Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Março

A pluralidade dos mundos.

Quem ainda não se perguntou, ao considerar a Lua e os outros astros, se esses globos são habitados? Antes que a ciência nos houvesse iniciado em a natureza desses astros, era possível a dúvida; no estado atual de nossos conhecimentos, pelo menos existe a probabilidade, mas a esta ideia realmente sedutora fazem-se objeções tiradas da própria ciência. Diz-se que a Lua, ao que parece, não tem atmosfera, e possivelmente não tem água. Em Mercúrio, à vista de sua proximidade do Sol, a temperatura média deve ser a do chumbo em fusão, de maneira que se ali houver chumbo, este deve correr como a água dos nossos rios. Em Saturno dá-se o oposto; não temos um termo de comparação para o frio que ali deve existir; a luz do Sol deve ser lá muito fraca, apesar da reflexão de suas sete luas e de seu anel, pois àquela distância o Sol deve aparecer apenas como uma estrela de primeira grandeza. Em tais condições, pergunta-se se nele é possível a vida.

Não se compreende que semelhante objeção possa ser feita por homens sérios. Se a atmosfera da Lua não foi percebida, será racional inferir que não exista? Não poderá ser constituída de elementos desconhecidos ou bastante rarefeitos para não produzirem refração sensível? O mesmo diremos da água e dos líquidos ali existentes.

Em relação aos seres vivos, não seria negar o poder divino julgar impossível uma organização diferente da que conhecemos, quando às nossas vistas a providência da natureza se estende com uma solicitude tão admirável até o menor inseto e dá a todos os seres órgãos apropriados ao meio em que devem habitar, quer seja a água, o ar ou a terra, quer mergulhados na escuridão, quer expostos à luz do Sol? Se jamais houvéssemos visto um peixe, não poderíamos conceber seres vivendo na água; não faríamos uma ideia de sua estrutura. Até bem pouco tempo, quem teria acreditado que um animal pudesse viver indefinidamente no seio de uma pedra?

Mas, sem falar desses extremos, os seres que vivem sob o fogo da zona tórrida poderiam existir nos gelos polares? Entretanto, nos gelos há seres organizados para esse clima rigoroso, que não poderiam suportar a ardência de um sol vertical.

Por que, então, não admitir que certos seres possam ser constituídos de maneira a viverem em outros globos e num meio completamente diverso do nosso? Por certo, sem conhecer a fundo a constituição física da Lua, nós sabemos o bastante para assegurar que ali não poderíamos viver tais quais nós somos, como não o podemos em companhia dos peixes, no seio do Oceano. Pela mesma razão, os habitantes da Lua, se um dia pudessem vir à Terra, uma vez que constituídos para viver sem ar ou num ar muito rarefeito, talvez completamente diverso do nosso, seriam asfixiados em nossa espessa atmosfera, como nós quando caímos na água.

Ainda uma vez, se não temos a prova material e de visu da presença de seres que vivem em outros mundos, nada prova que não possam existir organismos apropriados a um meio ou a um clima qualquer. Ao contrário, diz-nos o simples bom senso que assim deve ser, pois repugna à razão crer que esses inumeráveis globos que circulam no espaço sejam simples massas inertes e improdutivas. A observação ali nos mostra superfícies acidentadas, como aqui, por montanhas, vales, abismos, vulcões extintos e em atividade. Por que então não haveria ali seres orgânicos? Seja, dirão; talvez haja plantas e até animais; seres humanos, porém, homens civilizados como nós, conhecendo Deus, cultivando as artes, as ciências, será possível?

