado da idade da credulidade, de que fala o autor da nota. Esse autor não põe em dúvida a boa-fé de Mademoiselle Clairon quanto à sua aventura: apenas admite tenha ela sido vítima de uma ilusão. Que o tivesse sido uma vez, nada tem de extraordinário, mas que o tivesse sido durante dois anos e meio já se nos afigura mais difícil. Mais difícil ainda é supor que tal ilusão tenha sido partilhada por tantas pessoas, testemunhas auriculares e oculares dos fatos, inclusive pela própria polícia.

Para nós, que conhecemos o que se pode passar nas manifestações espíritas, a aventura nada contém de surpreendente e a aceitamos como provável. Nesta hipótese não vacilamos em admitir que o autor de todos esses malefícios não seja outro senão a alma ou Espírito do Sr. de S. . ., principalmente se atentarmos para a coincidência de suas últimas palavras com a duração dos fenômenos. Havia ele dito: “Eu a perseguirei, tanto depois de morto quanto a persegui em vida.” Ora, suas relações com Mademoiselle Clairon haviam durado dois anos e meio, ou seja, tanto tempo quanto as manifestações produzidas depois de sua morte.

Ainda algumas palavras sobre a natureza desse Espírito. Ele não era mau, e é com razão que Mademoiselle Clairon o classifica como um pobre diabo, mas também não se pode dizer que fosse a própria bondade. A paixão violenta sob a qual sucumbiu como homem, prova que nele predominavam as ideias terrenas. Os traços profundos dessa paixão, que sobreviveu à destruição do corpo, provam que, como Espírito, ainda se achava sob a influência da matéria. Sua vingança, por mais inofensiva que fosse, denota sentimentos pouco elevados. Se, pois, nos reportarmos ao nosso quadro da classificação dos Espíritos, não será difícil determinar-lhe a classe: a ausência de maldade real o afasta naturalmente da última classe, a dos Espíritos impuros, mas evidentemente tinha muito das outras classes da mesma ordem, pois nada nele poderia justificar uma posição superior.

Digna de nota é a sucessão das várias maneiras pelas quais manifestou sua presença. No mesmo dia e no momento exato de sua morte, fez-se ouvir pela primeira vez e em meio a um jantar alegre. Quando vivo, via Mademoiselle Clairon em pensamento, cercada por essa auréola com que a imaginação envolve o objeto de uma paixão ardente. Desde, porém, que a alma se desembaraçou de seu véu material, a ilusão cedeu à realidade. Lá está ele, ao seu lado, vendo-a cercada de amigos, tudo lhe excitando os ciúmes. Seu canto e sua alegria parecem um insulto ao seu desespero e este se traduz por um grito de raiva, repetido diariamente, à mesma hora, como se para censurá-la por se haver recusado a levar-lhe consolo em seus últimos instantes. Aos gritos se sucedem os tiros, inofensivos, é certo, mas que nem por isso denotam menos uma raiva impotente e o propósito de lhe perturbar o repouso. Mais tarde seu desespero toma um caráter mais sereno; evoluindo sem dúvida para ideias mais sãs, parece haver tomado um partido: resta-lhe a lembrança dos aplausos de que ela foi objeto, e ele os repete. Mais tarde, enfim, diz-lhe adeus, fazendo-a ouvir sons que se diriam o eco dessa voz melodiosa que em vida tanto o encantara.

Isolamento dos corpos pesados.

O movimento impresso aos corpos inertes pela vontade é hoje de tal modo conhecido que seria quase pueril relatar fatos do gênero. Já o mesmo não acontece quando o movimento é acompanhado por fenômenos menos vulgares como, por exemplo, o de sua suspensão no espaço. Embora os anais do Espiritismo citem numerosos exemplos, esse fenômeno apresenta uma tal derrogação das leis da gravidade, que é naturalíssima a dúvida dos que o testemunham. Nós mesmo, nós o confessamos, por mais habituado que estejamos às coisas extraordinárias, ficamos muito contente de poder constatar-lhe a realidade.

O fato que vamos relatar repetiu-se várias vezes aos nossos olhos, em reuniões verificadas outrora em casa do Sr. B. . ., na Rua Lamartine, e sabemos que se produziu inúmeras vezes noutros lugares. Podemos, portanto, atestá-lo como incontestável. Eis como as coisas se passavam:

Oito ou dez pessoas, entre as quais algumas dotadas de um poder especial, embora não fossem reconhecidas como médiuns, sentavam-se em torno de uma mesa de jantar, maciça e pesada, com as mãos às suas bordas e todos unidos pela intenção e pela vontade. Depois de um tempo mais ou menos longo, de dez a quinze minutos, conforme as disposições do ambiente fossem mais o menos favoráveis, a despeito de seu peso de cem quilos, a mesa se punha em movimento; deslizava para a direita ou para a esquerda no soalho; dirigia-se para as diversas partes da sala que fossem indicadas; depois se erguia, ora num pé, ora noutro, até formar um ângulo de 45.º e balançava-se rapidamente, imitando a arfagem e o balanceio de um navio. Se em tal posição a assistência redobrasse os esforços da vontade, a mesa se levantava completamente do solo, elevava-se de dez a vinte centímetros, sustentando-se no espaço sem nenhum apoio, durante alguns segundos, depois caía com todo seu peso.

O movimento da mesa, o levantamento sobre um pé e o balanço eram produzidos mais ou menos à vontade. Ocorria com frequência e várias vezes na sessão, mesmo sem nenhum contato das mãos. A vontade bastava para que a mesa se dirigisse para o lado indicado.

O isolamento completo era mais difícil de obter, mas foi repetido muitas vezes para que se não pudesse considerá-lo como um fato excepcional. Isto não se passava na presença exclusiva de adeptos que pudessem ser inquinados de muito acessíveis à ilusão, mas à frente de vinte ou trinta pessoas, entre as quais, por vezes, algumas muito pouco simpáticas e que não deixavam de levantar a suspeita de uma secreta preparação, sem consideração para com os donos da casa, cujo caráter honesto deveria afastar qualquer suspeita de fraude e para os quais seria aliás um prazer muito singular passar algumas horas por semana a mistificar uma assembleia sem o menor proveito.

Relatamos o fato em toda a sua simplicidade, sem restrição nem exagero. Assim, não diremos que vimos a mesa volitar no espaço como uma pena, no entanto, tal como se apresenta, o fato não demonstra menos a possibilidade de isolamento dos corpos pesados sem ponto de apoio, por meio de uma força ainda desconhecida. Também não diremos que era bastante estender a mão ou fazer um sinal qualquer para que, no mesmo instante, a mesa se movesse e se elevasse como que por encanto.

Ao contrário, diremos, para sermos fiéis à verdade, que os primeiros movimentos sempre se operavam com certa lentidão, e que só gradativamente adquiriam o máximo de intensidade. O soerguimento completo só se verificava depois de alguns movimentos preparatórios, que eram como que ensaios para uma espécie de arremesso. A força atuante parecia redobrar de esforços pelo encorajamento dos assistentes, como um homem ou um cavalo que cumpre uma tarefa pesada e que é excitado por gestos e palavras. Uma vez produzido o efeito, tudo voltava à calma, e por alguns instantes nada era obtido, como se aquela mesma força tivesse necessidade de tomar fôlego.

Teremos muitas ocasiões de citar fenômenos desse gênero, quer espontâneos, quer provocados, e realizados em proporções e circunstâncias muito mais extraordinárias. Mas quando tivermos sido testemunha, relatá-los-emos sempre de modo a evitar qualquer interpretação falsa ou exagerada. Se no caso acima nos tivéssemos contentado em dizer que havíamos visto uma mesa de cem quilos elevar-se ao simples contato das mãos, não há dúvida de que muita gente haveria de pensar que a mesa tinha subido até o forro e com a rapidez de um olhar. É assim que as coisas mais simples se tornam prodígios, pelas proporções emprestadas pela imaginação. Que não será quando os fatos atravessarem os séculos e passarem pela boca dos poetas! Se disséssemos que a superstição é filha da realidade, o conceito seria tomado como um paradoxo. Contudo, nada mais verdadeiro: não há superstição que não repouse sobre um fundo real. Tudo está em discernir onde uma começa e o outro acaba. O verdadeiro meio de combater as superstições não é contestá-las de maneira absoluta. No espírito de certa gente há ideias que se não desenraizam facilmente, porque sempre há fatos que podem citar em apoio de sua opinião. Ao contrário, é preciso mostrar o que há de real. Então restará apenas o exagero ridículo, ao qual o bom senso fará justiça.

A floresta de Dodona e a estátua de Memnon.

Para chegar à floresta de Dodona passamos pela Rua Lamartine e paramos um instante em casa da Sra. B. . ., onde vimos um móvel dócil propor-nos um novo problema de estática.

Os assistentes, em qualquer número, colocavam-se em volta da mesa em questão, numa ordem também qualquer, pois ali nem há números nem lugares cabalísticos; as mãos apoiam-se à borda da mesa; mentalmente, ou em voz alta, fazem apelo aos Espíritos que costumam vir a seu convite. É conhecida nossa opinião a respeito desse gênero de Espíritos, razão por que os tratamos um tanto sem cerimônia. Quatro ou cinco minutos apenas são decorridos e um ruído claro de toc, toc se faz ouvir na mesa, por vezes bastante forte a ponto de ser ouvido na sala vizinha; repete-se tanto tempo e tantas vezes quanto se queira. A vibração é sentida nos dedos, e aplicando-se o ouvido à mesa — o que não se deve esquecer — reconhece-se que o ruído, sem engano possível, se origina na substância mesma da madeira, pois toda a mesa vibra, dos pés ao tampo.

Qual a causa desse ruído? É a madeira que estala ou, como se costuma dizer, um Espírito? Afastemos, inicialmente, qualquer ideia de fraude, pois encontramonos em casa de gente séria e de boa companhia, incapaz de se divertir à custa daqueles que recebem de boa vontade. Aliás, essa casa não é privilegiada. Os mesmos fatos se reproduzem em muitas outras, igualmente honestas. Permitam-nos, entretanto, antes da resposta, uma pequena digressão.

Um jovem bacharelando estava em seu quarto, estudando pontos do exame de Retórica, quando bateram à porta. Penso que todos admitem ser possível distinguir a natureza do ruído, e sobretudo na sua repetição, se é causado por um estalo da madeira, pela agitação do vento ou por qualquer outra causa fortuita, ou se é alguém que bate, querendo entrar. Neste último caso o ruído tem um caráter intencional, que não pode ser confundido. É o que pensa o nosso estudante. Entretanto, para não se incomodar inutilmente, quis certificar-se, pondo à prova o visitante. Se for alguém, diz ele, bata uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes; bata no alto, em baixo, à direita ou à esquerda; bata o compasso musical; bata a chamada militar, etc., e a cada um desses pedidos, o ruído obedece com a mais perfeita exatidão. Com certeza, pensa ele, não pode ser o estalo da madeira, nem o vento, nem mesmo um gato, por mais inteligente que seja. Eis um fato. Vejamos a que consequências seremos conduzidos pelos argumentos silogísticos.

Assim, ele fez o seguinte raciocínio: Ouço um barulho, logo, é alguma coisa que o produz. Esse barulho obedece às minhas ordens, portanto, a causa que o produz me compreende. Ora, o que compreende tem inteligência, portanto a causa desse barulho é inteligente. Se é inteligente, não é a madeira nem o vento; se, pois, não é a madeira nem o vento, é alguém. Então foi abrir a porta. Vejamos que não é preciso ser doutor para chegar a esta conclusão e julgamos nosso futuro bacharel suficientemente aferrado aos seus princípios para concluir do seguinte modo:

Suponhamos que ao abrir a porta ele não encontre ninguém, e que o barulho continue exatamente como antes. Ele seguira o seu sorites[1]: “Acabo de provar a mim mesmo, sem contestação, que o barulho é produzido por um ser inteligente, uma vez que responde ao meu pensamento. Ouço sempre esse barulho à minha frente e é certo que não sou eu quem bate, portanto, é um outro. Ora, se esse outro eu não vejo, claro que ele é invisível. Os seres corporais que pertencem à humanidade são perfeitamente visíveis. Este que bate, sendo invisível, não é um ser humano corpóreo. Ora, desde que chamamos Espíritos aos seres incorpóreos, aquele que bate, não sendo corpóreo, é pois um Espírito”.

Julgamos perfeitamente lógicas as conclusões do nosso estudante. Apenas, aquilo que nós demos como suposição é uma realidade, no tocante às experiências que se faziam em casa da Sra. B. . . Diremos mais, que era desnecessária a imposição das mãos, e que todos os fenômenos se produzem igualmente bem, com a mesa livre de qualquer contato. Assim, conforme o desejo expresso, as batidas eram dadas na mesa, na parede, na porta e em outros lugares designados verbal ou mentalmente. Eles indicavam a hora e o número de pessoas presentes; batiam o avanço e a chamada militares, assim como o compasso de uma música conhecida; imitavam o trabalho do toneleiro, o ruído da serra, o eco, as descargas de patrulhas ou de pelotões, e outros efeitos que seria longo descrever. Contaram-nos que em certos círculos ouvia-se a imitação do sibilar do vento, o ciciar das folhas, o estrondo do trovão, o marulho das vagas, o que nada tem de surpreendente. A inteligência da causa tornava-se patente quando, por meio desses golpes, eram obtidas respostas categóricas a certas perguntas. Ora, é a esta causa inteligente que chamamos ou, melhor dizendo, que ela mesma se chamou Espírito. Quando esse Espírito queria dar uma comunicação mais desenvolvida, indicava, por um sinal particular, que queria escrever; então o médium escrevente tomava o lápis e transmitia seu pensamento por escrito.

Entre os assistentes, não falando dos que estavam em volta da mesa, mas de todas as pessoas que enchiam o salão, havia incrédulos autênticos, meio crentes e crentes fervorosos que, como se sabe, constituem uma mistura pouco favorável. Os primeiros, nós os deixamos à vontade, esperando que a luz se faça para eles. Respeitamos todas as crenças, mesmo a incredulidade, que constitui uma espécie de crença, quando essa se respeita suficientemente para não chocar as opiniões contrárias. Assim, pois, não diremos que suas observações sejam destituídas de utilidade. Seu raciocínio, muito menos prolixo que o do nosso estudante, geralmente pode ser assim resumido: Eu não creio em Espíritos, portanto, não podem ser Espíritos, e como não são Espíritos, é um truque. Tal suposição os leva a admitir que a mesa teria um maquinismo, à maneira de Robert Houdin. Nossa resposta a isso é muito simples: primeiro, seria preciso que todas as mesas e todos os móveis tivessem maquinismos, uma vez que não os há privilegiados; segundo, não se conhece qualquer mecanismo suficientemente engenhoso para produzir à vontade todos os efeitos que acabamos de descrever; em terceiro lugar, seria necessário que a Sra. B. . . tivesse preparado propositalmente paredes e portas de seu apartamento, o que é pouco provável; em quarto lugar, enfim, teria sido necessário preparar ainda as mesas, as portas, as paredes de todas as casas onde semelhantes fenômenos se produzem diariamente, o que também não é de presumir-se, porque então seria conhecido o hábil construtor de tantas maravilhas.

Os meio crentes admitem todos os fenômenos, mas estão indecisos quanto à sua causa. Nós os mandamos de volta aos argumentos do nosso futuro bacharel.

Os crentes apresentam três nuanças bem características.

Há os que nas experiências não veem mais que um divertimento e um passatempo, e cuja admiração se traduz por estas e outras expressões: É admirável! É singular! É engraçado! Mas não vão além disso. A seguir vêm os sérios, instruídos, observadores, a quem nenhum detalhe escapa e para os quais as menores coisas constituem material para estudo. Vêm por fim os ultra-crentes, se assim os podemos chamar ou, melhor dito, os de crença cega, que podem ser censurados por seu excesso de credulidade; desde que sua fé não é suficientemente esclarecida, têm uma tal confiança nos Espíritos, que lhes admitem um completo conhecimento e sobretudo a presciência. Assim, é de boa-fé que fazem perguntas sobre todos os assuntos, sem pensar que teriam tido as mesmas respostas do primeiro cartomante a quem pagassem. Para esses, a mesa falante não é objeto de estudo e de observação; é um oráculo. Contra isso há apenas a forma trivial e os seus usos vulgares. Mas se a madeira de que ela é feita, em vez de ser trabalhada para as necessidades domésticas, estivesse de pé, teríamos uma árvore falante; se nela fosse esculpida uma estátua, teríamos um ídolo, ante o qual viriam prostrar-se as pessoas crédulas.

Agora transponhamos os mares e vinte e cinco séculos, transportando-nos ao pé do monte Taurus, no Épiro. Ali encontraremos a floresta sagrada, cujos carvalhos proferiam oráculos. Acrescentemos o prestígio do culto e a pompa das cerimônias religiosas e facilmente teremos a explicação da veneração de um povo ignorante e crédulo, incapaz de ver a realidade através de tantos meios de fascinação.

A madeira não é a única substância que pode servir de veículo à manifestação dos Espíritos batedores. Vimo-la produzir-se em muros e, por conseguinte, na pedra. Temos assim, pois, as pedras falantes. Se essas pedras representam um personagem sagrado, temos a estátua de Memnon ou a de Júpiter Amon proferindo oráculos como as árvores de Dodona.

É verdade que a História não nos diz que esses oráculos eram proferidos por pancadas, como em nossos dias. Na floresta de Dodona era pelo sibilar do vento através das árvores, pelo ciciar das folhas ou pelo murmúrio da fonte que brotava ao pé do sagrado carvalho de Júpiter. Diz-se que a estátua de Memnon emitia sons melodiosos aos primeiros raios do sol. Mas também nos diz a História, como teremos oportunidade de demonstrar, que os antigos conheciam perfeitamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos batedores. Ninguém duvide que nisso esteja o princípio de sua crença na existência de seres animados nas árvores, nas pedras, nas águas, etc. Mas, desde que tal gênero de manifestação foi explorado, as batidas já não bastavam; eram muito numerosos os visitantes, para que a cada um se oferecesse uma sessão particular; aliás, teria sido muito simples: era necessário o prestígio e, desde que enriqueciam o templo com suas oferendas, essas despesas deviam ser cobertas. O essencial era que o objeto fosse olhado como sagrado e habitado por uma divindade. Nestas condições, era possível fazê-lo dizer aquilo que se quisesse, sem necessidade de tantas precauções.

Os sacerdotes de Memnon, ao que se diz, empregavam fraudes: a estátua era oca e os sons que emitia eram produzidos por processos acústicos. Isto é possível e mesmo provável. Os próprios Espíritos batedores, que em geral são menos escrupulosos que os outros, não estão sempre, como já o dissemos, à disposição do primeiro que chega. Eles têm sua vontade, suas ocupações, suas susceptibilidades e nem uns nem outros gostam de ser explorados pela cupidez. Que descrédito para os sacerdotes se o seu ídolo não falasse convenientemente! Também era necessário suprir o seu silêncio e, se fosse necessário, dar uma ajuda. Aliás era muito mais cômodo não ter tantas apoquentações, bastando formular a resposta conforme as circunstâncias. O que vemos hoje prova que, apesar de tudo isto, as crenças antigas tinham por princípio o conhecimento das manifestações espíritas, razão por que dissemos que o Espiritismo moderno é o despertar da antiguidade, mas da antiguidade esclarecida pelas luzes da civilização e da realidade.

A avareza.

Dissertação moral ditada por são Luis à Senhora Ermance Dufaux a 6 de janeiro de 1858.

I


Tu que possuis, escuta-me. Um dia dois filhos do mesmo pai receberam cada um seu alqueire de trigo. O mais velho fechou o seu num lugar retirado. O outro encontrou no caminho um pobre que pedia esmolas, correu para ele a despejar em seu manto a metade do trigo que recebera. Depois, seguiu seu caminho e foi semear o resto no campo paterno.

Por esse tempo veio uma grande fome e as aves do céu morriam à beira dos caminhos. O irmão mais velho correu ao seu esconderijo, mas ali só encontrou poeira. O caçula ia tristemente contemplar seu trigo seco no pé, quando deparou com o pobre que havia ajudado. ─ Irmão, disse-lhe o mendigo, eu estava morrendo e tu me socorreste; agora que a esperança secou em teu coração, segue-me. Teu meio alqueire rendeu cinco vezes em minhas mãos. Matarei a tua fome e viverás em abundância.

II

Escuta-me, avarento! Conheces a felicidade? Sim, não é? Teus olhos brilham com reflexos sombrios nas órbitas que a avareza tornou mais profundas; teus lábios se cerram; tuas narinas se dilatam e teus ouvidos ficam atentos. Sim, eu escuto: é o tinir do ouro que tua mão acaricia, ao se derramar no teu escaninho. Tu dizes: que suprema volúpia! Silêncio, vem gente! Fecha depressa! Oh! Como estás pálido! Teu corpo todo estremece. Domina-te! Os passos se afastam. Abre! Olha ainda o teu ouro. Abre! Não tremas. Estás perfeitamente só. Ouves? Não é nada. É o vento que geme nas frestas. Olha! Quanto ouro! Mergulha as mãos; faze soar o metal. Tu és feliz.

Feliz, tu! Mas a noite não te dá repouso, e teu sono é povoado de fantasmas.

Tens frio! Aproxima-te da lareira. Aquece-te a esse fogo que crepita tão alegremente. Cai neve; o viajante friorento envolve-se em seu manto; o pobre tirita sob os andrajos. A chama da lareira diminui; atira mais lenha. Não; para! É o teu ouro que consomes com essa madeira; é o teu ouro que queimas!

Tens fome! Olha, toma, sacia-te. Tudo isto é teu. Pagaste com o teu ouro. Com o teu ouro! Esta abundância te revolta; este supérfluo será necessário para manter-se a vida? Não, este pedaço de pão será bastante; ainda é muito. Tuas roupas caem em frangalhos; tua casa se fende e ameaça ruína; sofrerás frio e fome; mas que importa! Tens ouro!

Infeliz! A morte vai separar-te deste ouro. Deixá-lo-ás à borda de teu túmulo, como a poeira que o viajante sacode à soleira da porta, onde a família querida o espera para festejar o regresso.

Teu sangue enfraquecido, envelhecido por tua voluntária miséria, gelou-se em tuas veias. Os herdeiros ávidos atiram teu corpo a um recanto de cemitério; eis-te face a face com a eternidade. Miserável! Que fizeste desse ouro que te foi confiado para aliviar o pobre? Ouves estas blasfêmias? Vês estas lágrimas? Vês este sangue? São as blasfêmias dos sofrimentos que terias podido acalmar; são as lágrimas que fizeste correr; é o sangue que derramaste. Tens horror a ti mesmo; desejarias fugir e não podes. Sofres, desesperado! Tu te contorces no teu sofrimento. Sofre! Não haverá piedade para contigo! Não tiveste entranhas para o teu irmão infeliz. Quem teria para ti? Sofre! Sofre sempre! Teu suplício não terá fim. Para te punir, Deus quer que assim o creias.

OBSERVAÇÃO: Ouvindo o fim destas eloquentes e poéticas palavras, estávamos surpreendidos por ouvir São Luís falar da eternidade dos sofrimentos, quando todos os Espíritos superiores são concordes em combater tal crença, quando as últimas palavras: para te punir, Deus quer que assim o CREIAS, tudo explicaram. Nós as reproduzimos nos caracteres gerais dos Espíritos da terceira ordem. Com efeito, quanto mais imperfeitos os Espíritos, mais restritas e circunscritas as suas ideias. Para eles o futuro é vago, e não o compreendem. Eles sofrem; seus sofrimentos são longos, e para quem sofre há muito tempo, isto é sofrer sempre. Este pensamento, por si só, é um castigo.

Num próximo artigo citaremos fatos de manifestações que poderão esclarecer-nos quanto à natureza dos sofrimentos de além-túmulo.

SENHORITA CLARY D. . .

Evocação.

Nota: A Senhorita Clary D. . . interessante menina, falecida em 1850, aos 13 anos de idade, desde então ficou como o gênio da família, onde é evocada com frequência e onde dá um grande número de comunicações do mais alto interesse. A conversa que damos a seguir ocorreu entre nós a 12 de janeiro de 1857, por intermédio de seu irmão, que é médium.

— Você tem lembrança precisa de sua existência corporal?

— O Espírito vê o presente, o passado e um pouco do futuro, conforme sua perfeição e sua proximidade de Deus.

— Esta condição de perfeição é relativa apenas ao futuro, ou se refere igualmente ao presente e ao passado?

— O Espírito vê o futuro mais claramente à medida que se aproxima de Deus. Depois da morte, a alma vê e abarca de um relance todas as passadas migrações, mas não pode ver aquilo que Deus lhe prepara. Para isto é preciso que esteja inteiramente em Deus, há muitas existências.

— Sabe em que época será sua reencarnação?

— Em 10 ou em 100 anos.

— Na Terra ou em outro mundo?

— Num outro.

— O mundo para onde irá, comparado com a Terra, terá condições melhores, iguais ou inferiores?

— Muito melhores que as da Terra. Lá se é feliz.

— Visto que você se encontra aqui entre nós, está em um lugar determinado? Em que lugar?

— Estou em aparência etérea. Posso dizer que meu Espírito propriamente dito estende-se muito mais longe. Vejo muitas coisas e me transporto muito longe daqui com a velocidade do pensamento. Minha aparência está à direita de meu irmão e guia-lhe o braço.

— Esse corpo etéreo de que se reveste permite-lhe experimentar sensações físicas, como, por exemplo, de calor e de frio?

— Quando me lembro muito de meu corpo sinto uma espécie de impressão, como quando se tira um manto e se fica com a sensação de que, por algum tempo, ainda se está com ele.

— Você disse que pode transportar-se com a velocidade do pensamento. O pensamento não é a própria alma que se desprende de seu envoltório?

— Sim.

— Quando seu pensamento se dirige a alguma parte, como se dá a separação de sua alma?

— A aparência se desvanece. O pensamento vai só.

— É, pois, uma faculdade que se destaca; o ser fica onde está?

— A forma não é o ser.

— Mas como age esse pensamento? Não age sempre por meio da matéria?

— Não.

— Quando sua faculdade de pensar se destaca, você não age, então, por meio da matéria?

— A sombra se desvanece e reproduz-se onde o pensamento a guia.

— Considerando-se que você tinha apenas 13 anos quando seu corpo morreu, como é que, sobre perguntas tão abstratas, pode nos dar respostas que estão fora do alcance de uma criança de sua idade?

— Minha alma é muito antiga!

— Entre suas existências anteriores pode citar-nos uma na qual tivesse elevado ao máximo os seus conhecimentos?

─ Estive no corpo de um homem que tornei virtuoso. Depois de sua morte, estive no corpo de uma menina cujo rosto estampava a própria alma. Deus me recompensa.

─ Poderia ser-nos permitido vê-lo aqui tal qual é atualmente?

— Poderia.

— Como seria possível? Depende de nós, de você ou das pessoas mais íntimas?

— De vocês.

— Que condições deveríamos satisfazer para consegui-lo?

─ Vocês se recolherem por algum tempo, com fé e fervor; estarem em menor número; isolarem-se um pouco e arranjarem um médium do gênero de Home.

O sr. Home.

Os fenômenos operados pelo Sr. Home produziram tanto maior sensação quanto é certo que vêm confirmar os maravilhosos relatos de além-mar, a cuja veracidade se liga uma certa desconfiança. Ele nos mostrou que, pondo de lado a mais larga margem devida ao exagero, ainda ficava bastante para atestar a realidade dos fatos passados fora de todas as leis conhecidas.

Falou-se muito do sr. Home, e de várias maneiras, e nós confessamos que ele estava longe de provocar simpatia em todos, nuns por espírito de sistema, noutros por ignorância. Nestes últimos queremos até admitir uma opinião conscienciosa, se por si mesmos não puderam constatar os fatos; mas se, em tal caso, a dúvida é permitida, é sempre fora de propósito uma hostilidade sistemática e apaixonada. Em toda relação de causa, julgar sem conhecimento é falta de lógica e difamar sem provas é esquecer as conveniências.

Por um instante, façamos abstração da intervenção dos Espíritos e não vejamos, nos fatos relatados, mais do que fenômenos físicos. Quanto mais estranhos forem eles, mais atenção merecem. Que os expliquem como quiserem, mas não os contestem a priori, se não quiserem que tal julgamento seja posto em dúvida. O que nos deve admirar, e que nos parece ainda mais anormal que os fenômenos em questão, é ver esses mesmos que incessantemente deblateram contra a oposição de certos grupos científicos às ideias novas; que continuamente lhes lançam em rosto — e isso em linguagem menos comedida — os dissabores experimentados pelos autores das mais importantes descobertas; que a todo momento citam Fulton, Jenner e Galileu, escorregarem, eles próprios, em erro semelhante, eles que dizem, e com razão, que ainda não há muito tempo, quem quer que houvesse falado em corresponder-se de um extremo ao outro da Terra em alguns segundos teria passado por insensato. Se acreditam no progresso, do qual se dizem apóstolos, que sejam então coerentes consigo mesmos e não atraiam para si o reproche que lançam aos outros, de negar aquilo que não compreendem.

Mas voltemos ao sr. Home. Vindo a Paris em outubro de 1855, viu-se, desde a chegada, atirado no mais elevado mundo, circunstância que deveria ter imposto mais circunspeção no julgamento que lhe fazem, porque, quanto mais elevado e esclarecido é esse mundo, menos suspeita de se ter benevolamente transformado em joguete por um aventureiro.

Esta mesma posição suscitou comentários. Pergunta-se quem é o sr. Home. Para viver nesta sociedade e fazer viagens dispendiosas, diz-se que é necessário ter fortuna. Se não a tem, deve ser sustentado por gente poderosa. Sobre esse tema levantaram-se mil e uma suposições, cada qual mais ridícula. Que não disseram de sua irmã, que ele foi buscar há cerca de um ano! Dizia-se que era uma médium mais possante que ele; que os dois deveriam realizar prodígios que fariam empalidecer os de Moisés. Mais de uma vez nos dirigiram perguntas a tal respeito. Eis agora a nossa resposta.

Vindo à França, o sr. Home não se dirigiu ao público. Ele nem gosta nem procura a publicidade. Se tivesse vindo com propósito de especulação, teria corrido o país, servindo-se da propaganda; teria procurado todas as oportunidades para manifestar-se, no entanto, ele as evita; teria estabelecido um preço às suas manifestações, ao passo que nada pede a ninguém. Apesar de sua reputação, o sr. Home não é o que se pode chamar um homem público. Sua vida privada pertence exclusivamente a ele. Desde que nada pede, ninguém tem o direito de perguntar como vive, sem cometer uma indiscrição. É mantido por gente poderosa? Isto não nos interessa. Tudo quanto podemos dizer é que nesta sociedade de escol ele conquistou simpatias reais e fez amigos dedicados, ao passo que, com um pelotiqueiro, a gente paga, diverte-se, e acabou-se.

No sr. Home vemos apenas um homem dotado de uma faculdade notável. O estudo dessa faculdade é tudo quanto nos interessa e tudo quanto deve interessar aos que não são movidos apenas por sentimentos de curiosidade. A História ainda não abriu para ele o livro de seus segredos. Até lá ele pertence à ciência.

Quanto à sua irmã, eis a verdade: É uma menina de onze anos, que ele trouxe a Paris para a sua educação, de que está encarregada ilustre figura. Ela mal sabe em que consiste a faculdade do irmão. Como se vê, é tudo muito simples e muito prosaico para os amantes de maravilhas.

Agora, por que o sr. Home teria vindo à França? Não foi para tentar fortuna, como acabamos de provar. Para conhecer o país? Mas ele não o percorre; sai pouco e não tem absolutamente hábitos de turista. O motivo patente é o conselho dos médicos que acham o clima da Europa necessário à sua saúde, mas os fatos mais naturais são por vezes providenciais. Pensamos, pois, que se ele veio é porque devia vir.

A França, ainda em dúvida no que concerne às manifestações espíritas, precisava que lhe fosse desferido um grande golpe; foi o sr. Home quem teve esta missão e, quanto mais alto foi o golpe, maior foi a sua repercussão. A posição, o crédito, as luzes dos que o acolheram e que se convenceram pela evidência dos fatos, abalaram as convicções de muita gente, mesmo entre as pessoas que foram testemunhas oculares.

Terá sido, pois, a presença do sr. Home um poderoso auxiliar na propagação das ideias espíritas. Se não convenceu a todo mundo, lançou sementes que frutificarão tanto mais quanto mais se multiplicarem os médiuns. Essa faculdade, como dissemos alhures, não constitui privilégio exclusivo; existe em estado latente e em diversos graus numa porção de indivíduos, esperando apenas ocasião de se desenvolver. O princípio está em nós, por efeito mesmo da nossa organização. Ele está em a natureza, e todos o temos em germe. Não está longe o dia em que veremos surgirem médiuns de todos os lados, em nosso meio, em nossas famílias, entre os pobres como entre os ricos, a fim de que a verdade seja por todos conhecida, porque, conforme o que está anunciado, é uma era nova, uma fase nova que se inicia para a humanidade. A evidência e a vulgarização dos fenômenos espíritas darão novo curso às ideias morais, como o vapor deu novo curso às indústrias.

Se a vida privada do sr. Home deve estar fechada às investigações de uma indiscreta curiosidade, há certos detalhes que, a justo título, podem interessar ao público e, para a apreciação dos fatos, o seu conhecimento pode ser mesmo útil.

O sr. Daniel Dunglas Home nasceu a 15 de março de 1833, perto de Edimburgo. Tem, pois, atualmente, 24 anos. Descende da antiga e nobre família dos Dunglas da Escócia, outrora soberana. É um moço de estatura mediana, louro e cuja fisionomia melancólica nada tem de excêntrica; é de compleição muito delicada, de costumes simples e meigos, de caráter afável e benevolente, sobre o qual o contato das grandezas nem lançou arrogância nem ostentação. Dotado de excessiva modéstia, jamais faz alarde de sua maravilhosa faculdade; jamais fala de si mesmo e se, numa expansão de intimidade, conta casos pessoais, faz com simplicidade e jamais com a ênfase própria das criaturas com as quais a malevolência procura compará-lo. Muitos fatos íntimos, de nosso conhecimento pessoal, provam seus sentimentos nobres e a elevação de sua alma. Nós o constatamos com tanto maior prazer quanto mais se conhece a influência das disposições morais sobre a natureza das manifestações.

Os fenômenos de que o Sr. Home é instrumento involuntário por vezes têm sido contados por amigos muito zelosos com um entusiasmo exagerado, do qual se apoderou a malevolência. Sendo como são, não necessitam de amplificação, mais nociva do que útil à causa. Como o nosso fim é o estudo sério de tudo quanto se liga à ciência espírita, fechar-nos-emos na estrita realidade dos fatos constatados por nós mesmos ou pelas testemunhas oculares mais dignas de fé. Podemos, pois, comentá-los, com a certeza de que não estamos conjeturando sobre coisas fantásticas.

O sr. Home é um médium do gênero dos que produzem manifestações ostensivas, sem excluir por isto as comunicações inteligentes, mas as suas predisposições naturais lhe dão para as primeiras uma aptidão toda especial. Sob sua influência ouvem-se os mais estranhos ruídos; o ar se agita; os corpos sólidos se movem, levantam-se, transportam-se de um lado a outro, através do espaço; instrumentos de música produzem sons melodiosos; aparecem seres do mundo extracorpóreo que falam, que escrevem e que por vezes nos abraçam até produzir dor. Muitas vezes ele próprio se viu, em presença de testemunhas oculares, elevado, sem apoio, a vários metros de altura.

Do que nos tem sido ensinado sobre a classe de Espíritos que em geral produzem tais manifestações, não se deve concluir que o sr. Home só esteja em contato com a classe ínfima do mundo espírita. Seu caráter e as qualidades morais que o distinguem, ao contrário, devem atrair para ele as simpatias de Espíritos superiores. Para os Espíritos inferiores, ele não passa de um instrumento destinado a abrir os olhos aos cegos de maneira enérgica, sem que por isso esteja privado de comunicações de ordem mais elevada. É uma missão que ele aceitou, missão não isenta de tribulações nem de perigos, mas que realiza com resignação e perseverança, sob a égide do Espírito de sua mãe, seu verdadeiro anjo da guarda.

A causa das manifestações do sr. Home lhe é inata; sua alma, que parece não se prender ao corpo senão por fracos liames, tem mais afinidade com o mundo espírita do que com o mundo corpóreo. Eis por que se desprende sem esforço e, mais facilmente que os outros, entra em comunicação com os seres invisíveis.

Essa faculdade se lhe revelou desde a mais tenra idade. Aos seis meses seu berço se balançava sozinho, na ausência da babá, e mudava de lugar. Em seus primeiros anos era tão débil que mal se sustinha; sentado no tapete, quando não alcançava os brinquedos, estes vinham pôr-se ao seu alcance. Aos três anos teve suas primeiras visões, cuja memória não conservou. Tinha nove anos quando a família se mudou para os Estados Unidos; lá continuaram os mesmos fenômenos com intensidade crescente, à medida que avançava em idade, mas a sua reputação como médium só se criou em 1855, época em que as manifestações espíritas começaram a se popularizar naquele país. Em 1854 veio à Itália, como dissemos, por motivo de saúde. Espantou Florença e Roma com verdadeiros prodígios.

Convertido ao catolicismo nesta última cidade, assumiu o compromisso de romper relações com o mundo dos Espíritos. Realmente, durante um ano parece ter sido abandonado por seu poder oculto, mas como tal poder está acima de sua vontade, no fim desse tempo, conforme lhe havia anunciado o Espírito de sua mãe, as manifestações reapareceram com uma nova força. Sua missão estava traçada; deveria destacar-se entre aqueles que a Providência escolheu para nos revelar, por sinais patentes, o poder que se superpõe a todas as grandezas humanas.

Se o sr. Home fosse, como o pretendem os que julgam sem ver, somente um hábil prestidigitador, teria sempre, sem a menor dúvida, mágicas prontas em sua sacola. Entretanto, não é senhor de produzi-las à vontade. Ser-lhe-ia impossível dar sessões regulares, pois muitas vezes, no momento exato em que tivesse necessidade de sua faculdade, esta poderia faltar. Por vezes, os fenômenos se manifestam espontaneamente, no momento em que menos se espera, enquanto que doutras vezes não é possível provocá-los, o que é uma circunstância pouco favorável para quem quisesse fazer exibições com hora marcada.

Uma prova temos no fato seguinte, tomado entre centenas de outros. Havia mais de quinze dias que o sr. Home não obtinha qualquer manifestação quando, almoçando em casa de um amigo com duas ou três pessoas conhecidas, de repente ouviram-se pancadas nas paredes, nos móveis e no teto. Parece que voltam, disse ele. Nesse momento o sr. Home estava sentado num canapé com um amigo. Um criado trouxe a bandeja de chá e preparava-se para colocá-la sobre a mesa, no meio do salão. Conquanto muito pesada, a mesa levantou-se subitamente do solo, elevando-se a cerca de 20 a 30 centímetros de altura, como se tivesse sido atraída pela bandeja. Apavorado, o criado deixou a bandeja cair. De um salto, a mesa se lançou na direção do canapé e veio pousar diante do sr. Home e seu amigo, sem que coisa alguma do que estava em cima se tivesse desarranjado. Inquestionavelmente, este fato não é o mais curioso de quantos temos ouvido, mas apresenta esta particularidade digna de menção: é que se produziu espontaneamente, sem provocação, num círculo íntimo, onde nenhum dos assistentes, cem vezes testemunhas de fatos idênticos, necessitava de novas provas. Certamente não era o caso de o sr. Home demonstrar as suas habilidades, se habilidades existem. Num próximo artigo citaremos outras manifestações.

Manifestações de Espíritos.
Respostas ao Sr. Viennet, por Paul Auguez.

O sr. Paul Auguez é um adepto sincero e esclarecido da doutrina espírita. Sua obra, que lemos com muito interesse, e na qual se reconhece a pena elegante do autor dos Élus de l’avenir, é uma demonstração lógica e sábia dos pontos fundamentais desta doutrina, isto é, da existência dos Espíritos, de suas relações com os homens e, consequentemente, da imortalidade da alma e de sua individualidade após a morte. Seu fim principal é responder às agressões sarcásticas do Sr. Viennet. Ele não aborda senão os pontos capitais, limitando-se a provar com os fatos, com o raciocínio e com as autoridades mais respeitáveis, que esta crença não é fundada sobre ideias sistemáticas ou preconceitos vulgares. Ao contrário, repousa sobre bases sólidas. A arma do Sr. Viennet é o ridículo; a do Sr. Auguez é a ciência. Pelas numerosas citações que atestam um estudo sério e uma profunda erudição, ele prova que se os adeptos de hoje, apesar de sua cifra sempre crescente, e as pessoas esclarecidas de todos os países que a eles se ligam, são, como pretende o ilustre acadêmico, cérebros desequilibrados, tal enfermidade lhes é comum com a da maioria dos gênios que honram a humanidade.


* Em português, Eleitos do futuro.

Nas suas refutações, o sr. Auguez conservou sempre a dignidade de linguagem, mérito que nunca será por demais louvado. Em parte alguma se encontram essas diatribes deslocadas, transformadas em lugares-comuns de mau gosto e que nada provam, a não ser a falta de urbanidade. Tudo quanto diz é grave, sério, profundo, à altura do sábio a quem se dirige. Tê-lo-á convencido? Ignoramos; duvidamos mesmo, para falar com franqueza. Mas como, em definitivo, seu livro é feito para todos, as sementes que espalha não serão perdidas. Por mais de uma vez teremos ocasião de citar passagens de sua obra no curso desta publicação, à medida que formos arrastados pela natureza do assunto.

A teoria desenvolvida pelo sr. Auguez, salvo talvez alguns pontos secundários, é a mesma que professamos. Assim, não faremos a respeito nenhuma crítica à sua obra marcante, que será lida com proveito. Apenas uma coisa desejaríamos: um pouco mais de clareza nas demonstrações e de método na ordenação da matéria. O sr. Auguez tratou do assunto cientificamente, porque se dirigia a um sábio capaz, com certeza, de compreender as coisas mais abstratas, mas deveria ter pensado que escrevia menos para um homem do que para um público que lê sempre com mais prazer e mais proveito aquilo que compreende sem esforço.

Aos leitores da Revista Espírita.

Vários de nossos leitores quiseram responder ao apelo que fizemos em nosso primeiro número, relativamente a informações a nos serem fornecidas. Grande cópia de fatos foi assinalada, entre os quais alguns muito importantes, pelo que somos infinitamente agradecidos. Não o somos menos pelas reflexões que por vezes os acompanham, mesmo quando revelam incompleto conhecimento da matéria. Elas permitirão esclarecimentos sobre pontos que não tiverem sido bem compreendidos. Se não fazemos menção imediata aos documentos que nos são fornecidos, nem por isso nos passam despercebidos. Sempre tomamos boa nota, a fim de que, mais cedo ou mais tarde, sejam aproveitados.

A falta de espaço não é a causa única que pode retardar a publicação, mas ainda a oportunidade das circunstâncias e a necessidade de ligá-los aos artigos, aos quais podem servir de complemento útil.

A multiplicidade de nossas ocupações, somada à extensa correspondência, nos deixa por vezes na impossibilidade material de responder como desejáramos, e como era nosso dever, às pessoas que nos honram com suas cartas. Rogamos encarecidamente que não interpretem mal o nosso silêncio, independente de nossa vontade. Esperamos que sua boa vontade não arrefeça e que não interrompam sua interessante correspondência. Neste particular, novamente chamamos a atenção para a nota no fim da introdução do nosso primeiro número, a respeito de informações que solicitamos obsequiosamente, pedindo, além disso, que não deixem de dizer-nos quando poderemos, sem inconvenientes, fazer menção às pessoas e aos lugares.

As observações acima se aplicam igualmente às questões que nos são dirigidas sobre vários pontos de doutrina. Quando requerem maior desenvolvimento, tanto menos possível nos é responder por escrito, quando muitas vezes a mesma coisa deve ser repetida a muitas pessoas. Como nossa revista se destina a servir de meio de correspondência, as respostas terão aqui seu lugar natural, à medida que os assuntos tratados nos oferecerem oportunidade. Isto será tanto mais vantajoso e de proveito para todos, quanto mais completas puderem ser as respostas.

Allan Kardec.


Paris. Tipografia B. Corion, Rua Bonaparte, 64.




Março

A pluralidade dos mundos.

Quem ainda não se perguntou, ao considerar a Lua e os outros astros, se esses globos são habitados? Antes que a ciência nos houvesse iniciado em a natureza desses astros, era possível a dúvida; no estado atual de nossos conhecimentos, pelo menos existe a probabilidade, mas a esta ideia realmente sedutora fazem-se objeções tiradas da própria ciência. Diz-se que a Lua, ao que parece, não tem atmosfera, e possivelmente não tem água. Em Mercúrio, à vista de sua proximidade do Sol, a temperatura média deve ser a do chumbo em fusão, de maneira que se ali houver chumbo, este deve correr como a água dos nossos rios. Em Saturno dá-se o oposto; não temos um termo de comparação para o frio que ali deve existir; a luz do Sol deve ser lá muito fraca, apesar da reflexão de suas sete luas e de seu anel, pois àquela distância o Sol deve aparecer apenas como uma estrela de primeira grandeza. Em tais condições, pergunta-se se nele é possível a vida.

Não se compreende que semelhante objeção possa ser feita por homens sérios. Se a atmosfera da Lua não foi percebida, será racional inferir que não exista? Não poderá ser constituída de elementos desconhecidos ou bastante rarefeitos para não produzirem refração sensível? O mesmo diremos da água e dos líquidos ali existentes.

Em relação aos seres vivos, não seria negar o poder divino julgar impossível uma organização diferente da que conhecemos, quando às nossas vistas a providência da natureza se estende com uma solicitude tão admirável até o menor inseto e dá a todos os seres órgãos apropriados ao meio em que devem habitar, quer seja a água, o ar ou a terra, quer mergulhados na escuridão, quer expostos à luz do Sol? Se jamais houvéssemos visto um peixe, não poderíamos conceber seres vivendo na água; não faríamos uma ideia de sua estrutura. Até bem pouco tempo, quem teria acreditado que um animal pudesse viver indefinidamente no seio de uma pedra?

Mas, sem falar desses extremos, os seres que vivem sob o fogo da zona tórrida poderiam existir nos gelos polares? Entretanto, nos gelos há seres organizados para esse clima rigoroso, que não poderiam suportar a ardência de um sol vertical.

Por que, então, não admitir que certos seres possam ser constituídos de maneira a viverem em outros globos e num meio completamente diverso do nosso? Por certo, sem conhecer a fundo a constituição física da Lua, nós sabemos o bastante para assegurar que ali não poderíamos viver tais quais nós somos, como não o podemos em companhia dos peixes, no seio do Oceano. Pela mesma razão, os habitantes da Lua, se um dia pudessem vir à Terra, uma vez que constituídos para viver sem ar ou num ar muito rarefeito, talvez completamente diverso do nosso, seriam asfixiados em nossa espessa atmosfera, como nós quando caímos na água.

Ainda uma vez, se não temos a prova material e de visu da presença de seres que vivem em outros mundos, nada prova que não possam existir organismos apropriados a um meio ou a um clima qualquer. Ao contrário, diz-nos o simples bom senso que assim deve ser, pois repugna à razão crer que esses inumeráveis globos que circulam no espaço sejam simples massas inertes e improdutivas. A observação ali nos mostra superfícies acidentadas, como aqui, por montanhas, vales, abismos, vulcões extintos e em atividade. Por que então não haveria ali seres orgânicos? Seja, dirão; talvez haja plantas e até animais; seres humanos, porém, homens civilizados como nós, conhecendo Deus, cultivando as artes, as ciências, será possível?

Com certeza nada prova matematicamente que os seres que habitam os outros mundos sejam homens como nós, ou que sejam mais ou menos adiantados que nós, do ponto de vista moral. Mas quando os selvagens da América viram desembarcarem os espanhóis, não tiveram mais dúvidas de que além dos mares existia um outro mundo cultivando artes que lhes eram desconhecidas. A Terra é pontilhada de inumerável quantidade de ilhas, grandes ou pequenas, e tudo o que é habitável é habitado. Não surge no mar um rochedo sem que imediatamente o homem ali não plante a sua bandeira. Que diríamos nós se os habitantes de uma das menores dessas ilhas, conhecendo perfeitamente a existência de outras ilhas e continentes, mas não tendo tido nunca relações com os que os habitam, se considerassem os únicos seres vivos do globo? Dir-lhes-íamos: Como vocês podem crer que Deus tenha feito o mundo somente para vocês? Por que estranha singularidade a pequena ilha vossa, perdida na solidão do Oceano, teria o privilégio de ser a única habitada?

O mesmo poderemos dizer em relação às outras esferas. Por que a Terra, pequeno globo imperceptível na imensidade do universo, que não se distingue dos outros planetas nem por sua posição, nem por seu volume, nem por sua estrutura, pois nem é a maior, nem a menor, nem está no centro, nem nos extremos, por que, dizia eu, entre tantas outras, seria ela a única residência de seres racionais e pensantes? Que homem sensato poderia pensar que esses milhões de astros que brilham sobre nossas cabeças foram feitos para recrear os nossos olhos? Qual seria, então, a utilidade desses milhões de globos invisíveis a olho nu e que não servem nem mesmo para nos iluminar? Não seria orgulho e impiedade pensar que assim fosse? Àqueles a quem pouco importa a impiedade, diremos que não tem lógica.

Chegamos, pois, por um simples raciocínio que muitos outros fizeram antes de nós, a concluir pela pluralidade dos mundos. Tal raciocínio acha-se confirmado pela revelação dos Espíritos. Realmente eles nos ensinam que todos esses mundos são habitados por seres corpóreos, apropriados à constituição física de cada globo; que entre os habitantes desses mundos uns são mais, outros menos adiantados que nós, do ponto de vista intelectual, moral e mesmo físico. Ainda mais: hoje sabemos que é possível entrar em relação com eles e obter esclarecimentos sobre seu estado; sabemos ainda que não só todos os globos são habitados por seres corpóreos, mas que o espaço é povoado por seres inteligentes, invisíveis para nós, por causa do véu material lançado sobre nossa alma, e que revelam sua existência por meios ocultos ou patentes.

Assim, tudo é povoado no universo. A vida e a inteligência estão por toda parte: em globos sólidos, no ar, nas entranhas da Terra, e até nas profundezas etéreas.

Haverá em tal doutrina algo que repugne à razão? Não é, ao mesmo tempo, grandiosa e sublime? Ela nos eleva por nossa própria pequenez, bem ao contrário desse pensamento egoísta e mesquinho que nos coloca como os únicos seres dignos de ocupar o pensamento de Deus.

Júpiter e alguns outros mundos.

Antes de entrar em detalhes nas revelações que nos fizeram os Espíritos sobre o estado dos diferentes mundos, vejamos a que consequência lógica poderemos chegar por nós mesmos e pelo simples raciocínio. Reportemo-nos à escala espírita que demos no número anterior. Às pessoas que estiverem desejosas de se aprofundar seriamente nesta nova ciência, recomendamos que estudem cuidadosamente aquele quadro e dele se compenetrem, pois aí encontrarão a chave de muitos mistérios.

O mundo dos Espíritos é composto das almas de todos os humanos desta Terra e de outras esferas, desprendidas dos liames corpóreos; do mesmo modo, todos os humanos são animados por Espíritos neles encarnados. Há, pois, solidariedade entre esses dois mundos: os homens terão as qualidades e as imperfeições dos Espíritos com os quais estão unidos; os Espíritos serão mais ou menos bons ou maus, conforme o progresso que hajam feito durante sua existência corpórea. Estas poucas palavras resumem toda a doutrina. Como os atos dos homens são o produto de seu livre-arbítrio, conservam eles o cunho da perfeição ou imperfeição do Espírito que os provoca. Ser-nos-á, pois, fácil fazer uma ideia sobre o estado moral de um mundo qualquer, conforme a natureza dos Espíritos que o habitam; de algum modo podemos descrever sua legislação, traçar um quadro de seus costumes, de seus usos, de suas relações sociais.

Suponhamos, então, um globo habitado exclusivamente por Espíritos da nona classe, Espíritos impuros, e para lá nos transportemos em pensamento. Veremos todas as paixões desencadeadas e sem freios; o estado moral no mais baixo grau do embrutecimento; a vida animal em toda sua brutalidade; falta de laços sociais, porque cada um vive e age apenas para si e para a satisfação de seus grosseiros apetites; ali reina o egoísmo como soberano absoluto e arrasta no seu cortejo o ódio, a inveja, o ciúme, a cupidez e o assassínio.

Passemos agora a uma outra esfera onde se encontram Espíritos de todas as classes da terceira ordem: Espíritos impuros, levianos, pseudossábios, neutros. Sabemos que em todas as classes dessa ordem predomina o mal, mas, sem ter a ideia do bem, a do mal decresce à medida que se afastam da última classe. O egoísmo é sempre o móvel principal das ações, mas os costumes são mais suaves, a inteligência mais desenvolvida; o mal se apresenta um tanto disfarçado, enfeitado, travestido. Estas mesmas qualidades engendram outro defeito — o orgulho, pois as classes mais elevadas são suficientemente esclarecidas para ter consciência de sua superioridade, mas não o são bastante para compreenderem aquilo que lhes falta. Daí sua tendência à escravização das classes inferiores ou das raças mais fracas, que mantêm sob o seu jugo. Como não têm o sentimento do bem, têm apenas o instinto do eu e põem a inteligência a serviço da satisfação de suas paixões. Numa tal sociedade, se dominar, o elemento impuro esmagará o outro; caso contrário, os menos maus procurarão destruir os seus adversários; em todo caso haverá luta, luta sangrenta, de extermínio, porque são dois elementos que têm interesses opostos. Para proteger os bens e as pessoas, haverá necessidade de leis, mas essas serão ditadas pelo interesse pessoal e não pela justiça; serão feitas pelo forte, em detrimento do fraco.

Suponhamos agora um mundo onde, entre os elementos maus que acabamos de ver, encontrem-se alguns da segunda ordem: então, em meio à perversidade veremos aparecerem algumas virtudes. Se os bons forem minoria, serão vítimas dos maus; à medida, porém, que se acentua seu predomínio, a legislação torna-se mais humana, mais equitativa e a caridade cristã deixa de ser para todos letra morta. Desse mesmo bem nascerá outro vício. A despeito da guerra que os maus declaram incessantemente aos bons, eles não podem evitar estimá-los em seu foro íntimo. Vendo o ascendente da virtude sobre o vício e não tendo força nem vontade de praticá-la, procuram parodiá-la e tomam a sua máscara. Daí os hipócritas, tão numerosos em toda sociedade onde a civilização é ainda imperfeita.

Continuemos nossa viagem através dos mundos e paremos naquele que nos dará um pouco de repouso do triste espetáculo que acabamos de assistir. É habitado só por Espíritos da segunda ordem. Que diferença! O grau de depuração atingido exclui entre eles qualquer pensamento mau e isto é o bastante para nos dar uma ideia do estado moral dessa terra feliz. A legislação é nela muito simples, pois os homens não têm necessidade de defender-se uns dos outros; ninguém quer mal ao próximo; ninguém se apropria do que lhe não pertence; ninguém procura viver em detrimento de seu vizinho. Tudo respira benevolência e amor; os homens não procuram prejudicar-se mutuamente; não existe ódio absolutamente; o egoísmo é desconhecido e a hipocrisia não teria objetivo. Ali não reina a igualdade absoluta porque esta pressupõe uma perfeita identidade de desenvolvimento intelectual e moral. Ora, vemos pela escala espiritual que a segunda ordem compreende vários graus de desenvolvimento, por isso, nesse mundo haverá desigualdades, porque uns serão mais adiantados que outros, mas como entre todos só há o pensamento do bem, os mais adiantados nada conceberão de orgulho nem os outros de inveja. O inferior compreende a ascendência do superior e se submete, porque tal ascendência é puramente moral e ninguém disso se serve para oprimir os outros.

As consequências que tiramos deste quadro, embora apresentadas de maneira hipotética, não são menos racionais, e cada um pode deduzir o estado social de um mundo qualquer, conforme a proporção dos elementos morais de que o supomos constituído.

Vimos que, abstração feita da revelação dos Espíritos, todas as probabilidades são para a pluralidade dos mundos. Ora, não é menos racional pensar que nem todos estejam no mesmo grau de perfeição e que, por isso mesmo, nossas suposições podem perfeitamente ser expressão da realidade.

De maneira positiva, conhecemos apenas o nosso. Que posição ocupa ele nessa hierarquia? Ora! Basta considerar o que se passa nele para ver que está longe de merecer a primeira classe, e estamos convencidos de que, ao ler estas linhas, já se lhe marcou a posição. Quando os Espíritos dizem que, se não está na última, estará numa das últimas, infelizmente o simples bom senso diz que não se equivocam. Temos muito a fazer para elevá-lo à categoria do que descrevemos por último; e precisamos que o Cristo nos viesse mostrar o caminho.

Quanto à aplicação que podemos fazer de nosso raciocínio aos vários globos de nosso turbilhão planetário, não temos senão o ensino dos Espíritos. Ora, para os que só admitem as provas palpáveis, o fato é que, a esse respeito, sua assertiva não tem a chancela da experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos com confiança as descrições dos viajantes sobre regiões que jamais vimos? Se só devemos crer no que vemos, creremos em pouca coisa. O que neste caso dá certo valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos quanto aos pontos capitais. Para nós, que temos testemunhado estas comunicações centenas de vezes; que as apreciamos nos seus mínimos detalhes; que lhes sondamos os pontos fracos e fortes; que observamos as similitudes e as contradições, nelas achamos todos os caracteres da probabilidade. Contudo, não as damos senão como informações e a título de ensinamentos, aos quais cada um será livre de dar a importância que melhor lhe parecer.

Segundo os Espíritos, Marte seria ainda menos adiantado do que a Terra. Os Espíritos ali encarnados parecem pertencer quase que exclusivamente à nona classe, a dos Espíritos impuros, de sorte que o primeiro quadro que demos acima seria uma descrição desse mundo. Vários outros pequenos globos são, com algumas nuanças, da mesma categoria. Em seguida viria a Terra. A maioria de seus habitantes pertence incontestavelmente a todas as classes da terceira ordem e uma parte insignificante às últimas classes da segunda ordem. Os Espíritos superiores, da segunda e da terceira classe, aqui desempenham por vezes missões de civilização e de progresso, mas constituem exceções. Mercúrio e Saturno vêm depois da Terra. A superioridade numérica dos bons Espíritos lhes dá preponderância sobre os Espíritos inferiores, do que resulta uma ordem social mais perfeita, relações menos egoístas e, consequentemente, condições de existência mais feliz. A Lua e Vênus são mais ou menos do mesmo grau e, sob todos os aspectos, mais adiantados que Mercúrio e Saturno. Urano e Netuno* seriam ainda superiores a estes últimos. É de supor que os elementos morais destes dois planetas sejam formados das primeiras classes da terceira ordem e de grande maioria de Espíritos da segunda. Os homens são ali infinitamente mais felizes do que na Terra, porque não têm que sustentar as mesmas lutas, nem sofrer as mesmas tribulações, assim como não se acham expostos às mesmas vicissitudes físicas e morais.


No original está: Juno e Urano. Deve ter sido erro gráfico, pois não existe planeta com o nome de Juno, e Netuno está faltando no texto. Juno é apenas o asteroide n. 3 descoberto por Harding. (N. da Eq. Rev. Edicel).


De todos os planetas, o mais adiantado em todos os sentidos é Júpiter. É o reino exclusivo do bem e da justiça, porque só tem bons Espíritos. Pode-se fazer uma ideia do estado feliz de seus habitantes, pelo quadro que demos de um mundo habitado apenas por Espíritos da segunda ordem.

A superioridade de Júpiter não está somente no estado moral dos seus habitantes; está também na sua constituição física. Eis a descrição que nos foi dada desse mundo privilegiado, onde se encontra a maior parte dos homens de bem que honraram nossa Terra com sua virtude e com seu talento:

A conformação do corpo é mais ou menos a mesma dos habiantes da Terra, mas ele é menos material, menos denso e de um peso específico muito pequeno. Enquanto nós rastejamos penosamente na Terra, o habitante de Júpiter se transporta de um a outro lugar, deslizando pela superfície do solo, quase sem fadiga, como o pássaro no ar ou o peixe na água. Sendo mais depurada a matéria de que é formado o corpo, dissipa-se após a morte, sem ser submetida à decomposição pútrida. Ali não se conhece a maioria das moléstias que nos afligem, sobretudo aquelas originadas nos excessos de todo gênero e na devastação das paixões. A alimentação está em analogia com essa organização eterizada; não seria suficientemente substancial para os nossos estômagos grosseiros, e a nossa seria demasiado pesada para eles. É composta de frutos e plantas, aliás, eles a haurem de alguma maneira, em sua maior parte, no meio ambiente, cujas emanações nutritivas aspiram. A duração da vida é proporcionalmente muito maior do que na Terra. A média equivale a cerca de cinco dos nossos séculos. O desenvolvimento é também muito rápido e a infância dura apenas alguns de nossos meses.

Sob esse envoltório leve, os Espíritos se desprendem facilmente e entram em comunicação recíproca apenas pelo seu pensamento, sem contudo se excluir a linguagem articulada; também a segunda vista lhes é faculdade permanente. Seu estado normal pode ser comparado ao de nossos sonâmbulos lúcidos.É por isso que eles se nos manifestam mais facilmente que os encarnados em mundos mais grosseiros e mais materiais. A intuição que têm do seu futuro; a segurança dada por uma consciência isenta de remorsos fazem com que a morte não lhes cause nenhuma apreensão. Veem-na chegar sem medo e como uma simples transformação.

Os animais não estão excluídos desse estado progressivo, posto não se aproximem daquele do homem, mesmo em relação ao físico. Seu corpo, mais material, está preso ao solo, como os nossos à Terra. Sua inteligência é mais desenvolvida que a dos nossos. A estrutura de seus membros adapta-se a todas as exigências do trabalho. Eles são encarregados da execução de obras manuais. São os servos e os capatazes. As ocupações do homem são puramente intelectuais. Para eles o homem é uma divindade, mas uma divindade tutelar, que jamais abusa de seu poder para oprimi-los.

Os Espíritos que habitam Júpiter geralmente se comprazem, quando querem comunicar-se conosco, em descrever seu planeta. Quando lhes perguntamos a razão, respondem que o fazem a fim de nos inspirarem o amor do bem, de par com a esperança de lá chegarmos um dia. Foi com este propósito que um deles, que viveu na Terra com o nome de Bernard Palissy, célebre oleiro do século XVI, tentou espontaneamente, e sem que ninguém lho pedisse, uma série de desenhos, tão notáveis por sua originalidade quanto pelo talento de execução, destinados a nos dar a conhecer, nos seus menores detalhes, esse mundo tão estranho e tão novo para nós. Uns retratam personagens, animais, cenas da vida privada; os mais admiráveis, entretanto, são os que representam habitações, verdadeiras obras primas de que coisa alguma na Terra nos poderia dar uma ideia, pois não se assemelham a nada que conhecemos. É um gênero de arquitetura indescritível, tão original e entretanto tão harmoniosa, de uma ornamentação tão rica e tão graciosa, que desafia a mais fecunda imaginação. Victorien Sardou, jovem literato de nosso círculo de amizade, cheio de talento e de futuro, mas sem habilidade de desenhista, lhe serviu de intermediário. Palissy prometeu-nos uma série que de certo modo será uma monografia ilustrada sobre esse mundo maravilhoso. Esperamos que essa original e interessante coletânea sobre a qual falaremos em artigo especial consagrado aos médiuns desenhistas, um dia possa ser entregue ao público.

O planeta Júpiter, a despeito do quadro sedutor que nos foi dado, não é, entretanto, o mais perfeito dos mundos. Outros há, de nós desconhecidos, que lhe são muito superiores, quer física, quer moralmente, e cujos habitantes gozam de felicidade ainda mais perfeita: são eles o repouso dos Espíritos mais elevados, cujo envoltório etéreo nada mais tem das propriedades conhecidas da matéria.

Já muitas vezes nos perguntaram se pensamos que a condição do homem daqui seria um obstáculo absoluto para que ele pudesse passar, sem intermediário, da Terra a Júpiter. A todas as perguntas relativas à doutrina espírita jamais respondemos por nossas próprias ideias, contra as quais sempre estamos em guarda. Limitamo-nos a transmitir o ensino que nos é dado e que não aceitamos levianamente e com irrefletido entusiasmo. À pergunta acima respondemos claramente, porque tal é o sentido formal de nossas instruções e o resultado de nossas próprias observações: SIM, deixando a Terra, o homem pode ir imediatamente a Júpiter, ou a um mundo análogo, pois esse não é único na sua categoria. Pode haver certeza disto? NÃO. No entanto, ele pode ir, pois existem na Terra, embora em número exíguo, Espíritos muito bons e bastante desmaterializados para não se sentirem deslocados num mundo onde o mal não tem acesso. Entretanto, ele não pode ter certeza disto, porque pode iludir-se quanto ao mérito pessoal e, por outro lado, pode ter alhures outra missão a cumprir. Os que podem esperar este favor seguramente não são nem os egoístas, nem os ambiciosos, nem os avarentos, nem os ingratos, nem os invejosos, nem os orgulhosos, nem os vaidosos, nem os hipócritas, nem os sensuais, nem qualquer um daqueles que se deixaram dominar pelo apego às coisas terrenas. A esses talvez ainda sejam precisas longas e rudes provas. Isso depende da sua vontade.

Confissões de Luís XI
História de sua vida, ditada por ele mesmo à sr.ta Ermance Dufaux.

Falando da História de Joana d’Arc ditada por ela mesma, e propondo-nos a citar várias passagens, dissemos que a sr.ta Dufaux havia escrito da mesma forma a História de Luís XI. Esse e trabalho, um dos mais preciosos no gênero, contém documentos preciosos do ponto de vista histórico. Nele Luís XI se mostra o profundo político que conhecemos. Além disso, dá-nos a chave de vários fatos até aqui não explicados. Do ponto de vista espírita, é uma das mais curiosas mostras de trabalhos de fôlego produzidos pelos Espíritos. A este respeito duas coisas são particularmente notáveis: a rapidez de execução, pois bastaram quinze dias para ditar a matéria de um grosso volume, e a lembrança tão precisa que pode um Espírito conservar de acontecimentos da vida terrena. Aos que duvidassem da origem desse trabalho e quisessem atribuí-lo à memória da sr.ta Dufaux, diríamos que na verdade seria preciso que uma criança de catorze anos tivesse uma memória fenomenal e uma não menos extraordinária precocidade para que pudesse escrever de uma assentada uma obra dessa natureza. Mas, admitindo que assim fosse, perguntamos onde essa criança teria obtido as explicações inéditas da sombria política de Luís XI e se não teria sido mais interessante que seus pais lhe atribuíssem o mérito. Das diversas histórias escritas por seu intermédio, a de Joana d’Arc é a única que foi publicada. Fazemos votos para que em breve as outras o sejam e lhes prevemos um sucesso tanto maior quanto mais espalhadas hoje se acham as ideias espíritas.

Extraímos da de Luís XI a passagem relativa à morte do Conde de Charolais.

Os historiadores, ante o fato histórico de que “Luís XI deu ao Conde de Charolais o governo geral da Normandia”, confessam que não compreendem como um rei, que era tão grande político, teria cometido tamanho erro*.


* Histoire de France, por Velly e continuadores.


As explicações dadas por Luís XI são difíceis de contestar, desde que confirmadas por três fatos de todos conhecidos: a conspiração de Constain; a viagem do Conde de Charolais em seguida à execução do culpado e, por fim, a obtenção, por esse príncipe, do governo geral da Normandia, província que reunia os Estados dos duques de Borgonha e da Bretanha, inimigos sempre ligados contra Luís XI.

Luís XI assim se exprime:

“O Conde do Charolais foi gratificado com o governo geral da Normandia e uma pensão de trinta e seis mil libras. Era uma imprudência muito grande aumentar desse modo o poder da casa de Borgonha. Embora essa digressão nos afaste do encadeamento dos negócios da Inglaterra, penso que é meu dever aqui explicar os motivos que me levaram a proceder desse modo.

“Pouco depois de seu regresso aos Países Baixos, o Duque Filipe de Borgonha tinha caído gravemente enfermo. O Conde de Charolais amava realmente seu pai, apesar dos desgostos que ele lhe havia causado. É certo que seu caráter fogoso e impulsivo e sobretudo minhas pérfidas insinuações poderiam desculpá-lo. Tratou-o com perfeita afeição filial e, dia e noite, não se arredava de seu leito.

“A crise do velho duque me levara a sérias reflexões. Eu odiava o conde e pensava que tudo devia temer de sua parte. Por outro lado, ele tinha apenas uma filha de tenra idade, circunstância que, após a morte do duque, que não dava mostras de viver muito mais, teria ocasionado uma menoridade que os Flamengos, sempre turbulentos, teriam tornado extremamente tempestuosa. Eu então poderia ter-me apoderado facilmente, se não de todos os bens da casa de Borgonha, pelo menos de uma parte, quer mascarando essa usurpação com uma aliança, quer lhe deixando tudo quanto a força lhe dava de odioso. Havia mais razões do que era preciso para mandar envenenar o Conde de Charolais. Além do mais, a ideia de um crime não mais me espantava.

Consegui seduzir o despenseiro do príncipe, Jean Constain. A Itália era uma espécie de laboratório dos envenenadores: foi para lá que Constain mandou Jean d’Ivy, que havia seduzido mediante uma soma considerável e que lhe seria paga ao regressar. D’Ivy quis saber a quem se destinava o veneno. O despenseiro teve a imprudência de confessar que era para o Conde de Charolais.

“Depois de se desincumbir de sua tarefa, d’Ivy apresentou-se para receber a soma combinada, mas, em vez de lha pagar, Constain o cobriu de injúrias. Furioso com a recepção, d’Ivy jurou vingar-se. Foi ao Conde de Charolais e contou-lhe tudo quanto sabia. Constain foi preso e conduzido ao Castelo de Rippemonde. O medo de ser torturado levou-o a confessar tudo, salvo a minha cumplicidade, esperando talvez que eu intercedesse em seu favor. Já se achava no alto da torre, local designado para o suplício, e já se preparavam para decapitá-lo, quando manifestou desejo de falar ao conde. Contou-lhe então o papel que eu havia desempenhado nessa tentativa. A despeito do espanto e da cólera que experimentou, o Conde de Charolais calou-se e os presentes apenas puderam fazer vagas conjecturas, baseadas nos movimentos de surpresa provocados pelos relatos. Apesar da importância dessa revelação, Constain foi decapitado e seus bens foram confiscados, mas entregues à família pelo Duque de Borgonha.

“Seu delator teve a mesma sorte, devida em parte à imprudência de uma resposta dada ao príncipe de Borgonha. Este lhe havia perguntado se, caso a soma prometida lhe tivesse sido paga, ele teria denunciado o complô. Ele teve a inconcebível temeridade de responder que não.

“Quando o Conde veio a Tours, pediu-me uma entrevista particular. Nela deixou extravasar todo o seu furor e encheu-me de censuras. Acalmei-o dando-lhe o governo geral da Normandia e a pensão de trinta e seis mil libras. O governo geral não passou de um título decorativo, e da pensão ele recebeu apenas a primeira parte.”

A fatalidade e os pressentimentos.
Instruções dadas por São Luís.


Um dos nossos correspondentes escreveu-nos o seguinte:

“Em setembro último, um barco ligeiro, fazendo a travessia de Dunquerque a Ostende, foi surpreendido por um temporal durante a noite. O barco virou e pereceram quatro dos oito homens que compunham a tripulação. Os outros quatro, em cujo número eu me achava, conseguiram manter-se sobre a quilha. Ficamos a noite inteira nessa horrível posição, sem outra perspectiva senão a morte, que se nos afigurava inevitável e da qual já sentíamos todas as angústias. Ao romper do dia, o vento nos empurrou para a costa e pudemos ganhar a terra a nado.

“Por que, nesse perigo, igual para todos, apenas quatro sucumbiram? Note que, a meu respeito, é a sexta ou sétima vez que escapo a um perigo tão iminente e mais ou menos nas mesmas condições. Sou realmente levado a pensar que mão invisível me protege. Que fiz eu para isso? Não sei muito; sou uma criatura sem importância e sem utilidade neste mundo e não me gabo de valer mais que os outros; longe disto: entre as vítimas do acidente havia um digno eclesiástico, modelo de virtude evangélica, e uma venerável irmã da congregação de São Vicente de Paulo, que ia cumprir uma santa missão de caridade cristã. Parece que a fatalidade representa um grande papel em meu destino. Os Espíritos não se achariam ali para alguma coisa? Seria possível conseguir deles uma explicação a respeito, perguntando-lhes, por exemplo, se são eles que provocam ou contornam os perigos que nos ameaçam?…”

Conforme o desejo de nosso correspondente, dirigimos as seguintes perguntas ao Espírito de São Luís, que se comunica de boa vontade, sempre que há uma instrução útil a ministrar.

1. Quando um perigo iminente ameaça alguém, é um Espírito que dirige o perigo e, quando dele escapa, é outro Espírito que o desvia?

Quando um Espírito se encarna, escolhe uma prova; escolhendo-a, cria-se uma espécie de destino que não pode conjurar, desde que a ele se submeteu. Falo das provas físicas. Conservando seu livre-arbítrio sobre o bem e o mal, o Espírito é sempre livre de suportar ou rejeitar a prova. Vendo-o fraquejar, um bom Espírito pode vir em seu auxílio, mas não pode influir sobre ele de modo a dominar sua vontade. Um Espírito mau, isto é, inferior, mostrando-lhe e exagerando o perigo físico, pode abalá-lo e apavorá-lo, mas nem por isso a vontade do Espírito encarnado fica menos livre de qualquer entrave.”

2. Quando um homem está na iminência de ser vítima de um acidente, parece-me que o livre-arbítrio nada vale. Pergunto, pois, se é um mau Espírito que provoca tal acidente, do qual de algum modo é a causa e, no caso em que escape do perigo, se um bom Espírito veio em seu auxílio.

“Os bons ou os maus Espíritos não podem sugerir senão pensamentos bons ou maus, segundo sua natureza. O acidente está marcado no destino do homem. Quando tua vida é posta em perigo, é sinal que tu mesmo o desejaste, a fim de te desviares do mal e te tornares melhor. Quando escapas ao perigo, ainda sob a influência do perigo que correste, pensas mais ou menos fortemente, conforme a ação mais ou menos forte dos bons Espíritos, em te tornares melhor. Sobrevindo um mau Espírito (e digo mau subentendendo o mal que nele ainda existe), pensas que igualmente escaparás a outros perigos e novamente te entregarás às tuas paixões desenfreadas.”

3. A fatalidade que parece presidir aos destinos materiais de nossa vida seria, então, um efeito de nosso livre-arbítrio?

“Tu mesmo escolheste a tua prova; quanto mais rude for e melhor a suportares, tanto mais te elevas. Os que passam a vida na abundância e na felicidade humana são Espíritos fracos, que ficam estacionários. Assim, o número dos infortunados ultrapassa de muito o dos felizes deste mundo, de vez que em geral os Espíritos escolhem a prova que lhes dê mais frutos. Eles veem muito bem a futilidade de vossas grandezas e de vossos prazeres. Além disto, mesmo a vida mais feliz é sempre agitada, sempre perturbada, mesmo quando não o seja por meio da dor.”

4. Compreendemos perfeitamente tal doutrina, mas isto não explica se certos Espíritos têm uma ação direta sobre a causa material do acidente. Suponhamos que no momento em que um homem passa por uma ponte, a ponte desmorona. Quem levou o homem a passar por essa ponte?

“Quando um homem passa por uma ponte que deve cair não é um Espírito que o impele. É o instinto de seu destino que o leva para ela.”

5. Quem faz a ponte desmoronar?

“As circunstâncias naturais. A matéria tem em si as causas da destruição. No caso vertente, se o Espírito tiver necessidade de recorrer a um elemento estranho à sua natureza para mover as forças materiais, recorrerá de preferência à intuição espiritual. Assim, devendo desmoronar aquela ponte, tendo a água desajustado as pedras que a compõem ou a ferrugem roído as correntes que a sustentam, o Espírito, digamos, insinuará ao homem que passe por essa ponte, em vez de romper uma outra no momento em que ele passa. Aliás, tendes uma prova material do que digo: seja qual for o acidente, ocorre sempre naturalmente, isto é, as causas se ligam uma às outras e o produzem insensivelmente.”

6. Tomemos outro caso, em que a destruição da matéria não seja a causa do acidente. Um homem mal-intencionado dá-me um tiro; a bala apenas passa de raspão. Teria sido desviada por um bondoso Espírito?

“Não.”

7. Podem os Espíritos advertir-nos diretamente de um perigo? Eis um fato que parece confirmá-lo: Uma senhora sai de casa e segue pela avenida. Uma voz íntima lhe diz: Volta para casa. Ela vacila. A mesma voz faz-se ouvir várias vezes. Então ela volta, mas, refazendo-se, exclama: “Mas. . . que vim fazer em casa? Vou sair mesmo. Sem dúvida isto é efeito de minha imaginação.” Então retoma o caminho. Dados alguns passos, uma viga que tiravam de uma casa bate-lhe na cabeça e ela cai desacordada. Que voz era aquela? Não era um pressentimento do que lhe ia acontecer?

“Era o instinto. Aliás, nenhum pressentimento tem essas características: são sempre vagos.”

8. Que entendeis por voz do instinto?

Entendo que, antes de encarnar-se, o Espírito tem conhecimento de todas as fases de sua existência. Quando essas fases têm um caráter essencial, ele conserva uma espécie de impressão em seu foro íntimo e tal impressão, despertando ao aproximar-se o instante, torna-se pressentimento.”

Nota: As explicações acima se referem à fatalidade dos acontecimentos materiais. A fatalidade moral é tratada de maneira completa em O Livro dos Espíritos.

Utilidades de certas evocações particulares.

As comunicações que se obtêm de Espíritos muito elevados ou dos que animaram grandes personagens da antiguidade são preciosas, pelo alto ensino que contêm. Esses Espíritos adquiriram um grau de perfeição que lhes permite abarcar uma esfera de ideias mais extensa; penetrar mistérios que ultrapassam o alcance vulgar da humanidade e, por conseguinte, melhor que outros, iniciar-nos em certas coisas. Não se segue daí que as comunicações de Espíritos de ordens menos elevadas sejam sem utilidade. Longe disto: o observador colhe nelas diversos ensinos. Para conhecer os costumes de um povo é preciso estudá-lo em todos os graus da escala. Quem só o tivesse visto por uma face, conhecê-lo-ia mal. A história de um povo não é a história de seus reis e das sumidades sociais. Para julgá-lo é preciso vê-lo em sua vida íntima, nos seus hábitos particulares. Ora, os Espíritos superiores são as sumidades do mundo espírita. Sua própria elevação os coloca de tal modo acima de nós que ficamos espantados pela distância que nos separa.

Espíritos mais burgueses — permitam-nos a expressão — tornam para nós mais palpáveis as condições de sua nova existência. Neles, a ligação entre a vida corporal e a vida espírita é mais íntima; nós a compreendemos melhor, pois nos toca mais de perto. Aprendendo através deles mesmos em que se tornaram, o que pensam, o que experimentam as pessoas de todas as condições e de todos os caracteres, tanto os homens de bem como os viciosos, tanto os grandes quanto os pequenos, os felizes como os infelizes do século, numa palavra, os homens que viveram entre nós, que vimos e conhecemos, cuja vida real nos é conhecida, como suas virtudes e seus caprichos, compreendemos suas alegrias e seus sofrimentos; a eles nos associamos e colhemos um ensino moral tanto mais proveitoso quanto mais íntimas as relações entre eles e nós. Pomo-nos mais facilmente no lugar daquele que foi igual a nós, do que no daqueles que vemos apenas através da miragem de uma glória celeste. Os Espíritos vulgares mostram-nos a aplicação prática das grandes e sublimes verdades, cuja teoria nos ensinam os Espíritos superiores. Ademais, no estudo de uma ciência nada há de inútil: Newton encontrou a lei das forças do universo num fenômeno simplíssimo.

Tais comunicações têm outra vantagem: a de constatar a identidade dos Espíritos de modo mais preciso. Quando um Espírito nos diz que foi Sócrates ou Platão, somos obrigados a crer sob palavra porque ele não traz carteira de identidade. Podemos ver em suas palavras se desmente ou não a origem que ele se atribui: julgamo-lo Espírito elevado, eis tudo. Se realmente foi Sócrates ou Platão, pouco importa. Mas quando o Espírito de nossos parentes, de nossos amigos ou daqueles que conhecemos se nos manifesta, ocorrem mil e uma circunstâncias de detalhes íntimos, nos quais a identidade não poderia ser posta em dúvida. Dessa forma obtemos, de certo modo, a prova material. Pensamos, pois, que nos agradecerão se fizermos, de vez em quando, algumas dessas evocações íntimas: é o romance dos costumes da vida espírita — sem a ficção.



Palestras familiares de além-túmulo

O assassino Lemaire,

Condenado à pena máxima pelo Tribunal do Aisne*, foi executado a 31 de dezembro de 1857, evocado a 28 de janeiro de 1858.


* Tribunal de juízes superiores do Departamento do Aisne, no Norte da França.


1. Peço a Deus Todo Poderoso permitir que o assassino Lemaire, executado a 31 de dezembro de 1857, venha até nós.

— Eis-me aqui.

2. Como pudeste tão prontamente atender ao nosso apelo?

— Raquel o disse*.


* A srta. Raquel, evocada alguns dias antes, pela mesma médium, apresentou-se instantaneamente. A respeito deste assunto, foram-lhe feitas as seguintes perguntas:

— Como é que veio tão prontamente, no mesmo instante em que foi evocada? Dir-se-ia que já estava pronta.

— Quando Ermance (a médium) nos chama, vimos imediatamente.

— Você tem, pois, muita simpatia pela senhorita Ermance?

— Há um laço entre ela e nós. Ela vinha a nós. Nós vimos a ela.

— Não há, entretanto, semelhança no caráter de ambas. Como há simpatia?

— Jamais ela deixou inteiramente o mundo dos Espíritos.


3. Que sentimento experimentas em nossa presença?

— De vergonha.

4. Como é que uma jovem, mansa como um cordeiro, pode servir de intermediária a um ser sanguinário como tu?

— Deus o permite.

5. Conservaste toda a tua lucidez até o último instante?

— Sim.

6. Imediatamente após a tua execução, tiveste consciência de tua nova existência?

— Eu estava mergulhado numa perturbação imensa, da qual ainda não saí. Senti uma grande dor; parece que meu coração a sentiu. Vi qualquer coisa rolar ao pé do cadafalso. Vi o sangue correr e minha dor tornou-se mais pungente.

7. Era uma dor puramente física, semelhante à causada por uma ferida grave, como, por exemplo, a amputação de um membro?

— Não. Imagina um remorso, uma grande dor moral.

8. Quando começaste a sentir essa dor?

— Desde que fiquei livre.

9. A dor física causada pelo suplício foi sentida pelo corpo ou pelo Espírito?

— A dor moral estava em meu Espírito. O corpo sentiu a dor física, mas, separado, o Espírito ainda a ressentia.

10. Viste teu corpo mutilado?

— Vi qualquer coisa informe, que aparentemente eu havia deixado, entretanto sentia-me inteiro. Eu era eu mesmo.

11. Que impressão te causou essa visão?

— Eu sentia demais a minha dor. Estava dominado por ela.

12. É verdade que o corpo vive ainda alguns instantes após a decapitação e que o supliciado tem consciência de suas ideias?

— O Espírito retira-se pouco a pouco. Quanto mais o apertam os laços da matéria, mais demorada é a separação.

13. Quanto tempo dura?

— Mais ou menos. (Ver a resposta anterior.)

14. Diz-se que tem sido notada, no rosto de certos supliciados, uma expressão de cólera, além de movimentos, como se ele quisesse falar. É o efeito de uma contração nervosa ou nisto participa a vontade?

— A vontade, porque o Espírito ainda não se havia retirado.

15. Qual o primeiro sentimento que experimentaste ao entrar na nova existência?

— Um sofrimento intolerável. Uma espécie de remorso pungente, cuja causa ignorava.

16. Tu te encontraste com os teus cúmplices que foram executados ao mesmo tempo?

— Por infelicidade nossa. Vermo-nos é um suplício contínuo. Cada um condena o crime do outro.

17. Encontras as tuas vítimas?

— Eu as vejo… São felizes… Seu olhar me persegue, e eu o sinto penetrar até o fundo do meu ser… Em vão procuro fugir.

18. Que sentimento experimentas à sua vista?

— Vergonha e remorso. Eu as elevei com minhas próprias mãos e ainda as odeio.

19. Que sentimento elas experimentam quando te veem?

— De piedade!

20. Elas têm ódio e desejo de vingança?

— Não. Suas preces atraem para mim a expiação. Não podeis avaliar que horrível suplício é tudo dever àquele a quem se odeia.

21. Lamentas a vida terrena?

— Só lamento os meus crimes. Se o fato ainda dependesse de mim, eu não mais sucumbiria.

22. Como foste conduzido à vida criminosa que levaste?

— Escuta! Eu me julgava forte; escolhi uma rude prova e cedi às tentações do mal.

23. A tendência para o crime estava em tua natureza ou foste arrastado pelo meio em que viveste?

— A tendência para o crime estava em minha natureza, porque eu era um Espírito inferior. Quis elevar-me rapidamente, mas pedi mais do que comportavam as minhas forças.

24. Se tivesses recebido bons princípios de educação, poderias desviar-te da vida do crime?

— Sim, mas eu escolhi a posição em que nasci.

25. Terias podido agir como um homem de bem?

— Como um homem fraco, tanto incapaz para o bem quanto para o mal. Eu poderia impedir, durante a minha existência, o avanço do mal que estava em minha natureza, mas não poderia elevar-me a ponto de praticar o bem.

26. Quando vivo, acreditavas em Deus?

— Não.

27. Diz-se que te arrependeste no momento de morrer. É verdade?

— Acreditei num Deus vingador5 e temi a sua justiça.

28. Agora é mais sincero o teu arrependimento?

— Ah! Vejo aquilo que fiz!

29. Que pensas agora de Deus?

— Eu o sinto e não o compreendo.

30. Achas justo o castigo que te foi infligido na Terra?

— Sim.

31. Esperas obter o perdão de teus crimes?

— Não sei.

32. Como pensas resgatar os crimes?

— Por novas provas, mas me parece que a Eternidade está entre mim e elas.

33. Como poderás expiar numa nova existência as faltas anteriores, se não te lembrares delas?

— Terei a sua intuição.

34. Essas provas serão cumpridas na Terra ou em outro mundo?

— Não sei.

35. Onde te achas agora?

— Em meu sofrimento.

36. Pergunto em que lugar te achas agora. . .

— Perto de Ermance.

37. Estás reencarnado ou errante?

— Errante. Se estivesse reencarnado teria esperança. Já disse: parece-me que a Eternidade está entre mim e a expiação.

38. Considerando-se que estás aqui, se te pudéssemos ver, com que aparência te apresentarias?

— Sob minha forma corporal, com a cabeça separada do tronco.

39. Podes aparecer-nos?

— Não. Deixai-me!

40. Podes dizer-nos como te evadiste da prisão de Montdidier?

— Não sei mais… Meu sofrimento é tão grande que só me resta a lembrança do crime… Deixai-me!

41. Poderíamos dar algum alívio aos teus sofrimentos?

— Fazei votos para que chegue a expiação.

A rainha de Oude.*


* Esta manifestação está no livro O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, capítulo VII, sob o título Espíritos endurecidos. — Oude é um antigo reino da Índia, cuja capital é Aódia (em inglês Luknow), entre o Ganges e o Himalaia. (N. da Eq. Rev.)


Nota. Nestas conversas suprimiremos, daqui por diante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.

1. Que sensação experimentastes ao deixar a vida terrena?

— Não poderei dizer. Experimento ainda uma perturbação.

2. Sois feliz?

— Não.

3. Por que não sois feliz?

— Tenho saudades da vida… não sei… experimento uma dor pungente. A vida ter-me-ia livrado disso… gostaria que meu corpo se levantasse do sepulcro.

4. Lamentais não terdes sido enterrada em vosso país, e sim entre os cristãos?

— Sim. A terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.

5. Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?

— Foram muito mesquinhas: eu era rainha e nem todos dobraram os joelhos diante de mim… Deixai-me… Obrigam-me a falar… Não quero que saibais o que agora sou… Fui rainha, notai bem.

6. Respeitamos a vossa hierarquia e vos pedimos que respondais para nos instruirmos. Pensais que um dia vosso filho recuperará os domínios paternos?

— Por certo meu sangue reinará, pois é digno disso.

7. Ligais à reintegração de vosso filho ao trono de Oude a mesma importância de quando vivíeis?

— Meu sangue não pode ser confundido com a multidão.

8. Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?

— O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.

9. Que pensais do futuro reservado àquele país?

— A Índia será grande entre as nações.

10. Não foi possível escrever no atestado de óbito o lugar de vosso nascimento. Podereis dizer-nos agora?

— Nasci do mais nobre sangue da Índia. Creio que nasci em Delhi.

11. Vós, que vivestes nos esplendores do luxo e cercada de honras, que pensais agora?

— Elas me eram devidas.

12. A classe que ocupastes na Terra vos confere uma posição mais elevada no mundo onde hoje estais?

— Sou sempre rainha… Que me mandem escravas para me servirem!… Não sei, parece que não se preocupam comigo aqui… Entretanto eu sou sempre eu.

13. Pertencíeis à religião muçulmana ou a uma religião indiana?

— Muçulmana; mas eu era grande demais para me ocupar de Deus.

14. Que diferença notais entre a religião que profes­sáveis e a religião cristã, quanto à felicidade futura do homem?

— A religião cristã é absurda, pois considera a todos como irmãos.

15. Qual a vossa opinião sobre Maomé?

— Não era filho de rei.

16. Ele tinha uma missão divina?

— Que me importa isso?

17. Qual a vossa opinião sobre o Cristo?

— O filho de carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.

18. Que pensais do costume muçulmano de subtrair as mulheres aos olhares dos homens?

— Penso que as mulheres foram feitas para dominar. Eu era mulher.

19. Alguma vez invejastes a liberdade de que desfrutam as mulheres da Europa?

— Não. Que me importava a sua liberdade? Elas são servidas de joelhos?

20. Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?

— Que me importam as mulheres? Se me falasses de rainhas!…

21. Recordai-vos de ter tido outras existências na Terra, antes desta que acabais de deixar?

— Devo ter sido sempre rainha.

22. Por que viestes tão prontamente ao nosso apelo?

— Eu não o queria; fui forçada… Pensais que me dignaria a responder? Quem sois vós junto de mim?

23. Quem vos obrigou a vir?

— Não sei… Entretanto, aqui não deve haver ninguém maior do que eu.

24. Em que lugar aqui vos encontrais?

— Perto de Ermance.

25. Sob que forma aqui estais?

— Sou sempre rainha… Pensais que eu haja deixado de o ser? Sois pouco respeitoso… Sabei que às rainhas se fala de outra maneira.

26. Por que não vos podemos ver?

— Eu não quero.

27. Se pudéssemos ver-vos, seria com os vossos vestidos, ornatos e joias?

— Certamente!

28. Como é que tendo deixado tudo isso, vosso Espírito conservou a aparência, sobretudo de vossas vestes e joias?

— Elas não me deixaram… Sou sempre tão bela quanto era… Não sei que ideia fazeis de mim! É verdade que nunca me vistes.

29. Que impressão vos causa estardes em nosso meio?

— Se eu pudesse, não estaria aqui. Tratais-me com tão pouco respeito! Não quero que me tratem assim… Chamai-me Majestade, do contrário não responderei mais.

30. Vossa Majestade compreendia a língua francesa?

— Por que não? Eu sabia tudo.

31. Gostaria Vossa Majestade de responder em inglês?

— Não… Não me deixareis tranquila?… Quero ir embora… Deixai-me. Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?… Sou rainha e não escrava.

32. Pedimos apenas a bondade de responder ainda a duas ou três perguntas.

Resposta de São Luís, que estava presente:

— Deixai-a, pobre transviada! Tende piedade de sua cegueira. Que ela vos sirva de exemplo! Não sabeis quanto sofre o seu orgulho.

Observação. Esta conversa oferece vários ensinamentos. Evocando esta grandeza decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas muito profundas, dado o tipo de educação das mulheres daquele país. Pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um mais verdadeiro sentimento da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas terrenas. Longe disto, nela as ideias terrenas conservavam toda a sua força: é o orgulho, que nada perde de suas ilusões; que luta contra sua própria fraqueza e que, na verdade, deve sofrer muito na sua impotência. Na previsão de respostas de natureza completamente diferentes, tínhamos preparado diversas perguntas que perderam a significação. As respostas foram tão diferentes daquilo que esperávamos, como também as pessoas presentes, que não poderíamos ver nelas a influência de um pensamento estranho. Elas têm, entretanto, um cunho tão característico de personalidade, que demonstram claramente a identidade do Espírito que se manifestou.

Com razão a gente se admira de ver Lemaire, o homem degradado e manchado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de Além-Túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação muito exata da situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja posição social poderia ter nela desenvolvido o senso moral, as ideias terrenas não sofreram qualquer modificação. Parece fácil explicar a razão dessa anomalia. Por mais degradado que fosse, Lemaire vivia no meio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido sobre sua natureza grosseira; sem o perceber, havia absorvido alguns raios da luz que o cercava e essa luz fez nascer nele pensamentos abafados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir.

A situação é completamente outra com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a falta absoluta de cultura intelectual, tudo devia ter contribuído para manter em todo o seu vigor as ideias de que se imbuíra na infância. Nada pôde modificar essa natureza primitiva sobre a qual os preconceitos mantiveram todo o seu império.

O Dr. Xavier.
Diversas questões psicofisiológicas.

Um médico de grande talento, que designaremos pelo nome de Xavier, falecido há alguns meses, havia-se ocupado muito de magnetismo e deixara um manuscrito que supunha viesse revolucionar a ciência. Antes de morrer havia lido o Livro dos Espíritos e desejado um contato com seu autor. A moléstia de que sucumbiu não o permitira. Sua evocação foi feita a pedido de sua família, e as respostas, eminentemente instrutivas, levaram-nos a inseri-la nesta coletânea, mas suprimindo tudo o que era de interesse particular.

1. Lembrai-vos do manuscrito que deixastes?

— Ligo-lhe pouca importância.

2. Qual a vossa opinião atual sobre ele?

— Obra vã de um ser que se ignorava a si mesmo.

3. Entretanto, pensáveis que essa obra revolucionaria a ciência.

— Agora vejo muito claramente.

4. Como Espírito, poderíeis corrigir e acabar o manuscrito?

— Parti de um ponto que conhecia mal. Talvez tivesse que refazer tudo.

5. Sois feliz ou infeliz?

— Espero e sofro.

6. Que esperais?

— Novas provas.

7. Qual a causa de vossos sofrimentos?

— O mal que fiz.

8. Entretanto, não fizestes o mal intencionalmente.

— Conheces bem o coração humano?

9. Sois errante ou encarnado?

— Errante.

10. Quando vivo, qual a vossa opinião sobre a Divindade?

— Não acreditava nela.

11. E agora?

— Não creio bastante.

12. Desejáveis entrar em contato comigo. Lembrai-vos disto?

— Sim.

13. Vedes-me e reconheceis-me como a pessoa com quem desejáveis entrar em relação?

— Sim.

14. Que impressão vos deixou o Livro dos Espíritos?

— Ele me desconcertou.

15. Que pensais dele agora?

— É uma grande obra.

16. Que pensais do futuro da doutrina espírita?

— É grande, mas certos discípulos a prejudicam.

17. Quais os que a prejudicam?

— Os que atacam coisas reais: as religiões, as primeiras e mais simples crenças dos homens.

18. Como médico e em razão dos estudos que fizestes, sem dúvida podeis responder às seguintes perguntas: Pode o corpo conservar por alguns instantes a vida orgânica após a separação da alma?

— Sim.

19. Por quanto tempo?

— Não há tempo.

20. Peço que esclareçais a resposta.

— Isto dura apenas alguns instantes.

21. Como se opera a separação entre a alma e corpo?

— Como um fluido que se escapa de um recipiente qualquer.

22. Há uma linha de separação real entre a vida e a morte?

— Os dois estados se tocam e se confundem. Assim, o Espírito se desprende pouco a pouco de seus laços; desata-os e não os arrebenta.

23. Esse desprendimento da alma opera-se mais prontamente nuns que noutros?

— Sim, nos que em vida se elevaram acima da matéria, pois sua alma pertence mais ao mundo dos Espíritos que ao terrestre.

24. Em que momento se opera a união entre alma e corpo na criança?

— Quando a criança respira, como se ela recebesse a alma com o ar exterior.

Observação. Esta opinião é consequência do dogma católico. Realmente a Igreja ensina que a alma só será salva pelo batismo; ora, como a morte natural intrauterina é muito frequente, que aconteceria a essa alma que, segundo a Igreja, fosse privada do único meio de salvação, caso existisse no corpo antes do nascimento? Para ser coerente, seria necessário que o batismo fosse realizado, senão de fato, pelo menos intencionalmente, depois do momento da concepção.

25. Como, então, explicais a vida intrauterina?

— Como a planta que vegeta. A criança vive sua vida animal.

26. Há crime em privar a criança da vida antes de nascer, considerando-se que nessa época a criança não tem alma e, pois, não é um ser humano?

— A mãe ou qualquer outra pessoa que tirasse a vida a uma criança antes de nascer cometeria um crime, pois impediria uma alma de suportar as provas de que o corpo deveria ser instrumento.

27. Não obstante, dar-se-ia a expiação que deveria sofrer a alma impedida de reencarnar?

— Sim, mas Deus sabia que a alma não se uniria àquele corpo. Assim, nenhuma alma deveria unir-se àquele envoltório corporal: era a prova da mãe.

28. Caso a vida da mãe corresse perigo com o nascimento da criança, haveria crime em sacrificar esta para salvar aquela?

— Não. É preferível sacrificar o ser que não existe ao que existe.

29. A união entre alma e corpo opera-se instantânea ou gradualmente, isto é, será necessário um tempo apreciável para que tal união seja completa?

— O Espírito não entra bruscamente no corpo. Para medir esse tempo, imaginai que o primeiro sopro que a criança recebe é a alma que entra no corpo: o tempo em que o peito se eleva e se abaixa.

30. A união da alma com tal ou qual corpo é predestinada ou a escolha só se verifica no momento de nascer?

— Deus a marcou. Esta questão requer maiores desenvolvimentos. Escolhendo a prova que quer passar, o Espírito pede para encarnar. Ora, Deus, que tudo sabe e tudo vê, soube e viu previamente que tal alma unir-se-ia a tal corpo. Quando o Espírito nasce nas baixas camadas sociais, sabe que sua vida será de labor e sofrimento. A criança que vai nascer tem uma existência que resulta, até certo ponto, da posição dos pais.

31. Por que pais bons e virtuosos têm filhos de natureza perversa? Por outras palavras, por que as boas qualidades dos pais não atraem sempre, por simpatia, um bom Espírito para lhes animar o filho?

— Um mau Espírito pede bons pais, na esperança de que seus conselhos o dirijam por melhor caminho.

32. Podem os pais, pelo pensamento e pela prece, atrair para o corpo da criança um bom Espírito ao invés de um inferior?

— Não. Podem, entretanto, melhorar o Espírito da criança a que deram nascimento. É seu dever. Os maus filhos são uma prova para os pais.

33. Compreende-se o amor materno pela conservação da vida do filho, mas, levando-se em conta que esse amor está em a Natureza, por que há mães que odeiam os filhos, e isto muitas vezes desde o nascimento?

— Maus Espíritos que procuram entravar o Espírito da criança, a fim de que sucumba na prova que desejou.

34. Agradecemos as explicações que nos destes.

— Para vos instruir, tudo farei.

Nota: A teoria dada por este Espírito sobre o instante da união da alma ao corpo não é bem exata. A união começa desde a concepção, isto é, desde o momento em que o Espírito, sem estar encarnado, liga-se ao corpo por um laço fluídico que se vai reforçando cada vez mais, até o nascimento. A encarnação só se completa quando a criança respira (Vide o Livro dos Espíritos, n.º 344 e seguintes).


O Sr. Home — II

Como dissemos, o Sr. Home é um médium do gênero daqueles sob cuja influência se produzem, mais especialmente, fenômenos físicos, sem excluir por isso as manifestações inteligentes. Todo efeito que revela a ação de uma vontade livre é, por isso mesmo, inteligente, isto é, deixa de ser puramente mecânico e não poderia ser atribuído a um agente exclusivamente material. Daí às comunicações instrutivas de um elevado alcance moral e filosófico há, entretanto, uma grande distância e não é de nosso conhecimento que o Sr. Home as obtenha de tal natureza. Não sendo um médium escrevente, a maioria das respostas são dadas por batidas vibradas, indicativas das letras do alfabeto, meio sempre imperfeito e bastante lento que dificilmente se presta a desenvolvimentos de certa extensão. Entretanto, ele também consegue a escrita, mas por processo de que falaremos daqui a pouco.

Digamos, de início, como princípio geral, que as manifestações ostensivas, aquelas que nos chocam os sentidos, podem ser espontâneas ou provocadas. As primeiras são independentes da vontade; muitas vezes, mesmo, dão-se contra a vontade daquele que lhes é objeto e para quem nem sempre são agradáveis. Fatos deste gênero são frequentes e, sem remontar aos relatos mais ou menos autênticos dos tempos remotos, a História contemporânea oferece-nos numerosos exemplos cuja causa, a princípio ignorada, está hoje perfeitamente conhecida: tais são, por exemplo, os ruídos insólitos, os movimentos desordenados dos objetos, o puxar de cortinas, o arrancar das cobertas, certas aparições, etc.

Algumas pessoas são dotadas de uma faculdade especial que lhes dá o poder de provocar esses fenômenos, ao menos parcialmente, por assim dizer, à vontade. Essa faculdade não é muito rara e, em cem pessoas, pelo menos cinquenta a possuem, em maior ou menor grau.

O que distingue o Sr. Home é que nele a faculdade está desenvolvida, como nos médiuns de sua espécie, de modo por assim dizer excepcional. Uns não conseguem mais do que leves pancadas ou um insignificante deslocamento de uma mesa, enquanto que sob a influência do Sr. Home fazem-se ouvir os ruídos mais retumbantes e todo o mobiliário de uma sala pode ser revirado e os móveis amontoados uns sobre os outros. Por mais surpreendentes que pareçam tais fenômenos, o entusiasmo de alguns admiradores muito zelosos ainda achou um jeito de amplificá-los por meio de pura invencionice. Por outro lado, os detratores não ficaram inativos: contaram a seu respeito toda sorte de histórias que só se passaram em sua imaginação.

Eis um exemplo:

O Marquês de…, uma das figuras que mais interesse demonstraram pelo Sr. Home, e em cuja residência ele era recebido na intimidade, achava-se um dia com ele na ópera. Na plateia estava o Sr. P…, um dos nossos assinantes, que conhece ambos pessoalmente. Seu vizinho estabelece conversa com ele. O assunto é o Sr. Home.

─ O senhor acreditaria, diz ele, que aquele pretenso feiticeiro, aquele charlatão, encontrou meios de penetrar em casa do Marquês de… mas os seus artifícios foram descobertos e ele foi posto na rua a pontapés, como um vil intrigante?

─ O senhor tem certeza? pergunta o Sr. P… O senhor conhece o marquês?

─ Certamente, responde o interlocutor.

─ Nesse caso, retorquiu o Sr. P…, olhe para aquele camarote. O senhor poderá vê-lo, em companhia do próprio Home, no qual não parece que queira dar pontapés.

Diante disso, o nosso infeliz narrador, achando melhor não continuar a conversa, tomou o chapéu e desapareceu.

Por aí se pode avaliar o valor de certas afirmações. Por certo, se alguns fatos divulgados pela maledicência fossem verdadeiros, ter-lhe-iam fechado muitas portas. Entretanto, como as casas mais respeitáveis sempre lhe estiveram abertas, é de concluir-se que sempre e por toda parte ele se conduziu como um cavalheiro. Aliás, basta haver conversado um pouco com o Sr. Home para ver que, com a sua timidez e sua simplicidade de caráter, ele seria o mais desajeitado dos embusteiros. Insistimos neste ponto pela moralidade da causa.

Voltemos às suas manifestações.

Como o nosso objetivo é dar a conhecer a verdade, no interesse da ciência, tudo quanto relataremos foi colhido em fontes de tal maneira autênticas que lhe podemos garantir a mais escrupulosa exatidão: obtivemo-lo de testemunhas oculares muito sérias, muito esclarecidas e altamente colocadas, de modo que sua sinceridade não poderá ser posta em dúvida. Se se dissesse que tais pessoas poderiam ter sido, de boa-fé, vítimas de uma ilusão, responderíamos que há circunstâncias que afastam toda suposição desse gênero. Aliás, tais pessoas estavam muito interessadas em conhecer a verdade para não se premunirem contra qualquer falsa aparência.

Geralmente o Sr. Home inicia suas sessões pelos fatos conhecidos: pancadas numa mesa, ou em qualquer outra parte do apartamento, pela maneira como já o descrevemos. Vem a seguir o movimento da mesa, que se opera, a princípio, pela imposição de mãos, dele só ou de várias pessoas reunidas, depois à distância e sem contato: é uma espécie de ensaio. Muito frequentemente ele não obtém mais que isto. Depende da disposição em que se encontra e, algumas vezes também, da dos assistentes. Há pessoas perante as quais jamais produziu coisa alguma, mesmo pessoas amigas. Não nos alongaremos sobre esses fenômenos hoje tão conhecidos e que não se distinguem senão por sua rapidez e energia. Muitas vezes, após várias oscilações e balanços, a mesa se destaca do solo e eleva-se gradativamente, lentamente, por pequenos impulsos, não apenas alguns centímetros, mas até o teto e fora do alcance das mãos. Depois de haver ficado suspensa no espaço durante alguns segundos, desce como havia subido, lentamente, gradativamente.

A suspensão de um corpo inerte e de um peso específico incomparavelmente maior que o do ar é um fato conhecido e, pois, compreende-se que o mesmo se possa dar com um corpo animado. Não nos consta que o Sr. Home tivesse agido sobre outra pessoa além dele mesmo; ainda assim o fato não ocorreu só em Paris, mas em vários lugares, tanto em Florença quanto na França, e principalmente em Bordéus, em presença das mais respeitáveis testemunhas, cujos nomes citaríamos, caso fosse preciso.

Como a mesa, ele foi elevado até o teto e desceu do mesmo modo. O que há de bizarro neste fenômeno é que não se produz por um ato de sua vontade. Ele mesmo nos disse que não se apercebe do fato e pensa que está sempre no solo, salvo quando olha para baixo. São as testemunhas que o veem elevar-se. Quanto a ele, nesses momentos experimenta a sensação produzida pelo balanço do navio sobre as ondas. Aliás, este fato não é absolutamente peculiar ao Sr. Home. A História registra diversos exemplos autênticos, que relataremos posteriormente.

De todas as manifestações produzidas pelo Sr. Home, a mais extraordinária é, sem dúvida, a das aparições, razão por que nelas mais insistimos, à vista das graves consequências daí decorrentes e da luz que elas lançam sobre uma porção de outros fatos. O mesmo se dá com os sons produzidos no ar; instrumentos de música que tocam sozinhos, etc. Examinaremos tais fenômenos detalhadamente no próximo número.

De volta de uma viagem à Holanda, onde produziu uma sensação profunda na corte e na alta sociedade, o Sr. Home acaba de partir para a Itália. Com a saúde gravemente alterada, ele necessitava de um clima mais suave.

Confirmamos prazerosamente a notícia dada por alguns jornais, de um legado de 6.000 francos de renda que lhe fez uma senhora inglesa por ele convertida à doutrina espírita e em reconhecimento pela satisfação que ela experimentou. Sob todos os aspectos, o Sr. Home merecia esta prova de consideração. De parte da doadora, o ato é um precedente que terá o aplauso de todos quantos partilham de nossas convicções. Esperemos que um dia a doutrina tenha o seu Mecenas: a posteridade inscreverá seu nome entre os benfeitores da humanidade.

A Religião nos ensina a existência da alma e a sua imortalidade; o Espiritismo dá-nos a sua prova viva e palpável, não mais pelo só raciocínio, mas também pelos fatos.

O materialismo é um dos vícios da sociedade atual, porque engendra o egoísmo. Que há, realmente, fora do eu, para que tudo seja referido à matéria e à vida presente?

Intimamente ligada às ideias religiosas, esclarecendo-nos sobre a nossa natureza, a doutrina espírita nos mostra a felicidade na prática das virtudes evangélicas; ela lembra ao homem os seus deveres para com Deus, para com a sociedade e para consigo mesmo. Ajudar na sua propagação é desferir um golpe mortal na chaga do cepticismo que nos invade como um mal contagioso. Honra, pois, aos que empregam nessa obra os bens com que Deus os favoreceu na Terra!

Magnetismo e Espiritismo.

Quando apareceram os primeiros fenômenos espíritas, algumas pessoas pensaram que essa descoberta, se é que se pode usar esta palavra, iria desferir um golpe de morte no magnetismo, e que aconteceria como ocorre nas invenções: a mais aperfeiçoada determina o esquecimento de sua predecessora. Tal erro não tardou a se dissipar e prontamente se reconheceu o parentesco próximo das duas ciências. Com efeito, baseando-se ambas na existência e na manifestação da alma, longe de se combaterem, podem e devem prestar-se mútuo apoio, pois elas se completam e se explicam mutuamente. Entretanto, seus respectivos adeptos discordam nalguns pontos: certos magnetistas ainda não admitem a existência ou, pelo menos, a manifestação dos Espíritos. Eles pensam que podem tudo explicar só pela ação do fluido magnético, opinião que nos limitamos a constatar, reservando-nos para discuti-la mais tarde. Nós mesmos a partilhávamos a princípio, mas, como tantos outros, tivemos que nos render à evidência dos fatos.

Ao contrário, os adeptos do Espiritismo são todos concordes com o magnetismo. Todos admitem sua ação e reconhecem nos fenômenos sonambúlicos uma manifestação da alma. Esta oposição, aliás, se enfraquece dia a dia, e é fácil prever que não está longe o dia em que cessará qualquer distinção. Tal divergência de opiniões nada tem de surpreendente. No começo de uma ciência ainda tão nova, é muito fácil que cada um, olhando as coisas de seu ponto de vista, dela forme uma ideia diferente. As ciências mais positivas tiveram sempre, e têm ainda, suas escolas, que sustentam ardorosamente teorias contrárias. Os cientistas têm levantado escola contra escola, bandeira contra bandeira e, muitas vezes, para sua dignidade, as polêmicas se tornaram irritantes e agressivas para o amor próprio ofendido, ultrapassando os limites de uma sábia discussão. Esperemos que os sectários do magnetismo e do Espiritismo, melhor inspirados, não deem ao mundo o escândalo de discussões tão pouco edificantes e sempre fatais à propagação da verdade, seja qual for o lado em que ela esteja.

Podemos ter nossa opinião, sustentá-la e discuti-la, mas o meio de nos esclarecermos não é nos digladiando, processo pouco digno de homens sérios e que se torna ignóbil desde que entre em jogo o interesse pessoal.

O magnetismo preparou o caminho do Espiritismo, e os rápidos progressos desta última doutrina são incontestavelmente devidos à vulgarização das ideias sobre a primeira. Dos fenômenos magnéticos, do sonambulismo e do êxtase às manifestações espíritas há apenas um passo. Sua conexão é tal que, por assim dizer, é impossível falar de um sem falar do outro. Se tivermos que ficar fora da ciência do magnetismo, nosso quadro ficará incompleto e poderemos ser comparados a um professor de Física que se abstivesse de falar da luz. Contudo, como o magnetismo já possui entre nós órgãos especiais justamente acreditados, seria supérfluo insistirmos sobre um assunto já tratado com superioridade de talento e de experiência. A ele não nos referiremos, pois, senão acessoriamente, mas de maneira suficiente para mostrar as relações íntimas das duas ciências que, na verdade, não passam de uma.

Devíamos aos nossos leitores esta profissão de fé, que terminamos com uma justa homenagem aos homens de convicção que, enfrentando o ridículo, o sarcasmo e os dissabores, dedicaram-se corajosamente à defesa de uma causa tão humanitária.

Seja qual for a opinião dos contemporâneos sobre o seu proveito pessoal, opinião que é sempre mais ou menos o reflexo das paixões vivazes, a posteridade far-lhes-á justiça: ela colocará os nomes do Barão Du Potet, diretor do Journal du Magnétism; do Sr. Millet, diretor da Union Magnétique, ao lado de seus ilustres pioneiros, o Marquês de Puységur e o sábio Deleuze. Graças aos seus esforços perseverantes, o magnetismo, popularizado, fincou pé na ciência oficial, onde já se fala dele aos cochichos. Este vocábulo passou à linguagem comum: já não afugenta e, quando alguém se diz magnetizador, já não riem mais ao seu rosto.

Allan Kardec.




Abril

Período psicológico.

Conquanto as manifestações espíritas se tenham verificado em todos os tempos, é incontestável que hoje se produzem de maneira excepcional. Interrogados sobre a matéria, os Espíritos foram unânimes na resposta: “São chegados os tempos marcados pela Providência para uma manifestação universal. Têm eles o encargo de dissipar as trevas da ignorância e dos preconceitos. É uma era nova que começa e que prepara a regeneração da humanidade”. Este pensamento acha-se desenvolvido de maneira notável numa carta que recebemos de um de nossos assinantes, da qual extraímos a seguinte passagem:

“Cada coisa tem seu tempo. O período que acaba de escoar-se parece ter sido especialmente destinado pelo Todo-Poderoso ao progresso das ciências físicas e matemáticas, e é provavelmente com o fito de dispor os homens aos conhecimentos exatos que ele se opôs, durante tanto tempo, à manifestação dos Espíritos, como se esta mesma manifestação pudesse ser prejudicial ao positivismo exigido pelo estudo das ciências. Numa palavra, quis habituar o homem a procurar nas ciências de observação a explicação de todos os fenômenos que a seus olhos se deviam produzir.

“Parece que o período científico chega hoje a seu termo. Após os imensos progressos nele realizados, não seria impossível que o novo período, que deve suceder àquele, fosse consagrado pelo Criador às iniciações de ordem psicológica. Na imutável lei de perfectibilidade estabelecida para os seres humanos, que pode ele fazer, depois de havê-los iniciado nas leis físicas do movimento e de lhes haver revelado motores com os quais mudam a face do globo? O homem sondou as profundezas mais longínquas do espaço; a marcha dos astros e o movimento geral do universo já lhe não guardam segredos; lê nas camadas geológicas a história da formação do globo; a luz se transforma, à sua vontade, em imagens duradouras; domina o raio; com o vapor e a eletricidade suprime as distâncias e o pensamento atravessa o espaço com a rapidez do relâmpago. Chegado a este ponto culminante, ao qual a História da humanidade não oferece nenhum símile, qualquer que tenha sido o seu grau de avanço nas eras remotas, parece-me razoável pensar que a ordem psicológica lhe abre uma nova estrada na via do progresso. É, pelo menos, o que se poderia induzir dos fatos que se produzem em nossos dias e se multiplicam por todos os lados. Esperemos, pois, que se aproxime o momento — se é que ainda não chegou — em que o Todo-Poderoso vai iniciar-nos em novas, grandes e sublimes verdades.

A nós cabe compreendê-lo e secundá-lo na obra da regeneração.

Esta carta é do Sr. Georges, do qual falamos em nosso primeiro número. Cabe-nos apenas felicitá-lo por seu progresso na doutrina. Os elevados pontos de vista que desenvolve demonstram que a compreende sob seu verdadeiro prisma. Para ele a doutrina não se resume na crença nos Espíritos e em suas manifestações: é toda uma filosofia. Como ele, admitimos que entramos no período psicológico. Os motivos que nos apresenta são perfeitamente racionais, posto não pensemos que o período científico tenha dito a última palavra; ao contrário, supomos que ainda nos reserva muitos outros prodígios. Estamos numa época de transição, na qual se confundem os caracteres dos dois períodos.

Os conhecimentos que os antigos possuíam sobre as manifestações dos Espíritos não serviriam de argumento contra a ideia do período psicológico que se prepara. Com efeito, notemos que na Antiguidade esses conhecimentos se limitavam a um estreito círculo de homens de escol. Sobre eles tinha o povo apenas algumas ideias, falseadas pelos preconceitos e desfiguradas pelo charlatanismo dos sacerdotes, que delas se serviam como um meio de dominação. Como já dissemos alhures, jamais esses conhecimentos se perderam: ficaram como fatos isolados, certamente porque não eram ainda chegados os tempos para que fossem compreendidos. Aquilo que hoje se passa tem um caráter completamente diverso: as manifestações são gerais; chocam a sociedade de alto a baixo. Os Espíritos já não ensinam nos recessos misteriosos dos templos, inacessíveis ao vulgo. Esses fatos se passam em plena luz. Eles falam uma linguagem a todos inteligível.

Tudo, pois, anuncia, do ponto de vista moral, uma nova fase para a humanidade.

O Espiritismo entre os druidas.

Sob o título Le vieux neuf*, o Sr. Edouard Fournier publicou, há dez anos, no Le Siècle, uma série de artigos tão notáveis, do ponto de vista de erudição, quanto interessantes em relação à História. Passando em revista todas as invenções e descobertas modernas, prova o autor que se o nosso século tem o mérito da aplicação e do desenvolvimento, não tem — pelo menos quanto à maior parte delas — o da prioridade. Na época em que o Sr. Fournier escrevia esses magníficos folhetins, ainda não se cogitava de Espíritos, sem o que não teria ele deixado de sublinhar que tudo quanto se passa hoje é mera repetição daquilo que os antigos sabiam tão bem ou melhor do que nós. Nós o lamentamos, porque suas profundas investigações ter-lhe-iam permitido escavar a antiga mística, tanto quanto escavou a Antiguidade industrial. Fazemos votos para que as suas laboriosas pesquisas sejam um dia dirigidas para esse lado.


* O velho novo.


Quanto a nós, as observações pessoais nenhuma dúvida nos deixam relativamente à Antiguidade e à universalidade da doutrina ensinada pelos Espíritos. A coincidência entre o que hoje nos dizem e as crenças das mais remotas eras é um fato significativo do mais elevado alcance. Faremos notar, entretanto, que se encontramos por toda parte os traços da doutrina espírita, em parte alguma a vemos completa. Parece ter sido reservada à nossa época a tarefa de coordenar esses fragmentos esparsos entre todos os povos, a fim de chegarmos à unidade de princípios, através de um conjunto mais completo e sobretudo mais geral de manifestações que, ao que parece, dão razão ao autor do artigo citado pouco antes, sobre o período psicológico no qual aparentemente vai entrando a humanidade.

Quase que por toda parte a ignorância e os preconceitos desfiguraram essa doutrina, cujos princípios fundamentais se misturam às práticas supersticiosas de todos os tempos, exploradas com o fim de abafar a razão. Entretanto, sob esse amontoado de absurdos germinavam as mais sublimes ideias, como sementes preciosas ocultas sob as sarças, à espera da luz vivificante do sol para se desenvolverem. Mais universalmente esclarecida, nossa geração afasta as sarças.

Esse arroteamento, entretanto, não pode ser feito sem transição.

Deixemos, pois, às boas sementes, o tempo necessário ao seu desenvolvimento e às más ervas o tempo para desaparecerem.

A doutrina druídica oferece-nos um curioso exemplo daquilo que acabamos de dizer. Essa doutrina, de que não conhecemos mais que as práticas exteriores, elevava-se, sob certos aspectos, às mais sublimes verdades. Mas essas verdades eram apenas para os iniciados: apavorado pelos sacrifícios sangrentos, o público colhia com santo respeito o agárico sagrado do carvalho e via apenas a fantasmagoria. Poderemos avaliá-lo pela citação do texto que segue, extraído de um documento tão precioso quão desconhecido, o qual lança uma luz completamente nova sobre a verdadeira teologia de nossos ancestrais.

“Oferecemos à reflexão de nossos leitores um texto céltico, há pouco publicado, cujo aparecimento causou certa emoção no mundo culto. É impossível ter certeza de sua autoria, bem como a que século remonta. É incontestável, entretanto, que pertence à tradição dos bardos do País de Gales, e essa origem é suficiente para conferir-lhe um valor de primeira grandeza.

“Sabe-se, com efeito, que o País de Gales é, ainda em nossos dias, o mais fiel asilo da nacionalidade gaulesa, que entre nós sofreu modificações muito profundas. Apenas roçada pela dominação romana, que nela se deteve pouco tempo e fracamente; preservada da invasão dos bárbaros pela energia de seus habitantes e pelas dificuldades de seu território; submetida, mais tarde, à dinastia normanda, a qual, entretanto, se viu obrigada a lhe deixar um certo grau de independência, o nome de Gales, Gallia, que sempre conservou, é um traço distintivo, pelo qual se liga, sem descontinuidades, ao período antigo.

“A língua kymrica, falada outrora em toda a parte setentrional da Gália, jamais deixou de ser usada, e muitos costumes são igualmente gauleses. De todas as influências estranhas, a única que logrou um triunfo completo foi o Cristianismo. Mas não o conseguiu sem grandes dificuldades, relativamente à supremacia da Igreja Romana, cuja reforma, no século XVI, não fez mais que determinar-lhe a queda há tanto tempo preparada nessas regiões cheias de um sentimento de indefectível independência.

“Pode-se mesmo dizer que, convertendo-se ao Cristianismo, os druidas não se extinguiram totalmente no País de Gales, como na nossa Bretanha e em outras regiões de sangue gaulês. Tiveram como consequência imediata uma sociedade muito solidamente constituída, aparentemente dedicada principalmente ao culto da poesia nacional, mas que, sob o manto poético, conservou com uma fidelidade notável a herança intelectual da Gália antiga: a Sociedade Bárdica do País de Gales, que, depois de se haver mantido como sociedade secreta durante toda a Idade Média, por uma transmissão oral de seus monumentos literários e de sua doutrina, à semelhança do que faziam os druidas, decidiu-se, ao redor dos séculos XVI e XVII, a confiar à escrita as partes mais essenciais dessa herança. Desse acervo, cuja autenticidade é assim atestada por uma cadeia tradicional ininterrupta, procede o texto de que falamos, e o seu valor, dadas essas circunstâncias, não depende, como se vê, da mão que teve o mérito de escrevê-lo, nem da época em que sua redação pôde assumir sua forma definitiva. O que ali transpira, acima de tudo, é o espírito dos bardos medievais, que por sua vez eram os últimos discípulos dessa corporação sábia e religiosa que, sob o nome de druidas, dominou a Gália durante o primeiro período de sua História, mais ou menos à maneira que o fez o clero latino durante a Idade Média.

“Ainda mesmo que estivéssemos privados de todas as luzes quanto à origem do texto de que se trata, é claro que estaríamos na via certa, dada sua concordância com os ensinamentos que os autores gregos e latinos nos deixaram relativamente à doutrina religiosa dos druidas. Constitui-se essa concordância de pontos indubitáveis de solidariedade, porque se apoiam em razões tiradas da própria substância de tais escritos. A solidariedade assim demonstrada em relação aos artigos capitais — os únicos de que nos falaram os Antigos — estende-se, naturalmente, aos desenvolvimentos secundários. Com efeito, penetrados do mesmo espírito, esses desenvolvimentos derivam necessariamente da mesma fonte; fazem corpo com o fundo e não se podem explicar senão por ele. Ao mesmo tempo que, por uma dedução tão lógica, eles remontam aos primitivos depositários da religião druídica, é impossível assinalar-lhes qualquer outro ponto de partida, porque, fora da influência druídica, a região de onde promanam não sofreu nenhuma outra, além da influência cristã, que é totalmente estranha a tais doutrinas.

“Os temas desenvolvidos nas tríades estão mesmo tão completamente fora do Cristianismo que as raras influências cristãs que aqui e ali se infiltraram no seu conjunto, logo à primeira vista se distinguem do fundo primitivo. Essas influências, oriundas ingenuamente da consciência dos bardos cristãos, mal conseguiram, se assim se pode dizer, ser intercaladas nos interstícios da tradição, mas não lograram fundir-se com ela. A análise do texto é, pois, tão simples quão rigorosa, pois pode reduzir-se a pôr de lado tudo quanto traz o selo do Cristianismo e, uma vez operada a triagem, considerar como de origem druídica tudo quanto fica visivelmente caracterizado por uma religião diferente da do Evangelho e dos Concílios.

Assim, para citar apenas o que é essencial, partindo do tão conhecido princípio de que o dogma da caridade em Deus e no homem é tão peculiar ao Cristianismo quanto o da migração das almas o é ao antigo Druidismo, um certo número de tríades, nas quais respira um espírito de amor jamais conhecido na Gália primitiva, traem-se imediatamente como as marcas de um caráter comparativamente moderno, ao passo que as outras, animadas por um sopro completamente diferente, revelam ainda melhor o cunho de alta Antiguidade que os distingue.

“Enfim, não é demais observar que a própria forma do ensino contido nas tríades é de origem druídica. Sabe-se que os druidas tinham uma predileção particular pelo número três e o empregavam especialmente, como no-lo mostram a maioria dos monumentos gauleses, para a transmissão de suas lições que, mediante essa forma precisa, mais facilmente era gravada na memória. Diógenes Laércio nos conservou uma dessas tríades, que resume sucintamente o conjunto de deveres do homem para com a Divindade, para com os semelhantes e para consigo mesmo: “Honrar os seres superiores, não cometer injustiça e cultivar em si a virtude viril”. A literatura dos bardos propagou inúmeros aforismos do mesmo gênero, relativos a todos os ramos do saber humano: Ciência, História, Moral, Direito, Poesia. Não os há mais interessantes nem mais adequados a inspirar grandes reflexões do que aqueles cujo texto publicamos a seguir, conforme a versão francesa do Sr. Adolphe Pictet.

“Desta série de tríades, as onze primeiras são consagradas à exposição dos atributos característicos da Divindade. É nesse segmento que a influência cristã, como era fácil de prever, teve a maior influência. Se não se pode negar que o Druidismo tenha conhecido o princípio da unidade de Deus, talvez por sua predileção pelo número ternário tenha concebido, de modo confuso, algo como a divina Trindade. É contudo incontestável que o que completa essa alta concepção teológica — a saber, a distinção das pessoas e, particularmente, da terceira — ficou completamente estranho a essa antiga religião. Tudo conduz à prova de que seus antigos sectários se preocupavam muito mais em estabelecer a liberdade do homem do que a caridade. Foi precisamente em consequência dessa falsa posição do ponto de partida que ela pereceu. Também parece razoável associar a uma influência cristã, mais ou menos determinada, todo esse exórdio, principalmente a partir da quinta tríade.

“Em seguida aos princípios gerais relativos à natureza de Deus, passa o texto a expor a constituição do universo. O conjunto dessa constituição é formulado superiormente em três tríades que, mostrando os seres particulares numa ordem absolutamente diferente daquela de Deus, completam a ideia que deve ser feita do Ser único e imutável. Sob fórmulas mais explícitas, essas tríades mais não fazem, entretanto, que reproduzir aquilo que já era sabido, pelo testemunho dos antigos, sobre a doutrina da circulação das almas, passando alternativamente da vida à morte e da morte à vida. Podemos considerá-los como o comentário de um verso célebre da Farsália*, no qual o poeta exclama, dirigindo-se aos sacerdotes da Gália, que se aquilo que ensinam é certo, a morte não é mais que o meio de uma longa vida: Longae vitae mors media est.”


* Poema de Lucano, poeta latino natural de Córdoba, na Espanha. Consta de 10 livros e narra a guerra civil entre César e Pompeu. (N. do T.)

Deus e o universo.

I. — Há três unidades primitivas e de cada uma delas não poderia existir mais que uma: um Deus, uma verdade e um ponto de liberdade, isto é, o ponto onde se encontra o equilíbrio de toda oposição.

II. — Três coisas procedem das três unidades primitivas: toda vida, todo bem e todo poder.

III. — Deus é necessariamente três coisas: a maior parte da vida, a maior parte da ciência e a maior parte do poder. De cada coisa não poderia haver uma parte maior.

IV. — Três coisas Deus não pode deixar de ser: o que deve constituir o bem perfeito, o que deve querer o bem perfeito e o que deve realizar o bem perfeito.

V. — Três garantias do que Deus faz e fará: seu poder infinito, sua sabedoria infinita e seu amor infinito, pois não há nada que não possa ser efetuado, que não possa tornar-se verdadeiro e que não possa ser desejado por um atributo.

VI. — Três fins principais da obra de Deus, como Criador de todas as coisas: diminuir o mal, reforçar o bem e esclarecer toda diferença, de modo que se possa saber o que deve ser ou, ao contrário, o que não deve ser.

VII. — Três coisas que Deus não pode deixar de conceder: o que há de mais vantajoso, o que há de mais necessário e o que há de mais belo para cada coisa.

VIII. — Três forças da existência: não poder ser de outro modo, não ser necessariamente outra e não poder ser melhor pela concepção. Nisto está a perfeição de todas as coisas.

IX. — Três coisas prevalecerão necessariamente: o supremo poder, a suprema inteligência e o supremo amor de Deus.

X. — As três grandezas de Deus: vida perfeita, ciência perfeita, poder perfeito.

XI. — Três causas originais dos seres vivos: o amor divino, de acordo com a suprema inteligência; a sabedoria suprema, pelo conhecimento perfeito de todos os meios; o poder divino, de acordo com a vontade, o amor e a sabedoria de Deus.

Os três círculos.

XII. — Há três círculos de existência: o círculo da região vazia (ceugant) onde, exceto Deus, não há nada vivo nem morto e nenhum ser que Deus não possa penetrar; o círculo da migração (abred) onde todo ser animado procede da morte, que o homem atravessou; e o círculo da felicidade (gwynfyd), onde todo ser animado procede da vida, e que o homem atravessará no céu.
XIII. — Três estados sucessivos dos seres animados: o estado de humilhação no abismo (annoufn), o estado de liberdade na humanidade e o estado de felicidade no céu.

XIV. — Três fases necessárias de toda existência em relação à vida: o começo em annoufn; a transmigração em abred e a plenitude em gwynfyd. Sem estas três coisas nada pode existir, exceto Deus.

“Assim, em resumo, sobre o ponto capital da Teologia cristã de que Deus, por seu poder criador, tira as almas do nada, as tríades não se pronunciam de maneira precisa. Depois de haver mostrado Deus na esfera eterna e inacessível, elas mostram simplesmente as almas se originando nas últimas camadas do universo, no abismo (annoufn); daí essas almas passam para o círculo das migrações (abred), onde seu destino é determinado através de uma série de existências, segundo o bom ou mau uso que hajam feito de sua liberdade; por fim, elevam-se ao círculo supremo (gwynfyd), onde cessam as migrações, onde não mais se morre, onde a vida se escoa na felicidade, conservando uma atividade perpétua e a plena consciência de sua individualidade. Na verdade, o Druidismo não cai no erro das teologias orientais, que levam o homem a ser finalmente absorvido no seio imutável da Divindade, pois, ao contrário, distingue um círculo especial, o círculo do vazio ou do infinito (ceugant), que forma o privilégio incomunicável do Ser supremo, e no qual nenhum ser, seja qual for o grau de sua santidade, jamais poderá penetrar. É o ponto mais elevado da religião, porque marca o limite fixado ao progresso das criaturas.

“O traço mais característico dessa Teologia, posto seja um traço puramente negativo, consiste na ausência de um círculo particular, tal como o Tártaro da antiguidade pagã, destinado à punição sem fim das almas criminosas. Para os druidas não existe o inferno propriamente dito. A distribuição dos castigos, aos seus olhos, efetua-se no círculo das migrações, pela ligação das almas em condições de existência mais ou menos infelizes, onde, sempre senhoras de sua liberdade, expiam suas faltas pelo sofrimento e se dispõem, pela reforma de seus vícios, a um futuro melhor. Em certos casos pode mesmo acontecer que as almas retrogradem até a região do annoufn, onde nascem, e à qual quase não se pode dar outro significado senão o da animalidade. Por esse lado perigoso da retrogradação, que nada justifica, porque a diversidade de condições de existência no círculo da humanidade é perfeitamente suficiente à penalidade de todos os graus, o Druidismo teria, então, chegado a deslizar até a metempsicose. Mas esse extremo desagradável, ao qual não conduz nenhuma necessidade da doutrina do desenvolvimento das almas pela via das migrações, como se verá pela série de tríades relativas ao regime do círculo de abred, parece ter ocupado no sistema da religião um lugar secundário.

“Salvo algumas obscuridades, devidas talvez às dificuldades de uma língua cujas profundezas metafísicas ainda não se nos tornaram bem conhecidas, as declarações das tríades relativas às condições inerentes ao círculo de abred derramam as mais vivas luzes sobre o conjunto da religião druídica. Sente-se que nela perpassa um sopro de superior originalidade. O mistério que à inteligência oferece o espetáculo de nossa existência atual adquire nela uma feição singular que não se encontra em parte alguma. Dir-se-ia que um grande véu, rompendo-se aquém e além da vida, deixa a alma nadar de repente, com uma força inesperada, através de uma extensão indefinida, de que jamais foi capaz de suspeitar por si mesma na sua prisão entre as portas espessas do nascimento e da morte.

“Seja qual for o julgamento a que cheguemos quanto à veracidade dessa doutrina, não podemos deixar de convir que seja profunda. Refletindo sobre o efeito que, inevitavelmente, deviam produzir sobre as almas simples, estes princípios sobre a sua origem e o seu destino, é fácil compreendermos a enorme influência que os druidas tinham adquirido naturalmente sobre o espírito de nossos antepassados. Em meio às trevas da Antiguidade, esses ministros sagrados não podiam deixar de aparecer, aos olhos da população, como os reveladores do Céu e da Terra.

XV ─ Três coisas necessárias no círculo de abred: o menor grau possível de toda a vida, e daí o seu começo; a matéria de todas as coisas, e daí o crescimento progressivo, que só se realiza no estado de carência; a formação de todas as coisas da morte, e daí a debilidade das existências.
XVI ─ Três coisas das quais todo ser vivo participa necessariamente, pela justiça de Deus: o socorro de Deus em abred, porque sem isso ninguém poderia conhecer coisa alguma; o privilégio de participar do amor de Deus; e o acordo com Deus, que é justo e misericordioso, quanto à realização pelo seu poder.

XVII
─ Três causas da necessidade do círculo de abred: o desenvolvimento da substância material de todo ser animado; o desenvolvimento do conhecimento de todas as coisas; e o desenvolvimento da força moral para superar todo contrário e Cythraul (o mau Espírito) e para libertar-se de Droug (o mal). Sem essa transição por cada estado de vida, não poderia haver nele a realização de nenhum ser.
XVIII ─ Três calamidades primitivas de abred: a necessidade, a ausência de memória e a morte.

XIX ─ Três condições necessárias para chegar à plenitude da ciência: transmigrar em abred; transmigrar em gwynfyd e recordar-se de todas as coisas passadas, até em annoufn.

XX ─ Três coisas indispensáveis no círculo de abred: a transgressão da lei, pois não pode ser de outro modo; o resgate pela morte ante Droug e Cythraul; o desenvolvimento da vida e do bem pelo afastamento de Droug no resgate da morte, e isto pelo amor de Deus, que abrange todas as coisas.

XXI ─ Três meios eficazes de Deus em abred para dominar Droug e Cythraul e para superar a sua posição, em relação ao círculo gwynfyd: a necessidade, a perda da memória e a morte.

XXII ─ Três coisas são primitivamente contemporâneas: o homem, a liberdade e a luz.

XXIII ─ Três coisas necessárias à vitória do homem sobre o mal: a firmeza contra a dor, a mudança e a liberdade de escolha. Com o poder que tem o homem de escolher, não é possível ter a certeza prévia de para onde irá.

XXIV ─ Três alternativas oferecidas ao homem: abred e gwynfyd; necessidade e liberdade; mal e bem. Com o todo em equilíbrio, o homem pode, à vontade, ligarse a um ou ao outro.

XXV ─ Por três coisas cai o homem na necessidade de abred: pela ausência de esforços para o conhecimento; pelo não apego ao bem e pelo apego ao mal. Em consequência destas coisas, desce em abred até o seu análogo e recomeça o curso de sua transmigração.

XXVII ─ Por três coisas retorna o homem necessariamente a abred, embora noutros sentidos esteja ligado ao que é bom: pelo orgulho, cai até o annoufn; pela falsidade, até o ponto do demérito equivalente; pela crueldade, até o grau correspondente de animalidade. Daí transmigra novamente para a Humanidade, como antes.

XXVII ─ As três principais coisas a obter no estado de humanidade: a ciência, o amor e a força moral, no mais alto grau possível de desenvolvimento, antes que sobrevenha a morte. Isto não pode ser obtido anteriormente ao estado de humanidade e não o pode ser senão pelo privilégio da liberdade e da escolha. Estas três coisas são chamadas as três vitórias.

XXVIII ─ Há três vitórias sobre Droug e Cythraul: a ciência, o amor e a força moral, porque o saber, o querer e o poder realizam o que quer que seja em sua conexão com as coisas. Estas três vitórias começam na condição de humanidade e se desenvolvem eternamente.

XXIX─ Três privilégios da condição do homem: o equilíbrio entre o bem e o mal, e daí a faculdade de comparar; a liberdade na escolha, e daí o julgamento e a preferência; o desenvolvimento da força moral em consequência do julgamento, e daí a preferência. Estas três coisas são necessárias à realização do que quer que seja.

“Assim, em resumo, o início dos seres no seio do Universo dá-se no mais baixo ponto da escala da vida. Se não é levar muito longe as consequências da declaração contida na vigésima sétima tríade, pode-se conjecturar que na doutrina druídica esse ponto inicial estava supostamente no abismo confuso e misterioso da animalidade. Daí resulta, consequentemente, desde a própria origem da história da alma, a necessidade lógica do progresso, pois os seres não são por Deus destinados a ficar em condição tão baixa e tão obscura. Contudo, nos estágios inferiores do Universo, esse progresso não se desenrola segundo uma linha contínua. Essa longa vida, nascendo tão baixo para elevar-se tanto, quebra-se em segmentos, solidários na base de sua sucessão, mas cuja misteriosa solidariedade, graças à falta de memória, escapa, pelo menos por algum tempo, à consciência do indivíduo. São essas interrupções periódicas no secular curso da vida que constituem aquilo a que chamamos morte, de maneira que a morte e o nascimento que, por uma consideração superficial, formam dois acontecimentos tão diversos, na realidade não são mais que as duas faces do mesmo fenômeno: uma voltada para o período que se acaba, a outra para o que se inicia.

“Por isso a morte, considerada em si mesma, não é uma calamidade verdadeira, mas um benefício de Deus. Rompendo os hábitos estreitíssimos que havíamos contraído com a nossa vida presente, ela nos transporta a novas condições e dá lugar, assim, a que nos elevemos mais livremente a novos progressos.

“Assim como a morte, a perda da memória que a acompanha não deve ser tomada senão como um benefício. É uma consequência do primeiro ponto, porque, se no curso desta longa vida, a alma conservasse claramente suas lembranças de um período a outro, a interrupção seria meramente acidental e não haveria nem morte, propriamente dita, nem nascimento, pois que esses dois acontecimentos perderiam, desde então, o caráter absoluto que os distingue e lhes dá força.

Mesmo do ponto de vista dessa teologia, não é difícil perceber diretamente, no que respeita aos períodos passados, de que maneira a perda da memória poderia ser considerada um benefício, relativamente ao homem, na sua condição presente, porque se esses períodos passados, como a posição atual do homem num mundo de sofrimentos, constituem uma prova, infelizmente foram manchados de erros e de crimes, causa primeira das misérias e das expiações de hoje. Evidentemente é uma vantagem para a alma achar-se livre da visão de uma tão grande quantidade de faltas e, ao mesmo tempo, dos mais acabrunhadores remorsos que daí nasceriam. Como não a obriga a um arrependimento formal senão relativamente às culpas da vida atual, assim se compadecendo de sua fraqueza, Deus realmente lhe concede uma grande graça.

“Enfim, segundo esta mesma maneira de considerar o mistério da vida, as necessidades de toda natureza a que somos aqui submetidos e que, desde o nosso nascimento, por um desígnio por assim dizer fatal, determinam a forma de nossa existência no presente período, constituem um último benefício, tão sensível quanto os dois outros. Em definitivo, são essas necessidades que dão à nossa vida o caráter que melhor convém às nossas expiações e às nossas provas e consequentemente ao nosso desenvolvimento moral. São ainda essas mesmas necessidades, tanto de nossa organização física quanto das circunstâncias exteriores, em cujo meio somos colocados que, arrastando-nos forçosamente à morte, arrastam-nos, por isso mesmo, à nossa suprema libertação. Em resumo, como dizem as tríades em sua enérgica concisão, nelas se acham reunidas as três calamidades primitivas e os três meios eficazes de Deus em abred.

“Entretanto, por meio de que conduta a alma realmente se eleva nesta vida e merece, após a morte, alcançar um estado superior de existência?

“A resposta dada pelo Cristianismo a esta pergunta fundamental é de todos conhecida: é com a condição de destruir em si o egoísmo e o orgulho; de desenvolver no íntimo de sua substância as forças da humildade e da caridade, únicas eficazes e meritórias aos olhos de Deus. Bem-aventurados os mansos, diz o Evangelho. Bem-aventurados os humildes!

“A resposta do Druidismo é bem diversa e contrasta claramente com esta última. Conforme suas lições, a alma eleva-se na escala das existências, com a condição de, pelo trabalho sobre si mesma, fortificar a própria personalidade. Esse resultado ela obtém naturalmente, pelo desenvolvimento da força de caráter, aliada ao desenvolvimento do saber. É o que exprime a vigésima quinta tríade, que declara que a alma recai na necessidade de transmigrações, isto é, nas vidas confusas e mortais, não só por alimentar as paixões más, como pelo hábito do desleixo na realização das ações justas; pela falta de firmeza no apego ao que é prescrito pela consciência; em uma palavra, pela fraqueza de caráter. Além dessa falta de virtude moral, a alma é ainda retida em seu progresso para o Céu pela falta de aperfeiçoamento do Espírito. A iluminação intelectual, necessária à plenitude da felicidade, não se opera simplesmente na alma feliz por uma irradiação do Alto absolutamente graciosa. Ela só se produz na vida celeste se a própria alma soube fazer esforços desde esta vida para adquiri-la. Assim, a tríade não fala apenas da ausência de saber, mas da falta de esforços para saber, o que, no fundo, como para a virtude precedente, é um preceito de atividade e de movimento.

“Realmente, nas tríades seguintes, a caridade é recomendada tanto quanto a ciência e a força moral. Mas aqui, ainda, naquilo que tange à natureza divina, é sensível à influência do Cristianismo. É a ele, e não à forte mas dura religião de nossos antepassados, que pertence a pregação e a entronização, no mundo, da lei da caridade em Deus e no homem. Se esta lei brilha nas tríades, é por efeito de uma aliança com o Evangelho, ou melhor, de um feliz aperfeiçoamento da teologia dos druidas pela ação da dos apóstolos, e não por uma tradição primitiva. Subtraiamos este raio divino e teremos, em sua rude grandeza, a moral da Gália, moral que pôde produzir, na ordem do heroísmo e da ciência, poderosas personalidades, mas que não soube uni-las, nem entre si, nem com a multidão dos humildes24”.

A Doutrina Espírita não consiste apenas na crença nas manifestações dos Espíritos, mas em tudo quanto eles nos ensinam sobre a natureza e o destino das almas. Se, pois, nos reportarmos aos preceitos contidos no Livro dos Espíritos, onde encontraremos formulado todo o seu ensino, ficaremos admirados ante a identidade de alguns princípios fundamentais com os da doutrina druídica, dentre os quais um dos mais notáveis é, incontestavelmente, o da reencarnação. Nos três círculos, nos três estados sucessivos dos seres animados, encontramos todas as fases apresentadas por nossa escala espírita. Realmente, o que é o círculo de abred ou o da migração,

24 Extraído do Magasin Pittoresque, 1857.

senão as duas ordens de Espíritos que se depuram pelas existências sucessivas? No círculo gwynfyd o homem não transmigra mais; ele desfruta da suprema felicidade. Não é a primeira ordem da escala, a dos puros Espíritos que tendo realizado todas as provas, não mais necessitam da reencarnação e gozam a vida eterna? Notemos ainda que, segundo a doutrina druídica, o homem conserva o livre-arbítrio; que se eleva gradativamente, por sua vontade, por sua perfeição progressiva e pelas provas por que passou, do annoufn ou abismo, à perfeita felicidade em gwynfyd, com a diferença, entretanto, que o Druidismo admite a volta possível às camadas inferiores, ao passo que, segundo o Espiritismo, o Espírito pode ficar estacionário, mas não pode degenerar.

Para completar a analogia, bastaria acrescentar à nossa escala, abaixo da terceira ordem, o círculo de annoufn, que caracteriza o abismo ou a origem desconhecida das almas e, acima da primeira ordem, o círculo de ceugant, morada de Deus, inacessível às criaturas. O quadro seguinte tornará mais clara a comparação.

ESCALA ESPÍRITA[1]

ESCALA DRUÍDICA




Ceugant. Morada de Deus

1.ª ordem

1.ª Classe

Espíritos Puros. Não mais reencarnarão.

Gwynfyd. Morada dos bemaventurados. Vida eterna.


2.ª classe

Espíritos superiores*


2.ª ordem

Bons

Espíritos

3.ª ordem Espíritos imperfeitos

3.ª classe

4.ª classe

5ª classe

Espíritos de sabedoria*

Espíritos de ciência*

Espíritos benevolentes*

Abred. Círculo das migrações ou das diversas existências corpóreas, que as almas percorrem para chegar de annoufn a gwynfyd.

6.ª classe

7.ª classe

8.ª classe

9.ª classe

Espíritos neutros*

Espíritos pseudossábios*

Espíritos levianos*

Espíritos impuros*




Annoufn. Abismo, ponto de partida das almas

* Depurando-se e elevando-se pelas provas da reencarnação



Em sua Voyage aux sources du Nil[1] em 1768, conta James Bruce o que damos a seguir, a respeito de Gingiro, pequeno reino situado na parte sul da Abissínia, a leste do reino de Adel. Trata-se de dois embaixadores que Socínios, rei da Abissínia, enviou ao papa, por volta de 1625, e que tiveram de atravessar o Gingiro.

“Então, diz Bruce, foi necessário prevenir o rei de Gingiro da chegada da caravana e pedir-lhe audiência. Mas naquele momento estava ele ocupado em importante operação de magia, sem a qual jamais o soberano ousaria empreender coisa alguma.

“O reino de Gingiro pode ser considerado como o primeiro desse lado da África em que se estabeleceu a estranha prática de predizer o futuro pela evocação dos Espíritos e por uma comunicação direta com o diabo.

“O rei de Gingiro achou que devia deixar passar oito dias para receber em audiência o embaixador e o seu companheiro, o jesuíta Fernandez. Em consequência, ao nono dia eles receberam permissão para ir à corte, onde chegaram na mesma tarde.

“Em Gingiro nada se faz sem recorrer à magia. Por aí se vê quanto a razão humana se acha degradada, a algumas léguas de distância. Que não nos venham dizer que tal fraqueza deve ser atribuída à ignorância ou ao calor da região. Por que um clima quente induziria os homens a se transformarem em magos, o que não se verificaria num clima frio? Por que a ignorância dilataria o poder do homem a ponto de fazê-lo transpor os limites da inteligência ordinária e dar-lhe a faculdade de se corresponder com uma nova ordem de seres, habitantes de outro mundo? Os etíopes, que abrangem quase toda a Abissínia, são mais negros que os gingiranos. Sua terra é mais quente e, como aqueles, são indígenas, nos lugares que habitam, desde o começo dos séculos. Entretanto nem adoram o diabo, nem pretendem ter com ele qualquer comunicação; não sacrificam homens em seus altares; enfim, entre eles nenhum traço se encontra dessa revoltante atrocidade.

“Nas partes da África que têm comunicação aberta com o mar, o comércio de escravos está em uso, desde os mais remotos séculos, mas o rei de Gingiro, cujos domínios se acham encerrados quase que no centro do continente, sacrifica ao diabo os escravos que não pode vender ao homem. É ali que começa esse horrível costume de derramar o sangue humano em todas as solenidades.

“Ignoro, diz o Sr. Bruce, até onde ele se estende para o sul da África, mas considero Gingiro como o limite geográfico do reino do diabo, do lado setentrional da península”.

Se o Sr. Bruce tivesse visto aquilo que hoje testemunhamos, nada de assombroso acharia na prática das evocações usadas em Gingiro. Ele só vê nelas uma crença supersticiosa, enquanto nós encontramos a sua causa no fato de manifestações falsamente interpretadas, que puderam produzir-se lá como alhures. O papel que a credulidade atribui nelas ao diabo nada tem de surpreendente. Inicialmente, é preciso observar que todos os povos bárbaros atribuem a um poder maléfico os fenômenos que não podem explicar. Em segundo lugar, um povo bastante atrasado, a ponto de sacrificar seres humanos, por certo não pode atrair ao seu meio Espíritos superiores. Por sua natureza, os que o visitam só poderão confirmá-los em sua crença. Além disso, há a considerar que os povos de certa parte da África conservaram um grande número de tradições judaicas, mais tarde mescladas com algumas ideias informes do Cristianismo, fonte em que, por força de sua ignorância, beberam a doutrina do diabo e dos demônios.



[1] Viagem às Nascentes do Nilo. Seu autor, o explorador inglês James Bruce, descobriu as nascentes do Nilo Azul, no lago de Tana. Bruce nasceu em 1730 e faleceu em 1794. (N. do T.)




Palestras familiares de além-túmulo



Bernard Palissy (9 de março de 1858)

NOTA: Por evocações anteriores, sabíamos que Bernard Palissy, o célebre oleiro do século XVI, habita Júpiter. As respostas que se seguem confirmam, em todos os pontos, quanto nos foi dito sobre esse planeta, em várias ocasiões, por outros Espíritos e através de diferentes médiuns. Pensamos que serão lidas com interesse, como complemento do quadro que traçamos em nosso último número. A identidade que apresentam com as descrições anteriores é um fato notável que vale pelo menos como uma presunção de exatidão.

1. ─ Para onde foste ao deixar a Terra?

─ Ainda me demorei nela.

2. ─ Em que condições estavas aqui?

─ Sob o aspecto de uma mulher amorosa e dedicada. Era uma simples missão.

3. ─ Essa missão durou muito?

─ Trinta anos.

4. ─ Lembras-te do nome dessa mulher?

─ Era obscuro.

5. ─ Agrada-te a estima em que são tidas as tuas obras? Isto te compensa os sofrimentos que suportaste?

─ Que me importam as obras materiais de minhas mãos? O que me importa é o sofrimento que me elevou.

6. ─ Com que fim traçaste, pela mão do Sr. Victorien Sardou os admiráveis desenhos que nos deste sobre o planeta Júpiter, onde habitas?

─ Com o fim de vos inspirar o desejo de vos tornardes melhores.

7. ─ Tendo em vista que vens com frequência a esta Terra que habitaste várias vezes, deves conhecer bastante o seu estado físico e moral para estabelecer uma comparação entre ela e Júpiter. Pediríamos que nos elucidasses sobre diversos pontos.

─ Ao vosso globo venho apenas como Espírito. O Espírito não tem mais sensações materiais.



ESTADO FÍSICO DO GLOBO

8. ─ Pode-se comparar a temperatura de Júpiter à de uma de nossas latitudes?

─ Não. Ela é suave e temperada; é sempre igual, enquanto a vossa varia. Lembrai-vos dos Campos Elíseos, cuja descrição já vos fizeram.

9. ─ O quadro que os Antigos nos deram dos Campos Elíseos seria resultado do conhecimento intuitivo que eles tinham de um mundo superior, tal como Júpiter, por exemplo?

─ Do conhecimento positivo. A evocação permanecia nas mãos dos sacerdotes.

10 ─ A temperatura, como aqui, varia conforme a latitude?

─ Não.

11. ─ Segundo os nossos cálculos, o Sol deve aparecer aos habitantes de Júpiter em tamanho muito pequeno e, consequentemente, dar muito pouca luz. Podes dizer-nos se a intensidade da luz é ali igual à da Terra ou se é menos forte?

─ Júpiter é cercado de uma espécie de luz espiritual, em relação com a essência de seus habitantes. A luz grosseira de vosso Sol não foi feita para eles.

12. ─ Há uma atmosfera?

─ Sim.

13. ─ A atmosfera de Júpiter é formada dos mesmos elementos que a atmosfera terrestre?

─ Não. Os homens não são os mesmos. Suas necessidades mudaram.

14. ─ Lá existe água e mares?

─ Sim.

15. ─ A água é formada dos mesmos elementos que a nossa?

─ Mais etérea.

16. ─ Há vulcões?

─ Não. Nosso globo não é atormentado como o vosso. Lá a Natureza não teve suas grandes crises. É a morada dos bem-aventurados. Nele, a matéria quase não existe.

17. ─ As plantas têm analogia com as nossas?

─ Sim, mas são mais belas.



ESTADO FÍSICO DOS HABITANTES

18. ─ A conformação do corpo dos seus habitantes tem relação com a nossa?

─ Sim, ela é a mesma.

19. ─ Podes dar-nos uma ideia de sua estatura, comparada com a dos habitantes da Terra?

─ Grandes e bem proporcionados. Maiores que os vossos maiores homens. O corpo do homem é como o molde de seu espírito: belo, onde ele é bom. O envoltório é digno dele: não é mais uma prisão.

20. ─ Lá os corpos são opacos, diáfanos ou translúcidos?

─ Há uns e outros. Uns têm tal propriedade, outros têm outra, conforme a sua finalidade.

21. ─ Compreendemos isto em relação aos corpos inertes. Mas nossa pergunta refere-se aos corpos humanos.

─ O corpo envolve o Espírito sem ocultá-lo, como um tênue véu lançado sobre uma estátua. Nos mundos inferiores, o envoltório grosseiro oculta o Espírito aos seus semelhantes. Mas os bons nada mais têm a ocultar: cada um pode ler no coração dos outros. Que aconteceria se assim fosse aqui?

22. ─ Lá existe diferença de sexo?

─ Sim, há por toda parte onde existe a matéria; é uma lei da matéria.

23. ─ Qual é a base da alimentação dos habitantes? É animal e vegetal como aqui?

─ Puramente vegetal. O homem é o protetor dos animais.

24. ─ Disseram-nos que parte de sua alimentação é extraída do meio ambiente, cujas emanações eles aspiram. É verdade?

─ Sim.

25. ─ Comparada com a nossa, a duração da vida é mais longa ou mais curta?

─ Mais longa.

26. ─ Qual é a duração média da vida?

─ Como medir o tempo?

27. ─ Não podes tomar um dos nossos séculos como termo de comparação?

─ Creio que mais ou menos cinco séculos

28. ─ O desenvolvimento da infância é proporcionalmente mais rápido que o nosso?

─ O homem conserva sua superioridade: a infância não comprime a inteligência nem a velhice a extingue.

29. ─ Os homens são sujeitos a doenças?

─ Não estão sujeitos aos vossos males.

30. ─ A vida está dividida entre o sono e a vigília?

─ Entre a ação e o repouso.

31. ─ Poderias dar-nos uma ideia das várias ocupações dos homens?

─ Teria que falar muito. Sua principal ocupação é o encorajamento dos Espíritos que habitam os mundos inferiores, a fim de que perseverem no bom caminho. Não havendo entre eles infortúnios a serem aliviados, vão procurá-los onde esses existem: são os bons Espíritos que vos amparam e vos atraem para o bom caminho.

32. ─ Lá são cultivadas algumas artes?

─ Lá elas são inúteis. As vossas artes são brinquedos que distraem as vossas dores.

33. ─ A densidade específica do corpo humano permite ao homem transportar-se de um a outro ponto, sem ficar, como aqui, preso ao solo?

─ Sim.

34. ─ Existem lá o tédio e o desgosto da vida?

─ Não. O desgosto da vida origina-se no desprezo de si mesmo.

35. ─ Sendo o corpo dos habitantes de Júpiter menos denso que os nossos, é formado de matéria compacta e condensada ou vaporosa?

─ Compacta para nós, mas não para vós. Ela é menos condensada.

36. ─ O corpo, considerado como feito de matéria, é impenetrável?

─ Sim.

37. ─ Os habitantes têm, como nós, uma linguagem articulada?

─ Não. Há entre eles a comunicação pelo pensamento.

38. ─ A segunda vista é, como nos informaram, uma faculdade normal e permanece entre vós?

─ Sim. O Espírito não conhece entraves. Nada lhe é oculto.

39. ─ Se nada é oculto ao Espírito, conhece ele o futuro? (Referimo-nos aos Espíritos encarnados em Júpiter).

─ O conhecimento do futuro depende do grau de perfeição do Espírito: isto tem menos inconvenientes para nós do que para vós; é-nos mesmo necessário, até certo ponto, para a realização das missões de que nos incumbem. Mas dizer que conhecemos o futuro sem restrições seria nivelar-nos a Deus.

40. ─ Podeis revelar-nos tudo quanto sabeis sobre o futuro?

─ Não. Esperai até que tenhais merecido sabê-lo.

41. ─ Comunicai-vos mais facilmente que nós com os outros Espíritos?

─ Sim; sempre. Não existe mais a matéria entre eles e nós.

42. ─ A morte inspira o mesmo horror e pavor que entre nós?

─ Por que seria ela apavorante? Entre nós já não existe o mal. Só o mau se apavora ante o seu último instante. Ele teme o seu juiz.

43. ─ Em que se transformam os habitantes de Júpiter depois da morte?

─ Crescem sempre em perfeição, sem passar por mais provas.

44. ─ Não haverá em Júpiter Espíritos que se submetam a provas a fim de cumprir uma missão?

─ Sim, mas não é uma prova. Só o amor do bem os leva ao sofrimento.

45. ─ Podem eles falhar em sua missão?

─ Não, porque são bons. Só existe fraqueza onde há defeitos.

46. ─ Poderias nomear alguns dos Espíritos habitantes de Júpiter que tenham desempenhado uma grande missão na Terra?

─ São Luís.

47. ─ Não poderias nomear outros?

─ Que vos importa? Há missões desconhecidas, cujo objetivo é a felicidade de um só. Por vezes são as maiores e as mais dolorosas.



DOS ANIMAIS

48. ─ O corpo dos animais é mais material que o dos homens?

─ Sim. O homem é o rei, o deus planetário.

49. ─ Há animais carnívoros?

─ Os animais não se estraçalham mutuamente. Vivem todos submetidos ao homem e se amam entre si.

50. ─ Há porém animais que escapam à ação do homem, assim como os insetos, os peixes e os pássaros?

─ Não. Todos lhe são úteis.

51. ─ Disseram-nos que os animais são os operários e os capatazes que executam os trabalhos materiais, constroem as habitações etc. É exato?

─ Sim. O homem não mais se rebaixa para servir ao semelhante.

52. ─ Os animais servidores estão ligados a uma pessoa ou família, ou são tomados e trocados à vontade, como aqui?

─ Todos estão ligados a uma família particular. Vós mudais à procura do melhor.

53. ─ Os animais servidores vivem em escravidão ou no estado de liberdade? São uma propriedade, ou podem, à vontade, mudar de patrão?

─ Estão no estado de submissão.

54. ─ Os animais trabalhadores recebem alguma remuneração por seus trabalhos?

─ Não.

55. ─ As faculdades dos animais são desenvolvidas por uma espécie de educação?

─ Eles as desenvolvem por si mesmos.

56. ─ Têm os animais uma linguagem mais precisa e caracterizada que a dos animais terrenos?

─ Certamente.



ESTADO MORAL DOS HABITANTES

57. ─ As habitações de que nos deste uma mostra nos teus desenhos estão reunidas em cidades como aqui?

─ Sim. Aqueles que se amam se reúnem. Só as paixões estabelecem a solidão em torno do homem. Se o homem ainda mau procura o seu semelhante, que é para ele um instrumento de dor, por que o homem puro e virtuoso deveria fugir de seu irmão?

58. ─ Os Espíritos são iguais ou de várias graduações?

─ De diversos graus, mas da mesma ordem.

59. ─ Pedimos que te reportes especialmente à escala espírita que demos no segundo número da Revista e que nos digas a que ordem pertencem os Espíritos encarnados em Júpiter.

─ Todos bons, todos superiores. Por vezes o bem desce até o mal; entretanto, o mal jamais se mistura com o bem.

60. ─ Os habitantes formam diferentes povos como aqui na Terra?

─ Sim, mas todos unidos entre si pelos laços do amor.

61. ─ Sendo assim, as guerras são desconhecidas?

─ Pergunta inútil.

62. ─ O homem poderá chegar, na Terra, a um tal grau de perfeição que a guerra seja desnecessária?

─ Ele chegará a isto, sem a menor dúvida. A guerra desaparecerá com o egoísmo dos povos e à medida que melhor seja compreendida a fraternidade.

63. ─ Os povos são governados por chefes?

─ Sim.

64. ─ Em que consiste a autoridade dos chefes?

─ No seu grau superior de perfeição.

65. ─ Em que consiste a superioridade e a inferioridade dos Espíritos em Júpiter, de vez que todos são bons?

─ Eles têm maior ou menor soma de conhecimentos e de experiência; depuram-se à medida que se esclarecem.

66. ─ Como aqui na Terra, lá existem povos mais ou menos avançados que outros?

─ Não, mas entre os povos há diversos graus.

67. ─ Se o povo mais adiantado da Terra fosse transportado para Júpiter, que posição ocuparia?

─ A que entre vós é ocupada pelos macacos.

68. ─ Lá os povos se regem por leis?

─ Sim.

69. ─ Há leis penais?

─ Não há mais crimes.

70. ─ Quem faz as leis?

─ Deus as fez.

71 ─ Há ricos e pobres? Por outras palavras: há homens que vivem na abundância e no supérfluo e outros a quem falta o necessário?

─ Não. Todos são irmãos. Se um possuísse mais do que o outro, com esse repartiria; não seria feliz quando seu irmão fosse necessitado.

72. ─ De acordo com isso, as fortunas de todos seriam iguais?

─ Eu não disse que todos são igualmente ricos. Perguntaste se haveria gente com o supérfluo enquanto a outros faltasse o necessário.

73. ─ As duas respostas se nos afiguram contraditórias. Pedimos que estabeleças a concordância.

─ A ninguém falta o necessário; ninguém tem o supérfluo. Por outras palavras, a fortuna de cada um está em relação com a sua condição. Estais satisfeito?

74. ─ Agora compreendemos. Mas te perguntamos, entretanto, se aquele que tem menos não é infeliz em relação àquele que tem mais?

─ Ele não pode sentir-se infeliz, se não é invejoso nem ciumento. A inveja e o ciúme produzem mais infelizes que a miséria.

75. ─ Em que consiste a riqueza em Júpiter?

─ Em que isto vos importa?

76. ─ Há desigualdades sociais?

─ Sim.

77. ─ Em que estas se fundam?

─ Nas leis da sociedade. Uns são mais adiantados que outros na perfeição. Os superiores têm sobre os outros uma espécie de autoridade, como um pai sobre os filhos.

78. ─ As faculdades do homem são desenvolvidas pela educação?

─ Sim.

79. ─ Pode o homem adquirir bastante perfeição na Terra para merecer passar imediatamente a Júpiter?

─ Sim. Mas na Terra o homem é submetido a imperfeições a fim de estar em relação com os seus semelhantes.

80. ─ Quando um Espírito deixa a Terra e deve reencarnar-se em Júpiter, fica errante durante algum tempo, até encontrar o corpo a que se deve unir?

─ Fica errante durante algum tempo, até que se tenha livrado das imperfeições terrenas.

81. ─ Há várias religiões?

─ Não. Todos professam o bem e todos adoram um só Deus.

82. ─ Há templos e um culto?

─ Por templo há o coração do homem; por culto, o bem que ele faz.



MEHEMET-ALI, ANTIGO PAXÁ DO EGITO

16 de março de 1858



1. ─ O que vos induziu a atender ao nosso apelo?

─ Vim para vos instruir.

2. ─ Estais contrariado por vir até nós e por terdes de responder às perguntas que desejamos fazer?

─ Não. Desejo mesmo responder às que tiverem por fim a vossa instrução.

3. ─ Que provas poderemos ter de vossa identidade? Como é possível saber que não foi outro Espírito que tomou o vosso nome?

─ Qual seria a vantagem?

4. ─ Sabemos por experiência que muitas vezes os Espíritos inferiores tomam nomes supostos. Eis por que vos fizemos essa pergunta.

─ Eles tomam também os elementos de prova. Mas o Espírito que põe uma máscara também se revela pelas próprias palavras.

5. ─ Sob que forma e em que lugar vos encontrais entre nós?

─ Sob aquela que tem o nome de Mehemet-Ali; perto de Ermance.

6. ─ Gostaríeis que vos déssemos um lugar especial?

─ Sim. A cadeira vazia.


OBSERVAÇÃO: Havia uma cadeira vaga, a que ninguém havia prestado atenção.


7. ─ Tendes uma lembrança nítida de vossa última existência corpórea?

─ Não a tenho ainda nítida, pois a morte me deixou sua perturbação.

8. ─ Sois feliz?

─ Não. Sou desgraçado.

9. ─ Estais errante ou reencarnado?

─ Errante.

10. ─ Recordais-vos daquilo que fostes na existência anterior a esta?

─ Eu era um pobre na Terra. Invejei as grandezas terrenas e subi para sofrer.

11. ─ Se puderdes renascer na Terra, que condição escolhereis de preferência?

─ A obscura: os deveres são menores.

12. ─ Que pensais agora da posição que ocupastes ultimamente na Terra?

─ Pura vaidade! Quis conduzir os homens. Sabia eu conduzir-me a mim mesmo?

13. ─ Dizia-se que já há algum tempo a vossa razão estava alterada. É verdade?

─ Não.

14. ─ A opinião pública aprecia aquilo que fizestes pela civilização do Egito e por isso vos coloca entre os grandes príncipes. Ficais satisfeito com isso?

─ Que me importa? A opinião dos homens é o vento do deserto que levanta o pó.

15. ─ Vedes com prazer os vossos descendentes seguindo o mesmo caminho? Os seus esforços vos interessam?

─ Sim, porque eles têm por objetivo o bem comum.

16. ─ Entretanto sois acusado de atos de grande crueldade. Agora os lamentais?

─ Eu os expio.

17. ─ Vedes aqueles a quem mandastes massacrar?

─ Sim.

18. ─ Que sentimento experimentam eles a vosso respeito?

─ Ódio e piedade.

19. ─ Desde que deixastes essa vida, não mais revistes o sultão Mahmud?

─ Sim. Em vão fugimos um do outro.

20. ─ Que sentimento experimentais reciprocamente?

─ O de aversão.

21. ─ Qual a vossa opinião atual sobre as penas e recompensas que nos esperam depois da morte?

─ A expiação é justa.

22. ─ Qual o maior obstáculo que tivestes de vencer para a realização de vossos planos progressistas?

─ Eu reinava sobre escravos.

23. ─ Pensais que se o povo que tivestes de governar fosse cristão, teria sido menos rebelde à civilização?

─ Sim. A religião cristã eleva a alma; a maometana apenas fala à matéria.

24. ─ Quando vivo, vossa fé na religião muçulmana era absoluta?

─ Não. Eu considerava Deus maior.

25. ─ Que pensais agora dessa religião?

─ Ela não forma os homens.

26. ─ Na vossa opinião, Maomé tinha missão divina?

─ Sim, mas a desvirtuou.

27. ─ Em que a desvirtuou?

─ Ele quis reinar.

28. ─ Que pensais de Jesus?

─ Esse vinha de Deus.

29. ─ Na vossa opinião, quem fez mais pela felicidade humana: Jesus ou Maomé?

─ Por que o perguntais? Qual o povo que foi regenerado por Maomé? A religião cristã saiu pura das mãos de Deus; a maometana é obra de um homem.

30. ─ Credes que uma dessas duas religiões esteja destinada a apa­gar-se da face da Terra?

─ O homem progride sempre. A melhor perdurará.

31. ─ Que pensais da poligamia, consagrada pela religião muçulmana?

─ É um dos laços que retêm na barbárie os povos que a professam.

32. ─ Credes que a escravidão da mulher seja conforme os desígnios de Deus?

─ Não. A mulher é igual ao homem, de vez que o Espírito não tem sexo.

33. ─ Diz-se que o povo árabe não pode ser conduzido senão pelo rigor. Não pensais que os maus tratos, em vez de o submeterem, apenas o embrutecem?

─ Sim. Este é o destino do homem. Ele se avilta quando escravizado.

34. ─ Podeis transportar-vos à Antiguidade, quando o Egito era florescente, e dizer-nos as causas de sua decadência moral?

─ A corrupção dos costumes.

35. ─ Parece que ligais pouca importância aos monumentos históricos que cobrem o solo do Egito. Não podemos compreender tal indiferença por parte de um príncipe amigo do progresso.

─ Que importa o passado! O presente não o substituiria.

36. ─ Poderíeis explicar-vos mais claramente?

─ Sim. Era desnecessário relembrar ao egípcio degradado um passado muito brilhante, pois não o teria compreendido. Desdenhei aquilo que me parecia inútil. Eu não podia enganar-me?

37. ─ Os sacerdotes do antigo Egito conheciam a Doutrina Espírita?

─ Era a deles.

38. ─ Eles recebiam manifestações?

─ Sim.

39. ─ As manifestações recebidas pelos sacerdotes egípcios tinham a mesma fonte que as recebidas por Moisés?

─ Sim. Ele foi iniciado por aqueles.

40. ─ Por que, então, as manifestações recebidas por Moisés eram mais potentes que as recebidas pelos sacerdotes egípcios?

─ Moisés queria revelar, enquanto os sacerdotes egípcios queriam apenas ocultá-las.

41. ─ Pensais que a doutrina dos sacerdotes egípcios tinha alguma ligação com a dos indianos?

─ Sim. Todas as religiões-mães estão ligadas entre si por laços quase invisíveis. Elas procedem de uma mesma fonte.

42. ─ Dessas duas religiões, isto é, a dos egípcios e a dos indianos, qual a matriz?

─ Elas são irmãs.

43.─ Como é que vós, que em vida éreis tão pouco esclarecido sobre estes assuntos, podeis agora responder com tanta profundidade?

─ Outras existências me ensinaram.

44. ─ No estado de erraticidade em que agora vos encontrais, tendes pleno conhecimento de vossas existências anteriores?

─ Sim, salvo da última.

45. ─ Vivestes, então, no tempo dos Faraós?

─ Sim. Três vezes vivi na terra egípcia: como sacerdote, como mendigo e como príncipe.

46. ─ Sob que reinado fostes sacerdote?

─ Já faz tanto tempo! O príncipe era o vosso Sesóstris.

47. ─ Assim sendo, dir-se-ia que não progredistes, pois que agora expiais os erros de vossa última existência.

─ Sim, mas progredi lentamente. Acaso eu era perfeito por ser um sacerdote?

48. ─ É porque fostes sacerdote naqueles tempos que nos pudestes falar com conhecimento de causa da antiga religião dos Egípcios?

─ Sim, mas não sou suficientemente perfeito para tudo saber. Outros leem o passado como num livro aberto.

49. ─ Poderíeis explicar-nos o motivo da construção das pirâmides?

─ É muito tarde.

NOTA: Eram quase onze horas da noite.

50. ─ Não vos faremos senão esta pergunta. Pedimos que tenhais a bondade de respondê-la.

─ Não. É muito tarde. Esta pergunta traria outras mais.

51. ─ Poderíeis fazer-nos o favor de responder em outra ocasião?

─ Não me comprometo.

52. ─ Não obstante, nós vos agradecemos a benevolência com que nos respondestes às outras perguntas.

─ Bem! Eu voltarei.




Não é de nosso conhecimento que o Sr. Home tenha feito aparecer, pelo menos visivelmente a todos, outras partes do corpo além das mãos. Cita-se, entretanto, um general falecido na Crimeia, como tendo aparecido à sua viúva e visível só para ela, posto não tenhamos nem mesmo constatado a autenticidade do relato, principalmente no que concerne à intervenção do Sr. Home no caso. Limitamo-nos àquilo que podemos afirmar.

Por que mãos em vez de pés ou de uma cabeça?

Eis o que ignoramos e o que ignora ele também.

Interrogados a respeito, os Espíritos responderam que outros médiuns poderiam

fazer aparecer todo o corpo. Aliás, não é isto o mais importante: se só as mãos aparecem, as outras partes do corpo não são menos patentes, como veremos logo a seguir.

Em geral o aparecimento da mão se manifesta primeiramente sob a toalha da mesa, por ondulações produzidas ao percorrer toda a superfície. Depois se mostra às bordas da toalha, que ela levanta; por vezes vem postar-se sobre a toalha, bem no meio da mesa; outras vezes toma um objeto e o leva para baixo da toalha. Essa mão, a todos visível, nem é vaporosa nem translúcida: tem a cor e a opacidade naturais; no pulso, termina de forma indefinida. Se alguém a toca com precaução, confiança e sem segunda intenção hostil, ela oferece a resistência, a solidez e a impressão de mão viva; seu calor é suave, um tanto úmido e comparável ao de um pombo morto há cerca de meia hora. Não é absolutamente inerte, pois age, presta-se aos movimentos que se lhe imprimem, ou resiste, acaricia-nos, ou nos aperta. Se, pelo contrário, quisermos pegá-la bruscamente e de surpresa, apenas encontraremos o vazio.

Contou-nos uma testemunha ocular o fato que se segue, e que se passou com ela.

Tinha entre os seus dedos uma campainha de mesa; mão invisível a princípio, e pouco depois perfeitamente visível, veio pegá-la, fazendo esforços para arrebatá-la; não o tendo conseguido, passou a puxá-la por cima, a fim de fazê-la escorregar. O esforço de tração era sensível quanto teria sido o de qualquer mão humana. Havendo tentado segurar violentamente essa mão, a sua apenas encontrou o ar; tendo aberto os dedos, a campainha ficou suspensa no ar e foi lentamente pousar no soalho.

Algumas vezes há várias mãos.

A mesma testemunha contou-nos este outro fato:

Várias pessoas achavam-se reunidas em torno de uma dessas mesas de sala de jantar que se abrem em duas. Ouvem-se batidas; a mesa se agita, abre-se por si mesma e através da fenda aparecem três mãos: uma de tamanho normal, outra muito grande e uma terceira muito peluda. Tocam-nas, apalpam-nas, elas apertam as mãos dos circunstantes e depois se dissolvem.

Em casa de um dos nossos amigos que havia perdido uma criança em tenra idade, o que aparece é a mão de um recém-nascido. Todos podem vê-la e tocá-la. Essa criança senta-se no colo da mãe, que sente distintamente a impressão de todo o seu corpo sobre os joelhos.

Muitas vezes a mão vem pousar sobre vós. Então a vedes, e se não, sentis a pressão de seus dedos. Por vezes ela vos acaricia; outras vos belisca até produzir dor. Em presença de várias pessoas o Sr. Home sentiu que lhe pegavam o pulso, e os assistentes puderam ver-lhe a pele distendida. Um instante depois ele sentiu que o mordiam; a marca dos dentes ficou impressa durante mais de uma hora.

A mão que aparece também pode escrever. Algumas vezes ela para no meio da mesa, toma um lápis e traça as letras num papel adrede preparado. Na maioria das vezes, porém, leva o papel para debaixo da mesa e o devolve todo escrito. Se a mão fica invisível, a escrita parece produzir-se por si mesma. Por este meio conseguemse respostas às diversas perguntas que se pode fazer.

Outro gênero de manifestações não menos notável, mas que se explica pelo que acabamos de dizer, é o dos instrumentos de música que tocam sozinhos. Em geral são pianos ou acordeons. Em tais circunstâncias, veem-se distintamente as teclas se moverem, bem como o fole. A mão que toca ora é visível, ora invisível. A ária que se ouve pode ser conhecida e tocada a pedido. Se o artista invisível é deixado à vontade, produz acordes harmoniosos, cujo efeito lembra a vaga e suave melodia da harpa eólia.

Em casa de um de nossos assinantes, onde tais fenômenos se produziram muitas vezes, o Espírito que assim se manifestava era o de um moço falecido há algum tempo, amigo da família que quando vivo revelava notável talento musical. A natureza das árias que preferia tocar não deixava a menor dúvida quanto à sua identidade para todos aqueles que o haviam conhecido.

O mais extraordinário fato neste gênero de manifestações não é, em nossa opinião, o da aparição. Se esta fosse sempre aeriforme, seria compatível com a natureza etérea que atribuímos aos Espíritos. Ora, nada se oporia a que essa matéria eterizada se tornasse perceptível à vista, por uma espécie de condensação, sem perder a sua propriedade vaporosa. O que há de mais estranho é a solidificação dessa mesma matéria, suficientemente resistente para deixar uma visível impressão em nossos órgãos. No próximo número daremos a explicação desse fenômeno singular, conforme o ensinamento dos próprios Espíritos. Hoje nos limitaremos a deduzir-lhe uma consequência relativa ao toque espontâneo dos instrumentos de música. Com efeito, desde que a ocasional tangibilidade dessa matéria eterizada é um fato constatado, e desde que em tal estado a mão, aparente ou não, oferece resistência suficiente para exercer pressão sobre os corpos sólidos, não é de admirar que ela possa exercer uma pressão suficiente para mover as teclas de um instrumento. Por outro lado, fatos não menos positivos provam que essa mão pertence a um ser inteligente. Nada, pois, de admirar que essa inteligência se manifeste por sons musicais, de vez que pode fazê-lo pela escrita e pelo desenho.

Uma vez entrados nesta ordem de ideias, as batidas vibradas, o movimento dos objetos e todos os fenômenos espíritas de ordem material se explicam muito naturalmente.

Em certos indivíduos a malevolência não conhece limites. A calúnia tem sempre veneno contra todo aquele que se eleva acima da multidão. Os adversários do Sr. Home acharam que o ridículo é uma arma muito frágil: ela devia amolgar-se contra os nomes respeitáveis que o cercam com a sua proteção. Desde que não podiam rir à sua custa, procuraram denegri-lo. Espalharam o boato, com o objetivo que bem compreendemos e as más línguas o repetem de que o Sr. Home não havia partido para a Itália, conforme fora anunciado, mas que estava na prisão de Mazas, sob o peso de graves acusações, que são contadas como anedotas, de que são sempre ávidos os desocupados e os amigos de escândalos.

Podemos afirmar que nada há de verdadeiro em todas essas maquinações infernais. Temos à vista várias cartas do Sr. Home, datadas de Pisa, de Roma e de Nápoles, onde atualmente ele se encontra. Estamos, pois, em condição de provar aquilo que afirmamos.

Têm razão os Espíritos de afirmar que os verdadeiros demônios se acham entre os homens.

* * *

Lê-se num jornal: “Conforme a Gazette des Hôpitaux[1], neste momento contam-se no hospital de “alienados” de Zurique 25 pessoas que perderam a razão graças às mesas girantes e aos Espíritos batedores”.

Para começar, perguntamos se está bem averiguado que esses 25 alienados devem todos a perda da razão aos Espíritos batedores, o que é contestável, pelo menos até haver provas autênticas. Admitindo que esses estranhos fenômenos tenham podido impressionar de modo prejudicial certos caracteres fracos, perguntaríamos se, por outro lado, o medo do diabo não fez mais loucos do que a crença nos Espíritos. Ora, de vez que os Espíritos não são impedidos de bater, o perigo está na crença de que todos aqueles que se manifestam são demônios. Afastese esta ideia, dando a conhecer a verdade, e não haverá mais medo do que dos vagalumes. A ideia de que se é assediado pelo diabo é feita sob medida para perturbar a razão.

Em contraposição, temos uma outra notícia, de outro jornal, que diz: “Há um curioso documento estatístico das funestas consequências a que, entre os ingleses, arrasta o hábito da intemperança e das bebidas fortes. De cada 100 indivíduos entrados no hospital de alienados de Hamwel, há 72 cuja alienação mental deve ser atribuída à embriaguez”.

* * *

Recebemos de nossos assinantes numerosos relatos de fatos muito interessantes que nos apressaremos a publicar em nossas próximas edições, de vez que a falta de espaço não nos permite fazê-lo nesta.

ALLAN KARDEC30



[1] Gazeta dos hospitais.




Maio

É fácil conceber a influência moral dos Espíritos e as relações que possam ter com a nossa alma, ou com o Espírito em nós encarnado. Compreende-se que dois seres da mesma natureza possam comunicar-se pelo pensamento, que é um de seus atributos, sem o concurso dos órgãos da palavra. Já é, entretanto, mais difícil dar-nos conta dos efeitos materiais que eles podem produzir, tais como os ruídos, o movimento dos corpos sólidos, as aparições e sobretudo as aparições tangíveis.

Vamos tentar dar a explicação, segundo os próprios Espíritos e segundo a observação dos fatos.

A ideia que fazemos da natureza dos Espíritos torna à primeira vista incompreensíveis esses fenômenos. Diz-se que o Espírito é a ausência completa da matéria e, pois, que ele não pode agir materialmente. Ora, isto é errado. Interrogados sobre se são imateriais, assim responderam os Espíritos: “Imaterial não é bem o termo, porque o Espírito é alguma coisa; do contrário seria o nada. É material, se se quiser, mas de uma matéria de tal modo etérea que para vós é como se não existisse”. Assim, o Espírito não é uma abstração, como pensam alguns; é um ser, mas cuja natureza íntima escapa aos nossos sentidos grosseiros.

Encarnado no corpo, o Espírito constitui a alma. Quando o deixa, com a morte, não sai despojado de todo o envoltório. Dizem-nos todos que conservam a forma que tinham quando vivos; realmente, quando nos aparecem, em geral é sob a forma por que os conhecíamos.

Observemo-los atentamente, no instante em que deixam a vida: Eles se acham em estado de perturbação; ao seu redor tudo é confuso; veem o próprio corpo, inteiro ou mutilado, conforme o gênero de morte. Por outro lado, veem-se e sentemse vivos; algo lhes diz que aquele é o seu corpo, mas não compreendem como podem estar separados. O laço que os unia ainda não está, pois, rompido completamente.

Dissipado esse primeiro momento de perturbação, o corpo se torna para eles como uma roupa velha, da qual se despojaram sem pesar, mas continuam a se ver em sua forma primitiva. Ora, isto não é um sistema: é o resultado de observações feitas com inúmeros sensitivos. Poderemos agora nos reportar ao que nos contaram de certas manifestações produzidas pelo Sr. Home e por outros médiuns do mesmo gênero: aparecem mãos que têm todas as propriedades das mãos vivas, que tocamos, que nos seguram e que se desfazem repentinamente.

Que devemos concluir disso? Que a alma não deixa tudo no caixão: leva algo consigo.

Assim, haveria em nós duas espécies de matéria: uma grosseira, que constitui o envoltório exterior; a outra sutil e indestrutível. A morte é a destruição, ou melhor, a desagregação da primeira, daquela abandonada pela alma; a outra se destaca e segue a alma que, assim, continua tendo sempre um envoltório. A esse envoltório denominamos perispírito. Essa matéria sutil, por assim dizer extraída de todas as partes do corpo a que estava ligada durante a vida, conserva a forma daquele. Eis por que todos os Espíritos são vistos e por que nos aparecem tais quais eram em vida.

Mas essa matéria sutil não tem a tenacidade nem a rigidez da matéria compacta do corpo: é, se assim podemos dizer, flexível e expansiva. Eis por que a forma que toma, muito embora calcada sobre a do corpo, não é absoluta: dobra-se à vontade do Espírito, que lhe dá, conforme queira, esta ou aquela aparência, enquanto que o envoltório sólido lhe oferece uma resistência intransponível. Desembaraçando-se desse entrave que o comprimia, o perispírito distende-se ou se contrai; transforma-se e, numa palavra, presta-se a todas as metamorfoses, de acordo com a vontade que sobre ele atua.

Prova a observação ─ e insistimos sobre o vocábulo observação, porque toda a nossa teoria é consequência dos fatos estudados ─ que a matéria sutil, que constitui o segundo envoltório do Espírito, só pouco a pouco se desprende do corpo, e não instantaneamente. Assim, os laços que unem alma e corpo não se rompem de súbito pela morte. Ora, o estado de perturbação que observamos dura todo o tempo em que se opera o desprendimento. Somente quando esse desprendimento é completo o Espírito recobra a inteira liberdade de suas faculdades e a consciência clara de si mesmo.

A experiência ainda prova que a duração desse desprendimento varia conforme os indivíduos. Em alguns opera-se em três ou quatro dias, ao passo que noutros não se completa senão ao cabo de vários meses. Assim, a destruição do corpo e a decomposição pútrida não bastam para que se opere a separação. Eis a razão por que certos Espíritos dizem: Sinto que os vermes me roem.

Em algumas pessoas a separação começa antes da morte: são as que em vida se elevaram pelo pensamento e pela pureza de seus sentimentos, acima das coisas materiais. Nelas a morte encontra apenas fracos liames entre a alma e o corpo e que se rompem quase instantaneamente. Quanto mais materialmente viveu o homem; quanto mais seus pensamentos foram absorvidos nos prazeres e nas preocupações da personalidade, tanto mais tenazes são aqueles laços. Parece que a matéria sutil se identifica com a matéria compacta e que entre elas se estabelece uma coesão molecular. Eis por que só se separam lentamente e com dificuldade.

Nos primeiros instantes que se seguem à morte, quando ainda existe união entre o corpo e o perispírito, este conserva muito melhor a impressão da forma corpórea, da qual, por assim dizer, reflete todas as nuanças e mesmo todos os acidentes. Eis por que um supliciado nos dizia, alguns dias após a sua execução: Se me pudésseis ver, ver-me-íeis com a cabeça separada do tronco. Um homem que tinha sido assassinado nos dizia: Vede a ferida que me fizeram no coração. Pensava ele que poderíamos vê-lo.

Estas considerações conduzir-nos-iam ao exame da interessante questão da sensação dos Espíritos e de seus sofrimentos. Fá-lo-emos em outro artigo, a fim de que aqui nos limitemos ao estudo das manifestações físicas.

Imaginemos, pois, o Espírito revestido de seu envoltório semimaterial, ou perispírito, tendo a forma ou aparência que possuiu quando vivo. Alguns até se servem desta expressão para se designarem; dizem: minha aparência está em tal lugar. Evidentemente são estes os manes dos antigos. A matéria desse envoltório é suficientemente sutil para escapar à nossa vista em seu estado normal, mas não é completamente invisível. Para começar, vemo-lo pelos olhos da alma, nas visões produzidas durante os sonhos. Mas não é disto que nos queremos ocupar. Nessa matéria eterizada pode haver uma modificação; o próprio Espírito pode fazê-la sofrer uma espécie de condensação que a torna perceptível aos olhos do corpo. É o que ocorre nas aparições vaporosas. A sutileza dessa matéria lhe permite atravessar os corpos sólidos, razão por que tais aparições não encontram obstáculos e por que tantas vezes desaparecem através das paredes.

A condensação pode chegar ao ponto de produzir a resistência e a tangibilidade. É o caso das mãos que podemos ver e tocar. Mas essa condensação ─ e esta é a única palavra de que nos podemos servir, para dar uma ideia, embora imperfeita, de nosso pensamento ─ esta condensação, íamos dizendo, ou ainda essa solidificação da matéria etérea, é apenas temporária ou acidental, porque esse não é o seu estado normal. Eis por que, em um dado momento, as aparições tangíveis nos escapam como uma sombra. Assim, do mesmo modo que um corpo se nos apresenta em estado sólido, líquido ou gasoso, conforme o grau de condensação, assim a matéria etérea do perispírito pode aparecer-nos em estado sólido, vaporoso visível ou vaporoso invisível.

Veremos, a seguir, como se opera essa modificação.

A mão aparente, tangível, oferece uma resistência: exerce pressão, deixa impressões, opera uma tração sobre os objetos que seguramos. Nela há, pois, uma força. Ora, estes fatos, que não são hipóteses, podem levar-nos à explicação das manifestações físicas.

Notemos, antes de mais nada, que essa mão obedece a uma inteligência, pois age espontaneamente; dá sinais inequívocos de uma vontade e obedece a um pensamento: pertence, pois, a um ser completo, que só nos mostra essa parte de si mesmo, e a prova é que produz impressões com as partes invisíveis; os dentes deixam marcas na pele e produzem dor.

Entre as diversas manifestações, uma das mais interessantes é, sem dúvida, o toque espontâneo de instrumentos de música. Os pianos e acordeons são aparentemente os instrumentos prediletos. Este fenômeno é explicado muito naturalmente pelo que precede. A mão que tem a força para apanhar um objeto, também pode tê-la para fazer pressão sobre as teclas e fazê-las soar. Aliás, por diversas vezes vimos os dedos em ação, e quando a mão não é vista, veem-se as teclas em movimento e o fole a distender-se e fechar-se. As teclas só podem ser movidas por mão invisível, a qual dá mostras de inteligência, tocando árias perfeitamente ritmadas e não sons incoerentes.

Desde que essa mão pode enfiar-nos as unhas na carne, beliscar-nos, arrebatar aquilo que temos na mão; desde que a vemos apanhar e transportar um objeto, assim como nós o faríamos, também nos pode dar pancadas, erguer e derrubar uma mesa, tocar uma campainha, puxar uma cortina e até mesmo nos dar uma bofetada invisível.

Perguntarão talvez como essa mão, no estado vaporoso invisível, pode ter a mesma força que no estado tangível. E por que não? Vemos o ar derrubar edifícios, o gás lançar projéteis, a eletricidade transmitir sinais, o fluido do ímã levantar massas? Por que a matéria etérea do perispírito seria menos poderosa? Mas não a queiramos submeter às nossas experiências de laboratório e às nossas fórmulas algébricas. Principalmente pelo fato de havermos tomado os gases como termo de comparação, não lhes vamos atribuir propriedades idênticas, nem computar sua força do mesmo modo pelo qual calculamos a do vapor. Até agora ela escapa a todos os nossos instrumentos. É uma nova ordem de ideias, fora da competência das ciências exatas. Eis por que essas ciências não nos oferecem a aptidão especial para apreciá-las.

Damos esta teoria do movimento dos corpos sólidos sob a influência dos Espíritos apenas para mostrar a questão sob todos os seus aspectos e provar que, sem nos afastarmos muito das ideias recebidas, é possível dar-nos conta da ação dos Espíritos sobre a matéria inerte. Há, porém, uma outra, de alto alcance filosófico, dada pelos próprios Espíritos, e que lança sobre este problema uma luz inteiramente nova. Ela será mais bem compreendida depois que a tiverem lido. Aliás, é útil conhecer todos os sistemas, a fim de poder compará-los.

Resta agora explicar como se opera essa modificação da substância etérea do perispírito; por que processo o Espírito opera e, em consequência, o papel dos médiuns de influência física na produção desses fenômenos; aquilo que em tais circunstâncias neles se passa; a causa e a natureza de suas faculdades, etc.

É o que faremos no próximo artigo.

Já tínhamos ouvido falar de certos fenômenos espíritas que em 1852 haviam causado enorme celeuma na Baviera renana, nas cercanias de Spira; sabíamos até que havia sido publicada uma brochura em alemão, com um relato autêntico. Depois de longas e infrutíferas buscas, uma senhora, nossa assinante da Alsácia, demonstrando grande interesse e perseverança, pelo que lhe somos imensamente agradecidos, conseguiu um exemplar daquela brochura e no-la ofereceu.

Damos aqui a sua tradução in extenso, esperando seja lida com tanto maior interesse quanto mais uma vez vem provar que fatos desse gênero são de todos os tempos e lugares, desde que estes ocorreram numa época em que apenas se começava a falar em Espíritos.



PROÊMIO

Há vários meses um acontecimento singular constitui o assunto de todas as conversas em nossa cidade e suas imediações. Referimo-nos ao Batedor, como é chamado, da casa do alfaiate Pedro Sänger.

Até aqui abstivemo-nos de qualquer relato em nossa folha ─ o Jornal de Bergzabern ─ das manifestações que desde 1.º de janeiro de 1852 se produzem naquela casa. Como, porém, chamaram a atenção geral a tal ponto que as autoridades se sentiram no dever de pedir ao Dr. Bentner uma explicação para o caso e o Dr. Dupping, de Spira, chegou a ir ao local para observar os fatos, não nos podemos por mais tempo furtar ao dever de lhes dar publicidade.

Sentir-nos-íamos muito embaraçados se os leitores esperassem de nós um pronunciamento sobre a questão: deixamos essa tarefa àqueles que, pela direção de seus estudos e por sua posição, estão mais aptos a julgar, o que farão sem maiores dificuldades, se conseguirem descobrir a causa daqueles efeitos.

Quanto a nós, limitar-nos-emos ao simples relato dos fatos, principalmente daqueles que testemunhamos ou que ouvimos de pessoas dignas de fé. O leitor que forme a sua opinião.

F. A. Blanck Redator do Jornal de Bergzabern.

Maio de 1852.

A 1.º de janeiro deste ano, em Bergzabern, na casa em que residia, e no quarto vizinho à sala de estar, a família de Pedro Sänger ouviu um como martelar, que começava por golpes surdos e como se viessem de longe, e que se tornavam progressivamente mais fortes e distintos. Esses golpes pareciam desferidos na parede, junto à qual se achava o leito de sua filha de doze anos de idade.

Habitualmente, o ruído era ouvido entre nove e meia e dez e meia. A princípio o casal não ligou importância; como, porém, essa singularidade se repetisse todas as noites, pensaram que viesse da casa vizinha, onde talvez um doente se distraísse tamborilando na parede. Logo, entretanto, se convenceram de que não havia tal doente, nem ele poderia ser a causa do ruído. Foi revolvido o chão do quarto; a parede foi derrubada, mas tudo sem resultado. A cama foi mudada para o lado oposto do quarto: então ─ coisa admirável ─ o ruído mudou de lugar e era percebido assim que a menina dormia.

Era claro que de algum modo a garota participava da manifestação daquele ruído. Depois das inúteis pesquisas da polícia, começou-se a pensar que o fato deveria ser atribuído a uma doença da criança ou a uma particularidade de sua conformação. Entretanto, até agora nada veio confirmar tal suposição. É ainda um enigma para os médicos.

Com a espera, a coisa se desenvolveu: o ruído prolongou-se por mais de uma hora e os golpes eram vibrados com mais força. A menina mudou de cama e de quarto, mas o batedor se manifestou nesse outro quarto; debaixo da cama; na cama e na parede. Os golpes não eram idênticos: ora mais fortes, ora mais fracos e isolados, ora, enfim, sucedendo-se rapidamente e seguindo o ritmo das marchas militares e das danças.

A menina ocupava desde alguns dias o quarto mencionado, quando notaram que, durante o seu sono, ela emitia palavras curtas e incoerentes. As palavras logo se tornaram mais distintas e mais inteligíveis; parecia que a criança falava com outra pessoa sobre a qual ela tinha autoridade. Entre os fatos que diariamente se produziam, o autor desta brochura relata um, do qual foi testemunha:

A criança achava-se na cama, deitada sobre o lado esquerdo. Apenas adormecida, os golpes começaram e assim começou ela a falar: “Você, você! Bata uma marcha!” E o batedor marcou uma que se parecia muito com uma marcha bávara. À ordem de “alto!” dada pela menina, o batedor parou. Então ela ordenou: “Bata três, seis, nove vezes”. O batedor executou a ordem. A uma nova ordem de bater 19 golpes, ouviram-se 20 batidas, ao que retorquiu a menina adormecida: “Não está certo; foram 20 batidas”. Logo foi possível contar 19 golpes. A seguir ela pediu 30 pancadas e as 30 foram ouvidas. À ordem de 100 pancadas só foi possível contar até 40, tão rápidos eram os golpes. Soado o último golpe a menina disse: “Muito bem! Agora 110”. Então só nos foi possível contar até cerca de 50. Ao último golpe disse a dorminhoca: “Não está certo. Você deu apenas 106”; e logo se fizeram ouvir as 4 pancadas para completar as 110. Depois ela pediu: “Mil!” Foram batidas apenas 15. “Ora, vamos!” O batedor marcou ainda 5 golpes e parou.

Então os assistentes tiveram a ideia de dar ordens diretamente ao batedor, o qual as executou. Parava quando recebia a ordem de “Alto! Silêncio! Basta!” Depois, por si mesmo e sem comando, recomeçava a bater. Um dos assistentes disse, em voz baixa, num canto do quarto, que queria comandar apenas por pensamento, para que fossem dadas 6 batidas. Então o experimentador postou-se junto ao leito e não disse uma só palavra: foram ouvidas as 6 pancadas. Ainda por pensamento foram pedidas 4 e os 4 golpes foram ouvidos. A mesma experiência foi tentada por outras pessoas, mas nem sempre deu bom resultado.

Em breve a menina espreguiçou-se, afastou as cobertas e levantou-se.

Quando lhe perguntaram o que havia acontecido, respondeu que tinha visto um homem grande e mal-encarado, junto a seu leito, e que lhe apertava os joelhos. Acrescentou que sentia dor nos joelhos quando o homem batia. Ela adormeceu novamente e as manifestações prosseguiram até que o relógio bateu onze horas. De repente o batedor parou, a menina entrou em sono tranquilo, reconhecido pela regularidade da respiração e naquela noite nada mais foi ouvido.

Observamos que o batedor obedecia à ordem de marcar marchas militares. Várias pessoas afirmaram que quando se lhe pedia uma marcha russa, austríaca ou francesa, ela era marcada com muita exatidão.

A 25 de fevereiro, estando adormecida, a menina disse: “Agora você não quer mais bater; quer arranhar. Está bem! Quero ver como você fará isso.” Com efeito, no dia seguinte, 26, em vez dos golpes ouvia-se um arranhar que parecia vir da cama e que se manifestou até hoje. As batidas se misturaram à raspagem, ora alternadas, ora simultaneamente, de tal modo que nas árias de marcha ou de dança a raspagem marcava os tempos fortes e a batida os tempos fracos. Conforme os pedidos, a hora do dia ou a idade das pessoas eram indicadas por golpes secos ou pela raspagem. Em relação à idade das pessoas, às vezes havia erros, logo corrigidos na segunda ou terceira tentativa, desde que se dissesse que o número tinha sido marcado erradamente. Algumas vezes, em lugar de dar a idade pedida, o batedor executava uma marcha.

Dia a dia a linguagem da criança, durante o sono, tornava-se mais perfeita. Aquilo que a princípio não passava de simples palavras ou de ordens rápidas ao batedor, transformou-se, com o tempo, numa conversa encadeada com os pais. Assim, um dia se entreteve com a irmã mais velha sobre assuntos religiosos, num tom de exortação e de ensino, dizendo-lhe que ela devia ir à missa, fazer as preces todos os dias e mostrar submissão e obediência aos pais. À noite retomou o mesmo assunto. Em seus ensinamentos, nada havia de teológico, mas apenas algumas daquelas noções que se aprendem na escola.

Antes dessas conversas ouviam-se durante uma hora, pelo menos, pancadas e arranhões, não só durante o sono da menina, mas até em seu estado de vigília. Vimola comer e beber enquanto as batidas e raspagens eram ouvidas, do mesmo modo que, estando acordada, tínhamos ouvido a transmissão de ordens ao batedor, as quais foram todas executadas.

Na noite de sábado, 6 de março, várias pessoas se reuniram em casa dos Sänger, pois estando desperta a menina, havia predito durante o dia que o batedor apareceria às nove horas da noite. Ao bater essa hora, quatro golpes tão violentos foram desferidos na parede que os assistentes se assustaram. Logo, e pela primeira vez, as batidas foram dadas na madeira da cama e exteriormente. O leito foi todo abalado. Esses golpes se manifestaram de todos os lados da cama, ora num, ora noutro lugar. Pancadas e arranhões alternavam-se. A uma ordem da menina e das pessoas presentes, ora os golpes se ouviam no interior da cama, ora externamente. De repente o leito levantou-se em sentidos diferentes, enquanto os golpes eram desferidos com força. Mais de cinco pessoas em vão tentaram repor o leito no lugar, e quando desistiram da tentativa, ele ainda se balançou por alguns instantes, depois do que tomou a sua posição natural. Este fato já havia ocorrido uma vez, antes dessa manifestação pública.

Todas as noites a menina fazia uma espécie de discurso, de que falaremos de modo sucinto.

Antes de mais nada, é preciso notar que ela, assim que baixava a cabeça, logo adormecia e começavam os golpes e as arranhaduras. Com as batidas ela gemia, agitava as pernas e parecia sentir-se mal. Já o mesmo não acontecia com as raspagens. Chegado o momento de falar, a menina deitava-se em decúbito dorsal, o rosto tornava-se pálido, assim como as mãos e os braços. Ela acenava com a mão direita e dizia: “Vamos! Venha para perto de minha cama e junte as mãos. Vou lhe falar do Salvador do mundo”. Então cessavam batidas e arranhaduras e todos os assistentes ouviam com respeitosa atenção o discurso da adormecida.

Ela falava com vagar e de modo muito inteligível em puro alemão, o que surpreendia tanto mais quanto mais se sabia que ela era menos adiantada que seus colegas de colégio, nessa matéria, o que certamente era devido a uma doença dos olhos, que lhe dificultava o estudo. Suas palestras discorriam sobre a vida e as ações de Jesus desde os doze anos; sua presença no templo entre os escribas; seus benefícios à Humanidade e os seus milagres. Depois se entretinha em descrever os seus sofrimentos e censurava duramente os judeus por terem crucificado Jesus, apesar de seus atos de bondade e de suas bênçãos. Terminando, a menina dirigia a Deus uma fervorosa prece, pedindo que “lhe concedesse a graça de suportar com resignação os sofrimentos que lhe tinha enviado, pois que a havia escolhido para entrar em comunicação com o Espírito”. Pedia a Deus para não morrer ainda, pois era criança e não queria descer ao túmulo escuro. Terminadas as suas prédicas, recitava com uma voz solene o Pater noster, depois do que dizia: “Agora você pode vir”. Imediatamente recomeçavam as batidas e arranhaduras. Ela ainda falou duas vezes ao Espírito e, a cada uma delas, o batedor parava. Dizia ainda algumas palavras e acrescentava: “Agora você pode ir, em nome de Deus”. E despertava.

Durante essas palestras os olhos da menina ficavam bem fechados, mas os lábios se mexiam. As pessoas mais próximas do leito podiam observar-lhe os movimentos. A voz era pura e harmoniosa.

Despertando, perguntavam-lhe o que tinha visto e o que se havia passado. Ela respondia:

— O homem que vem me ver.

— Onde está ele?

— Perto de minha cama, com as outras pessoas.

— Você viu as outras pessoas?

— Vi todos os que estavam perto da minha cama.

É fácil compreender que tais manifestações encontrassem muitos incrédulos. Chegou-se mesmo a pensar que toda essa história era pura mistificação. Mas o pai era incapaz de palhaçadas, sobretudo de uma palhaçada que exigia toda a habilidade de um prestidigitador profissional. Ele goza da reputação de homem decente e honesto.

Para responder e fazer cessar a suspeita, a menina foi levada para uma casa estranha. Apenas lá chegando, ouviram-se as batidas e arranhaduras. Além disso, alguns dias antes ela tinha ido com a mãe a uma pequena aldeia chamada Capela, a cerca de meia légua de distância, à casa da viúva Klein. Como ela disse que estava cansada, deitaram-na num canapé, e imediatamente o mesmo fenômeno se produziu. Várias testemunhas o podem afirmar. Posto a criança tivesse um aspecto saudável, devia ser afetada por uma doença que, se não ficasse provada pelas manifestações acima relatadas, pelo menos pelos movimentos involuntários dos músculos e dos abalos nervosos.

Para terminar, faremos notar que há algumas semanas a menina foi levada ao Dr. Bentner, com quem ficou, a fim de que esse sábio pudesse estudar mais de perto os fenômenos em apreço. Desde então cessou todo barulho em casa da família Sänger, passando a produzir-se na do Dr. Bentner.

São estes, com toda a sua autenticidade, os fatos que se passaram. Entregamolos ao público sem emitir opinião. Possam os homens da Medicina dar-lhes em breve uma explicação satisfatória.

BLANCK

É fácil dar a explicação solicitada pelo narrador que acabamos de citar: Só existe uma, a que é dada pela Doutrina Espírita. Esses fenômenos nada têm de extraordinário para as pessoas familiarizadas com aqueles a que nos habituaram os Espíritos. Sabe-se o papel que certas criaturas emprestam à imaginação. Sem dúvida, se a menina apenas tivesse tido visões, os partidários da alucinação ter-se-iam embandeirado. Mas aqui havia efeitos materiais de natureza inequívoca e que tiveram um grande número de testemunhas. Era preciso admitir que todos estivessem alucinados a ponto de pensarem ouvir aquilo que não ouviam e verem movimento em coisas imóveis. Ora, nisso estaria um fenômeno ainda mais extraordinário.

Aos incrédulos resta apenas um recurso: negar. É mais fácil e dispensa o raciocínio.

Examinando as coisas do ponto de vista espírita, torna-se evidente que o Espírito que se manifestou era inferior ao da menina, pois lhe obedecia; subordinava-se até aos assistentes, pois esses lhe davam ordens. Se não soubéssemos pela Doutrina que os chamados Espíritos batedores estão na parte inferior da escala, aquilo que se passou nos seria uma prova disso. Realmente não se conceberia que um Espírito elevado, assim como os nossos sábios e nossos filósofos, viesse divertirse em bater marchas e valsas e, numa palavra, representar o papel de jogral ou submeter-se aos caprichos dos seres humanos. Ele se mostra com as feições de criatura mal-encarada, circunstância que apenas corrobora esta opinião. Em geral a moral se reflete no envoltório. Está, pois, demonstrado para nós que o batedor de Bergzabern é um Espírito inferior, da classe dos Espíritos levianos, que se manifestou como antes outros o fizeram e ainda o fazem em nossos dias.

Mas, com que propósito se manifestou? A notícia não diz que tenha sido chamado. Hoje, que estamos mais experimentados nestas coisas, não se deixaria entrar um visitante tão estranho sem que ele informasse quais os seus propósitos. Apenas podemos fazer uma conjectura. É verdade que nada fez ele que revelasse maldade ou má intenção, pois a menina não sofreu nenhum distúrbio físico ou moral. Só os homens poderiam ter chocado a sua moral, ferindo-lhe a imaginação com contos ridículos. Por sorte não o fizeram. Esse Espírito, por mais inferior que fosse, nem era mau nem malévolo. Era apenas um desses Espíritos tão numerosos, dos quais, por vezes e malgrado nosso, estamos rodeados. Ele pode ter agido naquelas circunstâncias por um mero capricho, como também poderia fazê-lo por instigação de Espíritos elevados, com o fito de despertar a atenção dos homens e convencê-los da realidade de um poder superior, fora do mundo corpóreo.

Quanto à criança, é certo que era um desses médiuns de influência física, dotados, malgrado seu, de tal faculdade, e que estão para os outros médiuns assim como os sonâmbulos naturais estão para os sonâmbulos magnéticos. Dirigida com prudência por um homem experimentado nesta nova Ciência, essa faculdade poderia ter produzido coisas ainda mais extraordinárias e de natureza a lançar nova luz sobre esses fenômenos, que são maravilhosos apenas porque não são compreendidos.

O orgulho — Dissertação moral ditada por São Luis à Srta. Hermance Dufaux.

I

Um homem soberbo possuía algumas jeiras* de boa terra. Sentia-se orgulhoso das pesadas espigas que cobriam o seu campo e lançava o olhar desdenhoso sobre o campo estéril do humilde. Esse levantava-se ao cantar do galo e ficava o dia todo curvado sobre o solo ingrato; recolhia pacientemente os seixos e ia atirá-los à beira do caminho; revolvia profundamente a terra e arrancava com dificuldade os espinheiros que a cobriam. Ora, seu suor fecundou o campo e ele colheu o melhor trigo.

Entretanto, o joio crescia no campo do homem soberbo e abafava o trigo, enquanto o dono se vangloriava de sua fecundidade e olhava com piedade os esforços silenciosos do humilde.

Em verdade vos digo que o orgulho é semelhante ao joio que afoga o bom grão. Aquele dentre vós que se julga mais que seu irmão e que se vangloria, é insensato. Sábio é o que trabalha por si mesmo, como o humilde em seu campo, sem se envaidecer de sua obra.


* Medida agrária com 0,2 hectare.


II

Havia um homem rico e poderoso que desfrutava o favor do príncipe. Morava em palácios e numerosos servos esforçavam-se por adivinhar-lhe os desejos.

Um dia em que suas matilhas acuavam um cervo nas profundezas da floresta, ele avistou um pobre lenhador vergando ao peso de um feixe de lenha. Chamou-o e lhe disse:

─ Vil escravo! Por que passas pelo caminho sem te inclinares perante mim? Sou igual ao Senhor: nos conselhos minha voz decide a paz e a guerra, e os grandes do reino curvam-se em minha presença. Saiba que sou sábio entre os sábios, poderoso entre os poderosos, grande entre os grandes e minha elevação é obra de minhas mãos.

─ “Senhor! ─ respondeu o pobre homem ─ temi que minha saudação humilde vos fosse uma ofensa. Sou pobre e o único bem que possuo são os meus braços, mas não desejo vossas grandezas enganosas. Durmo o meu sono e não temo, como vós, que o prazer do senhor me faça cair em minha obscuridade.

Ora, o príncipe entediou-se do orgulho da soberba. Os grandes humilhados ergueram-se contra ele, que foi precipitado do pináculo de seu poder, como uma folha seca que o vento varre do cume da montanha. Mas o humilde continuou pacificamente seu rude trabalho, sem preocupação pelo dia seguinte.

III

Soberbo, humilha-te, porque a mão do Senhor curvará o teu orgulho até a poeira!

Escuta! Nasceste onde te lançou a sorte; saíste do seio materno fraco e nu como o último dos homens. Por que levantas a fronte mais alto que os teus semelhantes, tu que como eles nasceste para a dor para a morte?

Escuta! Tuas riquezas e tuas grandezas, vaidades das vaidades, escaparão de tuas mãos quando vier o grande dia, como as águas inconstantes da torrente que o sol evapora. Não levarás de tuas riquezas mais que as tábuas do esquife, e os títulos gravados na lápide funerária serão palavras vazias de sentido.

Escuta! O cão do coveiro brincará com os teus ossos, e eles serão misturados aos do mendigo; a tua poeira confundir-se-á com a dele, porque um dia vós ambos sereis apenas pó. Então amaldiçoarás os dons que recebeste, quando vires o mendigo revestido de sua glória, e chorarás o teu orgulho.

Humilha-te, soberbo, porque a mão do Senhor curvará o teu orgulho até o pó.

* * *

─ Por que São Luís nos fala em parábolas?

─ O Espírito humano gosta do mistério. A lição se grava melhor no coração quando nós a procuramos.

─ Parece que hoje a lição nos deve ser dada de maneira mais direta, sem termos que recorrer à alegoria.

─ Encontrá-la-eis no desenvolvimento. Desejo ser lido, e a moral necessita de um disfarce sob a atração do prazer.

1. ─ De dois homens ricos, o primeiro nasceu na opulência e jamais conheceu a necessidade; o segundo deve a fortuna ao próprio trabalho. Ambos a empregam exclusivamente na satisfação pessoal. Qual deles é o mais culpável? ─ O que conheceu o sofrimento. Ele sabe o que é sofrer.

2.
─ Aquele que acumula continuamente, sem fazer o bem a ninguém, terá uma desculpa aceitável na ideia de acumular para deixar bastante aos filhos? ─ É um compromisso com a consciência má.

3.
─ De dois avarentos, o primeiro se priva do necessário e morre de privações sobre o seu tesouro; o segundo só é avarento para com os outros: é pródigo para consigo mesmo. Enquanto foge ao menor sacrifício a fim de prestar um obséquio ou fazer algo de útil, não põe limite aos seus prazeres pessoais. Aborrece-se quando lhe pedem um favor; quer entregar-se aos seus caprichos, que nunca lhe faltam. Qual o mais culpado e qual deles terá o pior lugar no mundo dos Espíritos? ─ O que goza. O outro já recebeu a sua punição.

4. ─ Aquele que em vida não empregou utilmente a sua fortuna encontra alívio em fazer o bem após a morte, pelo destino que lhe dá? ─ Não. O bem vale o que custa.

A passagem que se segue foi extraída da carta de um dos nossos assinantes.

“...Perdi, há alguns anos, uma esposa boa e virtuosa e, embora me houvesse deixado seis filhos, sentia-me em completo isolamento, quando ouvi falar de manifestações espíritas. Em breve eu me encontrava num pequeno grupo de bons amigos, que todas as noites se ocupavam desse assunto. Aprendi, então, através das comunicações obtidas, que a verdadeira vida não está na Terra, mas no mundo dos Espíritos; que a minha Clemência ali era feliz e que, como outras, trabalhava pela felicidade dos que aqui havia conhecido.

“Ora, eis um ponto sobre o qual desejo ardentemente que me esclareçais.

“Uma noite eu dizia à minha Clemência: Minha cara amiga, por que, a despeito do nosso amor, acontece que nem sempre tivemos o mesmo ponto de vista nas diversas circunstâncias de nossa vida comum, e por que tantas vezes fomos obrigados a concessões recíprocas a fim de vivermos em boa harmonia? “Ela me respondeu:

─ “Meu amigo, nós éramos bons e honestos; vivemos juntos e, poderíamos dizer, do melhor modo possível, nessa Terra de provas, mas não éramos nossas metades eternas. Tais uniões são raras na Terra. Embora possam ser encontradas, representam um grande favor de Deus. Aqueles que desfrutam dessa felicidade experimentam alegrias que desconheces.

─ “Podes dizer-me se vês a tua metade eterna?

─ “Sim, respondeu ela. É um pobre diabo que vive na Ásia; poderá unir-se a mim só daqui a 175 anos, segundo a vossa maneira de contar.

─ “Vossa união será na Terra ou em outro mundo?

─ “Na Terra. Mas, escuta: eu não te posso descrever bem a felicidade dos seres assim reunidos. Pedirei a Heloísa e a Abelardo que te venham informar.

“Então, senhor, esses entes felizes vieram nos falar dessa indizível felicidade.

─ “À nossa vontade”, disseram eles, “dois não fazem mais que um. Viajamos pelo espaço; gozamos de tudo; amamo-nos com um amor sem fim, acima do qual só existe o amor de Deus e dos seres perfeitos. Vossas maiores alegrias não valem um só de nossos olhares e de nossos apertos de mão.”

“Alegra-me o pensamento das metades eternas. Parece que Deus, criando a Humanidade, a fez dupla e, separando as duas metades da mesma alma, lhes disse: Ide por esse mundo e procurai encarnações. Se fizerdes o bem, a viagem será curta e permitirei a vossa união. Do contrário, passar-se-ão séculos antes que possais gozar dessa felicidade. Tal é, ao que me parece, a causa primeira do movimento instintivo que arrasta a Humanidade em busca da felicidade, essa felicidade que a gente não compreende nem se empenha em compreender.

“Desejo ardentemente, senhor, um esclarecimento sobre esta teoria das metades eternas e sentir-me-ia feliz se tivesse uma explicação sobre o assunto num dos vossos próximos números...”

Interrogados sobre a matéria, Abelardo e Heloísa nos deram as respostas seguintes:


1. ─ As almas foram criadas duplas?
─ Se tivessem sido criadas duplas, simples elas seriam imperfeitas.

2. ─ É possível que duas almas possam reunir-se na eternidade, formando um todo?
─ Não.

3. ─ Você e sua Heloísa formam, desde a origem, duas almas perfeitamente distintas?
─ Sim.

4. ─ Ainda agora sois duas almas distintas? ─ Sim, mas sempre unidas.

5. ─ Os homens acham-se todos nas mesmas condições? ─ Conforme sejam mais ou menos perfeitos.

6. ─ As almas são todas destinadas a se unirem, um dia, a uma outra alma? ─ Cada Espírito tende a procurar um outro Espírito que lhe seja semelhante. É o que chamais de simpatia.

7. ─ Nessa união existe uma condição de sexo?
  • - As almas não têm sexo.

Tanto para satisfazer o desejo de nosso assinante quanto para nossa própria instrução, dirigimos ao Espírito de São Luís as perguntas que seguem:

1 ─ As almas que se devem unir estão predestinadas, desde a origem, a essa união e cada um de nós tem, em qualquer parte do Universo, a sua metade, à qual deverá um dia unir-se fatalmente?
─ Não. Não existe uma união particular e fatal de duas almas. Existe a união entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a posição que ocupam, isto é, segundo a perfeição adquirida: quanto mais perfeitos, mais unidos. Da discórdia brotam todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.

2 ─ Em que sentido devemos entender o vocábulo metade, de que se servem por vezes alguns Espíritos para a designação dos Espíritos simpáticos?
─ A expressão é inexata. Se um Espírito fosse metade de outro, dele separado, seria incompleto.

3 ─ Uma vez unidos, dois Espíritos perfeitamente simpáticos permanecem unidos para a eternidade ou podem separar-se e unir-se a outros Espíritos?
─ Todos os Espíritos estão unidos entre si. Falo dos que chegaram à perfeição. Nas esferas inferiores, quando um Espírito se eleva, não é mais simpático àqueles que deixou.

4 ─ Dois Espíritos simpáticos são o complemento um do outro ou essa simpatia é o resultado de uma perfeita identidade?
─ A simpatia que atrai um Espírito para outro resulta da perfeita concordância de suas inclinações e de seus instintos. Se um devesse completar o outro, perderia sua individualidade.

5 ─ A identidade necessária à simpatia perfeita consistiria apenas na similitude de pensamentos e de sentimentos, ou também na uniformidade de conhecimentos adquiridos?
─ Na igualdade do grau de elevação.

6 ─ Os Espíritos que hoje não são simpáticos poderão sê-lo mais tarde? ─ Sim, todos o serão. Assim, o Espírito que hoje se acha em esfera inferior alcançará, pelo aperfeiçoamento, a esfera onde reside um outro. Seu encontro dar-se a mais prontamente se o Espírito mais elevado, suportando mal as provas a que se submeteu, permanecer no mesmo estado.

7 ─ Dois Espíritos simpáticos poderão deixar de sê-lo?
─ Por certo, se um deles for preguiçoso.

Estas respostas resolvem perfeitamente a questão.

A teoria das metades eternas é uma figura referente à união de dois Espíritos simpáticos; é uma expressão usada mesmo na linguagem comum, tratando-se dos esposos, e que não se deve tomar ao pé da letra. Os Espíritos que dela se serviram certamente não pertencem à mais alta ordem. A esfera de seus conhecimentos é necessariamente limitada. Eles exprimiram o seu pensamento com as palavras de que se teriam servido na vida corpórea. É, pois, necessário rejeitar esta ideia de que dois Espíritos, criados um para o outro, um dia deverão unir-se na eternidade, depois de terem estado separados durante um lapso de tempo mais ou menos longo.

MOZART

Um dos nossos assinantes enviou-nos as duas entrevistas que se seguem, com o Espírito de Mozart. Ignoramos onde e quando se realizaram; não conhecemos o interpelante nem o médium; somos completamente estranhos a tudo isso. Entretanto, é notável a perfeita concordância que há entre as respostas obtidas e as que foram dadas por outros Espíritos sobre vários pontos capitais da Doutrina, em circunstâncias completamente diferentes, quer quanto a nós, quer quanto a outras pessoas, e que transcrevemos em números anteriores e no Livro dos Espíritos.

Sobre tal similitude chamamos a atenção dos nossos leitores, que da mesma tirarão a conclusão que lhes parecer mais adequada. Aqueles, pois, que ainda pudessem pensar que as respostas às nossas perguntas são um reflexo de nossa opinião pessoal, verão se neste caso nos foi possível exercer qualquer influência.

Felicitamos as pessoas que sustentaram essa conversação, pela maneira que as perguntas foram feitas. Apesar de certas falhas que demonstram a inexperiência dos interlocutores, em geral são formuladas com ordem, clareza e precisão e não fogem à linha de seriedade que constitui condição essencial para obter boas comunicações. Os Espíritos elevados se dirigem às pessoas sérias que de boa-fé desejam esclarecimentos. Os Espíritos levianos divertem-se com as criaturas frívolas.



PRIMEIRA CONVERSA

1. ─ Em nome de Deus, Espírito de Mozart, estais aqui? ─ Sim.

2.─ Por que é Mozart e não outro Espírito? ─ Foi a mim que evocaste: então vim.

3.─ Que é um médium?
─ O agente que une o meu ao teu Espírito.

4.─ Quais as modificações fisiológicas e anímicas que, malgrado seu, sofre o médium ao entrar em ação de intermediação?
─ Seu corpo nada sente, mas seu Espírito, parcialmente desprendido da matéria, está em comunicação com o meu, unindo-me a vós.

5. ─ O que se passa nele neste momento?
─ Nada com o corpo; apenas uma parte de seu Espírito é atraída para mim; faço sua mão agir pelo poder que o meu Espírito exerce sobre ele.

6.─ Assim, o médium entra em comunicação com uma individualidade espiritual diferente da sua?
─ Por certo. Tu também, sem seres médium, estás em contato comigo.

7.─ Quais os elementos que concorrem para a produção deste fenômeno?
─ A atração dos Espíritos, com o fim de instruir os homens; leis de eletricidade física.

8.─ Quais as condições indispensáveis? ─ É uma faculdade concedida por Deus.

9.─ Qual o princípio determinante? ─ Não posso dizê-lo.

10.─ Poderias revelar-nos as suas leis?
─ Não, não, por enquanto não. Mais tarde tudo sabereis.

11.─ Em que termos positivos poder-se-ia anunciar a fórmula sintética deste fenômeno maravilhoso?
─ Leis desconhecidas que não poderíeis compreender.

12.─ Poderia o médium pôr-se em relação com a alma de uma pessoa viva? Em que condições?
Facilmente, se a pessoa estiver adormecida.[1]

13.─ O que entendes pelo vocábulo alma?
─ Centelha divina.

14. ─ E por Espírito?
─ Espírito e alma são a mesma coisa.

15.─ Como Espírito imortal, a alma tem consciência do momento da morte, consciência de si mesma ou do eu imediatamente após a morte?
─ A alma nada sabe do passado e não conhece o futuro senão após a morte do corpo. Então vê sua vida pretérita e suas últimas provas; escolhe sua nova expiação para uma outra existência, bem como a prova a passar. Assim, ninguém se deve lamentar do que sofre na Terra, mas deve suportá-lo com coragem.

16.─ Depois da morte, acha-se a alma desligada de todo elemento, de todo laço terrestre?
─ De todo elemento, não. Ela tem ainda um fluido que lhe é próprio, que extrai da atmosfera de seu planeta e que representa a aparência de sua última encarnação. Os laços terrenos nada mais são para ela.

17.─ Sabe ela de onde vem e para onde vai?
─ A resposta décima quinta resolve esta questão.

18.─ Nada leva ela consigo daqui de baixo?
─ Nada além da lembrança das boas obras, o pesar de suas faltas e o desejo de passar a um mundo melhor.

19.─ Abarca ela num relance retrospectivo o conjunto de sua vida passada? ─ Sim, para servir à sua vida futura.

20.─ Ela entrevê o objetivo da vida terrena e o seu significado; o sentido desta vida, assim como a importância do destino que aqui se cumpre, em relação à vida futura?
─ Sim, ela compreende a necessidade de depuração para chegar ao infinito; quer purificar-se para atingir os mundos bem-aventurados. Sou feliz, mas ainda não me encontro nos mundos onde se desfruta a visão de Deus!

21.─ Existe na vida futura uma hierarquia dos Espíritos? Qual a sua lei?
─ Sim. É o grau de depuração que a caracteriza. A bondade e as virtudes são os títulos de glória.

22.─ Como potência progressiva, é a inteligência que nela determina a marcha ascendente?
─ São sobretudo as virtudes, principalmente o amor ao próximo.

23.─ Uma hierarquia dos Espíritos faz supor uma hierarquia de residências. Ela existe? Sob que forma?
─ A inteligência, que é dom de Deus, é sempre a recompensa das virtudes da caridade e do amor ao próximo. Os Espíritos habitam diferentes planetas, conforme o seu grau de perfeição. Neles desfrutam de maior ou menor felicidade.

24.─ Que é o que se deve entender por Espíritos superiores?
─ Os Espíritos purificados.

25.─ Nosso globo terrestre é o primeiro desses degraus, o ponto de partida, ou vimos ainda de um ponto inferior?
─ Há dois globos antes do vosso, que é um dos menos perfeitos.

26.─ Qual o mundo que habitas? Ali és feliz?
─ Júpiter. Ali desfruto de uma grande calma; amo a todos os que me rodeiam. Não temos o ódio.

27.─ Se tens lembrança da vida terrena, deves recordar-te do casal A..., de Viena. Já os viste a ambos depois de tua morte? Em que mundo e em que condições?
─ Não sei onde se encontram. Não te posso dizer. Um é mais feliz que o outro. Por que me falas deles?

28.─ Por uma única palavra, indicativa de um fato capital de tua vida, e que não poderás ter esquecido, podes fornecer-me uma prova certa dessa recordação.
Concito-te a dizer tal palavra.
─ Amor; reconhecimento.
SEGUNDA CONVERSA

Já não é o mesmo o interlocutor. Parece, pela natureza da conversa, que se trata de um músico, feliz por se entreter com um mestre. Depois de diversas perguntas, que nos parece inútil reproduzir, diz Mozart:

1. ─ Acabemos com as perguntas de G... Falarei contigo. Dir-te-ei o que em nosso mundo entendemos por melodia. Por que não me evocaste mais cedo? Ter-teia respondido.

2. ─ O que é a melodia?
─ Para ti é muitas vezes uma lembrança da vida passada; teu Espírito recorda aquilo que entreviu num mundo melhor. No planeta Júpiter, onde habito, há melodia em toda parte: no murmúrio das águas, no ciciar das folhas, no canto do vento; as flores rumorejam e cantam; tudo produz sons melodiosos. Sê bom e alcança este planeta por tuas virtudes. Bem escolheste, cantando Deus. A música religiosa auxilia a elevação da alma. Como eu gostaria de vos poder inspirar o desejo de ver este mundo onde somos tão felizes! Aqui somos todos muito caridosos; tudo é belo! a Natureza tão admirável! Tudo nos inspira o desejo de estar com Deus. Coragem! Coragem! Acreditai em minha comunicação espírita. Sou eu mesmo que aqui me encontro. Desfruto do poder de vos dizer aquilo que experimentamos. Pudesse eu inspirar-vos bastante o amor ao bem, a fim de vos tornardes dignos dessa recompensa, que nada é em comparação com outras a que aspiro!

3. ─ Nossa música é a mesma em outros planetas? ─ Não. Nenhuma música vos pode dar uma ideia da que temos aqui. Ela é divina! Ó felicidade! Procura merecer o gozo de semelhantes harmonias; luta; tem coragem! Aqui não temos instrumentos: são as plantas e os pássaros os coristas. O pensamento compõe e os ouvintes gozam sem audição material, sem o concurso da palavra, e isto a uma distância incomensurável. Nos mundos superiores isto é ainda mais sublime.

4. ─ Qual a duração da vida de um Espírito encarnado em outro planeta que não o nosso? ─ Curta nos planetas inferiores; mais longa nos mundos como este onde tenho a felicidade de estar. Em Júpiter ela é, em média, de trezentos a quinhentos anos.

5.. ─ Haverá grande vantagem em voltar a habitar a Terra? ─ Não, a não ser que estejamos em missão, porque então avançamos.

6. ─ Não seríamos mais felizes se ficássemos como Espírito? ─ Não, não! Ficaríamos estacionários. Pedimos a reencarnação a fim de avançarmos para Deus.

7. ─ É a primeira vez que me encontro na Terra?

─ Não. Mas não posso falar do passado de teu Espírito.

8. ─ Poderia eu ver-te em sonho?
  • ─ Se Deus o permitir, far-te-ei ver em sonho a minha habitação, da qual guardarás lembrança.

9. ─ Onde te achas aqui?
  • Entre ti e tua filha. Vejo-te. Estou sob a forma que tinha quando vivo.

10. ─ Poderia eu ver-te?
  • ─ Sim. Crê e verás. Se tivesses mais fé, ser-nos-ia permitido dizer-te por quê.
  • Tua própria profissão constitui uma ligação entre nós.

11.. ─ Como entraste aqui? ─ O Espírito atravessa tudo.


12. ─ Ainda te achas muito longe de Deus? ─ Oh! Sim!


13. ─ Compreendes melhor que nós o que é a eternidade? ─ Sim, sim. No corpo não a podeis compreender.


14. ─ Que entendes por Universo? Houve um começo e haverá um fim? ─ Segundo pensais, o Universo é a vossa Terra. Insensatos! O Universo não teve começo nem terá fim. Pensai que ele é inteiramente obra de Deus. O Universo é o infinito.


15. ─ Que devo fazer para me acalmar? ─ Não te preocupes tanto com o corpo. Tens o Espírito perturbado. Resiste a essa tendência.


16. ─ Que é essa perturbação? ─ Temes a morte.


17.─ Que fazer para não temê-la? ─ Crer em Deus. Sobretudo crer que Deus não priva a família de um pai útil.


18.─ Como alcançar essa calma? ─ Pela vontade.

19.─ Onde haurir essa vontade?
─ Desvia o teu pensamento disso pelo trabalho.

20. - Que devo fazer para apurar a minha habilidade?
─ Podes evocar-me. Eu obtive a permissão de te inspirar.

21.─ Quando eu estiver trabalhando?
─ Certamente! Quando quiseres trabalhar, por vezes estarei ao teu lado.

22.─ Ouvirás a minha obra? (Uma obra musical do interpelante).
─ És o primeiro músico que me evoca. Venho a ti com prazer e escuto as tuas obras.

23.─ Como é que não te evocaram?
─ Fui evocado, mas não por músicos.

24.─ Por quem?
─ Por várias senhoras e amadores em Marselha.

25.─ Por que a Ave-Maria me comove até às lágrimas?
─ Teu Espírito se desprende, junta-se ao meu e ao de Pergolese, que me inspirou aquela obra, mas eu esqueci aquele trecho.

26.─ Como pudeste esquecer a música composta por ti mesmo?
─ A que tenho aqui é tão linda! Como recordar aquilo que era só matéria?

27. ─ Vês minha mãe?
─ Ela está reencarnada na Terra.

28.─ Em que corpo?
─ Nada posso dizer a respeito.

29.─ E meu pai?
─ Está errante, para ajudar no bem. Fará tua mãe progredir. Reencarnarão juntos e serão felizes.

30.─ Ele me vem ver?
─ Muitas vezes. A ele deves os teus impulsos caritativos.

31.─ Foi minha mãe que pediu para reencarnar?
─ Sim. Ela tinha grande vontade de reencarnar, a fim de progredir, por uma nova prova, e entrar num mundo superior à Terra. Já deu um passo imenso.

32.─ Que queres dizer com isso?
─ Ela resistiu a todas as tentações. Sua vida na Terra foi sublime em comparação com seu passado, que foi o de um Espírito inferior. Assim subiu vários degraus.

33.─ Então ela havia escolhido uma prova acima de suas forças? ─ Sim, isto mesmo.

34.─ Quando eu sonho que a vejo, é a ela mesmo que eu vejo? ─ Sim, sim.

35.─ Se tivessem evocado Bichat no dia da inauguração de sua estátua, teria ele respondido? Ele estava lá?
─ Sim, estava; e eu também.

36.─ Por que estavas lá?
─ Como vários outros Espíritos que apreciam o bem e que se sentem felizes quando glorificais aqueles que se preocupam com a Humanidade sofredora.

37.─ Obrigado, Mozart. Adeus.
─ Acreditai-me; acreditai que estou aqui... Sou feliz... Crede que há mundos acima do vosso... Crede em Deus... Evocai-me mais frequentemente, em companhia de músicos. Sentir-me-ei feliz em vos instruir, contribuir para o vosso progresso e vos ajudar a subir para Deus. Evocai-me. Adeus.




[1] Se uma pessoa viva for evocada em estado de vigília, pode adormecer no momento da evocação ou, pelo menos, sofrer um entorpecimento e uma suspensão das faculdades sensitivas. Muitas vezes, entretanto, a evocação nada produz, sobretudo se não for feita com intenção séria e benevolente.

Um de nossos assinantes de Haia, Holanda, comunica-nos o fato que se segue, ocorrido num grupo de amigos que se ocupavam com as manifestações espíritas. Isto prova, diz ele, mais uma vez, e sem contestação possível, a existência de um elemento inteligente e invisível, agindo individual e diretamente sobre nós.

Os Espíritos se anunciam movendo uma pesada mesa e dando pancadas. Perguntamos pelos nomes: são os finados Sr. e Sra. G..., muito afortunados durante a existência. O marido, do qual provinha a fortuna, não tinha filhos e deserdou os parentes próximos em favor da família da mulher, falecida pouco antes dele. Entre as nove pessoas presentes à sessão estavam duas senhoras deserdadas, bem como o marido de uma delas.

O Sr. G... fora sempre um pobre diabo e um criado humilde da esposa. Depois da morte dela, sua família instalou-se em sua casa, para cuidar dele. O testamento foi feito com um atestado médico, declarando que o moribundo gozava da plenitude de suas faculdades.

O marido da senhora deserdada, que designaremos R... tomou a palavra nestes termos: “Como ousais apresentar-vos aqui, depois do escandaloso testamento que fizestes?” Depois, exaltando-se cada vez mais, acabou por lhe dizer injúrias. Então a mesa deu um salto e atirou a lâmpada com força na cabeça do interlocutor. Esse lhes pediu desculpas por aquele primeiro impulso de cólera e lhes perguntou o que vinham ali fazer.

— Vimos dar-vos conta dos motivos de nossa conduta.

(As respostas eram dadas por meio de pancadas indicando as letras do alfabeto).

Conhecendo a inépcia do marido, o Sr. R... lhe disse bruscamente que devia retirar-se e que escutaria apenas a sua esposa.

Então o Espírito da Sra. G… disse que a Sra. R... e sua irmã eram bastante ricas e podiam privar-se de sua parte da herança; que outros eram maus, e que outros, enfim, deveriam sofrer aquela prova; que por tais motivos aquela fortuna convinha mais à sua própria família. O Sr. R… não se satisfez com a explicação e despejou sua cólera em reproches injuriosos. Então a mesa agitou-se violentamente, pulou, bateu fortes pancadas no soalho e atirou mais uma vez a lâmpada sobre o Sr. R... Depois de acalmar-se, o Espírito tentou persuadir que após a sua morte tinha sido informado de que o testamento fora ditado por um Espírito superior. O Sr. R… e as senhoras, vendo a inutilidade de uma contestação, perdoaram-no sinceramente. Logo a mesa se elevou ao lado do Sr. R… e pousou brandamente junto a seu peito, como que para abraçá-lo. As duas senhoras receberam a mesma demonstração de agradecimento. A mesa tinha uma vibração muito pronunciada. Restabelecido o entendimento, o Espírito lamentou a herdeira atual, dizendo que ela acabaria louca.

Ainda o Sr. R... o censurou, mas afetuosamente, por não haver feito o bem em vida, quando dispunha de tão grande fortuna, acrescentando que ela não era chorada por ninguém. “Sim, respondeu o Espírito; há uma pobre viúva, residente na rua... que algumas vezes pensa em mim, porque algumas vezes lhe dei alimento, roupa e aquecimento.”

Como o Espírito não houvesse dado o nome da pobre mulher, um dos assistentes a procurou, encontrando-a no endereço indicado. E o que não é menos digno de registro é que depois da morte da Sra. G..., ela havia mudado de domicílio. Este último é o que foi indicado pelo Espírito.

NOTA: Chamamos a atenção do leitor para as observações feitas sobre estas notáveis comunicações, em nosso artigo de março último.

Não me sentindo bastante firme para ouvir pronunciar o vocábulo morte, muitas vezes eu havia recomendado a meus oficiais que apenas me dissessem, quando me vissem em perigo: “Falai pouco”, e eu saberia o que isto significava.

Quando não restavam mais esperanças, Olivier le Daim me disse duramente, em presença de Francisco de Paula e de Coittier:

─ Majestade, temos que desobrigar-nos de um dever. Não tenhais mais esperança neste santo homem, nem em qualquer outro, porque chegais ao fim. Pensai em vossa consciência. Não há mais remédio.

A estas palavras cruéis operou-se em mim uma revolução completa. Eu já não me sentia o mesmo homem e admirava-me de mim mesmo. O passado desenrolouse rapidamente a meus olhos e as coisas me apareceram sob um aspecto novo. Um não sei que de estranho se passava em mim. Fixando-me, o duro olhar de Olivier le Daim parecia interrogar-me. Para me subtrair a esse olhar frio e inquisidor, respondi com aparente tranquilidade:

─ Espero que Deus me ajude. É possível, talvez, que eu não esteja tão mal quanto pensais.

Ditei minhas últimas vontades e mandei para junto do jovem rei aqueles que ainda me rodeavam. Vi-me só com o meu confessor, Francisco de Paula, le Daim e Coittier. Francisco me fez uma tocante exortação. Parece que a cada uma de suas palavras apagavam-se-me os vícios e a natureza retomava o seu curso. Senti-me aliviado e comecei a recobrar um pouco de esperança na clemência de Deus.

Recebi os últimos sacramentos com uma piedade firme e resignada. A cada instante repetia: “Nossa Senhora de Embrun[1], minha boa Senhora, ajudai-me!”

Terça-feira, 30 de agosto, pelas sete horas da noite, caí em nova prostração. Todos os presentes me julgaram morto e se retiraram. Olivier le Daim e Coittier, sentindo a execração pública, haviam ficado junto ao meu leito, já que não tinham alternativa.

Em breve recuperei completamente a consciência. Ergui-me, sentei-me na cama e olhei em torno. Não havia ninguém de minha família; nenhuma mão amiga procurava a minha, nesse supremo instante, para suavizar a minha agonia num último contato. Àquela hora talvez meus filhos brincassem enquanto seu pai morria. Ninguém pensou que o culpado ainda podia contar com um coração que compreendesse o seu. Procurei ouvir um soluço abafado e só ouvi as risadas dos dois miseráveis que estavam junto de mim.

Divisei a um canto a minha galga favorita, que morria de velha. Meu coração pulsou de alegria, pois eu tinha um amigo, um ser que me estimava.

Fiz-lhe um sinal com a mão. A lebreira arrastou-se com esforço até junto ao leito e veio lamber-me a mão agonizante. Olivier percebeu esse movimento; levantou-se de um salto, praguejando, e esbordoou a infeliz cadela com um bastão até matá-la. Expirando, meu único amigo lançou-me um longo e doloroso olhar.

Olivier empurrou-me violentamente sobre o leito. Deixei-me cair e entreguei a Deus a minha alma culposa.



[1] Embrun é uma antiquíssima cidade do sul da França, situada na Bacia do Ródano, na Provença. Seu antigo nome latino era Ebraduno. Tem cerca de 4.000 habitantes.


O FALSO HOME
Lemos há tempos, nos jornais de Lyon, o seguinte anúncio, que também se encontrava afixado nos muros cidade:

“O Sr. Hume, o célebre médium americano, que teve a honra de fazer experiências perante S. M. o Imperador, a partir de quinta-feira, 1.º de abril, dará sessões de espiritualismo no grande teatro de Lyon. Ele produzirá aparições, etc., etc. Haverá cadeiras especiais para os senhores médicos e sábios, a fim de que estes possam certificar-se de que nada foi preparado. As sessões serão variadas, com experiências da célebre vidente, Sra..., sonâmbula muito lúcida, que reproduzirá um a um todos os sentimentos, à vontade dos espectadores. Preço dos ingressos: 5 francos na primeira classe, 3 francos na segunda.”

Os antagonistas do Sr. Home (alguns escrevem Hume) não quiseram perder essa ocasião de expô-lo ao ridículo. Em seu ardente desejo de achar onde morder, acolheram essa grosseira mistificação com um entusiasmo que desabona o seu equilíbrio e ainda mais o seu respeito pela verdade, porque, antes de atirar pedras nos outros, é preciso verificar se elas não atingirão outro alvo. Mas a paixão é cega, não raciocina e muitas vezes se engana, ao tentar prejudicar a outrem. “Olhem só”, exclamaram jubilosos, “este homem tão elogiado, reduzido a apresentar-se nos palcos, dando espetáculos a tanto por cabeça!” E os seus jornais dando crédito ao fato, sem mais exame. Infelizmente, para eles, sua alegria não durou muito.

Logo nos escreveram de Lyon, pedindo informações suficientes para o desmascaramento da fraude, o que não foi difícil, sobretudo graças ao empenho de numerosos adeptos com que o Espiritismo conta naquela cidade.

Assim que o diretor do teatro soube do que se tratava, imediatamente dirigiu aos jornais a carta seguinte: “Sr. Redator. Apresso-me a informar-vos que o espetáculo anunciado para quinta-feira, 1.º de abril, no grande teatro, não mais se realizará. Eu pensava haver cedido o teatro ao Sr. Home e não ao Sr. Lambert Laroche, que se diz Hume. As pessoas que antecipadamente obtiveram frisas poderão apresentar-se à bilheteria do teatro para reembolso.”

Por outro lado, o mencionado Lambert Laroche, natural de Langres, interpelado quanto à sua identidade, viu-se obrigado a responder nos termos que a seguir reproduzimos na íntegra, pois não queremos que nos acusem da menor alteração.

“Vous m’avez soumis diversse extre de vos correspondance de Paris, desquellesil résulterez que un M. Home qui donne des séancedans quelque salon de la capítalle se trauve en ce moment en Itali etne peut par conséquent se trauvair à Lyon. Monsieur gignore 1.º la cannaissance de ce M. Home, 2.º je nessait quellais son talent 3.º je nais jamais rien nue de commun à veque ce M. Home, 4º jait tavaillez et tavaille sout mon nom de gaire qui est Hume et dont je vous justi par les article de journaux étrangers et français que je vous est soumis 5º je voyage à vecque deux sugais mon genre d’experriance consiste en spiritualisme au évocation vision, et en un mot reproduction des idais du spectateur par un sugais, ma cepécialité est d’opere par c’est procedere sur les personnes étrangere comme on la pue le voir dans les journaux je vien despagne et d’afrique. Seci M. le rédacteur vous démontre que je n’ais poin voulu prendre le nom de ce prétendu Home que vous dites en réputation, le min est sufisant connu par sagrande notoriété et par les expérience que je produi. Agreez M. le redacteur mes salutation empressait". *

Cremos inútil dizer que o Sr. Lambert Laroche deixou Lyon de cabeça erguida. Certamente irá a outros lugares em busca de tolos para enganar com facilidade. Ainda uma palavra para exprimir o nosso pesar por vermos com que avidez deplorável certas criaturas que se dizem sérias acolhem tudo quanto possa servir à sua animosidade. O Espiritismo está hoje muito acreditado e nada deve temer das palhaçadas; ele não é mais aviltado pelos charlatães do que a verdadeira ciência médica pelos curandeiros das encruzilhadas; encontra por toda parte mas principalmente entre as pessoas esclarecidas, zelosos e inúmeros defensores que sabem enfrentar as zombarias. Longe de prejudicá-lo, o caso de Lyon apenas serve à sua propagação, chamando a atenção dos indecisos para a realidade. Quem sabe se não foi mesmo provocado por uma força superior com esse objetivo? Quem se pode gabar de sondar os desígnios da Providência?

Quanto aos adversários sistemáticos, que se lhes permita rir, mas não caluniar. Alguns anos mais e veremos quem dirá a última palavra. Se é lógico duvidar daquilo que se não conhece, é sempre imprudente manifestar-se em falso contra as ideias novas que, mais cedo ou mais tarde, podem opor um desmentido humilhante à nossa perspicácia. Aí está a História para prová-lo. Aqueles que, no seu orgulho, demonstram piedade pelos adeptos da Doutrina Espírita seriam tão superiores quanto se julgam? Esses Espíritos que eles procuram ridicularizar, recomendam que se faça o bem e proíbem o mal, mesmo aos inimigos; eles nos dizem que nos rebaixamos pelo só desejo do mal. Qual é, pois, o mais elevado: aquele que procura fazer o mal ou aquele que não encerra no coração nem ódio nem rancor? Há pouco tempo o Sr. Home regressou a Paris, mas partirá em breve para a Escócia e de lá para São Petersburgo.


_____________________________________________
* “Vós me submeteu diversas extra da vossa correspondência de Paris, das quais resulta que um Sr. Home qui dá sessões nargum salão da capital se acha nesse momento na Intália e não pode por consequença se achar em Lyon. Meu senhor eu ingnoro 1.º o conhecimento desse Sr. Home, 2.º eu não sei quale o seu talento 3.º eu nunca tive nada di comum com esse Sr. Home, 4.º eu trabalei e trabalo cum nomi de guerra qui é Hume e esse nomi eu justifico pelos artigo das folha istrangeira e francesa que vos é submetido, 5.º eu viajo cum duas companhêra meu geno de ixpriença consta de spiritualismo ou evocação visão e em uma palavra reprodução das ideia do expectador por um sujeito, minha especialdade é de operá por esse processo nas pessoa estranha como se pode ver nos jornal que vem da espanha e da africa. Com isso seu redator eu vos demonstro qui nunca quis tomá o nomi desse suposto Home qui vos diz que tem reputação, o meu é suficentemente conhecido pela sua grande notoridade e pelas ixpriença qui posuo. Recebe senhor redator as minhas atenciosa saudações.” (Tradução reproduzindo a escrita e o linguajar de uma pessoa semi-analfabeta)




* * *

L’Independant de la Charente-Inférieure relatava, em março último, o fato que se segue e que teria ocorrido no Hospital Civil de Saintes:

“Há oito dias, nessa cidade, contam-se as mais maravilhosas histórias e não se fala senão dos singulares ruídos que, todas as noites, ora imitam o trote de um cavalo, ora os passos de um cachorro ou de um gato. Garrafas colocadas sobre a lareira são levadas para o outro lado da sala. Certa manhã foi encontrado um pacote de farrapos torcidos e cheios de nós, impossíveis de desatar. Sobre a lareira foi deixado uma noite um papel, no qual havia sido escrito: “Que queres? Que pedes?” No dia seguinte, pela manhã, lá estava a resposta, escrita em caracteres desconhecidos e indecifráveis. Fósforos colocados sobre a mesa, durante a noite, desapareciam como que por encanto. Enfim, todos os objetos mudam de lugar e se espalham por todos os cantos. Tais sortilégios só se realizam com a obscuridade da noite. Desde que se faça a luz, tudo volta ao silêncio; extinguindo-a, os ruídos recomeçam imediatamente. É um Espírito amigo das trevas. Várias pessoas, entre as quais eclesiásticos e antigos militares, deitaram-se nesse quarto enfeitiçado e foilhes impossível algo descobrir ou explicar aquilo que ouviam.

“Um empregado do hospital, suspeito de ser o autor dessas brincadeiras, acaba de ser despedido. Assegura-se, entretanto, que o mesmo não só não é culpado, mas, ao contrário, muitas vezes foi a própria vítima.

“Parece que essa história começou há mais de um mês. Durante muito tempo nada foi dito, pois cada um desconfiava de seus sentidos e temia ser ridicularizado. Só depois de alguns dias é que surgiram os comentários.”

OBSERVAÇÃO: Ainda não tivemos tempo de verificar a autenticidade dos fatos acima. Publicamo-los com as devidas reservas. Fazemos notar, entretanto que, se inventados, não são menos possíveis e nada apresentam de mais extraordinário que muitíssimos outros do mesmo gênero e que foram perfeitamente constatados.


A extensão, por assim dizer universal, que tomam diariamente as crenças espíritas fazia desejar-se vivamente a criação de um centro regular de observações. Esta lacuna acaba de ser preenchida. A Sociedade cuja formação temos o prazer de anunciar, composta exclusivamente de pessoas sérias, isentas de prevenções e animadas do sincero desejo de esclarecimento, contou, desde o início, entre os seus associados, com homens eminentes por seu saber e por sua posição social. Estamos convictos de que ela é chamada a prestar incontestáveis serviços à constatação da verdade. Sua lei orgânica lhe assegura uma homogeneidade sem a qual não haverá vitalidade possível. Está baseada na experiência dos homens e das coisas e no conhecimento das condições necessárias às observações que são o objeto de suas pesquisas. Vindo a Paris, os estranhos que se interessam pela Doutrina Espírita encontrarão, assim, um centro ao qual poderão dirigir-se para obter informações e onde poderão também relatar suas próprias observações[1].

ALLAN KARDEC



[1] Para informações relativas à Sociedade, dirigir-se ao Sr. ALLAN KARDEC, rue Sainte-Anne, n. 59, das 3 às 5 horas; ou ao Sr. LEDOYEN, livreiro, Galeria d’Orléans, n. 31, no Palais-Royal




Junho

Pedimos ao leitor que se reporte ao primeiro artigo que publicamos sobre o assunto. Este é a sua continuação e seria pouco inteligível se não se tivesse em mente aquele começo.

Como dissemos, as explicações que demos para as manifestações físicas fundam-se na observação dos fatos e na sua dedução lógica: concluímos de acordo com o que vimos. Como, porém, se processam na matéria eterizada as modificações que a tornam perceptível e tangível?

Para começar, deixaremos falarem os Espíritos a quem interrogamos a respeito, juntando depois os nossos comentários. As respostas que se seguem foram dadas pelo Espírito de São Luís e estão em concordância com o que anteriormente nos havia sido dito por outros Espíritos.

1. ─ Como pode aparecer um Espírito com a solidez de um corpo vivo?
Ele combina uma parte do fluido universal com o fluido que se desprende do médium apto para tal efeito. Esse fluido toma a forma que o Espírito deseja, mas geralmente essa forma é impalpável.

2. ─ Qual é a natureza desse fluido? ─ Fluido. Isto diz tudo.

3. ─ Esse fluido é material? ─ Semimaterial.

4. ─ É esse fluido que compõe o perispírito? ─ Sim,é a ligação do Espírito à matéria.

5. ─ É esse fluido que dá a vida, o princípio vital? ─ Sempre ele. Eu disse ligação.

6. ─ Esse fluido é uma emanação da Divindade? ─ Não.

7. ─ É uma criação da Divindade?
─ Sim. Tudo é criado, exceto o próprio Deus.

8. ─ O fluido universal tem alguma relação com o fluido elétrico, cujos efeitos conhecemos?
─ Sim. É o seu elemento.

9. ─ A substância etérea que existe entre os planetas é o fluido universal em questão?
─ Ele envolve os mundos. Sem o princípio vital, nada viveria. Se uma pessoa subisse além do envoltório fluídico dos globos, pereceria, porque seu envoltório fluídico dele se retiraria, para juntar-se à massa. Esse fluido vos anima. É ele que respirais.

10. ─ Esse fluido é o mesmo em todos os globos?
─ É o mesmo princípio, mais ou menos eterizado, conforme a natureza dos mundos. O vosso é um dos mais materiais.

11. ─ Desde que é esse fluido que compõe o perispírito, deve haver uma espécie de estado de condensação que, até certo ponto, o aproxima da matéria.
─ Sim, até um certo ponto, pois não tem as suas propriedades. Ele é mais ou menos condensado, conforme os mundos.

12. ─ São os Espíritos solidificados que levantam a mesa?
─ Esta pergunta ainda não conduzirá ao ponto que desejais. Quando uma mesa se move debaixo de vossas mãos, o Espírito evocado pelo vosso Espírito vai retirar do fluido universal aquilo com que há de animar essa mesa com uma vida factícia. Os Espíritos que produzem esse tipo de efeitos são sempre Espíritos inferiores ainda não inteiramente desprendidos de seu fluido ou perispírito. A mesa, assim preparada à sua vontade (à vontade dos Espíritos batedores), o Espírito a atrai e a movimenta, sob a influência de seu próprio fluido, desprendido por sua vontade. Quando a massa que quer levantar ou mover lhe é demasiado pesada, ele chama em seu auxílio Espíritos que se acham em condições idênticas às dele. Penso que me expliquei com bastante clareza para ser compreendido.


13. ─ Os Espíritos chamados em seu auxílio são seus inferiores?
─ Quase sempre são iguais. Frequentemente vêm por si mesmos.

14. ─ Compreendemos que os Espíritos superiores não se ocupem de coisas que lhes são inferiores. Mas perguntamos se, pelo fato de serem desmaterializados, teriam o poder de fazê-lo, caso tivessem vontade?
─ Eles têm a força moral, como os outros têm a força física. Quando necessitam dessa força, servem-se daqueles que a possuem. Não vos foi dito que eles se servem dos Espíritos inferiores como vos servis dos carregadores?


15. ─ De onde vem o poder especial do Sr. Home? ─ De sua organização.

16. ─ Que há nela de particular?
─ A pergunta não é precisa.

17. ─ Perguntamos se se trata de sua organização física ou moral. ─ Eu disse organização.

18. ─ Entre as pessoas presentes há alguém que possa ter a mesma faculdade do Sr. Home?
─ Têm-na em certo grau. Não foi um de vós que fez mover a mesa?

19. ─ Quando uma pessoa faz mover um objeto, é sempre com o auxílio de um Espírito estranho ou tal ação pode ser exclusiva do médium?
─ Algumas vezes o Espírito do médium pode agir sozinho. Na maioria das vezes, entretanto, é auxiliado pelos Espíritos evocados. Isto é fácil de reconhecer.

20. ─ Como é que os Espíritos aparecem com a indumentária que usavam na Terra?
─ Muitas vezes ela tem apenas a aparência. Aliás, para quantos fenômenos entre vós não tendes solução! Como é que o vento, que é impalpável, arranca e quebra árvores, que são matéria sólida?

21. ─ Que entendeis ao dizer que sua indumentária “é apenas uma aparência?” ─ Ao tocá-la, nada se encontra.

22. ─ Se bem compreendemos o que dissestes, o princípio vital reside no fluido universal; dele o Espírito extrai o envoltório semimaterial que constitui o seu perispírito e é por meio desse fluido que atua sobre a matéria inerte. É isso mesmo? ─ Sim, isto é, ele anima a matéria por uma espécie de vida factícia; a matéria se anima pela vida animal. A mesa que se move sob as vossas mãos vive e sofre como o animal; obedece por si mesma ao ser inteligente. Não é ele que a dirige, como o homem faz com um fardo. Quando a mesa se ergue, não é o Espírito que a levanta. É a mesa animada que obedece ao Espírito inteligente.


23. ─ Desde que o fluido universal é a fonte da vida, será ao mesmo tempo a fonte da inteligência?
─ Não. O fluido apenas anima a matéria.

Esta teoria das manifestações físicas oferece vários pontos de contato com a que demos, embora difira em certos aspectos. De uma e da outra ressalta um ponto capital: o fluido universal, no qual reside o princípio da vida, é o agente principal dessas manifestações e esse agente recebe o impulso do Espírito, quer encarnado, quer errante. Esse fluido condensado constitui o perispírito ou envoltório semimaterial do Espírito. Quando encarnado, o perispírito está unido à matéria do corpo; quando em estado de erraticidade, fica livre.

Ora, duas questões aqui se apresentam: a da aparição dos Espíritos e a do movimento que imprimem aos corpos sólidos.

Quanto ao primeiro, diremos que, no estado normal, a matéria eterizada do perispírito escapa à percepção dos nossos órgãos; só a alma pode vê-la, quer em sonhos, quer em estado sonambúlico ou, ainda, meio adormecida; numa palavra, sempre que houver suspensão total ou parcial da atividade dos sentidos. Quando o Espírito está encarnado, a substância do perispírito acha-se mais ou menos intimamente ligada à matéria do corpo; mais ou menos aderente, se assim podemos dizer. Em algumas pessoas há uma como que emanação desse fluido, em consequência de sua organização e é isto o que constitui propriamente os médiuns de influências físicas. Emanado do corpo, esse fluido se combina, segundo leis que ainda nos são desconhecidas, com aquele que forma o envoltório semimaterial de um Espírito estranho. Disso resulta certa modificação, uma espécie de reação molecular que lhe altera momentaneamente as propriedades, a ponto de torná-lo visível e, em certos casos, tangível. Esse efeito pode produzir-se com ou sem o concurso da vontade do médium, e é isto o que distingue os médiuns naturais dos médiuns facultativos. A emissão do fluido pode ser mais ou menos abundante: daí os médiuns mais ou menos potentes. Ela não é permanente, o que explica a intermitência daquele poder. Enfim, se levarmos em conta o grau de afinidade que pode existir entre o fluido do médium e o de tal ou qual Espírito, compreender-se-á que sua ação possa exercer-se sobre uns e não sobre outros.


Aquilo que acabamos de dizer evidentemente se aplica também à força mediúnica, no que concerne ao movimento dos corpos sólidos. Resta saber como se opera esse movimento.

Conforme as respostas acima, a questão se apresenta sob um aspecto inteiramente novo. Assim, quando um objeto é posto em movimento, arrebatado ou lançado no ar, não será o Espírito que o pega, o empurra ou o levanta, como nós o faríamos com a mão: ele, por assim dizer, o satura com o seu fluido, pela combinação com o do médium e, assim momentaneamente vivificado, o objeto age como se fosse um ser vivo, com a diferença de que, não tendo vontade própria, segue o impulso da vontade do Espírito. Essa vontade tanto pode ser do Espírito do médium quanto de um Espírito estranho e, algumas vezes, de ambos, agindo de acordo, conforme sejam ou não simpáticos. A simpatia ou antipatia que pode existir entre o médium e os Espíritos que se ocupam desses efeitos materiais explica por que nem todos são aptos a provocá-los.


Considerando-se que o fluido vital, emitido de alguma maneira pelo Espírito, dá uma vida factícia e momentânea aos corpos inertes e que outra coisa não é o perispírito senão o próprio fluido vital, segue-se que, quando encarnado, é o Espírito que dá vida ao corpo, por meio de seu perispírito: fica-lhe unido enquanto a organização o permite, e quando se retira, o corpo morre.

Agora se, em lugar da mesa, a madeira for talhada em estátua, e se agirmos sobre essa do mesmo modo que sobre a mesa, teremos uma estátua que se desloca do lugar, que responderá por movimentos e por pancadas; numa palavra, uma estátua momentaneamente animada de uma vida artificial. Que luz lança essa teoria sobre uma porção de fenômenos até aqui não explicados! Quantas alegorias e efeitos maravilhosos ela explica! É toda uma filosofia.

O ESPÍRITO BATEDOR DE BERGZABERN[1]

(SEGUNDO ARTIGO)

Extraímos as passagens que se seguem de uma nova brochura alemã, publicada em 1853 pelo Sr. Blanck, redator do jornal de Bergzabern, sobre o Espírito batedor de que falamos em nosso número de maio.

Os fenômenos extraordinários ali relatados, cuja autenticidade não poderia ser posta em dúvida, provam que, no particular, nada temos a invejar da América.

Observa-se no relato o cuidado meticuloso com que os fatos foram registrados. Fora desejável que, em casos semelhantes, houvesse sempre a mesma atenção e a mesma prudência.

Sabe-se hoje que os fenômenos desse gênero não resultam de um estado patológico; antes denotam uma excessiva sensibilidade, sempre fácil de excitar, nas pessoas em quem se manifestam. O estado patológico não é a causa eficiente; pode, entretanto, ser-lhe consecutivo. Em casos análogos, a mania de experimentação mais de uma vez tem causado acidentes graves, que teriam sido evitados se se houvesse deixado a natureza agir por si mesma. Em nossa Instrução prática sobre as manifestações espíritas[2] encontram-se os conselhos necessários para tais casos.

Acompanhemos o relatório do Sr. Blanck.

“Os leitores de nossa primeira brochura intitulada Os Espíritos batedores viram que as manifestações de Filipina Sänger têm um caráter enigmático e extraordinário. Relatamos esses fatos maravilhosos desde o seu começo até o momento em que a menina foi levada ao médico real do cantão. Vamos examinar agora o que se passou desde então.

Quando a menina deixou a casa do Dr. Bentner e regressou ao lar, as batidas e arranhaduras recomeçaram na casa dos Sänger. Até aquele momento, e mesmo depois da sua cura completa, as manifestações foram mais marcantes e mudaram de natureza[3]. No mês de novembro de 1852, o Espírito começou a assoviar; a seguir ouvia-se um ruído comparável ao de uma roda de carrinho de mão que girasse sobre o eixo seco e enferrujado, mas, de tudo isso, o mais extraordinário, incontestavelmente, foi a derrubada de móveis no quarto de Filipina, desordem essa que durou quinze dias.

Parece-me necessária uma ligeira descrição do lugar.

O quarto tem cerca de 18 pés de comprimento por 8 de largura e a ele se chega pela sala de estar. A porta de comunicação entre as duas peças fica à direita. O leito da menina estava colocado à direita; ao meio havia um armário e no canto, à esquerda, a mesa de trabalho de Sänger, na qual há duas cavidades circulares, cobertas por duas tampas.

Na tarde em que começou o rebuliço, a Sra. Sänger e sua filha mais velha, Francisca, estavam sentadas na primeira peça, junto a uma mesa e se ocupavam em descascar vagens. De repente caiu a seus pés um pequeno fuso, atirado do quarto de dormir. Elas ficaram muito assustadas, tanto mais quanto sabiam que não se encontrava ninguém no quarto, além de Filipina, então mergulhada em sono profundo. Além disso, o fuso fora lançado do lado esquerdo, embora se achasse na prateleira do pequeno armário, colocado à direita. Se tivesse sido atirado do leito, teria sido interceptado pela porta. Era, pois, evidente que a menina nada tinha a ver com o caso. Enquanto a família Sänger externava a sua surpresa com o acontecimento, algo caiu da mesa no soalho: era um retalho de pano que antes estava mergulhado numa bacia com água. Ao lado do fuso jazia também uma cabeça de cachimbo, cuja outra metade tinha ficado sobre a mesa. O que tornava a coisa ainda mais incompreensível era que a porta do armário onde estava o fuso, antes de ser atirado, achava-se fechada; que a água da bacia não tinha sido agitada e nem uma só gota tinha caído sobre a mesa. De repente, a menina, sempre adormecida, grita da cama: “Pai! saia! Ele atira! Saiam! Ele atiraria em você também. Eles obedeceram à ordem e assim que passaram à primeira peça, a cabeça do cachimbo foi atirada com muita força, mas não se quebrou. Uma régua que Filipina usava na escola seguiu o mesmo caminho. O pai, a mãe e a filha mais velha olhavam-se com espanto. Enquanto imaginavam a decisão a tomar, uma grande plaina do Sr. Sänger e um grande pedaço de madeira foram atirados do banco de carpinteiro para o outro quarto. Sobre a mesa de trabalho, as tampas estavam em seus lugares, mas, apesar disto, os objetos cobertos por elas também tinham sido jogados longe. Na mesma noite, os travesseiros da cama foram lançados sobre um armário e a colcha atirada contra a porta.

Num outro dia, tinham posto aos pés da menina, debaixo das cobertas, um ferro de engomar de cerca de seis libras. Logo ele foi atirado para a primeira sala; o cabo havia sido tirado e foi encontrado sobre uma poltrona, no quarto.

Testemunhamos as cadeiras colocadas a três pés da cama serem derrubadas; as janelas serem abertas, quando antes estavam bem fechadas, e isto assim que viramos as costas para entrar na sala. De outra feita, duas cadeiras foram transportadas para cima da cama, sem desarranjar as cobertas.

No dia 7 de outubro, a janela havia sido hermeticamente fechada, diante da qual fora estendido um pano branco. Assim que deixamos o quarto, foram dados golpes repetidos e com tanta violência que tudo estremeceu e as pessoas que passavam na rua fugiram apavoradas. Corremos para o quarto. A janela estava aberta, o pano atirado sobre o pequeno armário ao lado, as cobertas da cama e o travesseiro no chão, as cadeiras de pernas para o ar e a menina no leito, abrigada apenas pela camisola. Durante catorze dias a senhora Sänger não fez outra coisa senão refazer a cama.

Uma vez tinham deixado uma harmônica sobre uma cadeira. Ouviram-se sons. Entrando precipitadamente no quarto, encontraram, como sempre, a menina tranquila em seu leito. O instrumento estava sobre a cadeira, mas já não tocava.

Uma noite, ao sair do quarto da filha, Sänger recebeu nas costas, de arremesso, a almofada de uma cadeira. De outras vezes era um par de chinelos velhos, sapatos que estavam debaixo da cama, ou tamancos que lhe iam ao encontro.

Muitas vezes sopravam a vela acesa, sobre a mesa de trabalho.

As pancadas e arranhaduras se alternavam com essa demonstração do mobiliário. A cama parecia movimentada por mão invisível. À ordem de: “Balance a cama” ou “Nine a criança”, a cama ia e vinha, num e noutro sentido, com ruído; à ordem de “Alto!” ela parava. Nós, que vimos, podemos afirmar que quatro homens se sentaram na cama e, sem conseguirem paralisar o movimento, foram erguidos junto com o móvel.

Ao fim de catorze dias cessou o rebuliço dos móveis e as manifestações foram substituídas por outras.

Na noite de 26 de outubro achavam-se no quarto, entre outras pessoas, os Srs. Luís Soëhnée, licenciado em direito, e o capitão Simon, ambos de Wissembourg, bem como o Sr. Sievert, de Bergzabern. Nesse momento, Filipina Sänger encontrava-se mergulhada em sono magnético[4]. O Sr. Sievert apresentou-lhe um papel contendo cabelos, para ver o que ela faria com eles. Ela abriu o embrulho, sem entretanto descobrir os cabelos; aplicou-os sobre as pálpebras fechadas; afastou-os como que para examiná-los à distância e disse: “Eu bem queria saber o que está neste embrulho... São cabelos de uma senhora que não conheço... Se ela quiser vir, que venha... Não posso convidá-la, pois não a conheço.” Ela não respondeu às perguntas dirigidas pelo Sr. Sievert, mas, tendo colocado o papel na palma da mão, a estendia e virava, e o papel continuava suspenso. Depois o colocou na ponta do indicador e durante muito tempo fez a mão descrever um semicírculo, dizendo: “Não caia!” e o papel ficava na ponta do dedo. Depois, à ordem de “Agora caia!” ele se destacou, sem que ela tivesse feito o menor movimento para lhe determinar a queda. Súbito, voltando-se para a parede, disse: “Agora quero pregar-te à parede.” E ali colocou o papel que ficou colado durante aproximadamente 5 a 6 minutos, depois do que o retirou. Um exame minucioso do papel e da parede não permitiu descobrir nenhuma causa da aderência. Parece-nos um dever advertir que o quarto estava perfeitamente iluminado, o que permitia verificar todas essas particularidades com exatidão.

Na noite seguinte deram-lhe outros objetos: chaves, moedas, cigarreiras, relógios, anéis de ouro e de prata. Todos, sem exceção, ficavam suspensos à sua mão. Notou-se que a prata aderia mais facilmente que as outras substâncias, pois houve dificuldade em retirar-lhe as moedas e tal operação causou-lhe dor.

Um dos mais curiosos fatos nesse gênero foi o seguinte: Sábado, 11 de novembro, um oficial presente deu-lhe sua espada com o talabarte, no todo pesando 4 libras; constatou-se que tudo ficou suspenso ao dedo da médium, balançando-se durante muito tempo. O que não é menos singular é que todos esses objetos, fosse qual fosse a matéria, também ficavam suspensos. Tal propriedade magnética comunicava-se, por simples contato das mãos, às pessoas susceptíveis da transmissão do fluido. Disto tivemos vários exemplos.

Um capitão, o cavaleiro de Zentner, então servindo na guarnição de Bergzabern, testemunhou esses fenômenos e teve a ideia de colocar uma bússola perto da menina, para observar as variações. Na primeira tentativa a agulha fez um desvio de 15º, mas nas outras ficou imóvel, embora a menina a segurasse numa das mãos, acariciando-a com a outra. Esta experiência provou que tais fenômenos não se poderiam explicar pela ação do fluido mineral, mesmo porque a atração magnética não se exerce indiferentemente sobre todos os corpos.

Habitualmente, quando a pequena sonâmbula se dispunha a começar a sessão, chamava para o quarto todas as pessoas presentes. Ela dizia apenas: “Venham! venham!” ou então “Deem! deem!” Muitas vezes só se tranquilizava quando todos, sem exceção, estavam junto ao seu leito. Então pedia com solicitude e impaciência um objeto qualquer e, assim que lho entregavam, este se ligava a seus dedos. Frequentemente acontecia que dez, doze ou mais pessoas estivessem presentes e cada uma lhe apresentasse vários objetos. Durante a sessão, ela não admitia que lhe tomassem nenhum deles. Parecia preferir os relógios: abria-os com muita habilidade, examinava o movimento, fechava-os e os colocava próximo, para examinar outra coisa. Por fim, devolvia a cada um o que lhe havia sido entregue. Examinava os objetos com os olhos fechados e jamais lhes confundia o dono. Se alguém estendesse a mão para receber o que lhe não pertencia, ela o repelia. Como explicar essa distribuição múltipla e sem erros a tão grande número de pessoas? Em vão se tentaria que fizesse o mesmo com os olhos abertos. Terminada a sessão e retiradas as pessoas estranhas, recomeçavam as pancadas e arranhaduras, momentaneamente interrompidas.

Acrescente-se que a menina não queria que ninguém ficasse aos pés da cama, junto ao armário, onde o espaço entre os móveis era apenas de cerca de um pé. Se alguém aí se colocasse, afastava-o por meio de gestos. Se teimassem, ela demonstrava uma grande inquietação e com gestos imperiosos mandava que saíssem do lugar. Uma vez advertiu aos assistentes de que jamais ocupassem aquele lugar proibido, porque, dizia, não queria que sobreviesse uma desgraça a alguém. Este aviso foi tão peremptório que ninguém o esqueceu daí por diante.

Depois de algum tempo, às batidas e arranhaduras juntou-se um zumbido comparável ao som produzido por uma corda grossa de contrabaixo; uma espécie de assovio se misturava a esse zumbido. Se alguém pedisse uma marcha ou uma dança, logo era atendido o seu desejo: o músico invisível mostrava-se muito complacente.

Por meio das arranhaduras, chamava nominalmente as pessoas da casa ou os estranhos presentes. Todos compreendiam facilmente a quem era dirigido o apelo. A esse chamado, a pessoa designada respondia sim, para dar a entender que sabia tratar-se dela mesma. Então era executado, em sua homenagem, um trecho de música que por vezes provocava cenas cômicas. Se outra que não a pessoa indicada respondesse sim, o raspador fazia compreender por um não, expresso a seu modo, que nada lhe tinha a dizer naquele momento.

Estes fatos se produziram pela primeira vez na noite de l0 de novembro, e continuaram até o presente.

Eis como procedia o Espírito batedor para designar as pessoas:

Há muitas noites se havia notado que, ao fazer um pedido para que fizesse tal ou qual coisa, ele respondia por um golpe seco ou por uma arranhadura prolongada. Assim que o golpe era dado, o batedor começava a executar aquilo que se desejava; quando, ao contrário, ele arranhava, não satisfazia ao pedido. Então um médico teve a ideia de tomar o primeiro ruído por um sim e o segundo por um não, e desde então essa interpretação sempre se confirmou. Notou-se também que por uma série de arranhões mais ou menos fortes o Espírito exigia certas coisas das pessoas presentes. À custa de atenção e observando a maneira por que se produzia o ruído, pôde-se compreender a intenção do batedor. Assim, por exemplo, o velho Sänger contou que certa manhã, ainda pela madrugada, ouvira ruídos modulados de certa maneira. Embora de início não tivesse ligado a eles nenhum significado, notou que não cessavam enquanto se achasse na cama, pelo que entendeu o sentido: “Levanta-te!” Foi assim que pouco a pouco se familiarizaram com essa linguagem, e que por certos sinais se podia saber quais eram as pessoas designadas.

Chegou o aniversário do dia em que o Espírito batedor se havia manifestado pela primeira vez: muitas mudanças se haviam operado no estado de Filipina Sänger. Continuavam as pancadas, as arranhaduras e o zumbido, mas a todas essas manifestações juntou-se um grito especial, que ora parecia de um ganso, ora de um papagaio ou de qualquer outra ave grande. Ao mesmo tempo ouvia-se uma espécie de repicar na parede, semelhante ao ruído produzido pelas bicadas de um pássaro. Nesse período Filipina falava muito durante o sono e sobretudo parecia preocupada com um certo animal, semelhante a um papagaio, que ficava ao pé do leito, gritando e dando bicadas na parede. Quando desejávamos ouvir o papagaio, ele soltava gritos agudos. Várias perguntas foram feitas, tendo como resposta gritos do mesmo gênero; algumas pessoas pediram que dissesse Kakatoès, e foi ouvida distintamente a palavra Kakatoès, como se pronunciada pela própria ave[5]. Silenciaremos sobre fatos menos interessantes, limitando-nos a relatar aquilo que há de mais importante, no que diz respeito às modificações sobrevindas ao estado físico da menina.

Algum tempo antes do Natal as manifestações se renovaram com mais energia: os golpes e as arranhaduras tornaram-se mais violentos e duravam mais tempo. Mais agitada que de costume, muitas vezes Filipina pedia para não dormir em sua cama, mas na dos pais; ela rolava no seu leito, clamando: “Não posso mais ficar aqui; vou sufocar; eles vão encerrar-me na parede; socorro!” e a calma só se restabelecia quando a transportavam para outra cama. Apenas aí se encontrava, ouviam-se no alto pancadas muito fortes, como se viessem do sótão e como se um carpinteiro martelasse o vigamento. Por vezes eram mesmo tão fortes que abalavam a casa; as janelas eram sacudidas e as pessoas presentes sentiam o solo tremer sob os pés; outras vezes pancadas semelhantes eram dadas na parede, perto da cama. As perguntas eram, como de hábito, respondidas pelas pancadas, sempre alternadas com as arranhaduras.

Os fatos que se seguem, não menos curiosos, reproduziram-se inúmeras vezes:

Quando havia cessado o ruído e a menina repousava em sua caminha, com frequência a víamos prosternar-se, juntar as mãos, de olhos fechados, virar a cabeça para todos os lados, às vezes para a direita e às vezes para a esquerda, como se algo de extraordinário tivesse atraído sua atenção. Um amável sorriso então aparecia em seus lábios. Dir-se-ia que se dirigisse a alguém: estendia as mãos e pelo gesto depreendia-se que apertava as mãos de amigos e conhecidos. Também se via, depois de cenas tais, recair na sua atitude súplice, juntar novamente as mãos, curvar a cabeça até tocar as cobertas, depois endireitar-se e derramar lágrimas. Então suspirava e parecia orar com grande fervor. Nesses momentos seu rosto se transformava: ficava pálida e adquiria a expressão de uma mulher de 24 a 25 anos. Por vezes tal estado durava cerca de meia hora, durante a qual só dizia ah! ah! Pancadas, arranhaduras, zumbidos e gritos cessavam até que ela despertasse. Então o batedor novamente se fazia ouvir, procurando executar árias alegres, a fim de dissipar a penosa impressão deixada na assistência. Ao despertar, a menina achava-se muito abatida; apenas podia levantar os braços, e os objetos que lhe eram apresentados não ficavam mais suspensos em seus dedos.

Curiosos para saber o que experimentara, interrogaram-na várias vezes. Somente após reiterados pedidos foi que se decidiu a contar que tinha visto conduzir e crucificar o Cristo no Gólgota; que a dor das santas mulheres prosternadas ao pé da cruz e a crucificação lhe haviam produzido uma impressão indescritível. Também tinha visto uma porção de mulheres e de virgens vestidas de preto e mocinhas com longos vestidos brancos percorrendo em procissão as ruas de bonita cidade e, por fim, viu-se transportada a uma vasta igreja onde assistiu a um serviço fúnebre.

Em pouco tempo o estado de Filipina Sänger mudou a ponto de causar apreensão quanto à sua saúde, porque, estando desperta, divagava e sonhava em voz alta. Não reconhecia os pais nem a irmã nem qualquer outra pessoa. A esse estado veio juntar-se uma completa surdez, que persistiu durante quinze dias.

Não podemos silenciar sobre o que se passou nesse lapso de tempo.

A surdez de Filipina manifestou-se de meio-dia às três horas, e ela mesma declarou que ficaria surda por algum tempo e que ficaria doente. O que há de singular é que por vezes recobrava a audição durante cerca de meia hora, com o que se mostrava contente. Ela própria predizia o momento em que ensurdeceria e em que recuperaria a audição. Uma vez, entre outras, anunciou que à noite, às oito e meia, ouviria claramente durante meia hora. Com efeito, à hora predita voltou a ouvir, o que durou até as nove horas.

Durante a surdez, os traços se lhe alteravam: o rosto tomava uma expressão de estupidez, que perdia assim que voltava ao estado normal. Nada então a impressionava. Ela ficava sentada, olhando os presentes fixamente e sem reconhecê-los. Ninguém podia fazer-se compreender senão por sinais, aos quais em geral não respondia, limitando-se a fitar os olhos na pessoa que lhe dirigia a palavra. Uma vez agarrou pelo braço um dos presentes e lhe perguntou, enquanto o empurrava: Quem és tu? Nessa situação ficava por vezes mais de hora e meia imobilizada na cama. Seus olhos meio abertos paravam num ponto qualquer; de vez em quando giravam à direita e à esquerda, depois voltavam ao mesmo ponto. Toda a sensibilidade parecia então embotada: o pulso apenas batia e quando se colocava uma luz diante de seus olhos, não fazia nenhum movimento. Dir-se-ia morta.

Aconteceu uma tarde, durante a surdez que, estando deitada, pediu uma lousa e um giz. Então escreveu: “Às onze horas direi alguma coisa, mas exijo que fiquem tranquilos e silenciosos.” Depois destas palavras acrescentou cinco sinais semelhantes à escrita latina, mas que nenhum dos presentes pôde decifrar. Escreveram na lousa que ninguém compreendia aqueles sinais. Em resposta, ela acrescentou: “Não é que não possais ler!” E, mais embaixo: “Não é alemão. É uma língua estranha.” Em seguida, virando a ardósia, escreveu do outro lado: “Francisca” (sua irmã mais velha) “sentar-se-á à mesa e escreverá o que eu ditar.” Acompanhou as palavras por cinco sinais semelhantes aos primeiros e entregou a ardósia. Notando que os sinais não eram ainda compreendidos, pediu novamente a lousa e acrescentou: “São ordens particulares.”

Um pouco antes das onze horas, disse: “Ficai tranquilos. Que todos se sentem e prestem atenção!” e, ao soarem as onze, caiu no leito e entrou em sono magnético habitual. Alguns instantes depois, começou a falar, e isto durou, ininterruptamente, cerca de meia hora. Entre outras coisas declarou que durante o ano em curso produzir-se-iam fatos que ninguém poderia compreender e que seriam infrutíferas todas as tentativas feitas para explicá-los.

Durante a surdez da jovem Sänger renovaram-se algumas vezes o rebuliço dos móveis, o inexplicável abrir das janelas, o apagar das luzes sobre a mesa de trabalho. Aconteceu, uma noite, que dois bonés que estavam pendurados num cabide do quarto de dormir foram atirados sobre a mesa do outro quarto e entornaram uma xícara cheia de leite, espalhando-o pelo chão. As pancadas desferidas na cama eram tão violentas que ela se deslocou de seu lugar; outras vezes até a cama se desmontava ruidosamente, sem que, entretanto, se tivessem ouvido as pancadas.

Como ainda houvesse pessoas incrédulas ou que atribuíam essas ocorrências a uma brincadeira da menina que, em sua opinião, batia e arranhava com os pés ou com as mãos, apesar de que os fatos tivessem sido verificados por mais de cem testemunhas e se tivesse constatado que a menina mantinha os braços estendidos sobre as cobertas enquanto se produziam os ruídos, o Cap. Zentner imaginou um meio de convencê-las. Mandou vir da caserna dois cobertores muito grossos, os quais foram postos um sobre o outro, e ambos envolveram o colchão e os lençóis da cama; os cobertores eram muito felpudos, de modo que seria impossível neles produzir o menor ruído por simples atrito. Vestindo uma leve camisa e uma camisola de dormir, Filipina foi posta debaixo das cobertas e, apenas agasalhada, os golpes e arranhaduras se produziram como dantes, ora na madeira da cama, ora no armário vizinho, segundo o que tinham a exprimir.

Acontece muitas vezes que quando alguém cantarola ou assobia uma ária qualquer, o batedor a acompanha e os sons que se percebem parecem vir de dois, três ou quatro instrumentos: ouve-se ao mesmo tempo arranhar, bater, assobiar e roncar, conforme o ritmo da ária cantada. Muitas vezes, também, o batedor pede a um dos assistentes que cante uma canção. Designa-o pelo processo já nosso conhecido e quando a pessoa compreende que é a si mesma que o Espírito se dirige, por sua vez pergunta ao Espírito se quer que cante esta ou aquela canção. A resposta é dada por sim ou não. Ao cantar a ária indicada, ouve-se um acompanhamento perfeito de zumbidos e assobios. Depois de uma canção alegre, muitas vezes o Espírito pedia o hino Grande Deus, nós te louvamos ou a canção de Napoleão I. Se lhe pedíssemos para tocar sozinho esta última ou qualquer outra, ele a executava do começo ao fim.

Assim iam as coisas na casa de Sänger, quer de dia, quer de noite, durante o sono da menina ou quando em vigília, até o dia 4 de março de 1853, data em que as manifestações entraram em outra fase. Esse dia foi marcado por um fato ainda mais extraordinário que os precedentes.”

(continua no próximo número).

OBSERVAÇÃO: Os leitores hão de perdoar a extensão dada a estes curiosos detalhes. Pensamos, entretanto, que a continuação será lida com não menor interesse. Queremos fazer notar que os fatos não nos vêm de além-mar, cuja distância é um argumento, apesar de tudo, para certos cépticos. Eles não vêm nem mesmo de além Reno, pois se passaram em nossas fronteiras, quase sob nossos olhos e há seis anos apenas.

Como se vê, Filipina Sänger era uma médium natural muito complexa. Além da influência que exercia sobre os fenômenos bem conhecidos de ruídos e de movimentos, era uma sonâmbula extática. Ela conversava com os seres incorpóreos que via; ao mesmo tempo via os assistentes e lhes dirigia a palavra, mas nem sempre lhes respondia, o que prova que em certos momentos achava-se isolada. Para aqueles que conhecem os efeitos da emancipação da alma, as visões que descrevemos nada possuem que não possa ser facilmente explicado. É provável que, nesses momentos de êxtase, o Espírito da menina se visse transportado para qualquer lugar distante, onde assistiria, talvez em recordação, a uma cerimônia religiosa. Podemos admirar-nos da lembrança que trazia ao despertar, mas o fato não é insólito. Aliás, podemos notar que a lembrança era confusa e que se tornava necessário insistir muito para provocá-la.

Se observarmos atentamente o que se passava durante a surdez, reconheceremos sem dificuldade um estado cataléptico. Como a surdez era apenas temporária, é evidente que não causava alterações nos órgãos respectivos. O mesmo se dava com a obliteração das faculdades mentais, o que nada tinha de patológico, de vez que, em dado momento, tudo voltava ao estado normal. Esta espécie de estupidez aparente era devida a um mais completo desprendimento da alma, cujas excursões eram feitas com maior liberdade e não deixavam aos sentidos mais do que a vida orgânica. Imagine-se o efeito desastroso que teria produzido um tratamento terapêutico em semelhantes condições! A cada momento podem produzir-se fenômenos do mesmo gênero. Neste caso, não poderemos senão recomendar muita circunspecção. Uma imprudência pode comprometer a saúde e até a própria vida.



[1] ─ Para que o leitor não fique confuso diante de alguns senões nestes dois artigos e ainda no seguinte, versando sobre o mesmo assunto, queremos esclarecer.

Quanto ao primeiro artigo:

I ─ No original encontramos, de referência a um médico, as grafias Beutner e Bentner. Parece tratar-se de um erro tipográfico. Por mais conforme à língua alemã, preferimos a grafia Bentner.

II ─ O nome da família onde ocorreram os fenômenos aparece como Sänger depois como Senges. O certo deve ser Sänger ou Saenger, que significa cantor. Este, como muitos nomes semelhantes (adjetivos e adjetivos substantivos) derivam-se de uma forma verbal, tomando terminação er, que significa o agente da ação expressa pelo verbo, mas determinam uma alteração na vogal tônica do radical. Ex.: singea (cantar) sang (cantava); sänger (cantor). No alemão moderno, o trema sobre o a, o o e o u é substituído por um e. Assim, pode escrever-se Saenger. Preferimos, no caso, a forma antiga.

III ─ Não há declaração do nome do médium. O texto se refere a uma criança de onze anos. Traduzimos por menino, rapaz ou outra forma masculina porque, conquanto no original lêssemos enfant, que é forma epicena, os adjetivos que o acompanham estão sempre no masculino. Assim, lá está enfant... agé, endormi, avancé etc. É possível que o lapso de quem traduziu esse primeiro artigo do alemão para o francês se explique pelo emprego original da voz das kind (a criança) que é neutra em alemão, podendo ser aplicada a ambos os sexos.

Entretanto o segundo artigo começa com uma referência à volta da criança da casa do Dr. Bentner para o seu próprio lar; aí a voz enfant é empregada no feminino: l’enfant fut conduite; mais adiante há uma referência à cura de la jeune fille e seu nome é declinado ─ Philippine Senger ─ conforme a grafia francesa.

Tudo, pois, leva a crer que houve um equívoco cometido pela pessoa que traduziu o primeiro artigo do alemão para o francês.

No terceiro artigo, que sairá no próximo número, há uma nota no rodapé, página 183 do original, com um agradecimento ao Sr. Alfred Pireaux, funcionário dos correios, pela tradução dessa interessante brochura. Como, porém, se vê claramente no início do segundo artigo, o relato é extraído de uma nova brochura alemã, cuja citação é continuada no terceiro. Está visto, pois, que havia uma primeira brochura e, assim, o lapso quanto ao nome do médium não se deve ao tradutor citado linhas acima, nem à nossa versão brasileira, já corrigida neste volume.

Para finalizar: o médium foi a menina Filipina Sänger, de onze anos, e não um seu irmão, pois, no texto dos artigos segundo e terceiro, o único Sänger masculino que é citado é papá Sänger. (N. do T.)


[2] Este livrinho de Kardec foi abolido pelo autor, assim que lançou O Livro dos Médiuns. (N. do T.)


[3] Teremos ocasião de falar da indisposição da criança. Como, porém, após a sua cura, reproduziram-se os mesmos efeitos, temos uma prova evidente de que eles não dependiam de seu estado de saúde.


[4] Uma sonâmbula de Paris se havia posto em contato com a jovem Filipina e, desde então, esta caía espontaneamente em sonambulismo. Nessa ocasião passa­vam-se fatos notáveis, que relataremos de outra feita. (Nota do tradutor francês).


[5] Variedade de papagaio do arquipélago indiano, caracterizado por um topete de penas amarelas que se eriçam, em forma de crista. O nome kakatua ou kakatoa é onomatopaico: deriva-se do próprio grito da ave que, como as nossas araras, o repetem continuamente.



I


Um homem saiu muito cedo e foi à praça para contratar operários. Ora, ali viu dois homens do povo, sentados e de braços cruzados. Chegou-se a um deles e assim o abordou: “Que fazes aí?” Ao que o mesmo lhe respondeu: “Não tenho trabalho.” Disse então aquele que procurava trabalhadores: “Toma a tua ferramenta e vem ao meu campo, na vertente da colina, onde sopra o vento sul; cortarás as urzes e revolverás o solo até o cair da noite. A tarefa é dura, mas terás um bom salário.” O homem do povo pôs a enxada no ombro, agradecendo-lhe por isso, de todo o coração.

Ouvindo isto, o outro operário levantou-se e aproximou-se, dizendo: “Senhor, deixe-me ir também trabalhar no campo.” E, tendo-lhes dito a ambos que o seguissem, marchou à frente, para mostrar o caminho. Depois, quando chegaram à encosta da colina, dividiu o trabalho em dois e se foi.

Quando ele partiu, o último dos operários contratados pôs fogo no mato da gleba que lhe coube por sorte e revolveu a terra com a enxada. Sob o ardor do sol, o suor porejava-lhe de sua fronte. O outro o imitou, a princípio murmurando, mas em breve parou o trabalho e fincando a enxada no chão sentou-se ao lado, olhando o trabalho do companheiro.

Ora, ao cair da tarde veio o dono do campo e examinou o trabalho. Chamando o operário diligente, felicitou-o dizendo: “Trabalhaste bem. Eis o teu salário.” E despediu-o, dando-lhe uma moeda de prata. O outro também se aproximou, reclamando o preço de seu salário, mas o dono lhe disse: “Mau trabalhador, meu pão não matará a tua fome, porque tu deixaste inculta a parte de meu campo que te foi confiada. Não é justo que aquele que nada fez seja recompensado como o que trabalhou bem.”

E despediu-o sem nada lhe dar.


II
Eu vos digo que a força não foi dada ao homem, nem a inteligência ao seu espírito para que consuma seus dias na ociosidade, mas para ser útil aos seus semelhantes. Ora, aquele cujas mãos estiverem desocupadas e o espírito ocioso será punido e deverá recomeçar a sua tarefa.

Em verdade vos digo que sua vida será posta de lado como coisa imprestável, quando seu tempo se cumprir. Compreendei isto como uma comparação. Qual de vós, possuindo no pomar uma árvore que não dá frutos, não dirá ao servo: “Corte aquela árvore e lance-a no fogo, pois seus ramos são estéreis?” Ora, assim como aquela árvore será cortada por causa de sua esterilidade, também a vida do preguiçoso será lançada no refugo, por ter sido estéril em boas obras.



Palestras familiares de além-túmulo

O SR. MORISSON, MONOMANÍACO

Em março último noticiava um jornal inglês o que se segue, a respeito do Sr. Morisson, recentemente falecido na Inglaterra, deixando uma fortuna de cem milhões de francos. Segundo aquele jornal, nos dois últimos anos de vida ele era presa de singular monomania. Imaginava-se reduzido a extrema pobreza e devia ganhar o pão de cada dia com um trabalho manual. A família e os amigos haviam reconhecido a inutilidade dos esforços para lhe tirar aquilo da cabeça. Era pobre, não possuía um ceitil e devia trabalhar para viver: essa a sua convicção. Todas as manhãs punham-lhe uma enxada nas mãos e mandavam-no trabalhar em seus próprios jardins. Daí a pouco vinham procurá-lo, pois a tarefa estava concluída; pagavam-lhe um modesto salário pelo trabalho feito e ele ficava contente. Seu espírito ficava tranquilo e sua mania satisfeita.

Se o tivessem contrariado teria sido o mais infeliz dos homens.

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso que permita venha comunicar-se conosco o Espírito de Morisson, recém-falecido na Inglaterra, deixando uma fortuna considerável.

─ Aqui está ele.

2. ─ Lembra-se do estado em que se achava durante os dois últimos anos de sua existência corpórea?

─ É sempre o mesmo.

3. ─ Depois da morte seu Espírito ficou ressentido da aberração das faculdades durante a sua vida?

─ Sim.

São Luís completa a resposta, dizendo espontaneamente: “Desprendido do corpo, o Espírito sente, durante algum tempo, a compressão dos seus laços.”

4. ─ Assim, após a morte, seu Espírito não recobrou imediatamente a plenitude de suas faculdades?

─ Não.

5. ─ Onde está agora?

─ Atrás de Ermance.

6. ─ Você é feliz ou infeliz?

─ Algo me falta... Não sei o que... Procuro... Sim, sofro.

7. ─ Por que sofre?

─ Sofre pelo bem que não fez. (Resposta de São Luís).

8. ─ Por que essa mania de julgar-se pobre, quando possuía tão grande fortuna?

─ Eu o era. Em verdade, rico é aquele que não tem necessidades.

9. ─ De onde vinha essa ideia de que lhe era necessário trabalhar para viver?

─ Eu era louco e ainda sou.

10. ─ Como lhe veio essa loucura?

─ Que importa? Eu tinha escolhido essa expiação.

11. ─ Qual é a origem de sua fortuna?

─ Que te importa?

12. ─ Entretanto a sua invenção não visava aliviar a Humanidade?

─ E enriquecer-me.

13. ─ Que uso você fazia da fortuna quando gozava da plenitude da razão?

─ Nenhum. Creio que eu a gozava.

14. ─ Por que lhe teria Deus concedido fortuna, desde que não devia empregá-la utilmente para os outros?

─ Eu tinha escolhido a prova.

15. ─ Aquele que goza de uma fortuna adquirida no trabalho não é mais escusável por se apegar a ela do que o que nasceu no seio da opulência e jamais conheceu a necessidade?

─ Menos.

São Luís acrescenta: “Aquele conhece a dor, mas não a alivia.”

16. ─ Você se lembra de sua existência precedente a esta que acaba de deixar?

─ Sim.

17. ─ O que você era então?

─ Um operário

18. ─ Você nos disse que é infeliz. Vê um termo para o seu sofrimento?

─ Não.

São Luís acrescenta: “É cedo demais.”

19. ─ De quem depende isto?

─ De mim. Assim mo disse aquele que está ali.

20. ─ Conhece aquele que está ali?

─ Vós o chamais Luís.

21. ─ Sabeis o que foi ele em França no século XIII?

─ Não... Eu o conheço por vosso intermédio... Agradeço por aquilo que me ensinou.

22. ─ Você acredita numa outra existência corporal?

─ Sim.

23. ─ Se deve renascer na vida corpórea, de quem dependerá sua futura posição social?

─ De mim, suponho eu. Tantas vezes escolhi que isto só de mim poderá depender.

OBSERVAÇÃO: As palavras tantas vezes escolhi são características. Seu estado atual prova que, apesar das numerosas existências, pouco progrediu, e que para ele, é sempre um recomeço.

24. ─ Que posição social escolheria se pudesse recomeçar?

─ Baixa. Avança-se com mais segurança. Só se está encarregado de si mesmo.

25. ─ (A São Luís): Não haverá um sentimento de egoísmo na escolha de uma posição humilde, na qual não se deve ter o encargo senão de si mesmo?

─ Em parte alguma se têm encargos apenas para consigo mesmo. O homem responde pelos que o cercam e não só pelas almas cuja educação lhe foi confiada, mas ainda pelos outros. O exemplo faz todo o mal.

26. ─ (A Morisson): Nós lhe agradecemos a bondade com que nos respondeu e rogamos a Deus lhe dê forças para suportar novas provas.

─ Vós me aliviastes. Eu aprendi.

OBSERVAÇÃO: Reconhece-se facilmente nas respostas acima o estado moral do Espírito. Elas são curtas e, quando não monossilábicas, têm algo de sombrio e de vago. Um louco melancólico não falaria diferentemente. Essa persistência da aberração das ideias após a morte é um fato notável, mas que não é constante, ou que por vezes apresenta um caráter completamente diverso. Teremos ocasião de citar vários outros exemplos, onde se estudam as diferentes formas de loucura.


O SUICIDA DA SAMARITANA

Recentemente os jornais noticiaram o seguinte fato: “Ontem (7 de abril de 1858) pelas sete horas da noite, um homem de cerca de cinquenta anos, vestido decentemente, apresentou-se no estabelecimento da Samaritana e pediu um banho. O empregado admirou-se de que, após duas horas, o indivíduo não chamasse; decidiu-se a entrar no banheiro para ver se não se sentira indisposto. Testemunhou então um horrível espetáculo: o infeliz havia cortado a garganta com uma navalha e todo o sangue se havia misturado à água da banheira. Desde que a identidade não pôde ser estabelecida, o cadáver foi transportado para o necrotério.”

Pensamos que seria possível tirar um ensinamento útil à nossa instrução da conversa com o Espírito desse homem. Assim, evocamo-lo a 13 de abril, apenas seis dias após a sua morte.

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco.

─ Espera... (Depois de alguns instantes): Ei-lo.

OBSERVAÇÃO: Para compreender esta resposta é preciso que se saiba que, em geral, em todas as reuniões regulares, há um Espírito familiar, do médium ou da família, que está sempre presente, sem ser preciso chamá-lo. É ele que faz virem os que são evocados e, conforme seja mais ou menos elevado, serve como mensageiro ou dá ordens aos Espíritos que lhe são inferiores. Quando nossas reuniões têm como intérprete a Srta. Ermance Dufaux, é sempre o Espírito de São Luís que voluntariamente toma esse encargo. Foi ele que deu a resposta acima.

2. ─ Onde você está agora?

─ Não sei... Dizei-me onde me encontro.

3. ─ Na Rua Valois (Palais-Royal), n.º 35, numa reunião de pessoas que se ocupam de estudos espíritas e que lhe são benevolentes.

─ Dizei-me se estou vivo... Eu sufoco no caixão.

4. ─ Quem o convidou a vir até nós?

─ Senti-me aliviado.

5. ─ Que motivo o levou ao suicídio?

─ Estou morto?... Não!... Estou em meu corpo... Não sabeis quanto sofro!... Eu sufoco!... Que uma mão piedosa venha dar-me um fim!

OBSERVAÇÃO: Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada naquilo que poderíamos chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrenas ainda se acham vivazes. Ele não acredita que está morto.

6. ─ Por que não deixou nenhum elemento de identificação?

─ Estou abandonado. Fugi do sofrimento para encontrar a tortura.

7. ─ Você tem ainda os mesmos motivos para ficar incógnito?

─ Sim. Não coloqueis um ferro em brasa na ferida que sangra.

8. ─ Poderia dar-nos o seu nome, idade, profissão e domicílio?

─ Não a tudo. Não!...

9. ─ Você tinha uma família, uma mulher, filhos?

─ Eu estava abandonado. Ninguém me amava.

10. ─ O que você fez para não ser amado por ninguém?

─ Quantos há como eu!... Um homem pode estar abandonado no meio da própria família, quando nenhum coração o ama.

11. ─ Você experimentou alguma hesitação ao realizar o suicídio?

─ Eu tinha sede de morrer... Esperava o repouso.

12. ─ Como é que a ideia do futuro não o levou a renunciar àquele desígnio?

─ Eu não cria mais no futuro; estava sem esperanças. O futuro é a esperança.

13. ─ Que reflexões você fez ao sentir extinguir-se a vida?

─ Não refleti; senti... Mas a minha vida não se extinguiu... minha alma está ligada ao corpo... não morri..., entretanto sinto que os vermes me roem.

14. ─ Que sentimento experimentou no momento em que se completou a morte?

─ Ela está completa?

15. ─ Foi doloroso o momento em que se extinguiu a vida?

─ Menos doloroso do que depois. Então, só o corpo sofreu.

São Luís continua:

─ O Espírito libertava-se de um fardo que o esmagava. Ele sentia a volúpia da dor.

(A São Luís): ─ Esse estado é o que sempre se segue ao suicídio?

─ Sim. O Espírito do suicida fica ligado ao corpo até o termo de sua vida. A morte natural é o enfraquecimento da vida. O suicídio a interrompe bruscamente.

─ Esse estado será o mesmo em toda morte acidental independente da vontade e que abrevia a duração natural da vida?

─ Não. Que entendeis por suicídio? O Espírito só é culpado por suas obras.

OBSERVAÇÃO: Havíamos preparado uma série de perguntas que nos propuséramos dirigir ao Espírito desse homem sobre a sua nova existência. Diante de suas respostas, elas perderam o sentido. Era evidente, para nós, que nenhuma consciência tinha ele da situação. A única coisa que nos pôde descrever foi o seu sofrimento.

Essa dúvida sobre a morte é muito comum nos recém-falecidos e principalmente naqueles que em vida não elevaram a alma acima da matéria. À primeira vista é um fenômeno bizarro, mas explicável muito naturalmente. Se perguntarmos a uma pessoa que pela primeira vez é levada ao sonambulismo se está adormecida, ela responderá quase sempre que não, e sua resposta é lógica. O interrogante é que formula mal a pergunta, servindo-se de um termo impróprio. A ideia de sono, no falar comum, está ligada à da suspensão de todas as faculdades sensitivas. Ora, o sonâmbulo, que pensa e vê; que tem consciência de sua liberdade moral, não crê que durma e, com efeito, não dorme, na acepção vulgar do vocábulo. Eis por que responde que não está dormindo, até familiarizar-se com essa nova maneira de entender a coisa. O mesmo acontece com o homem que acaba de morrer. Para ele a morte era o nada. Ora, como ocorre com o sonâmbulo, ele vê, sente a fala. Para ele, portanto, a vida continua, e ele assim o afirma, até que tenha adquirido consciência de seu novo estado.



ENVENENAMENTO DO DUQUE DE GUYENNE

...Ocupei-me depois da Guyenne. Odet d’Aidies, senhor de Lescun, que se tinha desentendido comigo, conduzia os preparativos da guerra com uma vivacidade maravilhosa. Era com muito esforço que alimentava o ardor belicoso de meu irmão, o Duque de Guyenne. Ele tinha de combater um adversário temível no espírito de meu irmão: a Senhora Thouars, amante de Carlos, Duque de Guyenne.

Essa mulher não procurava senão tirar partido do poder que exercia sobre o jovem duque, a fim de desviá-lo da guerra, pois não ignorava que a guerra tinha por objetivo o casamento do seu amante. Seus inimigos secretos tinham afetado, em sua presença, louvar a beleza e as brilhantes qualidades da noiva. Isto foi suficiente para persuadi-la de que sua desgraça seria certa se aquela princesa desposasse o Duque de Guyenne. Certa da paixão de meu irmão, recorreu às lágrimas, às preces e a todas as extravagâncias de uma mulher perdida em semelhante situação. O pusilânime Carlos cedeu e comunicou suas novas resoluções a Lescun. Lescun imediatamente preveniu o Duque de Bretanha e os interessados, os quais, alarmados, mandaram representações a meu irmão. Estas, porém, não surtiram senão o efeito de mergulhálo novamente em suas dúvidas.

Entretanto, a favorita conseguiu, não sem dificuldade, dissuadi-lo novamente da guerra e do casamento. A partir de então, a morte da favorita foi decidida por todos os príncipes.

Com receio de que meu irmão viesse atribuí-la a Lescun, cuja antipatia pela Senhora Thouars lhe era conhecida, decidiram conquistar Jean Faure Duversois, monge beneditino, confessor de meu irmão e abade de Saint-Jean d’Angély. Esse homem era um dos maiores entusiastas da Senhora de Thouars e ninguém ignorava o ódio que votava a Lescun, cuja influência política invejava. Não era provável que meu irmão lhe atribuísse a morte da amante, pois aquele sacerdote era um dos favoritos que maior confiança lhe mereciam. Desde que apenas a sede de grandeza o ligava à favorita, deixou-se facilmente corromper.

Durante muito tempo eu tentei seduzir o abade, mas ele sempre repelia minhas ofertas. Entretanto, deixava-me a esperança de atingir o meu objetivo.

Ele facilmente percebeu a situação em que se meteria prestando aos príncipes o serviço que lhe pediam, pois sabia que não lhes era difícil desembaraçar-se de um cúmplice. Por outro lado, conhecia a inconstância de meu irmão e temia tornar-se sua vítima.

Para conciliar sua segurança com seus interesses, resolveu sacrificar seu jovem senhor. Tomando tal partido, tinha tantas chances de êxito quantas de fracasso. Para os príncipes, a morte do jovem Duque de Guyenne deveria ser o resultado de um erro ou de um incidente imprevisto. Mesmo quando imputada ao Duque da Bretanha e seus comparsas, a morte da favorita teria passado despercebida, por assim dizer, pois que ninguém teria descoberto os motivos que lhe emprestavam uma importância real, do ponto de vista político.

Admitindo que pudessem ser acusados pela morte de meu irmão, achar-se-iam eles expostos aos maiores perigos, porque teria sido meu dever castigá-los rigorosamente. Sabiam que não era boa vontade que me faltava e que no caso o povo poderia voltar-se contra eles. Então o próprio Duque de Borgonha, alheio ao que se tramava em Guyenne, teria sido forçado a aliar-se a mim, sob pena de se ver acusado de cumplicidade. Mesmo nesta última hipótese, tudo teria resultado em meu favor. Eu poderia fazer que Carlos, o Temerário, fosse declarado criminoso de lesamajestade e levar o Parlamento a condená-lo à morte, pelo assassinato de meu irmão. Tais condenações, pronunciadas por aquele alto tribunal, tinham sempre grandes resultados, sobretudo quando eram de uma incontestável legitimidade.

Vê-se facilmente que interesse tinham os príncipes em manejar o abade. Por outro lado, nada mais fácil do que desfazer-se dele em segredo.

Mas comigo o abade de Saint-Jean tinha maiores chances de impunidade. O serviço que prestava era-me da maior importância, sobretudo naquele momento, porque a liga formidável que se formava e da qual o Duque de Guyenne era o centro deveria perder-me infalivelmente. O único meio de destruí-la seria a morte de meu irmão, o que representava a minha salvação. Ele aspirava o favor de Tristão, o Eremita, pensando que, por esse meio, elevar-se-ia acima dele ou pelo menos partilharia minhas boas graças e minha confiança nele. Aliás, os príncipes tinham cometido a imprudência de lhe deixar em mãos provas incontestes de sua culpabilidade: eram diversos escritos, e como estavam redigidos em termos muito vagos, não era difícil substituir a pessoa de meu irmão pela de sua favorita, ali designada nas entrelinhas. Entregando-me esses documentos, ele afastava de mim qualquer dúvida relativa à minha inocência; por isto subtraía-se ao único perigo que corria ao lado dos príncipes e, provando que de nenhum modo eu me achava envolvido no envenenamento, deixava de ser meu cúmplice e me isentava de qualquer interesse em mandar matá-lo.

Restava provar que ele próprio não estava metido nisso. Esta era uma dificuldade menor. Para começar, ele estava seguro de minha proteção; depois, os príncipes não tinham provas de sua culpabilidade, e ele poderia devolver-lhes as acusações, a título de calúnias.

Tudo bem ponderado, enviou-me um emissário que fingiu ter vindo espontaneamente dizer-me que o Abade de Saint-Jean estava descontente com meu irmão. Vi imediatamente todo o partido que poderia tirar de tal disposição e caí na armadilha preparada pelo astuto abade. Não suspeitando que aquele homem tivesse sido enviado por ele, despachei um de meus espiões de confiança. Saint-Jean representou tão bem o seu papel, que o emissário foi enganado. Baseado em seu relatório, escrevi ao abade, a fim de conquistá-lo. Ele aparentou muitos escrúpulos, mas eu triunfei, embora com alguma dificuldade. Concordou em ficar encarregado do envenenamento de meu jovem irmão. Eu estava tão pervertido que não hesitei em cometer esse crime horrível.

Henri de la Roche, escudeiro da repostaria do duque, ficou encarregado de preparar um pêssego que seria oferecido pelo próprio abade à Sra. de Thouars, enquanto merendava à mesa de meu irmão. A beleza desse fruto era notável. Ela chamou a atenção do príncipe e o partilhou com ele. Apenas tinham ambos comido, a favorita sentiu dores violentas nas entranhas e dentro em pouco expirou no meio de atrozes sofrimentos. Meu irmão experimentou os mesmos sintomas, mas com muito menor violência.

Talvez pareça estranho que o abade se tivesse servido de tal meio para envenenar o seu jovem senhor. Na verdade, o menor incidente poderia prejudicar o seu plano. Era, entretanto, o único que a prudência poderia autorizar: ele admitia a possibilidade de um engano. Tocada pela beleza do pêssego, era muito natural que a Sra. de Thouars chamasse a atenção de seu amante e lhe oferecesse a metade; ele não poderia deixar de aceitá-la e de comer um pouco, ainda que por consideração. Admitindo que comesse apenas um pedacinho, isto seria suficiente para provocar os primeiros sintomas necessários; um envenenamento posterior poderia determinar a morte, como consequência do primeiro.

Os príncipes ficaram tomados de terror assim que souberam das consequências funestas do envenenamento da favorita. Eles não tiveram a menor suspeita da premeditação do abade. Pensaram apenas em dar todas as aparências de naturalidade à morte da jovem senhora e à doença de seu amante. Nenhum deles tomou a iniciativa de oferecer um contra-veneno ao infeliz príncipe, com receio de se comprometer. Realmente tal atitude daria a entender que o veneno era conhecido e, consequentemente, que alguém era cúmplice do crime.

Graças à sua juventude e à força de seu temperamento, Carlos resistiu ao veneno por algum tempo. Seus sofrimentos físicos não fizeram outra coisa senão reconduzi-lo aos antigos projetos com mais ardor. Temendo que a doença diminuísse o zelo de seus oficiais, quis que esses renovassem o juramento de fidelidade. Como ele exigia que eles se engajassem a seu serviço, contra tudo e contra todos, mesmo contra mim, alguns dentre eles, temerosos de sua morte, que parecia próxima, recusaram-se a fazê-lo e passaram para a minha corte.

OBSERVAÇÃO: No número anterior vimos os detalhes interessantes, dados por Luís XI, relativamente à sua morte. O fato que acabamos de relatar não é menos notável sob o duplo ponto de vista da História e do fenômeno das manifestações. Aliás, só tínhamos dificuldades quanto à escolha: a vida desse rei, tal qual foi ditada por ele próprio, é incontestavelmente a mais completa que possuímos e, podemos dizer, a mais imparcial. O estado do espírito de Luís XI lhe permite hoje apreciar as coisas em seu justo valor. Pelos três fragmentos escolhidos, pode-se ver como faz o próprio julgamento. Ele explica sua política melhor que qualquer de seus historiadores. Não se absolve de sua conduta e, em sua morte, tão triste e tão vulgar para um monarca algumas horas antes todo-poderoso, vê um castigo antecipado.

Como fenômeno de manifestações, este trabalho oferece um interesse especial. Ele prova que as comunicações espíritas podem esclarecer-nos sobre a História, desde que nos saibamos colocar em condições favoráveis. Fazemos votos para que a publicação da vida de Luís XI, bem como a não menos interessante de Carlos VIII, igualmente concluída, venham em breve colocar-se ao lado da de Joana d’Arc.



SUA OPINIÃO SOBRE AS COMUNICAÇÕES EXTRACORPÓREAS
Vemos daqui certos escritores eméritos darem de ombros ao simples enunciado de uma história escrita pelos Espíritos. Dizem eles:

─ Como os seres do outro mundo podem vir controlar o nosso saber, controlarnos a nós, sábios da Terra? Ora esta! Isto é possível?

Senhores, não vos forçamos a acreditar; nem mesmo faremos o menor esforço no sentido de vos tirar tão cara ilusão. No interesse de vossa glória futura, vos convidamos, até, a inscrever os vossos nomes em caracteres indestrutíveis ao pé desta modesta sentença: Todos os partidários do Espiritismo são insensatos, pois a nós tão somente cabe julgar até onde vai o poder de Deus. Isto para que a posteridade não os esqueça. Ela própria verá se lhes deve dar lugar ao lado daqueles que pouco antes repeliram os homens a quem a Ciência e o reconhecimento público hoje erigem estátuas.

Eis aqui, contudo, um escritor cuja alta capacidade todos reconhecem e que, também ele, se arrisca a passar por um cabeça oca; também ele arvora a bandeira das ideias novas sobre as relações do mundo físico com o mundo extracorpóreo. Na Histoire de France, de Henri Martin, tomo 6, página 143, lemos o seguinte, a propósito de Joana d’Arc:

“... Existe na Humanidade uma ordem excepcional de fatos morais e físicos que aparentemente derrogam as leis ordinárias da Natureza: são os estados de êxtase e de sonambulismo, quer artificial, quer espontâneo, com todos os admiráveis fenômenos de perturbação dos sentidos, de insensibilidade total ou parcial do corpo, de exaltação da alma, de percepções fora de todas as condições da vida habitual. Os fatos dessa classe foram julgados sob pontos de vista completamente opostos. Vendo perturbadas ou deslocadas as relações costumeiras dos órgãos, os fisiologistas qualificam de doença os estados extático e sonambúlico. Admitem a realidade dos fenômenos que eles podem enquadrar na patologia e negam todo o resto, isto é, tudo aquilo que pareça estar fora das leis estabelecidas pela Física. A seus olhos a doença se converte em loucura, quando à alteração da ação dos órgãos se juntam alucinações dos sentidos e visões de objetos que só existem para o visionário.

“Um eminente fisiologista sustentou muito austeramente que Sócrates era um louco, porque julgava conversar com o seu demônio.

“Os místicos respondem não só afirmando que são reais os extraordinários fenômenos de percepções magnéticas, questões sobre as quais eles encontram inumeráveis auxiliares e inumeráveis testemunhas fora do misticismo, bem como sustentando que as visões dos extáticos têm objetos reais, certamente não vistos pelos olhos do corpo, mas pelos do Espírito. Para eles o êxtase é a ponte lançada do mundo visível ao invisível; o meio de comunicação do homem com os seres superiores; a lembrança e a promessa de uma existência melhor, de onde decaímos e que devemos reconquistar.

“Nesse debate, que partido devem tomar a História e a Filosofia?

“A História não poderia determinar com precisão os limites nem a extensão dos fenômenos, nem das faculdades extáticas e sonambúlicas, mas constata que ocorrem por toda parte; que os homens sempre lhes deram crédito; que eles exerceram uma ação considerável sobre os destinos do gênero humano; que se manifestaram não apenas entre os contemplativos, mas também entre os gênios mais potentes e mais ativos e a maioria dos grandes iniciados; que por mais desarrazoados que sejam muitos extáticos, nada existe de comum entre as divagações da loucura e as visões de tantos outros; que as visões podem ser ligadas a certas leis; que os extáticos de todos os lugares e de todos os tempos têm aquilo que se poderia chamar uma linguagem comum, a linguagem dos símbolos, da qual a poesia não é mais que um derivativo, linguagem que exprime, mais ou menos constantemente, as mesmas ideias e os mesmos sentimentos por intermédio das mesmas imagens.

“Talvez seja temerário concluir algo em nome da Filosofia. Entretanto, depois de haver reconhecido a importância moral desses fenômenos, por mais obscura que nos seja a sua lei e a sua finalidade; depois de havê-los distinguido em dois graus, um inferior, que não passa de uma estranha extensão ou deslocamento inexplicável da ação dos órgãos, e outro superior, que é uma prodigiosa exaltação das forças morais e intelectuais, o filósofo poderia, ao que nos parece, sustentar que a ilusão do inspirado consiste em tomar como revelação feita por seres exteriores, anjos, santos ou gênios, as revelações interiores dessa personalidade infinita que está em nós e que, por vezes, entre os melhores e os maiores, manifesta por lampejos de forças latentes que ultrapassam quase que incomensuravelmente as faculdades de nossa atual condição. Numa palavra, em linguagem acadêmica, são para nós fatos de subjetividade; na linguagem das antigas filosofias místicas e das mais adiantadas religiões, são revelações do ferouer[2] mazdeísta, do bom demônio (de Sócrates), do anjo da guarda, desse outro Eu que não passa do eu eterno, em plena posse de si mesmo, planando sobre o eu mergulhado nas sombras desta vida. É a figura do magnífico símbolo zoroastriano representado por toda parte em Persépolis e em Nínive: o ferouer alado ou o eu celeste, planando sobre a pessoa terrena.

“Negar a ação dos seres exteriores sobre o inspirado; não ver em suas pretensas manifestações mais que a forma dada às intuições do extático pelas crenças de seu tempo e de seu meio; buscar a solução do problema nas profundezas da personalidade humana, não é absolutamente pôr em dúvida a intervenção divina nos grandes fenômenos e nas grandes existências. O autor e sustentáculo de toda vida, por mais essencialmente independente que seja de cada criatura e de toda a criação; por mais distinta que seja de nosso ser contingente a sua personalidade absoluta, não é um ser exterior, isto é, estranho a nós e não é do exterior que ele nos fala. Quando a alma mergulha em si mesma, nela o encontra e, em toda inspiração salutar, nossa liberdade se associa à sua Providência. Aqui, como em tudo, é necessário prever o duplo perigo da incredulidade e da piedade mal esclarecida: uma não vê senão ilusões e impulsos puramente humanos; a outra se recusa a admitir qualquer parcela de ilusão, de ignorância ou de imperfeição onde só vê o dedo de Deus, como se os enviados de Deus deixassem de ser homens, homens de um certo tempo e de um certo lugar, e como se os relâmpagos sublimes que lhes atravessam a alma nela depositassem a Ciência universal e a perfeição absoluta. Nas mais evidentemente providenciais inspirações, os erros que vêm dos homens se misturam à verdade que vem de Deus. O ser infalível a ninguém comunica a sua infalibilidade.

“Julgamos que esta digressão não será tida por supérflua. Deveríamos pronunciar-nos sobre o caráter e sobre a obra daquela inspirada que no mais alto grau deu testemunho das faculdades extraordinárias de que falamos acima e que as aplicou à mais brilhante missão dos tempos modernos. Era preciso tentar emitir uma opinião à altura da categoria dos seres excepcionais à qual pertence Joana d’Arc.”



[2] Na religião avéstica, ser sobrenatural correspondente aos gênios dos romanos ou aos anjos guardiães da Religião Católica.




OS BANQUETES MAGNÉTICOS

A 26 de maio, aniversário natalício de Mesmer, realizaram-se os dois banquetes anuais que reúnem o escol dos magnetizadores de Paris e os adeptos estrangeiros que se juntam a eles. Sempre temos perguntado por que motivo essa solenidade comemorativa é celebrada em dois banquetes rivais, onde cada grupo bebe à saúde do outro e onde, sem resultado, ergue-se um brinde à união.

Naquele momento, tem-se a impressão de que estão prestes a se entenderem. Por que, então, uma cisão entre homens que se dedicam ao bem da Humanidade e ao culto da verdade? A verdade não se lhes apresenta sob a mesma luz? Têm eles duas maneiras de entender o bem da Humanidade? Estão divididos quanto aos princípios de sua Ciência? Absolutamente. Eles têm as mesmas crenças e o mesmo mestre, que é Mesmer. Se esse mestre, cuja memória invocam, atende a seu apelo, como o cremos, deve sofrer ao ver a desunião dos discípulos.

Felizmente essa desunião não desencadeará guerras como as queensanguentaram o mundo, em nome do Cristo, para eterna vergonha dos que se diziam cristãos. Entretanto, por mais inofensiva que seja, essa guerra não é menos lamentável, embora se limite aos golpes de pena e ao fato de beber cada um no seu canto. Gostaríamos de ver os homens de bem unidos por um mesmo sentimento de confraternização. Com isso a ciência magnética lucraria em progresso e em consideração.

Uma vez que os dois campos não estão divididos por divergências doutrinárias, em que se funda, então, o seu antagonismo? Não lhe podemos descobrir a causa senão nas susceptibilidades inerentes à imperfeição de nossa natureza, das quais nem mesmo os homens superiores por vezes estão isentos. Em todos os tempos o gênio da discórdia agitou o seu facho sobre a Humanidade. Isto significa, do ponto de vista espírita, que os Espíritos inferiores, invejosos da felicidade dos homens, encontram entre eles acesso muito fácil. Felizes aqueles que têm bastante força moral para repelir as suas sugestões.

Deram-nos a honra de convidar-nos para ambas as reuniões. Como se realizaram simultaneamente, e porque não passamos ainda de um Espírito muito materialmente encarnado, não possuindo o dom da ubiquidade, não nos foi possível satisfazer senão a um desses atenciosos convites. Fomos à reunião presidida pelo Dr. Duplanty.

É preciso dizer que ali os partidários do Espiritismo não constituem maioria. Contudo, verificamos prazerosamente que, salvo alguns piparotes dados nos Espíritos, nos versos espirituosas cantados pelo Sr. Julio Lovi e naqueles não menos divertidos, cantadas pelo Sr. Fortier, que teve as honras de um bis, a Doutrina Espírita não sofreu de ninguém críticas inconvenientes, em que são férteis alguns adversários, a despeito da educação de que se gabam.

Longe disso, num discurso notável e justamente aplaudido, o Dr. Duplanty proclamou, alto e bom som, o respeito que devemos ter pelas crenças sinceras, mesmo quando delas não compartilhamos. Sem pronunciar-se pró ou contra o Espiritismo, ele fez sabiamente observar que os fenômenos do magnetismo, revelando-nos um poder até então desconhecido, devem tornar-nos ainda mais circunspectos em relação aos que ainda se podem revelar e que, pelo menos, seria imprudência negar os que não compreendemos ou não chegamos a constatar, principalmente quando se apoiam na autoridade de homens honrados, cujas luzes e cuja lealdade não poderiam ser postas em dúvida.

São palavras sensatas, que agradecemos ao Sr. Duplanty. Elas contrastam singularmente com as de certos adeptos do Magnetismo, que inconsideradamente lançam o ridículo sobre uma doutrina que confessam desconhecer, esquecidos de que outrora também eles foram alvo dos sarcasmos; que também eles foram enviados aos hospícios e atacados pelos cépticos como inimigos do bom-senso e da religião. Hoje, que o Magnetismo se reabilitou pela força das circunstâncias; que dele não mais riem; que podemos sem susto confessar-nos magnetizadores, é pouco digno e pouco caritativo usarem dessas represálias contra uma ciência irmã que só lhes pode dar um benéfico apoio.

Nós não atacamos os homens, dizem eles; apenas rimos daquilo que parece ridículo, enquanto esperamos que a luz se faça para nós. Em nossa opinião, a ciência magnética, que professamos há 35 anos, deveria ser inseparável da seriedade. Parece-nos que neste mundo não falta pasto para a sua verve satírica, não havendo necessidade de tomarem como alvo as coisas sérias. Eles se esquecem de que foi usada contra eles a mesma linguagem; que eles próprios acusavam os incrédulos por julgarem levianamente e diziam, como nós agora, por nossa vez: “Paciência! Rirá melhor quem rir por último!”


ERRATUM
No nº 5 (maio de 1858), uma falha tipográfica desfigurou um nome próprio que, por isso mesmo, perdeu o sentido. No artigo “Conversas familiares de alémtúmulo – Mozart – Segunda conversa”, em vez de Poryolise, ler Pergolèse[1].

ALLAN KARDEC[2]



[1] Nesta edição, a falha foi corrigida a tempo. (N. do T.).


[2] Tipografia de Cosson & Cia., Rua do Four-Saint-Germain, 43.




Julho

DISSERTAÇÃO MORAL DITADA PELO ESPÍRITO DE SÃO LUÍS AO SR. D...

São Luís nos havia prometido uma dissertação sobre a inveja, para uma das sessões da Sociedade. O Sr. D..., que começava a desenvolver a mediunidade e que ainda duvidava um pouco, não da doutrina, da qual é um dos mais fervorosos adeptos, compreendendo-a na sua essência, isto é, do ponto de vista moral, mas da faculdade que se lhe revelava, evocou São Luís em particular e lhe dirigiu a seguinte pergunta:

─ Poderíeis dissipar minhas dúvidas, minha inquietação, relativamente à minha faculdade mediúnica, escrevendo por meu intermédio a dissertação que prometestes à Sociedade para terça-feira 1º de junho?

─ Sim. Fá-lo-ei de bom grado, para te tranquilizar.

Então foi ditado o trecho adiante. Salientamos que o Sr. D... se dirigia a São Luís com o coração puro e sincero, sem segundas intenções, condição indispensável a toda boa comunicação. Não era uma prova que fazia. Apenas duvidava de si mesmo e Deus permitiu que fosse atendido, para lhe dar meios de tornar-se útil. Hoje, o Sr. D... é um dos médiuns mais completos, não só pela grande facilidade de atuação, como por sua aptidão em servir de intérprete a todos os Espíritos, mesmo os das mais elevadas categorias, os quais por seu intermédio se exprimem facilmente e de boa vontade.

São essas, sobretudo, as qualidades que devemos procurar nos médiuns e que podem sempre ser adquiridas com paciência, vontade e exercício. O Sr. D... não necessitou de muita paciência; dispunha da vontade e do fervor, aliados à aptidão natural. Poucos dias bastaram para levar sua faculdade ao mais alto grau. Eis o ditado que recebeu sobre a inveja:

“Vede este homem. Seu Espírito está inquieto, sua infelicidade terrena chega ao auge: inveja o ouro, o luxo, a felicidade aparente ou fictícia de seus semelhantes; seu coração está devastado, sua alma surdamente consumida por essa luta incessante do orgulho, da vaidade não satisfeita. Ele carrega consigo, em todos os instantes de sua miserável existência, uma serpente que alimenta e que lhe sugere incessantemente os mais fatais pensamentos: “Terei essa volúpia, essa felicidade? Tenho tanto direito a isto quanto aqueles; sou um homem como eles, por que seria eu deserdado?”

Ele se debate na sua impotência, vítima do horrível suplício da inveja, feliz ainda se essas ideias funestas não o levam às bordas de um abismo. Entrando nessa via, a si mesmo pergunta se não deve obter pela violência aquilo que julga ser-lhe devido; se não irá expor aos olhos de todos o terrível mal que o devora. Se esse infeliz tivesse olhado somente para baixo de sua posição, teria visto a quantidade daqueles que sofrem sem um lamento e ainda bendizem o Criador, porque a desgraça é um benefício de que Deus se serve para fazer a pobre criatura avançar até o seu trono eterno.

Fazei das obras de caridade e de submissão, as únicas que vos podem dar entrada no seio de Deus, a vossa felicidade e o vosso verdadeiro tesouro na Terra. Essas obras no bem farão a vossa alegria e a vossa felicidade eternas. A inveja é uma das mais feias e tristes misérias do vosso globo. A caridade e a constante emissão da fé extirparão todos esses males, que desaparecerão, um a um, à medida que se multiplicarem os homens de boa vontade que virão depois de vós. Amém.”

UMA NOVA DESCOBERTA FOTOGRÁFICA

Vários jornais relataram o fato seguinte:

“O Sr. Badet, falecido a 12 de novembro último, após uma enfermidade de três meses, costumava, segundo o Union Bourguignonne, de Dijon, toda vez que lhe permitiam as forças, postar-se a uma janela do primeiro andar, com a face constantemente voltada para a rua, distraindo-se em ver os transeuntes. Há alguns dias a Sra. Peltret, cuja casa fica em frente à da Viúva Badet, percebeu numa vidraça da janela o próprio Sr. Badet, com seu boné de algodão, seu rosto emagrecido etc., enfim tal qual o vira durante a doença. Grande foi sua emoção, para não dizer mais nada.

“Não só chamou os vizinhos, cujo testemunho poderia ser suspeito, mas ainda homens respeitáveis, os quais viram mui distintamente a figura do Sr. Badet no vidro da janela à qual costumava ficar. Mostraram essa imagem à família do defunto, que imediatamente deu sumiço no vidro.

“Ficou todavia comprovado que no vidro estava reproduzida a imagem do doente, como que daguerreotipada, fenômeno só explicável se do lado oposto da janela houvesse uma outra, por onde os raios solares pudessem ter chegado ao Sr. Badet. Mas não existe tal janela. O quarto possui apenas uma. Esta a verdade nua e crua sobre esse caso admirável, cuja explicação deve ser pedida aos sábios.”

Confessamos que, ao ler a notícia, nosso primeiro impulso foi o de considerá-la vulgar, como se faz com as notícias apócrifas. A ela não ligamos a menor importância. Poucos dias depois, o Sr. Jobard, de Bruxelas assim nos escrevia:

“À leitura do fato que se segue” (o que acabamos de referir), “passado em minha terra e com um de meus parentes, dei de ombros ao ver o jornal que o relata remeter aos sábios a sua aplicação e ver que essa boa família retirara a vidraça, através da qual Badet olhava os transeuntes. Evoquem-no, para ver o que ele pensa.”

Esta confirmação do fato por um homem do caráter do Sr. Jobard, cujos méritos e honorabilidade todo mundo reconhece, e a circunstância especial de ser o herói um de seus parentes, não nos poderiam deixar dúvidas quanto à veracidade. Em consequência disto evocamos o Sr. Badet na sessão da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, a 15 de junho de 1858, terça-feira. Eis as explicações obtidas:

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso permitir que venha comunicar-se conosco o Espírito do Sr. Badet, falecido em Dijon, a 11 de novembro último.

─ Eis-me aqui.

2. ─ É verdadeiro o fato que vos concerne e que acabamos de relembrar?

─ Sim, é verdadeiro.

3. ─ Poderíeis dar-nos a sua explicação?

─ Existem agentes físicos que são ainda desconhecidos, mas que mais tarde tornar-se-ão comuns. É um fenômeno muito simples, semelhante a uma fotografia produzida por forças que ainda não descobristes.

4. ─ Poderíeis, por vossas explicações, precipitar essa descoberta?

─ Eu gostaria, mas isto é tarefa de outros Espíritos e trabalho humano.

5. ─ Poderíeis reproduzir outra vez o mesmo fenômeno?

─ Não fui eu quem o produziu. Foram as condições físicas, independentes de mim.

6. ─ Por vontade de quem e com que objetivo produziu-se o fato?

─ Produziu-se quando eu era vivo, e independentemente de minha vontade. Um estado particular da atmosfera o revelou depois.

Tendo-se estabelecido uma discussão entre os assistentes, relativamente às causas prováveis do fenômeno, e emitidas várias opiniões sem que ao Espírito tivessem sido feitas outras perguntas, disse esse espontaneamente:

─ E não levais em conta a eletricidade e a galvanoplastia, que agem também sobre o perispírito?

7. ─ Ultimamente disseram-nos que os Espíritos não têm olhos. Ora, se essa imagem é a reprodução do perispírito, como foi possível reproduzir os órgãos da visão?

─ O perispírito não é o Espírito. A aparência, ou perispírito, tem olhos, mas o Espírito não tem. Bem que eu vos disse, falando do perispírito, que eu estava vivo.

OBSERVAÇÃO: Enquanto esperamos que essa nova descoberta seja feita, dar-lhe-emos o nome provisório de fotografia espontânea. Todo mundo lamentará que, por um sentimento difícil de compreender, hajam destruído o vidro sobre o qual se havia reproduzido a imagem do Sr. Badet. Tão curioso monumento teria facilitado as pesquisas e as observações para o adequado estudo da questão. Talvez tivessem visto nessa imagem uma arte do diabo. Em todo caso, se de alguma sorte o diabo está metido nisso, é seguramente na destruição do vidro, porque ele é inimigo do progresso.




Decorre das explicações acima que o fato, em si mesmo, não é sobrenatural, nem miraculoso. Quantos fenômenos em condições semelhantes, nos tempos da ignorância, devem ter chocado a imaginação tão inclinada para o maravilhoso! É, pois, um efeito puramente físico, que pressagia um novo passo na ciência fotográfica.

Como se sabe, o perispírito é o envoltório semimaterial do Espírito. Não é apenas depois da morte que dele está revestido o Espírito; durante a vida está unido ao corpo; é o laço entre o corpo e o Espírito. A morte é apenas a destruição do envoltório mais grosseiro; o Espírito conserva o segundo, que mantém a aparência do primeiro, como se essa lhe guardasse a imagem. Geralmente o perispírito é invisível, entretanto, em certas circunstâncias, condensa-se e, combinando-se com outros fluidos, torna-se perceptível à vista e por vezes até mesmo tangível. É o que se vê nas aparições.

Sejam quais forem a sutileza e a imponderabilidade do perispírito, não deixa de ser uma espécie de matéria, cujas propriedades físicas ainda nos são desconhecidas. Uma vez que é matéria, pode agir sobre a matéria. Essa ação é patente nos fenômenos magnéticos. Ela revelou-se nos corpos inertes pela impressão que a imagem do Sr. Badet deixou no vidro. Tal impressão se deu enquanto ele estava vivo; conservou-se depois de sua morte, mas era invisível. Ao que parece, foi necessária a ação fortuita de um agente desconhecido, provavelmente atmosférico, para torná-la aparente.

Que há nisso de admirável?

Não se sabe que podemos, à vontade, fazer aparecer e desaparecer a imagem daguerreotipada?

Citamos isso como comparação, sem pretendermos estabelecer similitude de processos. Assim, teria sido o perispírito que, exteriorizando-se do corpo do Sr. Badet, teria lentamente, e sob o império de circunstâncias desconhecidas, exercido uma verdadeira ação química sobre a substância vítrea, análoga à da luz. Incontestavelmente a luz e a eletricidade devem representar um grande papel nesse fenômeno. Resta saber quais são os agentes e as circunstâncias. É o que provavelmente saberemos mais tarde, e não será essa uma das menos curiosas descobertas dos tempos modernos.

Se é um fenômeno natural, dirão aqueles que tudo negam, por que é a primeira vez que se produz? Nós lhes perguntamos, por nossa vez, por que as imagens daguerreotipadas só se fixaram depois de Daguerre, de vez que nem foi ele quem inventou a luz, nem as placas de cobre, nem a prata, nem os cloretos? Há muito tempo se conhecem os efeitos da câmara escura. Uma circunstância casual revelou o caminho para a fixação, depois, auxiliados pela genialidade, passo a passo, chegamos às obras-primas que hoje vemos. Provavelmente dar-se-á o mesmo com o estranho fenômeno que acaba de manifestar-se. Quem sabe se ele já não se produziu e passou despercebido, por falta de um observador atento?

A reprodução de uma imagem sobre um vidro é um fato comum, mas a fixação dessa imagem em condições diferentes daquelas da fotografia; o estado latente dessa imagem; depois a sua reaparição, eis o que deve ser marcado nos fastos da Ciência.

Se cremos nos Espíritos, devemos esperar muitas outras maravilhas, algumas das quais nos são indicadas por eles. Honra, pois, aos sábios suficientemente modestos para não julgarem que a Natureza lhes haja virado a última página de seu livro.

Se esse fenômeno se produziu uma vez, é possível repetir-se. É, possivelmente, o que se dará quando lhe possuirmos a chave. Enquanto esperamos, eis o que contava um dos membros da Sociedade na sessão a que nos referimos:

“Eu morava em Montrouge. Era verão e o sol dardejava pela janela. Na mesa havia uma botelha cheia d’água, sobre uma esteira de palha. De repente a palha pegou fogo. Se ninguém ali estivesse, poderia ter-se dado um incêndio, sem que se lhe soubesse a causa. Experimentei centenas de vezes produzir o mesmo efeito e jamais o consegui.”

A causa física da combustão é bem conhecida: a botelha produziu o efeito de um vidro ardente. Mas por que não se pode repetir a experiência? É que, independentemente da botelha e da água, houve o concurso de circunstâncias que agiam de modo excepcional, concentrando os raios solares: talvez o estado da atmosfera, dos vapores, as qualidades da água, a eletricidade, etc., e tudo isso, provavelmente, em certas proporções adequadas. Daí a dificuldade de se repetir exatamente as mesmas condições e a inutilidade das tentativas para produzir um efeito semelhante. Eis, pois, um fenômeno inteiramente do domínio da Física, cujo princípio conhecemos, mas que não podemos repetir à vontade.

Ocorrerá ao mais endurecido céptico negar o fato? Certamente, não. Por que, então, os mesmos cépticos negam a realidade dos fenômenos espíritas ─ falamos das manifestações em geral ─ pelo fato de não poderem manipulá-las à vontade? Não admitir que fora do conhecido possa haver agentes novos, regidos por leis especiais; negar esses agentes pelo fato de não obedecerem a leis que conhecemos é, em verdade, dar prova de pouca lógica e mostrar um espírito estreito.

Voltemos à imagem do Sr. Badet. Como o nosso colega da botelha, far-se-ão certamente numerosos ensaios infrutíferos, antes de obter qualquer êxito, até que um acaso feliz ou o esforço de um gênio poderoso possa dar a chave do mistério. Então isto se tornará, provavelmente, uma nova arte, com a qual a indústria se enriquecerá. Podemos ouvir desde já numerosas pessoas dizerem: Mas há um meio muito simples de arranjar esta chave. Por que não a pedem aos Espíritos?

É então o caso de acentuar um erro em que caem muitos dos que julgam a ciência espírita sem conhecê-la. Inicialmente lembremos o princípio fundamental de que todos os Espíritos estão longe de saber tudo, como outrora se pensava.

A escala espírita nos dá a medida de sua capacidade e de sua moralidade, e a experiência diariamente confirma as nossas observações a respeito. Os Espíritos, pois, nem tudo sabem, e alguns há que, em todos os sentidos, são muito inferiores a certos homens. Eis o que não se deve perder de vista.

O Espírito do Sr. Badet, autor involuntário do fenômeno que nos ocupa, revela, por suas respostas, uma certa elevação, mas não uma grande superioridade. Ele próprio se reconhece inábil para dar uma explicação completa. Diz ele: “Isto é obra de outros Espíritos e do trabalho humano”. Estas palavras constituem todo um ensinamento. Com efeito, seria demasiado cômodo não precisar mais do que perguntar aos Espíritos, para termos as mais maravilhosas descobertas. Onde, pois, estaria o mérito dos inventores se mão oculta lhes viesse preparar a tarefa e poupar o trabalho de pesquisa? Sem dúvida não faltaria pessoa sem escrúpulos para tirar no próprio nome uma patente de invenção, sem mencionar o verdadeiro inventor. Acrescente-se que semelhantes perguntas são sempre feitas visando interesses e na esperança de fortuna fácil, coisas estas que constituem péssima recomendação junto aos bons Espíritos. Esses, aliás, não se sujeitam jamais a servir de instrumentos para o tráfico.

O homem deve ter a sua iniciativa, sem o que se reduz à condição de máquina. Ele deve aperfeiçoar-se pelo trabalho. Esta é uma das condições de sua existência terrena. Também é necessário que cada coisa venha a seu tempo e pelos meios que a Deus agrada empregar. Os Espíritos não podem torcer os caminhos da Providência. Querer forçar a ordem estabelecida é pôr-se à mercê de Espíritos zombadores, que lisonjeiam a ambição, a cupidez, a vaidade, para depois se rirem das decepções que causam. De natureza muito pouco escrupulosa, eles dizem tudo o que a gente quer; dão todas as receitas que lhes pedem e, se necessário, as justificarão com fórmulas científicas, mesmo que elas não tenham mais valor que as receitas dos charlatães.

Desiludam-se aqueles que acreditavam que os Espíritos lhes abririam minas de ouro. A missão deles é mais séria. “Trabalhai, esforçai-vos! Eis na realidade o que vos falta”, disse um célebre moralista, do qual mostraremos em breve uma notável conversa de além-túmulo.

A essa máxima sábia, acrescenta a Doutrina Espírita: É a esses que os Espíritos sérios vêm ajudar pelas ideias que lhes sugerem ou por conselhos diretos e não aos preguiçosos que querem gozar sem fazer nada, nem aos ambiciosos que querem ter mérito sem esforço. Ajuda-te e o céu te ajudará.

Continuamos a citar a brochura do Sr. Blanck, redator do Journal de Bergzabern[1].

“Os fatos que vamos relatar ocorreram de sexta-feira 4 a quarta-feira 9 de março de 1853. Nada de semelhante ocorreu depois dessa data. Então Filipina já não dormia no quarto nosso conhecido: sua cama havia sido transferida para a peça vizinha, onde se acha presentemente. As manifestações adquiriram um caráter tão estranho que é impossível admitir a sua explicação por intervenção humana. Aliás, são tão diferentes das que haviam sido observadas anteriormente, que todas as primeiras hipóteses caíram por terra.

Sabe-se que no quarto onde dormia a menina, frequentemente as cadeiras e outros móveis eram revirados e as janelas abertas com fragor, à força de golpes repetidos. Há cinco semanas está ela instalada na sala comum onde, desde o cair da noite até a manhã seguinte, há sempre uma luz. Pode-se, pois, ver perfeitamente o que ali se passa.

Eis o que foi observado sexta-feira, 4 de março.

Filipina ainda não se havia deitado. Achava-se com algumas pessoas que conversavam sobre o Espírito batedor. De repente a gaveta de uma mesa grande e pesada que se achava no meio da sala foi puxada e empurrada ruidosamente e com extraordinária rapidez. Surpreenderam-se os assistentes com essa nova manifestação. No mesmo instante a própria mesa se pôs em movimento em todos os sentidos e avançou para a lareira, perto da qual estava sentada Filipina. Por assim dizer perseguida pelo móvel, ela teve de deixar o seu lugar e correr para o meio da sala; mas a mesa voltou-se nessa direção e parou a quinze centímetros da parede. Colocaram-na em seu lugar habitual, de onde não mais saiu, mas as botas que estavam debaixo dela, e que todos viam, foram atiradas no meio da sala, com grande espanto dos presentes. Uma das gavetas começou a correr nas corrediças, abrindo-se e fechando-se por duas vezes, a princípio muito rapidamente e depois com progressiva lentidão. Quando se achava completamente aberta era sacudida com fragor. Um pacote de fumo, deixado sobre a mesa, mudava continuamente de lugar. As pancadas e arranhaduras eram ouvidas sobre a mesa. Filipina, que então gozava de ótima saúde, achava-se no meio do grupo e de modo algum se mostrava inquieta com essas coisas estranhas que se repetiam todas as noites, desde sexta-feira.

Mas no domingo elas foram ainda mais notáveis. A gaveta foi por várias vezes aberta e fechada com violência. Depois de haver estado em seu antigo dormitório, Filipina foi subitamente tomada pelo sono magnético e deixou-se cair numa poltrona, onde por várias vezes foram ouvidas as arranhaduras. Suas mãos apoiavam-se nos joelhos e a cadeira se movia, ora para a direita, ora para a esquerda ou para a frente e para trás. Quando Filipina foi transportada para o meio da sala, tornou-se fácil observar esse novo fenômeno. Então, a uma palavra de ordem, a cadeira girava, avançava, recuava com maior ou menor rapidez, ora num sentido, ora noutro. Durante essa dança original, os pés da menina arrastavam-se no solo, como que paralisados; ela se queixava de dores de cabeça, gemia e punha as mãos na fronte. Depois, despertando de súbito, pôs-se a olhar para todos os lados, sem compreender a situação, mas havia passado o mal-estar. Deitou-se. Então as pancadas e arranhaduras antes produzidas na mesa, foram ouvidas na cama, batidas com força e de maneira alegre.

Pouco antes, tendo uma campainha soado espontaneamente, ocorreu a ideia de prendê-la à cama. Imediatamente ela começou a balançar e a tocar. O que houve de mais notável nessa circunstância foi que, tendo sido levantada e deslocada a cama, a campainha ficou imóvel e em silêncio. Quase à meia noite cessou todo ruído e a assistência retirou-se.

Segunda-feira à noite, 15 de maio, prenderam ao leito uma grande campainha. Imediatamente ouviu-se um barulho desagradável e ensurdecedor. No mesmo dia, à tarde, as janelas e a porta do quarto de dormir foram abertas, mas silenciosamente.

Devemos dizer que a poltrona em que se sentava Filipina na sexta-feira e no sábado, levada pelo velho Sänger para o meio da sala, pareceu-lhe muito mais leve que de costume. Dir-se-ia que uma força invisível a levantava. Querendo um dos assistentes empurrá-la, não encontrou resistência: a poltrona parecia deslizar por si mesma sobre o soalho.

O Espírito batedor ficou silencioso durante três dias da Semana Santa: quinta, sexta e sábado. Só no domingo de Páscoa recomeçaram os seus golpes na sineta: golpes ritmados, compondo uma ária. A 1.º de abril, ao ser trocada a guarnição, as tropas que deixavam a cidade marchavam puxadas pela banda de música. Ao passarem em frente à casa de Sänger, o Espírito batedor executou na cama, à sua maneira, a mesma peça que era tocada na rua. Pouco antes haviam escutado no quarto como que os passos de alguém e como se tivessem jogado areia no soalho.

Preocupado com os fatos que acabamos de relatar, o governo do Palatinato propôs a Sänger internar sua filha numa casa de saúde em Frankenthal, o que foi aceito. Estamos informados de que em sua nova residência, a presença de Filipina deu lugar aos prodígios de Bergzabern e que os médicos de Frankenthal, bem como os de nossa cidade, não lhes podem determinar a causa. Além disso, estamos informados de que só os médicos têm acesso à menina.

Por que tal medida? Ignoramo-lo e nada podemos censurar, mas se o que a motivou não é resultado de alguma circunstância particular, cremos que se nem todos poderiam ter acesso junto à interessante menina, pelo menos deveriam tê-lo as pessoas recomendáveis.”

OBSERVAÇÃO: Não tivemos notícia dos diversos fatos aqui expostos senão pelo relato publicado pelo Sr. Blanck. Uma circunstância, entretanto, acaba de nos pôr em contato com uma das pessoas que mais aparecem neste caso e que, a respeito, teve a gentileza de fornecer-nos documentos circunstanciados do mais alto interesse. Tivemos ainda, por evocação, explicações muito curiosas e instrutivas sobre esse Espírito batedor, dadas por ele próprio. Como tais documentos nos vieram um pouco tarde, adiaremos sua publicação para o próximo número.



[1] Devemos a tradução desta interessante brochura à gentileza de um de nossos amigos, o Sr. Alfred Pireaux, funcionário da administração dos Correios.


O TAMBOR DE BEREZINA


Tendo-se reunido em nossa casa algumas pessoas com o propósito de constatar certas manifestações, em diversas sessões produziram-se os fatos que se seguem, e deram lugar à conversa que vamos relatar, pois apresenta um grande interesse do ponto de vista do estudo.

Manifestou-se o Espírito por golpes, não batidos pelo pé da mesa, mas na própria contextura da madeira. A troca de ideias que então ocorreu entre os assistentes e o ser invisível não dá margem a dúvidas quanto à intervenção de uma inteligência oculta. Além das respostas a várias perguntas, ora pelo sim, ora pelo não, ou por meio da tiptologia alfabética, os golpes espontaneamente tocaram uma marcha qualquer; o ritmo de uma ária; imitavam a fuzilaria e o canhoneio de uma batalha; o barulho do tanoeiro ou do sapateiro; faziam eco com admirável precisão etc. Depois ocorreu o movimento de uma mesa e sua translação sem qualquer contato das mãos, pois os assistentes se mantinham afastados. Uma saladeira posta sobre a mesa, em vez de girar, deslizou em linha reta, também sem contato das mãos. Os golpes eram igualmente ouvidos em diversos móveis do quarto, algumas vezes simultaneamente, outras vezes como se fossem respostas.

O Espírito parecia ter uma predileção especial pelo rufo de tambor, pois o tocava a cada momento, independentemente de pedido. Muitas vezes, em lugar de responder a certas perguntas, tocava a generala ou o reunir. Interrogado sobre algumas particularidades de sua vida, disse chamar-se Célima, ter nascido em Paris, ter morrido aos quarenta e cinco anos e ter sido tambor.

Entre os assistentes, além do médium especial de influência física que produzia as manifestações, havia um excelente psicógrafo que pôde servir de intérprete do Espírito. Assim, obtivemos respostas mais explícitas. Tendo confirmado pela escrita o que havia dito pela tiptologia, quanto ao nome, lugar do nascimento e data de sua morte, foram-lhe feitas as perguntas que seguem e cujas respostas apresentam vários traços característicos e corroboram certas partes essenciais da teoria.

1. ─ Escreve-nos qualquer coisa, o que quiseres.

─ Ran plan plan, ran plan plan.

2. ─ Por que escreves isto?

─ Porque fui tambor.

3. ─ Tinhas alguma instrução?

─ Sim.

4. ─ Onde fizeste os teus estudos?

─ Nos “Ignorantins”

5. ─ Pareces alegre.

─ Sou bastante.

6. ─ Disseste, certa feita, que em vida gostavas demais de beber. É verdade?

─ Eu gostava de tudo o que era bom.

7. ─ Eras militar?

─ Claro que sim, pois eu era tambor.

8. ─ Sob que governo serviste?

─ Sob Napoleão, o Grande.

9. ─ Podes citar uma batalha na qual participaste?

─ A de Berezina.

10. ─ Foi nela que morreste?

─ Não.

11. ─ Estiveste em Moscou?

─ Não.

12. ─ Onde morreste?

─ Na neve.

13. ─ Em que corpo servias?

─ Nos fuzileiros da guarda.

14. ─ Gostavas de Napoleão, o Grande?

─ Como nós todos o amávamos, sem saber por quê!

15. ─ Sabes o que aconteceu depois da morte de Napoleão?

─ Depois da minha morte não me ocupei senão de mim mesmo.

16. ─ Reencarnaste?

─ Não, pois venho conversar convosco.

17. ─ Por que te manifestas por pancadas sem teres sido chamado?

─ É preciso barulho para aqueles cujo coração não acredita. Se ainda não foi suficiente, eu vos darei mais.

18. ─ Vieste bater por tua própria vontade ou foi outro Espírito que te obrigou?

─ Venho por mim mesmo e de boa vontade. Há um outro a quem chamais Verdade e que também me pode obrigar, mas há muito tempo eu queria vir.

19. ─ Com que propósito querias vir?

─ Para comunicar-me convosco. Era isso o que eu queria. Mas havia algo que me impedia. Fui forçado a isso por um Espírito familiar da casa, que me convenceu a tornar-me útil às pessoas que me fariam perguntas.

─ Então esse Espírito tem muito poder, uma vez que assim domina os outros.

─ Mais do que pensais, e só o emprega para o bem.

OBSERVAÇÃO: O Espírito familiar da casa dá-se a conhecer pelo nome alegórico de Verdade, circunstância que era ignorada pelo médium.

20. ─ O que era que te impedia?

─ Não sei. Alguma coisa que não compreendo.

21. ─ Deploras a vida?

─ Não. Nada deploro.

22. ─ Qual a que preferes: tua existência atual ou a vida terrena?

─ Prefiro a existência do Espírito à do corpo.

23. ─ Por quê?

─ Porque estamos bem melhor do que na Terra. A Terra é um purgatório, e todo o tempo que aí vivi sempre desejei a morte.

24. ─ Sofres em tua nova condição?

─ Não, mas ainda não sou feliz.

25. ─ Ficarias satisfeito se tivesses uma nova existência corpórea?

─ Sim, pois sei que devo elevar-me.

26. ─ Quem te disse isso?

─ Eu bem o sei.

27. ─ Reencarnarás brevemente?

─ Não sei.

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor?

─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos?

─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês?

─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás?

─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida?

─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

33. ─ Tu nos vês claramente como quando vivias?

─ Sim, perfeitamente.

34. ─ É pelos olhos que nos vês?

─ Não. Temos uma forma, mas não temos os sentidos. Nossa forma não é senão aparente.

OBSERVAÇÃO: Seguramente os Espíritos têm sensações, pois que percebem. Do contrário seriam inertes. Mas as suas sensações não são localizadas, como quando têm um corpo. São inerentes a todo o seu ser.

35. ─ Dize-nos positivamente em que lugar estás aqui.

─ Perto da mesa, entre vós e o médium.

36. ─ Quando bates, estás sobre a mesa, debaixo dela ou na estrutura da madeira?

─ Fico ao lado. Eu não entro na madeira. Basta que eu toque na mesa.

37. ─ Como produzes os ruídos que fazes ouvir?

─ Creio que por uma espécie de concentração de nossa força.

38. ─ Poderias explicar-nos de que maneira se produzem os diversos ruídos que imitas, como, por exemplo, as arranhaduras?

─ Eu não poderia precisar bem a natureza dos ruídos. É difícil de explicar. Sei que arranho, mas não posso explicar como produzo esse ruído a que chamais arranhadura.

39. ─ Poderias produzir os mesmos ruídos com qualquer outro médium?

─ Não. Há especialidades em todos os médiuns. Nem todos podem agir do mesmo modo.

40. ─ Vês entre nós, além do jovem S... (o médium de influência física por cujo intermédio se manifesta o Espírito) alguém que te possa ajudar a produzir os mesmos efeitos?

─ No momento não vejo ninguém. Com ele estou bem aparelhado a fazer.

41. ─ Por que com ele e não com outrem?

─ Porque o conheço bastante e também por ser ele mais apto que qualquer outro para esse gênero de manifestações.

42. ─ Tu o conhecias há muito tempo; desde antes da presente existência?

─ Não. Eu o conheço há pouco tempo. Fui de certo modo atraído para ele, para que fosse meu instrumento.

43. ─ Quando a mesa se ergue no ar sem ponto de apoio, quem é que a sustenta?

─ Nossa vontade, que a obrigou a obedecer-nos e, ainda, o fluido que lhe transmitimos.

OBSERVAÇÃO: Esta resposta vem em abono à teoria que apresentamos nos números 5 e 6 desta Revista, sobre as causas das manifestações físicas.

44. ─ Poderias fazê-lo?

─ Creio que sim. Tentarei quando o médium estiver presente. (No momento ele se achava ausente).

45. ─ De quem depende isso?

─ De mim, pois me sirvo do médium como de um instrumento.

46. ─ Mas a qualidade do instrumento não conta?

─ Sim. Ela me ajuda muito, pois, como disse, hoje não poderia fazê-lo com outros.

OBSERVAÇÃO: No curso da sessão tentamos levantar a mesa, mas sem resultado, talvez porque não tivesse havido suficiente perseverança. Houve esforços evidentes e movimentos de translação, sem contato nem imposição das mãos. Entre as experiências feitas está a da abertura da mesa, que era elástica. Mas como oferecia muita resistência, por defeito de construção, foi posta de lado, enquanto o Espírito conseguia abrir e fechar uma outra.

47. ─ Por que, outro dia, os movimentos da mesa cessavam cada vez que um de nós tomava de uma luz para examiná-la por baixo?

─ Porque eu queria punir a vossa curiosidade.

48. ─ De que te ocupas em tua existência de Espírito, de vez que certamente não passas o tempo a bater?

─ Muitas vezes tenho missões a cumprir. Devemos obedecer às ordens superiores e principalmente quando temos que fazer o bem por nossa influência sobre os humanos.

49. ─ Sem dúvida tua vida terrena não foi isenta de faltas. Tu as reconheces agora?

─ Sim. Justamente as expio, ficando estacionário entre os Espíritos inferiores. Não me poderei purificar bastante enquanto não tomar outro corpo.

50. ─ Quando davas pancadas sobre outro móvel ao mesmo tempo que sobre a mesa, eras tu ou outro Espírito?

─ Era eu.

51. ─ Então estavas sozinho?

─ Não, mas o trabalho de bater era só meu.

52. ─ Os outros Espíritos que aí se encontravam te ajudavam nalguma coisa?

─ Não para bater, mas para falar.

53. ─ Então não eram Espíritos batedores?

─ Não, a Verdade só a mim havia permitido bater.

54. ─ Os Espíritos batedores não se reúnem às vezes em grande número com o objetivo de terem mais força para produzirem certos fenômenos?

─ Sim, mas para o que eu queria fazer, eu me bastava.

55. ─ Em tua existência de Espírito estás sempre na Terra?

─ Mais frequentemente no espaço.

56. ─ Vais algumas vezes a outros mundos, isto é, a outros globos?

─ Não aos mais perfeitos. Só aos mundos inferiores.

57. ─ Algumas vezes te divertes a ver e a ouvir o que fazem os homens?

─ Não. Contudo, algumas vezes tenho piedade deles.

58. ─ Quais os que procuras de preferência?

─ Os que querem crer de boa-fé.

59. ─ Poderias ler os nossos pensamentos?

─ Não, não leio nas almas, pois para tanto não sou bastante perfeito.

60. ─ Entretanto, deves conhecer nossos pensamentos, já que vens ao nosso meio. Por outras palavras, como podes saber se cremos de boa-fé?

─ Não leio, mas compreendo.

OBSERVAÇÃO: A pergunta 58 visava saber para quem, espontaneamente, ia a sua preferência na vida de Espírito, sem ser evocado. Como Espírito de uma ordem pouco elevada, ele pode pela evocação ser constrangido a vir a um meio que lhe desagrada. Por outro lado, sem ler propriamente os nossos pensamentos, ele por certo poderia ver se as pessoas se reuniam com um objetivo sério e, pela natureza das perguntas e da conversa que ouvisse, julgar se a assembleia era composta de pessoas sinceramente desejosas de esclarecimento.

61. ─ No mundo dos Espíritos encontraste alguns dos teus companheiros de armas?

─ Sim, mas suas posições eram tão diferentes que não os reconheci a todos.

62. ─ Em que consistia essa diferença?

─ Na situação feliz ou infeliz de cada um.

─ Que disseste nesses encontros?

─ Eu lhes dizia: Nós vamos subir para Deus, que o permite.

63. ─ Como entendias essa subida para Deus?

─ Cada degrau transposto é um passo a mais em sua direção.

64. ─ Disseste que morreste na neve. Queres dizer que morreste de frio?

─ De frio e de fome.

65. ─ Tiveste consciência imediata de tua nova existência?

─ Não, mas já não sentia frio.

66. ─ Voltaste alguma vez ao local onde ficou o teu corpo?

─ Não. Ele me havia feito sofrer demais.

67. ─ Nós te agradecemos as explicações que tiveste a bondade de nos dar. Elas nos forneceram úteis pontos de observação para o nosso aperfeiçoamento na Ciência espírita.

─ Estou às vossas ordens.


OBSERVAÇÃO: Como se vê, este Espírito é pouco adiantado na hierarquia espírita. Ele próprio reconhece sua inferioridade. Seus conhecimentos são limitados, mas tem bom senso, sentimentos louváveis e benevolência. Como Espírito, sua missão é muito insignificante, pois desempenha o papel de Espírito batedor, para chamar os incrédulos à fé. Mas, como no teatro, a humilde vestimenta de comparsa não pode cobrir um coração bondoso? Suas respostas têm a simplicidade da ignorância, mas, embora não tenha a elevação da linguagem filosófica dos Espíritos superiores, nem por isso são menos instrutivas, como estudo dos costumes espíritas, se assim nos podemos exprimir. É somente estudando todas as classes desse mundo que nos espera que poderemos chegar a conhecê-lo e nele marcar, com certa antecipação, o lugar que cada um de nós poderá ocupar. Vendo a situação que, por seus vícios ou por suas virtudes, criaram os homens daqui de baixo, iguais a nós, sentimo-nos encorajados a nos elevarmos o máximo possível desde aqui. É o exemplo ao lado do preceito. Nunca seria demais repetir que a fim de bem conhecer uma coisa e dela fazer uma ideia isenta de ilusões, é preciso vê-la sob todos os seus aspectos, assim como o botânico não pode conhecer o reino vegetal senão observando desde o mais humilde criptógamo oculto sob o musgo, até o carvalho que se alça nos ares.




ESPÍRITOS IMPOSTORES

O FALSO PADRE AMBRÓSIO

Um dos escolhos apresentados pelas comunicações espíritas é o dos Espíritos impostores, que podem induzir em erro quanto a sua identidade e que, ao abrigo de um nome respeitável, tentam passar os mais grosseiros absurdos. Em muitas ocasiões esse perigo nos tem sido explicado; entretanto, ele nada é para quem perscruta tanto a forma quanto o conteúdo da linguagem dos seres invisíveis com os quais entra em comunicação.

Não é possível repetir aqui o que temos dito a tal respeito. Leia-se atentamente o que dizemos nesta Revista, em o Livro dos Espíritos e em nossa Instrução prática[1] e ver-se-á que nada é mais fácil do que se premunir contra fraudes semelhantes, por menor que seja nossa boa vontade. Reproduzimos apenas a comparação que segue, por nós citada alhures:

“Suponhamos que no quarto vizinho a este que ocupais estejam vários indivíduos desconhecidos e que não os possais ver, embora os escuteis perfeitamente. Não seria fácil, por sua conversa, reconhecer se se trata de ignorantes ou de sábios, de gente decente ou de malfeitores, de homens sérios ou de estouvados, de pessoas finas ou de gente rústica?”

Façamos outra comparação, sem sairmos de nossa Humanidade material. Suponhamos que se vos apresente alguém com o nome de um distinto literato. Ao ouvir o nome, recebê-lo-eis com toda a consideração devida ao seu suposto mérito, mas se ele se exprimir como um mariola, reconhecê-lo-eis imediatamente e o expulsareis como um impostor.

Dá-se o mesmo com os Espíritos. Eles são reconhecidos pela linguagem. A dos Espíritos superiores é sempre digna e em harmonia com a sublimidade dos pensamentos. Jamais uma trivialidade lhes macula a pureza. A grosseria das expressões baixas é peculiaridade dos Espíritos inferiores. Todas as qualidades e imperfeições dos Espíritos se revelam na sua linguagem. Pode-se, assim, e com razão, aplicar-lhes a frase de célebre escritor: O estilo é o homem.

Estas reflexões nos são sugeridas por um artigo do Spiritualiste de la Nouvelle-Orléans, do mês de dezembro de 1857. É uma conversa estabelecida através de um médium, entre dois Espíritos, um dizendo-se o Padre Ambrósio, o outro Clemente XIV. O Padre Ambrósio foi um respeitável sacerdote, falecido em Louisiana, no século passado. Era um homem de bem, de grande inteligência e deixou uma memória venerada.

Nesse diálogo, onde o ridículo compete com o ignóbil, é impossível nos enganarmos quanto à qualidade dos interlocutores e é forçoso convir que aqueles Espíritos tomaram poucas precauções com o seu disfarce, pois qual seria a criatura de bom senso que, ao menos por um minuto, admitiria que o Padre Ambrósio e Clemente XIV tivessem podido descer àquelas trivialidades que mais parecem uma exibição de saltimbancos? Não se exprimiriam de modo diferente comediantes de última classe que parodiassem essas duas personagens.

Estamos convencidos de que o círculo de Nova Orléans, onde se passou o fato, o compreendeu como nós. Duvidar disso seria uma injúria. Apenas lamentamos que ao publicá-lo não o tivessem acompanhado de observação corretiva, no sentido de impedir que as criaturas superficiais o tomassem como modelo de estilo sério de Além-Túmulo. Apressemo-nos, entretanto, em declarar que esse círculo não recebe apenas comunicações de tal ordem; há outras de caráter muito diverso, nas quais encontramos toda a sublimidade do pensamento e da expressão dos Espíritos superiores.

Pensamos que a evocação do verdadeiro e do falso Padre Ambrósio poderia oferecer material útil para observações relativas aos Espíritos impostores. Foi o que fizemos, como se pode ver pela seguinte entrevista:

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso permitir que o Espírito do verdadeiro Padre Ambrósio, falecido em Louisiana no século passado, e que deixou uma memória venerável, venha comunicar-se conosco.

─ Aqui estou.

2. ─ Teríeis a bondade de dizer se fostes realmente vós e Clemente XIV que tivestes a conversa relatada no Spiritualiste de la Nouvelle-Orléans, cuja leitura fizemos na sessão passada?

─ Lamento os homens que foram vítimas dos Espíritos, tanto quanto lamento a esses.

3. ─ Qual foi o Espírito que tomou o vosso nome?

─ Um pelotiqueiro.

4. ─ E o interlocutor era realmente Clemente XIV?

─ Era um Espírito semelhante ao que me tomou o nome.

5. ─ Como pudestes permitir coisas semelhantes em vosso nome? Por que não viestes desmascarar os impostores?

─ Porque nem sempre posso impedir que homens e Espíritos se divirtam.

6. ─ Compreendemo-lo quanto aos Espíritos. Mas, quanto às pessoas que recolheram as palavras, são gente séria; não buscavam divertimentos.

─ Uma razão a mais. Eles deviam pensar logo que tais palavras não poderiam deixar de ser a linguagem de Espíritos zombeteiros.

7. ─ Por que os Espíritos não ensinam em Nova Orleans, princípios perfeitamente idênticos aos que aqui ensinam?

─ Em breve lhes servirá a doutrina que vos é ditada. Haverá apenas uma.

8. ─ Desde que essa doutrina deverá ser ali ensinada mais tarde, parece-nos que se o fosse imediatamente aceleraria o progresso e evitaria que alguns tivessem dúvidas prejudiciais.

─ Os desígnios de Deus são sempre impenetráveis. Não há outras coisas que, à vista dos meios que ele emprega para atingir seus objetivos, parecem-vos incompreensíveis? É preciso que o homem se habitue a distinguir o verdadeiro do falso. Nem todos poderiam receber a luz de um jacto sem serem ofuscados.

9. ─ Teríeis a bondade de nos dar vossa opinião pessoal relativamente à reencarnação?

─ Os Espíritos são criados ignorantes e imperfeitos. Uma única encarnação não bastaria para que tudo aprendessem. É necessário que reencarnem, a fim de gozarem a felicidade que Deus lhes reserva.

10. ─ Dá-se a reencarnação na Terra ou somente em outros globos?

─ A reencarnação se dá conforme o progresso do Espírito, em mundos mais perfeitos ou menos perfeitos.

11. ─ Isto não esclarece se pode ocorrer na Terra.

─ Sim, pode ocorrer na Terra, e se o Espírito a pede como missão, ser-lhe-á mais meritório do que se a pedisse para avançar mais rapi­damente em mundos mais perfeitos.

12. ─ Rogamos a Deus Todo-Poderoso permita que o Espírito que tomou o nome do Padre Ambrósio venha comunicar-se conosco.

─ Aqui estou; mas não me queirais confundir.

13. ─ És realmente o Padre Ambrósio? Em nome de Deus te conjuro a dizer a verdade!

─ Não.

14. ─ Que pensas do que disseste em seu nome?

─ Penso como pensavam os que me escutavam.

15. ─ Por que te serviste de um nome respeitável para dizer semelhantes tolices?

─ Aos nossos olhos os nomes nada valem. As obras são tudo. Como pelo que eu dizia, podiam ver o que eu era realmente, não liguei importância à substituição do nome.

16. ─ Por que não sustentas a impostura em nossa presença?

─ Porque minha linguagem é uma pedra de toque, com a qual não vos podeis enganar.

OBSERVAÇÃO: Por diversas vezes nos foi dito que a impostura de certos Espíritos é uma prova para a nossa capacidade de julgar. É uma espécie de tentação permitida por Deus, a fim de que, como disse o Padre Ambrósio, o homem se habitue a distinguir o verdadeiro do falso.

17. ─ Que pensas de teu companheiro Clemente XIV?

─ Não merece mais do que eu. Ambos necessitamos de indulgência.

18. ─ Em nome de Deus Todo-Poderoso, eu lhe peço que ele venha.

─ Aqui estou, desde que chegou o falso Padre Ambrósio.

19. ─ Por que abusaste da credulidade de pessoas respeitáveis, para dar uma falsa ideia da Doutrina Espírita?

─ Por que nos inclinamos ao erro? Porque não somos perfeitos.

20. ─ Não pensastes ambos que um dia vosso embuste seria descoberto e que os verdadeiros Padre Ambrósio e Clemente XIV não se exprimiriam como vós?

─ Os embustes já eram conhecidos e castigados por aquele que nos criou.

21. ─ Pertenceis à mesma classe de Espíritos que chamamos batedores?

─ Não, pois ainda é necessário raciocínio para fazer o que fizemos em Nova Orleans.

22. (Ao verdadeiro Padre Ambrósio). ─ Estes impostores vos estão vendo aqui?

─ Sim. E sofrem com o meu olhar.

23. ─ São eles errantes ou reencarnados?

─ Errantes. Não seriam suficientemente perfeitos para o desprendimento, caso estivessem encarnados.

24. ─ E vós, Padre Ambrósio, em que estado vos encontrais?

─ Encarnado num mundo feliz e desconhecido para vós.

25. ─ Nós vos agradecemos os esclarecimentos que tivestes a bondade de nos dar. Teríeis a gentileza de voltar outras vezes, trazendo-nos boas palavras e deixando-nos um ditado que mostrasse a diferença entre o vosso estilo e o daquele que usurpou o vosso nome?

─ Estou com aqueles que buscam o bem na verdade.



[1] Obra esgotada, substituída pelo Livro dos médiuns. Entretanto, con­forme os direitos concedidos a Caírbar Schutel, foi feita uma tradução brasileira para a Livraria Editora O Clarim, de Matão. (N. do T).






UMA LIÇÃO DE CALIGRAFIA POR UM ESPÍRITO

De modo geral, não são os Espíritos professores de caligrafia, pois de ordinário a escrita pelo médium não prima pela elegância. A respeito disso, um dos nossos médiuns, o Sr. D..., apresentou um fenômeno excepcional, o de escrever muito melhor sob a inspiração dos Espíritos do que por sua própria iniciativa. Sua caligrafia normal é muito má (do que não se envaidece dizendo ser isto uma característica dos grandes homens). Mas adquire um caráter especial, muito distinto, conforme o Espírito comunicante, e é sempre a mesma com o mesmo Espírito, porém, sempre mais nítida, mais legível e mais correta. Com alguns, tem um estilo inglês, traçado com certa ousadia. Um dos membros da Sociedade, o Dr. V..., teve a ideia de evocar distinto calígrafo, com o objetivo de observação, do ponto de vista da escrita. Ele conhecia um, chamado Bertrand, falecido há cerca de dois anos, com o qual tivemos, numa outra sessão, a seguinte conversa:

1. À fórmula de evocação, respondeu:

─ Eis-me aqui.

2. ─ Onde se achava quando o evocamos?

─ Já estava junto a vós.

3. ─ Sabe o principal objetivo que nos levou a pedir sua vinda?

─ Não, mas desejo sabê-lo.

OBSERVAÇÃO: O Espírito do Sr. Bertrand ainda se acha sob a influência da matéria, como seria de supor-se, dada a sua vida terrena. Sabe-se que tais Espíritos são menos aptos a ler o pensamento do que os já mais desmaterializados.

4. ─ Desejaríamos que o senhor reproduzisse, através do médium, uma escrita caligráfica com um daqueles caracteres que tinha em vida. É possível?

─ Eu posso.

OBSERVAÇÃO: A partir dessa palavra, o médium, que não se conduz conforme as regras ensinadas pelos professores de caligrafia, tomou, sem se aperceber, uma postura correta, tanto do corpo quanto da mão. Todo o resto da conversa foi escrito como o fragmento cujo fac-símile reproduzimos. Como termo de comparação, reproduzimos também a escrita normal do médium[1].

5. ─ Lembra-se das circunstâncias de sua vida terrena?

─ De algumas.

6. ─ Poderia dizer-nos em que ano faleceu?

─ Faleci em 1856.

7. ─ Com que idade?

─ Com 56 anos.

8. ─ Em que cidade morava?

─ Saint-Germain.

9. ─ Qual foi o seu gênero de vida?

─ Procurava satisfazer às necessidades do corpo.

10. ─ Cuidava um pouco das coisas de Além-Túmulo?

─ Quase nada.

11. ─ Lamenta não pertencer mais a este mundo?

─ Lamento não haver bem empregado a minha existência.

12. ─ É mais feliz do que na Terra?

─ Não. Eu sofro pelo bem que deixei de fazer.

13. ─ Que pensa do futuro que lhe está reservado?

─ Penso que me é necessária toda a misericórdia de Deus.

14. ─ Quais as suas relações no mundo em que se encontra?

─ Relações lamentáveis e infelizes.

15. ─ Quando vem à Terra, há lugares que frequenta, de preferência a outros?

─ Procuro as almas que se condoem de minhas penas ou que oram por mim.

16. ─ Vê as coisas terrenas com a mesma clareza de outrora?

─ Não me preocupo em vê-las. Se o fizesse seria mais uma causa de desgostos.

17. ─ Diz-se que em vida foi muito pouco tolerante. É verdade?

─ Eu era muito violento.

18. ─ Que pensa do objetivo de nossas reuniões?

─ Gostaria muito de tê-las conhecido em vida. Elas me teriam tornado melhor.

19. ─ Vê aí outros Espíritos?

─ Sim, mas me sinto muito confuso em sua presença.

20 ─ Rogamos a Deus que o tenha em sua santa misericórdia. Os sentimentos que acaba de externar devem permitir que ache graça diante dele. Não duvidamos que o ajudem em seu progresso.

─ Agradeço-vos. Deus vos protege. Bendito seja ele por isso. Espero que chegue a minha vez.

OBSERVAÇÃO: Os ensinamentos fornecidos pelo Espírito do Sr. Bertrand são absolutamente exatos e concordes com o gênero de vida e o caráter que lhe conheciam. Apenas ao confessar sua inferioridade e seus erros, a linguagem é mais séria e mais elevada do que se poderia esperar. Mais uma vez temos a prova da penosa situação dos que na Terra são muito apegados à matéria. É assim que os próprios Espíritos inferiores por vezes nos dão, pelo exemplo, valiosas lições de moral.



[1] A partir da segunda edição da Revista, Allan Kardec inseriu a seguinte nota: “Esse fac-símile, que foi anexado à primeira edição da Revista, não existe mais.” Noutras passagens, Kardec se refere à reprodução de desenhos. Esses não são mais encontrados na Revista. Teriam sido eliminados nas suas novas edições? (N. do T.).



Bruxelas, 15 de junho de 1858.

Meu caro senhor Kardec.

Recebo e leio com avidez a vossa Revista Espírita e recomendo aos meus amigos, não a simples leitura, mas o estudo aprofundado do vosso Livro dos Espíritos. Muito lamento que minhas preocupações físicas não me deixem tempo para os estudos metafísicos, embora os tenha levado bastante longe para sentir quanto estais perto da verdade absoluta, sobretudo quando vejo a perfeita coincidência que existe entre as respostas que nos dão ─ a mim e a vós. Os próprios Espíritos que vos atribuem pessoalmente a redação dos vossos escritos ficam estupefatos com a profundidade e com a lógica que aí encontram. Vós vos elevastes de um salto ao nível de Sócrates e de Platão pela Moral e pela Filosofia estética. Quanto a mim, que conheço o fenômeno e a vossa lealdade, não duvido da exatidão das explicações que vos são dadas e abjuro todas as ideias que a respeito publiquei, quando, com o Sr. Babinet, eu pensava que só houvesse nisso fenômenos físicos ou palhaçadas indignas da atenção dos sábios.

Não desanimeis, como eu não desanimo, ante a indiferença de vossos contemporâneos. O que está escrito, está escrito; o que está semeado germinará. A ideia de que a vida é uma afinação das almas, uma prova e uma expiação, é grande, consoladora, progressiva e natural. Os que a ela aderem são felizes em todas as posições. Em vez de se lamentarem dos sofrimentos físicos e morais que os abatem, devem regozijar-se ou, pelo menos, suportá-los com resignação cristã.

Para ser feliz, foge ao prazer: Eis do filósofo a divisa;

O esforço para o obter

Custa bem mais do que a camisa;

Mas cedo ou tarde o vamos ter,

Porque em surpresa se improvisa; É um terno que ao aparecer vale dez mil do lance e a pisa.

Espero passar em breve por Paris, onde tenho muitos amigos a ver e muitas coisas que fazer. Entretanto, tudo deixarei para vos procurar e levar um aperto de mãos.

JOBARD

Diretor do Museu Real da Indústria

A adesão tão clara e tão franca de um homem do valor do Sr. Jobard é, incontestavelmente, uma preciosa conquista que todos os partidários da Doutrina Espírita aplaudirão. Entretanto, em nossa opinião, pouco vale aderir, mas reconhecer publicamente que se cometeu um equívoco; abjurar ideias anteriores já publicadas, e tudo isso sem que haja pressão ou interesse, unicamente porque a verdade se tornou clara, eis o que se pode chamar a verdadeira coragem da opinião, principalmente quando se tem um nome conhecido. Agir assim é peculiar aos grandes caracteres que só eles sabem colocar-se acima dos preconceitos. Todos os homens podem enganar-se, mas há grandeza em reconhecer os próprios erros, ao passo que há mesquinhez em perseverar numa opinião que se sabe falsa, unicamente para ostentar, aos olhos do vulgo, a supremacia da infalibilidade. Tal prestígio não poderia iludir a posteridade, que arranca impiedosamente todos os ouropéis do orgulho. Só ela funda as reputações; só ela tem o direito de inscrever no seu templo: “Este era realmente grande pelo espírito e pelo coração.” Quantas vezes, também, não escreveu ela: “Este grande homem foi muito mesquinho.”

Os elogios contidos na carta do Sr. Jobard nos teriam impossibilitado de publicá-la, se tivessem sido dirigidos pessoalmente a nós. Como, entretanto, ele reconhece a obra dos Espíritos, dos quais fomos apenas intérprete muito humilde, todo o mérito a eles pertence, e nossa modéstia não sofreria com uma comparação que provaria apenas uma coisa: que esse livro não pode ter sido ditado senão por Espíritos de uma ordem superior.

Respondendo ao Sr. Jobard, nós lhe havíamos pedido autorização para publicar sua carta; ao mesmo tempo tínhamos recebido da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas o encargo de lhe oferecer o título de membro honorário e correspondente. Eis a resposta que teve a bondade de nos enviar, e cuja reprodução temos o prazer de reproduzir.


Bruxelas, 22 de junho de 1858.

Meu caro colega,

Com perífrases espirituais, perguntais se ouso confessar publicamente a minha crença nos Espíritos e no perispírito; se vos autorizo a publicar minhas cartas e se aceito o título de correspondente da Academia de Espiritismo que fundastes, o que seria, como se costuma dizer, ter a coragem de sua opinião.

Confesso que me sinto um pouco humilhado por vos ver empregando as mesmas fórmulas e as mesmas frases usadas para os tolos, pois deveis saber que toda a minha vida foi consagrada à sustentação da verdade e ao testemunho em seu favor, sempre que a encontrava, tanto em Física quanto em Metafísica. Bem sei que o papel do adepto das ideias novas nem sempre é isento de inconvenientes, mesmo no século das luzes e que se pode ser ridicularizado por dizer que é dia às doze horas, pois o menor risco é o de sermos considerados loucos. Como entretanto a Terra gira e o meio-dia chegará para todos, é muito necessário que os incrédulos cheguem à evidência. É também natural ouvirmos a existência do Espírito ser negada por aqueles que não creem, tanto quanto a existência da luz o é pelos que ainda se acham privados de seus raios.

É possível comunicarmo-nos com eles? Eis toda a questão. Vede e observai.

O tolo nega sempre o que não compreende; Para ele a maravilha é simples aparato; Não sabe nada, nada quer e nada aprende: Tal é do incrédulo o fiel retrato.

Eu disse para mim mesmo: Evidentemente o homem é duplo, pois a morte o desdobra. Quando uma metade fica aqui, a outra vai para algum lugar e conserva a sua individualidade. Está, pois, o Espiritismo, perfeitamente de acordo com as Escrituras, com o dogma e com a religião que tanto crê nos Espíritos maus que exorciza como nos bons que evoca. O Vade retro e o Veni Creator dão uma prova disso. A evocação é, portanto, uma coisa séria e não uma obra diabólica ou uma charlatanice como pensam alguns.

Eu sou curioso. Não nego coisa alguma, mas quero ver. Eu não disse: tragamme o fenômeno. Corri à sua procura, em vez de esperá-lo em minha poltrona, segundo um hábito ilógico.

A propósito do magnetismo, há mais de quarenta anos, fiz este raciocínio simples: é impossível que homens tão apreciáveis escrevam milhares de volumes para me fazerem crer na existência de uma coisa inexistente. Então fiz experiências por muito tempo, mas em vão, enquanto não tinha fé em obter aquilo que buscava. Fui, entretanto, bem recompensado por minha perseverança, pois consegui produzir todos os fenômenos de que ouvia falar. Depois fiz uma pausa de quinze anos. As mesas tinham surgido e eu quis ter uma ideia clara. Hoje surge o Espiritismo e eu ajo da mesma maneira.

Quando aparecer algo de novo, correrei com o mesmo ardor que emprego em acompanhar todas as descobertas modernas. É a curiosidade que me arrasta, e lamento que os selvagens não sejam curiosos, pois assim continuam selvagens. A curiosidade é a mãe da instrução.

Sei perfeitamente que essa febre de aprender, muito me prejudicou e que se tivesse ficado nessa respeitável mediocridade que conduz às honras e à fortuna, eu teria tirado a minha fatia, mas há muito tempo eu disse, de mim para mim, que me achava apenas de passagem neste albergue ordinário, onde não vale a pena fazer as malas. O que me fez suportar sem dor as adversidades, as injustiças e os roubos de que fui vítima privilegiada, foi a ideia de que aqui não existe uma felicidade ou uma desgraça pela qual valha a pena nos alegrarmos ou nos afligirmos.

Trabalhei, trabalhei, trabalhei, o que me deu força para fustigar os meus mais encarniçados adversários e impor respeito aos outros, de modo que agora sou mais feliz e mais tranquilo do que as pessoas que me escamotearam uma herança de vinte milhões. Lamento-os, porque não lhes invejo a posição no mundo dos Espíritos. Se lamento essa fortuna, não é por mim: não tenho estômago para comer vinte milhões, mas pelo bem que isso me impediu de fazer. Como uma alavanca nas mãos de um homem que a soubesse manejar, que impulso poderia ter dado à Ciência e ao progresso! Aqueles que têm fortuna frequentemente ignoram os verdadeiros gozos que se poderiam permitir.

Sabeis o que falta à Ciência Espírita para se propagar rapidamente? Um homem rico que a ela consagrasse sua fortuna, por puro devotamente, sem misturar orgulho e egoísmo; que fizesse as coisas com grandeza, sem parcimônia e sem mesquinharia. Tal homem faria a Ciência avançar meio século. Por que me foram tirados os meios de fazê-lo?

Este homem aparecerá. Algo me diz que sim. Honra lhe seja feita!

Vi evocar uma pessoa viva. Ela teve uma síncope até que seu Espírito voltou. Evocai-me, para ver o que vos direi. Evocai também o Dr. Mure, falecido no Cairo, a 4 de junho. Ele era um grande espírita e médico homeopata. Perguntai-lhe se ainda crê nos gnomos. Certamente está em Júpiter, pois era um grande Espírito, mesmo aqui na Terra; um verdadeiro profeta a ensinar, e meu melhor amigo. Estará ele contente com o artigo necrológico que lhe escrevi?

Direis que esta carta está muito longa, mas não é muito fácil ter-me como correspondente. Vou ler vosso último livro, que acabo de receber. Ao primeiro relance não duvido que fazeis muito bem em destruir uma porção de preconceitos, pois soubestes mostrar o lado grave da coisa. O caso Badet é muito interessante. Dele falaremos depois.

Sempre vosso,

Jobard.

Qualquer comentário seria supérfluo. Cada um apreciará o alcance e facilmente reconhecerá essa profundeza e essa sagacidade que, aliadas a pensamentos nobres, colocaram o autor em tão honrosa posição entre os seus contemporâneos. Podemos honrar-nos de ser loucos, (de acordo com o entendimento de nossos adversários), quando temos tais companheiros de infortúnio.

A esta observação do Sr. Jobard: “É possível comunicar-nos com os Espíritos? Eis toda a questão. Vede e observai”, podemos acrescentar: As comunicações com os seres do mundo invisível nem são uma descoberta, nem uma invenção moderna. Desde a mais alta Antiguidade foram praticadas por homens que foram nossos mestres em Filosofia e cujos nomes invocamos, diariamente, como autoridade. Por que aquilo que então se passava não pode repetir-se hoje?


* * *

A carta que segue nos foi dirigida por um dos nossos assinantes. Como encerra uma parte instrutiva, que pode interessar à maioria dos nossos leitores e é mais uma prova da influência moral da Doutrina Espírita, sentimo-nos no dever de publicá-la na íntegra, respondendo, para todos, às perguntas que ela encerra.

Bordéus, 24 de junho de 1858.

Senhor e caro confrade no Espiritismo,

Certamente permitireis a um dos vossos assinantes e um dos vossos leitores mais atentos vos dar este título, porque esta admirável doutrina deve ser um laço fraternal entre todos os que a compreendem e a praticam.

Num de vossos números anteriores falastes de desenhos notáveis, feitos pelo Sr. Victorien Sardou e que representam habitações no planeta Júpiter. A descrição que nos fazeis, como sem dúvida a muitos outros, insufla-nos o desejo de conhecêlos. Poderíeis dizer-nos se esse senhor tem o desejo de publicá-los? Não duvido que constituam um sucesso, à vista da extensão que dia a dia toma a crença espírita. Seria o complemento necessário da descrição tão sedutora que dão os Espíritos desse mundo feliz.

Direi a respeito, meu caro Senhor, que há cerca de dezoito meses evocamos em nosso pequeno círculo íntimo um antigo magistrado nosso antepassado, falecido em 1756, o qual foi em vida um modelo de todas as virtudes e um Espírito muito superior, embora não classificado na História. Disse-nos estar encarnado em Júpiter e deu-nos um ensinamento moral de admirável sabedoria e em tudo conforme ao que encerra o vosso precioso Livro dos Espíritos. Naturalmente tivemos a curiosidade de lhe pedir algumas informações relativas ao estado do mundo que ele habita, o que fez com extrema benevolência. Agora julgai a nossa surpresa e a nossa alegria quando lemos na vossa revista uma descrição absolutamente idêntica desse planeta, pelo menos nas suas linhas gerais, pois levamos as perguntas tão longe quanto vós. Tudo ali é idêntico, tanto fisicamente quanto moralmente, e até mesmo quanto à condição dos animais. Até foram mencionadas habitações aéreas, das quais não falais.

Como houvesse coisas que tínhamos dificuldade de compreender, nosso parente ajuntou estas palavras notáveis: “Não é de admirar que não compreendais coisas para as quais não foram feitos os vossos sentidos, mas, à medida que avançardes na Ciência, compreendê-las-eis melhor pelo pensamento e elas deixarão de vos parecer extraordinárias. Não está longe a época em que recebereis mais completos esclarecimentos sobre este ponto. Estão os Espíritos encarregados de vos instruir a respeito, a fim de vos dar um objetivo e de vos motivar para bem.” Lendo vossa descrição e o anúncio dos desenhos de que falais, naturalmente pensamos que era chegado o momento.

Sem dúvida, os incrédulos glosarão esse paraíso dos Espíritos, como glosam tudo, mesmo a imortalidade e as coisas mais santas. Bem sei que nada prova materialmente a veracidade dessa descrição, mas para todos os que acreditam na existência e nas revelações dos Espíritos, esta coincidência não conduz à reflexão? Fazemos uma ideia de países que nunca vimos, pela descrição dos viajantes, quando entre eles há coincidência. Por que não se daria o mesmo em relação aos Espíritos? Haverá no estado sob o qual nos descrevem Júpiter algo que repugne à razão? Não. Tudo está conforme à ideia que nos dão de existências mais perfeitas. Direi mais: está conforme às Escrituras, o que um dia terei empenho em demonstrar. A mim isto se afigura tão lógico e tão consolador, que será penoso renunciar à esperança de habitar um mundo afortunado, onde não haja nem maus, nem invejosos, nem inimigos, nem egoístas, nem hipócritas. Eis por que emprego todos os meus esforços para merecer ir para lá.

Quando, no nosso pequeno círculo, algum de nós parece ter pensamentos muito materiais, dizemos-lhe: “Tome cuidado, senão você não irá para Júpiter.” E somos felizes em pensar que esse futuro nos está reservado, senão na próxima etapa, pelo menos numa das seguintes. Obrigado a vós, meu caro irmão, por nos terdes aberto esta nova via de esperança.

Como obtivestes preciosas revelações sobre aquele mundo, deveis tê-las tido igualmente sobre os outros que compõem o nosso sistema planetário. Tendes intenção de publicá-las? Isto daria um conjunto dos mais interessantes. Olhando os astros, alegrar-nos-íamos em pensar nos seres tão variados que os povoam; o espaço nos pareceria menos vazio. Como é que, crendo no poder e na sabedoria de Deus, pôde o homem abrigar o pensamento de que esses milhões de globos sejam corpos inertes e sem vida? Que sejamos únicos neste minúsculo grão de areia que chamamos Terra? Direi que é impiedade. Semelhante ideia me entristece. Se assim fosse, pensaria estar num deserto.

Todo vosso, de coração,


MARIUS M.

Funcionário aposentado

O título que nosso digno assinante nos quis conceder é muito lisonjeiro para que lhe não sejamos muito reconhecido por nos haver julgado merecedor. Com efeito, o Espiritismo é um laço fraternal, que deve conduzir à prática da verdadeira caridade cristã todos quantos o compreendem na sua essência, porque ele tende a fazer desaparecer os sentimentos de ódio, de inveja e de ciúme que dividem os homens. Mas essa fraternidade não será a de uma seita; para estar em conformidade com os divinos preceitos do Cristo, deve abarcar a Humanidade inteira, pois todos os homens são filhos de Deus. Se alguns estão tresmalhados, ela ordena que os lamentemos e proíbe que os odiemos. “Amai-vos uns aos outros”, disse Jesus. Ele não disse: “Não ameis senão aos que pensam como vós”. Eis por que, quando nossos adversários nos atiram uma pedra, não lhes devemos devolver maldições. Estes princípios converterão aqueles que os professam em homens pacíficos que não encontrarão na desordem e na prática do mal ao próximo a satisfação de suas paixões.

Os sentimentos de nosso digno correspondente são impregnados de muita elevação para que não nos persuadamos de que entende a fraternidade tal qual deve ser, na sua mais larga acepção.

Somos felizes pela comunicação que nos promete a respeito de Júpiter. A coincidência que assinala não é a única, como podemos ver no artigo sobre o assunto. Ora, seja qual for a opinião que se tenha a respeito, não deixa de ser matéria de observação. O mundo espírita está cheio de mistérios que devem ser estudados com muito cuidado. As consequências morais que daí extrai o nosso correspondente são caracterizadas por uma lógica que a ninguém passará despercebida.

Com referência à publicação dos desenhos, o mesmo desejo nos tem sido expresso por vários assinantes. A complicação, no entanto, seria muito grande, pois a reprodução por gravura determinaria despesas excessivas e portanto impraticáveis; os próprios Espíritos haviam dito que ainda não havia chegado o momento de publicá-los, talvez por esse motivo. Felizmente a dificuldade está hoje superada. O médium desenhista, Sr. Victorien Sardou, tornou-se médium gravador, embora jamais tivesse pego num buril. Agora faz os desenhos diretamente sobre o cobre, o que permitirá sua reprodução sem o concurso de qualquer artista estranho. Assim, ficou minimizada a questão financeira e poderemos dar uma prova notável em nosso próximo número, acompanhada de uma descrição técnica, que ele terá a bondade de redigir, de acordo com os documentos que lhe forneceram os Espíritos.

Esses desenhos são muito numerosos e seu conjunto mais tarde formará um verdadeiro atlas. Conhecemos um outro médium desenhista por quem os Espíritos traçam não menos curiosos desenhos relativos a um outro mundo. Quanto ao estado dos diversos globos conhecidos, sobre alguns recebo ensinamentos gerais e sobre outros apenas alguns detalhes. Ainda não fixamos a época conveniente para a sua publicação.

ALLAN KARDEC[1]



[1] Paris – Tipografia de Cosson & Cia. Rua do Four-Saint-Germain, 43.





Agosto

Contradições na linguagem dos Espíritos.

As contradições, encontradas tão frequentemente na linguagem dos Espíritos, mesmo sobre questões essenciais, para algumas pessoas foram até aqui uma causa de incerteza, quanto ao valor real de suas comunicações, circunstância da qual não deixam os adversários de tirar partido. À primeira vista, essas contradições parecem realmente uma das principais pedras de tropeço da ciência espírita. Vejamos se têm elas a importância que lhes emprestam.

Perguntaremos, de início, qual a ciência que não teve, em seus primórdios, semelhantes anomalias; qual o sábio que, nas suas investigações, não foi algumas vezes confundido por fatos que aparentemente contradiziam as regras estabelecidas; se a botânica, a zoologia, a fisiologia, a medicina e a nossa própria língua não nos oferecem milhares de exemplos semelhantes e se suas bases desafiam qualquer contradição. É comparando os fatos, observando as analogias e as dessemelhanças que pouco a pouco se chega a estabelecer as regras, as classificações, os princípios: numa palavra, a constituir a ciência. Ora, o Espiritismo apenas acaba de desabrochar. Assim, pois, não é de admirar que se ajuste à lei comum, até que seu estudo esteja completo. Só então reconhecer-se-á que aqui, como em tudo o mais, a exceção quase sempre vem confirmar a regra.

Aliás, os Espíritos sempre nos disseram que não nos inquietássemos com essas pequenas divergências, e que em pouco tempo todos seriam levados à unidade de crença. Com efeito, esta predição se realiza diariamente, à medida que mais e mais penetramos nas causas desses fenômenos misteriosos e que os fatos são mais bem observados. Já as dissidências manifestadas na origem tendem evidentemente a um enfraquecimento. Pode-se mesmo dizer que atualmente não passam de opiniões pessoais isoladas.

Embora o Espiritismo esteja na natureza e tenha sido conhecido e praticado desde a mais alta antiguidade, é um fato que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto em nossos dias. É que outrora faziam dele um estudo misterioso, no qual o vulgo não era iniciado. Ele se conservou por uma tradição que as vicissitudes da humanidade e a falta de meios de transmissão enfraqueceram insensivelmente. Os fenômenos espontâneos, que não deixaram de se produzir de vez em quando, passaram despercebidos ou foram interpretados segundo os preconceitos ou a ignorância da época; ou, ainda, foram explorados em proveito desta ou daquela crença. Estava reservado ao nosso século, no qual o progresso recebe um impulso incessante, trazer à plena luz uma ciência que, por assim dizer, apenas existia em estado latente. Só há alguns anos é que os fenômenos foram observados seriamente. Na verdade o Espiritismo é uma ciência nova, que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial. A princípio esta ciência pareceu muito simples. Para as criaturas superficiais, não passava da arte de mover as mesas. Uma observação mais atenta, entretanto, revelou que era, por suas ramificações e por suas consequências, muito mais complexa do que se imaginava. As mesas girantes são como a maçã de Newton, que na sua queda encerra o sistema do mundo.

Aconteceu com o Espiritismo o que acontece, de início, a todas as coisas: os primeiros não puderam ver tudo; cada um viu por seu lado e apressou-se a comunicar as suas impressões sob seu ponto de vista e conforme às suas ideias e preconceitos. Ora, não se sabe que, conforme o meio, um mesmo objeto a uns pode parecer frio e a outros quente?

Tomemos ainda outro exemplo das coisas vulgares, mesmo triviais, a fim de nos fazermos melhor entender.

Lemos, ultimamente, em vários jornais: “O cogumelo é um produto dos mais bizarros: delicioso ou mortal, microscópico ou de dimensões fenomenais, constantemente desorienta os botânicos. No túnel de Doncastre existe um cogumelo que há doze meses se desenvolve e, ao que parece, não chegou à fase final de seu crescimento. Atualmente ele mede quinze pés de diâmetro. Veio numa tora de madeira e é considerado o mais belo espécime de cogumelo jamais observado. Sua classificação é difícil, porque as opiniões estão divididas.” Assim, eis a ciência perturbada pelo aparecimento de um cogumelo que se apresenta sob um novo aspecto. Este fato provocou em nós uma reflexão: Suponhamos vários naturalistas observando, cada um por seu lado, uma variedade desse vegetal. Um dirá que o cogumelo é um criptógamo comestível, apreciado pelos gulosos; o segundo dirá que é venenoso; o terceiro, que é invisível a olho nu; o quarto, que pode alcançar até quarenta e cinco pés de circunferência, etc. À primeira vista, todas as afirmações são contraditórias e muito pouco aptas à fixação de ideias sobre a verdadeira natureza dos cogumelos. Depois virá um quinto observador que há de reconhecer a identidade dos caracteres gerais e mostrará que essas propriedades tão diversificadas não constituem mais que variedades ou subdivisões de uma só e mesma classe. Cada um tinha razão de seu ponto de vista; todos, porém, estavam errados quando concluíram do particular para o geral e quando tomaram a parte pelo todo.

Dá-se o mesmo em relação aos Espíritos. Têm sido julgados segundo a natureza das relações com eles estabelecidas, em consequência do que uns foram feitos demônios e outros, anjos. Porque houve pressa em explicar os fenômenos antes que se visse tudo, cada um o fez a seu modo e, muito naturalmente, buscou as causas naquilo em que consistia o objeto de suas preocupações. O magnetista tudo referiu à ação magnética; o físico, à ação elétrica, e assim por diante. A divergência de opiniões em matéria de Espiritismo vem, pois, dos diferentes aspectos sob os quais é considerado. De que lado está a verdade? É o que cabe ao futuro demonstrar. Mas a tendência geral não poderia oscilar. Evidentemente, um princípio domina e reúne pouco a pouco os sistemas prematuros. Uma observação menos exclusiva unirá todos a uma origem comum, e em breve veremos que em definitivo a divergência será mais acessória que de fundo.

Compreende-se muito bem que os homens erijam teorias contrárias em relação às coisas, mas o que pode parecer mais original é que os próprios Espíritos se contradigam. Foi isso que, de início, lançou uma espécie de confusão nas ideias. As várias teorias espíritas têm, pois, duas fontes: umas nasceram do cérebro humano; outras foram dadas pelos Espíritos. As primeiras emanam de homens que, confiando demasiado nas próprias luzes, creem possuir a chave daquilo que buscam, quando o mais das vezes apenas encontraram uma gazua. Isto nada tem de surpreendente, mas que, entre os Espíritos, uns dissessem uma coisa e outros dissessem outra, era menos concebível. No entanto, agora isto é perfeitamente explicável. A princípio, fez-se uma ideia absolutamente falsa da natureza dos Espíritos. Eles foram imaginados como seres à parte, de natureza excepcional, nada possuindo em comum com a matéria e devendo saber tudo. Eram, conforme opinião pessoal, seres benfeitores ou malfeitores, uns com todas as virtudes, outros com todos os vícios e todos, em geral, com um saber infinito, superior ao da humanidade. À notícia das recentes manifestações, a primeira ideia que em geral veio à mente da maior parte das criaturas foi de que isto era um meio de penetrar todas as coisas ocultas; um novo modo de adivinhação menos sujeito à dúvida que os processos vulgares. Quem poderia dizer o número dos que sonharam fazer fortuna fácil pela revelação de tesouros ocultos, de descobertas industriais ou científicas que não custariam aos inventores mais que o trabalho de fazer uma descrição ditada pelos sábios do outro mundo! Só Deus sabe quantos fracassos e desilusões. Quantas pretensas receitas, cada qual mais ridícula, não foram dadas pelos chalaceadores do mundo invisível! Conhecemos alguém que pediu uma receita infalível para pintar os cabelos. Foi-lhe dada uma fórmula de composição cerosa, que reduziu a cabeleira a uma espécie de massa compacta, da qual o paciente teve um trabalho imenso para se livrar. Todas essas esperanças quiméricas tiveram de se desvanecer à medida que ficou mais bem conhecida a natureza desse mundo e o verdadeiro objetivo das visitas que nos fazem os seus habitantes. Mas, então, para muita gente, onde estava o valor desses Espíritos, que nem tinham o poder de proporcionar alguns milhões aos que nada faziam? Não poderiam ser Espíritos! A febre passageira foi substituída pela indiferença e nalguns pela incredulidade. Oh! Quantos prosélitos teriam feito os Espíritos, se pudessem beneficiar os ociosos! O próprio diabo teria sido adorado se ele houvesse agitado a sua bolsa.

Ao lado dos sonhadores havia gente séria, que nesses fenômenos via algo mais que vulgaridade. Eles observaram atentamente; sondaram os refolhos desse mundo misterioso e facilmente perceberam nesses fatos estranhos, senão novos, um fim providencial de ordem mais elevada. Tudo mudou de aspecto quando se ficou sabendo que os Espíritos são as criaturas que viveram na Terra, e cujo número iremos aumentar, depois de nossa morte; que eles aqui deixaram o envoltório grosseiro, como o bicho da seda deixa a sua crisálida para tornar-se borboleta. Não pudemos duvidar quando vimos que os nossos pais, amigos e contemporâneos vinham conversar conosco, dando irrecusáveis provas de sua presença e de sua identidade. Considerando a grande diversidade de caracteres que a humanidade apresenta, sob o duplo ponto de vista intelectual e moral, e a multidão que diariamente emigra da Terra para o mundo invisível, repugna à razão admitir que um estúpido samoieda, um feroz canibal ou um vil criminoso sofram com a morte uma transformação que os ponha em pé de igualdade com o sábio e o homem de bem. Assim, compreendeu-se que poderia e deveria haver Espíritos mais adiantados ou menos adiantados e, desde então, ficaram muito naturalmente explicadas essas comunicações tão diversificadas, em que uns se elevam ao sublime, enquanto outros se arrastam na imundície. Compreendemos ainda melhor quando, deixando de acreditar que nosso pequeno grão de areia perdido no espaço é o único habitado entre tantos milhões de globos semelhantes, soubemos que, no universo, ele ocupa posição intermediária, próxima à dos mais baixos da escala; que, em consequência, há seres mais adiantados que os mais adiantados entre nós, e outros ainda mais atrasados que os nossos selvagens. Desde então, o horizonte intelectual e moral ampliou-se, como o nosso horizonte terreno, quando foi descoberta a quarta parte do mundo; o poder e a majestade de Deus ao mesmo tempo cresceram, aos nossos olhos, do finito ao infinito. Assim, logo ficaram explicadas as contradições da linguagem dos Espíritos, porque se compreendeu que seres inferiores sob todos os pontos de vista não podiam pensar nem se exprimir como os superiores; que, assim, não podiam saber tudo, nem tudo compreender, e que Deus deveria reservar apenas aos eleitos o conhecimento dos mistérios inatingíveis pela ignorância.

A escala espírita, traçada pelos próprios Espíritos e conforme à observação dos fatos, dá-nos a chave de todas as anomalias aparentes da linguagem dos Espíritos. É preciso chegar, pela força do hábito, a conhecê-los, por assim dizer, à primeira vista, e poder deduzir a sua classe conforme a natureza de suas manifestações. É preciso, conforme a necessidade, dizer a um que é mentiroso, a outro que é hipócrita, a este que é malévolo, àquele que é chocarreiro, etc., sem se deixar impressionar por sua arrogância e fanfarronadas, nem por suas ameaças ou seus sofismas e nem mesmo por suas lisonjas. É o meio de afastar essa turba que incessantemente pulula em redor de nós e que se afasta quando sabemos atrair apenas os Espíritos verdadeiramente bons e sérios, da mesma maneira que procedemos em relação aos vivos. Serão esses seres ínfimos eternamente votados ao mal e à ignorância? Não, pois nem essa parcialidade seria conforme à justiça, nem conforme à bondade do Criador, que provê à existência e ao bem-estar do menor inseto. É por uma sucessão de existências que eles se elevam e dele se aproximam à medida que melhoram. Esses Espíritos inferiores só conhecem Deus pelo nome; nem o veem nem o compreendem, do mesmo modo que o último camponês, no fundo de suas urzes, não vê nem compreende o soberano que governa o país que habita.

Se estudarmos cuidadosamente o caráter próprio de cada classe de Espíritos, compreenderemos facilmente que alguns há incapazes de fornecer ensinamentos exatos sobre o estado de seu mundo. Se, além disso, considerarmos que outros há que, por sua natureza, são levianos, mentirosos, zombeteiros, malévolos e que outros ainda se acham imbuídos das ideias e dos preconceitos terrenos, compreenderemos que, em suas relações conosco, podem divertir-se à nossa custa; conscientemente induzir-nos ao erro por malícia; afirmar aquilo que não sabem; dar-nos conselhos pérfidos ou mesmo enganar-se de boa-fé, julgando as coisas de seu ponto de vista. Façamos uma comparação.

Suponhamos que uma colônia de habitantes da Terra um belo dia encontre meios de ir à Lua; suponhamos que essa colônia seja composta de diversos elementos da população do nosso globo, desde o mais civilizado europeu até o selvagem australiano. Os habitantes da Lua ficarão muito sensibilizados e mesmo deslumbrados se puderem obter de seus visitantes ensinamentos precisos sobre o nosso planeta, que alguns supunham habitado, mas que não tinham certeza, de vez que entre eles há criaturas que se julgam os únicos seres do universo. Caem sobre os recém-vindos, interrogam-nos e os sábios se aprestam para publicar a história física e moral da Terra. Como não seria uma história autêntica, uma vez que dispõem de testemunhas oculares? Um deles recolhe em casa um zelandês, o qual informa que aqui na Terra é um regalo comer homens; que Deus o permite, pois as vítimas são sacrificadas em sua honra. Em casa de um outro está um filósofo e moralista, que fala de Platão e de Aristóteles e lhe diz que a antropofagia é uma abominação condenada por todas as leis divinas e humanas. Aqui é um muçulmano, que não come os homens, mas diz que a salvação é conseguida matando o maior número possível de cristãos; ali é um cristão dizendo que Maomé foi um impostor; além é um chinês que considera todos os demais como bárbaros e afirma que quando os filhos são muitos, Deus permite que sejam lançados ao rio; um boêmio pinta o quadro da vida dissoluta das capitais; um anacoreta prega a abstinência e as mortificações; um faquir indiano estraçalha o corpo e, para abrir as portas do céu, durante anos se impõe sofrimentos tais que, comparativamente, as privações dos mais piedosos cenobitas constituem sensualidade. Vem a seguir um bacharel, que afirma que é a Terra que gira e não o Sol; um campônio diz que o bacharel é um mentiroso, pois ele vê muito bem o sol nascer e se pôr; um senegalês diz que faz calor; um esquimó, que o mar é uma planície gelada e que só se viaja de trenó. A política não fica esquecida: uns elogiam o regime absolutista, outros a liberdade; este diz que a escravidão é contrária à natureza e que, como filhos de Deus, todos os homens são irmãos; aquele, que algumas raças foram feitas para a escravidão e que são muito mais felizes do que no estado de liberdade, etc. Creio que os escritores selenitas sentir-se-iam muito embaraçados para escrever a história física, política, moral e religiosa do mundo terrestre, baseados em semelhantes documentos. “Quem sabe” pensam alguns deles, “se encontremos maior unidade entre os sábios? Interroguemos o grupo de doutores.” Um deles, médico da Faculdade de Paris, centro de luzes, diz que todas as moléstias têm por princípio um sangue viciado e que, por isso, é preciso renovar o sangue, sangrando, seja qual for o caso. ─ Errais, meu sábio confrade”, replica um segundo, “o homem nunca tem sangue demais; se lho tirais, tirais-lhe a vida. Concordo que o sangue possa estar viciado, mas o que é que se faz quando um vaso está sujo? Ninguém o quebra, procura-se lavá-lo; então, dai purgantes, purgantes, purgantes até limpar. Um terceiro toma a palavra e diz: — Senhores, com as vossas sangrias matais os doentes e com os vossos purgantes os envenenais. A natureza é mais sábia que nós todos. Deixemo-la atuar. Esperemos. — É isto — replicam os dois primeiros — se matamos os nossos doentes, vós os deixais morrer. Os ânimos se alteram, quando um quarto, tomando de lado um selenita, arrasta-o para a esquerda e lhe diz: — Não os escuteis, são todos uns ignorantes. Eu nem sei por que eles pertencem à Academia! Acompanhai o meu raciocínio: todo doente é fraco; há, portanto, um enfraquecimento dos órgãos. Isto é lógica pura, ou eu não me conheço mais. Há, pois, que lhes dar tônus, mas, para isto, só há um remédio: água fria. Daí não me afasto. — Curais todos os vossos doentes? — Todos, desde que a doença não seja mortal. — Com um processo assim infalível, sois da Academia? — Apresentei minha candidatura três vezes, mas o senhor acredita que sempre fui barrado por esses pretensos sábios, porque eles sabiam que eu os pulverizaria com a minha água fria? — Senhor Selenita — diz outro interlocutor, puxando-o para a direita — nós vivemos numa atmosfera de eletricidade; a eletricidade é o verdadeiro princípio da vida; aumentá-la quando não é suficiente; reduzi-la quando existe em excesso; neutralizar os fluidos contrários, uns pelos outros, eis o segredo. Faço maravilhas com os meus aparelhos. Lede meus anúncios e vereis!* Não chegaríamos ao fim se quiséssemos resumir todas as teorias contrárias que foram preconizadas, cada uma por sua vez, sobre todos os ramos do conhecimento humano, sem excetuar nem mesmo as ciências exatas. Foi, porém, sobretudo nas ciências metafísicas que o campo esteve aberto às mais contraditórias doutrinas. Entretanto, um homem de espírito e de capacidade de discernimento (por que não os haveria na Lua?), compara todas essas afirmações incoerentes e tira uma conclusão muito lógica: sobre a Terra há regiões quentes e regiões frias; em certos lugares os homens se devoram entre si; noutros, matam os que não pensam como eles, tudo para a maior glória da sua divindade; enfim, cada um fala conforme os seus conhecimentos e elogia as coisas do ponto de vista de suas paixões e de seus interesses. Afinal, em que acreditará ele de preferência? Pela linguagem e sem dificuldade, distinguirá o verdadeiro sábio do ignorante; o homem sério do leviano; o que raciocina do que sofisma. Não confundirá bons com maus sentimentos, elevação com baixeza, o bem com o mal e dirá: “Devo ouvir tudo, tudo entender, porque, ainda na conversa do mais ignorante, posso algo aprender; mas a minha estima e a minha confiança só serão conquistadas por aquele que delas se mostrar digno.” Se essa colônia terrena quiser implantar os seus usos e costumes em sua nova pátria, os sábios repelirão os conselhos que lhes parecerem perniciosos e seguirão aqueles que se afigurarem mais esclarecidos e nos quais não perceberem falsidade nem mentira, mas, ao contrário, neles reconhecerem o sincero amor ao bem. Procederíamos de outro modo se uma colônia de selenitas viesse cair na Terra? Então! Aquilo que aqui é apresentado como uma suposição é uma realidade em relação aos Espíritos que, se não nos aparecem em carne e osso, nem por isso são menos presentes, de maneira oculta, e nos transmitem seus pensamentos através de seus intérpretes, isto é, dos médiuns. Quando tivermos aprendido a conhecê-los, julgá-los-emos por sua linguagem, por seus princípios, e suas contradições nada mais terão que nos surpreenda, porque veremos que uns sabem o que outros ignoram; que uns estão colocados muito embaixo ou ainda são muito materiais para que possam compreender e apreciar as coisas de uma ordem mais elevada. Esse é o homem que, no sopé da montanha, não vê mais do que alguns passos diante de si, enquanto o que está no cume vislumbra um horizonte sem limites.


* O leitor compreenderá que nossa crítica apenas visa ao exagero em todas as coisas. Em tudo existe um lado bom; o erro está no exclusivismo, que o sábio judicioso saberá sempre evitar. Não temos intenção de confundir os verdadeiramente sábios, dos quais a humanidade se honra a justo título, com aqueles que exploram as suas ideias sem discernimento. É destes que queremos falar. Nosso fim é unicamente demonstrar que a ciência oficial não está isenta de contradições.


A primeira fonte de contradições é, pois, o grau de desenvolvimento intelectual e moral dos Espíritos, mas existem outras sobre as quais é inútil chamar a atenção.

Dirão que se deve passar sobre a questão dos Espíritos inferiores, desde que se compreende que eles podem enganar-se por ignorância, mas como pode admitir-se que Espíritos superiores estejam em dissidência? Como é que num lugar empregam uma linguagem e noutro, outra? Que o mesmo Espírito, afinal, nem sempre seja coerente consigo mesmo?

A resposta a esta pergunta repousa sobre o conhecimento completo da ciência espírita e esta ciência não pode ser ensinada em poucas palavras, porque é tão vasta como todas as ciências filosóficas. Como todos os outros ramos do conhecimento humano, só se pode adquiri-la pelo estudo e pela observação. Não poderemos repetir aqui tudo quanto publicamos a respeito; a essa leitura remetemos o leitor, limitando-nos a um simples resumo. Todas essas dificuldades desaparecem para aquele que lança sobre essa questão um olhar investigador e sem prevenções.

Provam os fatos que os Espíritos enganadores não têm escrúpulos em adotar nomes respeitáveis, a fim de melhor imporem as suas torpezas, o que também é feito entre nós. Pelo fato de um Espírito apresentar-se com um nome qualquer não se segue que seja realmente aquele que declara ser. Há, porém, na linguagem dos Espíritos sérios, um cunho de dignidade que não poderia passar despercebido. Ele só respira bondade e benevolência e jamais se desmente. Ao contrário, a dos Espíritos impostores, a despeito do verniz que apresenta, não deixa de ferir o ouvido, como se costuma dizer. Nada há, pois, que admirar se, sob a capa de certos nomes, Espíritos inferiores ensinem coisas disparatadas. Cabe ao observador procurar conhecer a verdade, o que não é difícil, desde que queira compenetrar-se daquilo que a respeito dissemos em nossa Instrução Prática (Livro dos Médiuns).

Em geral esses mesmos Espíritos lisonjeiam o gosto e as inclinações das pessoas cujo caráter sabem bastante fraco e que são bastante crédulas para lhes dar atenção; tornam-se eco de seus preconceitos e até de suas ideias supersticiosas, e isto por uma razão muito simples: é que os Espíritos são atraídos por suas simpatias pelo Espírito das pessoas que os chamam e que os ouvem com prazer.

Quanto aos Espíritos sérios, também podem ter uma linguagem diferente, conforme as pessoas, mas com outro objetivo. Quando julgam conveniente, para melhor convencer, exprimem-se de acordo com a época, o lugar e as pessoas, evitando entrar bruscamente em choque com ideias arraigadas. “Eis por que”, dizem eles, “não falamos a um chinês ou a um maometano como a um cristão ou a um homem civilizado, pois não seríamos ouvidos. Algumas vezes podemos parecer concordar com a maneira de ver das pessoas, a fim de pouco a pouco conduzi-las ao ponto que desejamos, quando possível, sem alterar as verdades essenciais.” Não é evidente que se um Espírito quisesse levar um muçulmano fanático a praticar a sublime máxima do Evangelho: “Não façais aos outros aquilo que não quereríeis que vos fosse feito”, seria repelido se dissesse que isto tinha sido ensinado por Jesus? Ora, o que mais vale: deixar o muçulmano no seu fanatismo ou torná-lo bom, induzindo-o momentaneamente a pensar que foi Alá quem falou? Eis um problema cuja solução deixamos ao leitor. Quanto a nós, parece-nos que o tornando mais doce e mais humano, ele será menos fanático e mais acessível à ideia de uma nova crença do que se quiséssemos impô-la pela força. Há verdades que, para serem aceitas, não podem ser lançadas em rosto sem cuidado. Quantos males teriam os homens evitado se assim tivessem agido sempre!

Como se vê, os Espíritos também tomam precauções oratórias. Neste caso, entretanto, a divergência está no acessório e não no principal. Levar os homens ao bem; destruir o egoísmo, o orgulho, o ódio, a inveja, o ciúme; ensinar-lhes a praticar a verdadeira caridade cristã, é para eles o essencial. O resto virá em tempo útil. Eles pregam tanto pelo exemplo quanto pela palavra, desde que sejam Espíritos verdadeiramente bons e superiores. Tudo neles respira doçura e benevolência. A irritação, a violência, o azedume e a dureza de linguagem, ainda mesmo para dizer boas coisas, jamais são um sinal de verdadeira superioridade. Os Espíritos realmente bons jamais se zangam ou se exaltam. Se não são ouvidos, vão-se embora. Eis tudo.

Existem ainda duas causas de contradição aparente, que não devemos passar em branco. Como já o dissemos em muitas ocasiões, os Espíritos inferiores dizem tudo aquilo que queremos, sem preocupação com a verdade. Os Espíritos superiores calam-se ou se recusam a responder, quando lhes fazemos uma pergunta indiscreta ou sobre a qual não têm permissão para explicar-se. “Nesse caso”, disseram-nos, “não insistais nunca, porque então os Espíritos levianos respondem e vos enganam; pensais que somos nós e chegais a admitir que caímos em contradição. Os Espíritos sérios não se contradizem nunca. Sua linguagem é sempre a mesma com as mesmas pessoas. Se algum deles diz coisas contrárias tomando o mesmo nome, ficai certos de que não é o mesmo Espírito que fala ou, pelo menos, que não é um bom Espírito. Reconhecereis o bom pelos princípios que ele ensina, pois todo Espírito que não ensina o bem não é um bom Espírito. E vós deveis repeli-lo.”

Querendo dizer a mesma coisa em dois lugares diferentes, o mesmo Espírito não se servirá literalmente das mesmas palavras. Para ele o pensamento é tudo. Infelizmente, o homem é mais levado a prender-se à forma do que ao fundo. É essa forma que frequentemente interpreta conforme suas ideias e suas paixões e dessa interpretação podem nascer contradições aparentes que, também elas, se originam na insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas extra-humanas. Estudemos o fundo; perscrutemos o pensamento íntimo e veremos que muitas vezes há analogia onde o exame superficial nos induziria a ver um disparate.

As causas das contradições da linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:

1.º — O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;

2.º — O embuste dos Espíritos inferiores que podem, por malícia, ignorância ou malevolência, tomando um nome de empréstimo, dizer coisas contrárias às que alhures foram ditas pelo Espírito cujo nome usurparam;

3.º — As falhas pessoais do médium, que podem influir sobre as comunicações e alterar ou deformar o pensamento do Espírito;

4.º — A insistência por obter uma resposta que um Espírito se recusa a dar, e que é dada por um Espírito inferior;

5.º — A própria vontade do Espírito, que fala conforme o momento, o lugar e as pessoas e pode julgar conveniente nem tudo dizer a toda gente;

6.º — A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;

7.º — A interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou a uma explicação, de acordo com as suas ideias, os seus preconceitos ou o ponto de vista sob o qual encara o assunto.

São muitas as dificuldades, das quais não se triunfa senão por um estudo longo e assíduo. Também nunca dissemos que a ciência espírita é fácil. O observador sério, que tudo aprofunda maduramente, com paciência e perseverança, apreende uma porção de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial. É por tais detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos desta ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos, como nos ensina a conhecer os homens.

Acabamos de considerar as contradições do ponto de vista geral. Em outros artigos trataremos dos pontos especiais mais importantes.

A CARIDADE


PELO ESPÍRITO DE S. VICENTE DE PAULO
(Sociedade de Estudos Espíritas, sessão de 8 de junho de 1858)



Sede bons e caridosos, eis a chave do Céu, posta em vossas mãos. Toda a felicidade eterna está contida nesta máxima: “Amai-vos uns aos outros.” Não pode a alma elevar-se às regiões espirituais senão pela dedicação ao próximo; ela não encontra felicidade e consolação senão nos arroubos da caridade. Sede bons, ajudai os vossos irmãos, ponde de lado essa horrível chaga do egoísmo. Esse dever cumprido vos deve abrir as vias da felicidade eterna. Aliás, quem dentre vós não sentiu o coração pulsar e sua alegria íntima expandir-se pela prática de uma obra de caridade? Não deveríeis pensar senão nesta espécie de volúpia proporcionada por uma boa ação, com o que permaneceríeis sempre no caminho do progresso espiritual. Não vos faltam exemplos. Só a boa vontade é que é rara.

Vede a multidão de homens de bem, cuja lembrança piedosa a vossa história relembra. Eu poderia citar aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo quanto concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que são postos de lado os seus divinos ensinamentos? Por que os ouvidos são tapados às suas divinas palavras e o coração é fechado para todas as suas máximas suaves?

Eu gostaria que a leitura do Evangelho fosse feita com mais interesse pessoal. Mas abandonam esse livro; transformam-no em expressão vazia e letra morta; deixam ao esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm do abandono voluntário em que deixais esse resumo das leis divinas. Lede, pois, essas páginas de fogo do devotamento de Jesus e meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar prometer-vos um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro encontrais todos os ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes.

Homens fortes, armai-vos; homens fracos, forjai as vossas armas de vossa doçura e de vossa fé; tende mais persuasão, mais constância na propagação de vossa nova doutrina. Nós só vimos trazer-vos um encorajamento; é apenas para vos estimular o zelo e as virtudes que Deus permite nos manifestemos a vós. Mas, se quisésseis, não necessitaríeis senão do auxílio de Deus e de vossa própria vontade. As manifestações espíritas não foram feitas senão para os olhos fechados e para os corações indóceis. Há, entre vós, homens que devem realizar missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei resplandecer os seus méritos e vós próprios sereis exaltados pelo desinteresse e pela fé viva de que vos impregnarão.

Muito extensos e detalhados seriam os conselhos que vos deveriam ser dados sobre a necessidade de alargamento do círculo de caridade; sobre a inclusão nesse círculo de todos os infelizes cujas misérias são ignoradas; sobre todas as dores que devem ser buscadas em seus próprios redutos, para consolá-los em nome dessa virtude divina, a caridade. Vejo com satisfação quantos homens eminentes e poderosos colaboram na busca desse progresso que deve reunir todas as classes humanas: os felizes e os desgraçados. Coisa estranha! Todos os infelizes se dão as mãos e se ajudam reciprocamente na sua miséria. Por que os felizes demoram tanto para ouvir a voz do infeliz? Por que se faz necessária uma poderosa mão terrena para dar impulso às missões de caridade? Por que não respondem com mais ardor a esses apelos? Por que permitem que a miséria, como por prazer, macule a imagem da Humanidade?

A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem caridade não há fé nem esperança, porque sem a caridade não há esperança de uma sorte melhor nem interesse moral que nos guie. Sem a caridade não há fé, porque a fé é um puro raio que faz brilhar uma alma caridosa; ela é a sua consequência decisiva.

Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem se perguntar se sua miséria é fingida ou se seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade pelo só prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si.

A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, que ele dá às criaturas. Como poderíeis desconhecer essa suprema bondade? Com tal pensamento, qual seria o coração bastante perverso para recalcar e repelir esse sentimento divino? Qual seria o filho suficientemente mau para se rebelar contra a doce carícia da caridade?

Não ouso falar daquilo que fiz, porque os Espíritos também têm o pudor de suas obras. Mas penso que a obra que iniciei é uma daquelas que devem contribuir muito para aliviar os vossos semelhantes. Com frequência vejo Espíritos que pedem a missão de continuar a minha obra; vejo minhas suaves e queridas irmãs em seu piedoso e divino ministério; vejo-as a praticar a virtude que vos recomendo, com toda a alegria proporcionada por essa existência de devotamento e de sacrifícios. É para mim grande felicidade ver quanto seu caráter é honrado; quanto sua missão é apreciada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e forte vontade, uni-vos para continuar ampliando a obra de propagação da caridade. Encontrareis a recompensa dessa virtude pelo seu próprio exercício. Não há alegria espiritual que ela não proporcione, já na presente existência. Sede unidos; amai-vos uns aos outros, conforme os preceitos do Cristo. Assim seja.

* * *

─ Agradecemos a S. Vicente de Paulo a bela e boa comunicação que teve a bondade de nos dar.

─ Gostaria que fosse proveitosa a todos.

─ Poderíeis permitir-nos algumas perguntas complementares a respeito do que acabastes de dizer?

─ Certamente, pois meu objetivo é esclarecer-vos. Perguntai o que quiserdes.

1. ─ A caridade pode ser compreendida de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando nos dissestes que era necessário abrir o coração ao pedido do infeliz que nos estende a mão, sem lhe perguntar se sua miséria é fingida, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola?

─ Sim, apenas nesse parágrafo.

2. ─ Dissestes que deveríamos deixar à justiça de Deus a apreciação de falsa miséria. Entretanto, parece-nos que dar sem discernimento àqueles que não necessitam ou que poderiam ganhar a vida por um trabalho honesto, é encorajar o vício e a preguiça. Se os preguiçosos achassem facilmente aberta a bolsa alheia, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiramente necessitados.

─ Podeis identificar os que podem trabalhar e então a caridade vos obriga a tudo fazer para lhes proporcionar trabalho. Entretanto, também há pobres mentirosos, que sabem muito bem simular misérias que não padecem. Esses é que devem ser deixados à justiça de Deus.

3. ─ Aquele que pode dar apenas um centavo e que pode escolher entre dois infelizes que lhe pedem, tem o direito de inquirir qual deles é realmente necessitado, ou deve dar sem exame ao que chega primeiro?

─ Deve dar àquele que parece sofrer mais.

4. ─ Não se deve considerar como parte da caridade a maneira de fazê-la?

─ É sobretudo na maneira de fazê-la que está o mérito da caridade. A bondade é sempre indício de uma alma bela.

5. ─ Que tipo de mérito reconheceis naqueles geralmente chamados benfeitores rabugentos?

─ Fazem o bem apenas pela metade. Seus benefícios são recebidos, mas não comovem.

6. ─ Disse Jesus: “Que a vossa mão direita não saiba o que faz a esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação?

─ Têm apenas o mérito do orgulho, pelo qual serão punidos.

7. ─ A caridade cristã, na sua mais larga acepção, não compreende também a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas alheias?

─ Fazei como Jesus. Ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais do que nunca.

8. ─ É bem entendida a caridade, quando exclusiva entre as criaturas da mesma opinião ou do mesmo partido?

─ Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que deve ser abolido, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre isso que concentramos os nossos esforços.

9. ─ Admitamos que uma pessoa veja dois homens em perigo, mas não possa salvar senão um. Um é seu amigo e o outro, inimigo. A quem deve salvar?

─ Deve salvar o amigo, pois esse amigo poderia acusá-lo de não lhe ter amizade. Quanto ao outro, Deus há de tomar conta.



O ESPÍRITO BATEDOR DE DIBBELSDORF

Baixa Saxônia

PELO DR. KERNER

TRADUZIDO DO ALEMÃO POR ALFRED PIREAUX

A história do Espírito batedor de Dibbelsdorf, ao lado da sua parte cômica, encerra uma parte instrutiva, segundo ressalta de velhos documentos publicados em 1811 pelo pregador Capelle.

A 2 de dezembro de 1761, às seis horas da tarde, uma espécie de martelar, que parecia vir do chão, foi ouvida no quarto ocupado por Antônio Kettelhut. Imaginando tratar-se de seu criado que queria divertir-se às custas da empregada que estava no quarto das fiandeiras, saiu para atirar um balde d’água na cabeça do gaiato, mas não encontrou ninguém lá fora. Uma hora depois recomeçou o mesmo ruído e ele pensou que a causa fosse um rato. No dia seguinte examinou as paredes, o forro, o soalho e não encontrou o menor vestígio de ratos.

À noite, o mesmo ruído. Foi então a casa considerada perigosa para morar e as criadas não queriam mais ficar no quarto durante o serão. Pouco depois cessou o ruído, para reaparecer a cem passos de distância, na casa de Luís Kettelhut, irmão de Antônio, e com inusitado vigor. Era num canto do quarto que se manifestava a coisa batedora.

Por fim a coisa tornou-se suspeita aos aldeões e o burgomestre comunicou o fato à justiça que de início não quis ocupar-se de um assunto que considerava ridículo. Entretanto, sob a instante pressão dos habitantes, a 6 de janeiro de 1762 ela foi a Dibbelsdorf, para examinar o fato com atenção. As paredes e o teto foram demolidos, mas sem resultado. A família Kettelhut jurou que nada tinha a ver com aquela coisa estranha.

Até então ninguém havia se comunicado com o batedor. Um dia um indivíduo de Naggam armou-se de coragem e perguntou:

─ Espírito batedor, ainda estás aí?

Ouviu-se uma pancada.

─ Podes dizer qual é o teu nome?

Foram ditos vários nomes, mas o Espírito deu uma pancada ao ser pronunciado o do interlocutor.

─ Quantos botões há em minha roupa?

Foram dadas 36 batidas. Contados os botões, verificou-se que eram mesmo 36.

A partir desse instante a história do Espírito batedor espalhou-se pelas imediações e todas as tardes centenas de moradores de Brunswick iam a Dibbelsdorf, assim como ingleses e uma porção de curiosos estrangeiros. A multidão cresceu tanto, que a polícia local foi insuficiente para contê-la; os camponeses tiveram que reforçar a guarda durante a noite e foram obrigados a estabelecer filas para a entrada dos visitantes.

Essa afluência de pessoas pareceu motivar o Espírito a manifestações mais extraordinárias, passando a formas de comunicação que atestavam sua inteligência. Jamais ele se atrapalhou nas respostas. Queriam saber o número e a cor dos cavalos que estavam estacionados na frente da casa? Ele o indicava exatamente. Abria-se um livro de canto; punha-se o dedo ao acaso sobre uma página e pedia-se o número do trecho da canção, às vezes desconhecido pelo interlocutor e logo uma série de batidas indicava perfeitamente o número designado. O Espírito não se fazia esperar; a resposta era dada imediatamente após a pergunta. Também dizia quantas pessoas havia no quarto, quantas do lado de fora; designava a cor dos cabelos, da roupa, a posição e a profissão dos indivíduos.

Entre os curiosos achava-se um dia um homem de Hettin, completamente desconhecido em Dibbelsdorf e que morava há pouco tempo em Brunswick. Ele perguntou ao Espírito o lugar de seu nascimento e, a fim de induzi-lo em erro, citou um grande número de cidades. Quando chegou ao nome de Hettin ouviu-se uma pancada. Um astuto burguês, supondo que induziria o Espírito em erro, perguntou-lhe quantos pfennigs tinha no bolso; foi-lhe dado o número exato: 681. A um pasteleiro foi dito quantos biscoitos havia feito pela manhã; a um negociante quantos metros de fita havia vendido na véspera e a um outro a soma exata que na antevéspera tinha recebido pelo correio. Tinha um humor alegre. Quando lhe pediam, marcava o compasso e por vezes tão fortemente que o barulho era ensurdecedor.

À noite, durante a refeição, após o bendito ele batia o Amém. Esse sinal de devoção não impediu que um sacristão vestisse os hábitos de exorcista e experimentasse dali expulsar o Espírito, mas a conjuração fracassou.

O Espírito não temia ninguém. Mostrou-se tão sincero nas respostas dadas ao regente, o Duque Carlos, e a seu irmão Fernando, quanto às outras pessoas de condição inferior.

O caso tomou então um aspecto mais sério. O duque encarregou um médico e alguns doutores em direito para examinarem os fatos. Os sábios explicaram que as batidas eram devidas a uma fonte subterrânea. Mandaram cavar um poço de oito pés de profundidade e naturalmente acharam água, pois Dibbelsdorf está situada no fundo de um vale. A água jorrou, inundou a sala, mas o Espírito continuou a bater no seu cantinho costumeiro. Então os homens de ciência julgaram-se vítimas de alguma mistificação e deram ao criado a honra de tomar o lugar daquele Espírito tão bem informado. Sua intenção, diziam eles, era de enfeitiçar a criada. Todos os moradores da aldeia foram convidados a ficar em casa num dia determinado; o criado foi mantido sob suas vistas, pois, em face da opinião dos sábios, devia ser ele o culpado. Mas o Espírito novamente respondeu a todas as perguntas. Reconhecida a sua inocência, o criado foi solto. Mas a justiça queria um autor para o delito, e acusou o casal Kettelhut pelo barulho de que se queixavam, embora se tratasse de criaturas benevolentes, honestas e irrepreensíveis sob todos os aspectos e tivessem sido os primeiros a buscar as autoridades, desde o início das manifestações. Com promessas e ameaças, forçaram uma jovem a testemunhar contra os patrões. Em consequência, eles foram presos, a despeito da retratação posterior da moça e da declaração formal de que sua primeira confissão era falsa e lhe fora arrancada pelos juízes. Como o Espírito continuasse a bater, o casal Kettelhut ficou três meses na prisão e, findo esse prazo, foi libertado sem indenização, muito embora os membros da comissão assim tivessem resumido o seu relatório: “Foram infrutíferos todos os meios possíveis para descobrir a causa do ruído. Talvez o futuro nos esclareça a respeito.”

─ O futuro ainda não ensinou nada.

O Espírito batedor manifestou-se desde o começo de dezembro até março, época em que deixou de ser ouvido. Voltaram a pensar que o criado já incriminado devia ser o autor de todas essas tretas. Mas como teria ele podido subtrair-se às armadilhas preparadas pelos duques, médicos, juízes e tantos outros que o interrogaram?

OBSERVAÇÃO: Se prestarmos atenção à data em que tais coisas se passaram e as compararmos com as que ocorrem em nossos dias, nelas encontraremos perfeita identidade no modo da manifestação e até na natureza das perguntas e respostas. Nem a América nem a nossa época descobriram os Espíritos batedores, como não descobriram os outros, como o demonstraremos por inúmeros fatos autênticos e mais ou menos antigos.

Há, entretanto, entre os fenômenos atuais e os de outrora uma diferença capital: é que esses últimos eram quase todos espontâneos, enquanto que os nossos se produzem quase que à vontade de certos médiuns especiais. Esta circunstância permitiu que fossem mais bem estudados e sua causa mais aprofundada. À conclusão dos juízes de que “talvez o futuro nos esclareça a respeito”, hoje o autor não responderia: “o futuro ainda não ensinou nada.” Se esse autor ainda vivesse, saberia, ao contrário, que o futuro tudo ensinou e que a justiça de nossos dias, mais esclarecida do que há um século atrás, não cometeria, em relação às manifestações espíritas, erros que lembram os da Idade Média. Os nossos próprios sábios já penetraram muito nos mistérios da Natureza para não jogar com causas desconhecidas. Eles são bastante sagazes e não se expõem, como os seus predecessores, a um desmentido da posteridade, em detrimento de sua reputação. Se algo aparece no horizonte, eles não correm a proclamar: “Isto não é nada”, com receio de que seja um navio. Se não o veem, calam e esperam. Isto é a verdadeira sabedoria.



Conforme havíamos anunciado, damos com este número da Revista o desenho de uma habitação em Júpiter, executado e gravado pelo Sr. Victorien Sardou como médium, e adicionamos o artigo descritivo que o mesmo teve a gentileza de escrever a respeito. Quanto à autenticidade da descrição, seja qual for a opinião dos que nos acusem por nos ocuparmos daquilo que se passa em mundos desconhecidos, quando há tanto que fazer na Terra, rogamos aos leitores que não percam de vista que o nosso objetivo, bem como o que se acha no subtítulo da revista, é antes de tudo o estudo dos fenômenos e que, neste sentido, nada deve ser negligenciado. Ora, como fato de manifestações, esses desenhos são, incontestavelmente, os mais admiráveis, desde que se considere que o autor não sabe desenhar, nem gravar, e que o desenho que oferecemos é uma água-forte feita sem modelo nem ensaio prévio, em nove horas. Supondo mesmo que esse desenho seja uma fantasia do Espírito que o traçou, o simples fato de sua execução não seria um fenômeno menos digno de atenção e, sob esse título, cabe à nossa coleção torná-lo conhecido, bem como a descrição que sobre o mesmo foi dada pelos Espíritos, não para satisfazer à curiosidade das pessoas fúteis, mas como assunto de estudo para as pessoas sérias que querem aprofundar-se em todos os mistérios da Ciência Espírita.

Seria erro pensar que fazemos da revelação dos mundos desconhecidos o objeto capital da doutrina. Isto nunca será para nós mais que um acessório, que consideramos útil como estudo complementar; o principal será sempre para nós o ensino moral e nas comunicações de além-túmulo buscaremos sobretudo aquilo que pode esclarecer a Humanidade e conduzi-la para o bem, único meio de lhe assegurar a felicidade neste e no outro mundo.

Não poderíamos dizer o mesmo com relação aos astrônomos que sondam os espaços e perguntar-lhes qual seria a utilidade para o gênero humano em saber calcular com precisão a parábola de um astro invisível?

Nem todas as ciências têm um interesse eminentemente prático. Entretanto, a ninguém ocorre tratá-las com desdém, porque tudo quanto aumenta o círculo das ideias contribui para o progresso.

Assim se dá com as comunicações espíritas, mesmo quando ultrapassam o círculo estreito da nossa personalidade.


Casa de Mozart - por Victorien Sardou (Médium)

Para certas pessoas convencidas da existência dos Espíritos ─ e aqui não cogito de outras ─ deve ser motivo de espanto que, como nós, os Espíritos tenham as suas habitações e as suas cidades. Não me pouparam críticas: “Casas de Espíritos em Júpiter!... Que piada!...”

Piada ─ seja. Mas eu nada tenho com isso. Se aqui, na verossimilhança das explicações, não encontra o leitor uma prova suficiente de sua veracidade; se, como nós, não se surpreende com a perfeita concordância entre estas revelações dos Espíritos e os dados mais positivos da Astronomia; se, numa palavra, não vê mais que hábil mistificação nos detalhes que se seguem e no desenho que os acompanha, eu o convido a se explicar com os Espíritos, de quem apenas sou eco fiel e instrumento. Que se evoquem Pallissy ou Mozart ou um outro habitante desse mundo feliz; que sejam interrogados; que minhas asserções sejam controladas pelas suas; que, enfim, discutam com eles, porque, quanto a mim, mais não faço do que apresentar aquilo que me é dado e repetir aquilo que me é dito; e, por esse papel absolutamente passivo, julgo-me ao abrigo da censura, tanto quanto do elogio.

Feita esta ressalva e admitida a confiança nos Espíritos, se se aceitar como verdadeira a única doutrina realmente bela e sábia até aqui revelada pela evocação dos mortos, isto é, a migração das almas de planeta a planeta, suas encarnações sucessivas e seu progresso incessante pelo trabalho, os habitantes de Júpiter não nos devem mais causar admiração. Desde o momento em que um Espírito se encarna num mundo como o nosso, submetido a uma dupla revolução, isto é, à alternativa dos dias e das noites e ao retorno periódico das estações e desde que possui um corpo, esse envoltório material, por mais frágil que seja, não somente requer alimentação e vestuário, mas um abrigo ou, pelo menos, um lugar de repouso e, consequentemente, uma habitação.

É exatamente o que nos foi dito. Como nós, e melhor do que nós, os habitantes de Júpiter têm seus lares comuns e suas famílias, grupos harmoniosos de Espíritos simpáticos, unidos no triunfo, como o foram na luta. Daí as moradas tão espaçosas que merecem exatamente o nome de palácios.

Ainda como nós, os Espíritos têm as suas festas, suas cerimônias, suas reuniões públicas. Daí certos edifícios destinados especialmente a essas finalidades. É preciso estar preparado para encontrar, nessas regiões superiores, uma Humanidade ativa e laboriosa como a nossa, como nós submetida às suas leis, às suas necessidades, aos seus deveres, apenas com a diferença de que o progresso, rebelde aos nossos esforços, torna-se fácil conquista para os Espíritos desprendidos, como eles são, de nossos vícios terrenos.

Eu não deveria ocupar-me aqui da arquitetura de suas habitações. Mas, para a boa compreensão dos detalhes que se seguem, não será inútil uma palavra de explicação.

Se Júpiter só é habitável por bons Espíritos, não se segue que sejam todos do mesmo grau de excelência: entre a bondade do homem simples e a do homem de gênio, podem contar-se muitas nuanças. Ora, toda a organização social desse mundo superior repousa precisamente sobre essa variedade de inteligências e de aptidões e, por efeito de leis harmoniosas cuja explicação aqui seria muito longa, cabe aos Espíritos mais elevados e mais depurados, a alta direção de seu planeta. Essa supremacia não para aí. Ela se estende até os mundos inferiores, onde esses Espíritos, por sua influência, favorecem e incessantemente ativam o progresso religioso, gerador de todos os demais. É preciso acrescentar que para esses Espíritos depurados não haveria senão trabalhos intelectuais, pois suas atividades se exercem apenas no campo do pensamento e eles já adquiriram bastante domínio sobre a matéria para não serem senão ligeiramente limitados por ela no livre exercício de sua vontade.

O corpo desses Espíritos, como aliás de todos os habitantes de Júpiter, é de tão pouca densidade que só pode ser comparada à dos nossos fluidos imponderáveis. Um pouco maior que o nosso corpo, cuja forma reproduz exatamente, entretanto mais bela e mais pura, ele teria, para nós, a aparência de um vapor ─ e aqui emprego contrafeito um vocábulo que designa uma substância ainda muito grosseira ─ de um vapor, dizia eu, intangível e luminoso... luminoso sobretudo nos contornos do rosto e da cabeça, pois aí a inteligência e a vida irradiam como um foco muito ardente. É exatamente esse brilho magnético, entrevisto pelos visionários cristãos, que os nossos pintores traduziam como o nimbo ou auréola dos santos.

Compreende-se que tal corpo não dificulta senão muito pouco as comunicações extramundanas desses Espíritos e que lhes permite, no seu próprio planeta, um deslocamento rápido e fácil. Ele se subtrai tão facilmente à atração planetária, e sua densidade difere tão pouco da densidade atmosférica, que ali pode movimentar-se, ir e vir, subir e descer, ao capricho do Espírito e sem outro esforço além da vontade. Assim, alguns personagens que Palissy houve por bem fazer-me desenhar são representados rasando o solo ou na superfície das águas ou ainda muito elevados no ar, com toda a liberdade de ação e de movimento que nós atribuímos aos anjos. Essa locomoção é tanto mais fácil quanto mais depurado é o Espírito, o que se compreende sem esforço. Assim, nada é mais fácil aos habitantes do planeta do que determinar, logo à primeira vista, o valor de um Espírito que passa. Dois sinais o delatam: a altura de seu voo e a luz mais ou menos brilhante de sua auréola.

Em Júpiter, como por toda parte, os que voam mais alto são mais raros. Abaixo deles existem várias categorias de Espíritos inferiores, quer em virtude, quer em poder, mas naturalmente livres para os igualar um dia, pelo aperfeiçoamento. Escalonados e classificados segundo os seus méritos, dedicam-se mais particularmente aos trabalhos que interessam ao próprio planeta e não exercem sobre os mundos inferiores a autoridade todo-poderosa dos primeiros. É verdade que respondem a uma evocação com revelações sábias e boas, mas, pela pressa que demonstram em nos deixar, como pelo laconismo de suas respostas, compreende-se facilmente que têm alhures muito o que fazer e que ainda não se encontram suficientemente desembaraçados a fim de poderem irradiar, simultaneamente, em dois pontos tão distantes um do outro. Enfim, seguindo os menos perfeitos desses Espíritos, mas deles separados por um abismo, vêm os animais que, como únicos criados e únicos operários do planeta, merecem referência muito especial.

Se designamos pelo nome de animais os seres bizarros que ocupam os limites inferiores da escala, é que os próprios Espíritos admitiram o uso e ainda porque a nossa linguagem não possui um termo mais adequado. Essa designação os degrada bastante; entretanto, chamá-los homens seria elevá-los demais. São, na verdade, Espíritos destinados à animalidade, talvez por longo tempo, talvez para sempre, pois nesse ponto os Espíritos não estão todos de acordo e a solução do problema parece pertencer a mundos mais elevados que Júpiter. Contudo, seja qual for o seu futuro, não há equívoco quanto ao seu passado: tais Espíritos, antes de irem para lá, migraram, seguidamente, em nossos mundos inferiores, do corpo de um ao de outro animal, por uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento de nossos animais terrestres, seus costumes, seus caracteres individuais, sua ferocidade longe do homem e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo indica suficientemente a realidade dessa ascensão animal.

Assim, para qualquer lado que nos voltemos, a harmonia do Universo se resume sempre numa lei única: o progresso por toda parte e para todos, para o animal como para a planta, para a planta como para o mineral. A princípio, um progresso puramente material, nas moléculas insensíveis do metal ou do seixo e cada vez mais inteligente, à medida que subimos na escala dos seres e que a individualidade tende a desembaraçar-se da massa, a se afirmar, a se conhecer.

Esse pensamento é elevado e consolador, como nunca havia sido, porque nos prova que nada é sacrificado; que a recompensa é sempre proporcional ao progresso realizado. Por exemplo: o devotamento do cão que morre por seu dono não é estéril para o seu Espírito, pois terá seu justo salário além deste mundo.

É o caso dos Espíritos animais que povoam Júpiter. Aperfeiçoaram-se ao mesmo tempo que nós, conosco e com a nossa ajuda. A lei é ainda mais admirável: ela tanto faz de seu devotamento ao homem a primeira condição para sua ascensão planetária, que a vontade de um Espírito de Júpiter pode chamar para si todo animal que, numa de suas vidas anteriores, lhe houver dado provas de afeição. Essas simpatias, que lá no alto formam famílias de Espíritos, também agrupam em torno das famílias todo um cortejo de animais dedicados. Consequentemente, nosso apego por um animal, aqui em baixo; o cuidado que temos em amansá-lo e humanizá-lo, tudo tem sua razão de ser, tudo será pago: é um bom serviçal que preparamos antecipadamente para um mundo melhor.

Será assim um operário, pois aos seus semelhantes fica reservado todo trabalho material, todo esforço corporal: carga ou construção, semeadura ou colheita. Para tudo isto a Suprema Inteligência preparou um corpo que participa simultaneamente das vantagens do animal e das do homem. Podemos fazer uma ideia por um esboço de Palissy, representando alguns desses animais muito entretidos a jogar bola. A melhor comparação que poderia fazer seria com os faunos e os sátiros da Fábula. O corpo levemente peludo, apruma-se, no entanto, como o nosso; nalguns, as patas desapareceram, dando lugar a certas pernas que lembram ainda a forma primitiva e a dois braços robustos, singularmente implantados e terminados por duas verdadeiras mãos, se considerarmos a oposição dos polegares. Singularmente, a cabeça não é tão aperfeiçoada quanto o resto. Assim, a fisionomia reflete algo de humano, mas o crânio, o maxilar e sobretudo a orelha, em nada diferem sensivelmente daqueles dos animais terrestres. É, pois, fácil distingui-los entre si: este é um cão, aquele um leão.

Adequadamente vestidos de blusas e vestes muito semelhantes às nossas, só lhes falta a palavra para se parecerem com alguns homens daqui: eis precisamente o que lhes falta e aquilo que eles não poderiam fazer. Hábeis para se entenderem entre si, por meio de uma linguagem que nada tem da nossa, não mais se enganam quanto às intenções dos Espíritos que os dirigem: um olhar, um gesto lhes é bastante. A certos impulsos magnéticos, cujo segredo já conhecem os nossos domadores de feras, o animal adivinha e obedece sem murmurar e, o que é mais importante, voluntariamente, porque está fascinado. É assim que lhe é imposta toda tarefa pesada e que, com seu auxílio, tudo funciona regularmente, de um a outro extremo da escala social: o Espírito elevado pensa e delibera; o Espírito inferior age por sua própria iniciativa e o animal executa. Assim, a concepção, a execução e o fato se unem numa mesma harmonia e levam todas as coisas à sua conclusão, com mais rapidez e pelos meios mais simples e mais seguros.

Peço desculpas por esta digressão: ela era indispensável ao assunto que agora podemos abordar.

Enquanto esperamos os mapas prometidos, que facilitarão singularmente o estudo de todo o planeta, podemos, pelas descrições feitas pelos Espíritos, fazer uma ideia de sua grande cidade, da cidade por excelência, desse foco de luz e de atividade que eles concordam em chamar ─ o que nos parece estranho ─ pelo nome latino de Julnius.

“No maior de nossos continentes”, diz Palissy, “num vale de setecentas a oitocentas léguas de largura, para utilizar vosso sistema de medidas, um rio magnífico desce das montanhas do norte e, aumentado por uma porção de torrentes e ribeirões, forma em seu percurso sete ou oito lagos dos quais o menor mereceria entre vós o nome de mar. Foi sobre as bordas do maior desses lagos, batizado com o nome de a Pérola, que os nossos antepassados lançaram os alicerces de Julnius. Essa cidade primitiva ainda existe, venerada e guardada como preciosa relíquia. Sua arquitetura muito difere da vossa. Tudo isto eu te explicarei a seu tempo: saiba apenas que a cidade moderna fica a algumas centenas de metros da antiga. Apertado entre altas montanhas, o lago se derrama no vale por oito enormes cataratas, que formam outras tantas correntes isoladas e dispersas em todas as direções. Com o auxílio dessas correntes nós cavamos na planície uma porção de regatos, de canais e de lagos, reservando o solo firme apenas para as casas e os jardins. Daí resulta uma espécie de cidade anfíbia, como a vossa Veneza e da qual, à primeira vista, não se poderia dizer se foi construída sobre a terra ou sobre a água. Hoje nada te digo sobre quatro edifícios sagrados construídos a montante das cataratas, de modo que a água jorra em catadupa de seus próprios pórticos. Essas obras vos pareceriam incríveis por sua grandeza e por sua ousadia.

“Aqui descrevo a cidade terrestre, de certo modo material, cidade das ocupações planetárias, enfim aquela a que chamamos a Cidade Baixa. Tem suas ruas, ou melhor, os seus caminhos traçados para o serviço interno; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontes lançadas sobre os canais, para a passagem dos serviçais. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, enfim, não deve ser procurada no solo. Ela está no ar.

“Para o corpo material de nossos animais incapazes de voar[1] é necessária a terra firme, mas o nosso corpo fluídico e luminoso exige um alojamento aéreo como ele próprio, quase impalpável e móvel à nossa vontade. Nossa habilidade resolveu esse problema com o auxílio do tempo e das condições privilegiadas que o Grande Arquiteto nos concedeu. Bem compreendes que essa conquista dos ares era indispensável a Espíritos como os nossos. Nosso dia é de cinco horas e nossa noite igualmente de cinco, mas tudo é relativo, e para seres prontos a pensar e agir como nós; para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem comunicar-se magneticamente à distância, nosso dia de cinco horas equivaleria a uma semana de vossas atividades. Isso tudo ainda era muito pouco, em nossa opinião. A imobilidade da morada, o ponto fixo do lar eram um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo fácil deslocamento dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de nos transportarmos, assim como aos nossos, para qualquer lugar do planeta, à hora que bem quisermos, nossa existência no mínimo duplicou, e com ela, tudo quanto ela pode produzir de útil e de grande.

“Em certas épocas do ano”, acrescenta o Espírito, “em certas festas, por exemplo, verás aqui o céu obscurecido pela nuvem de habitações que vêm de todos os pontos do horizonte. É um curioso ajuntamento de moradias esbeltas, graciosas, leves, de todas as formas, de todas as cores, equilibradas em diversas alturas e continuamente em marcha, da cidade baixa para a cidade celeste. Alguns dias depois, faz-se o vazio pouco a pouco e todos esses pássaros se vão.”

Nada falta a essas moradas flutuantes, nem mesmo o encanto da verdura e das flores. Falo de uma vegetação sem similar entre vós, de plantas e até de arbustos que, pela natureza de seus órgãos, vivem, respiram, alimentam-se e se reproduzem no ar.

Diz ainda o mesmo Espírito:

“Temos esses tufos de flores enormes, cujas formas e nuanças nem podeis imaginar, e de uma textura tão delicada, que as torna quase transparentes. Balouçando-se no ar, onde largas folhas as sustêm, providas de gavinhas semelhantes às da videira, reúnem-se em nuvens de mil tons ou se dispersam ao sabor do vento e oferecem um espetáculo encantador aos transeuntes da cidade baixa... Imagina a graça dessas jangadas de verdura, desses jardins flutuantes que nossa vontade pode fazer e desfazer e que por vezes duram toda uma estação! Longos rastilhos de lianas e de ramos floridos se destacam dessas alturas e descem até o solo; cachos enormes se agitam, exalando perfume das pétalas que se destacam... Os Espíritos que viajam pelo ar aí estacionam: é um lugar de repouso e de reencontro e, se assim o desejarem, um meio de transporte para terminar uma viagem sem fadigas e em boa companhia.”

Um outro Espírito estava sentado sobre uma dessas flores no momento em que o evoquei. Disse-me ele:

“Neste instante é noite em Julnius e me acho sentado à distância, numa dessas flores do ar que só se abrem aqui à claridade de nossas luas. A meus pés dormita toda a cidade baixa; mas acima da minha cabeça e em volta de mim, a perder de vista, só há movimento e alegria no espaço. Dormimos pouco: nossa alma é muito desprendida, de modo que as necessidades do corpo não a tiranizam. A noite é feita mais para os nossos servos do que para nós. É a hora das visitas, das conversas longas, dos passeios solitários, dos devaneios, da música. Só vejo moradas aéreas resplendentes de luz ou jangadas de folhas e de flores carregadas de bandos alegres... A primeira de nossas luas ilumina toda a cidade baixa: é uma luz suave, comparável à dos vossos luares; mas, da margem do lago eleva-se a segunda, a de reflexos esverdeados, que dão a todo o rio o aspecto de um vasto gramado...”

É sobre a margem direita desse rio, “cuja água, diz o Espírito, dar-te-ia a impressão da consistência de um vapor muito leve”[2], que está construída a casa de Mozart, cujo desenho Palissy teve a bondade de me fazer reproduzir sobre cobre.

Apresento aqui apenas a fachada do lado sul. A grande entrada fica à esquerda, olhando a planície; à direita fica o rio; ao norte e ao sul estão os jardins. Perguntei a Mozart quem eram seus vizinhos.

─ Mais acima e mais abaixo, dois Espíritos que não conheces, mas à esquerda apenas um grande prado me separa do jardim de Cervantes.

A casa tem quatro faces, como as nossas, mas seria erro considerar isto como regra geral. É construída com uma certa pedra que os animais tiram das pedreiras do norte e cuja cor o Espírito compara aos tons esverdeados que por vezes toma o azul do céu, ao pôr do sol. Quanto a sua dureza, pode-se fazer uma ideia por esta comparação de Palissy: “que ela fundir-se-ia sob a pressão de nossos dedos humanos tão rapidamente quanto um floco de neve, posto seja uma das matérias mais resistentes daquele planeta! Nessas paredes os Espíritos esculpiram ou incrustaram estranhos arabescos que o desenho procura reproduzir. São ornamentos gravados na pedra e depois coloridos, ou incrustações feitas na solidez da pedra verde por um processo atualmente muito em voga e que mantém toda a graça dos contornos dos vegetais, toda a delicadeza de seus tecidos e toda a riqueza de seu colorido. “Uma descoberta”, acrescentou o Espírito, “que fareis um dia e que entre vós mudará muitas coisas.”

A grande janela da direita apresenta um exemplo desse gênero de ornatos: uma de suas bordas mais não é que um enorme caniço, cujas folhas foram conservadas. O mesmo ocorre no coroamento da janela principal, que imita a forma da clave de sol: são plantas sarmentosas enlaçadas e petrificadas. É por tal processo que eles obtêm a maior parte dos coroamentos dos edifícios, dos portões, das balaustradas, etc. Por vezes a planta é colocada na parede, com suas raízes, em condições de crescer livremente. Ela cresce, desenvolve-se, suas flores se espalham ao acaso, e o artista não as petrifica no lugar senão quando adquiriram todo o desenvolvimento desejado para a ornamentação do edifício. A casa de Palissy é quase que inteiramente decorada por esse processo.

Inicialmente destinado só aos móveis, depois aos batentes das portas e das janelas, esse gênero de ornamento aperfeiçoou-se pouco a pouco e acabou por invadir toda a arquitetura. Hoje não são petrificados apenas as flores e os arbustos, mas as próprias árvores, da raiz até a copa. Os palácios, como outros edifícios, praticamente não têm outras colunas.

Uma petrificação da mesma natureza serve também à decoração das janelas. Flores ou folhas muito grandes são habilmente despojadas de sua parte carnuda. Não resta mais que um feixe de fibras, tão finas quanto a mais fina musselina. Cristalizam-nas, e dessas folhas reunidas com arte constroem toda a janela, que apenas filtra para o interior uma luz muito suave. Também as impregnam de uma espécie de vidro líquido e colorido de todos os matizes, que endurece no ar e que transforma a folha numa espécie de vidraça. Do arranjo dessas folhas nas janelas resultam encantadores ramos transparentes e luminosos.

Quanto às dimensões dessas aberturas e a inúmeros outros detalhes que, à primeira vista, podem surpreender, vejo-me obrigado a uma explicação: a história da arquitetura em Júpiter exigiria um volume inteiro. Também desisto de falar no mobiliário, para me restringir, aqui, à disposição geral da casa.

Depois do que precede, o leitor deve ter compreendido que a casa do continente não deve ser para o Espírito mais que uma espécie de pousada.

A cidade baixa quase que só é frequentada por Espíritos de segunda categoria, encarregados dos interesses planetários, da agricultura, por exemplo, ou das trocas e da boa ordem que deve ser mantida entre os serviçais. Assim, todas as casas que estão no solo, geralmente dispõem de um pavimento térreo e um superior, o térreo destinado aos Espíritos que atuam sob a direção do senhor, também acessível aos animais; o outro reservado unicamente ao Espírito, que aí mora apenas ocasionalmente. Eis o que explica o fato de vermos nas diversas casas de Júpiter, nesta, por exemplo, como na de Zoroastro, uma escadaria e até uma rampa. Aquele que rasa a água, como uma andorinha e que pode correr sobre as hastes do trigo sem curvá-las, pode perfeitamente dispensar a escadaria e a rampa para penetrar na sua casa. Mas os Espíritos inferiores não têm o voo tão fácil. Não se elevam senão por movimentos irregulares e nem sempre a rampa lhes é inútil. Enfim, a escadaria é de absoluta necessidade para os animais serviçais, que apenas andam como nós. Estes últimos também possuem seus pavilhões, aliás muito elegantes, e que fazem parte de todas as grandes habitações, mas suas funções os chamam, constantemente, à casa do senhor, e é necessário facilitar-lhes a entrada e o trânsito interno. Daí essas construções originais, cuja base assemelha-se aos nossos edifícios terrestres e dos quais diferem inteiramente na parte superior.

Esta se distingue por uma originalidade que seríamos absolutamente incapazes de imitar. É uma espécie de flecha aérea que balança no topo do edifício, acima da grande janela e de seu original coroamento. A essa gávea delicada e fácil de deslocar está determinado, entretanto, no pensamento do artista, permanecer no lugar que lhe foi definido porque, sem repousar em coisa alguma no frontão, completa-lhe a decoração. Lamentavelmente a dimensão da prancha não permitiu encontrar espaço para ela.

Quanto à morada aérea de Mozart, cabe aqui apenas constatar a sua existência. Os limites deste artigo não permitem que me estenda sobre o assunto.

Não concluirei, entretanto, sem me explicar, de passagem, sobre o gênero de ornamentos que o grande artista escolheu para a sua morada. É fácil identificar-lhe a semelhança com a nossa música terrestre: a clave de sol é ali repetida com frequência e ─ coisa original ─ nunca a clave de fá! Na decoração do rés do chão encontramos um arco de violino, uma espécie de tiorba ou bandolim, uma lira e uma pauta de música. Mais acima há uma grande janela que lembra vagamente a forma de um órgão; as outras têm a aparência de grandes notas, mas as notas pequenas são abundantes por toda a fachada.

Seria erro concluir que a música de Júpiter seja comparável à nossa e que se represente pelos mesmos sinais. Mozart explicou-se sobre isto, de maneira a não deixar dúvidas. Mas, na decoração de suas casas, os Espíritos lembram a missão terrestre que lhes deu o mérito da encarnação em Júpiter e que resume magnificamente a feição de sua inteligência. Assim, na casa de Zoroastro são os astros e a chama que constituem todos os elementos decorativos.

Além disto, parece que esse simbolismo tem suas regras e seus segredos. Esses ornamentos todos não se dispõem ao acaso. Eles têm sua ordem lógica e sua significação precisa, mas é uma arte que os Espíritos de Júpiter se abstêm de fazernos compreender, pelo menos por enquanto, e sobre a qual não se explicam de bom grado.

Nossos antigos arquitetos também empregavam o simbolismo na decoração de suas catedrais. A Torre de São Tiago é um poema hermético, se dermos crédito à tradição. Portanto, não há motivo para nos admirarmos da originalidade da decoração arquitetônica em Júpiter. Se ela contraria as nossas ideias sobre a arte humana é que, na verdade, existe um abismo entre uma arquitetura que vive e fala e uma alvenaria inexpressiva como a nossa. Nisto, como em tudo o mais, a prudência nos permite evitar esse erro do relativismo, que quer reduzir tudo às proporções e aos hábitos do homem terreno. Se os habitantes de Júpiter morassem como nós, comessem, vivessem, dormissem e andassem como nós, não haveria muita vantagem em ir para lá. É porque o seu planeta difere muito do nosso que desejamos conhecê-lo e sonhamos com ele como nossa futura morada.

De minha parte, penso que não perdi meu tempo e ficaria muito feliz por me haverem os Espíritos escolhido para seu intérprete se os seus desenhos e as suas descrições inspirarem a um só crente o desejo de subir mais rapidamente para Julnius e a coragem de tudo fazer para consegui-lo.

VICTORIEN SARDOU

***

O autor desta interessante descrição é um desses adeptos fervorosos e esclarecidos que não temem confessar alto e bom som as suas crenças e colocam-se acima da crítica daqueles que não creem em nada além do seu círculo de ideias. Ligar seu nome a uma doutrina nova, desafiando sarcasmos, é uma coragem que não é dada a todos. Felicitamos ao Sr. V. Sardou porque a possui. Seu trabalho revela o distinto escritor que, jovem ainda, já conquistou um lugar de honra na literatura e alia ao talento de escritor profundos conhecimentos de sábio. É mais uma prova de que o Espiritismo não recruta entre os tolos e ignorantes. Fazemos votos para que o Sr. Sardou complete o mais breve possível o seu trabalho tão auspiciosamente começado. Se os astrônomos nos desvendam, por sábias pesquisas, o mecanismo do Universo, por suas revelações os Espíritos nos dão a conhecer o seu estado moral e, como eles mesmos dizem, é com o objetivo de motivar-nos ao bem, a fim de merecermos uma vida melhor.

ALLAN KARDEC.[3]

[1] Entretanto há que excetuar certos animais alados e destinados ao serviço do ar e aos trabalhos que entre nós exigiriam carpinteiros. É uma transformação da ave, como os animais acima descritos são uma transformação dos quadrúpedes.


[2] A densidade de Júpiter é de 0,23, ou seja, pouco mais ou menos um quarto da densidade da Terra. Tudo quanto o Espírito diz aqui é muito verossímil. Compreende-se que tudo é relativo e que nesse globo etéreo, tudo, como ele, seja etéreo.



[3] Paris. Tipografia de Cosson & Cia, Rua do Four-Saint-Germain, 43.







Setembro

Passa-se um fenômeno digno de registro na propagação do Espiritismo. Ressuscitado há apenas alguns anos das velhas crenças, apareceu entre nós, não como outrora, à sombra dos mistérios, mas em plena luz e à vista de todos.

Para uns foi objeto de curiosidade passageira, um divertimento que se punha de lado como um brinquedo, para tomar um outro. Para muitos não encontrou senão indiferença; para o maior número, a incredulidade, a despeito da opinião dos filósofos cujos nomes a cada momento são invocados como autoridades. Isto nada tem de surpreendente: o próprio Jesus convenceu a todo o povo judeu com os seus milagres? Sua bondade e a sublimidade de sua doutrina conquistaram-lhe graça perante os seus juízes? Não foi ele tratado como um impostor? E se não lhe aplicaram o epíteto de charlatão é que então era desconhecido esse vocábulo de nossa civilização moderna. Entretanto, homens sérios viram nos fenômenos que se passam em nossos dias algo mais que um motivo de frivolidade. Estudaram, aprofundaram-no com olhos de observador consciencioso e descobriram a chave de uma porção de mistérios até então incompreensíveis. Isto foi para eles um jacto de luz e eis que desses fatos saiu uma doutrina, uma Filosofia e, podemos dizer, uma Ciência, inicialmente divergente, conforme o ponto de vista ou a opinião pessoal do observador, mas com tendência, pouco a pouco, para uma unidade de princípios. A despeito da oposição interesseira de alguns e sistemática daqueles que pensam que a luz não pode sair senão de seu cérebro, esta doutrina encontra numerosos adeptos porque nos esclarece sobre os verdadeiros interesses, presentes e futuros, da Humanidade; corresponde à sua aspiração para o futuro que, de certo modo, se tornou palpável; enfim, porque satisfaz ao mesmo tempo à razão e às suas esperanças e dissipa as dúvidas que degeneravam em absoluta incredulidade.

Ora, com o Espiritismo, todas as filosofias materialistas ou panteístas caem por si mesmas; não é mais possível a dúvida referente à Divindade, à existência da alma, a sua individualidade e a sua imortalidade; seu futuro se nos apresenta como a luz do dia e sabemos que esse futuro, que sempre deixa uma porta aberta à esperança, depende de nossa vontade e dos esforços que façamos para o bem.

Enquanto não viram no Espiritismo algo mais que fenômenos materiais, só houve interesse por ele como espetáculo, porque falava aos olhos. Desde o momento, porém, em que se elevou à categoria de ciência moral, foi tomado a sério, pois falava ao coração e à inteligência e todos nele encontravam a solução daquilo que procuravam vagamente em si mesmos; uma confiança baseada na evidência substitui a incerteza pungente; do ponto de vista tão elevado em que nos coloca, as coisas deste mundo inferior se nos apresentam tão pequenas e mesquinhas que as vicissitudes deste mundo não passam de incidentes passageiros que suportamos com paciência e resignação; a vida corpórea não é mais que ligeira parada na vida da alma. Para nos servirmos da expressão de nosso sábio e espirituoso confrade Sr. Jobard, não é mais que uma hospedaria ordinária, onde não vale a pena desfazer as malas. Na Doutrina Espírita tudo é definido, tudo é claro, tudo fala à razão; numa palavra, tudo se explica e aqueles que a aprofundaram na sua essência, encontram nela uma satisfação interior a que não mais renunciam. Eis por que em tão pouco tempo conquistou tantas simpatias, e essas não são recrutadas no círculo estreito de uma localidade, mas no mundo inteiro. Se aí não estivessem os fatos para prová-lo, nós julgaríamos pela nossa Revista, que tem apenas alguns meses de existência, mas cujos assinantes, embora não se contem ainda aos milhares, estão espalhados por todos os pontos do globo. Além dos de Paris e dos departamentos, temo-los na Inglaterra, na Escócia, na Holanda, na Bélgica, na Prússia, em São Petersburgo, em Moscou, Nápoles, Florença, Milão, Gênova, Turim, Genebra, Madrid, Shangai, Batávia, Caiena, no México, no Canadá, nos Estados Unidos, etc.

Não mencionamos isto como bravata, mas como um fato característico. Para que um jornal recém-fundado e tão especializado seja desde logo procurado em regiões tão diversas e tão afastadas, é preciso que o assunto de que trata encontre partidários, do contrário, não o assinariam por simples curiosidade a milhares de léguas, ainda que fosse feito pelo melhor escritor. É, pois, por seu assunto que ele desperta interesse, e não por seu obscuro redator. Aos olhos dos leitores, portanto, seu objetivo é sério. Fica assim evidenciado que o Espiritismo tem raízes em todas as partes do mundo e, sob esse ponto de vista, vinte assinantes espalhados em vinte países diferentes provariam mais do que cem concentrados numa só localidade, pois não poderíamos supor tratar-se de obra de uma confraria.

A maneira por que até agora se tem propagado o Espiritismo, não merece atenção menos acurada. Se a imprensa tivesse feito reboar as suas vozes em favor dele; se o tivesse pregado; se, numa palavra, o mundo lhe tivesse dado ouvidos, poder-se-ia dizer que se havia propagado como todas as coisas que têm curso graças a uma reputação factícia, e que se deseja experimentar, mesmo que seja por curiosidade. Mas nada disto aconteceu. Em geral, a imprensa não lhe deu qualquer apoio voluntário. Ela o desprezou, ou se, a raros intervalos, dele falou, foi para ridicularizá-lo e mandar os seus adeptos para os manicômios, coisa pouco animadora para os que tivessem a veleidade de iniciar-se.

Apenas o Sr. Home mereceu a honra de algumas referências mais ou menos sérias, ao passo que os acontecimentos mais vulgares têm nela grande espaço. Aliás, é fácil ver-se, por sua linguagem, que os adversários falam do Espiritismo como os cegos falariam das cores: sem conhecimento de causa; sem exame sério e aprofundado e unicamente sob uma primeira impressão, por isso seus argumentos se limitam à negação pura e simples, pois não podemos elevar à categoria de argumentos as suas expressões facetas. Por mais espirituosas que sejam, as piadas não representam razões.

Entretanto, nem todo o pessoal da imprensa deve ser acusado de má vontade. Individualmente, nela conta o Espiritismo com partidários sinceros, e conhecemos diversos entre os mais destacados homens de letras.

Por que, então, guardam silêncio? É que, ao lado do problema de crença, há o da personalidade, muito poderoso neste século. Neles, como em muitos outros, a crença é concentrada e não expansiva. Além disso, eles são forçados a responder pelos de seu jornal, e esse jornalista receia perder assinantes se arvorar francamente uma bandeira cuja cor pudesse desagradar a alguns deles.

Perdurará esse estado de coisas? Não. Em breve o Espiritismo será como o magnetismo, do qual outrora se falava em voz baixa, e que hoje ninguém mais teme confessar.

Nenhuma ideia nova, por mais certa e bela que seja, se implanta instantaneamente no espírito das massas, e aquela que não encontrasse oposições seria um fenômeno insólito. Por que seria o Espiritismo uma exceção à regra geral? Às ideias, como aos frutos, é necessário tempo para amadurecer, mas a leviandade humana leva-nos a julgá-las antes da maturação ou sem que tenhamos o trabalho de examinar as suas qualidades íntimas.

Isto nos traz à mente a espirituosa fábula “A Macaquinha, o Macaco e a Noz”. Como se sabe, a macaquinha colhe uma noz com a casca ainda verde; mete-lhe os dentes, faz caretas e admira-se de que gostem de uma coisa tão amarga. Um velho macaco, menos superficial e por certo profundo pensador da sua espécie, apanha a noz, quebra-a, limpa-a, come-a e a considera deliciosa. Disto decorre uma grande moralidade, dirigida aos que julgam as coisas novas apenas pela casca.

O Espiritismo teve, pois, que marchar sem qualquer apoio estranho, e eis que em cinco ou seis anos vulgarizou-se com uma rapidez que toca as raias do prodígio. Onde adquiriu essa força, senão em si mesmo? É necessário, portanto, que haja em seu princípio alguma coisa muito poderosa para ser assim propagado sem os meios superexcitantes da publicidade. É que, conforme dissemos acima, quem quer que se dê ao trabalho de aprofundá-lo, nele encontra o que buscava, o que a razão lhe deixava entrever: uma verdade consoladora e, afinal de contas, haure nele a esperança e uma verdadeira satisfação.

Assim, as convicções adquiridas são sérias e duráveis e não opiniões levianas, nascidas de um sopro e por outro sopro destruídas.

Recentemente alguém nos dizia: “Encontro no Espiritismo uma esperança tão suave; adquiro nele tão doces e grandes consolações, que todo pensamento contrário tornar-me-ia infeliz, e sinto que meu melhor amigo tornar-se-ia odioso se tentasse subtrair-me a essa crença”. Quando uma ideia não tem raízes, pode ter um brilho fugaz, como essas flores que fazemos brotar à força; em breve, porém, por falta de sustento, morrem e ninguém mais delas se lembra. Aquelas que, ao contrário, têm base séria, crescem e persistem, e acabam por identificar-se de tal modo com os hábitos que mais tarde nos admiramos de haver outrora passado sem elas.

Se o Espiritismo não foi apoiado pela imprensa da Europa, dir-se-á que outro tanto não aconteceu na América. Isto é exato até certo ponto. Há na América, como aliás por toda parte, uma imprensa geral e uma imprensa especial. A primeira ocupou-se do Espiritismo certamente muito mais do que entre nós, embora menos do que supomos; aliás, há no seu meio órgãos hostis. A imprensa especial conta, só nos Estados Unidos, dezoito jornais espíritas, dos quais dez hebdomadários e vários de grande formato. Como se vê, estamos a esse respeito muito atrasados. Mas lá, como aqui, os jornais especializados se dirigem a um público específico. É evidente que uma gazeta médica, por exemplo, não terá a preferência dos arquitetos nem dos homens da lei; assim, um jornal espírita, salvo poucas exceções, só será lido pelos partidários do Espiritismo. O grande número de jornais americanos que tratam desta matéria provam uma coisa: eles têm leitores em número suficiente para mantê-los. Sem dúvida fizeram muito, mas a sua influência é, de um modo geral, puramente local. A maior parte deles é desconhecida do público europeu e os nossos jornais só muito raramente fazem deles algumas transcrições.

Dizendo que o Espiritismo se propagou sem o apoio da imprensa, referíamonos à imprensa geral, que se dirige a todos, àquela cuja voz atinge diariamente milhões de ouvidos; que penetra nos mais obscuros recantos; àquela que põe o anacoreta, no fundo de seu deserto, ao corrente do que se passa, do mesmo modo que informa os habitantes das cidades; enfim, da que semeia ideias a mancheias. Qual é o jornal espírita que se pode gabar de dar curso aos ecos do mundo? Ele fala às pessoas de convicções, mas não atrai a atenção dos indiferentes.

Dizemos a verdade quando proclamamos que o Espiritismo foi entregue às suas próprias forças, e se por si mesmo deu tão grande passo, como será quando dispuser da poderosa alavanca de grande publicidade! Enquanto espera esse momento, vai por toda parte fincando balizas; por toda parte seus ramos encontrarão escoras; por toda parte terá vozes cuja autoridade imporá silêncio aos detratores.

A qualidade dos adeptos do Espiritismo merece particular atenção. São recrutados nas camadas inferiores da Sociedade, entre gente iletrada? Não. Esses, pouco ou nada se preocupam com o Espiritismo: talvez dificilmente dele tenham ouvido falar. As mesas girantes talvez tenham encontrado entre eles poucos praticantes. Até aqui os seus prosélitos estão nas primeiras camadas da Sociedade: entre as pessoas esclarecidas e entre os homens de saber e de pensamento. Além disso, e isto é um fato notável, os médicos, que durante tanto tempo moveram uma guerra encarniçada ao magnetismo, aderem sem dificuldade a esta doutrina. Contamo-los em grande número, entre os nossos assinantes, tanto na França quanto no estrangeiro, em cujo número também se acha uma grande quantidade de homens superiores, sob todos os aspectos: celebridades científicas e literárias, altos dignitários, funcionários públicos, oficiais generais, negociantes, eclesiásticos, magistrados, etc., todos gente demasiado séria para assinar a título de passatempo um jornal como o nosso, que não se gaba de ser divertido, e ainda menos pensando nele encontrar somente fantasias.

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não é prova menos evidente desta verdade, pela escolha das pessoas que ela reuniu. Suas sessões são acompanhadas com interesse constante, com uma atenção religiosa e, podemos dizer, mesmo com avidez. Entretanto, só se ocupa de estudos graves e sérios, por vezes muito abstratos e não de experiências visando excitar a curiosidade. Falamos do que se passa aos nossos olhos, entretanto o mesmo podemos dizer de todos os centros que se ocupam do Espiritismo sob o mesmo ponto de vista, pois que, mais ou menos por toda parte ─ como haviam anunciado os Espíritos ─ o período de curiosidade chega ao declínio.

Esses fenômenos nos permitem penetrar numa ordem de coisas tão grande, tão sublime que, ao lado dessas graves questões, um móvel que se mexe ou que estala é um brinquedo de criança: é o abc da ciência.

Aliás, sabemos agora a que nos devemos ater em relação à qualidade dos Espíritos batedores e, de modo geral, à dos que produzem efeitos materiais. Eles foram chamados, com justiça, de saltimbancos do mundo espírita. Eis por que nos ligamos menos a eles do que aos que nos podem esclarecer.

Podemos destacar, na propagação do Espiritismo, quatro fases ou períodos distintos:

1.º ─ O da curiosidade, no qual os Espíritos batedores representaram o papel principal, visando chamar a atenção e preparar os caminhos.

2.º ─ O da observação, no qual entramos, e que também pode ser chamado de período filosófico. O Espiritismo é aprofundado e se depura; tende para a unidade de doutrina e se constitui em Ciência.

Virão a seguir:

3.º ─ O período de admissão, no qual o Espiritismo ocupará um lugar oficial entre as crenças universalmente reconhecidas.

4.º ─ O período de influência sobre a ordem social. Então, sob a influência dessas ideias, a Humanidade conquistará um novo perfil moral. Essa influência é, desde já, individual. Mais tarde agirá sobre as massas, para felicidade geral

Assim, por um lado vemos uma crença que por si mesma se espalha pelo mundo inteiro, aos poucos e sem os recursos usuais da propaganda forçada, e por outro lado essa mesma crença que lança raízes, não nas baixas camadas da Sociedade, mas na sua parte mais esclarecida. Não haverá neste duplo aspecto algo de muito característico e que dá o que pensar a todos quantos consideram o Espiritismo um sonho vazio? Ao contrário de muitas outras ideias que vêm debaixo, informes e desnaturadas, e que só lentamente penetram nas camadas superiores, onde se depuram, o Espiritismo parte do alto e só atingirá as massas quando desembaraçado das ideias falsas, inseparáveis das coisas novas.

Temos entretanto de convir que, entre muitos adeptos, existe apenas uma crença latente. Nuns o medo do ridículo, noutros o receio de se prejudicar pelo choque de certas susceptibilidades, impedem-nos de proclamar bem alto de suas opiniões. Isto é sem dúvida pueril e bem o compreendemos. Não se pode pedir a certas pessoas aquilo que a Natureza não lhes deu: a coragem de enfrentar o “que dirão disto”; mas quando o Espiritismo estiver em todas as bocas ─ e esse tempo não está longe ─ essa coragem atingirá os mais tímidos.

A este respeito já se opera uma notável mudança, de algum tempo para cá. Já se fala mais abertamente; já se arriscam, e isto faz com que se abram os olhos dos próprios antagonistas, que perguntam se é prudente, no interesse de sua própria reputação, atacar uma crença que, queiram ou não queiram, por toda parte se infiltra e encontra apoio nas altas camadas sociais. Assim, o epíteto de louco, tão prodigalizado aos adeptos, começa a tornar-se ridículo. É um lugar-comum que se torna trivial, porque em breve os loucos serão mais numerosos que os sensatos e mais de um crítico já se colocou do seu lado. Aliás, é o cumprimento daquilo que foi anunciado pelos Espíritos, quando diziam: Os maiores adversários do Espiritismo tornar-se-ão os seus mais ardentes partidários e propagandistas.

Nos curiosos documentos célticos, publicados em nosso número de abril, vimos que a doutrina da reencarnação era professada pelos druidas, segundo o princípio da marcha ascendente da alma humana, a qual percorria os vários graus de nossa escala espírita.

Todos sabem que a ideia de reencarnação remonta à mais alta Antiguidade e que o próprio Pitágoras a havia haurido entre os hindus e egípcios. Assim, não é de admirar que Platão, Sócrates e outros partilhassem de uma opinião admitida pelos mais ilustres filósofos daqueles tempos. O que talvez é ainda mais notável é encontrar, desde aquela época, o princípio da doutrina da escolha das provas, hoje ensinada pelos Espíritos, e que pressupõe a reencarnação, sem a qual ela não teria razão de ser.

Não discutiremos hoje essa teoria, que estava tão longe do nosso pensamento quando os Espíritos no-la revelaram, que nos surpreendeu de modo estranho porque, ─ confessamos com toda humildade ─ o que Platão havia escrito acerca desse assunto especial nos era então completamente desconhecido, outra prova, entre milhares, de que as comunicações que nos foram feitas em absoluto não refletiam nossa opinião pessoal. Quanto à de Platão, apenas constatamos a ideia central, ficando a cada um a fácil tarefa de imaginar a forma sob a qual ela é apresentada e julgar os pontos de contato que, em certos detalhes, ela pode ter com a nossa teoria atual. Em sua alegoria do Fuso da Necessidade, ele imagina um diálogo entre Sócrates e Glauco e atribui ao primeiro o discurso que se segue, sobre as revelações de Er, o Armênio, personagem fictício, segundo todas as probabilidades, embora alguns o tomem por Zoroastro.

Compreende-se facilmente que a descrição não passa de um quadro imaginado com o fito de desenvolver a ideia principal: a imortalidade da alma; a sucessão das existências; a escolha das existências por efeito do livre-arbítrio; enfim, as consequências felizes ou infelizes da escolha, por vezes imprudente. Todas estas proposições se encontram no Livro dos Espíritos, e confirmam os numerosos fatos citados nesta Revista.

“O relato que vos quero fazer”, diz Sócrates a Glauco, “é o de um homem de coração, Er, o Armênio, originário da Panfília. Ele tinha sido morto numa batalha. Dez dias depois, quando levavam os cadáveres já desfigurados dos que com ele haviam caído, o dele foi encontrado são e intacto. Transportaram-no para casa, a fim de fazerem os funerais e no segundo dia, quando estava sobre a fogueira, ele reviveu e contou o que tinha visto na outra vida.

“Logo que sua alma saiu do corpo, pôs-se a caminho com uma porção de almas, chegando a um lugar maravilhoso, onde se viam na Terra duas aberturas, próximas uma da outra, e no Céu duas outras, correspondentes àquelas. Entre essas duas regiões havia juízes assentados. Assim que eles pronunciavam uma sentença, mandavam que os justos tomassem o caminho da direita, por uma das aberturas do Céu, depois de lhes haver posto no peito um cartaz com a sentença favorável; e mandavam que os maus tomassem o caminho da esquerda, nos abismos, levando às costas um cartaz semelhante ao primeiro, no qual se achavam escritas todas as suas ações.

“Quando chegou sua vez, declararam os juízes que ele devia levar aos homens a notícia do que se passava nesse outro mundo e determinaram que escutasse e observasse tudo quanto se lhe oferecesse.

“A princípio ele viu que as almas julgadas desapareciam: umas iam para o Céu, outras desciam à Terra pelas duas aberturas correspondentes. Enquanto isso, pela segunda abertura da Terra viu saírem almas cobertas de poeira e de imundícies, enquanto que pela outra porta do Céu desciam outras almas, puras e sem mácula.

“Elas pareciam vir todas de uma longa viagem e paravam prazenteiras num prado, como se estivessem num local de reunião. As conhecidas saudavam-se umas às outras e pediam informações do que se passara nos lugares de onde vinham: do Céu e da Terra. Aqui, entre gemidos e lágrimas, relembravam tudo quanto haviam sofrido ou visto sofrer quando estagiaram na Terra; ali, narravam as alegrias do Céu e a felicidade de contemplar as maravilhas divinas.

“Seria demasiadamente longo seguir todo o discurso do Armênio, mas eis, em suma, o que ele dizia:

“Cada uma das almas era condenada a dez vezes o sofrimento das injustiças cometidas durante a vida. A duração de cada punição era de cem anos, duração natural da vida humana, a fim de que o castigo fosse sempre o décuplo para cada crime. Assim, aqueles que haviam feito morrer os seus semelhantes em massa; atraiçoado cidades ou exércitos; reduzido seus concidadãos à escravidão ou cometido outras perversidades, eram atormentados ao décuplo para cada crime. Ao contrário, aqueles que haviam semeado o bem em seu redor; que tinham sido justos e virtuosos, na mesma proporção recebiam a recompensa de suas boas ações.

“O que ele dizia das crianças que a morte leva pouco depois do nascimento, merece pouca consideração, mas ele garantia que ao ímpio, ao filho desnaturado e ao homicida estavam reservados os mais cruéis sofrimentos e ao homem religioso e ao bom filho, as maiores alegrias.

“Ele estava presente quando uma alma perguntou a uma outra onde estava o grande Ardieu. Esse Ardieu tinha sido tirano numa cidade da Panfília, mil anos antes; tinha assassinado seu velho pai e seu irmão mais velho e diziam que havia praticado vários outros crimes enormes. Foi a seguinte a resposta da alma: ‘Ele não vem, e jamais virá até aqui. Todos nós fomos testemunhas, a tal respeito, de um espetáculo horrível. Quando estávamos para sair do abismo, depois de havermos cumprido as nossas penas, vimos Ardieu e um grande número de criaturas, a maior parte das quais eram tiranos como ele, ou seres que, em situação particular, haviam cometido grandes crimes. Eles faziam vãos esforços para subir, e todas as vezes que esses culpados, cujos crimes não tinham remédio ou não haviam sido expiados suficientemente, tentavam sair, o abismo os repelia rugindo. Então personagens hediondas, de corpos inflamados, que lá se encontravam, acorriam a esses rugidos. A princípio conduziam à viva força alguns desses criminosos. Quanto a Ardieu e aos outros, amarraram-nos pelos pés, pelas mãos e pela cabeça e, tendo-os derrubado por terra e ferido a pancadas, arrastaram-nos para fora da estrada, através de espinheiros sangrentos, repetindo às sombras, à medida que essas passavam: Eis os tiranos e os homicidas. Nós os arrastamos para lançá-los no Tártaro[1].’

“Essa alma acrescentava que entre tantas coisas terríveis, nada lhes causava mais pavor que o mugido do abismo e que era uma alegria extrema poder sair em silêncio.

“Tais eram, mais ou menos, os julgamentos das almas, seus castigos e suas recompensas.

“Após sete dias de repouso naquele prado, as almas tiveram que partir, no oitavo, e puseram-se a caminho. Ao cabo de quatro dias de viagem viram, de uma elevação, uma luz imensa sobre toda a superfície do céu e da Terra, reta como uma coluna e semelhante ao arco-íris, porém mais brilhante e mais pura. Bastou-lhes um dia para alcançá-la. Então viram, mais ou menos no meio dessa muralha, a extremidade das correntes que a ligam aos Céus. É isto que os sustenta. É o envoltório do barco do mundo; é a vasta cintura que o circunda. No topo estava suspenso o Fuso da Necessidade, em redor do qual se formavam todas as circunferências[2].

“Em redor do fuso, a distâncias iguais, sentavam-se em tronos as três Parcas, filhas da Necessidade: Laquesis (Lachesis), Cloto (Clotho) e Átropos, vestidas de branco e coroadas com uma faixa. Elas cantavam, unindo-se ao concerto das Sereias (Sirènes): Laquesis, o passado; Cloto, o presente e Átropos, o futuro. De vez em quando Cloto tocava com a mão direita no exterior do fuso; com a esquerda Átropos imprimia movimento aos círculos interiores e Laquesis, ora com uma, ora com a outra mão, tocava alternativamente no fuso e nas balanças interiores.

“Logo que chegavam, as almas tinham que se apresentar a Laquesis. Para começar, um hierofante as colocava em fila, uma atrás da outra. Depois, tomando do colo de Laquesis as sortes ou números em cuja ordem cada alma deveria ser chamada, bem como as diversas condições humanas que lhes eram oferecidas para escolha, ele subia num estrado e assim lhes falava: ‘Eis o que diz a virgem Laquesis, filha da Necessidade: Almas passageiras, vós ides começar uma nova carreira e renascer na condição mortal. Não se vos designará o vosso gênio. Vós mesmas o escolhereis. Aquela que a sorte chamar em primeiro lugar escolherá, e sua escolha será irrevogável. A virtude a ninguém pertence. Ela se liga àquele que a honra, e abandona aquele que a despreza. Cada um é responsável pela escolha. Deus é inocente.’

“A essas palavras ele espalhava os números e cada alma apanhava o que lhe caía à frente, exceto o Armênio, que não teve a mesma permissão. Em seguida, o hierofante apresentou-lhes todos os gêneros de vida, em número bem maior do que o das almas ali reunidas. A variedade era infinita. Encontravam-se ao mesmo tempo todas as condições humanas e de animais. Havia tiranias, algumas que duravam até a morte e outras que se interrompiam bruscamente e acabavam na pobreza, no exílio e no abandono. A ilustração se mostrava sob muitos aspectos: era possível escolher a beleza, a arte de agradar, os combates, a vitória ou a nobreza de raça. Estados completamente obscuros em todos os sentidos, ou intermediários, misturas de riqueza e pobreza, de saúde e de doença eram oferecidos à escolha. Havia também a mesma variedade nas condições de mulher.

“Evidentemente, meu caro Glauco, isto é uma prova dura para a Humanidade. Que cada um de nós medite e abandone todos os estudos vãos para entregar-se à ciência que faz a felicidade do homem. Busquemos um mestre que nos ensine a distinguir entre o bom e o mau destino e a escolher todo o bem que o Céu nos proporciona. Examinemos com ele quais as situações humanas, isoladas ou em conjunto, que conduzem às boas ações: se a beleza, por exemplo, junto com a pobreza ou com a riqueza, ou se certa disposição de espírito deve produzir a virtude ou o vício; qual a vantagem de um nascimento brilhante ou comum: a vida privada ou pública, a força ou a fraqueza, a instrução ou a ignorância, enfim tudo quanto o homem recebe da Natureza e tudo quanto tem em si mesmo. Esclarecidos pela consciência, decidamos qual a sorte que a nossa alma deve preferir. Sim, o pior dos destinos é aquele que a tornasse injusta, e o melhor, aquele que incessantemente a conformasse à virtude. Tudo o mais nada é para nós. Esqueceríamos que não há escolha mais salutar depois da morte do que durante a vida! Ah! Que este dogma sagrado para sempre se identifique com a nossa alma, a fim de que ela não se deixe lá em baixo fascinar nem pelas riquezas, nem pelos outros males dessa natureza e que, atirando-se arduamente sobre a condição de tirano ou qualquer outra semelhante, não se exponha a cometer um grande número de males sem remédio e a sofrê-los ainda maiores.

“Segundo o relato de nosso mensageiro, teria dito o hierofante: ‘Àquele que escolher por último, desde que o faça com discernimento e que seja coerente em sua conduta, pode ser prometida uma vida feliz. O que escolher em primeiro lugar, guarde-se de ser muito confiante, e o que escolher por último, não se desespere.’ Então aquele que a sorte chamara em primeiro lugar avançou às pressas e escolheu a mais importante tirania. Arrastado por sua imprudência e por sua avidez e sem atentar bastante para o que estava fazendo, não percebeu a fatalidade ligada ao objeto de sua escolha e que um dia fá-lo-ia comer a carne de seus próprios filhos e cometer muitos outros crimes horríveis. Entretanto, quando considerou a sorte que havia escolhido, gemeu, lamentou-se e, esquecendo as lições do hierofante, acabou acusando como responsáveis por seus males a fortuna, os gênios, tudo, menos a si próprio[3]. Essa era uma daquelas almas que vinham do Céu. Ela tinha vivido, em existência precedente, num Estado bem governado e havia feito o bem, mais pela força do hábito do que por filosofia. Entre as almas que caíam em semelhantes enganos, as que vinham do Céu eram numerosas, pelo fato de não haverem sido provadas pelo sofrimento. Ao contrário, aquelas que, tendo passado pela morada subterrânea, tinham sofrido e visto sofrer, não escolhiam tão às pressas. Daí, independentemente da sorte na classificação para serem chamadas à escolha, resultava uma espécie de troca de bens e de males para a maior parte das almas. Assim, um homem que, a cada renovação de sua vida na Terra, se aplicasse constantemente à sã Filosofia e tivesse a felicidade de não ser aquinhoado com os últimos lugares, teria grande possibilidade, conforme o relato, não apenas de ser feliz neste mundo, mas ainda, durante sua estada na Terra, bem como no seu retorno, andaria por caminhos ligados ao Céu, e não pelas penosas veredas do abismo subterrâneo.

“Acrescentou o Armênio que era um espetáculo interessante ver de que maneira as almas faziam a escolha. Nada mais estranho e ao mesmo tempo mais digno de compaixão e de irrisão. Em geral a escolha era feita segundo os hábitos de vida anterior.

“Er tinha visto a alma que outrora pertencera a Orfeu escolher a alma de um cisne. Por ódio às mulheres por quem tinha sido morto, não queria dever a nenhuma delas o seu nascimento.

“A alma de Thomyris tinha escolhido a condição de rouxinol; reciprocamente, um cisne, bem como outros músicos como ele, tinham adotado a natureza do homem.

“Uma outra alma, chamada em vigésimo lugar, tomou a natureza de um leão: era a de Ajax, filho de Telamon. Ele detestava a Humanidade devido à recordação do julgamento que lhe havia tirado as armas de Aquiles.

“Veio depois a alma de Agamenon, cujas desgraças o tornavam inimigo dos homens. Tomou a condição de águia.

“Ao meio a cerimônia, a alma de Atalanta foi chamada a escolher. Tendo considerado as grandes honras tributadas aos atletas, não resistiu ao desejo de ser um deles.

“Epeu, construtor do cavalo de Troia, tornou-se uma mulher industriosa.

“A alma do bobo Tersita, uma das últimas a apresentar-se, revestiu a forma de um macaco.

“A alma de Ulisses, que o sorteio havia colocado por último, também veio escolher. Como a recordação de seus longos revezes lhe tivesse tirado toda a ambição, procurou demorada e penosamente e encontrou, num recanto, a vida tranquila de um homem a quem todas as outras almas haviam deixado de lado. Dando-se conta de sua opção, aquela alma disse que não teria feito outra escolha, mesmo se tivesse sido a primeira a ser chamada.

“Os animais, sejam quais forem, passam igualmente por corpos uns dos outros ou por corpos humanos. Os que foram maus tornam-se animais ferozes e os bons, animais domésticos.

“Depois que todas as almas haviam feito a escolha de sua condição, aproximaram-se de Laquesis, segundo a ordem de escolha. A Parca deu a cada uma o gênio de sua preferência, a fim de lhe servir de guardião durante a vida e de ajudála a cumprir o seu destino. Para começar, esse gênio as conduzia a Cloto que, com a mão e com um giro do fuso, confirmava o destino escolhido. Depois de haver tocado no fuso, o gênio a conduzia a Átropos, que enrolava o fio para tornar irrevogável aquilo que havia sido fiado por Cloto. A seguir, avançavam para o trono da Necessidade, ao pé do qual a alma e seu gênio passavam juntos. Depois que todas haviam passado, dirigiram-se para uma planície do Letes, o Esquecimento[4], onde experimentaram um calor insuportável, porque aí não havia árvore nem plantas. Caindo a tarde, passaram a noite junto ao rio Ameles (ausência dos pensamentos sérios), cujas águas que todos eram obrigados a beber, não podiam ser contidas em nenhum vaso. Os imprudentes bebiam demais, por isso perdiam completamente a memória. Em seguida adormeciam, mas lá pela meia-noite ouviu-se um grande trovão e um tremor de terra. Logo as almas foram dispersas para todos os lados, em direção aos locais de seu nascimento terrestre, como estrelas que de repente brilhassem no céu. Quanto a si, dizia Er, tinha sido impedido de beber da água do rio; entretanto não sabia onde nem quando sua alma se havia religado ao seu corpo. Pela manhã, no entanto, tendo aberto os olhos de repente, percebeu que estava deitado sobre a fogueira.

“Tal é o mito, caro Glauco, que a tradição conservou até hoje. Ele pode preservar-nos de nossa perda. Se lhe dermos fé, passaremos alegremente o Letes e manteremos nossa alma purificada de toda mancha”.





[1] Segundo a mitologia pagã, Erebo era um lugar no centro da Terra onde ficavam as almas dos mortos. Estava dividido em duas partes: os Elísios para os justos e o Tártaro para os pecadores. Erebo também é o nome do filho de Caos e de Noite, transformado em rio do Inferno, por haver ajudado os Gigantes na guerra contra Júpiter, enquanto que Abseu, filho do Tártaro e da Terra, foi um daqueles gigantes que, com os Titãs, tentaram escalar o céu tendo sido precipitado por Júpiter no inferno. (N. do T.).


[2] São as diversas esferas dos planetas ou diversos andares do céu, girando ao redor da Terra, fixada no eixo daquele fuso (V. COUSIN).

Obs.: Esta nota é de Victor Cousin, filósofo francês (1792-1867), chefe da Escola eclética racionalista e tradutor das obras de Platão. (N. do T.).


[3] Os Antigos não emprestavam ao vocábulo tirano o sentido que hoje lhe damos. Esse nome era dado a todos aqueles que se apoderavam do poder soberano, quaisquer que fossem as suas ações, boas ou más. A História cita tiranos que fizeram o bem. Entretanto, como na maioria dos casos acontece que, ou para satisfazer a ambição, ou para se manter no poder, o fizessem através de crimes, mais tarde o vocábulo tornou-se sinônimo de cruel e se aplica a todo indivíduo que abusa de sua autoridade.

Escolhendo e mais importante tirania, a alma de que fala Er não tinha buscado a crueldade, mas apenas o mais largo poder, como condição de sua nova existência. Quando sua escolha se tornou irrevogável, percebeu que esse mesmo poder arrastá-la-ia ao crime e lamentou tê-la feito, por isso acusando a todos, menos a si mesma. É a história da maioria dos homens que são artífices de sua própria desgraça, mas que se recusam a confessá-lo.


[4] Alusão ao esquecimento que sucede a passagem de uma existência a outra.


O seguinte fato é relatado pelo Patrie de 15 de agosto de 1858:

“Na última terça-feira meti-me a vos contar, talvez com muita imprudência, uma história emocionante. Eu deveria ter pensado que não há histórias emocionantes: há apenas histórias bem contadas, e que o mesmo fato, contado por pessoas diferentes, pode fazer o auditório adormecer, como pode dar-lhe arrepios de medo. Como me entretive com um companheiro de viagem de Cherburgo a Paris, o Sr. B..., de quem ouvi uma anedota maravilhosa! Se eu a tivesse taquigrafado esta narração, por certo teria oportunidade de vos causar arrepios.

“Mas cometi o erro de confiar em minha memória detestável, o que lamento profundamente. Enfim, seja como for, aqui está a aventura cujo desenlace prova que hoje, 15 de agosto, ela é realmente um fato.

“O Sr. de S..., um nome histórico ainda hoje cercado de consideração, era oficial durante o Diretório[1]. Por prazer ou a serviço, ele dirigia-se à Itália.

“Num de nossos departamentos centrais foi surpreendido pela noite e sentiu-se feliz por achar abrigo numa espécie de barraca suspeita, onde lhe ofereceram uma ceia ordinária e um catre no celeiro.

“Habituado à vida de aventuras e ao rude ofício da guerra, o Sr. de S... comeu com apetite, deitou-se sem murmurar e dormiu profundamente.

“Seu sono foi perturbado por uma terrível aparição. Ele viu um espectro levantar-se na sombra, marchar pesadamente para o seu catre e parar à cabeceira. Era um homem de uns cinquenta anos, cujos cabelos grisalhos e assanhados estavam vermelhos de sangue; tinha o peito nu e a garganta cheia de rugas estava cortada e com ferimentos abertos. Ficou um momento silencioso, fixando os olhos negros e profundos sobre o viajante adormecido; depois sua figura pálida animou-se; suas pupilas tornaram-se brilhantes como dois carvões acesos. Pareceu fazer um esforço violento e com voz surda e trêmula pronunciou estas palavras estranhas:

“─ Conheço-te! És soldado como eu e como eu homem de coragem e incapaz de faltar à palavra. Venho pedir-te um serviço, que outros prometeram e não cumpriram. Há três semanas eu estou morto. O dono desta casa, ajudado pela mulher, surpreendeu-me dormindo e cortou-me a garganta. Meu cadáver está escondido sob um monte de adubo, à direita, no fundo do galinheiro. Vai amanhã procurar a autoridade local, traze dois polícias e manda enterrar-me. O dono da casa e sua mulher trair-se-ão e tu os entregarás à justiça. Adeus. Conto com a tua piedade. Não esqueças o pedido de um antigo companheiro de armas.

“Despertando, o Sr. de S... lembrou-se do sonho. Apoiou a cabeça no cotovelo e pôs-se a meditar. Sua emoção era viva, mas dissipou-se aos primeiros clarões do dia e, como Athalie, disse:

“─ Um sonho! Deveria eu inquietar-me por causa de um sonho?

“Ele violentou seu coração e, escutando apenas a voz da razão, afivelou a valise e continuou a jornada.

“À tardinha, quando completou mais uma etapa de sua viagem, parou para passar a noite num albergue. Mas, apenas tinha fechado os olhos, o espectro apareceu-lhe uma segunda vez, triste e quase ameaçador.

“─ Admiro-me e aflijo-me”, disse-lhe o fantasma, “de ver um homem como tu perjurar e faltar ao seu dever. Esperava mais de tua lealdade. Meu corpo está insepulto e meus assassinos vivem em paz. Amigo, minha vingança está em tuas mãos. Em nome da honra, intimo-te a que voltes sobre os teus passos”.

“O Sr. de S... passou o resto da noite numa grande agitação. Amanhecendo, envergonhou-se de seu terror e continuou a viagem.

“À tarde, uma terceira parada e uma terceira aparição. Desta vez o fantasma estava mais lívido e mais terrível. Um sorriso amargo errava em seus lábios brancos. Ele falou com voz rude:

“─ Parece que te julguei mal; que teu coração, como o dos outros, é insensível aos rogos dos infelizes. Pela última vez venho invocar o teu auxílio e apelar à tua generosidade. Volta a X e vinga-me, ou sê maldito.

“Dessa vez, o Sr. de S... não vacilou. Deu meia volta e caminhou até o albergue suspeito onde havia passado a primeira dessas noites lúgubres. Foi à casa do juiz e pediu dois policiais. À sua vista e à vista dos dois policiais, os assassinos empalideceram e confessaram o crime como se uma força superior lhes houvesse arrancado a confissão fatal.

“O processo foi preparado rapidamente, tendo eles sido condenados à morte.

“Quanto ao pobre oficial, cujo cadáver foi encontrado sob um monte de adubo, à direita, no fundo do galinheiro, foi sepultado em terra santa e os padres oraram pelo repouso de sua alma.

“Cumprida a sua missão, o Sr. de S... apressou-se em deixar a região e correu para os Alpes, sem olhar para trás.

“A primeira vez que se deitou numa cama, o fantasma apareceu mais uma vez ante os seus olhos, já não feroz e irritado, mas doce e benevolente e lhe disse:

“─ Obrigado, meu irmão. Desejo agradecer o serviço que me prestaste. Mostrar-me-ei a ti ainda uma vez, uma só. Duas horas antes de tua morte virei avisar-te. Adeus.

“O Sr. de S... tinha então cerca de trinta anos. Durante trinta anos nenhuma visão veio perturbar a quietude de sua vida. Mas em 182..., a 14 de agosto, véspera da festa de Napoleão, o Sr. de S..., que havia continuado fiel ao partido bonapartista, tinha reunido num grande jantar cerca de vinte antigos soldados do império. A festa fora muito alegre e o anfitrião, embora velho, estava saudável e vigoroso. Achavamse no salão e tomavam café. O Sr. de S... teve vontade de tomar uma pitada e lembrou-se de que havia deixado no quarto a caixa de rapé. Como tinha por hábito servir-se ele mesmo, deixou os convivas por um momento e subiu ao primeiro andar, onde ficava o seu quarto.

“Ele não havia levado luz.

“Quando entrou no longo corredor que conduzia ao quarto, parou de repente e foi forçado a apoiar-se à parede. À sua frente, na extremidade da galeria, erguia-se o fantasma do homem assassinado. O fantasma não pronunciou nenhuma palavra; não fez nenhum gesto e depois de um instante, desapareceu.

“Era o aviso prometido.

“O Sr. de S..., que tinha bom ânimo, depois daquele instante de desfalecimento recobrou a coragem e o sangue frio, foi até o quarto, tomou a caixa de rapé e desceu ao salão.

“Quando ali penetrou, nenhum sinal de emoção transparecia-lhe no rosto. Misturou-se aos demais, na conversação, e durante uma hora mostrou toda sua jovialidade e seu habitual bom humor.

“À meia-noite os convidados se retiraram. Então ele sentou-se e passou três quartos de hora em recolhimento. Depois, tendo posto seus negócios em ordem, embora não sentisse nenhum mal-estar, recolheu-se ao quarto de dormir.

“Quando abriu a porta, um tiro o estendeu morto, exatamente duas horas após a aparição do fantasma.

“A bala que lhe arrebentou o crânio era destinada ao seu criado.”

HENRY D’AUDIGIER

Quis o autor do artigo cumprir a qualquer preço a promessa feita ao jornal, de contar algo de emocionante, para o que teria recorrido a uma história que relata com fecunda imaginação, ou a história é verdadeira? Não podemos garantir. Aliás, isto não tem importância. Real ou fictícia, o essencial é saber se o fato é possível.

Então não hesitemos e digamos: Sim, os avisos de além-túmulo são possíveis. Aí estão, para atestá-los, os numerosos exemplos cuja autenticidade não poderia ser posta em dúvida. Se, pois, a anedota do Sr. Henry d’Audigier é apócrifa, muitas outras do mesmo gênero não o são e, diremos mesmo, esta nada oferece de extraordinário.

A aparição teria ocorrido em sonho, o que é muito banal. Entretanto, é notório que podem produzir-se visualmente, em estado de vigília. O aviso no instante da morte não é insólito, mas os fatos desse gênero já são muito mais raros, pois, em sua sabedoria, a Providência nos oculta o momento fatal. Assim, só excepcionalmente ele nos é revelado e por motivos que nos são desconhecidos.

Eis aqui outro exemplo de um caso análogo, mais recente, menos dramático, mas cuja exatidão podemos garantir.

O Sr. Watbled, negociante e presidente do tribunal de comércio de Boulogne, expirou a 12 de julho último nas seguintes circunstâncias: Sua esposa, falecida havia doze anos, cuja morte lhe havia causado um pesar incessante, apareceu-lhe durante duas noites consecutivas, nos primeiros dias de junho, e lhe disse: “Deus teve piedade de nossas penas e quer que em breve nos unamos.” Acrescentou que o encontro estava marcado para o próximo dia 12 de julho e, em consequência, ele deveria preparar-se. Com efeito, desde esse momento nele se operou uma notável transformação: definhava dia a dia. Em breve prostrou-se e, sem o menor sofrimento, exalou o último alento no dia marcado, nos braços de seus amigos.

O fato em si não é contestável. Os cépticos apenas poderão discutir a causa, que não deixarão de atribuir à imaginação.

Sabe-se que predições semelhantes, feitas por leitores de buena-dicha, não poucas vezes tiveram um desenlace fatal. Neste caso compreende-se que, excitada a imaginação por essa ideia, os órgãos possam experimentar uma alteração radical. Mais de uma vez o medo de morrer causou a morte. Mas aqui as circunstâncias são outras.

Os que se aprofundaram nos fenômenos do Espiritismo podem perfeitamente dar-se conta do fato; quanto aos cépticos, têm apenas um argumento: “Não creio, portanto isto não é possível.” Interrogados a respeito, os Espíritos responderam: “Deus escolheu esse homem, conhecido por todos, a fim de que o acontecimento se espalhasse e desse o que pensar.” Os incrédulos incessantemente pedem provas. Deus lhas dá a cada momento, através dos fenômenos que brotam de todos os lados.

Mas a eles se aplicam estas palavras: “Têm olhos, mas não veem; têm ouvidos, mas não ouvem.”



[1] Nome dado ao Governo da França que foi de 5 de brumário do ano IV (27 de outubro de 1795) a 18 de brumário do ano VIII (9 de novembro de 1788). derrubado pelo General Bonaparte. (N. do T.)




Na sua Histoire de l’Ordre du Saint-Espirit, edição de 1778, De Saint-Foy cita a passagem seguinte, tirada de uma coletânea do marquês Christophe Juvenal des Ursins, lugar-tenente geral de Paris, escrita pelos fins do ano de 1572 e impressa em 1601.

“A 31 de agosto de 1572, oito dias após o massacre de São Bartolomeu, eu tinha ceado no Louvre, em casa da Senhora de Fiesque. Durante todo o dia havia feito muito calor. Fomos sentar-nos sob uma pequena latada, ao lado do riacho, para respirar ar fresco. De repente ouvimos no ar um barulho horrível de vozes tumultuosas e de gemidos misturados a gritos de raiva e de furor. Ficamos imóveis, transidos de espanto, olhando-nos de vez em quando, mas sem coragem de falar. Creio que esse barulho durou cerca de meia hora. É certo que o rei Carlos IX o ouviu, ficou apavorado e não dormiu o resto da noite; contudo não fez comentários no dia seguinte, mas foi notado o seu ar sombrio, pensativo e desvairado.

“Se algum prodígio não deve encontrar incrédulos, este é um, atestado por Henrique IV. Em seu livro I, capítulo 6, página 561, diz d’Aubigné: Várias vezes aquele príncipe nos contou, entre os seus mais familiares e íntimos cortesãos ─ e tenho várias testemunhas vivas de que jamais no-lo repetiu sem se sentir tomado de pavor ─ que oito dias depois do massacre da Noite de São Bartolomeu, havia visto uma grande quantidade de corvos pousar e crocitar sobre o pavilhão do Louvre; que na mesma noite, Carlos IX, duas horas depois de se haver deitado, saltou da cama, fez com que os camareiros se levantassem e mandou dar busca, pois ouvia no ar um grande barulho de vozes e gemidos, em tudo semelhantes aos que se ouviam na noite do massacre; que todos esses gritos eram tão chocantes, tão marcados e tão distintamente articulados, que Carlos IX pensou que os inimigos dos Montmorency e de seus partidários estivessem atacando de surpresa, pelo que mandou um destacamento de sua guarda para impedir um novo massacre. Os guardas informaram que Paris estava tranquila e que todo aquele barulho que se ouvia estava no ar.

OBSERVAÇÃO: O fato relatado por de Saint-Foy e por Juvenal des Ursins tem muita analogia com a história do fantasma que aparecia a Mademoiselle Clairon, relatada em nosso número de janeiro, com a diferença de que naquele caso foi um único Espírito a manifestar-se durante dois anos e meio, ao passo que depois da Noite de São Bartolomeu parece ter havido uma inumerável quantidade de Espíritos que fizeram o ar vibrar apenas por alguns instantes. Aliás, esses dois fenômenos têm evidentemente o mesmo princípio que os outros fatos contemporâneos da mesma natureza por nós já relatados, e deles não diferem senão pelo detalhe de forma. Interrogados sobre a causa desta manifestação, vários Espíritos responderam que era um castigo de Deus, o que é fácil de compreender.

Segundo o Courrier des États-Unis, vários jornais relataram o fato que se segue e que nos pareceu fornecer matéria para um estudo interessante. Diz o Courrier des États-Unis:

“Uma família alemã de Baltimore acaba de ficar vivamente emocionada por um caso singular de morte aparente. Doente desde muito tempo, a Sra. Schwabenhaus parecia ter exalado o último suspiro na noite de segunda para terça-feira. As pessoas que dela cuidavam observaram todos os sintomas da morte: o corpo ficou gelado, os membros se enrijeceram. Depois de ter prestado ao cadáver os últimos cuidados e quando tudo na câmara mortuária estava preparado para o enterro, os assistentes foram repousar. Em breve os seguiu o Sr. Schwabenhaus, esgotado pela fadiga. Ele estava mergulhado num sono agitado quando, cerca de seis horas da manhã, feriulhe o ouvido a voz da esposa. A princípio julgou-se vítima de um sonho, mas o seu nome, repetido várias vezes, em breve não lhe deixou mais dúvida. Precipitou-se para o quarto da esposa, e aquela que havia sido deixada como morta estava sentada no leito, aparentemente gozando de todas as faculdades e mais forte do que jamais havia estado desde o começo da doença.

“A Sra. Schwabenhaus pediu água e depois quis tomar chá e vinho. Então, pediu ao marido que fosse acalentar a criança que chorava no quarto vizinho, mas ele, que estava muito emocionado para isso, correu a chamar todas as pessoas da casa. A doente acolheu sorridente os amigos e empregados que se aproximaram trêmulos do seu leito. Ela não parecia surpresa com o aparato funerário que lhe feria os olhos: ‘Eu sei que vocês pensavam que eu estivesse morta, disse ela; entretanto, eu estava apenas adormecida. Durante esse tempo minha alma foi transportada às regiões celestes. Um anjo veio buscar-me e em poucos instantes transpusemos o espaço. O anjo que me conduzia era a filhinha que perdemos no ano passado... Oh! em breve irei unir-me a ela... Agora que gozei as alegrias do céu, gostaria de não viver mais aqui. Pedi ao anjo para vir mais uma vez beijar meu marido e meus filhos, mas em breve ele virá buscar-me.’

“Às oito horas, depois de se haver ternamente despedido do marido, dos filhos e de uma porção de pessoas que a rodeavam, a Sra. Schwabenhaus expirou realmente, conforme foi constatado pelos médicos, de maneira a não deixar mais dúvida.”

“Esse fato comoveu vivamente a população de Baltimore”.

Evocado numa sessão da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas no dia 27 de abril último, o Espírito da senhora Schwabenhaus manteve a seguinte conversa.

1. ─ Com o fito de nos instruirmos, queremos fazer algumas perguntas, relativamente à vossa morte.
─ Como não vos atender, agora que começo a perceber as verdades eternas e que sei das necessidades que tendes?

2. ─ Lembrais da circunstância particular que precedeu a vossa morte? ─ Sim. Foi aquele o mais feliz momento de minha existência terrena.

3. ─ Durante a vossa morte aparente ouvíeis o que se passava em torno e víeis o aparato dos funerais?
─ Minha alma estava muito preocupada com a sua felicidade próxima.

OBSERVAÇÃO: Sabe-se que em geral os letárgicos veem e ouvem o que se passa em volta de si e ao despertar conservam a lembrança. O fato que retratamos oferece a particularidade de ser o sono letárgico acompanhado de êxtase, o que explica o desvio da atenção da paciente.


4. ─ Tínheis consciência de não estar morta?
─ Sim, mas isto me era penoso.

5. ─ Podeis dizer-nos qual a diferença entre o sono natural e o sono letárgico?
─ O sono natural é o repouso do corpo; o letárgico é a exaltação da alma.

6. ─ Sofríeis durante a letargia? ─ Não.

7. ─ Como se operou vosso retorno à vida? ─ Deus permitiu que eu voltasse para consolar os corações aflitos que me rodeavam.

8. ─ Desejaríamos uma explicação mais material. ─ Aquilo a que chamais perispírito ainda animava o meu envoltório terrestre.

9. ─ Como é que não ficastes surpreendida, quando despertastes, com os preparativos que estavam sendo feitos para o vosso enterro? ─ Eu sabia que ia morrer. Aquilo tudo pouco me importava, pois eu havia entrevisto a felicidade dos eleitos.

10. ─ Voltando à consciência, ficastes satisfeita com a volta à vida? ─ Sim, para consolar.

11. ─ Onde estivestes durante o sono letárgico? ─ Não posso descrever a felicidade que experimentava. A linguagem humana não exprime essas coisas.

12. ─ Vós vos sentíeis ainda na Terra ou no espaço? ─ Nos espaços.

13. ─ Voltando a vós, dissestes que a filha que havíeis perdido no ano anterior vos tinha vindo buscar. É verdade? ─ Sim. Ela é um Espírito puro.

OBSERVAÇÃO: Nas respostas dessa mãe, tudo indica que ela era um Espírito elevado. Nada, pois, há que admirar que um Espírito ainda mais elevado se tivesse unido ao seu por simpatia. Contudo, não devemos tomar ao pé da letra a expressão Espírito Puro, que os Espíritos por vezes se dão mutuamente. Sabe-se que isto significa uma ordem mais elevada, pois os que se acham completamente desmaterializados e depurados não mais estão sujeitos à reencarnação: são anjos que desfrutam a vida eterna. Ora, os que não atingiram ainda um grau suficiente não compreendem esse estado supremo. Podem, pois, empregar a expressão Espírito Puro para designar uma superioridade relativa, não no sentido absoluto. Temos disto numerosos exemplos. A Sra. Schwabenhaus parece estar neste caso. Também os Espíritos zombadores, por vezes, se atribuem a qualidade de Espíritos Puros, a fim de inspirar mais confiança àqueles a quem desejam enganar e que não têm suficiente perspicácia para lhes julgar a linguagem, onde sempre traem a sua inferioridade.

14. ─ Que idade tinha essa criança quando morreu? ─ Sete anos.

15. ─ Como a reconhecestes? ─ Os Espíritos superiores se conhecem mais rapidamente.

16. ─ Vós a reconhecestes sob uma forma qualquer? ─ Só a vi como Espírito.

17. ─ O que ela vos dizia? ─ “Vem; segue-me para o Eterno”.

18. ─ Vistes outros Espíritos além do de vossa filha? ─ Vi uma porção de outros, mas a voz da minha filha e a felicidade que entrevia eram minhas únicas preocupações.

19. ─ Quando de vosso retorno à vida dissestes que em breve iríeis reencontrar vossa filha. Tínheis então consciência de vossa morte próxima? ─ Era-me uma esperança feliz.

20. ─ Como sabíeis? ─ Quem não sabe que tem de morrer? A doença bem mo dizia.

21. ─ Qual a causa de vossa doença? ─ Os desgostos.

22. ─ Que idade tínheis? ─ Quarenta e oito anos.

23. ─ Deixando a vida definitivamente, tivestes imediatamente consciência clara e lúcida de vossa nova condição? ─ Tive-a no momento da letargia.

24. ─ Experimentastes a perturbação que geralmente acompanha a volta à vida espírita? ─ Não. Eu estava deslumbrada, mas não perturbada.

OBSERVAÇÃO: Sabe-se que a perturbação que se segue à morte é tanto menor e menos duradoura quanto mais depurado em vida é o Espírito. O êxtase que precedeu a morte dessa senhora era, aliás, o primeiro desprendimento que a alma tinha dos laços terrenos.

25. ─ Depois da morte revistes a vossa filha? ─ Frequentemente estou com ela.

26. ─ Estais reunida a ela para toda a eternidade? ─ Não. Entretanto, sei que após minhas últimas encarnações estarei na morada onde habitam os Espíritos Puros.

27. ─ Então vossas provas não estão terminadas? ─ Não, mas agora elas serão felizes. Só me resta esperar, e a esperança é quase a felicidade.

28. ─ Vossa filha tinha habitado outros corpos antes daquele com o qual foi vossa filha? ─ Sim, em muitos outros.

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

32. ─ Podeis ler os nossos pensamentos? ─ Sim, posso. Eu os lerei se vossos pensamentos forem bons.

33. ─ Agradecemos as explicações que tivestes a bondade de nos dar. Reconhecemos pela sabedoria de vossas respostas que sois um Espírito elevado e esperamos que venhais a gozar da felicidade que mereceis. ─ Sinto-me feliz por contribuir com a vossa obra. Morrer é uma alegria quando se pode colaborar com o progresso, como eu acabo de fazer.


O Sr. M. tinha comprado num antiquário uma medalha que se lhe afigurou de notável originalidade. Era do tamanho de um escudo de seis libras. Tinha o aspecto da prata, posto que um pouco oxidada. Sobre as duas faces há uma porção de sinais, gravados em baixo relevo, entre os quais se notam os planetas, círculos entrelaçados, um triângulo, palavras ininteligíveis e iniciais em caracteres vulgares; depois outras em caracteres bizarros, tendo algo de árabe, tudo disposto de modo cabalístico, à maneira dos livros de magia.

Tendo interrogado a Srta. J..., médium sonâmbula, a respeito dessa medalha, foi dito ao Sr. M... que ela era composta de sete metais; que havia pertencido a Cazotte e que possuía o poder especial de atrair os Espíritos e facilitar as evocações.

O Sr. Caudemberg, autor de uma série de comunicações que diz ter recebido, como médium, da Virgem Maria, lhe disse que era uma coisa maléfica, própria para atrair os demônios. A senhorita de Guldenstube, médium, irmã do Barão de Guldenstube, autor de uma obra sobre pneumatografia, ou escrita direta, lhe disse que a medalha tinha uma virtude magnética e poderia provocar o sonambulismo.

Pouco satisfeito com estas respostas contraditórias, o Sr. M... apresentou-nos essa medalha, pedindo nossa opinião pessoal a respeito, ao mesmo tempo que desejava interrogássemos um Espírito superior sobre o valor real do ponto de vista da influência que a mesma pudesse ter.

Eis a nossa resposta:

Os Espíritos são atraídos ou repelidos pelo pensamento e não por objetos materiais, que nenhum poder exercem sobre eles. Em todos os tempos, os Espíritos superiores condenaram o emprego de signos e de formas cabalísticas, e todo Espírito que lhes atribui uma virtude qualquer ou que pretende dar talismãs que denotam magia, por aí revela a própria inferioridade, quer quando age de boa-fé e por ignorância, levado por antigos preconceitos terrenos, de que ainda se acha imbuído, quer quando conscientemente se diverte com a credulidade, como Espírito zombeteiro. Os sinais cabalísticos, quando não são mera fantasia, são símbolos que lembram crenças supersticiosas na virtude de certas coisas, como os números, os planetas e sua correspondência com os metais, crenças nascidas no tempo da ignorância e que repousam sobre erros manifestos, aos quais a Ciência fez justiça, mostrando o que há sobre os pretensos sete planetas, os sete metais, etc. A forma mística e ininteligível de tais emblemas tem o objetivo de impô-los ao vulgo, sempre inclinado a considerar maravilhoso aquilo que não compreende. Quem quer que tenha estudado a natureza dos Espíritos, não poderá racionalmente admitir sobre eles a influência de formas convencionais, nem de substâncias misturadas em certas proporções. Seria renovar as práticas do caldeirão das feiticeiras, dos gatos pretos, das galinhas pretas e de outras secretas maquinações. Já o mesmo não se dá com um objeto magnetizado, pois, como se sabe, têm o poder de provocar o sonambulismo ou certos fenômenos nervosos sobre a economia orgânica. Mas, então, a virtude de tal objeto reside unicamente no fluido de que se acha momentaneamente impregnado e que assim se transmite, por via indireta, e não na forma, na cor, nem, principalmente, nos sinais de que possa estar sobrecarregado.

Um Espírito pode dizer: “Trace tal sinal e por ele saberei que você me chama, e eu virei.” Mas neste caso o sinal traçado é a expressão do pensamento; é uma evocação traduzida de modo material. Ora, seja qual for sua natureza dos Espíritos, eles não necessitam de semelhantes meios de comunicação. Os Espíritos superiores jamais os empregam. Os Espíritos inferiores podem fazê-lo visando seduzir as pessoas crédulas que querem sob sua dependência.

Regra geral: Para os Espíritos superiores a forma nada é. O pensamento é tudo. Todo Espírito que liga mais importância à forma que ao fundo, é inferior, e não merece nenhuma confiança, mesmo quando, vez por outra, diga algumas coisas boas, porque as boas coisas são por vezes um meio de sedução.

Tal era, de maneira geral, o nosso pensamento a respeito dos talismãs, como meio de entrar em relação com os Espíritos. Desnecessário dizer que ele também se aplica a outros meios empregados supersticiosamente, como preservativos de doenças e acidentes.

Não obstante, para edificação do dono da medalha e para melhor aprofundar a questão, na sessão de 17 de junho de 1858, na Sociedade, pedimos ao Espírito de São Luís, que tem a bondade de se comunicar conosco sempre que se trata de nossa instrução, que nos desse sua opinião a respeito. Interrogado sobre o valor dessa medalha, eis a sua resposta:

“Fazeis bem não admitindo que os objetos materiais possam ter qualquer virtude sobre as manifestações, tanto para provocá-las quanto para impedi-las.

Muito frequentemente temos dito que as manifestações são espontâneas e que, além disso, jamais nos recusamos a responder ao vosso apelo. Por que pensais que sejamos obrigados a obedecer a uma coisa fabricada pelas criaturas? P. ─ Com que objetivo foi fabricada essa medalha?

R. ─ Foi feita com o objetivo de chamar a atenção das pessoas que poderiam crer nisso; mas só por magnetizadores é que ela poderá ter sido feita com a intenção de magnetizar e adormecer um sensitivo. Os signos são mera fantasia.

P. ─ Dizem que ela pertenceu a Cazotte. Poderíamos evocá-lo para nos dar algumas informações a respeito?

R. ─ É desnecessário. Ocupai-vos antes de coisas mais sérias.”

Há sete ou oito meses, Luís G..., sapateiro, namorava a jovem Vitorina R..., pespontadeira de botinas, com a qual deveria casar-se brevemente, pois os proclamas estavam sendo publicados. Estando as coisas nesse ponto, os jovens se consideravam quase definitivamente unidos e, como medida de economia, o sapateiro vinha fazer as refeições em casa da noiva.

Tendo vindo, quarta-feira última, como de costume, cear em casa da pespontadeira, sobreveio uma discussão a propósito de uma futilidade. Obstinaramse, de uma e de outra parte, e as coisas chegaram ao ponto em que Luís deixou a mesa e se foi, jurando não mais voltar.

Entretanto, no dia seguinte, o sapateiro, muito confuso, veio pedir perdão. Diz-se que a noite é boa conselheira, mas a operária, talvez prevendo, depois da cena de véspera, o que poderia acontecer quando não mais houvesse tempo para voltar atrás, recusou reconciliar-se e nem os protestos, nem as lágrimas, nem o desespero puderam vencê-la. Entretanto, como já se houvessem passado vários dias desde aquele arrufo, esperando que a sua amada estivesse mais tratável, anteontem à noite Luís quis tentar uma última explicação: chegou-se, bateu à porta de modo a se dar a conhecer, mas ela se recusou a abrir. Novas súplicas do pobre abandonado, novos protestos através da porta, mas nada demoveu a implacável eleita.

“Então adeus, ó malvada!” exclamou enfim o pobre rapaz, “Adeus para sempre! Procure um marido que a queira tanto quanto eu!”

Ao mesmo tempo a moça escutou uma espécie de gemido abafado, depois como que o ruído de um corpo que caísse escorregando ao longo da porta, e tudo entrou em silêncio. Ela pensou que Luís se houvesse sentado à soleira para esperar sua primeira saída, mas prometeu a si mesma não pôr o pé na rua enquanto ele lá estivesse.

Decorrido apenas um quarto de hora, um dos inquilinos que passava no pátio com uma luz gritou pedindo socorro. Logo chegaram os vizinhos e a senhorita Vitorina, tendo aberto também a sua porta, soltou um grito de horror, ao perceber no chão o corpo de seu noivo, pálido e inanimado. Todos se apressaram em prestar-lhe auxílio e procurar um médico, mas logo verificaram que tudo era inútil, pois ele já deixara de existir. O infeliz moço havia enterrado no peito a faca de sapateiro e o ferro ficara na ferida.

O fato que encontramos no Le Siècle de 7 de abril último despertou-nos a ideia de dirigir a um Espírito superior algumas perguntas sobre as suas consequências morais. Ei-las aqui, com as respectivas respostas, dadas pelo Espírito de São Luís na sessão da Sociedade do dia l0 de agosto de 1858.


1. ─ A moça, causa involuntária da morte do namorado, tem responsabilidade? ─ Sim, porque não o amava.

2. ─ Para evitar essa desgraça, deveria ela desposá-lo, embora não o amasse? ─ Ela buscava uma ocasião para se separar dele; fez no começo de sua ligação o que teria feito mais tarde.

3. ─ Assim a culpabilidade consiste em ter nele alimentado sentimentos de que não partilhava e que foram a causa da morte do rapaz? ─ Sim. É isto mesmo.

4. ─ Neste caso, sua responsabilidade deve ser proporcional à falta, que não deve ser tão grande quanto se ela tivesse, de caso pensado, provocado a morte. ─ Isto salta aos olhos.

5. ─ O suicídio de Luís encontra justificativa no desvario em que o mergulhou a obstinação de Vitorina? ─ Sim, porque seu suicídio, provocado pelo amor, é menos criminoso aos olhos de Deus do que o do homem que quer livrar-se da vida por covardia.

OBSERVAÇÃO: Dizendo que esse suicídio é menos criminoso aos olhos de Deus, evidentemente significa que há criminalidade, posto que menor. A falta consiste na fraqueza que ele não soube vencer. É sem dúvida uma prova a que sucumbiu. Ora, os Espíritos nos ensinam que o mérito está em lutar vitoriosamente contra as provas de todo gênero, que são a essência da vida terrena.


Evocado num outro dia, foram feitas ao Espírito de Luís C... as seguintes perguntas, a que respondeu:

1. ─ Que pensais da ação que praticastes? ─ Vitorina é uma ingrata. Errei em matar-me por ela, pois ela não o merecia.

2. ─ Então ela não vos amava? ─ Não. A princípio pensou que sim, mas estava iludida. A cena que fiz abriulhe os olhos. Depois, sentiu-se feliz com esse pretexto para desembaraçar-se de mim.

3. ─ E vós a amáveis sinceramente? ─ Eu tinha paixão por ela. Acredito que era apenas isso. Se eu a amasse com puro amor, não teria querido magoá-la.

4. ─ Se ela soubesse que realmente queríeis matar-vos, ela teria persistido na recusa? ─ Não sei. Não creio, pois ela não era má. Entretanto, teria sido infeliz. Para ela foi melhor assim.

5. ─ Ao chegar à sua porta tínheis intenção de vos matar, caso fosse recusado? ─ Não. Nem pensava nisso. Não a supunha tão obstinada. Somente quando vi sua teimosia é que fui tomado por uma vertigem.

6. ─ Parece que não lamentais o suicídio senão porque Vitorina não o merecia. É vosso único sentimento? ─ Neste momento, sim. Ainda me acho perturbado. Parece-me estar à sua porta. Sinto, porém, algo que não posso definir.

7. ─ Compreendereis mais tarde? ─ Sim, quando estiver desembaraçado... O que fiz foi ruim. Deveria tê-la deixado tranquila... Fui fraco e sofro as consequências... Como vedes, a paixão leva o homem à cegueira e a cometer erros absurdos. Ele só compreende quando é tarde demais.

8. ─ Dissestes que sofreis as consequências. Qual a pena que sofreis? ─ Errei abreviando a vida. Não deveria tê-lo feito. Deveria resistir em vez de acabar com tudo prematuramente. Por isso sou infeliz. Sofro. É sempre ela que me faz sofrer. Parece-me estar ainda à sua porta. Que ingrata! Não me faleis mais nisto. Não quero mais pensar, pois isto me faz muito mal. Adeus.


Um dos nossos assinantes escreveu as linhas seguintes, a respeito do desenho que publicamos no último número.

“Diz o autor do artigo: A clave de sol é ali repetida com frequência e coisa original nunca a clave de fá”. Parece que os olhos do médium não viram todos os detalhes do rico desenho executado por sua mão, pois um músico nos assegura que é fácil reconhecer, direta e invertida, a clave de na ornamentação da base do edifício, no meio da qual mergulha o talão do arco do violino, assim como no prolongamento dessa ornamentação, à esquerda da ponta da tiorba. Na opinião do mesmo músico, a forma antiga da clave de aparece também nas lajes próximas à escadaria da direita.”

OBSERVAÇÃO: Inserimos esta observação com tanto maior satisfação quanto mais ela prova até que ponto o pensamento do médium ficou alheio à confecção do desenho. Examinando os detalhes das partes indicadas, reconhecem-se, efetivamente, as claves de e de dó, com as quais o autor ornou inadvertidamente o seu desenho. Quando o vemos trabalhando percebemos facilmente a ausência de qualquer concepção premeditada e de qualquer vontade. Sua mão, arrastada por uma força oculta, dá ao lápis ou ao buril o mais irregular movimento e, ao mesmo tempo, o mais contrário aos elementares preceitos da arte, pois vai incessantemente, com uma rapidez incrível, de um extremo ao outro da prancha, sem interrupção e volta cem vezes ao mesmo ponto. Todas as partes são assim começadas e simultaneamente continuadas, sem que qualquer delas fique completa antes que se inicie outra. Disso resulta, à primeira vista, um conjunto incoerente, cujo fim só é compreensível quando tudo está acabado. Esse andamento original não é peculiar do Sr. Sardou. Vimos todos os médiuns desenhistas procedendo do mesmo modo. Conhecemos uma senhora, pintora de mérito e professora de desenho, que também possui essa faculdade. Quando ela desenha como médium, opera, malgrado seu, contra as regras e por um processo que seria impossível seguir quando trabalha sob sua própria inspiração e em estado normal. Seus alunos, dizia ela, ririam se lhes ensinasse a desenhar à maneira dos Espíritos.

ALLAN KARDEC[1]






[1] Paris ─ Tipografia de Cosson & Cia., Rua dodu Four-Saint-Germain, 43




Outubro

Muito se tem falado dos perigos do Espiritismo. É de notar-se, entretanto, que os que mais gritaram são exatamente os que quase só o conhecem por ouvir dizer. Já refutamos os principais argumentos que lhe são opostos; a eles, pois, não voltaremos. Acrescentaremos apenas que, se quiséssemos proscrever da Sociedade tudo quanto pode oferecer perigo e dar margem a abusos, não saberíamos muito o que haveria de restar, mesmo daquelas coisas de primeira necessidade, a começar pelo fogo, causa de tantas desgraças; depois, as estradas de ferro, etc. etc. Se se admitir que as vantagens compensam os inconvenientes, o mesmo deve acontecer com tudo o mais. A experiência indica, ao mesmo tempo, as precauções que devem ser tomadas para nos garantirmos contra os inevitáveis perigos das coisas.

Na verdade, o Espiritismo apresenta um perigo real, mas não é aquele que se supõe. É preciso ser-se iniciado nos princípios da Ciência para bem compreendê-lo. Não nos dirigimos àqueles que lhe são alheios, mas aos próprios adeptos, àqueles que o praticam, pois que para esses é que há perigo. Importa que o conheçam, a fim de se porem em guarda. Sabe-se que um perigo previsto é um perigo meio evitado[1]. Diremos mais: para quem quer que esteja bem informado da Ciência, tal perigo não existe; existe apenas para aqueles que têm a presunção de saber, isto é, como em todas as coisas, para aqueles que não possuem a necessária experiência.

Um desejo muito natural em todos aqueles que começam a se ocupar do Espiritismo é ser médium, principalmente psicógrafo. É realmente o gênero que tem mais atração, dada a facilidade das comunicações e por ser o que melhor se desenvolve com o exercício. Compreende-se a satisfação que deve experimentar quem, pela primeira vez, vê a própria mão formar letras, depois palavras, depois frases em resposta aos seus pensamentos. Essas respostas que traça maquinalmente, sem saber o que faz; que o mais das vezes estão fora de qualquer ideia pessoal, não lhe podem deixar nenhuma dúvida quanto à intervenção de uma inteligência oculta. Assim, grande é a sua alegria de poder entreter-se com os seres de além-túmulo, com esses seres misteriosos e invisíveis que povoam os espaços: parentes e amigos já não mais se encontram ausentes; se não os vê com os olhos, nem por isso deixam de ali estar; conversam com ele, e ele os vê por pensamento; pode saber se são felizes, conhecer aquilo que fazem, o que desejam e trocar amabilidades. Compreende que entre eles a separação não é eterna e faz votos para apressar o instante em que poderiam reunir-se num mundo melhor. E não é tudo. Quanto não pode saber através dos Espíritos que com ele se comunicam? Não irão eles levantar o véu de todas as coisas? Agora já não há mais mistérios: basta perguntar para tudo ficar sabendo. Vê a Antiguidade sacudir diante dele a poeira do tempo; escavar as ruínas; interpretar as escrituras simbólicas e fazer reviver aos seus olhos os séculos passados. Este outro, mais prosaico e pouco preocupado em sondar o infinito onde se perde seu pensamento, cuida apenas de explorar os Espíritos para fazer fortuna. Os Espíritos, que devem ver tudo e tudo saber, não podem negar-se a permitir-lhe a descoberta de algum tesouro escondido ou de algum segredo maravilhoso.

Quem quer que se dê ao trabalho de estudar a ciência espírita jamais se deixará seduzir por esses belos sonhos. Sabe do que se deve abster a respeito do poder dos Espíritos, de sua natureza e do objetivo das relações que com os mesmos o homem pode estabelecer. Recordemos, para começar, em poucas palavras, os pontos principais que nunca devem ser perdidos de vista, porque são a chave que sustenta todo o edifício.

1.º ─ Os Espíritos não são iguais nem em poder, nem em conhecimento, nem em sabedoria. Como não passam de almas humanas desembaraçadas de seu envoltório corporal, apresentam uma variedade ainda maior do que encontramos entre os homens na Terra, porque eles vêm de todos os mundos e, entre os mundos, a Terra não é nem o mais atrasado nem o mais adiantado. Há, pois, Espíritos muito superiores, como os há muito inferiores; muito bons e muito maus; muito sábios e muito ignorantes; há os levianos, malévolos, mentirosos, astutos, hipócritas, facetos, espirituosos, trocistas, etc.

2.º ─ Estamos incessantemente cercados por uma nuvem de Espíritos que, pelo fato de serem invisíveis aos nossos olhos materiais, não deixam de estar no espaço, em redor de nós, ao nosso lado, espiando os nossos atos, lendo os nossos pensamentos, uns para nos fazer bem, outros para nos fazer mal, conforme sejam eles bons ou maus.

3.º ─ Pela inferioridade física e moral de nosso globo na hierarquia dos mundos, os Espíritos inferiores aqui são mais numerosos do que os superiores.

4.º ─ Entre os Espíritos que nos cercam, há os que se ligam a nós; que agem mais particularmente sobre o nosso pensamento, aconselhando-nos, e cuja influência seguimos, sem nos apercebermos. Melhor para nós se escutarmos apenas a voz dos bons.

5.º ─ Ligam-se os Espíritos inferiores apenas àqueles que os ouvem, junto aos quais têm acesso e aos quais se agarram. Se conseguirem estabelecer domínio sobre alguém, identificam-se com o seu próprio Espírito, fascinam-no, obsidiam-no, subjugam-no e o conduzem como se fosse uma criança.

6.º ─ A obsessão jamais se dá senão por Espíritos inferiores. Os bons Espíritos não produzem nenhum constrangimento: aconselham, combatem a influência dos maus e afastam-se, desde que não sejam ouvidos.

7º. ─ O grau de constrangimento e a natureza dos efeitos que ele produz marcam a diferença entre a obsessão, a subjugação e a fascinação.

A obsessão é a ação quase permanente de um Espírito estranho, que leva a pessoa a ser solicitada por uma necessidade incessante de agir desta ou daquela maneira e de fazer isto ou aquilo.

A subjugação é uma ligação moral que paralisa a vontade de quem a sofre e que impele a pessoa às mais desarrazoadas atitudes, frequentemente as mais contrárias ao seu próprio interesse.

A fascinação é uma espécie de ilusão produzida pela ação direta de um Espírito estranho ou por seus raciocínios capciosos. Essa ilusão produz alteração na compreensão das coisas morais, falseia o julgamento e leva a tomar-se o mal pelo bem.

8.º ─ Por sua vontade pode sempre o homem desembaraçar-se do jugo dos Espíritos imperfeitos, porque em virtude de seu livre-arbítrio, há escolha entre o bem e o mal. Se o constrangimento chegou ao ponto de paralisar a vontade e se a fascinação é tão grande que oblitera a razão, então a vontade de uma terceira pessoa pode substituí-la.

Antigamente dava-se o nome de possessão ao império exercido pelos maus Espíritos, quando sua influência ia até a aberração das faculdades. Mas a ignorância e os preconceitos muitas vezes tomaram como possessão aquilo que não passava de um estado patológico. Para nós, a possessão seria sinônimo de subjugação. Não adotamos esse termo por dois motivos: primeiro porque implica a crença em seres criados para o mal e a ele votados perpetuamente, quando apenas existem seres mais ou menos imperfeitos, e todos podem melhorar; segundo, porque ele implica igualmente a ideia de tomada de posse do corpo pelo Espírito estranho, uma espécie de coabitação, ao passo que existe apenas uma ligação. O vocábulo subjugação dá uma ideia perfeita. Assim, para nós, não há possessos, no sentido vulgar da palavra; há simplesmente obsedados, subjugados e fascinados.[2]

Por idêntico motivo não usamos o vocábulo demônio para designar os Espíritos imperfeitos, de vez que frequentemente esses Espíritos não são melhores que os chamados demônios; é apenas por causa da especialidade e da perpetuidade que estão ligadas a esse vocábulo. Assim, quando dizemos que não há demônios, não queremos dizer que apenas existam bons Espíritos. Longe disso. Sabemos muito bem que os há maus e muito maus, que nos solicitam para o mal, armam-nos ciladas, e isto nada tem de admirável, porque eles foram homens. Queremos dizer que não formam uma classe à parte na ordem da Criação, e que Deus deixa a todas as criaturas a capacidade de melhorar-se.

Bem assentado isto, voltemos aos médiuns. Nalguns, o progresso é lento, mesmo muito lento; por vezes submetem à prova a sua paciência. Noutros é rápido, e em pouco tempo chega o médium a escrever com tanta facilidade e, às vezes, com mais presteza do que faria em condições ordinárias. É então que pode tomar-se de entusiasmo, e é nisto que está o perigo, porque o entusiasmo provoca o enfraquecimento, e com os Espíritos é necessário ser forte. Parece um paradoxo dizer que o entusiasmo provoca enfraquecimento, entretanto, não há nada mais correto. Dir-se-á que o entusiasmo marcha com uma convicção e uma confiança que lhe permitem vencer todos os obstáculos, com o que haverá mais força. Sem dúvida, mas nós nos entusiasmamos tanto pelo falso quanto pelo verdadeiro. Aceitai as mais absurdas ideias do entusiasta e dele fareis tudo quanto quiserdes. O objeto de seu entusiasmo é, pois, o seu lado fraco, pelo qual podereis sempre dominá-lo. O homem frio, ao contrário, é impassível. Ele não se ilude; combina, pesa, examina maduramente e não se deixa seduzir por subterfúgios. É isto o que lhe dá força. Os Espíritos malévolos, que sabem disto tão bem ou melhor do que nós, sabem também tirar proveito da situação para subjugar os que desejam ter sob sua dependência. A faculdade de escrever como médium lhes serve maravilhosamente, porque é poderoso meio de captar a confiança e, assim, dela tirarão proveito, se não nos pusermos em guarda contra eles. Felizmente, como veremos mais tarde, o mal traz em si o remédio.

Seja por entusiasmo, seja por fascínio dos Espíritos, ou seja por amor próprio, em geral o médium psicógrafo é levado a crer que os Espíritos que se comunicam com ele são superiores, e tanto mais, quanto mais os Espíritos, vendo sua propensão, não deixam de ornar-se com títulos pomposos, conforme a necessidade. Segundo as circunstâncias, tomam nomes de santos, de sábios, de anjos, da própria Virgem Maria, e fazem o seu papel como atores, vestindo ridiculamente a roupagem das pessoas que representam. Tirai-lhes a máscara e se tornam o que eram: ridículos. É isto o que se deve saber fazer, tanto com os Espíritos quanto com os homens.

Da crença cega e irrefletida na superioridade dos Espíritos que se comunicam, à confiança em suas palavras há apenas um passo, assim como acontece entre os homens. Se chegarem a inspirar essa confiança, alimentam-na por meio de sofismas e dos mais capciosos raciocínios, ante os quais frequentemente a gente baixa a cabeça. Os Espíritos grosseiros são menos perigosos: reconhecemo-los imediatamente e não inspiram mais que repugnância. Os mais temíveis, em seu mundo, como no nosso, são os Espíritos hipócritas: falam sempre com doçura; lisonjeiam as inclinações; são meigos, manhosos, pródigos em expressões carinhosas e em protestos de dedicação. É preciso ser realmente forte para resistir a semelhantes seduções.

Perguntareis: Onde está o perigo se os Espíritos são impalpáveis? O perigo está nos conselhos perniciosos que dão, aparentando benevolência, e nas atitudes ridículas, intempestivas ou funestas que nos levam a empreender. Já vimos alguns que fizeram certas pessoas andarem de região em região em busca de coisas fantásticas, com o risco de comprometer a saúde, a fortuna e a própria vida. Vimolos ditar, com a aparência de gravidade, as coisas mais burlescas e as máximas mais esquisitas.

Considerando-se que convém dar o exemplo ao lado da teoria, vamos relatar a história de uma pessoa nossa conhecida que esteve sob o domínio de uma fascinação semelhante.

O Sr. F..., moço instruído, de esmerada educação, de caráter suave e benevolente, mas um pouco fraco e indeciso, tornou-se médium psicógrafo com muita rapidez. Obsidiado pelo Espírito que dele se apoderou e lhe não dava repouso, escrevia incessantemente. Se uma pena ou um lápis lhe caía na mão, tomava-o num movimento convulsivo e enchia páginas e páginas em poucos minutos. Na falta de instrumento, simulava escrever com o dedo, em qualquer parte onde se encontrasse: na rua, nas paredes, nas portas etc. Entre outras coisas, esta lhe era ditada: “O homem é composto de três coisas: o homem, o mau Espírito e o bom Espírito. Todos vós tendes vosso mau Espírito, que está ligado ao corpo por laços materiais. Para expulsar o mau Espírito é necessário quebrar esses laços para o que é preciso enfraquecer o corpo. Quando este se acha suficientemente enfraquecido, o laço se parte e o mau Espírito vai embora, deixando apenas o bom.”

Em consequência desta bela teoria fizeram-no jejuar durante cinco dias consecutivos e velar à noite. Quando estava extenuado, eles lhe disseram: “Agora a coisa está feita e o laço partido. Teu mau Espírito se foi: ficamos apenas nós, em quem deves crer sem reservas.” E ele, persuadido de que seu mau Espírito havia fugido, acreditava cegamente em todas as suas palavras. A subjugação havia chegado a um ponto em que se lhe tivessem dito para atirar-se na água ou partir para os antípodas, ele o teria feito. Quando queriam obrigá-lo a fazer qualquer coisa que lhe repugnava, era arrastado por uma força invisível.

Damos uma pequena amostra de sua moral; a partir daí pode-se julgar o resto:

“Para ter melhores comunicações é necessário primeiro orar e jejuar durante vários dias, uns mais, outros menos. O jejum enfraquece os laços que existem entre o ego e um demônio particular ligado a cada ser humano. Esse demônio está ligado a cada pessoa pelo envoltório que une corpo e alma. Esse envoltório se enfraquece pela falta de alimento e permite que os Espíritos arranquem aquele demônio. Então Jesus desce ao coração da pessoa possessa, em lugar do mau Espírito. Esse estado de possuir Jesus em si é o único meio de atingir toda a verdade e muitas outras coisas.

“Quando a criatura conseguiu substituir o demônio por Jesus, ainda não possui a verdade. Para tê-la, é necessário crer. Deus não dá a verdade aos que duvidam: seria fazer algo de inútil e Deus nada faz em vão. Como a maioria dos médiuns novos duvidam do que dizem e escrevem, os bons Espíritos, a contragosto, por ordem formal de Deus, são obrigados a mentir e não têm outro jeito senão mentir até que o médium fique convencido; mas assim que ele acredita numa dessas mentiras, os Espíritos elevados se apressam em lhe desvelar os segredos do céu: a verdade inteira dissipa num instante essa nuvem de erros com que tinham sido obrigados a envolver o seu protegido.

“Chegado a esse ponto, nada mais tem o médium a temer. Os bons Espíritos jamais o deixarão. Contudo, ele não deve crer que tenha sempre a verdade e só a verdade. Seja para experimentá-lo, seja para puni-lo de faltas passadas, seja ainda para castigá-lo por perguntas egoísticas ou curiosas, os bons Espíritos lhe infligem correções físicas e morais, vindo atormentá-lo por ordem de Deus.

“Por vezes esses Espíritos elevados se lastimam da triste missão que desempenham: um pai persegue o filho durante semanas inteiras, um amigo ao seu amigo, tudo para a grande felicidade do médium. Então os Espíritos nobres dizem tolices, blasfêmias e até torpezas. É necessário que o médium resista e diga: Vós me tentais; sei que estou entre mãos caridosas de Espíritos ternos e afetuosos; que os maus já não podem aproximar-se de mim. Boas almas que me atormentais, não me impedireis de crer naquilo que me dissestes e que me haveis de dizer.

“Os católicos expelem mais facilmente o demônio[3] porque ele afastou-se um instante no dia do batismo. Os católicos são julgados pelo Cristo e os outros por Deus. É melhor ser julgado pelo Cristo. Os protestantes não têm razão em não admitir isto: é necessário que te tornes católico o quanto antes. Enquanto não fizeres isto, vai tomar água benta: este será o teu batismo.”

Mais tarde, depois de o jovem ter sido curado da obsessão de que fora vítima, por meios que relataremos, nós lhe pedimos que nos escrevesse essa história, fornecendo-nos também o texto dos preceitos que lhe haviam sido ditados. Transcrevendo-os, inscreveu sobre a cópia que nos enviou:

“Pergunto-me a mim mesmo se não ofendo a Deus transcrevendo semelhantes tolices.” A isto nós lhe respondemos: Não, o senhor não ofende a Deus; longe disso, pois agora reconhece a cilada em que caiu. Se lhe pedi uma cópia dessas máximas perversas, foi para marcá-las, como elas merecem; desmascarar os Espíritos hipócritas e alertar quem quer que receba coisa semelhante.

Um dia fá-lo-ão escrever: “Morrerás esta noite”. E ele responderá: Sinto-me muito aborrecido neste mundo; morramos, se assim deve ser; nada mais peço; que eu deixe de sofrer; isto é tudo o que desejo. ─ À noite adormece, crendo firmemente não mais despertar na Terra. No dia seguinte ficará muito surpreendido e mesmo desapontado por achar-se em seu leito habitual. Durante o dia escreve: “Agora que passaste pela prova da morte, que acreditaste firmemente que ias morrer, és para nós como um morto: podemos dizer-te toda a verdade; saberás tudo. Não há nada oculto para nós; nada mais haverá oculto para ti. Tu és uma reencarnação de Shakespeare.

Tua bíblia não é Shakespeare?”[4] No dia seguinte ele escreve:

─ Tu és Satã.

─ Esta também é forte demais, responde o Sr. F...

─ Não fizeste... não devoraste o Paraíso Perdido? Conheceste a Fille du diable de Béranger[5]; sabias que Satã havia de converter-se. Não acreditaste sempre; não o disseste; não o escreveste? Para converter-se, ele reencarna.

─ Concordo que eu tenha sido um anjo rebelde qualquer; mas o rei dos anjos...!

─ Sim, tu eras o anjo da intrepidez. Não és mau. Tens um coração orgulhoso; é

esse orgulho que é necessário abater. És o anjo do orgulho, que os homens chamam Satã. Que importa o nome! Foste o mau gênio da Terra. Eis-te humilhado... Os homens progredirão... Verás maravilhas. Tu enganaste os homens; enganaste a mulher na personificação de Eva, a mulher pecadora. Foi dito que Maria, a personificação da mulher sem manchas, esmagar-te-á a cabeça. Maria vai chegar.

Um instante depois escreve lenta e docemente:

─ Maria vem ver-te. Ela, que foi te procurar no fundo de teu reino de trevas, não te abandonará. Ergue-te, Satã. Deus está pronto para te estender os braços. Lê O Filho Pródigo. Adeus.

Num outro dia escreve:

─ Disse a serpente a Eva: Teus olhos abrir-se-ão e serás como os deuses. O demônio disse a Jesus: Dar-te-ei todo o poder. A ti eu digo, pois que acreditas em nossas palavras: nós te amamos; saberás tudo... Serás rei da Polônia.

─ Persevera nas boas disposições em que te colocamos. Esta lição levará a ciência espírita a dar um grande passo. Ver-se-á que os bons Espíritos podem dizer futilidades e mentiras para divertir-se à custa dos sábios. Disse Allan Kardec que um péssimo meio de reconhecer os Espíritos era fazê-los confessar Jesus em carne. Eu digo que só os bons Espíritos confessam Jesus em carne, e eu o confesso. Dize isto a Kardec.

Contudo, o Espírito teve pudor de não aconselhar o Sr. F... a imprimir essas belas máximas. Se o tivesse feito, ele certamente as teria publicado, o que seria uma atitude perversa, porque as teria distribuído como coisa séria.

Encheríamos um volume com todas as tolices que lhe foram ditadas e com as circunstâncias que se seguiram. Entre outras coisas fizeram-no desenhar um edifício de tais dimensões que as folhas de papel, coladas umas às outras, chegavam à altura de dois andares.

Observe-se que em tudo isto nada há de grosseiro ou banal. É uma série de raciocínios sofísticos encadeando-se com aparência de lógica. Nos meios empregados para enganá-lo há realmente uma arte infernal e, se nos tivesse sido possível relatar todas essas manifestações, ver-se-ia até que ponto era levada a astúcia e com que habilidade para isso eram empregadas palavras melífluas.

O Espírito que representava o papel principal nesse negócio dava o nome de François Dillois, quando não se cobria com a máscara de um nome respeitável. Mais tarde viemos a saber o que esse tal Dillois tinha sido em vida, e então, nada mais nos surpreendeu em sua linguagem. Mas no meio de todo esse aranzel era fácil reconhecer um bom Espírito que lutava, fazendo de quando em quando ouvir algumas boas palavras de desmentido dos absurdos do outro. Havia um combate evidente, mas a luta era desigual. O moço se achava de tal modo subjugado, que sobre ele a voz da razão era impotente. O Espírito de seu pai, notadamente, lhe fez escrever as seguintes palavras: “Sim, meu filho, coragem! Sofres uma rude prova, que será para o teu bem no futuro. Infelizmente, no momento, nada posso fazer para te libertar, e isto muito me custa. Vai ver Allan Kardec; escuta-o, e ele te salvará”.

Efetivamente, o Sr. F... veio procurar-me e, para começar, reconheci sem dificuldades a influência perniciosa sob que se achava, quer nas palavras, quer por certos sinais materiais que a experiência dá a conhecer, e que não nos podem enganar. Ele voltou várias vezes. Empreguei toda a minha força de vontade para chamar os bons Espíritos por seu intermédio; toda a minha retórica para lhe provar que era vítima de Espíritos detestáveis; que aquilo que escrevia não tinha senso, além de ser profundamente imoral. Para essa obra de caridade juntei-me a um colega, o Sr. T... e pouco a pouco conseguimos que escrevesse coisas sensatas. Ele tomou aversão àquele mau gênio, repelindo-o por vontade própria cada vez que tentava manifestar-se, e lentamente os bons Espíritos triunfaram.

Para modificar suas ideias, ele seguiu o conselho dos Espíritos, de entregar-se a um trabalho rude, que lhe não deixasse tempo para ouvir as sugestões más.

O próprio Dillois acabou confessando-se vencido e manifestou o desejo de progredir em nova existência. Confessou o mal que tinha tentado fazer e deu provas de arrependimento. A luta foi longa e penosa e ofereceu ao observador particularidades realmente curiosas. Hoje o Sr. F. sente-se livre e feliz. É como se tivesse deposto um fardo. Recuperou a alegria e agradece-nos o serviço que lhe prestamos.

Algumas pessoas deploram que haja Espíritos maus. Realmente, não é sem um certo desencanto que encontramos a perversidade neste mundo, onde gostaríamos de encontrar apenas seres perfeitos. Mas como assim é, nada podemos fazer: é preciso tomar as coisas como elas são. É a nossa própria inferioridade que faz com que pululem ao redor de nós os Espíritos imperfeitos. As coisas mudarão quando nos tornarmos melhores, como acontece nos mundos mais adiantados. Enquanto esperamos e ainda nos achamos nos subterrâneos do universo moral, somos advertidos: cabe a nós pormo-nos em guarda e não aceitar sem controle tudo quanto nos dizem. À medida que nos esclarece, a experiência deve tornar-nos circunspectos. Ver e compreender o mal é um meio de nos preservarmos contra ele. Não seria cem vezes mais perigoso ter ilusões quanto à natureza dos seres invisíveis que nos rodeiam? O mesmo se dá entre os homens, pois diariamente nos achamos expostos à malevolência e às sugestões pérfidas; são outras tantas provas, às quais a nossa consciência e a nossa razão nos oferecem os meios de resistir. Quanto mais difícil for a luta, maior será o mérito do sucesso. “Quem vence sem perigo triunfa sem glória.”

Esta história, que infelizmente não é a única de nosso conhecimento, levanta uma questão muito grave. Perguntar-se-á se não é para esse moço um aborrecimento ter sido médium. Não terá sido tal faculdade a causa da obsessão de que foi vítima?

Numa palavra, não será uma prova do perigo das comunicações espíritas?

Nossa resposta é simples e pedimos que a analisem cuidadosamente.

Não foram os médiuns que criaram os Espíritos. Eles sempre existiram e sempre exerceram sobre os homens uma influência salutar ou perniciosa. Para isto, pois, não é necessário ser médium. A faculdade medianímica não lhes é mais que um meio de manifestar-se; na falta dessa faculdade, agem de mil e uma outras maneiras. Se esse moço não fosse médium, nem por isso ter-se-ia subtraído à influência desse mau Espírito que sem dúvida lhe teria feito praticar extravagâncias, as quais teriam sido atribuídas a qualquer outra causa. Felizmente, para ele, permitindo a sua faculdade de médium que o Espírito se comunicasse por palavras, foi por essas palavras que o Espírito se traiu. Elas permitiram conhecer a causa de um mal que poderia ter tido consequências funestas para ele e que, como se viu, nós destruímos por meios muito simples e racionais, e sem exorcismos. A faculdade medianímica permitiu ver o inimigo, se assim nos podemos exprimir, face a face, e combatê-lo com suas próprias armas. Pode-se, pois, dizer, com absoluta certeza, que foi ela que o salvou. Quanto a nós, fomos apenas o médico que, tendo julgado a causa do mal, aplicamos o remédio.

Grave erro seria pensar que os Espíritos não exercem sua influência senão por comunicações verbais ou escritas. Essa influência é constante, e aqueles que não acreditam em Espíritos estão a ela expostos tanto quanto os outros, e até mais do que os outros, porque não têm, em contrapartida, o conhecimento.

A quantos atos, infelizmente, não somos levados e que teriam sido evitados se tivéssemos tido um meio de nos esclarecermos! Os mais incrédulos não se apercebem de que dizem uma verdade quando, em relação a um homem que se desencaminha, proclamam: É o seu mau gênio que o empurra para a perdição.

Regra geral: Quem quer que obtenha más comunicações espíritas, orais ou escritas, acha-se sob má influência. Essa influência se exerce sobre ele, quer escreva, quer não, isto é, seja ou não seja médium. A escrita fornece um meio de nos assegurarmos da natureza dos Espíritos que atuam sobre ele e de combatê-los, o que se faz com tanto maior sucesso quanto mais é conhecido o motivo que os leva a agir. Se ele for bastante cego para não compreender, outros podem abrir-lhe os olhos. Aliás, é necessário ser médium para escrever absurdos? Quem diz que entre todas essas elucubrações ridículas ou perigosas não haverá algumas cujos autores são impulsionados por Espíritos malévolos? Três quartas partes de nossas ações más e de nossos maus pensamentos são frutos dessa sugestão oculta.

Perguntar-se-á se teríamos feito cessar a obsessão, caso o Sr. F... não fosse médium! Certamente. Apenas os meios teriam sido diferentes, de acordo com as circunstâncias. Mas então os Espíritos não teriam podido encaminhá-lo para nós, como o fizeram, e provavelmente a causa teria sido desconsiderada, de vez que não haveria manifestação espírita ostensiva.

Toda criatura de boa vontade e simpática aos bons Espíritos pode sempre, com o auxílio deles, paralisar uma influência perniciosa. Dizemos que deve ser simpática aos bons Espíritos porque se ela própria atrai os inferiores, é evidente que seria o mesmo que caçar lobo com lobo.

Em resumo, o perigo não está propriamente no Espiritismo, pois ele pode, ao contrário, servir de controle, preservando-nos daquilo a que, malgrado nosso, estamos expostos. O perigo está na propensão de certos médiuns para, mui levianamente, se crerem instrumentos exclusivos de Espíritos superiores e numa espécie de fascinação que não os deixa compreender as tolices de que são intérpretes. Até mesmo aqueles que não são médiuns podem ser arrastados. Terminaremos este capítulo com as seguintes considerações:

1.º ─ Todo médium deve prevenir-se contra a irresistível empolgação que o leva a escrever sem cessar e até em momentos inoportunos; deve ser senhor de si e não escrever senão quando queira;

2.º ─ Não dominamos os Espíritos superiores, nem mesmo aqueles que, não sendo superiores, são bons e benevolentes, mas podemos dominar e domar os Espíritos inferiores. Aquele que não é senhor de si não o pode ser dos Espíritos;

3.º ─ Não há outro critério senão o bom-senso para discernir o valor dos Espíritos. Qualquer fórmula dada para esse fim pelos próprios Espíritos é absurda e não pode emanar de Espíritos superiores;

4.º ─ Os Espíritos, como os homens, são julgados por sua linguagem. Toda expressão, todo pensamento, todo conceito, toda teoria moral ou científica que choque o bom-senso ou não corresponda à ideia que fazemos de um Espírito puro e elevado, emana de um Espírito mais ou menos inferior;

5.º ─ Os Espíritos superiores têm sempre a mesma linguagem com a mesma pessoa e jamais se contradizem;

6.º ─ Os Espíritos superiores são sempre bons e benevolentes. Em sua linguagem jamais encontramos acrimônia, arrogância, aspereza, orgulho, gabolice ou tola presunção. Eles falam com simplicidade, aconselham e se retiram quando não são ouvidos;

7.º ─ Não devemos julgar os Espíritos por sua forma material nem pela correção da linguagem, mas sondar-lhes o íntimo, perscrutar suas palavras, pesá-las friamente, maduramente e sem prevenção. Qualquer fuga ao bom-senso, à razão e à sabedoria não pode deixar dúvidas quanto à sua origem, seja qual for o nome com que se mascare o Espírito;

8.º ─ Os Espíritos inferiores receiam os que lhes analisam as palavras, desmascaram as torpezas e não se deixam prender por seus sofismas. Às vezes eles tentam resistir, mas acabam sempre fugindo, quando percebem que são os mais fracos;

9.º ─ Aquele que em tudo age tendo em vista o bem, eleva-se acima das vaidades humanas, expele do coração o egoísmo, o orgulho, a inveja, o ciúme e o ódio e perdoa aos seus inimigos, pondo em prática esta máxima do Cristo: “Fazei aos outros o que quereis que se vos faça”; simpatiza com os bons Espíritos, ao passo que os maus o temem e dele se afastam.

Seguindo estes preceitos, garantimo-nos contra as más comunicações e contra o domínio dos Espíritos impuros. Aproveitando tudo quanto nos ensinam os Espíritos verdadeiramente superiores contribuiremos, cada um à sua maneira, para o progresso moral da Humanidade.



[1] Diríamos, em Português: “Um homem prevenido vale por dois”, o que exprime a mesma ideia. (N. do T.).




[2] Na Revista Espírita de dezembro de 1863, no artigo “Um caso de possessão ─ Srta. Júlia” Allan Kardec passa a admitir a possessão. Em “A Gênese” (1868), capítulo XIV, artigo “Obsessões e possessões”, itens 47 e 48, Kardec explica a possessão.


[3] O jovem médium era protestante


[4] O Sr. F... conhece perfeitamente a língua inglesa, cujas obras-primas aprecia no original.


[5] A Filha do Diabo, de Pierre Jean Béranger (1780-1857). notável e popular poeta lírico francês, que deixou numerosas canções escritas ao gosto da Revolução Francesa, das quais as mais apreciadas são “O Cinco de Maio” e “A Velha Bandeira”. Em 1885 foi-lhe erigida uma estátua em Paris. (N. do T.).


De Estocolmo escrevem ao Journal des Débats, em data de 10 de setembro de 1858:

“Infelizmente, nada de consolador vos tenho a comunicar relativamente à moléstia que sofre o nosso soberano há cerca de dois anos. Todos os tratamentos e remédios que os profissionais têm prescrito durante esse tempo nenhum alívio têm trazido aos padecimentos que abatem o Rei Oscar. Segundo o conselho de seus médicos, o Sr. Klugenstiern, que desfruta de alguma reputação como magnetizador, foi recentemente chamado ao Castelo de Drottningholm, onde continua a residir a família real, a fim de aplicar ao augusto doente um tratamento periódico de magnetismo. Aqui se chega a acreditar que, por singularíssima coincidência, a sede da doença do Rei Oscar se acha localizada precisamente no ponto da cabeça chamado cerebelo, como, infelizmente, parece ser também o caso do Rei Frederico Guilherme IV, da Prússia.”

Perguntamos se há apenas vinte e cinco anos os médicos teriam ousado prescrever publicamente um tal meio, mesmo a um simples particular, quanto mais, com mais forte razão, a uma cabeça coroada. Nessa época, todas as Faculdades científicas e todos os jornais esbanjavam sarcasmos para denegrir o magnetismo e seus partidários. Como mudaram as coisas neste curto espaço de tempo! Não só já não riem do magnetismo, mas ei-lo oficialmente reconhecido como agente terapêutico. Que lição para os que se riem das ideias novas! Ela os fará enfim compreenderem a imprudência de manifestar-se contra as coisas que não entendem? Temos uma porção de livros contra o magnetismo, escritos por homens eminentes. Ora, tais livros ficarão como mancha indelével sobre sua inteligência. Não teriam feito melhor em se calar e esperar? Então, como hoje em relação ao Espiritismo, manifestavam sua opinião contrária os homens mais eminentes, os mais esclarecidos, os mais conscienciosos. Nada lhes abalava o cepticismo. A seus olhos o magnetismo não passava de uma palhaçada indigna de gente séria. Que ação poderia ter um agente oculto, movido pelo pensamento e pela vontade e do qual não se podia fazer uma análise química? Apressemo-nos em declarar que os médicos suecos não foram os únicos a voltar atrás nessa ideia estreita e que por toda parte, na França como no estrangeiro, a opinião mudou completamente, a tal respeito. Isto é tão verdadeiro que, quando acontece um fenômeno sem explicação, diz-se que é um efeito magnético. Acham, pois, no magnetismo, a razão de ser de uma porção de coisas que eram levadas à conta da imaginação, essa razão tão cômoda para os que não sabem o que dizer.

O magnetismo curará o Rei Oscar? É uma outra questão. Sem dúvida ele operou curas prodigiosas e inesperadas, mas tem os seus limites, como tudo o que está na Natureza. Além do mais, é necessário levar em conta esta circunstância: em geral a ele recorrem apenas in extremis e em desespero de causa, muitas vezes quando o mal já fez devastações irremediáveis ou quando foi agravado por medicação inadequada. É necessário que seja muito poderoso para triunfar de tais obstáculos!

Se a ação do fluido magnético é hoje um ponto geralmente admitido, o mesmo não se dá em relação às faculdades sonambúlicas, que ainda encontram muitos incrédulos no mundo oficial, sobretudo no que toca às questões médicas. Contudo, temos de convir que sobre esse ponto os preconceitos se enfraqueceram singularmente, mesmo entre os homens de Ciência. Temos a prova disso no grande número de médicos que fazem parte de todas as sociedades magnéticas, tanto na França quanto no estrangeiro. De tal modo os fatos se vulgarizaram, que foi preciso ceder à evidência e seguir a corrente, quisessem ou não quisessem. O mesmo se dará em breve com a lucidez intuitiva, bem como com o fluido magnético.

O Espiritismo e o magnetismo ligam-se por laços íntimos, como ciências solidárias. Entretanto, quem acreditaria? O Espiritismo encontra os seus mais encarniçados adversários entre certos magnetizadores que nem por isso contam com a oposição dos espíritas. Os Espíritos sempre preconizaram o magnetismo, quer como meio de cura, quer como causa primeira de uma porção de coisas; defendem a sua causa e vêm prestar-lhe apoio contra os seus inimigos. Os fenômenos espíritas têm aberto os olhos de muita gente, ao mesmo passo aliando essas pessoas ao magnetismo. Não é estranho ver os magnetizadores esquecerem tão depressa os preconceitos de que foram vítimas; negarem a existência de seus defensores e lançarem contra eles os dardos que outrora eram lançados sobre si próprios? Isto não é nobre nem digno de homens a quem a Natureza, desvendando os seus mais sublimes mistérios, mais que aos outros tira o direito de pronunciarem o famoso nec plus ultra[1].

Tudo prova, no rápido desenvolvimento do Espiritismo, que em breve também ele terá foros de cidadania. Enquanto espera, aplaude com toda a sua força a posição que acaba de conquistar o magnetismo, como um sinal inconteste do progresso das ideias.



[1] Nec plus ultra ou non plus ultra (além daqui, nada mais) era, segundo a fábula e em língua latina, a inscrição gravada por Hércules nos montes Calpe e Abila, que formavam as chamadas colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), e que se julgava serem os limites do mundo. A expressão é usada para significar um limite intransponível. (N. do T.).




Acabamos de ver o magnetismo reconhecido pela Medicina. Eis uma outra adesão que, sob diverso ponto de vista, é de importância não menos capital, de vez que prova o enfraquecimento dos preconceitos que as ideias mais sãs diariamente fazem desaparecer: é a da Igreja.

Temos em mãos um livrinho intitulado Abrégé, en forme de catéchisme, do curso elementar de instrução cristã, para utilização no catecismo e nas escolas cristãs, escrito pelo abade Marotte, vigário geral do bispo de Verdun em 1853. Redigida sob a forma de perguntas e respostas, a obra contém todos os princípios da doutrina cristã sobre o dogma, a História Sagrada, os mandamentos de Deus, os sacramentos, etc. Num dos capítulos sobre o primeiro mandamento, onde são tratados os pecados contra a religião, e depois de haver falado da superstição, da magia e dos sortilégios, diz o seguinte:

“P. ─ O que é o magnetismo?

“R. ─ É uma influência recíproca que por vezes se opera nos indivíduos, segundo uma harmonia de relações, quer pela vontade ou pela imaginação, quer pela sensibilidade física, e cujos principais fenômenos são a sonolência, o sono, o sonambulismo e o estado convulsivo.

“P. ─ Quais os efeitos do magnetismo?

“R. ─ Ordinariamente, ao que se diz, o magnetismo produz dois efeitos principais: 1.º) Um estado de sonambulismo, no qual o magnetizado, privado inteiramente do uso dos sentidos, vê, ouve, fala e responde a todas as perguntas que lhe são dirigidas; 2.º) Uma inteligência e uma sabedoria que só existem na crise: ele conhece seu estado, os remédios convenientes às suas doenças, bem como o que fazem certas pessoas, mesmo distantes.

“P. ─ Em sã consciência, é lícito magnetizar ou deixar-se magnetizar?

“R. ─ 1º) Se, para a operação magnética, são empregados meios, ou se por ela são obtidos efeitos que supõem a intervenção diabólica, ela será uma obra supersticiosa e jamais deve ser permitida. 2º) O mesmo se dá quando as comunicações magnéticas contrariam a modéstia. 3º) Supondo que se tenha o cuidado de afastar da prática do magnetismo todo abuso, todo perigo para a fé ou para os costumes, todo pacto com o demônio, é duvidoso que a ele seja permitido recorrer como a um remédio natural e útil”

Lamentamos que o autor tenha feito essa ressalva final, em contradição com o que precede. Com efeito, por que não seria permitido o uso de uma coisa salutar, desde que se afastem todos os inconvenientes assinalados, em seu ponto de vista? É verdade que ele não exprime uma proibição formal, mas uma simples dúvida sobre a permissão. Seja como for, isto não se encontra num livro de ciência, dogmático, para o uso exclusivo dos teólogos, mas num livro elementar, para o uso dos catecismos, isto é, destinado à instrução religiosa das massas. Consequentemente, não é uma opinião pessoal, mas uma verdade consagrada e reconhecida que o magnetismo existe; que produz o sonambulismo; que o sonâmbulo goza de faculdades especiais, em cujo número está a de ver sem o concurso dos olhos, mesmo a distância; de ouvir sem o concurso dos ouvidos; de manifestar conhecimentos que não possui em estado normal; de indicar remédios que lhe são salutares.

A qualificação do autor tem aqui grande importância. Não se trata de um homem obscuro que fala ou de um simples padre que emite sua opinião: é um vigário geral que ensina.

Mais um revés e mais um aviso aos que julgam com muita precipitação.

“Comunicam-nos o seguinte fato, que vem confirmar as observações feitas sobre a influência do medo.

“Ontem o Dr. F... voltava para casa depois de ter feito algumas visitas aos seus doentes. Numa dessas visitas haviam-lhe dado uma garrafa de excelente rum, importado diretamente da Jamaica. O médico esqueceu no carro a garrafa preciosa. Lembrando-se, um pouco mais tarde, foi procurá-la e disse ao chefe do estacionamento que havia deixado numa das carruagens uma garrafa de um veneno muito violento e o aconselhou a prevenir aos cocheiros que tivessem o maior cuidado em não fazer uso daquele líquido mortal.

“Quando o Dr. F... acabava de chegar de volta ao seu apartamento, vieram chamá-lo às pressas, pois três cocheiros do vizinho estacionamento sofriam dores horríveis nas entranhas. Foi com muita dificuldade que os convenceu de que tinham bebido excelente rum e que sua indelicadeza não poderia ter tido mais graves consequências que aquele castigo imediato aos culpados.”

1. ─ São Luís poderia dar-nos uma explicação fisiológica dessa transformação das propriedades de uma substância inofensiva? Sabemos que, pela ação magnética, pode ocorrer tal transformação, mas no caso vertente não houve emissão de fluido magnético: agiu apenas a imaginação e não a vontade.

─ Vosso raciocínio é muito justo relativamente à imaginação. Mas os Espíritos malévolos que induziram aqueles homens a cometer um ato indelicado, fazem passar no sangue, na matéria, um arrepio de medo que bem poderíeis chamar de arrepio magnético, que distende os nervos e produz um frio em certas regiões do corpo. Bem sabeis que todo frio na região abdominal pode produzir cólicas. É, pois, um meio de punição que diverte os Espíritos que provocaram a realização do furto e ao mesmo tempo que os faz rir à custa daqueles a quem fizeram pecar. Em todo caso, não ocorreria a morte. Não houve mais que uma simples lição para os culpados e divertimento para Espíritos levianos. Assim procedem, sempre que se lhes oferece uma oportunidade, que até procuram, para sua satisfação. Nós podemos evitar isso, eu lhes afirmo, elevando-nos a Deus por pensamentos menos materiais que os que ocupavam o espírito daqueles homens. Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também aqueles que o ouvem. Nesse caso, pensais estar tratando com um homem de espírito, que no entanto não passa de um ignorante. Pensai bem, e compreendereis o que eu vos digo. Os Espíritos superiores não são, entretanto, inimigos da alegria. Por vezes gostam de rir para se vos tornarem agradáveis. Mas cada coisa tem o seu momento oportuno.

OBSERVAÇÃO: Dizendo que no caso relatado não havia emissão de fluido magnético, talvez não fôssemos muito exatos. Aqui aventuramos uma suposição. Como o dissemos, sabe-se que transformações das propriedades da matéria se podem operar sob a ação do fluido magnético dirigido pelo pensamento. Ora, não é possível admitir que, pelo pensamento do médico que queria fazer crer na existência de um tóxico e dar aos ladrões as angústias do envenenamento tivesse havido à distância uma espécie de magnetização do líquido que assim teria adquirido novas propriedades, cuja ação teria sido corroborada pelo estado moral dos indivíduos, a quem o medo tornara impressionáveis? Esta teoria não destruiria a de São Luís sobre a intervenção dos Espíritos levianos em semelhantes circunstâncias. Sabemos que os Espíritos agem fisicamente por meios físicos; podem, pois, a fim de realizar certos desígnios, servir-se daqueles que eles mesmos provocam e que nós lhes fornecemos inadvertidamente.

O Sr. R..., correspondente do Instituto de França e um dos mais eminentes membros de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, na sessão de 14 de setembro, desenvolveu as considerações que se seguem, como corolário da teoria que acabava de ser dada a propósito do mal do medo, que relatamos pouco acima.

“De todas as comunicações dos Espíritos que nos são fornecidas, verifica-se que eles exercem uma influência direta sobre as nossas ações, uns solicitando-nos para o bem, outros para o mal. São Luís acaba de nos dizer:

─ “Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também àqueles que o ouvem.”

“Disto se segue que aquilo que dizemos nem sempre vem de nós; que muitas vezes, como os médiuns falantes, não somos mais que intérpretes do pensamento de um Espírito estranho que se identificou com o nosso. Os fatos confirmam esta teoria e provam que muito frequentemente também os nossos atos são consequência desse pensamento que nos é sugerido. O homem que faz o mal cede, pois, a uma sugestão, quando bastante fraco para não resistir e quando faz ouvidos moucos à voz da consciência que tanto pode ser a sua própria quanto a de um bom Espírito que por seus avisos nele combate a influência de um Espírito malévolo.

“Segundo o senso comum, o homem tiraria de si mesmo todos os seus instintos. Estes proviriam de sua organização física, pela qual ele não é responsável, ou de sua própria natureza, na qual pode, a seus próprios olhos, procurar uma causa, alegando que não é culpado por ter sido criado assim. A Doutrina Espírita é evidentemente mais moral. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude. Dizendolhe que se ele faz o mal, cede a uma má sugestão estranha, deixa-lhe toda a responsabilidade, de vez que lhe reconhece o poder de resistir, coisa evidentemente mais fácil do que se tivesse que lutar contra a sua própria natureza. Assim, segundo a Doutrina Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre fechar os ouvidos à voz oculta que em seu foro íntimo o solicita para o mal, assim como pode fechá-los à voz material daquele que lhe fala. Ele o pode por vontade própria, pedindo a Deus a força necessária, para o que suplicará a assistência dos bons Espíritos. É isto o que Jesus nos ensina na sublime prece do Pater, quando nos manda dizer: Não nos deixeis sucumbir à tentação, mas livrai-nos do mal.”

Quando tomamos como pretexto de uma de nossas questões a pequena história que acabamos de relatar, não pensávamos no desenvolvimento que a mesma iria ter. Sentimo-nos duplamente feliz pelas belas palavras que ela mereceu de São Luís e de nosso eminente colega. Se não estivéssemos há muito tempo edificado quanto à alta capacidade deste último e quanto aos seus profundos conhecimentos em matéria de Espiritismo, seríamos tentado a crer que aquela teoria a ele se deve e que São Luís dele se serviu para completar o seu ensino. A isto somos levados a juntar as nossas próprias reflexões:

Esta teoria da causa excitadora de nossos atos, evidentemente ressalta de todo o ensino dado pelos Espíritos. Ela não só é de sublime moralidade, mas ainda revela o homem aos seus próprios olhos; mostra-o livre de abalar o jugo obsessor, assim como é livre para fechar a porta aos importunos: já não é qual máquina, agindo por um impulso independente de sua vontade; é um ser pensante que ouve, julga e escolhe livremente entre dois conselhos. Acrescentemos que, apesar disto, o homem absolutamente não é privado de iniciativa; ele a toma por movimento próprio, de vez que é um Espírito encarnado que conserva sob o envoltório corporal as qualidades e defeitos que tinha como Espírito. As faltas que cometemos têm, pois, a primeira fonte na imperfeição de nosso próprio Espírito, que ainda não atingiu a superioridade moral que terá um dia, mas que nem por isso deixa de ter o seu livrearbítrio. A vida corporal lhe é dada para purgar-se das imperfeições, pelas provas que nela sofre, e são precisamente essas imperfeições que o tornam mais fraco e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, os quais se aproveitam da circunstância para tentar fazê-lo sucumbir na luta que empreendeu. Se ele sair vencedor nessa luta, eleva-se; se fracassar, permanecerá o que era, nem melhor, nem pior. É uma prova a recomeçar, e isto pode se prolongar assim por muito tempo. Quanto mais se depurar, mais diminuirão seus pontos fracos e menos sujeito ficará aos que o solicitem para o mal; sua força moral crescerá proporcionalmente à sua elevação e dele afastar-se-ão os maus Espíritos.

Quem serão, pois, esses maus Espíritos? Serão aqueles que chamamos demônios? Não são os demônios na acepção vulgar do vocábulo, de vez que por demônios se compreende uma classe de seres criados para o mal e perpetuamente votados ao mal. Ora, dizem-nos os Espíritos que todos melhoram mais cedo ou mais tarde, conforme sua vontade, mas enquanto são imperfeitos, podem fazer o mal, assim como a água não purificada pode espalhar miasmas pútridos e mórbidos. Encarnados, depuram-se, desde que para tanto façam aquilo que é preciso; na condição de Espíritos, sofrem as consequências do que fizeram ou deixaram de fazer para seu melhoramento, consequências que eles sofrem também na Terra, pois as vicissitudes da vida são ao mesmo tempo expiação e prova.

Todos esses Espíritos, mais depurados ou menos depurados, constituem, quando encarnados, a espécie humana. Como a nossa Terra é um dos mundos menos adiantados, aqui se encontram mais Espíritos maus do que bons, razão pela qual aqui vemos tanta perversidade. Apliquemos pois todos os nossos esforços para não regressarmos a ela depois desta experiência, e para que mereçamos habitar um mundo melhor, numa dessas esferas privilegiadas onde o bem reina sem partilha e onde recordaremos como um mau sonho nossa passagem pela Terra.

ASSASSINATO DE CINCO CRIANÇAS POR OUTRA DE DOZE ANOS

PROBLEMA MORAL

Lemos na Gazette de Silésie:

“A 20 de outubro de 1857 escreveram-nos de Bolkenham que um crime apavorante acabara de ser cometido por um garoto de doze anos. Domingo último, dia 25[1], três filhos do Sr. Hubner, ferreiro, e dois do Sr. Fritche, sapateiro, brincavam no jardim deste último. O jovem H..., conhecido por seu mau caráter, a eles se reuniu e os convenceu a entrarem num baú que estava guardado numa casinha, no jardim, e que era utilizado pelo sapateiro para levar as suas mercadorias à feira. As cinco crianças dificilmente nele podiam caber, mas, aos risos, se apinharam no baú, uns sobre os outros. Assim que entraram, o monstro fechou o baú, sentou-se sobre ele e ficou durante três quartos de hora a escutar, primeiro os seus gritos, depois os seus gemidos.

“Quando finalmente cessaram os seus estertores e que ele as julgou mortas, abriu o baú. As crianças ainda respiravam. Tornou a fechá-lo, aferrolhou-o e foi empinar papagaio. Mas ao sair do jardim foi visto por uma menina. Compreende-se a ansiedade dos pais quando constataram o desaparecimento das crianças e o seu desespero quando, depois de longa procura, as encontraram no baú. Uma das crianças ainda vivia, mas não tardou a expirar. Denunciado pela menina que o vira sair do jardim, o jovem H... confessou seu crime com o maior sangue-frio e sem manifestar o menor arrependimento. As cinco vítimas, um garoto e quatro meninas de quatro a nove anos, foram hoje sepultadas.”

OBSERVAÇÃO: O Espírito interrogado é o da irmã do médium, que desencarnou há doze anos e sempre mostrou superioridade como Espírito.

1. ─ Você ouviu a leitura que acabamos de fazer, do assassinato de cinco crianças, na Silésia, por outra de doze anos?

─ Sim, minha pena ainda exige que escute as abominações da Terra.

2. ─ Que motivos teriam impelido um menino daquela idade a cometer uma ação tão atroz e com tamanho sangue-frio?

─ A maldade não tem idade. Ela é natural numa criança e raciocinada no homem adulto.

3. ─ Sua existência numa criança, sem raciocínio, não denotará a encarnação de um Espírito muito inferior?

─ Ela vem diretamente da perversidade do coração: é seu próprio Espírito que o domina e o impele à perversidade.

4. ─ Qual poderia ter sido a existência anterior de tal Espírito?

─ Horrível.

5. ─ Em sua anterior existência, pertenceria ele à Terra ou a um mundo ainda inferior?

─ Não sei bem, mas deveria pertencer a um mundo bem mais atrasado que a Terra. Ele ousou vir para a Terra. Será duplamente punido.

6. ─ Nessa idade teria o menino suficiente consciência do crime que cometeu? Caber-lhe-á responsabilidade como Espírito?

─ Ele tinha a idade da consciência. Isto basta.

7. ─ De vez que esse Espírito ousou vir à Terra, para ele muito elevada, pode ser constrangido a regressar a um mundo em relação com a sua natureza?

─ Sua punição é justamente retrogradar; é o próprio inferno. Eis a punição de Lúcifer, do homem espiritual que se rebaixou ao nível da matéria; é o véu que doravante lhe oculta os dons de Deus e sua divina proteção. Esforçai-vos, pois, na reconquista desses bens perdidos e tereis reconquistado o paraíso que o Cristo veio abrir para vós. É a presunção, o orgulho do homem que queria conquistar aquilo que só Deus podia ter.

OBSERVAÇÃO: Uma observação é feita a propósito do verbo ousar, empregado pelo Espírito. Citam-se exemplos de Espíritos que se acharam em mundos para eles muito elevados e que foram obrigados a regressar a um outro mais em harmonia com sua própria natureza. A tal respeito alguém fez notar ter sido dito que os Espíritos não podem retrogradar. A isto respondemos que, realmente, os Espíritos não podem retrogradar, no sentido de que não é possível perder aquilo que foi adquirido em conhecimento e em moralidade; podem, entretanto, decair em posição. Um homem que usurpa uma posição superior à que lhe conferem sua capacidade e sua fortuna pode ser constrangido a abandoná-la e voltar à sua posição natural. Ora, não é a isto que se pode chamar decair, pois que ele apenas volta à sua esfera, de onde havia saído por ambição e por orgulho. O mesmo se dá em relação aos Espíritos que querem subir muito rapidamente para mundos onde se acharão deslocados.

Espíritos superiores também podem encarnar em mundos inferiores, onde vão cumprir missões de progresso. A isto não se pode chamar de retrogradação, pois é apenas devotamento.

8. ─ Em que é a Terra superior ao mundo ao qual pertencia o Espírito de quem acabamos de falar?

─ Ali há uma fraca ideia de justiça. É um começo de progresso.

9. ─ Depreende-se disto que em mundos inferiores à Terra não há nenhuma ideia de justiça?

─ Não. Os homens ali vivem apenas para si e não têm por móvel senão a satisfação de suas paixões e de seus instintos.

10. ─ Qual será a posição desse Espírito numa nova existência?

─ Se o arrependimento vier a apagar, senão totalmente, pelo menos em parte, a enormidade de suas faltas, então ficará na Terra; se, ao contrário, persistir no que chamais de impenitência final, irá para um lugar onde o homem se encontra no nível dos animais.

11. ─ Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?

─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.



[1] Há um erro de data, provavelmente de revisão. O dia 25 de outubro de 1857 foi mesmo domingo, mas o fato não poderia ter sido comunicado no dia 20. Assim, a carta deve ser datada de 28 ou 29, mais provavelmente de 29, e não como está no original. (N. do T.).





Retiramos do Courrier du Palais o fato que se segue, publicado pelo Sr. Frédéric Thomas, advogado na Corte Imperial, no la Presse de 2 de agosto de 1858. Transcrevemos textualmente para não tirar o sabor da narração do espirituoso escritor. Os nossos leitores facilmente notarão a forma leve que tão agradavelmente sabe ele dar às coisas mais respeitáveis. Depois de relatar várias coisas, acrescenta:

Temos um caso bem mais estranho que aquele para vos oferecer em nova perspectiva: já o vemos apontar no horizonte, no horizonte do Sul. Mas onde pretende chegar? Alguém escreveu que os ferros já estão em brasa, mas isto não nos basta. Trata-se do seguinte:

Um parisiense leu num jornal que se achava à venda um velho castelo nos Pireneus; comprou-o e nos primeiros dias gloriosos da bela estação lá foi instalar-se com seus amigos.

Jantaram alegremente e depois, ainda mais alegres, foram deitar-se. Restava passar a noite; a noite num velho castelo, perdido na montanha. No dia seguinte, todos os convidados se levantaram espantados, com cara de assombro; foram procurar seu hospedeiro e lhe fizeram a seguinte pergunta, com um ar lúgubre e misterioso:

─ Você não viu nada esta noite?

O proprietário não respondeu, de tão espantado que também se achava. Limitou-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça.

Então trocaram em voz baixa as impressões da noite: um ouvira vozes lamentosas, outro, ruído de correntes; este viu movimentos nas tapeçarias, aquele uma arca que o saudava; muitos sentiram que morcegos gigantescos pousavam sobre seus peitos. É um castelo da Dama Branca. Os criados declararam que, como ao rendeiro Dickson, os fantasmas lhes haviam puxado os pés. Ainda mais! As camas passeavam, as campainhas tocavam sozinhas e palavras fulgurantes sulcavam as velhas lareiras.

Decididamente, o castelo era inabitável. Os mais amedrontados debandaram imediatamente. Os mais corajosos enfrentaram a prova de uma segunda noite.

Até meia-noite tudo correu bem, mas desde que o relógio da torre do Norte lançou no espaço as doze badaladas, recomeçaram os ruídos e as aparições. De todos os lados surgiam fantasmas, monstros de olhos de fogo e dentes de crocodilo, agitando asas peludas. Aquilo tudo grita, salta, range os dentes e faz um sabbat dos infernos.

Impossível resistir a essa segunda experiência. Desta feita todos deixam o castelo e hoje o proprietário quer intentar uma ação de indenização por perdas e danos.

Que estranho processo não será este! E que triunfo para o grande evocador de Espíritos que é o Sr. Home! Poderá ser ele considerado perito neste assunto? Seja como for, e desde que nada há de novo sob o sol da justiça, esse processo, que julgarão ser uma novidade, não passa de uma velharia, pois existe um caso ainda não solucionado que, por ter a idade de duzentos e sessenta e três anos, não deixa de ser menos interessante.

É o caso que, no ano da graça de 1595, perante o senescal de Guyenne, um locatário chamado Jean Latapy moveu uma ação contra o proprietário, Robert de Vigne. Alegava Jean Latapy que a casa que de Vigne lhe havia alugado, uma velha casa de Bordéus, era inabitável e que ele fora obrigado a deixá-la. À vista disso pedia que a justiça determinasse a rescisão do contrato.

Sob que fundamento? Latapy os apresenta muito ingenuamente em suas conclusões:

“Porque havia encontrado a casa infestada de Espíritos que se apresentavam tanto sob a forma de crianças quanto sob outras formas, terríveis a apavorantes. Eles importunavam e inquietavam as pessoas; desarrumavam os móveis; faziam ruídos e algazarra por todos os lados e com força e violência derrubavam do leito aqueles que nele repousavam.”

O proprietário de Vigne opôs-se energicamente à rescisão do contrato. Respondia ele a Latapy: “Descreveis minha casa injustamente; é provável que tenhais apenas aquilo que mereceis e em vez de me fazer reproches, deveríeis, ao contrário, agradecer-me, pois que vos faço ganhar o Paraíso.”

Eis como o advogado do proprietário fundamentou esta singular proposição: “Se os Espíritos vêm atormentar Latapy e afligi-lo, com a permissão de Deus, deve ele suportar a justa pena e dizer como São Jerônimo: Quidquid patimur nostris peccatis meremur[1], e não atacar o proprietário, que é absolutamente inocente. Deveria antes ser grato àquele que assim lhe forneceu a maneira de, neste mundo, salvar-se das punições que, por seu demérito, o aguardam no outro.”

Para ser coerente, o advogado deveria ter pedido que Latapy pagasse uma certa indenização a de Vigne, por serviços prestados. Um lugar no Paraíso não vale o seu peso em ouro? Mas o generoso proprietário contentava-se com a denegação do pedido da ação, por isso, antes de intentá-la, Latapy deveria ter começado a combater e expulsar os Espíritos pelos meios que Deus e a Natureza nos deram.

“Por que não usava o loureiro? exclamava o advogado do proprietário. Por que não usava arruda ou o sal crepitando nas chamas e nos carvões acesos; penas de poupa ou uma composição de ervas, a chamada aerolus vetulus; com ruibarbo; com vinho branco; com sais pendurados à porta de entrada; couro de testa de hiena; fel de cachorro, que dizem ter uma virtude maravilhosa para expulsar os demônios? Por que não usava a erva Moly, que Mercúrio deu a Ulisses e da qual este se serviu como antídoto contra os encantos de Circe?...”

É evidente que o locatário Latapy tinha faltado a todos os seus deveres, não atirando sal crepitante às chamas, não fazendo uso do fel de cachorro e de algumas penas de poupa. Mas como teria sido obrigado a procurar também couro de testa de hiena, o senescal de Bordéus achou que esse material não era bastante comum para que Latapy não fosse desculpado por deixar em paz as hienas e determinou, belo e formoso, a rescisão do contrato de arrendamento.

Vedes em tudo isto que nem o proprietário, nem o locatário, nem os juízes põem em dúvida a existência e a algazarra dos Espíritos. Pareceria, pois, que há mais de dois séculos os homens seriam mais crédulos do que hoje, mas nós os ultrapassamos em credulidade, o que não é de estranhar-se: é mesmo necessário que a civilização e o progresso se revelem em algum lugar.”

Abstração feita dos acessórios com que a enfeitou o narrador, esta questão não deixa de ter seu lado embaraçoso, porque a lei não previu o caso em que Espíritos batedores tornariam uma casa inabitável. É um vício redibitório? Em nossa opinião há prós e contras, de acordo com as circunstâncias. Inicialmente, é necessário averiguar se o barulho é real ou se foi simulado com uma intenção qualquer, questão prévia e de boa-fé que prejulga as demais. Admitindo os fatos como reais, é preciso saber se são de natureza a perturbar o repouso. Se, por exemplo, se passassem coisas como em Bergzabern[2], é evidente que a posição não seria sustentável. O velho Sänger suporta aquilo tudo porque é em sua própria casa e não tem remédio, mas de modo algum um estranho se acomodaria numa habitação onde, constantemente, se ouve barulho ensurdecedor; onde os móveis são revirados; onde as portas e janelas se abrem e se fecham a torto e a direito; onde mãos invisíveis jogam objetos na cabeça das pessoas, etc. Parece que, em semelhantes condições, há lugar para reclamação e que, com justiça, um tal contrato não deveria ter validade, se os fatos tivessem sido dissimulados. Assim, de modo geral, o processo de 1595 parece ter sido bem julgado, mas resta esclarecer importante questão subsidiária, que só a ciência espírita poderia levantar e resolver.

Sabemos que as manifestações espontâneas dos Espíritos podem ocorrer sem objetivo determinado e sem que se dirijam contra esta ou aquela pessoa; que, efetivamente, há lugares assombrados por Espíritos batedores que parece aí fixaram domicílio e contra os quais todas as conjurações empregadas são ineficazes. Digamos, entre parêntesis, que existem meios eficazes de nos desembaraçarmos deles, mas que tais meios não consistem na intervenção de pessoas conhecidas por produzirem à vontade semelhantes fenômenos, porque os Espíritos que se acham às suas ordens são da mesma natureza daqueles que devem ser expulsos. Longe de afastá-los, sua presença apenas poderia atrair outros. Mas também sabemos que, numa porção de casos, tais manifestações se dirigem contra certos indivíduos, como em Bergzabern. Os fatos provaram que a família, principalmente a pequena Filipina, era seu objetivo direto, de tal modo que estamos convencidos de que se a família deixasse aquela casa, os novos moradores nada teriam que temer. Aquela gente levaria suas tribulações para seu novo domicílio.

A questão a examinar, do ponto de vista legal, é se as manifestações ocorriam antes ou somente depois da entrada do novo proprietário. Neste último caso seria evidente que este é quem teria levado os Espíritos perturbadores e, pois, a ele incumbiria a inteira responsabilidade; se, ao contrário, as perturbações ocorriam anteriormente e persistem, é que estas prender-se-iam ao local e, assim, a responsabilidade caberia ao vendedor.

O advogado do proprietário raciocinava com a primeira hipótese e seu argumento não era baldo de lógica. Resta saber se o locatário havia levado consigo esses hóspedes importunos, coisa que o processo não apurou.

Quanto ao processo ora pendente, cremos que o meio de fazer boa justiça seria fazer as constatações de que acabamos de falar. Se estas provarem a anterioridade das manifestações e que o fato foi dissimulado pelo vendedor, estamos diante do caso de um comprador enganado quanto à qualidade do objeto da transação. Ora, manter a venda em semelhantes condições talvez seja prejudicar o adquirente pela depreciação do imóvel. É, pelo menos, causar-lhe um prejuízo considerável, constrangendo-o a guardar uma coisa de que não pode fazer uso, assim como um cavalo cego, que se houvesse adquirido como são.

Seja como for, a causa em lide deve ter consequências graves. Quer seja rescindido o contrato, quer seja mantido por falta de provas suficientes, será reconhecida a existência do fato das manifestações. Rejeitar a propositura sob a alegação de que se fundamenta em motivos ridículos é expor-se a receber, mais cedo ou mais tarde, um desmentido da experiência, como tantas vezes aconteceu com as mais eminentes figuras, por se haverem apressado em negar aquilo que não entendiam. Se nossos pais podem ser censurados por excessiva credulidade, nossos descendentes sem dúvida nos reprocharão por havermos pecado pelo excesso contrário.

Enquanto esperamos, eis o que se passa aos nossos olhos e que até chegamos a constatar. Referimo-nos à crônica do La Patrie, de 4 de setembro de 1858:

“A Rua du Bac está em polvorosa. Lá ainda ocorrem diabruras. A casa de número 65 consta de dois blocos. O que dá para a rua tem duas escadarias que se confrontam.

“Há uma semana, em diversas horas do dia e da noite, em todos os andares do prédio, as campainhas soam e se agitam violentamente. Quando vão abrir, não ninguém à entrada.

“A princípio pensaram que fosse brincadeira e cada um se pôs a observar, para ver se descobria o seu autor.

“Um dos inquilinos teve o cuidado de despolir um vidro de sua cozinha e ficou de atalaia. Enquanto vigiava com a maior atenção, sua campainha foi sacudida. Ele pôs o olho no postigo, ninguém! Correu à escadaria, ninguém! Voltou para casa e tirou o cordão da campainha. Uma hora depois, quando se sentia triunfante, a campainha começou a tocar galhardamente. Ele a vê tocar e fica mudo e consternado.

“Noutras portas os cordões das campainhas ficam torcidos e enrodilhados, como serpentes feridas. Procura-se uma explicação e chama-se a polícia.“Mas que mistério é esse? Ainda o ignoram.”



[1] Tudo aquilo a que estamos expostos merecemos por nossos pecados. (N. do T.).


[2] Vide os números 5, 6 e 7 da REVISTA ESPÍRITA


O Constitutionel e o Patrie transcreveram, há algum tempo, o fato seguinte, retirado de jornais dos Estados Unidos:

“A pequena cidade de Lichtfield, no Kentucky, conta numerosos adeptos da doutrina do espiritualismo magnético. Um fato incrível, que acaba de se passar ali, por certo não dará pequena contribuição para o aumento dos partidários dessa religião nova.
“A família Park, composta de pai, mãe e três filhos já na idade da razão, estava fortemente imbuída das crenças espiritualistas. Em compensação, a Srta. Harris, irmã da Sra. Park, não acreditava absolutamente nos prodígios sobrenaturais de que cogitavam incessantemente. Isto era para toda a família um verdadeiro motivo de mágoa que mais de uma vez abalou a boa harmonia entre as duas irmãs.

“Há alguns dias a Sra. Park foi subitamente atingida por um mal que de início os médicos declararam não poder debelar. A paciente era vítima de alucinações e uma terrível febre a atormentava constantemente. A Srta. Harris passava todas as noites em claro. No quarto dia de sua doença, a Sra. Park sentou-se na cama, pediu água e começou a conversar com a irmã. Circunstância singular é que a febre havia desaparecido de repente; o pulso tornara-se regular e ela falava com a maior facilidade. Toda feliz, a Srta. Harris pensou que a irmã estivesse fora de perigo.

“Depois de haver falado de seu marido e dos filhos, a Sra. Park aproximou-se ainda mais da irmã e lhe disse:

“Pobre irmã, vou deixar-te. Sinto que a morte se aproxima. Mas, pelo menos a minha partida deste mundo servirá para te converter. Morrerei dentro de uma hora e serei enterrada amanhã. Evita com muito cuidado acompanhar meu corpo ao cemitério, porque meu Espírito, revestido de seus despojos mortais, aparecer-te-á antes que o ataúde seja coberto de terra. Então tu acreditarás no espiritualismo.”

“Acabando de pronunciar estas palavras, a doente deitou-se tranquilamente. Mas, uma hora depois, como havia anunciado, a Srta. Harris teve a dor de verificar que o coração de sua irmã havia deixado de pulsar.

“Vivamente emocionada pela espantosa coincidência entre este acontecimento e as palavras proféticas da defunta, resolveu seguir as ordens que lhe haviam sido dadas e no dia seguinte ficou em casa sozinha, enquanto todos se haviam encaminhado para o cemitério.

“Depois de haver fechado os postigos da câmara mortuária, sentou-se numa poltrona, perto da cama de onde acabara de sair o corpo de sua irmã.

“Apenas decorridos cinco minutos ─ contou mais tarde a Srta. Harris ─ vi como que uma nuvem branca destacar-se no fundo do quarto. Pouco a pouco a forma se desenhou melhor: era a de uma mulher, meio velada; aproximou-se lentamente de mim; percebi o ruído de passos leves no soalho; por fim meus olhos admirados se acharam em presença de minha irmã...

“Seu rosto, longe de possuir essa palidez mate que nos mortos impressiona tão penosamente, estava radiante. Suas mãos, cuja pressão bem senti sobre as minhas, tinham conservado todo o calor da vida. Fui como que transportada a uma esfera nova, por essa aparição maravilhosa. Supondo já pertencer ao mundo dos Espíritos, apalpei o meu peito e a minha cabeça, para me certificar de minha existência. Mas nada de penoso havia nesse êxtase.

“Depois de ter permanecido assim em minha frente durante alguns minutos, sorridente mas silenciosa, minha irmã pareceu fazer um violento esforço e me disse com voz suave:

“─ Já é tempo de eu partir. Meu anjo condutor espera-me. Adeus! Cumpri minha promessa. Crê e espera!”

“Acrescenta o Patrie: “O jornal de onde extraímos a notícia maravilhosa não nos diz se a Srta. Harris se converteu à doutrina espiritualista. Entretanto, nós o admitimos, porque muita gente se deixaria convencer por muito menos.” Acrescentamos, por nossa própria conta, que o relato nada tem que deva causar espanto àqueles que estudaram os efeitos e as causas dos fenômenos espíritas. Os fatos autênticos deste gênero são bastante numerosos e têm sua explicação no que dissemos a esse respeito em várias circunstâncias. Teremos oportunidade de narrar outros, vindos de menos longe do que este.

ALLAN KARDEC[1]

SOCIEDADE PARISIENSE DE ESTUDOS ESPÍRITAS NOVO REGULAMENTO
Tendo a Sociedade feito algumas modificações em seu regulamento, nós o remetemos anexo a este número da Revista, na versão atual. Doravante fica cancelado o exemplar que foi anexado ao número de maio, e que aqueles que o receberam deverão considerar nulo.


[1] Paris – Tipografia de Cosson & Cia., Rua do Four-Saint-Germain, 43.




Novembro

Perguntaram-nos muitas vezes por que não respondíamos, em nossa revista, aos ataques de certas folhas contra o Espiritismo em geral, contra os seus partidários e por vezes mesmo contra nós. Cremos que em certos casos é o silêncio a melhor resposta. Além do mais, há um gênero de polêmica do qual tomamos por norma nos abstermos: a que pode degenerar em personalismo. Isto não só nos repugna, como nos tomaria um tempo que não podemos empregar inutilmente, além de ser muito pouco interessante para os nossos leitores, que assinam a revista para sua instrução e não para ler diatribes mais ou menos espirituosas. Ora, uma vez nesse caminho, difícil seria dele sair. Por isto preferimos nele não entrar. Parece-nos que com isto o Espiritismo só teria a ganhar em dignidade. Até aqui só temos que aplaudir a nossa própria moderação, da qual não nos arredaremos. Jamais daremos satisfação aos amantes de escândalos.

Entretanto, há polêmica e polêmica. Há uma ante a qual jamais recuaremos ─ é a discussão séria dos princípios que professamos. Contudo, aqui também deve ser feita uma distinção. Se se trata apenas de ataques gerais, dirigidos contra a doutrina, sem um fim determinado, além do de criticar, e se partem de pessoas que rejeitam sistematicamente tudo quanto não compreendem, não merecem a nossa atenção. O terreno diariamente ganho pelo Espiritismo é resposta peremptória e lhes deve provar que os sarcasmos não têm produzido grande resultado. Ainda há a notar que as intermináveis pilhérias de que eram vítimas os partidários da doutrina vão se extinguindo pouco a pouco. É o caso de perguntar se há motivos para rir de tantas pessoas eminentes, pelo fato de adotarem as ideias novas. Hoje alguns esboçam um sorriso apenas por hábito, enquanto outros absolutamente não riem mais e esperam.

Notemos ainda que entre os críticos há muita gente que fala sem conhecimento de causa e sem se ter dado ao trabalho de aprofundar-se. Para lhes responder fora necessário, incessantemente, recomeçar as mais elementares explicações e repetir aquilo que já escrevemos, o que nos parece inútil. Já o mesmo não se dá com os que estudaram e nem tudo compreenderam e com os que realmente querem esclarecerse, que levantam objeções de boa-fé e com conhecimento de causa. Neste terreno aceitamos a controvérsia, sem nos gabarmos de resolver todas as dificuldades, o que seria demasiada pretensão. A ciência espírita está em seu início e ainda não nos revelou todos os seus segredos, por maiores que sejam as maravilhas já desveladas. Qual a ciência que não mais possui fatos misteriosos e inexplicados? Confessaremos, pois, sem nenhum acanhamento, a nossa insuficiência sobre os pontos que ainda não podemos explicar. Assim, longe de repelir as objeções e as perguntas, nós as solicitamos, desde que não sejam irrelevantes e não nos façam inutilmente perder tempo com futilidades, pois que é esse um meio de nos esclarecermos.

É a isto que denominamos polêmica útil, e será útil sempre que ocorrer entre gente séria, que se respeita o bastante para não perder o decoro. Podemos pensar de modo diverso sem diminuirmos a estima recíproca.

Afinal de contas, que buscamos todos nessa palpitante e fecunda questão do Espiritismo? Esclarecermo-nos. Antes de mais nada buscamos a luz, venha de onde vier, e se externamos a nossa maneira de ver, não se trata de uma opinião pessoal, que pretendamos impor aos outros. Entregamo-la à discussão e estamos dispostos a renunciá-la, se nos demonstrem que estamos em erro.

Essa polêmica, nós a sustentamos diariamente, em nossa Revista, através das respostas ou das refutações coletivas que publicamos a propósito deste ou daquele artigo. Aqueles que nos honram com suas cartas encontrarão sempre a resposta ao que nos perguntam, toda vez que não nos é possível responder em carta particular, o que nem sempre é materialmente possível. Suas perguntas e objeções constituem outros tantos assuntos de estudo, de que nos aproveitamos pessoalmente; e nos sentimos felizes por estender esse proveito aos leitores, à medida que se apresentam fatos em conexão com as mesmas. Também sentimos prazer em dar explicações verbais às pessoas que nos honram com a sua visita e nas conferências caracterizadas por um cunho de entendimento, nas quais nos esclarecemos mutuamente.

Das diversas doutrinas professadas pelo Espiritismo, a mais controvertida é, inquestionavelmente, a da reencarnação ou da pluralidade das existências corpóreas. Embora seja esta opinião atualmente partilhada por grande número de pessoas e que já tenha sido abordada por nós em várias ocasiões, julgamos um dever aqui examiná-la mais minuciosamente, à vista de sua extraordinária importância e para responder a diversas objeções que foram levantadas.

Antes de entrar a fundo na questão, devemos fazer algumas observações que se nos afiguram indispensáveis.

Para muitas pessoas o dogma da reencarnação não é novo: é ressuscitado de Pitágoras. Nós jamais dissemos que a Doutrina Espírita é uma invenção moderna. Decorrendo de uma lei natural, o Espiritismo deve ter existido desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos por provar que os seus traços são encontrados na mais alta Antiguidade.

Como se sabe, Pitágoras não é o autor do sistema da metempsicose. Ele bebeu-o nos filósofos indianos e entre os egípcios, onde ela existia desde tempos imemoriais. Assim, a ideia da transmigração das almas era uma crença vulgar, admitida pelas mais eminentes personalidades.

De onde ela veio? Pela revelação ou pela intuição? Não o sabemos. Mas, seja como for, uma ideia não atravessa as idades e não é aceita pelas inteligências de escol se não tiver um lado sério. Sua antiguidade, pois, seria antes uma prova do que uma objeção.

Contudo, como é também sabido, há entre a metempsicose dos Antigos e a moderna doutrina da reencarnação esta grande diferença: os Espíritos repelem de modo absoluto a transmigração da alma do homem para os animais e vice-versa.

Sem dúvida, dizem alguns contraditores, vós estáveis imbuídos de tais ideias e por isso os Espíritos concordaram com vossa maneira de ver. É um erro que prova, mais uma vez, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se, antes de julgar, tais pessoas se tivessem dado ao trabalho de ler o que escrevemos sobre o Espiritismo, ter-se-iam poupado ao trabalho de uma objeção tão leviana. Repetiremos, pois, o que já dissemos a respeito, isto é, que quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema.

Aos olhos de algumas pessoas, talvez pareça singular o uso do termo evidência, em semelhante assunto, entretanto não será impróprio para quem se habituou a perscrutar os fenômenos espíritas. Para o observador atento há fatos que, embora não sejam de natureza absolutamente material, nem por isso deixam de constituir verdadeira evidência, pelo menos uma evidência moral.

Não é aqui o lugar para explicar esses fatos, só compreensíveis através de um estudo contínuo e perseverante. Nosso objetivo era apenas refutar a ideia de que esta doutrina não passa de uma tradução do nosso pensamento.

Outra refutação devemos fazer ainda: é que não somente a nós foi ela ensinada; que foi ventilada em muitos lugares, tanto na França quanto no estrangeiro: na Alemanha, na Holanda, na Rússia, etc., e isto mesmo antes da publicação do Livro dos Espíritos.

Acrescentemos ainda que desde que nos entregamos ao Espiritismo, temos tido comunicações de mais de cinquenta médiuns escreventes, falantes, videntes, etc., mais ou menos esclarecidos; de inteligência normal mais ou menos limitada; alguns até completamente iletrados e por isso mesmo completamente alheios aos assuntos filosóficos e que, em nenhum caso, os Espíritos se desmentiram sobre este ponto. O mesmo se dá em todos os círculos que conhecemos, onde tal princípio é professado. Bem sabemos que este argumento não é irretorquível e, por isso mesmo, não insistiremos senão pelo raciocínio.

Examinemos a questão sob outro ponto de vista, com abstração de qualquer intervenção dos Espíritos, os quais momentaneamente deixaremos de lado. Suponhamos que esta teoria não lhes diga respeito; suponhamos até que jamais se houvesse cogitado de Espíritos. Assim, coloquemo-nos momentaneamente num terreno neutro, admitindo para uma e outra das hipóteses o mesmo grau de probabilidade, isto é: a pluralidade e a unicidade das existências corporais, e vejamos de que lado estarão a razão e o nosso próprio interesse.

A certas pessoas repugna a ideia da reencarnação, pelo único motivo de lhes não convir. Dizem que uma existência é bastante e que não desejam recomeçar numa outra. Conhecemos algumas pessoas para quem a ideia de reaparecer na Terra as deixa enfurecidas. Queremos apenas lhes perguntar se Deus teria tomado o seu conselho ou consultado o seu gosto antes de criar o Universo.

Ora, de duas, uma: ou há, ou não há reencarnação. Se há, ficarão contrariadas, mas terão que submeter-se a ela, sem que Deus lhes peça permissão. Até parece que estamos ouvindo um doente dizer: “Hoje eu sofri muito; não quero mais sofrer amanhã”. Seja qual for o seu humor, não sofrerá menos amanhã e nos dias seguintes, até curar-se. Assim, pois, se tiverem que reviver corporalmente, reviverão; reencarnar-se-ão. Não adianta revoltar-se como um menino que não quer ir à escola ou um condenado que não quer ir para a prisão: terão que ir para lá. Semelhantes objeções, de tão pueris, não merecem exame sério. Diremos, entretanto, para acalmá-las, que a Doutrina Espírita sobre a reencarnação não é tão terrível quanto elas pensam e que se a tivessem estudado a fundo ela não lhes infundiria tanto pavor. Elas saberiam que as condições de uma nova existência depende de si mesmas; ela será feliz ou infeliz, conforme o que hajam feito aqui na Terra; e elas podem desde esta vida elevar-se tanto que não mais temerão a recaída no lamaçal.

Supomos falar a pessoas que acreditam num futuro qualquer após a morte, e não àqueles que têm o nada como perspectiva ou que desejam mergulhar a alma num todo universal, sem individualidade, como gotas de chuva no oceano, o que vem a ser praticamente o mesmo. Se, portanto, acreditais num futuro qualquer, não admitireis, sem dúvida, que ele seja igual para todos, pois, de outra forma, qual seria a utilidade do bem? Por que constranger-se? Por que não satisfazer a todas as paixões, a todos os desejos, mesmo que em detrimento de outros, sendo que isso não teria a menor importância?

Acreditais que esse futuro será mais ou menos feliz, de acordo com o que tivermos feito durante a vida? Tendes então o desejo de que ele seja tão feliz quanto possível, de vez que isso é para toda a eternidade? Teríeis por acaso a pretensão de ser um dos homens mais perfeitos que jamais existiram na Terra e de ter assim a primazia, o direito à suprema felicidade dos eleitos? Não. Então admitis que haja homens que valem mais do que vós e que têm direito a um lugar melhor, sem que, entretanto, por isto sejais condenados.

Pois bem! Colocai-vos por um instante, em pensamento, na situação média, que será a vossa, pois que com isso concordastes, e suponde que alguém vos venha dizer:

─ Sofreis; não sois felizes quanto o poderíeis; entretanto, tendes à vossa frente seres que desfrutam de uma felicidade pura. Quereis trocar a vossa situação pela deles?

─ Sem dúvida! respondereis. Que devemos fazer?

─ Nada menos que recomeçar aquilo que fizestes mal, procurando fazê-lo melhor.

─ Teríeis dúvida em aceitá-lo, mesmo à custa de várias existências de prova?

Façamos uma comparação mais prosaica. Se a um homem que, embora não estivesse na mais extrema das misérias, experimentasse privações em consequência da falta de recursos viessem dizer: “Eis uma imensa fortuna; podereis desfrutá-la, mas para isso deveis trabalhar arduamente durante um minuto.” Ainda que ele fosse o maior preguiçoso da Terra, diria sem hesitar: “Trabalhemos um minuto, dois, uma hora, um dia se for preciso. Que representa isto, se minha vida vai acabar na abundância?” Ora, que é a duração da vida corporal em relação à Eternidade? Menos de um minuto, menos de um segundo.

Temos ouvido o seguinte raciocínio: Como é que Deus, soberanamente bom, pode impor ao homem recomeçar uma série de misérias e de tribulações? Acaso acharia ele que há mais bondade em condenar o homem a um sofrimento perpétuo em consequência de alguns momentos de erro do que lhe dar os meios de reparar as próprias faltas?

“Dois fabricantes tinham cada qual um operário que podia aspirar tornar-se sócio do patrão. Aconteceu que certo dia esses operários empregaram muito mal a sua jornada e mereceram ser postos na rua. Um dos fabricantes despediu o empregado, a despeito de suas súplicas. Não tendo encontrado trabalho, ele morreu na miséria. O outro disse ao seu: Você perdeu um dia e me deve um em compensação; fazendo mal a sua tarefa, deve-me uma reparação. Eu lhe permito recomeçar. Procure trabalhar bem e eu o conservarei, e você poderá sempre aspirar à posição superior que lhe prometi”.

Será necessário perguntar qual dos dois fabricantes foi o mais humano? Deus, que é a própria clemência, seria mais inexorável que esse homem?

O pensamento de que a nossa sorte esteja para sempre fixada por alguns anos de prova, quando nem sempre dependeu de nós atingir a perfeição na Terra, tem algo de pungente, ao passo que a ideia contrária é eminentemente consoladora, pois nos dá a esperança.

Assim, sem nos pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das existências; sem preferir uma a outra hipótese, diremos que se nos fosse dado escolher, ninguém preferiria um julgamento sem apelo.

Disse um filósofo que se Deus não existisse seria preciso inventá-lo, para a felicidade do gênero humano. O mesmo se poderia dizer da pluralidade das existências. Mas, como dissemos, Deus não nos pede permissão; não consulta o nosso gosto. Ou é, ou não é.

Vejamos de que lado estão as probabilidades e encaremos o problema sob outro ponto de vista, sempre fazendo abstração do ensino dos Espíritos, considerando-o apenas como estudo filosófico.

É evidente que sem reencarnação haverá apenas uma existência corporal. Se nossa existência corporal atual for a única, cada alma é criada ao nascer, a menos que se admita a sua anterioridade. Neste caso é de perguntar-se o que seria a alma antes do nascimento e se esse estado não constituiria uma existência, sob uma forma qualquer. Não há meio termo: ou a alma existia ou não existia antes do corpo. Se existia, qual seria a sua situação? Tinha ou não consciência de si mesma? Se não tinha consciência, é como se não existisse; se tinha sua individualidade, era progressiva ou estacionária? Num caso como no outro, em que grau ela chegou ao corpo? Admitindo, segundo a crença vulgar, que a alma nascesse com o corpo, ou, o que dá no mesmo, que anteriormente à sua encarnação tivesse apenas faculdades negativas, levantamos as seguintes questões:


1. ─ Por que mostra a alma aptidões tão diversas e independentes das ideias adquiridas pela educação?

2. ─ De onde vem, nas crianças em tenra idade, a aptidão supranormal para tal arte ou tal ciência, enquanto outras ficam medíocres ou inferiores por toda a vida?

3. ─ De onde vêm as ideias inatas, que uns apresentam e outros não?

4. ─ De onde, em certas crianças, instintos precoces de vícios ou de virtudes; sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza, contrastando com o meio onde nasceram?

5. ─ Por que, abstração feita da educação, certos homens são mais adiantados que outros?

6. ─ Por que há selvagens e civilizados? Se tomardes um hotentote nos cueiros e o educardes nos mais afamados liceus, fareis dele um Laplace ou um Newton?


Perguntamos qual é a Filosofia ou a Teosofia[1] que poderá resolver tais problemas. Ou as almas são iguais ao nascer, ou não são, não resta dúvida. Se são iguais, por que tão diversas aptidões? Dir-se-á que isto depende do organismo. Mas isto será então a mais monstruosa e a mais imoral das doutrinas. O homem não passaria de uma máquina e de um joguete da matéria; não teria a responsabilidade de seus atos; poderia tudo lançar à conta de suas imperfeições físicas. Se são desiguais, é que Deus assim as criou. Mas então por que essa superioridade inata concedida a alguns? Será tal parcialidade conforme à justiça de Deus e ao amor que dedica igualmente a todas as criaturas? Admitamos, ao contrário, uma série de anteriores existências progressivas, e tudo ficará explicado. Ao nascerem, trazem os homens a intuição daquilo que adquiriram. São mais ou menos adiantados, conforme o número de existências percorridas e conforme se achem mais ou menos afastados do ponto de partida. Absolutamente como numa reunião de indivíduos de todas as idades, cada um terá um desenvolvimento proporcional ao número de anos que tiver vivido. As existências sucessivas serão para a vida da alma o que são os anos para a vida do corpo. Reuni um dia mil indivíduos de um a oitenta anos. Suponde que um véu seja lançado sobre todo o seu passado e que, em vossa ignorância, pensais que todos eles nasceram no mesmo dia. Naturalmente perguntareis como é que uns são grandes e outros pequenos, uns velhos e outros moços, uns instruídos e outros ignorantes. Mas, se for retirada a nuvem que vos oculta o passado e se souberdes que uns viveram mais do que outros, tudo ficará explicado. Em sua justiça, Deus não poderia ter criado algumas almas mais perfeitas que outras; entretanto, com a pluralidade das existências, a desigualdade que vemos nada mais conterá de contrário à mais rigorosa equidade. É que vemos o presente e não o passado. Repousará tal argumento sobre um sistema ou suposição gratuita? Não. Nós partimos de um fato patente e incontestável: a desigualdade de aptidões e de desenvolvimento intelectual e moral, fato que achamos inexplicável por todas as teorias ora em curso, ao passo que sua explicação é simples, natural e lógica por uma outra teoria. Será natural preferir a que não explica à que explica? Relativamente à sexta questão, dir-se-á, sem dúvida, que o hotentote é de uma raça inferior. Então perguntamos se ele é ou não é homem? Se for, por que Deus o teria deserdado, e à sua raça, dos privilégios concedidos à raça caucásica? Se não é homem, por que procurar fazê-lo cristão? A Doutrina Espírita é mais ampla do que tudo isto. Para ela não existem várias espécies de homens; simplesmente existem homens cujo Espírito é mais ou menos atrasado, susceptível, entretanto, de progredir. Não será isto mais conforme à justiça de Deus? Acabamos de ver a alma no seu passado e no seu presente. Se a considerarmos em seu futuro, encontraremos as mesmas dificuldades.

1. ─ Se é unicamente a nossa existência presente que deve decidir o nosso porvir, qual será, na vida futura, a posição respectiva do selvagem e do homem civilizado? Estarão no mesmo nível ou distanciados na soma de felicidades eternas?

2. ─ O homem que durante toda sua vida trabalhou para se melhorar estará no mesmo nível daquele que permaneceu inferior, não por falta sua, mas porque não teve nem tempo nem possibilidades de melhorar-se?

3. ─ O homem que pratica o mal porque não teve possibilidade de esclarecer-se está sujeito a circunstâncias que não dependeram dele?


4. ─ Trabalha-se para esclarecer os homens, moralizá-los, civilizá-los; mas para cada um que se esclarece, há milhões que morrem diariamente, antes que a luz chegue até eles. Qual é o destino desses? São eles tratados como réprobos? Se não o são, o que fizeram para serem mantidos na mesma classe dos outros?

5. ─ Qual a sorte das crianças que morrem em tenra idade, antes de poderem fazer o bem ou o mal? Se se acham entre os eleitos, por que este favor, quando nada fizeram por merecê-lo? Por que privilégio foram liberadas das tribulações da vida?


Existe uma doutrina que pode resolver estas questões? Admiti as existências sucessivas e tudo estará explicado conforme à justiça de Deus. Aquilo que não se pode fazer numa existência, far-se-á em outra. Assim, ninguém escapará à lei do progresso e todos serão recompensados segundo o mérito real e ninguém será excluído da felicidade suprema a que pode aspirar, sejam quais forem os obstáculos encontrados em sua rota.

Estas questões poderiam ser multiplicadas ao infinito, pois inumeráveis são os problemas morais e psicológicos cuja solução só é encontrada na pluralidade das existências. Nós nos limitamos aos mais gerais. Seja como for, talvez digam que a doutrina da reencarnação não é admitida pela Igreja; que isto seria a derrubada da religião. Não é objetivo nosso abordar este problema no momento: basta-nos haver demonstrado que ela é eminentemente moral e racional. Mais tarde demonstraremos que a religião se acha menos afastada dela do que se pensa e que com isto não sofreria ela mais do que sofreu com a descoberta do movimento da Terra e dos períodos geológicos que, à primeira vista, pareciam desmentir os textos sagrados. O ensino dos Espíritos é eminentemente cristão. Apoia-se sobre a imortalidade da alma, as penas e recompensas futuras, o livre-arbítrio do homem e a moral do Cristo. Não é, portanto, antirreligioso.

Como ficou dito, raciocinamos fazendo abstração de todo o ensino espírita que, para certas criaturas, não tem autoridade. Se, como tantos outros, adotamos a opinião da pluralidade das existências, não foi apenas porque ela nos veio dos Espíritos, mas porque nos pareceu a mais lógica e a única que resolve problemas até aqui insolúveis.

Tivesse ela vindo de um simples mortal, e nós a teríamos adotado, não hesitando em renunciar às nossas próprias ideias. Desde o momento em que um erro fica demonstrado, o amor-próprio terá mais a perder do que a ganhar com a teimosa persistência numa ideia falsa.

Do mesmo modo, nós a teríamos repelido, mesmo que viesse dos Espíritos, se nos tivesse parecido contrária à razão, como procedemos com muitas outras, de vez que sabemos, por experiência, que se não deve aceitar cegamente tudo quanto vem de sua parte, bem como aquilo que vem da parte dos homens.

Resta-nos, pois, examinar a questão da pluralidade das existências do ponto de vista do ensino dos Espíritos; de que maneira devemos entendê-la e, enfim, responder às mais sérias objeções que lhe possam opor. É o que faremos em um próximo artigo.



  • [1] Em 1858 ainda não existia a doutrina teosófica, que só apareceu em 1875. Kardec alude à Teosofia como forma imprecisa de ocultismo então em voga. (N. da equipe revisora Edicel).

PROBLEMAS MORAIS

SOBRE O SUICÍDIO

PERGUNTAS DIRIGIDAS A SÃO LUÍS ATRAVÉS DO SR. C..., MÉDIUM FALANTE E VIDENTE, NA SESSÃO DE 12 DE OUTUBRO DE 1858 DA SOCIEDADE PARISIENSE DE ESTUDOS ESPÍRITAS


1. ─ Por que motivo o homem que tem a firme intenção de se matar revoltar-se-ia contra a ideia de ser morto por outro e defender-se-ia contra os ataques, no mesmo instante em que vai cumprir o seu desígnio?

─ Porque o homem tem sempre medo da morte. Quando se suicida, está superexcitado, com a cabeça transtornada, e realiza esse ato sem coragem nem medo e, por assim dizer, sem ter conhecimento do que faz, ao passo que se lhe fosse dado raciocinar, não veríamos tantos suicídios. O instinto do homem leva-o a defender a própria vida e, durante o tempo que decorre entre o momento em que o seu semelhante se aproxima para matá-lo e o momento em que o ato é cometido, tem ele sempre um movimento de repulsa instintiva da morte, que o leva a repelir esse fantasma que só é apavorante para o Espírito culpado. O homem que se suicida não experimenta tal sentimento porque se acha cercado de Espíritos que o impelem, que o ajudam em seus desejos e lhe fazem perder completamente a lembrança do que não seja ele mesmo, isto é, dos pais, daqueles que o amam e de outra existência. Nesse momento o homem é todo egoísmo.


2. ─ Aquele que está desgostoso da vida mas não quer suicidar-se e deseja que sua morte sirva para alguma coisa será culpado se a buscar no campo de batalha, defendendo o seu país?

─ Sempre. O homem deve seguir o impulso que lhe é dado. Seja qual for a carreira que abrace; seja qual for a vida que leve, é sempre assistido por Espíritos que o conduzem e o dirigem, malgrado seu. Ora, procurar agir contra os seus conselhos é um crime, porque eles aí estão para nos dirigir e quando queremos agir por nós mesmos, esses bons Espíritos estão prontos a ajudar-nos. Entretanto, se o homem, arrastado por seu próprio Espírito, quer deixar esta vida, é abandonado. Mais tarde reconhece sua falta, quando se vê obrigado a recomeçar numa outra existência. Para elevar-se, deve o homem ser provado. Impedir sua ação e pôr um entrave em seu livre-arbítrio seria ir contra Deus e neste caso as provas tornar-se-iam inúteis, porque os Espíritos não cometeriam faltas. O Espírito foi criado simples e ignorante. Para chegar às esferas felizes, é necessário que ele progrida e que se eleve em conhecimento e sabedoria, e é somente na adversidade que ele adquire um coração elevado e melhor compreende a grandeza de Deus.

3. ─ Um dos assistentes observou que notava uma contradição entre estas últimas palavras de São Luís e as precedentes, quando disse que o homem pode ser arrastado ao suicídio pelos Espíritos que a isto o excitam. Neste caso cederia a um impulso estranho.

─ Não existe contradição. Quando eu disse que o homem impelido ao suicídio era cercado de Espíritos que a isto o solicitavam, não me referia aos bons Espíritos, que fazem todo esforço para dissuadi-lo; isto deveria estar subentendido. Sabemos todos que temos um anjo da guarda ou, se preferis, um guia familiar. Ora, o homem tem o seu livre-arbítrio; se, a despeito dos bons conselhos que lhe são dados, persevera nessa ideia criminosa, ele a realiza, no que é ajudado pelos Espíritos levianos e impuros, que o cercam e que se sentem felizes por ver que ao homem, ou Espírito encarnado, também falta a coragem para seguir conselhos de seu bom guia e por vezes de Espíritos de parentes mortos que o rodeiam, sobretudo em circunstâncias semelhantes.




Palestras familiares de além-túmulo

MEHEMET-ALI

SEGUNDA COMUNICAÇÃO[1]

1. ─ Em nome de Deus Todo-Poderoso, peço ao Espírito de Mehemet-Ali que venha comunicar-se conosco.

─ Sim; sei a razão.

2. ─ Prometestes vir até nós, a fim de instruir-nos. Teríeis a bondade de ouvir-nos e de nos responder?

─ Não prometo, pois não assumi esse compromisso.

3. ─ Substituamos o prometestes por fizeste-nos esperar.

─ Quereis dizer: para satisfazer à vossa curiosidade. Não importa! Prestar-me-ei um pouco.

4. ─ Considerando-se que vivestes ao tempo dos faraós, poderíeis dizer-nos com que fim foram construídas as pirâmides?

─ São sepulcros; sepulcros e templos. Ali se davam grandes manifestações.

5. ─ Tinham elas também um objetivo científico?

─ Não. O interesse religioso absorvia tudo.

6. ─ Era necessário que os egípcios fossem muito adiantados nas artes mecânicas a fim de realizarem trabalhos que exigiam forças tão consideráveis. Poderíeis dar-nos uma ideia dos meios empregados?

─ Massas de homens gemeram sob o peso dessas pedras que atravessaram os séculos. A máquina era o homem.

7. ─ Que classe de homens eram ocupados nesses grandes trabalhos?

─ Aqueles a quem chamais de povo.

8. ─ Estava o povo em estado de escravidão ou recebia um salário?

─ A força.

9. ─ De onde tiravam os egípcios o gosto pelas coisas colossais, em vez das coisas graciosas que distinguiam os gregos, embora tivessem a mesma origem?

─ O egípcio era tocado pela grandeza de Deus. Procurava igualá-lo, superando suas próprias forças. Sempre o homem!

10. ─ Desde que naquela época éreis sacerdote, tende a bondade de nos dizer algo a respeito da religião dos egípcios. Qual era a crença do povo relativamente à Divindade?

─ Corrompidos, eles acreditavam em seus sacerdotes. Seus deuses eram aqueles que os mantinham sob o jugo.

11. ─ Que pensavam da alma após a morte?

─ Acreditavam no que diziam os sacerdotes.

12. ─ Sob o duplo ponto de vista de Deus e da alma, tinham os sacerdotes ideias mais sãs que o povo?

─ Sim. Eles tinham a luz em suas mãos e conquanto a escondessem dos outros, ainda a viam.

13. ─ Os grandes do Estado partilhavam das crenças do povo ou da dos sacerdotes?

─ Estavam entre as duas.

14. ─ Qual a origem do culto prestado aos animais?

─ Eles queriam desviar o homem de Deus e rebaixá-lo sob si próprio, dando-lhe como deuses seres inferiores.

15. ─ Até certo ponto compreende-se o culto dos animais úteis; mas não se compreende o de animais imundos e prejudiciais, como as serpentes, os crocodilos etc.!

─ O homem adora aquilo que teme. Era um jugo para o povo. Os sacerdotes não podiam crer em deuses feitos por suas mãos!

16. ─ Não é estranho que ao mesmo tempo que adoravam o crocodilo e os répteis, adorassem o ichneumon[2] e o íbis, que os destruíam?

─ Aberração do espírito. O homem procura deuses em toda parte para esconder o que é.

17. ─ Por que Osíris era representado com a cabeça de um gavião e Anúbis com a cabeça de um cão?

─ O egípcio gostava de personificar sob a forma de emblemas claros: Anúbis era bom; o gavião que estraçalha representava o cruel Osíris.

18. ─ Como conciliar o respeito dos egípcios pelos mortos com o seu desprezo e o horror que tinham por aqueles que os enterravam e mumificavam?

─ O cadáver era um instrumento de manifestações. Segundo pensavam, o Espírito voltava ao corpo que havia animado. Como um dos instrumentos do culto, o cadáver era sagrado e o desprezo perseguia aquele que ousava violar a santidade da morte.

19. ─ A conservação do corpo permitia maior quantidade de manifestações?

─ Mais longas, isto é, o Espírito voltava por mais tempo, desde que o instrumento fosse dócil.

20. ─ Não seria também a conservação dos corpos uma causa de salubridade, à vista da inundação do Nilo?

─ Sim, para os do povo.

21. ─ No Egito a iniciação aos mistérios era feita através de práticas tão rigorosas quanto na Grécia?

─ Ainda mais rigorosas.

22. ─ Com que fim eram impostas aos iniciados condições tão difíceis de preencher?

─ Para não haver senão almas superiores. Estas sabiam compreender e calar.

23. ─ O ensino dado nos mistérios tinha por fim único a revelação das coisas extra-humanas ou também eram ensinados os preceitos da moral e do amor ao próximo?

─ Tudo isto estava muito corrompido. O propósito dos sacerdotes era dominar e não instruir.




[1] Vide Revista Espírita do mês de abril. (N. do T.).


[2] Voz grega que significa rastejar. É aplicada em entomologia para algumas variedades de insetos. Neste caso, porém, a referência é a uma espécie de fuinha, um mamífero carnívoro, do gênero Herpestes, o Herpestes Ichneumon do Egito, que, dizia-se, devorava os ovos dos crocodilos. (N. do T.).




O DOUTOR MUHR[3]

1. Evocação.

─ Eis-me aqui.

2. ─ Teríeis a bondade de nos dizer onde vos achais?

─ Estou errante.

3. ─ Vossa morte ocorreu a 4 de junho deste ano?

─ Não. Do ano passado.

4. ─ Tendes lembrança de vosso amigo Sr. Jobard?

─ Sim, frequentemente estou a seu lado.

5. ─ Quando eu lhe transmitir esta resposta ele terá prazer, pois que sempre vos teve uma grande afeição.

─ Eu sei. É um dos Espíritos que me são mais simpáticos.

6. ─ Em vida, que pensáveis que fossem os gnomos?

─ Supunha que fossem seres capazes de materializar-se e de tomar formas fantásticas.

7. ─ Ainda acreditais nisso?

─ Mais do que nunca. Agora tenho certeza. Mas gnomo é um vocábulo que lembra muito a magia. Agora prefiro dizer Espírito em vez de gnomo.

NOTA: Em vida ele acreditava nos Espíritos e em sua manifestação. Apenas os chamava de gnomos, ao passo que agora prefere a denominação genérica de Espíritos.

8. ─ Ainda credes que os Espíritos que em vida chamáveis gnomos possam tomar fantásticas formas materiais?

─ Sim, mas sei que isto nem sempre acontece, porque há pessoas que poderiam ficar loucas se vissem as aparências que tais Espíritos podem tomar.

9. ─ Que aparências podem ser essas?

─ De animais, de diabos.

10. ─ Uma aparência material tangível ou uma pura aparência, como em sonhos e visões?

─ Um pouco mais material que nos sonhos. As aparições que nos poderiam amedrontar não podem ser tangíveis. Deus não o permitiria.

11. ─ A aparição do Espírito de Bergzabern, sob a forma de homem ou de animal, seria dessa natureza?

─ Sim, é desse gênero.

NOTA: Não sabemos se em vida ele admitia que os Espíritos pudessem tomar uma forma tangível, mas é evidente que agora se refere à forma vaporosa e impalpável das aparições.

12. ─ Acreditais que ireis reencarnar em Júpiter?

─ Irei para um mundo que ainda não se iguala a Júpiter.

13. ─ É por vossa própria escolha que ides para um mundo inferior a Júpiter ou porque ainda não mereceis ir para esse planeta?

─ Prefiro acreditar que não mereço e desempenhar uma missão em um mundo menos adiantado. Sei que alcançarei a perfeição e por isso prefiro ser modesto.

NOTA: Esta resposta é prova da superioridade desse Espírito e está em concordância com o que nos diz o Padre Ambrósio: Há mais mérito em pedir uma missão num mundo inferior do que querer adiantar-se muito num mundo superior.

14. ─ O Sr. Jobard pediu-nos que vos perguntássemos se havíeis ficado contente com o vosso necrológio, escrito por ele.

─ Jobard deu-me nova prova de simpatia escrevendo aquilo. Agradeço e desejo que o quadro um tanto exagerado que fez de minhas virtudes e habilidades possa servir entre vós de exemplo aos que percorrem a senda do progresso.

15. ─ Considerando-se que em vida fostes homeopata, o que pensais agora da homeopatia?

─ A homeopatia é o começo da descoberta dos fluidos latentes. Muitas outras descobertas igualmente preciosas serão feitas e virão formar um todo harmonioso que conduzirá vosso globo à perfeição.

16. ─ Que valor atribuís ao vosso livro Le Médecin du Peuple?

─ É a pedra do operário que levei à obra.

NOTA: A resposta que o Espírito deu sobre a homeopatia vem em apoio à ideia dos fluidos latentes, que já nos foi dada pelo Espírito do Sr. Badet, a respeito de sua imagem fotografada[4]. Depreende-se que há fluidos cujas propriedades nos são desconhecidas ou que nos passam despercebidas, porque sua ação não é ostensiva, embora não seja menos real. A Humanidade se enriquece de conhecimentos novos à medida que as circunstâncias tornam conhecidas as suas propriedades.





[3] Diz-se que foi um Espírito muito elevado. Era médico homeopata, um verdadeiro apóstolo espírita. Faleceu no Cairo a 4 de junho de 1857. Deve encontrar-se em Júpiter. Evocado a pedido do Sr. Jobard. (Vide, na Revista de julho, referência feita em carta de Jobard de 22.06.58, na seção Correspondência. A diferença de grafia vem do original. Entretanto, parece preferível a forma Muhr. (N. do T.).

[4] Vide a Revista Espírita do mês de julho.




MADAME DE STAËL

A 28 de setembro de 1858, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, comunicou-se espontaneamente e sem ter sido chamado, o Espírito de Madame de Staël, o qual, pela mão da Srta. E..., médium psicógrafa, deixou as seguintes palavras:

“Viver é sofrer, sim, mas a esperança não segue ao sofrimento? Não pôs Deus maior dose de esperança no coração dos infelizes? Criança, o prazer e a decepção acompanham o nascimento, mas à sua frente marcha a Esperança, que lhe diz: Avança! No fim está a felicidade. Deus é clemente.

Por que, perguntam os Espíritos fortes, por que vir ensinar-nos uma nova religião, quando o Cristo estabeleceu as bases de uma tão grandiosa caridade; de uma felicidade tão certa? Não pretendemos alterar aquilo que o grande reformador ensinou. Não. Nós vimos apenas fortalecer nossa consciência e aumentar nossas esperanças.

Quanto mais se civiliza o mundo, mais deveria ele ter confiança e mais ainda temos necessidade de sustentá-lo. Não queremos mudar a face do Universo. Vimos ajudar a torná-lo melhor. Se neste século não viermos em auxílio do homem, ele será muito infeliz, pela falta de confiança e de esperança.

Sim, homem sábio que lês nos outros; que procuras conhecer aquilo que pouco te importa e que afastas aquilo que te concerne, abre os olhos e não te desesperes. Não digas que o nada pode ser possível, quando, em teu coração, deverias sentir o contrário. Vem assentar-te a esta mesa e espera, pois nela serás instruído quanto ao teu futuro e serás feliz. Aqui há pão para todos. Espírito, tu te desenvolverás; corpo, tu te alimentarás; sofrimento, tu te acalmarás; esperança, tu florescerás e embelezarás a verdade para torná-la suportável.

STAËL

NOTA: O Espírito aludia à mesa onde estavam os médiuns.

─ Perguntai e eu responderei às vossas perguntas.

1. ─ Não estávamos esperando vossa visita, por isso não temos um assunto preparado.

─ Sei muito bem que perguntas especiais não podem ser respondidas por mim. Há, porém, coisas gerais que podem ser perguntadas até mesmo a uma mulher que teve um pouco de espírito e agora tem muito coração!

Nesse momento, uma senhora que assistia à sessão teve um como que desfalecimento, mas era apenas um êxtase que, longe de ser penoso, foi-lhe antes muito agradável. Alguém se ofereceu para magnetizá-la; então o Espírito de Madame de Staël disse espontaneamente:

─ Não. Deixai-a tranquila. É necessário deixar agir a influência.

Depois, dirigindo-se à senhora, disse:

─ Tende confiança, pois um coração vela junto a vós; ele deseja falar-vos; chegará o dia... não precipitemos as emoções.

Então o Espírito que se comunicava por aquela senhora, que era o de sua irmã, escreveu espontaneamente: “Eu voltarei.”

Dirigindo-se ainda àquela senhora, Madame de Staël escreveu:

─ Uma palavra de consolação a um coração que sofre. Por que essas lágrimas de mulher para uma irmã? Por que essa volta ao passado, quando todos os vossos pensamentos deveriam dirigir-se para o futuro? Vosso coração sofre, vossa alma tem necessidade de se expandir. Então! Que essas lágrimas sejam um alívio e não produzidas pela mágoa! Aquela que vos ama e que chorais é feliz e venturosa! Esperai, que um dia estareis juntas. Vós não a vedes, mas para ela não existe separação, pois que pode estar constantemente ao vosso lado.

2. ─ Poderíeis dizer-nos o que pensais atualmente de vossos escritos?

─ Uma só palavra esclarecer-vos-á. Se eu voltasse e pudesse recomeçar, modificaria dois terços e conservaria apenas um.

3. ─ Poderíeis assinalar aquilo que desaprovais?

─ Não sou muito exigente, pois aquilo que não for justo, outros escritores mudarão. Eu fui muito masculina para uma mulher.

4. ─ Qual a causa primeira desse caráter viril que demonstrastes em vida?

─ Isso depende da fase de nossa existência.

Na sessão seguinte, a 12 de outubro, foram-lhe dirigidas as seguintes perguntas, através do Sr. D..., médium psicógrafo.

5. ─ No outro dia viestes espontaneamente, por intermédio da Srta. E... Poderíeis dizer qual o motivo que vos levou a favorecer-nos com a vossa presença, sem que vos tivéssemos chamado?

─ A simpatia que sinto por todos vós. É ao mesmo tempo o cumprimento de um dever que me é imposto em minha atual existência, ou antes, em minha existência passageira, pois que sou chamada a reviver: este é, aliás, o destino de todos os Espíritos.

6. ─ É para vós mais agradável vir espontaneamente ou ser evocada?

─ Prefiro ser evocada, pois é uma prova de que pensam em mim, mas também sabeis que é agradável a um Espírito liberto poder vir conversar com o Espírito do homem. Por isso não vos deveis admirar que tivesse vindo de repente ao vosso meio.

7. ─ Haverá vantagem em evocar os Espíritos, em vez de esperar que venham por sua iniciativa?

─ Evocando, tem-se um objetivo. Deixando que venham, corre-se grande risco de ter comunicações imperfeitas sob muitos aspectos, porque tanto vêm os maus quanto os bons.

8. ─ Já vos comunicastes em outros centros?

─ Sim, mas têm-me feito aparecer mais do que eu queria. Por outras palavras, muitas vezes tomaram o meu nome.

9. ─ Teríeis a bondade de vir, algumas vezes, ditar-nos alguns de vossos belos pensamentos, que teríamos o prazer de reproduzir para a instrução geral?

─ De boa vontade. Sinto prazer em estar entre os que trabalham seriamente a sua instrução. Minha vinda no outro dia é uma prova disto.



Nem todos podem ser convencidos pelo mesmo gênero de manifestações espíritas, por isso foi preciso que se desenvolvessem médiuns de vários tipos. Nos Estados Unidos há os que fazem retratos de pessoas falecidas há muito tempo e que jamais haviam visto. E como a semelhança é notada imediatamente, as pessoas sensatas que o testemunham não deixam de se converter. O mais notável desses médiuns é talvez o Sr. Rogers, que já citamos (Vol. 1, pág. 239[1]), residente em Columbus, onde exercia a profissão de alfaiate. Devemos acrescentar que não possuía qualquer outra habilitação profissional.

Aos homens instruídos que têm dito e repetido, a propósito da teoria espiritualista: “Recorrer aos Espíritos não passa de hipótese; um exame atento prova que nem é a mais racional, nem a mais verossímil”, a esses, sobretudo, oferecemos a tradução que segue, abreviadamente, de um artigo publicado a 27 de julho último pelo Sr. Lafayette R. Gridley, de Attica, Indiana, para os editores do Spiritual Age, que a publicaram na íntegra na edição de 14 de agosto.

Em maio último, o Sr. E. Rogers, de Cardington - Ohio, conhecido médium pintor que faz retratos de pessoas que não mais se encontram neste mundo, veio passar alguns dias em minha casa. Durante sua rápida visita foi influenciado por um artista invisível, que deu o nome de Benjamin West. Ele pintou alguns belos retratos, em tamanho natural, assim como alguns outros de qualidade algo inferior.

Eis algumas particularidades relativas a dois desses retratos.

Foram pintados pelo dito E. Rogers, num quarto escuro, em minha casa, no curto espaço de uma hora e meia, tempo este do qual meia hora mais ou menos decorreu sem que o médium tivesse sido influenciado e que aproveitei para examinar o seu trabalho, ainda não concluído. Rogers caiu novamente em transe e terminou esses retratos.

Então, embora nenhuma indicação tivesse sido dada quanto às pessoas representadas, um dos retratos foi imediatamente reconhecido como sendo de meu avô, Elias Gridley. Minha esposa, minha irmã, a Sra. Chaney, e em seguida meu pai e minha mãe, todos foram unânimes em reconhecer a grande semelhança: é um facsímile do velho, com todas as particularidades de sua cabeleira, de sua camisa, etc.

Quanto ao outro retrato, nenhum de nós o reconheceu. Eu o pendurei no meu armazém, à vista dos transeuntes, onde ficou uma semana sem ser reconhecido. Esperávamos que alguém nos dissesse que era qualquer antigo residente de Attica. Já perdia a esperança de saber de quem seria o retrato quando uma tarde, numa sessão espírita reunida em minha casa, um Espírito manifestou-se e me deu a comunicação seguinte:

“Meu nome é Horace Gridley. Há mais de cinco anos deixei meus despojos. Morei muitos anos em Natchez, no Mississipi, onde ocupei o cargo de sheriff. Minha única filha mora lá. Eu sou primo de vosso pai. Outras informações a meu respeito podem ser obtidas dirigindo-se ao vosso tio, o Sr. Gridley, de Brownsville, no Tennessee. O retrato que tendes em vosso armazém é o meu, da época em que vivia na Terra, pouco tempo antes de passar a esta outra existência, mais elevada, melhor e mais feliz. Ele se parece comigo, pelo menos tanto quanto me foi possível retomar a fisionomia de então, pois que isto é indispensável quando nos pintam. Nós fazemos o mais que podemos para dela nos recordarmos, conforme o permitam as condições do momento. O retrato em questão não está acabado como eu o desejava. Há umas ligeiras imperfeições que o Sr. West diz provirem das condições em que se achava o médium. Apesar disso, mande o retrato para Natchez, a fim de ser examinado. Acredito que o identificarão”.

Os fatos mencionados nesta comunicação eram inteiramente ignorados por mim e por todos os habitantes das redondezas. Conquanto há muitos anos certa vez tivesse ouvido falar que meu pai tinha um parente naqueles lados do vale do Mississipi, nenhum de nós sabia o nome dele; o lugar onde tinha vivido; nem mesmo se havia morrido. Só muitos dias depois é que soube por meu pai, que morava em Delphi, a quarenta milhas daqui, qual havia sido o lugar de residência de seu primo, de quem há cerca de sessenta anos ele quase não ouvira mais falar.

Nem tínhamos pensado em pedir retratos de família. Eu apenas tinha posto em frente ao médium uma nota com os nomes de cerca de vinte antigos moradores de Attica, não mais deste mundo, de alguns dos quais desejávamos obter o retrato.

Assim, penso que as pessoas sensatas admitirão que nem o retrato, nem a comunicação de Horace Gridley possam ser resultado de uma transmissão de nosso pensamento ao médium. Aliás, é sabido que o Sr. Rogers jamais conheceu qualquer dos homens cujo retrato pintou e dos quais provavelmente jamais ouvira falar, porque é inglês nato; veio para a América há dez anos e jamais viajou para o Sul além de Cincinnati, ao passo que Horace Gridley, ao que eu saiba, nunca andou para o Norte além de Memphis, no Tennessee, nos últimos trinta e cinco anos de vida terrena. Ignoro que algum dia tenha visitado a Inglaterra, entretanto, isto poderia ter ocorrido antes do nascimento de Rogers, pois ele não tem mais que vinte e oito a trinta anos. Quanto a meu avô, falecido há cerca de dezenove anos, jamais saiu dos Estados Unidos e seu retrato jamais fora feito de qualquer maneira.

Depois que recebi a comunicação acima transcrita, escrevi ao Sr. Gridley, de Brownsville. Sua resposta veio confirmar quanto havíamos ouvido através da comunicação do Espírito. Consegui ainda o nome do único rebento de Horace Gridley, que é a Sra. L. M. Patterson, ainda residente em Natchez, onde seu pai morou muitos anos. Ele faleceu, na opinião de meu tio, há cerca de seis anos, em Houston, no Texas.

Então escrevi à Sra. Patterson, minha prima recém descoberta, e lhe mandei uma cópia daguerreotipada do retrato que, segundo nos diziam, era de seu pai. Na carta ao meu tio de Brownsville eu nada disse relativamente ao principal objetivo de minhas pesquisas, como nada disse à Sra. Patterson: nem a razão de lhe enviar o retrato, nem como o havia obtido, nem quem era a pessoa que o mesmo representava. Apenas perguntei a minha prima se nele reconhecia alguém. Respondeu-me que ao certo não poderia dizer de quem era o retrato, mas me assegurava de que era parecido com seu pai, na época de sua morte. Depois eu lhe escrevi que nós o havíamos também tomado como se fosse de seu pai, sem lhe dizer, entretanto, como o havíamos obtido. A resposta de minha prima dizia, em suma, que na cópia remetida todos haviam reconhecido seu pai, antes que eu lhe tivesse dito quem o retrato representava. Entretanto, ficou muito surpreendida de que eu tivesse um retrato de seu pai, quando ela mesma não tinha nenhum e seu pai nunca lhe havia dito que algum dia tivesse mandado fazer seu próprio retrato, fosse por quem fosse. Ela pensava que não existisse nenhum e ficou muito satisfeita com a minha remessa, sobretudo por causa de seus filhos, que tinham grande veneração pela memória do avô.

Então eu lhe mandei o retrato original, autorizando-a a ficar com ele, caso lhe agradasse, mas não lhe disse como o havia obtido. São estas as principais passagens de sua resposta:

“Recebi sua carta e o retrato de meu pai, que permite fique comigo, se for bastante semelhante. Na verdade, é muito parecido, e como jamais tive outro dele, fico com este, já que o permite, e o aceito muito reconhecida, embora me pareça que meu pai fosse mais bonito, quando gozava de saúde”.

Antes da recepção das duas últimas cartas da Sra. Patterson, quis o acaso que o Sr. Hedges, atualmente de Delphi, mas antigo morador de Natchez, e o Sr. Ewing, recém vindo de Vicksbourg, no Mississipi, vissem o retrato em questão e o reconhecessem como sendo de Horace Gridley, com quem ambos tinham tido relações.

Acho que estes fatos são muito significativos para serem mantidos no silêncio e julguei-me na obrigação de revelá-los, a fim de se lhes dar publicidade. Assegurovos que escrevendo este artigo, tive todo o cuidado com a absoluta correção”.

NOTA: Já conhecemos os médiuns desenhistas. Além dos admiráveis desenhos dos quais demos um espécime, mas que representam coisas cuja exatidão é impossível verificar, vimos médiuns absolutamente estranhos a essa arte executarem sob nossas vistas esboços facilmente reconhecíveis de pessoas falecidas que eles não haviam conhecido. Mas daí a um retrato acabado, de acordo com todas as regras, vai muita distância. Esta faculdade se liga a um fenômeno muito curioso, do qual somos testemunha neste momento. A ele nos reportaremos proximamente.



[1] Vol. I, pág. 239 do “Spiritualist” de Nova Orleans.


Há muitas pessoas que, aceitando hoje perfeitamente o magnetismo, durante muito tempo contestaram a lucidez sonambúlica. É que, na verdade, essa faculdade veio derrubar todas as noções que tínhamos a respeito da percepção das coisas do mundo exterior. Entretanto, de há muito tínhamos o exemplo dos sonâmbulos naturais, gozando de faculdades análogas que, por um contraste bizarro, jamais foram aprofundadas. Hoje a clarividência sonambúlica é um fato estabelecido, e se ainda é contestado por algumas pessoas, é que as ideias novas custam a lançar raízes, principalmente quando é preciso renunciar às que embalamos durante muito tempo.

Muita gente acreditou, como o faz ainda hoje com as manifestações espíritas, que o sonambulismo pudesse ser experimentado como uma máquina, sem que se levasse em conta as condições especiais do fenômeno. Eis por que, não tendo obtido resultados satisfatórios no momento oportuno, concluíram pela negação. Fenômenos tão delicados exigem uma observação longa, assídua e perseverante, a fim de se lhes captarem as nuanças, por vezes fugidias. É igualmente em consequência da incompleta observação dos fatos que certas pessoas admitem a clarividência dos sonâmbulos, mas contestam a sua independência. Para eles, sua visão não vai além do pensamento dos que os interrogam. Alguns até chegam a admitir que não há visão, mas simples intuição e transmissão do pensamento, e citam numerosos exemplos em apoio a essas ideias.

Ninguém duvida que o sonâmbulo, captando o pensamento, possa traduzi-lo e por vezes ser-lhe o próprio eco. Também não contestamos que, em certos casos, o pensamento possa influenciá-lo. Admitindo que no fenômeno houvesse apenas isso, já não seria um fato curioso e digno de observação? O problema não é, pois, saber se o sonâmbulo é ou pode ser influenciado por um pensamento estranho, o que não é posto em dúvida, mas se é sempre influenciado, e isto é resultado de experiências.

Se o sonâmbulo nunca diz senão aquilo que sabeis, é incontestável que traduz o vosso pensamento. Mas se, em certos casos, diz aquilo que não sabeis; se contraria a vossa opinião e vossa maneira de ver, torna-se evidente a sua independência e que apenas segue seu próprio impulso. Nesse gênero, um único fato bem caracterizado seria suficiente para provar que a sujeição do sonâmbulo ao pensamento alheio não é coisa absoluta. Ora, há milhares de exemplos, e dentre aqueles que são de nosso conhecimento citaremos os dois seguintes:

O Sr. Marillon, que morava em Bercy, na Rua Charenton, 43, desapareceu em 13 de janeiro último. Foram infrutíferas todas as pesquisas para descobrir traços seus. Nenhuma das pessoas que ele costumava frequentar habitualmente o tinham visto. Nenhum negócio podia motivar uma ausência prolongada. Por outro lado, o seu caráter, a sua posição e o seu estado mental afastavam qualquer ideia de suicídio. Restava a hipótese de que tivesse sido vítima de um crime ou de um acidente. Mas, neste último caso, poderia ter sido facilmente identificado e reconduzido ao seu domicílio ou, pelo menos, levado ao necrotério. Todas as probabilidades apontavam, pois, para um crime. Foi sobre essa ideia que se detiveram, tanto mais por acreditarem que ele havia saído para fazer um pagamento. Mas onde e como teria sido cometido o crime? É o que todos ignoravam. Então sua filha recorreu a uma sonâmbula, a Sra. Roger, que em muitas outras circunstâncias idênticas havia dado provas de uma lucidez notável, que nós mesmos tivemos ocasião de constatar.

A Sra. Roger seguiu o Sr. Marillon desde que ele saiu de casa, às três horas da tarde, até cerca de sete horas da noite, momento em que se dispunha a regressar; viuo descer às margens do Sena, para uma necessidade imperiosa; aí foi acometido de um ataque de apoplexia e, disse ela, vi-o cair sobre uma pedra, abrir uma brecha na fronte, depois rolar para a água. Não houve, pois, nem suicídio, nem crime. Vejo ainda o seu dinheiro e uma chave no bolso do paletó. Indicou o local do acidente, mas declarou que o corpo lá não mais estava, pois tinha sido arrastado pela correnteza; que seria encontrado num determinado lugar.

Realmente isto se deu. Ele tinha a ferida indicada na fronte; a chave e o dinheiro estavam no bolso e a posição das roupas indicava claramente que a sonâmbula não se havia enganado quanto ao motivo que o levara à barranca do rio.

Diante de tantos detalhes, perguntamos onde pode ser encontrada a transmissão de um pensamento qualquer!

Eis outro fato no qual não é menos evidente a independência sonambúlica.

O casal Belhomme, chacareiros em Rueil, na Rua Saint-Denis, 19, tinha uma economia de cerca de 800 a 900 francos. Para maior segurança, a Sra. Belhomme os guardou num armário, do qual uma parte era reservada para as roupas velhas e outra para a roupa nova. Foi neste último que o dinheiro foi colocado. Nesse momento entrou alguém e a Sra. Belhomme apressou-se em fechar o armário. Algum tempo depois, necessitando de dinheiro, estava certa de que o havia posto entre a roupa velha, pois tal havia sido a sua intenção, admitindo que essas tentariam menos os ladrões. Mas, na sua precipitação, com a chegada da visita, o havia posto no outro compartimento. De tal modo estava convencida de havê-lo posto entre os trapos, que nem lhe ocorreu procurar noutro lugar. Achando o lugar vazio e recordando-se da visita, acreditou que tinha sido vista e roubada e, assim persuadida, suas suspeitas recaiam naturalmente sobre o visitante.

Acontece que a Sra. Belhomme conhecia a Srta. Marillon, de quem falamos acima, e lhe contou seu infortúnio. Ela lhe disse como seu pai foi encontrado e aconselhou-a a procurar a mesma sonâmbula, antes de tomar qualquer outra providência. O casal Belhomme procurou a Sra. Roger, convencidos ambos de que tinham sido roubados e na esperança de que lhes fosse indicado o ladrão que, em sua opinião, não podia deixar de ser a visita. Tal era, pois, seu único pensamento.

Ora, depois de minuciosa descrição do local, a sonâmbula lhes disse: “Não fostes roubados; vosso dinheiro está intacto em vosso armário; apenas pensais tê-lo posto entre a roupa velha, quando o pusestes entre a roupa nova. Ide para casa, que o encontrareis”. Foi realmente o que aconteceu.

Relatando estes dois casos, ─ e poderíamos aduzir muitos outros ─ nosso objetivo foi provar que a clarividência sonambúlica nem sempre é reflexo de um pensamento estranho. Assim, o sonâmbulo pode ter uma lucidez própria, absolutamente independente. Disso decorrem consequências de alta significação do ponto de vista psicológico. Aqui temos a chave de mais de um problema que examinaremos ulteriormente, quando tratarmos das relações que existem entre o sonambulismo e o Espiritismo, as quais lançam uma luz inteiramente nova sobre a questão.

UMA NOITE ESQUECIDA OU MANUZA, A FEITICEIRA
Milésima segunda noite dos contos árabes
DITADA PELO ESPÍRITO DE FRÉDÉDIC SOULIÉ
PREFÁCIO DO EDITOR


No corrente ano de 1856 as experiências de manifestações espíritas, realizadas em casa do Sr. B., à rua Lamartine, atraíram uma seleta e numerosa assistência. Os Espíritos que se comu­nicavam nesse círculo eram mais ou menos sérios; alguns ali disseram coisas de admirável sabedoria, de uma profundeza notável, como se pode julgar pelo O Lívro dos Espíritos, ali começado e realizado em grande parte. Outros eram menos sérios: seu humor jovial facilmente se prestava a pilhérias, mas pilhérias finas e que jamais se afastavam das conveniências. Neste número estava Frédéric Soulié, que veio livremente e sem convite, mas cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo a todos agradável. Sua conversação era espirituo­sa, fina, mordente, a propósito e jamais desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás ele jamais se deu importância; e, quando lhe dirigiam perguntas complexas de Filosofia con­fessava francamente sua insuficiência para as resolver, dizen­do-se ainda muito ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.


O médium que lhe servia de intérprete era Srta. Carolina B., uma das filhas do dono da casa, do gênero absolutamente passivo, que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir e conversar a torto e a direito, o que fazia de bom grado, enquanto a mão corria sobre o papel. O meio mecânico empregado foi, durante muito tempo a cesta de bico, descrita em o Livro DOS MÉDIUNS. Mais tarde a médium serviu-se da psicografia direta.

Perguntarão que prova temos de que o Espírito comunicante fosse o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não é aqui o lugar para tratar da questão de identidade dos Espíritos: diremos somente que a de Soulié se confirmou por mil e um detalhes que não podem escapar a uma observação atenta; muitas vezes uma palavra, um gesto, um fato pessoal referido, vinham confirmar que era ele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pedi­ram-lhe o seu retrato e o médium, que não sabe desenhar e que jamais o viu, fez um esboço de uma semelhança impressionante.

Ninguém na reunião tinha tido relações com ele em vida. Por que, então, vinha sem ser chamado? É que se tinha ligado a um dos assistentes sem ter jamais querido revelar o motivo: só aparecia quando esta pessoa se achava presente; entrava com ela e com ela saía; de sorte que quando esta não estava também não vinha e — coisa interessante! — quando ele estava era di­fícil, senão impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo que, por delicadeza deveria fazer as honras em sua casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira. Realmente, pouco tempo depois começou uma história cujo inicio era muito promissor; o assunto era druídico e a cena se desen­rolava na Armórica, ao tempo do domínio romano. Infelizmente parece que se apavorou ante a tarefa empreendida, pois, força é confessá-lo, o seu forte não eram os trabalhos assíduos e ele mesmo se achava muito bem na vida preguiçosa. Depois de ditadas algumas páginas, parou o romance, mas disse que escreveria um outro, o qual lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos, Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos como uma obra de alto valor filosófico, mas como mostra original de um trabalho de fôlego obtido dos Espíritos.

Notar-se-á como tudo é urdido, como tudo se encadeia com uma arte admirável, O que há de mais extraordinário é que o tema foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e por vezes após interrupções de duas ou três semanas. Ora, em cada reinicio o assunto continuava como se tivesse sido escri­to de um jacto, sem rasuras ou entrelinhas e sem que houvesse necessidade de recordar o que já fora dito. Damo-lo tal qual saiu do lápis do médium, sem ter mudado coisa alguma — nem no estilo, nem nas ideias, nem no encadeamento dos fatos. Algu­mas repetições de palavras ou pecadilhos ortográficos foram notados; então Soulié nos encarregou, em pessoa, de os corrigir, dizendo que nos assistiria no caso. Quando tudo estava terminado, ele quis rever o conjunto, ao qual fez alguns retoques sem importância e autorizou a publicá-lo como quiséssemos, abrindo mão, dizia ele, de boa vontade dos seus direitos autorais. Contudo, julgamos melhor não inseri-lo na Revista sem o consen­timento formal de seu amigo póstumo, a quem pertence de direito, pois que é por sua presença e sua solicitação que agra­decemos esta produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio espírito de Frédéric Soulié. A. K.



UMA NOITE ESQUECIDA
I




Havia em Bagdá uma mulher do tempo de Aladim. Vou contar a sua história.

Num dos bairros de Bagdá, não longe do palácio da sultana Sheherazade, morava uma velha chamada Manuza. Essa velha senhora era motivo de horror em toda a cidade, pois era feiticeira e das mais terríveis. À noite, em sua casa, passavam-se coisas tão espantosas que, assim que o sol se punha, ninguém se aventurava a passar por sua porta, salvo algum amante à procura de um filtro para sua amante rebelde, ou alguma mulher abandonada em busca de um bálsamo para pôr na ferida que, ao abandoná-la, lhe havia feito o amante.

Certo dia em que o sultão estava mais triste do que de costume e em que a cidade era presa de grande desolação, porque ele queria mandar matar a sultana favorita e que, por seu exemplo, todos os maridos eram infiéis, um jovem saiu de seu solar magnífico, situado ao lado do palácio da sultana. Vestia o moço uma túnica e um turbante de cores sombrias, mas sob esses hábitos simples apresentava um ar de grande distinção. Ele procurava ocultar-se ao longo das casas, como um ladrão ou como um amante que teme ser surpreendido. Dirigia-se para os lados da casa de Manuza, a feiticeira. Uma grande ansiedade estava estampada em seu rosto, que denunciava a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas e praças rapidamente, embora com muitas precauções.

Chegando junto à porta, hesitou por uns instantes, depois resolveu bater. Durante um quarto de hora sofreu uma angústia mortal, pois ouvia barulhos que o ouvido humano jamais escutara: uma matilha de cães latindo ferozmente; gritos lamentosos e cantos de homens e mulheres ao final de uma orgia e, para iluminar todo esse tumulto, luzes corriam de alto a baixo da casa, como fogos fátuos de todas as cores. Depois, como que por encanto, tudo cessou. As luzes se extinguiram e a porta se abriu.


II

O visitante hesitou por um momento, sem saber se devia entrar no sombrio corredor que se estirava aos seus olhos. Por fim, armando-se de coragem, penetrou ousadamente. Depois de haver dado uns trinta passos tateando, encontrou-se em frente a uma porta que dava para uma sala apenas iluminada por uma lâmpada de cobre de três bicos, pendente do centro do teto.

A casa que, a julgar pelo barulho que ouvira da rua, deveria ser habitada por muita gente, tinha agora um ar deserto. A sala imensa, que por sua construção devia ser a base do edifício, estava vazia, se excetuarmos os animais empalhados de toda espécie que a guarneciam.

No meio da sala havia uma pequena mesa coberta de livros de magia e diante da mesa, numa grande poltrona, estava assentada uma velhinha de apenas dois côvados de altura, de tal modo envolvida entre xales e turbantes que mal se divisavam os seus traços. À aproximação do estranho, levantou a cabeça e mostrou a seus olhos o mais terrível rosto que se possa imaginar.

─ Aqui estás, senhor Nuredin, ─ disse ela fixando uns olhos de hiena sobre o jovem que acabava de entrar. ─ Aproxima-te! Há vários dias que o meu crocodilo de olhos de rubi anunciou-me a tua visita. Dize-me se é filtro que te falta ou se é uma fortuna. Mas, que digo eu? Uma fortuna! A tua não causa inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico, assim como és o mais belo? Provavelmente é um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que ousa ser cruel para contigo? Enfim, nada devo dizer. Nada sei. Estou pronta a escutar-te as penas e a te dar os necessários remédios, desde que minha ciência tenha o poder de te ser útil. Mas por que me olhas assim e não te adiantas? Tens medo? Porventura causo-te pavor? Vês-me assim, mas outrora fui bela; a mais bela de todas as mulheres então existentes em Bagdá. Foram os sofrimentos que me tornaram tão feia. Mas em que te interessam os meus sofrimentos? Aproxima-te, que eu te escuto. Apenas não te posso conceder mais que dez minutos, portanto, avia-te!

Nuredin não se sentia seguro. Contudo, não querendo mostrar aos olhos da velha a perturbação que o agitava, avançou e lhe disse:

─ Mulher, venho por uma coisa séria. De tua resposta depende a sorte de minha vida. Vais decidir da minha felicidade ou da minha morte. Trata-se do seguinte:

“O sultão quer mandar matar Nazara, e eu a amo. Vou contar-te de onde vem este amor e venho pedir-te forneças o remédio não à minha dor, mas à sua posição infeliz, pois não quero que ela morra. Sabes que meu palácio é vizinho ao palácio do Sultão, e que os nossos jardins se limitam. Há cerca de seis luas, uma noite eu passeava nesses jardins e ouvi uma música encantadora acompanhando a mais deliciosa voz feminina que jamais ouvi. Desejando saber de onde provinha, aproximei-me do jardim vizinho e verifiquei que era de um caramanchão de verdura, ocupado pela sultana favorita.

“Fiquei vários dias absorvido por aqueles sons melodiosos. Dia e noite sonhava com a bela desconhecida, cuja voz me havia seduzido, pois, devo dizer-te, em minha mente ela não podia deixar de ser bela. Todas as noites eu passeava nas mesmas aleias onde tinha ouvido aquela encantadora harmonia. Durante cinco dias, tudo foi em vão. Enfim, no sexto dia, ouvi a música novamente. Então, não podendo mais me conter, aproximei-me do muro e vi que com pouco esforço o escalaria. Após alguns momentos de hesitação, tomei uma importante decisão: passei do meu para o jardim vizinho.

“Aí vi, não uma mulher, mas uma huri, a huri favorita de Maomé, enfim, uma maravilha! À minha vista ela espantou-se muito pouco, mas, lançando-me aos seus pés, concitei-a a não ter receios e a me escutar. Disse-lhe que seu canto me havia atraído e lhe assegurei que minhas atitudes seriam profundamente respeitosas. Ela teve a bondade de ouvir-me.

“Passamos a primeira noite a falar de música. Também cantei e ofereci-me para acompanhá-la. Ela consentiu e marcamos um encontro para o dia seguinte, à mesma hora.

“Então ela estava mais tranquila. O sultão estava em seu conselho e a vigilância era menor. As duas ou três primeiras noites foram inteiramente dedicadas à música. Mas a música é a voz dos amantes e, desde o quarto dia, não mais éramos estranhos um ao outro. Nós nos amávamos. Como era bela! Como era bela também a sua alma! Muitas vezes projetamos a fuga. Ah! Por que não a realizamos? Eu seria menos infeliz e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria a ponto de ser cortada pela foice que irá arrebatá-la à luz.


(Continua no próximo número).


O GENERAL MARCEAU
A Gazette de Cologne publica a seguinte história, que lhe é remetida por seu correspondente em Coblença, e que é atualmente tema obrigatório em todas as conversas. O fato é relatado pelo Patrie de l0 de outubro de 1858.

“Sabe-se que abaixo do Forte do Imperador Francisco, perto da estrada de Colônia, encontra-se o monumento do general francês Marceau, que tombou em Altenkirchen e foi sepultado em Coblença, no Monte São Pedro, onde se acha a parte principal do forte. O monumento do general, que é uma pirâmide truncada, foi mais tarde removido, quando começaram a fortificação de Coblença. Contudo, por ordem expressa do falecido rei Frederico III, ele foi reconstruído no local onde se encontra atualmente.

“O Sr. de Stramberg, que em seu Reinischen antiquarius dá uma biografia muito detalhada de Marceau, conta que muitas pessoas alegam ter visto à noite, e por várias vezes, o general montado num cavalo, com o seu manto branco dos caçadores franceses.

“Já de algum tempo dizia-se em Coblença que Marceau saía do túmulo e muitas pessoas garantiam tê-lo visto. Há alguns dias, um soldado que dava sentinela no Petersberg (Monte São Pedro), viu aproximar-se um cavaleiro branco, cavalgando um ginete branco. Ele gritou: “Quem vem lá?” Não tendo recebido resposta a três interpelações, atirou e caiu sem sentidos.

“Ouvindo o estampido, uma patrulha correu e encontrou o sentinela desacordado. Levado ao hospital, onde ficou gravemente doente, pôde, entretanto, fazer o relato do que havia visto. Diz uma outra versão que o soldado morreu em consequência da aventura. Eis a história tal qual pode ser atestada por toda a cidade de Coblença”.

ALLAN KARDEC[1]



[1] Paris. Tipografia de Cosson & Cia. Rua do Four-Saint-Germain, 43.




Dezembro

O fenômeno das aparições apresenta-se hoje sob um aspecto de certo modo novo, e projeta uma viva luz sobre os mistérios da vida de além-túmulo. Antes de abordar os estranhos fatos que vamos relatar, julgamo-nos obrigados a reiterar, completando-as, as explicações dadas anteriormente.

Não se deve perder de vista que durante a vida o Espírito está unido ao corpo por uma substância semimaterial que constitui um primeiro envoltório, o qual designamos como perispírito. Tem, pois, o Espírito, dois envoltórios: um grosseiro, pesado e destrutível ─ o corpo; outro etéreo, vaporoso, indestrutível ─ o perispírito. A morte não é mais que a destruição do envoltório grosseiro; é a roupa usada que abandonamos. O envoltório semimaterial persiste e constitui, por assim dizer, um novo corpo para o Espírito.

Essa matéria eterizada ─ é bom frisar ─ absolutamente não é a alma; não passa de seu primeiro envoltório. A natureza íntima dessa substância ainda não nos é perfeitamente conhecida, mas a observação nos colocou no caminho de algumas de suas propriedades. Sabemos que ele representa um papel capital em todos os fenômenos espíritas; que após a morte ele é o agente intermediário entre o Espírito e a matéria, assim como o corpo durante a vida. Por aí se explicam uma porção de fenômenos até aqui insolúveis. Veremos em artigo subsequente o papel por ele representado nas sensações do Espírito. Além disto, a descoberta, se assim podemos dizer, do perispírito, permitiu que a ciência espírita desse um passo enorme e entrasse numa rota inteiramente nova.

Mas esse perispírito, direis vós, não é uma criação fantástica da imaginação? Não é apenas uma dessas suposições feitas tantas vezes para explicar certos efeitos? Não. Não é obra da imaginação, pois foram os próprios Espíritos que o revelaram. Não é uma ideia fantástica, porque pode ser constatado pelos sentidos; porque pode ser visto e tocado. A coisa existe; nossa é apenas a denominação. Para as coisas novas necessitamos de vocábulos novos. Os próprios Espíritos o adotaram nas comunicações que estabelecemos com eles.

Por sua natureza, e em estado normal, o perispírito é para nós invisível, mas pode sofrer modificações que o tornem perceptível à visão, tanto por uma espécie de condensação como por uma mudança na disposição molecular. É então que nos aparece sob uma forma vaporosa. A condensação (não tomemos este termo ao pé da letra, pois só o empregamos por falta de outro) a condensação, dizíamos nós, pode ser tal que o perispírito adquira as propriedades de um corpo sólido e tangível. Ele pode, entretanto, instantaneamente retomar o seu estado etéreo e invisível. Podemos fazer uma ideia desse efeito pelo do vapor, que pode passar do estado de invisibilidade ao estado brumoso, depois ao líquido e ao sólido e vice-versa. Estes diferentes estados do perispírito são o produto da vontade do Espírito e não de uma causa física exterior. Quando ele nos aparece, é que dá ao seu perispírito a propriedade necessária para torná-lo visível. De acordo com a sua vontade, ele pode estender, restringir e fazer cessar essa propriedade.

Outra propriedade da substância do perispírito é a penetrabilidade. Nenhuma matéria lhe oferece obstáculo. Ele as atravessa todas, como a luz atravessa os corpos transparentes.

O perispírito separado do corpo toma uma forma determinada e limitada e essa forma normal é a do corpo humano, mas não é constante. O Espírito pode dar-lhe, à vontade, as mais variadas aparências, inclusive a de um animal ou de uma chama. Aliás, isto se concebe muito facilmente. Não vemos homens que dão ao rosto as mais diversas expressões, imitando, a ponto de nos enganarem, a voz, assim como a expressão de outras pessoas; parecerem obesos, coxos, etc.? Quem reconheceria na cidade certos atores que só costuma ver caracterizados no palco? Se, pois, assim pode o homem dar ao seu corpo material e rígido aparências tão contrárias, com mais forte razão pode fazê-lo o Espírito com um envoltório eminentemente plástico e flexível e que pode prestar-se a todos os caprichos da vontade.

Os Espíritos, pois, geralmente nos aparecem sob uma forma humana. Em seu estado normal, essa forma nada tem de muito característica, nada que os distinga uns dos outros de maneira muito marcante. Nos bons Espíritos, a forma é, via de regra, bela e regular: longos cabelos flutuam sobre as espáduas e amplas túnicas envolvemlhes o corpo. Mas se quiserem ser identificados, tomam exatamente todos os traços pelos os quais foram conhecidos e até mesmo a aparência da vestimenta, se isso for necessário. Assim, por exemplo, como Espírito, Esopo não é disforme, mas se for evocado como Esopo, posto tivesse tido posteriormente várias existências, aparecerá feio e corcunda, vestindo à maneira tradicional. É talvez a roupagem o que mais intriga; se, entretanto, considerarmos que ela faz parte do envoltório semimaterial, compreenderemos que o Espírito pode dar a esse envoltório a aparência de tal ou qual vestimenta, como a de tal ou qual fisionomia.

Os Espíritos tanto podem aparecer em sonho quanto em vigília. As aparições em estado de vigília nem são raras nem novas; houve-as em todos os tempos e a História as registra em grande número. Sem remontar ao passado, entretanto, elas hoje são muito frequentes e muitas pessoas no primeiro instante tomaram tais visões por alucinações. São frequentes, principalmente nos casos de morte de pessoas ausentes que vêm visitar parentes e amigos. Muitas vezes não têm um objetivo determinado, mas em geral pode-se dizer que os Espíritos que assim nos aparecem são seres para nós atraídos pela simpatia.

Conhecemos uma jovem senhora que muitas vezes via em sua casa, no seu quarto, com ou sem luz, homens que aí entravam e saíam, embora estivessem fechadas as portas. Ela ficava muito espantada e isto a tinha tornado de uma pusilanimidade que tocava as raias do ridículo. Um dia ela viu distintamente o seu irmão, que se achava vivo na Califórnia, prova de que o Espírito dos vivos pode vencer as distâncias e aparecer num lugar, enquanto o corpo se acha em outro.

Depois que essa senhora foi iniciada no Espiritismo, já não tem medo, porque se dá conta das visões e sabe que os Espíritos que vêm visitá-la nenhum mal lhe podem fazer. É provável que, ao lhe aparecer, o seu irmão estivesse adormecido. Se ela se tivesse dado conta de sua presença, poderia ter estabelecido uma conversação com ele, da qual ele poderia ter conservado uma vaga lembrança ao despertar. É provável, ainda, que nesse momento ele tivesse sonhando que se achava junto de sua irmã.

Dissemos que o perispírito pode adquirir tangibilidade. Falamos sobre isto a propósito das manifestações produzidas pelo Sr. Home. Sabe-se que por diversas vezes ele fez aparecerem mãos que podiam ser apalpadas como se fossem vivas, mas que de repente se extinguiam como uma sombra, mas não se tinham visto ainda corpos inteiros sob essa forma tangível. Contudo não é coisa impossível. Numa família do conhecimento íntimo de um dos nossos assinantes, um Espírito ligou-se à filha daquela família, criança de dez a onze anos, sob a forma de um belo rapaz da mesma idade. É-lhe visível como uma pessoa comum e, à vontade, torna-se visível ou invisível às outras pessoas. Presta-lhe toda sorte de bons serviços; traz-lhe brinquedos e bombons; faz o trabalho doméstico; vai comprar aquilo de que necessitam e que é mais dispendioso. Isto não é uma lenda da mística Alemanha, nem uma história medieval. É um fato atual, que se passa neste momento em que escrevemos, numa cidade da França, no seio de uma família muito respeitável. Chegamos a fazer sobre este caso estudos muito interessantes e que nos forneceram as mais originais e imprevistas revelações. Trataremos deste assunto com os nossos leitores de modo mais completo em artigo especial que brevemente publicaremos .

Todo aquele que pode ver os Espíritos sem auxílio de terceiros é, por isto mesmo, médium vidente. Mas, em geral, as aparições são fortuitas e acidentais.

Nós ainda não conhecíamos ninguém apto a ver os Espíritos de maneira permanente e à vontade. É dessa notável faculdade que é dotado o Sr. Adrien, membro da Sociedade de Estudos Espíritas. Ele é, simultaneamente, médium vidente, escrevente, auditivo e sensitivo. Como psicógrafo, escreve o ditado dos Espíritos, mas raramente de modo mecânico, como os médiuns inteiramente passivos, isto é, mesmo escrevendo coisas estranhas ao seu pensamento, ele tem consciência do que escreve. Como médium auditivo escuta as vozes ocultas que lhe falam. Temos na Sociedade dois outros médiuns que gozam desta faculdade no mais alto grau e que, ao mesmo tempo, são ótimos psicógrafos. Enfim, como médium sensitivo, ele sente o contato dos Espíritos e a pressão que sobre si eles exercem. Sente até comoções elétricas muito violentas que afetam as pessoas presentes. Quando magnetiza alguém, pode, à sua vontade, desde que isso seja necessário à saúde, produzir sobre essa pessoa a descarga de uma pilha voltaica.

Uma nova faculdade que nele acaba de revelar-se é a dupla vista. Sem ser sonâmbulo e conquanto inteiramente desperto, vê à vontade, a uma distância ilimitada, mesmo além dos mares, aquilo que se passa numa localidade. Vê as pessoas e aquilo que estão fazendo; descreve os lugares e os fatos com precisão cuja exatidão tem sido confirmada.

Digamos logo que o Sr. Adrien não é um desses homens fracos que se deixam arrastar pela imaginação. Ao contrário, é um homem de caráter frio, muito calmo e que vê tudo isto com o mais absoluto sangue frio, mas não diremos que com indiferença; longe disto, pois que ele leva a sério as suas faculdades e as considera como um dom da Providência que lhe foi concedido para o bem e, assim, dele se serve apenas para coisas úteis e jamais para satisfazer à vã curiosidade. É um moço de família distinta, muito honesto, de um caráter suave e benevolente e cuja educação apurada se revela na linguagem e em todas as suas maneiras. Como marinheiro e como militar já percorreu uma parte da África, da Índia e de nossas colônias.

De todas as suas faculdades como médium, a mais notável e a nosso ver a mais preciosa é a vidência. Os Espíritos lhe aparecem sob a forma descrita em nosso artigo anterior sobre as aparições. Ele os vê com uma precisão da qual podemos fazer uma ideia pelos retratos que damos a seguir, da Viúva do Malabar e da Bela Cordoeira de Lyon.

Perguntarão, entretanto, o que prova que ele vê e que não é vítima de uma ilusão? O que o prova é que quando alguém que ele não conhece, por seu intermédio evoca um parente ou um amigo que ele jamais viu, faz desse amigo um retrato de notável semelhança, como tivemos oportunidade de verificar. Assim, não temos a menor dúvida quanto a essa faculdade que ele manifesta no estado de vigília e não como sonâmbulo.

O que há talvez ainda de mais notável é que ele não vê apenas os Espíritos evocados. Ele vê ao mesmo tempo todos os que se acham presentes, evocados ou não. Ele os vê entrar e sair, ir e vir, escutar o que dizemos, rindo ou tomando-nos a sério, conforme o seu caráter. Uns são graves, outros têm o ar trocista e sardônico; por vezes um deles se aproxima de um dos assistentes e lhe põe a mão sobre o ombro ou se coloca às suas costas, enquanto outros se mantêm a distância.

Numa palavra, em toda reunião há sempre uma assembleia oculta, composta de Espíritos atraídos por sua simpatia às pessoas e pelos assuntos de que se ocupam.

Nas ruas ele vê multidões, pois, além dos Espíritos familiares que acompanham os seus protegidos, há, como entre nós, a massa dos indiferentes e dos desocupados.

Diz-nos ele que em casa jamais se acha só e nunca se aborrece, pois há sempre uma comunidade com a qual se distrai.

Sua faculdade não alcança apenas os Espíritos dos mortos, mas também os dos vivos. Quando vê uma pessoa, pode fazer abstração de seu corpo; então, o Espírito dessa pessoa lhe aparece como se estivesse separado e pode com ele conversar. Assim, por exemplo, numa criança, pode ver o Espírito nela encarnado, apreciar a sua natureza e saber o que era antes de encarnar. Esta faculdade, elevada a tal nível, nos ensina mais do que todas as comunicações escritas sobre a natureza do mundo dos Espíritos; ela no-lo mostra tal qual ele é, e se não o vemos por nossos próprios olhos, a descrição que ele nos faz leva-nos a vê-lo por pensamento.

Os Espíritos deixam de ser seres abstratos e se tornam seres reais, que estão ao nosso lado; que nos acotovelam a cada passo. Como sabemos agora que seu contato pode ser material, compreendemos a causa de uma porção de impressões que sentimos sem delas nos darmos conta.

Assim, colocamos o Sr. Adrien entre os mais notáveis médiuns e na primeira fila daqueles que nos forneceram os mais preciosos elementos para o conhecimento do mundo espírita. Nós o colocamos na primeira linha, sobretudo por suas qualidades pessoais, que são as de um homem de bem por excelência e que o tornam eminentemente simpático aos Espíritos de uma ordem mais elevada, o que nem sempre se dá com os médiuns de influência puramente física. Sem dúvida entre estes últimos há os que farão mais sensação; que melhor cativarão a curiosidade pública, mas, para o observador, para quem queira sondar os mistérios desse mundo maravilhoso, o Sr. Adrien é o mais poderoso auxiliar que já encontramos.

Assim, a sua faculdade e a sua complacência foram postas a serviço de nossa instrução pessoal, quer na intimidade, quer nas sessões da Sociedade, quer, enfim, em visitas a diversos locais de reuniões. Estivemos juntos em teatros, em bailes, em passeios, em hospitais, nos cemitérios e nas igrejas. Assistimos a enterros, a casamentos, a batizados e a sermões. Em toda parte observamos Espíritos que ali se vinham reunir. Com alguns desses estabelecemos conversação, interrogamo-los e aprendemos muitas coisas que tornaremos proveitosas aos nossos leitores, porque nosso objetivo é o de fazê-los penetrar, como nós, num mundo tão novo para nós.

O microscópio revelou-nos o mundo dos infinitamente pequenos, de que nem suspeitávamos, embora estivesse ao alcance de nossas mãos. O telescópio revelounos a infinidade dos mundos celestes de que nem suspeitávamos. O Espiritismo desvenda-nos o mundo dos Espíritos que está por toda parte, tanto ao nosso lado como nos espaços, mundo real que reage sobre nós incessantemente.

Os Espíritos sempre nos disseram que a separação da alma e do corpo não se dá instantaneamente. Algumas vezes começa antes da morte real, durante a agonia. Quando se faz notar a última pulsação, o desprendimento ainda não é completo. Ele se opera mais ou menos lentamente, conforme as circunstâncias e até sua completa libertação a alma experimenta uma perturbação, uma confusão que lhe não permitem dar-se conta de sua situação. Ela se encontra no estado de uma pessoa que desperta e cujas ideias são confusas.

Tal estado nada tem de penoso para o homem cuja consciência é pura; sem compreender bem o que vê, está calmo e espera sem temor o completo despertar. Ao contrário, é cheio de angústias e de terrores para aquele que teme o futuro.

A duração dessa perturbação, dizemos nós, é variável. É muito menos longa naquele que durante a vida já elevou seus pensamentos e purificou sua alma; dois ou três dias lhe bastam, enquanto que a outros são precisos, por vezes, oito ou mais dias. Muitas vezes assistimos a esse momento solene e sempre vimos a mesma coisa. Não é, pois, uma teoria, mas o resultado da observação, pois é o Espírito que descreve e pinta a sua própria situação.

Eis um exemplo bem característico e muito interessante para o observador, por não tratar-se de um Espírito invisível que escreve por intermédio de um médium, mas de um Espírito que é visto e ouvido junto ao seu corpo, tanto na câmara ardente quanto na igreja, durante o serviço fúnebre.

O Sr. X... acabava de ser vitimado por um ataque de apoplexia. Algumas horas depois de sua morte, o Sr. Adrien, um de seus amigos, achava-se na câmara mortuária, com a esposa do defunto. Ele viu distintamente o Espírito andar em todas as direções; olhar alternativamente para o seu corpo e para as pessoas presentes e depois sentar-se numa poltrona. Tinha exatamente a mesma aparência de quando vivo. Vestia-se do mesmo jeito: sobrecasaca preta e calças pretas. Estava com as mãos nos bolsos e parecia desconfiado.

Durante esse tempo a esposa procurava um papel na escrivaninha. O marido olhou-a e disse: “Procurarás em vão; nada encontrarás.” Ela nada suspeitava, porque o Sr. X. só era visível para o Sr. Adrien.

No dia seguinte, durante o serviço fúnebre, o Sr. Adrien viu novamente o Espírito de seu amigo vagando ao lado do caixão, mas já não tinha a roupa da véspera: estava envolto numa espécie de túnica. Entre ambos travou-se a seguinte conversa. Notemos, de passagem, que o Sr. Adrien não é sonâmbulo; que nesse momento, como no dia anterior, estava perfeitamente desperto e que o Espírito lhe aparecia como se fora um convidado para o enterro.

─ Diga-me uma coisa, meu caro Espírito: o que sentes agora?

─ Conforto e sofrimento.

─ Não compreendo isto.

─ Sinto que estou vivendo a minha verdadeira vida, entretanto, vejo o meu corpo aqui neste caixão; apalpo-me e não me sinto, contudo sinto que vivo, que existo. Serei então dois seres? Ah! Deixe-me sair desta noite, deste pesadelo.

─ Deverás ficar muito tempo assim?

─ Oh! Não. Graças a Deus, meu amigo, sinto que despertarei em breve. Seria horrível se assim não fosse. Tenho as ideias confusas; tudo é obscuridade; penso na grande divisão que acaba de ser feita... e da qual nada compreendo.

Que efeito lhe produziu a morte?

─ A morte? Eu não estou morto, meu filho! Você se engana. Eu me levantava e de repente fui atingido por uma escuridão que me desceu sobre os olhos; depois me levantei e imagine o meu espanto ao me ver, ao me sentir vivo e ter ao meu lado, sobre o ladrilho, meu outro ego deitado. Minhas ideias estavam confusas. Eu tentava me recompor, mas não conseguia. Vi minha mulher chegar e velar-me, lamentandose, mas eu me perguntava o motivo. Eu a consolava, falava-lhe, mas ela nem me respondia nem me compreendia. É isto que me torturava e deixava meu espírito mais perturbado. Só você me fez bem, porque me escutou e compreende o que eu quero. Você me ajuda a destrinçar minhas ideias e me faz um grande bem. Mas por que os outros não fazem o mesmo? Eis o que me tortura... O cérebro está esmagado por esta dor... Irei vê-la. Talvez agora ela me entenda... Até logo, meu caro amigo. Me chame, que e eu irei vê-lo... Farei uma visita de amigo... Surpreendê-lo-ei... Até logo.

A seguir o Sr. Adrien o viu aproximar-se do filho que chorava. Curvou-se sobre ele, ficou uns momentos nessa posição, depois partiu rapidamente. Não havia sido entendido, mas sem dúvida imaginava ter produzido um som. “Eu estou persuadido, diz o Sr. Adrien, de que o que ele dizia chegava ao coração do filho. Eu vos provarei isso. Eu o vi depois, e ele estava mais calmo.”

OBSERVAÇÃO: Este relato está de acordo com tudo quanto havíamos observado sobre o fenômeno da separação da alma; confirma, em circunstâncias muito especiais, esta verdade: após a morte, o Espírito ainda está presente. Acreditamos ter diante de nós apenas um corpo inerte, ao passo que ele vê e entende tudo quanto se passa ao seu redor; penetra o pensamento dos assistentes e vê que entre si e eles a única diferença é a visibilidade e a invisibilidade. As lágrimas de crocodilo dos ávidos herdeiros não o abalam.

Quantas decepções devem os Espíritos experimentar nesse momento!

Um dos membros da Sociedade envia-nos uma carta de um de seus amigos de Boulogne-sur-Mer, datada de 26 de julho de 1856, onde se lê a passagem seguinte:

Depois que por ordem dos Espíritos magnetizei meu filho, ele se tornou um médium muito raro, conforme a revelação que fez em estado sonambúlico, no qual eu o havia posto, a pedido dele, a 14 de maio último e outras quatro ou cinco vezes.

Para mim é fora de dúvida que desperto meu filho conversa livremente com os Espíritos com quem deseja, por intermédio de seu guia, que chama familiarmente de amigo; que à vontade ele se transporta em Espírito aonde deseja. Vou citar um fato cuja prova escrita tenho em minhas mãos.

Faz hoje exatamente um mês que estávamos ambos na sala de jantar. Eu lia o curso de magnetismo do Sr. Du Potet, quando meu filho tomou o livro e o folheou. Quando chegou a certa passagem, seu guia lhe disse ao ouvido: “Leia isto.” Era a aventura de um doutor da América, cujo Espírito tinha visitado um amigo a 15 ou 20 léguas de distância, enquanto dormia. Depois de ter lido, meu filho disse:

─ Gostaria de fazer uma viagem semelhante.

─ Então! Onde queres ir? perguntou-lhe o guia.

─ A Londres, respondeu meu filho, ver os amigos. E designou aqueles a quem desejava visitar.

Amanhã é domingo. Não és obrigado a te levantares cedo para trabalhar. Dormirás às oito horas e irás passear em Londres até as oito e meia. Sexta-feira próxima receberás uma carta de teus amigos, censurando-te por teres ficado tão pouco tempo com eles.

Efetivamente, no dia seguinte, pela manhã, à hora indicada, ele caiu num sono profundo. Despertei-o às oito e meia. Ele não se lembrava de nada. De minha parte nada lhe disse, esperando os acontecimentos.

Na sexta-feira seguinte eu trabalhava numa das minhas máquinas e como de hábito fumava, por ter acabado de almoçar. Meu filho olhava a fumaça do cachimbo e me disse:

─ Olha! Há uma carta na fumaça.

─ Como vês uma carta na fumaça?

─ Verás, respondeu ele, pois eis que chega o carteiro.

Realmente, o carteiro veio entregar uma carta de Londres, na qual os amigos de meu filho censuravam-no por ter passado com eles apenas alguns minutos, no domingo anterior, das oito às oito e meia, com uma porção de detalhes que seria longo aqui relatar, entre os quais o fato singular de ter tomado o café da manhã com eles. Possuo a carta, como havia dito, como prova de que não estou inventando.

Tendo sido contado o fato acima, um dos assistentes disse que a História narra diversos casos semelhantes. Citou Santo Afonso de Liguori, que foi canonizado antes do tempo exigido, por se haver mostrado simultaneamente em dois lugares diferentes, o que foi considerado como um milagre.

Santo Antônio de Pádua estava na Espanha e no momento em que pregava, seu pai ia ser supliciado em Pádua, acusado de assassinato. Nesse momento aparece Antônio, demonstra a inocência de seu pai e revela o verdadeiro criminoso, que mais tarde sofreu o castigo. Foi constatado que no mesmo instante Santo Antônio pregava na Espanha.

Santo Afonso de Liguori foi evocado e lhe dirigimos as seguintes perguntas:

1. ─ O fato pelo qual fostes canonizado é real?
─ Sim.
2. ─ Esse fenômeno é excepcional?
─ Não. Ele pode apresentar-se em todos os indivíduos desmaterializados.

3. ─ Era motivo justo para vos canonizarem?
─ Sim, pois que por minha virtude eu me havia elevado para Deus. Sem isso eu não teria podido transportar-me simultaneamente para dois lugares diferentes.

4. ─ Todos os indivíduos com os quais ocorrem esses fenômenos merecem ser canonizados?
─ Não, pois nem todos são igualmente virtuosos.

5. ─ Poderíeis dar-nos uma explicação desse fenômeno?
─ Sim. Quando o homem, por sua virtude, se acha completamente desmaterializado; quando elevou sua alma para Deus, pode aparecer simultaneamente em dois lugares, do seguinte modo: Sentindo vir o sono, o Espírito encarnado pode pedir a Deus para se transportar a um lugar qualquer. Seu Espírito ou sua alma, como queirais chamar, então abandona o seu corpo, seguido de uma parte de seu perispírito e deixa a matéria imunda num estado vizinho ao da morte. Digo vizinho ao da morte porque fica no corpo um laço que liga o perispírito e a alma à matéria, e esse laço não pode ser definido. O corpo então aparece no lugar desejado. Creio que é tudo o que desejais saber.

6. ─ Isto não nos dá a explicação da visibilidade e da tangibilidade do perispírito. Achando-se desprendido da matéria, conforme o seu grau de elevação, o Espírito pode tornar a matéria tangível.

7. ─ Entretanto, certas aparições tangíveis de mãos e de outras partes do corpo devem-se evidentemente a Espíritos inferiores. ─ São Espíritos superiores que se servem dos inferiores a fim de provar o fato.

8. ─ O sono do corpo é indispensável para que o Espírito apareça noutros lugares?
─ A alma pode dividir-se quando se sente transportada a um lugar diferente daquele onde se acha o seu corpo.

9. ─ Que aconteceria a um homem mergulhado em sono profundo e cujo Espírito aparecesse alhures, se fosse despertado subitamente?
─ Isto não aconteceria, porque se alguém tivesse o intuito de despertá-lo, o Espírito preveria a intenção e voltaria ao corpo, tendo em vista que o Espírito lê o pensamento.

Um fato análogo é relatado por Tácito:

Durante os meses passados por Vespasiano em Alexandria, à espera da volta periódica dos ventos de estio e da estação em que o mar fica favorável, aconteceram vários prodígios, pelos quais se manifestou o favor do céu e o interesse que os deuses pareciam ter por esse príncipe...

Tais prodígios redobraram em Vespasiano o desejo de visitar a morada sagrada do deus, a fim de consultá-lo sobre assuntos do Império. Ele ordenou que o templo fosse interditado a todos. Tendo entrado no templo, inteiramente compenetrado no que o oráculo diria, percebeu às suas costas um dos principais egípcios, chamado Basílide, que sabia encontrar-se doente há vários dias em Alexandria. Perguntou aos sacerdotes se naquele dia Basílide tinha vindo ao templo; indagou aos transeuntes se o haviam visto na cidade; por fim, mandou homens a cavalo e certificou-se de que naquele mesmo momento ele se achava a oitenta milhas de distância. Então não mais duvidou de que a visão tivesse sido sobrenatural e que Basílide havia tomado o lugar do oráculo. (TÁCITO. Histórias, Livro IV, cap. 81 e 82. Trad. de Burnouf.)

Desde quando este fato nos foi comunicado, vários do mesmo gênero, de fonte segura, nos foram narrados. Em seu número há alguns bem recentes, ocorridos, por assim dizer, em nosso meio, e que se apresentaram nas mais singulares circunstâncias. As explicações que eles permitem alargam sobremaneira o campo das observações psicológicas.

A questão dos homens duplos, outrora relegada aos contos fantásticos, parece, assim, ter um fundo de verdade. Brevemente voltaremos ao assunto.

Sensações dos Espíritos.

Sofrem os Espíritos? Que sensações experimentam? Tais perguntas nos são naturalmente dirigidas e procuramos respondê-las. Inicialmente devemos dizer que para tanto não nos contentamos com respostas dos Espíritos. De certo modo tivemos que considerar a sensação como um fato, através de numerosas observações.

Numa de nossas reuniões, pouco depois de havermos recebido de São Luís uma bela dissertação sobre a avareza, cuja publicação foi feita em nosso número de fevereiro, um dos nossos associados contou o fato que se segue, a respeito daquela dissertação.

“Numa pequena reunião de amigos, ocupávamo-nos de evocações quando, inopinadamente e sem que o tivéssemos chamado, apresentou-se um Espírito que havíamos conhecido muito bem, e que em vida poderia ter servido de modelo ao retrato do avarento feito por São Luís: um desses homens que vivem miseravelmente no meio da fortuna; que se privam, não pelos outros, mas para acumular sem proveito para ninguém. Foi no inverno e nós estávamos perto do fogo. De repente aquele Espírito trouxe à nossa lembrança o seu nome, no qual estávamos longe de pensar e nos pediu permissão para vir durante três dias aquecer-se à nossa lareira, dizendo que sentia horrivelmente o frio que voluntariamente suportara durante a vida e que, por avareza, obrigara os outros a suportar. Isto seria um alívio, acrescentou ele, se quiserdes conceder-mo.”

Aquele espírito experimentava penosa sensação de frio. Mas como a experimentava? Nisto é que estava a dificuldade.

A esse respeito, dirigimos a São Luís as perguntas que se seguem.

1. ─ Teríeis a bondade de dizer-nos como esse Espírito de avarento, que não tinha mais o corpo material, podia sentir frio e pedir para se aquecer?

─ Podes imaginar os sofrimentos do Espírito pelos sofrimentos morais.

2. ─ Compreendemos os sofrimentos morais, como pesares, remorsos, vergonha, mas o calor, o frio e a dor física não são efeitos morais. Os Espíritos experimentam esta espécie de sensações?

─ Tua alma sente frio? Não, mas tem a consciência da sensação que age sobre o corpo.

3. ─ Parece disso decorrer que esse Espírito de avarento não sentia um frio real, mas que ele tinha a lembrança da sensação do frio que havia suportado, e essa lembrança, que lhe era como uma realidade, tornava-se um suplício.

─ É mais ou menos isto. Fique bem entendido que há uma distinção, que compreendeis perfeitamente, entre a dor física e a dor moral. Não se deve confundir o efeito com a causa.

─ Se bem compreendemos, poder-se-ia, ao que parece, explicar as coisas do seguinte modo: O corpo é o instrumento da dor. Se não é a causa primeira, é pelo menos a causa imediata. A alma tem a percepção dessa dor. Essa percepção é o efeito. A lembrança que disso conserva pode ser tão penosa quanto a realidade, mas não pode ter ação física. Realmente, nem frio nem calor intensos podem desorganizar-lhe os tecidos. A alma nem pode ficar gelada nem se queimar. Não vemos diariamente a lembrança ou a apreensão de um mal físico produzir o efeito da realidade? Ocasionar até a morte? Todo mundo sabe que pessoas amputadas sentem dor no membro que não existe mais. Certamente esse membro não é nem a sede, nem mesmo o ponto de partida da dor. O cérebro conservou-lhe a impressão, eis tudo. Pode-se pois crer que existe algo de análogo nos sofrimentos do Espírito após a morte. Estas reflexões estão corretas?

4. ─ Sim. Mais tarde compreendereis ainda melhor. Esperai que outros fatos vos forneçam novos pontos de observação. Então podereis tirar conclusões mais completas.

Isto se passava no começo do ano de 1858. Efetivamente, desde então um estudo mais aprofundado do perispírito, que representa um importante papel em todos os fenômenos espíritas e do qual ainda não se havia tomado conhecimento: as aparições vaporosas ou tangíveis; o estado do Espírito no momento da morte; a ideia, tão frequente no Espírito, de que ainda se acha vivo; o quadro impressionante dos suicidas, dos suplicados, dos que se absorveram nos prazeres materiais e tantos outros fatos vieram lançar uma luz sobre esta questão e deram lugar a explicações cujo resumo fazemos a seguir:

O perispírito é o laço que une o Espírito à matéria do corpo; ele é tirado do meio ambiente, do fluido universal; ele tem, simultaneamente, algo da eletricidade, do fluido magnético e, até certo ponto, da matéria inerte. Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria: é o princípio da vida orgânica, mas não o é da vida intelectual. A vida intelectual está no Espírito. Ele é, além disso, o agente das sensações exteriores. No corpo, essas sensações estão localizadas nos órgãos que lhe servem de canais. Destruído o corpo, as sensações tornam-se gerais. Eis por que o Espírito não diz que sofre mais da cabeça do que dos pés. Além disso, é necessário não confundir as sensações do perispírito, que se tornou independente, com as do corpo. Não podemos tomar estas últimas senão como termo de comparação e não como analogia. Um excesso de calor ou de frio pode desorganizar os tecidos do corpo, entretanto não pode atingir o perispírito. Desprendido do corpo, o Espírito pode sofrer, mas esse sofrimento não é o do corpo. Contudo, não é um sofrimento exclusivamente moral, como o remorso, de vez que ele se queixa de frio ou de calor; ele não sofre mais no inverno do que no verão; vimo-los passar através das chamas sem experimentar nenhum sofrimento. Assim, nenhuma impressão sobre eles pode exercer a temperatura. A dor que sentem não é, pois, uma dor física, propriamente dita. É um vago sentimento íntimo, de que o próprio Espírito nem sempre se dá conta com precisão, porque a dor não é localizada e não é produzida por agentes externos. É mais uma lembrança do que uma realidade, posto seja uma lembrança realmente penosa. Há, entretanto, algo mais que uma lembrança, como passaremos a ver.

Ensina-nos a experiência que no momento da morte o perispírito se desprende mais ou menos lentamente do corpo. Durante os primeiros instantes o Espírito não se dá conta da situação; não se julga morto; sente-se vivo; vê seu o corpo ao lado; sabe que é o dele, mas não compreende que do mesmo esteja separado. Esse estado dura enquanto existe uma ligação entre o corpo e o perispírito.

Recordemos a evocação do suicida da casa de banhos da Samaritana, descrita em nosso número de junho. Como todos os outros, ele dizia: “Não, eu não estou morto.” Mas acrescentava: “Entretanto, sinto que os vermes me roem.” Ora, seguramente os vermes não roem o perispírito e, ainda menos o Espírito. Apenas roem o corpo. Como a separação do corpo e do perispírito não era completa, o resultado era uma espécie de repercussão moral que lhe transmitia a sensação do que acontecia no corpo. Repercussão talvez não seja o vocábulo, o qual poderia fazer supor um efeito muito material. Era antes a visão daquilo que se passava em seu corpo, ao qual estava ligado o seu perispírito, que lhe produzia uma ilusão, que ele tomava como realidade. Assim, não é uma lembrança, pois que em vida não tinha sido roído pelos vermes. Era um sentimento atual.

Vemos por aí as deduções que podem ser tiradas dos fatos, quando observados com atenção. Durante a vida, o corpo recebe impressões exteriores e as transmite ao Espírito, por intermédio do perispírito, que constitui, provavelmente, aquilo que é chamado fluido nervoso. Morto, o corpo não mais sente, porque nele já não há Espírito nem perispírito. Desprendido do corpo, o perispírito experimenta a sensação. Entretanto, como esta não lhe chega através de um canal limitado, é geral. Ora, como na realidade existe apenas um agente transmissor, desde que é o Espírito que tem a consciência, disto resulta que se pudesse existir um perispírito sem Espírito, este não sentiria mais do que o corpo quando morto. Do mesmo modo, se o Espírito não tivesse perispírito, seria inacessível a qualquer sensação dolorosa. É isto o que acontece com os Espíritos completamente depurados. Sabemos que quanto mais se depuram, tanto mais eterizada se torna a essência do perispírito, de onde se segue que a influência material diminui à medida que o Espírito progride, isto é, à medida que o perispírito se torna menos grosseiro.

Dir-se-á, entretanto, que as sensações agradáveis são transmitidas ao Espírito pelo perispírito, assim como as desagradáveis. Ora, se o Espírito puro é inacessível a umas, deve sê-lo igualmente a outras. Sim, sem dúvida, às que provêm unicamente da influência da matéria que conhecemos. O som de nossos instrumentos, o perfume de nossas flores nenhuma impressão lhe causam. Entretanto, há nele sensações íntimas, de um encanto indefinível do qual nenhuma ideia podemos fazer, porque a tal respeito somos como cegos de nascença em relação à luz. Sabemos que isto existe, mas por que meio? Daqui não passam nossos conhecimentos. Sabemos que há percepção, sensação, audição, visão; que essas faculdades são atributos do ser inteiro e não, como no homem, de uma parte do ser. Mas, ainda uma vez, por que meio? Eis o que ignoramos. Os próprios Espíritos não nos podem dar esclarecimentos sobre isso porque nossa linguagem não é apta a exprimir ideias que não possuímos, do mesmo modo que um povo cego não teria palavras para exprimir os efeitos da luz, ou a linguagem dos selvagens, meios para descrever as nossas artes, as nossas ciências e as nossas doutrinas filosóficas.

Dizendo que os Espíritos são inacessíveis às impressões de nossa matéria, queremos referir-nos aos Espíritos muito elevados, cujo envoltório etéreo não tem analogia aqui na Terra. Já o mesmo não se dá com aqueles cujo perispírito é mais denso. Esses percebem os nossos sons, os nossos odores, mas não por uma parte limitada do seu ser, como quando vivos. Poder-se-ia dizer que as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o seu ser e assim chegam ao sensorium commune, que é o próprio Espírito, posto que de maneira diferente e talvez mesmo com uma impressão diferente, o que produz uma modificação na percepção. Eles ouvem o som de nossa voz, entretanto nos entendem sem o recurso da palavra, pela simples transmissão do pensamento, o que vem em apoio àquilo que dizíamos, isto é, que tal penetração é tanto mais fácil quanto mais desmaterializado é o Espírito.

Quanto à visão, ela independe da nossa luz. A faculdade de ver é um atributo essencial da alma. Para ela não existe obscuridade. No entanto, ela é mais extensa e penetrante naqueles que são mais depurados. A alma, ou Espírito, tem, pois, em si mesma, a faculdade de todas as percepções. Na vida corpórea estas são obliteradas pela grosseria de nossos órgãos. Na vida extracorpórea são cada vez menos obliteradas, à medida que se depura o envoltório semimaterial.

Tirado do meio ambiente, esse envoltório varia segundo a natureza dos mundos. Passando de um mundo a outro, os Espíritos mudam de envoltório como nós mudamos as roupas ao passar do inverno ao verão, ou do polo ao equador. Quando nos vêm visitar, os Espíritos mais elevados revestem-se, pois, de seu perispírito terrestre e a partir de então suas percepções se operam como nos nossos Espíritos comuns. Mas todos, tanto inferiores como superiores, nem ouvem nem sentem senão aquilo que querem ouvir ou sentir. Sem órgãos sensitivos, podem, à vontade, tornar as suas percepções ativas ou anulá-las. Existe apenas uma coisa que são obrigados a ouvir: os conselhos dos bons Espíritos.

A vista é sempre ativa, mas podem tornar-se reciprocamente invisíveis uns para os outros. Segundo a posição que ocupam, podem ocultar-se dos que lhes são inferiores, mas não dos superiores.

Nos primeiros momentos que se seguem à morte, a visão do Espírito é sempre confusa e perturbada. Torna-se clara à medida que se desprende e pode adquirir a mesma clareza que durante a vida, independentemente de sua penetração através dos corpos para nós opacos. Quanto à sua extensão através do espaço infinito, tanto no passado como no futuro, depende do grau de pureza e de elevação do Espírito.

Dirão que toda esta teoria não é nada animadora. Imaginávamos que uma vez desembaraçados do grosseiro envoltório material, instrumento de nossas dores, não mais sofreríamos. Eis que nos ensinais que sofreremos ainda. De uma ou de outra forma, não haverá menos sofrimento. Ai de nós!

Sim, nós podemos continuar sofrendo, e muito, e por muito tempo, mas também podemos deixar de sofrer, até mesmo a partir do momento em que deixamos a vida corpórea.

Os sofrimentos terrenos são por vezes independentes de nós. Muitos, porém, são consequência de nossa vontade. Remontemos à fonte e veremos que a maior parte deles resultam de causas que poderíamos ter evitado. Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra, às suas paixões?

O homem que tivesse vivido sobriamente; que não tivesse abusado de nada; que sempre tivesse sido simples em seus gostos e modesto nos seus desejos, poupar-se-ia a muitas tribulações.

O mesmo se dá com o Espírito. Os sofrimentos que padece são sempre consequência da maneira como viveu na Terra. Certamente não sofrerá mais de gota ou de reumatismo, mas terá outros sofrimentos que não são menores. Vimos que seus sofrimentos são o resultado dos laços que ainda existem entre ele e a matéria; que quanto mais desvinculado da influência da matéria ou, por outras palavras, quanto mais desmaterializado, menos sensações penosas terá. Ora, dele depende libertar-se de tal influência, já nesta vida. Ele possui o livre-arbítrio e, consequentemente, a escolha entre fazer ou deixar de fazer. Que domine as suas paixões animais; que não tenha ódio, inveja, ciúme e orgulho; que não se deixe dominar pelo egoísmo; que purifique sua alma pelos bons sentimentos; que pratique o bem; que não atribua às coisas deste mundo senão a importância que merecem e então, mesmo que ainda esteja em seu envoltório corporal, já estará depurado e desprendido da matéria. Quando deixar esse envoltório, não sofrerá mais sua influência. Os sofrimentos físicos que houver experimentado não lhe deixarão uma lembrança penosa. Não lhe restará nenhuma impressão desagradável, porque elas terão afetado o corpo, mas não o Espírito; será feliz por ter-se libertado e a calma de consciência o livrará de qualquer sofrimento moral.

Interrogamos milhares de Espíritos que pertenceram a todas as camadas da Sociedade e a todas as posições sociais; estudamo-los em todos os períodos de sua vida espírita, desde o momento em que deixaram o corpo; seguimo-los passo a passo nessa vida de além-túmulo, a fim de observar as mudanças neles operadas, nas suas ideias e nas suas sensações. A esse respeito, não foram as criaturas mais vulgares as que ofereceram material menos interessante para estudo. Ora, nós vimos sempre que os sofrimentos dependem da conduta, cujas consequências eles sofrem, e que essa nova existência é fonte de inefável felicidade para aqueles que seguiram o bom caminho, de onde se segue que os que sofrem, sofrem porque o quiseram e que não devem queixar-se senão de si mesmos, quer neste mundo, quer no outro.

Certos críticos ridicularizaram algumas das nossas evocações, como, por exemplo, a do assassino Lemaire*, achando estranho que nos ocupássemos de seres tão ignóbeis, quando temos tantos Espíritos superiores à nossa disposição. Esquecem que é exatamente por isto que, de certo modo, apuramos a natureza do fato ou, melhor dizendo, em sua ignorância da ciência espírita, não veem nesses diálogos mais que uma conversa mais ou menos divertida, cujo alcance não compreendem.


* Vide Revista Espírita n.º 1.


Lemos algures que um filósofo dizia, depois de haver conversado com um camponês: “Aprendi mais com esse rústico do que com todos os sábios.” É que ele podia ver além da superfície. Para o bom observador nada é perdido. Ele encontra ensinamentos úteis até no criptógamo que cresce nas esterqueiras. Recusa-se o médico a tocar numa ferida horrenda quando se trata de encontrar a causa de um mal?

Ainda uma palavra sobre o assunto. Os sofrimentos de além-túmulo têm um termo. Sabemos que aos mais inferiores Espíritos é permitido elevar-se e purificar-se por novas provas. Isto pode ser demorado, muito demorado, mas dele depende abreviar esse tempo penoso, porque Deus o escuta sempre, desde que se submeta à sua vontade. Quanto mais desmaterializado é o Espírito, mais vastas e lúcidas são as suas percepções; quanto mais se acha sob o império da matéria, o que depende inteiramente do seu gênero de vida terrena, mais limitadas e veladas serão elas. Quanto mais a visão moral de um se estende para o infinito, tanto mais a do outro se restringe.

Assim, pois, os Espíritos inferiores têm apenas uma noção vaga, confusa, incompleta e por vezes nula do futuro. Eles não veem o termo de seus sofrimentos e por isso pensam sofrer eternamente, o que é para eles um castigo. Se a posição de uns é aflitiva, terrível mesmo, não é, entretanto, desesperadora; a dos outros é, porém, eminentemente consoladora. A nós, pois, cabe escolher. Isto é da mais alta moralidade.

Os cépticos duvidam da sorte que nos aguarda após a morte. Nós lhes mostramos exatamente o que acontece, com o que julgamos prestar-lhes um serviço. Assim, vimos mais de um voltar atrás de seu erro ou, pelo menos, começar a refletir sobre aquilo de que antes fazia troça.

Nada como nos darmos conta da possibilidade das coisas. Se sempre tivesse sido assim, não haveria tantos incrédulos, e tanto a religião como a moral pública ganhariam com isso. Para muitos a dúvida religiosa provém da dificuldade de compreenderem certas coisas. São Espíritos positivos não predispostos à fé cega, que só admitem aquilo que para eles tem uma razão de ser. Tornai essas coisas acessíveis à sua inteligência e eles as aceitarão, porque, no fundo, não pedem mais do que isso a fim de crerem e porque a dúvida lhes é uma situação mais penosa do que imaginamos ou do que eles ousam confessar.

Em tudo quanto dissemos não há um sistema ou ideias pessoais. Também não foram alguns Espíritos privilegiados que nos ditaram esta teoria. Ela é resultado de estudos feitos sobre individualidades, corroborados e confirmados por Espíritos cuja linguagem nenhuma dúvida pode deixar quanto à sua superioridade. Julgamo-los por suas palavras e não por seu nome ou pelo nome que podem atribuir-se.



Dissertações de além-túmulo

Pobres homens! Como conheceis pouco os mais ordinários fenômenos que fazem a vossa vida! Tende-vos por muito sábios; pensais possuir uma vasta erudição e a estas simples perguntas que fazem todas as crianças: “O que é que fazemos quando dormimos? O que são os sonhos?” ficais sem resposta. Não tenho a pretensão de vos fazer compreender aquilo que vos quero explicar, porque há coisas às quais o vosso Espírito ainda não pode submeter-se, porque admite apenas o que compreende.

O sono liberta inteiramente a alma do corpo. Quando dormimos, ficamos momentaneamente no estado em que, de maneira definitiva, nos encontraremos depois da morte. Os Espíritos que rapidamente se desprenderam da matéria por ocasião da morte, tiveram sono inteligente; esses, quando dormem, reencontram a sociedade de outros seres que lhes são superiores: viajam, conversam e com eles se instruem. Trabalham até em obras que, ao morrer, acham acabadas. Isto, mais uma vez, deve ensinar-nos que não devemos temer a morte, pois que morremos todos dias, conforme disse um santo.

Isto quanto aos Espíritos elevados. No entanto, a maior parte dos homens, que com a morte devem ficar longas horas nessa perturbação, nessa incerteza de que vos falaram, esses vão ou para mundos inferiores à Terra, para onde os chamam antigas afeições, ou ao encontro de prazeres ainda mais baixos do que os que têm aqui. Vão aprender doutrinas ainda mais vis, mais ignóbeis e mais nocivas do que as que professam em vosso meio. O que estabelece a simpatia, na Terra, não é senão o fato de nos sentirmos, ao despertar, atraídos pelo coração para junto daqueles com quem acabamos de passar oito ou nove horas de felicidade ou de prazer. O que também explica as antipatias irresistíveis é que, no fundo do coração, sabemos que essas criaturas têm uma consciência diferente da nossa, pois as conhecemos sem jamais as termos visto com os olhos. É ainda o que explica a indiferença, pois que não buscamos fazer amigos, quando sabemos que temos outros que nos amam e nos querem. Numa palavra, o sono influi mais do que pensais sobre a vossa vida.

Por efeito do sono os Espíritos encarnados estão sempre em contato com o mundo dos Espíritos, o que permite que os Espíritos superiores, sem muita repulsa, consintam em vir encarnar-se em vosso meio. Deus quis que durante o seu contato com o vício eles pudessem vir retemperar-se na fonte do bem, a fim de não falirem, eles que vêm para instruir os outros. O sono é a porta que Deus lhes abriu para os amigos do Céu; é o recreio após o trabalho, a espera da grande libertação, a libertação final que deve reintegrá-los em seu verdadeiro meio.

O sonho é a lembrança daquilo que o vosso Espírito viu durante o sono. Notai, porém, que não sonhais sempre, porque nem sempre vos lembrais daquilo que vistes ou de tudo quanto vistes. Não é a vossa alma em todo o seu desdobramento; muitas vezes não é mais que a lembrança da perturbação que acompanha a vossa partida ou a vossa chegada, a que se junta a lembrança daquilo que fizestes ou que vos preocupa no estado de vigília. Sem isto, como explicar esses sonhos absurdos, tanto dos mais sábios como dos mais simples? Os maus Espíritos também se servem dos sonhos para atormentar as almas fracas e pusilânimes.

Aliás, dentro em pouco vereis desenvolver-se uma nova espécie de sonhos. Ela é tão antiga quanto a que conheceis, mas vós a ignorais. O sonho de Joana, o de Jacob, o dos profetas judeus e o de alguns adivinhos indianos. Esse sonho é a lembrança da alma inteiramente desprendida do corpo; a lembrança dessa segunda vida de que eu vos falava há pouco.

Procurai distinguir bem essas duas espécies de sonhos naqueles de que vos recordais, pois sem isto caireis em contradições e em erros funestos à vossa fé.

OBSERVAÇÃO: Solicitado a declinar o seu nome, o Espírito que ditou esta comunicação respondeu: “Para quê? Pensais que só os Espíritos de vossos grandes homens é que vos vêm dizer boas coisas? Então não valem nada todos aqueles que não conheceis ou que não têm nome na vossa Terra? Sabei que muitos tomam um nome apenas para vos satisfazer.”

OBSERVAÇÃO: Esta comunicação e a seguinte foram obtidas pelo Sr. F..., o mesmo de quem falamos em nosso número de outubro, a propósito dos obsedados e subjugados. Por aí se pode julgar a diferença entre a natureza de suas comunicações atuais e as de outrora. Sua vontade triunfou completamente da obsessão de que era vítima, e seu mau Espírito não reapareceu. Estas duas dissertações lhe foram ditadas por Bernard Palissy.

As flores foram criadas no mundo como símbolos da beleza, da pureza e da esperança.

Como é que o homem que vê as corolas se abrirem todas as primaveras e as flores se fanarem para dar lugar a frutos deliciosos não pensa que assim sua vida murchará, mas para dar frutos eternos? Que vos importam, pois, as tempestades e as torrentes? Essas flores jamais perecerão, como não perece a mais frágil obra do Criador. Coragem, pois, homens que caís pela estrada; levantai-vos como o lírio após a tempestade, mais puros e mais radiosos. Como às flores, os ventos vos açoitam por todos os lados; eles vos derribam e vos arrastam pela lama, mas quando o sol reaparece, reerguei também vossas cabeças, com mais nobreza e mais grandeza.

Amai as flores. Elas são o emblema de vossa vida e não deveis corar por serdes a elas comparados. Tende-as nos vossos jardins, nas vossas casas, mesmo nos vossos templos, pois elas são agradáveis em qualquer lugar. Onde quer que estejam, elas inspiram a poesia e elevam a alma de quem sabe compreendê-las. Não foi nas flores que Deus manifestou todas as suas magnificências? Como conheceríeis as cores suaves com que o Criador alegrou a Natureza se não fossem as flores? Antes que o homem tivesse cavado as entranhas da Terra para achar o rubi e o topázio, ele tinha as flores diante de si, e essa variedade infinita de nuanças já o consolava da monotonia da superfície da Terra. Amai, pois, as flores: sereis mais puros e mais amoráveis; sereis talvez mais crianças, mas sereis os filhos queridos de Deus, e vossas almas simples e sem mácula serão acessíveis a todo o seu amor, a toda a alegria com que ele aquecerá os vossos corações.

As flores querem ser tratadas por mãos esclarecidas. A inteligência é necessária à sua prosperidade. Durante muito tempo estivestes errados na Terra, deixando tal cuidado a mãos inábeis, que as mutilavam, julgando embelezá-las. Nada mais triste que as árvores redondas ou pontiagudas de alguns dos vossos jardins, pirâmides de verdura que fazem o efeito de um monte de feno. Deixai que a natureza se desenvolva sob mil formas diversas. Aí está a graça. Feliz aquele que sabe admirar a beleza de uma haste que se balouça, semeando a poeira fecundante. Feliz aquele que vê em suas cores brilhantes um infinito de graça, de delicadeza, de colorido, de nuanças que fogem e se buscam, se perdem e se reencontram. Feliz aquele que sabe compreender a beleza da gradação dos tons! Desde a raiz escura que se consorcia com a terra, como as cores se fundem até o escarlate da tulipa e da papoula! (Por que esses nomes rudes e bizarros?) Estudai tudo isto e observai as folhas que surgem umas das outras como gerações infinitas, até o seu completo desabrochar sob a abóboda celeste.

Não parece que as flores saem da Terra para lançar-se em direção a outros mundos? Não parece que muitas vezes vergam dolorosamente a cabeça por não poderem elevar-se ainda mais alto? Não julgamos que as flores, por sua beleza, estão mais próximas de Deus? Imitai-as, pois, e tornai-vos cada vez maiores, cada vez mais belos.

Vossa maneira de aprender Botânica também é defeituosa. Não basta saber o nome de uma planta. Recrutar-te-ei, quando tiveres tempo, para trabalhar também numa obra desse gênero. Deixo para mais tarde as lições que hoje desejaria dar-te. Elas serão mais úteis quando tivermos oportunidade de aplicá-las. Então falaremos dos gêneros de culturas; dos lugares que lhes convêm; da adequação do edifício para o arejamento e a salubridade das habitações.

Se publicares isto, corta os últimos parágrafos, para que não sejam tomados como anúncios.


A mulher é mais finamente burilada que o homem, o que indica, naturalmente, uma alma mais delicada. É assim que em condições semelhantes, em todos os mundos, a mãe será mais bela que o pai, por ser ela que a criança vê primeiro. É para a figura angélica de uma jovem senhora que a criança volta incessantemente o olhar. É pela mãe que a criança enxuga as lágrimas e nela fixa o olhar ainda fraco e incerto. A criança tem, assim, uma intuição natural do belo.

A mulher sabe fazer-se notada principalmente pela delicadeza de seus pensamentos, pela graça de seus gestos, pela pureza de suas palavras. Tudo que dela vem deve harmonizar-se com sua pessoa, que Deus fez bela.

Seus longos cabelos que se derramam sobre os ombros, são a imagem da doçura e da facilidade com que sua cabeça se dobra sem se partir sob as provas. Eles refletem a luz do sóis, como a alma da mulher deve refletir a luz mais pura de Deus. Jovens, deixai vossos cabelos flutuarem. Para isso Deus os criou. Tereis a aparência ao mesmo tempo mais natural e mais bela.

A mulher deve ser simples no vestir. Ela saiu suficientemente bela das mãos do Criador para dispensar os atavios. Que o branco e o azul se unam sobre vossas espáduas. Deixai também que flutuem os vossos vestidos. Que se vejam as vossas roupagens estender-se atrás de vós numa longa esteira de gaze, como leve nuvem indicando imediatamente a vossa presença.

Mas o que representam os enfeites, o vestido, a beleza, os cabelos ondulados ou flutuantes, enrolados ou presos, se o sorriso tão doce das mães e das amantes não brilhar nos vossos lábios? Se os vossos olhos não semearem a bondade, a caridade e a esperança nas lágrimas de alegria que eles deixam correr, nos relâmpagos que se abrem desse braseiro de amor desconhecido?

Mulheres! Não temais deslumbrar os homens pela vossa beleza, por vossa graça, por vossa superioridade. Saibam, porém, os homens, que para se tornarem dignos de vós, devem ser tão grandes quanto sois belas, tão sábios quanto sois boas, tão instruídos quanto sois originais e simples. É necessário que saibam que vos devem merecer; que sois o prêmio da virtude e da honra, não dessa honra que se cobria com um capacete e um escudo e que brilhava nas justas e nos torneios, com o pé sobre a fronte de um inimigo derrubado. Não, mas da honra segundo Deus.

Homens! Sede úteis, e quando os pobres abençoarem o vosso nome, as mulheres vos serão iguais. Então formareis um todo: sereis a cabeça e elas o coração; sereis o pensamento benfeitor e elas as mãos liberais. Uni-vos, pois, não só para o amor, mas para o bem que podeis fazer a dois. Que os bons pensamentos e as boas ações realizadas por dois corações amantes sejam os elos dessa cadeia de ouro e diamantes chamada matrimônio. Então, quando os elos forem bastante numerosos, Deus vos chamará para junto dele e continuareis a ajuntar novos elos. Na Terra eles eram de metal pesado e frio. No Céu serão de fogo e de luz.


O DESPERTAR DE UM ESPÍRITO

Que bela é a Natureza e como é doce o ar!

Senhor, graças te dou, de joelho a te louvar! Possa o hino feliz do meu reconhecer Como o incenso subir ao Supremo Poder;

Assim, ante o olhar das irmãs em aflição,

Fizeste sair Lázaro do seu caixão;

De Jairo consternado a filha bem amada Foi no leito de morte por ti reanimada. Também, Deus poderoso, me estendeste a mão; Levanta-te! disseste, e não falaste em vão.

Por que ser, ai de mim, de lama um vil arranjo? Eu queria louvar-te com a voz de um anjo; Tua obra jamais me pareceu tão pulcra!

Para aquele que sai da noite do sepulcro

É que o dia se mostra puro e a luz brilhante, O sol é mais radioso e a vida embriagante. O ar é então mais doce do que o leite e o mel, Cada som é uma voz entre os coros do Céu. A voz mansa dos ventos faz uma harmonia Que se torna infinita e no espaço se amplia.

O que a Alma concebe ou fere os olhos seus,

O que se pode ler sobre o livro dos Céus,

Pela extensão dos mares, nos leitos profundos,

Em todos os oceanos, abismos e mundos, Tudo se curva em esfera e sentimos que dentro

Seus raios convergentes têm Deus como centro. E tu, que o teu olhar planas sobre as estrelas,

Que te ocultas no Céu como um rei, que te velas, Qual é a tua grandeza, se o vasto Universo É aos teus olhos um ponto, e o espaço submerso Dos mares é um espelho da tua esplendência?

Qual, pois, tua grandeza, qual a tua essência?

Que tão vasto palácio construíste, ó Rei!

Os astros não separam a nós de ti, bem sei.

O sol rola a teus pés, poder que não se talha, Como o ônix que um príncipe traz na sandália.

E o que mais admiro em ti, ó Majestade,

Bem menos que a grandeza, é tua imensa bondade Que a tudo se revela, luz que resplandece,

E que a um ser impotente escuta e atende a prece.

JODELLE

NOTA: Estes versos foram escritos espontaneamente, por meio de uma cesta tocada por uma senhora e um menino. Pensamos que muitos poetas honrar-se-iam de sua autoria. Eles nos foram enviados por um dos nossos assinantes.

O DESPERTAR DE UM ESPÍRITO


Que bela é a Natureza e como é doce o ar!

Senhor, graças te dou, de joelho a te louvar!

Possa o hino feliz do meu reconhecer

Como o incenso subir ao Supremo Poder;

Assim, ante o olhar das irmãs em aflição,

Fizeste sair Lázaro do seu caixão;

De Jairo consternado a filha bem amada

Foi no leito de morte por ti reanimada.

Também, Deus poderoso, me estendeste a mão;

Levanta-te! disseste, e não falaste em vão.

Por que ser, ai de mim, de lama um vil arranjo?

Eu queria louvar-te com a voz de um anjo;

Tua obra jamais me pareceu tão pulcra!

Para aquele que sai da noite do sepulcro

É que o dia se mostra puro e a luz brilhante,

O sol é mais radioso e a vida embriagante.

O ar é então mais doce do que o leite e o mel,

Cada som é uma voz entre os coros do Céu.

A voz mansa dos ventos faz uma harmonia

Que se torna infinita e no espaço se amplia.

O que a Alma concebe ou fere os olhos seus,

O que se pode ler sobre o livro dos Céus,

Pela extensão dos mares, nos leitos profundos,

Em todos os oceanos, abismos e mundos,

Tudo se curva em esfera e sentimos que dentro

Seus raios convergentes têm Deus como centro.

E tu, que o teu olhar planas sobre as estrelas,

Que te ocultas no Céu como um rei, que te velas,

Qual é a tua grandeza, se o vasto Universo

É aos teus olhos um ponto, e o espaço submerso

Dos mares é um espelho da tua esplendência?

Qual, pois, tua grandeza, qual a tua essência?

Que tão vasto palácio construíste, ó Rei!

Os astros não separam a nós de ti, bem sei.

O sol rola a teus pés, poder que não se talha,

Como o ônix que um príncipe traz na sandália.

E o que mais admiro em ti, ó Majestade,

Bem menos que a grandeza, é tua imensa bondade

Que a tudo se revela, luz que resplandece,

E que a um ser impotente escuta e atende a prece.

JODELLE

NOTA: Estes versos foram escritos espontaneamente, por meio de uma cesta tocada por uma senhora e um menino. Pensamos que muitos poetas honrar-se-iam de sua autoria. Eles nos foram enviados por um dos nossos assinantes.





Palestras familiares de além-túmulo

Desejávamos interrogar uma dessas mulheres da Índia, sujeitas ao costume de queimar-se sobre o cadáver do marido. Não conhecendo nenhuma, tínhamos pedido a São Luís que nos enviasse uma em condições de responder às nossas perguntas de maneira satisfatória. Ele nos respondeu que de boa vontade o faria oportunamente. Na sessão da Sociedade, no dia 2 de novembro de 1858, o Sr. Adrien, médium vidente, avistou uma disposta a falar, e dela nos deu a seguinte descrição:

Olhos negros e grandes, com a esclerótica amarela; rosto arredondado; faces salientes e gordas; pele açafroada e trigueira; cílios longos e supercílios arqueados e negros; nariz um pouco grande, ligeiramente achatado; boca grande e sensual; belos dentes largos e iguais; cabelos lisos, abundantes, negros e empastados de gordura. Corpo bem gordo, grande e atarracado. Roupagem de seda deixando o peito meio descoberto. Pulseiras nos braços e nas pernas.

1. Lembrai-vos mais ou menos em que época vivestes na Índia e onde fostes queimada com o corpo de vosso marido?
- Ela fez um sinal, indicando que não se lembrava. S. Luís respondeu, indicando que foi há cerca de cem anos.
2. ─ Lembrai-vos do nome que tínheis?
─ Fátima.

3. ─ Que religião professáveis?
─ A maometana.

4. ─ Mas o Islamismo não proíbe tais sacrifícios?
─ Nasci muçulmana mas meu marido era da religião de Brahma. Tive que me conformar com o costume da região onde eu morava. As mulheres não se pertencem.

5. ─ Que idade tínheis quando fostes morta? ─ Creio que tinha uns vinte anos.

OBSERVAÇÃO: O Sr. Adrien adverte que ela parece ter de vinte e oito a trinta anos, mas que naquele país as mulheres envelhecem mais rapidamente.

6. ─ Sacrificaste-vos voluntariamente?
─ Eu preferia ter-me casado com outro. Pensai bem e compreendereis que todas pensamos do mesmo modo. Segui o costume, mas no fundo teria preferido não fazêlo. Durante vários dias esperei por outro marido, mas ninguém veio. Então obedeci à lei.

7. ─ Que sentimento pôde ditar essa lei?
─ Ideia supersticiosa. Imaginam que nos queimando agradam à Divindade; que resgatamos as faltas daquele que perdemos e que vamos ajudá-lo a viver feliz no outro mundo.

8. ─ Vosso marido ficou satisfeito com o vosso sacrifício?
─ Nunca procurei rever o meu marido.

9. ─ Há mulheres que assim se sacrificam de boa vontade?
─ Há poucas: uma em mil. No fundo elas não desejariam fazê-lo.

10. ─ O que aconteceu convosco, no momento em que se extinguiu a vida corporal?
─ Perturbação. Senti um escurecimento, depois não sei o que aconteceu. Minhas ideias não ficaram claras senão muito tempo depois. Eu ia a toda parte, entretanto, não via bem. Ainda agora não me sinto completamente lúcida. Terei que passar por muitas encarnações para me elevar, mas não me queimarei mais... Não vejo necessidade da gente queimar-se, de atirar-se no meio das chamas a fim de elevar-se..., sobretudo pelas faltas que a gente não cometeu. Além disso, aquilo jamais me aprouve... Aliás, eu nunca procurei saber. Teríeis a bondade de orar um pouco por mim? Eu entendo que não há nada como a prece para nos dar coragem a fim de suportarmos as provas que nos são enviadas... Ah! Se eu tivesse fé!

11. ─ Pedis que oremos por vós, mas nós somos cristãos. Como poderiam nossas preces ser-vos agradáveis? ─ Só há um Deus para todos os homens.


OBSERVAÇÃO: Em várias sessões seguidas, a mesma mulher foi vista entre os Espíritos que as assistiam. Ela disse que vinha para instruir-se. Parece que foi sensível ao interesse por ela demonstrado, porque nos acompanhou em várias outras reuniões e até na rua.



Notícia. ─ Luísa Charly, chamada Labé, cognominada “A Bela Cordoeira”, nasceu em Lyon, ao tempo de Francisco I. Era de uma beleza perfeita e teve uma educação esmerada. Sabia grego e latim, falava espanhol e italiano perfeitamente e fazia nessas línguas poesias que não desabonavam os escritores nacionais. Afeita a todas as formas de exercícios físicos, conhecia a equitação, a ginástica e o manejo das armas. Dotada de um caráter muito enérgico, ao lado do pai distinguiu-se entre os mais valentes combatentes de 1542, no cerco de Perpignan, disfarçada sob o nome de Capitão Loys. Fracassado o cerco, renunciou à carreira das armas e voltou a Lyon com o pai. Casou-se com um rico fabricante de cordas chamado Ennemond Perrin e em breve só a conheciam como “A Bela Cordoeira”, nome pelo qual ficou conhecida na rua em que morava e no local onde ficava a fábrica do marido. Organizou em sua casa reuniões literárias a que eram convidados os mais brilhantes espíritos da província. Deixou uma coleção de poesias. Sua reputação de beleza e de mulher de espírito atraiu-lhe o escol masculino e excitou a inveja das senhoras lionesas, as quais procuraram vingar-se dela através de calúnias. Mas a sua conduta foi sempre irrepreensível.

Evocada a 26 de outubro de 1858, na sessão da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, disseram-nos que ainda não podia vir, por motivos que não foram explicados. A 9 de novembro atendeu ao nosso apelo, e eis o retrato que lhe fez o nosso médium vidente, Sr. Adrien:

Cabeça oval; tez pálida mate; olhos negros, belos e vivos; sobrancelhas arqueadas; fronte desenvolvida e inteligente; nariz grego, fino; boca média, lábios indicando bondade de espírito; dentes muitos bonitos, pequenos e bem feitos; cabelos negros de azeviche, ligeiramente crespos. Belo porte de cabeça; talhe grande e esbelto. Vestimenta de panejamentos brancos.

OBSERVAÇÃO: Nada prova, sem dúvida, que este retrato, como o precedente, não sejam fruto da imaginação do médium, de vez que não temos controle. Mas quando ele o faz com detalhes tão precisos de pessoas contemporâneas que jamais viu e que são reconhecidas por parentes e amigos, não podemos duvidar de sua autenticidade. Daí pode-se concluir que se ele incontestavelmente vê alguns, poderá da mesma forma ver outros. Outra circunstância digna de consideração é que ele vê sempre o mesmo Espírito sob a mesma forma e que, mesmo com intervalos de meses, o retrato não varia. Seria preciso supor que ele tivesse uma memória fenomenal para admitir que se recordasse dos mínimos detalhes de todos os Espíritos cuja descrição ele já fez, e que se contam às centenas.

1. Evocação.
─ Eis-me aqui.

2. ─ Poderíeis ter a bondade de responder a algumas perguntas que vos desejamos fazer?
─ Com prazer.

3. ─ Lembrai-vos da época em que éreis conhecida pelo apelido de A Bela Cordoeira?
─ Sim.

4. ─ De onde poderiam provir as qualidades viris que vos levaram a abraçar a carreira das armas, que seria, na verdade, conforme as leis da Natureza, atribuição dos homens?
─ Isto agradava ao meu espírito, ávido de grandes coisas. Mais tarde ele voltouse para outra ordem de ideias mais sérias. As ideias com que nascemos por certo nos vêm de existências anteriores, das quais são reflexo, entretanto, modificam-se muito, quer por novas resoluções, quer pela vontade de Deus.

5. ─ Por que esses vossos gostos militares não persistiram? Como tão prontamente deram lugar aos gostos femininos? ─ Eu vi coisas que não desejo que vejais.
6. ─ Fostes contemporânea de Francisco I e de Carlos V. Poderíeis dar a vossa opinião a respeito desses homens e fazer-nos um paralelo? ─ Não quero julgar. Eles tiveram defeitos, que conheceis; suas virtudes são pouco numerosas: alguns traços de generosidade e eis tudo. Deixai tudo isto de lado, porque seus corações poderiam sangrar ainda: eles sofrem bastante!
7. ─ Qual teria sido a fonte dessa inteligência privilegiada que vos tornou apta a receber uma educação tão superior à das mulheres de vosso tempo?
Penosas existências e a vontade de Deus!
8. ─ Havia, pois, em vós um progresso anterior?
─ Não poderia ser de outro modo.
9. ─ Essa instrução vos fez progredir como Espírito?
─ Sim.
10. ─ Parece que fostes feliz na Terra. Ainda agora o sois bastante?
─ Que pergunta! Por mais feliz que se seja na Terra, a felicidade do Céu é coisa muito diferente! Que tesouros e que riquezas conhecereis um dia, e das quais não suspeitais ou ignorais completamente!
11. ─ Que entendeis por Céu?
─ Entendo por Céu os outros mundos.
12. ─ Que mundo habitais agora?
─ Habito um mundo que desconheceis, mas a ele estou pouco ligada. A matéria prende-nos pouco.
13. ─ É Júpiter?
─ Júpiter é um mundo feliz, mas pensais que entre todos apenas ele seja favorecido por Deus? Eles são tão numerosos quanto os grãos de areia da praia.
14. ─ Conservastes o gênio poético que tínheis aqui? ─ Responder-vos-ia com prazer, mas temo chocar a outros Espíritos ou colocar-me abaixo de minha posição, o que tornaria minha resposta inútil e fá-la-ia cair no vazio.
15. ─ Poderíeis dizer qual a classe em que vos poderíamos colocar entre os Espíritos? Sem resposta. (A São Luís). ─ Poderia São Luís responder a isto?
─ Ela está aqui. Não posso dizer aquilo que ela não quer dizer. Não vedes que ela é dos mais elevados entre os Espíritos que ordinariamente evocais? Aliás, os Espíritos não podem definir exatamente as distâncias que os separam. São incompreensíveis para vós, mas são imensas!
16. (A Luísa Charly). ─ Sob que forma vos achais entre eles?
─ Adrien acaba de me descrever.
17. ─ Por que esta e não outra forma? Por que, enfim, no mundo onde estais, não sois tal qual éreis na Terra?
─ Me evocastes como poetisa. Eu vim como poetisa.
18. ─ Poderíeis ditar-nos algumas poesias ou um trecho literário qualquer? Sentir-nos-íamos felizes por termos algo de vós. ─ Procurai os meus escritos antigos. Não gostamos dessas provas, principalmente em público. Contudo, fá-lo-ei de outra vez.
OBSERVAÇÃO: Sabe-se que os Espíritos não gostam de submeter-se a provas, e os pedidos dessa natureza têm sempre, mais ou menos, esse caráter. É sem dúvida por isso que quase nunca aquiescem. Espontaneamente, e em momento em que menos esperamos, dão-nos por vezes surpreendentes provas que em vão teríamos solicitado. Mas quase sempre basta que se lhes peça uma coisa para que se não a obtenha, sobretudo se o pedido encerra um sentimento de curiosidade. Os Espíritos, e principalmente os Espíritos elevados, querem assim provar-nos que não se acham às nossas ordens. No dia seguinte, pelo médium psicógrafo que lhe havia servido de intérprete, a Bela Cordoeira escreveu o seguinte:

“Vou ditar o que te prometi. Não são versos, que não os quero fazer. Aliás não me lembro dos que fiz, e deles não gostaríeis. Isto será prosa das mais modestas.

“Na Terra exaltei o amor, a doçura e os bons sentimentos; falava um pouco daquilo que não conhecia. Aqui não é do amor que trato, é de uma caridade larga, austera e esclarecida; uma caridade forte e constante, que tem apenas um exemplo na Terra.

“Oh homens! Pensai que depende de vós ser felizes e fazer de vosso mundo um dos mais avançados do céu: basta-vos fazer calar os ódios e as inimizades, esquecer rancores e cóleras, perder o orgulho e a vaidade. Deixai tudo isto como um fardo que cedo ou tarde é preciso abandonar. Esse fardo vos é um tesouro na Terra, bem o sei, por isso tereis mérito em abandoná-lo e perdê-lo, mas no Céu ele se torna um obstáculo à vossa felicidade. Crede-me, pois: acelerai o vosso progresso. A felicidade que vem de Deus é a verdadeira felicidade. Onde encontrareis prazeres que valham a alegria que ela dá aos seus eleitos, aos seus anjos?

“Deus ama os homens que buscam progredir em seu caminho. Contai, pois, com o seu apoio. Não tendes confiança nele? Julgais que seja perjuro, que não vos deveis entregar a ele inteiramente e sem restrições? Infelizmente não quereis entender ou poucos entre vós entendem; preferis o dia de hoje ao de amanhã; vossa visão estreita limita os vossos sentimentos, o vosso coração e a vossa alma e sofreis para avançar, em vez de avançardes naturalmente e facilmente pelo caminho do bem, por vossa própria vontade, pois o sofrimento é o meio que Deus emprega para vos moralizar. Não eviteis esta via segura, mas terrível para o viandante. Terminarei por exortar-vos a não mais olhar a morte como um flagelo, mas como a porta da verdadeira vida e da verdadeira felicidade.” LUÍSA CHARLY




Variedades

A Gazette de Mons publica o seguinte:

“Um indivíduo acometido de monomania religiosa, internado há sete anos no estabelecimento do Sr. Stuart e que até aqui se havia mostrado muito manso, conseguiu enganar a vigilância dos guardas e apoderar-se de uma faca. Como não conseguiram que devolvesse a arma, os guardas comunicaram ao diretor o que se passava.

“O Sr. Stuart imediatamente acercou-se do furioso e, fiado apenas em sua coragem, quis desarmá-lo. Mas apenas tinha avançado alguns passos ao encontro do louco, quando esse precipitou-se com a rapidez do raio e o feriu com golpes repetidos. Foi com muita dificuldade que conseguiram dominar o assassino.

“Das sete facadas com que o Sr. Stuart foi atingido, uma era mortal: a que o atingiu no baixo-ventre. Segunda-feira, às três horas e meia, ele sucumbiu em consequência de uma hemorragia nessa cavidade.”

O que não teriam dito se aquele indivíduo tivesse sido atingido por uma monomania espírita, ou se, em sua loucura, tivesse falado de Espíritos? Entretanto, isto seria possível, considerando-se que há muitas monomanias religiosas e que todas as ciências forneceram seu contingente. O que se poderia racionalmente concluir contra o Espiritismo senão que, em consequência da fragilidade de sua organização, o homem pode exaltar-se, tanto neste ponto como em outros? O meio de prevenir essa exaltação não é combater a ideia, do contrário correríamos o risco de ver renovados os prodígios das Cévennes. Se jamais se organizasse uma cruzada contra o Espiritismo, vê-lo-íamos propagar-se admiravelmente. Como opor-se a um fenômeno que não tem tempo nem lugar prediletos; que pode produzir-se em toda parte, em todas as famílias, na intimidade, no mais absoluto segredo, ainda melhor do que em público? O meio de prevenir os inconvenientes nós o demos em nossa Instrução Prática: Torná-lo de tal modo compreendido que nele apenas se veja um fenômeno natural, mesmo no que apresenta de mais extraordinário.

O Sr. Ch. Renard, nosso assinante, de Rambouillet, dirigiu-nos a seguinte carta:

“Senhor e digno confrade no Espiritismo. Leio, ou melhor, devoro com indizível satisfação os números de vossa Revista, à medida que os recebo. Isto não é de admirar de minha parte, de vez que meus familiares eram adivinhos, de geração em geração. Uma de minhas tetravós tinha até sido condenada à fogueira, como contumaz no crime de Vauldrie e frequentadora do sabbat. Ela só evitou a fogueira refugiando-se em casa de uma das irmãs, abadessa de religiosas enclausuradas. Por isto herdei algumas migalhas de ciências ocultas, o que não me impediu de passar pela crença no materialismo, se crença aí existe, e pelo cepticismo. Enfim, fatigado, doente de negativismo, as obras do célebre extático Swedenborg trouxeram-me à verdade e ao bem. Tornando-me também extático, convenci-me ad vivum das verdades que os Espíritos materializados do nosso globo não podem compreender.

Tive comunicações de toda sorte: fenômenos de visibilidade, de tangibilidade, de transporte de objetos perdidos, etc.

Teria o bom irmão a gentileza de publicar a nota que segue num dos seus próximos números? Não é uma questão de amor-próprio, mas de minha condição de francês.”

“Por vezes as pequenas causas produzem grandes efeitos. Por volta de 1840 eu tinha travado relações com o Sr. Cahagnet, torneiro e entalhador, que viera a Rambouillet por motivo de saúde. Esse operário de alta classe pela inteligência foi por mim apreciado e iniciado no magnetismo humano. Um dia eu lhe disse: Tenho quase certeza de que um sonâmbulo lúcido é apto a ver as almas dos mortos e com elas entrar em conversação. Ele ficou admirado. Induzi-o a fazer tal experiência quando contasse com um sonâmbulo lúcido. Ele teve êxito e publicou um primeiro volume de experiências necromânticas, seguido de outros volumes e brochuras que na América foram traduzidos com o título de Telégrafo Celeste. Depois o extático Davis publicou suas visões ou excursões pelo mundo espírita. Sobre os desmaterializados, Franklin fez pesquisas que chegaram a manifestações e a comunicações mais fáceis do que outrora. As primeiras pessoas que ele mediunizou nos Estados Unidos foram a viúva Fox e suas duas filhas. Há uma coincidência muito notável entre este nome e o meu, pois o vocábulo Inglês fox significa raposa[1].

“De há muito que os Espíritos me haviam dito que era possível a comunicação com Espíritos de outros globos, dos quais seriam recebidos desenhos e descrições. Eu expus o assunto ao Sr. Cahagnet, mas ele não foi mais longe do que o nosso satélite.

“Sou, etc.

CH. RENARD.”

OBSERVAÇÃO: O problema de prioridade, em matéria de Espiritismo, é inquestionavelmente secundário. Mas não é menos notável que desde a importação dos fenômenos americanos, uma porção de fatos autênticos, ignorados do público, revelaram a produção de fenômenos semelhantes, tanto na França quanto em outros países da Europa, na mesma época ou em época anterior.

É de nosso conhecimento que muitas pessoas se ocupavam de comunicações espíritas muito antes de se cogitar de mesas girantes, e disso temos provas com data certa. Parece que o Sr. Renard faz parte desse número e, segundo ele, as suas experiências não teriam sido diferentes das que foram feitas na América. Registramos a sua observação como interessante para a história do Espiritismo e para provar mais uma vez que esta ciência tem raízes no mundo inteiro, o que tira aos que lhe queiram opor uma barreira, qualquer possibilidade de êxito. Se o abafam aqui, ele renascerá mais vivo em cem outros lugares, exatamente no momento em que, já não sendo mais possível a dúvida, ele há de conquistar um lugar entre as crenças comuns. Então, de bom grado ou não, seus adversários terão que tomar o seu partido.


AOS LEITORES DA REVISTA ESPÍRITA


CONCLUSÃO DO ANO DE 1858

A Revista Espírita acaba de completar o seu primeiro ano e nos sentimos felizes em anunciar que estando doravante sua existência assegurada por um número de assinantes que aumenta dia a dia, sua publicação continuará. Os testemunhos de simpatia que de toda parte recebemos e o sufrágio dos homens mais eminentes pelo saber e pela posição social são para nós um encorajamento na tarefa laboriosa que empreendemos. Recebam aqui, pois, aqueles que nos ajudaram na realização de nossa obra, o testemunho de nossa gratidão.

Se não nos tivéssemos defrontado com críticas nem contradições, estaríamos ante um fato inaudito nos fastos da publicidade, principalmente por se tratar da emissão de ideias tão novas. Se, entretanto, de algo nos devemos admirar é de tê-las encontrado tão poucas, em comparação com os sinais de aprovação que nos têm sido dados. Isto, sem dúvida, se deve muito menos ao mérito do escritor do que aos atrativos do próprio assunto tratado e ao crédito que dia a dia conquista nas mais altas camadas da Sociedade; devemo-lo também ─ e disto estamos convencido ─ à dignidade que sempre temos conservado perante os nossos adversários, deixando que o público julgue entre a moderação, de uma parte, e a inconveniência, de outra.

O Espiritismo avança a passos de gigante pelo mundo inteiro. Diariamente reconquista alguns dissidentes pela força das coisas e se de nossa parte podemos colocar algumas migalhas na balança desse grande movimento que se opera e que marcará a nossa época como uma era nova, não será irritando ou mesmo atacando de frente aqueles mesmos que desejamos atrair, mas será pelo raciocínio e não pelas injúrias que nos faremos escutar.

A tal respeito dão-nos os Espíritos superiores, que nos assistem, o preceito e o exemplo. Seria indigno de uma doutrina que não prega senão o amor e a benevolência, descer à arena do personalismo. Deixamos essa tarefa aos que não a compreendem.

Nada, pois, nos desviará da linha que temos seguido, da calma e do sangue-frio que não deixaremos de manter no exame raciocinado de todas as questões, de vez que sabemos que assim conquistamos mais partidários sérios para o Espiritismo do que pela aspereza e pela acrimônia.

Na introdução com que abrimos o primeiro número traçamos o plano que nos propúnhamos seguir: citar os fatos, mas também analisá-los e submetê-los ao escalpelo da observação; apreciá-los e deduzir-lhes as consequências.

No início, toda a atenção se concentrou nos fenômenos materiais, que então alimentavam a curiosidade pública, mas essa tem o seu tempo; uma vez satisfeita, deixamo-la de lado, assim como a criança que abandona um brinquedo. Então os Espíritos nos disseram: “Este é o primeiro período; em breve passará, para dar lugar a ideias mais elevadas. Novos fatos revelar-se-ão, marcando um novo período, o filosófico, e a doutrina crescerá em pouco tempo, como a criança que deixa o seu berço. Não vos inquieteis com as zombarias, pois zombarão dos próprios zombeteiros e amanhã encontrareis defensores zelosos entre os mais ardorosos adversários de hoje. Deus quer que seja assim e nós somos encarregados de executar a sua vontade. A má vontade de alguns homens não prevalecerá contra ela. O orgulho daqueles que querem saber mais que Deus será abatido.”

Efetivamente, estamos longe das mesas girantes, que já não divertem, porque tudo cansa. Só não nos cansamos daquilo que fala ao nosso entendimento, e o Espiritismo navega a velas pandas em seu segundo período. Todos compreenderam que é toda uma Ciência que se funda, toda uma Filosofia, toda uma nova ordem de ideias. Era preciso acompanhar esse movimento. Mais do que isso, era preciso darlhe nossa contribuição, sob pena de sermos em breve ultrapassados. Eis por que nos esforçamos por nos mantermos à altura, sem nos fecharmos nos estreitos limites de um boletim anedótico.

Elevando-se ao plano de uma doutrina filosófica, o Espiritismo conquistou inúmeros aderentes, mesmo entre aqueles que jamais testemunharam um fato material. É porque o homem aprecia aquilo que lhe fala à razão, aquilo que ele pode compreender. Na filosofia espírita ele encontra alguma coisa diferente de um divertimento, alguma coisa que preenche o vazio pungente da sua incerteza. Penetrando no mundo extracorporal por meio da observação, quisemos nele introduzir os nossos leitores e fazer com que o compreendessem. Cabe-lhes dizer se atingimos o nosso objetivo.

Prosseguiremos em nossa tarefa no ano que se vai iniciar e que, tudo o prenuncia, será fecundo. Novos fatos de uma ordem estranha surgem neste momento e nos revelam novos mistérios. Registrá-los-emos cuidadosamente e neles procuraremos a luz com tanta perseverança quanto no passado, porque tudo pressagia que o Espiritismo vai entrar numa nova fase, mais grandiosa e ainda mais sublime.

ALLAN KARDEC

NOTA: A abundância de matéria obriga-nos a adiar para o próximo número a continuação do nosso artigo sobre a pluralidade das existências e do conto de Frédéric Soulié.

ALLAN KARDEC


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