Com certeza nada prova matematicamente que os seres que habitam os outros mundos sejam homens como nós, ou que sejam mais ou menos adiantados que nós, do ponto de vista moral. Mas quando os selvagens da América viram desembarcarem os espanhóis, não tiveram mais dúvidas de que além dos mares existia um outro mundo cultivando artes que lhes eram desconhecidas. A Terra é pontilhada de inumerável quantidade de ilhas, grandes ou pequenas, e tudo o que é habitável é habitado. Não surge no mar um rochedo sem que imediatamente o homem ali não plante a sua bandeira. Que diríamos nós se os habitantes de uma das menores dessas ilhas, conhecendo perfeitamente a existência de outras ilhas e continentes, mas não tendo tido nunca relações com os que os habitam, se considerassem os únicos seres vivos do globo? Dir-lhes-íamos: Como vocês podem crer que Deus tenha feito o mundo somente para vocês? Por que estranha singularidade a pequena ilha vossa, perdida na solidão do Oceano, teria o privilégio de ser a única habitada?

O mesmo poderemos dizer em relação às outras esferas. Por que a Terra, pequeno globo imperceptível na imensidade do universo, que não se distingue dos outros planetas nem por sua posição, nem por seu volume, nem por sua estrutura, pois nem é a maior, nem a menor, nem está no centro, nem nos extremos, por que, dizia eu, entre tantas outras, seria ela a única residência de seres racionais e pensantes? Que homem sensato poderia pensar que esses milhões de astros que brilham sobre nossas cabeças foram feitos para recrear os nossos olhos? Qual seria, então, a utilidade desses milhões de globos invisíveis a olho nu e que não servem nem mesmo para nos iluminar? Não seria orgulho e impiedade pensar que assim fosse? Àqueles a quem pouco importa a impiedade, diremos que não tem lógica.

Chegamos, pois, por um simples raciocínio que muitos outros fizeram antes de nós, a concluir pela pluralidade dos mundos. Tal raciocínio acha-se confirmado pela revelação dos Espíritos. Realmente eles nos ensinam que todos esses mundos são habitados por seres corpóreos, apropriados à constituição física de cada globo; que entre os habitantes desses mundos uns são mais, outros menos adiantados que nós, do ponto de vista intelectual, moral e mesmo físico. Ainda mais: hoje sabemos que é possível entrar em relação com eles e obter esclarecimentos sobre seu estado; sabemos ainda que não só todos os globos são habitados por seres corpóreos, mas que o espaço é povoado por seres inteligentes, invisíveis para nós, por causa do véu material lançado sobre nossa alma, e que revelam sua existência por meios ocultos ou patentes.

Assim, tudo é povoado no universo. A vida e a inteligência estão por toda parte: em globos sólidos, no ar, nas entranhas da Terra, e até nas profundezas etéreas.

Haverá em tal doutrina algo que repugne à razão? Não é, ao mesmo tempo, grandiosa e sublime? Ela nos eleva por nossa própria pequenez, bem ao contrário desse pensamento egoísta e mesquinho que nos coloca como os únicos seres dignos de ocupar o pensamento de Deus.

Júpiter e alguns outros mundos.

Antes de entrar em detalhes nas revelações que nos fizeram os Espíritos sobre o estado dos diferentes mundos, vejamos a que consequência lógica poderemos chegar por nós mesmos e pelo simples raciocínio. Reportemo-nos à escala espírita que demos no número anterior. Às pessoas que estiverem desejosas de se aprofundar seriamente nesta nova ciência, recomendamos que estudem cuidadosamente aquele quadro e dele se compenetrem, pois aí encontrarão a chave de muitos mistérios.

O mundo dos Espíritos é composto das almas de todos os humanos desta Terra e de outras esferas, desprendidas dos liames corpóreos; do mesmo modo, todos os humanos são animados por Espíritos neles encarnados. Há, pois, solidariedade entre esses dois mundos: os homens terão as qualidades e as imperfeições dos Espíritos com os quais estão unidos; os Espíritos serão mais ou menos bons ou maus, conforme o progresso que hajam feito durante sua existência corpórea. Estas poucas palavras resumem toda a doutrina. Como os atos dos homens são o produto de seu livre-arbítrio, conservam eles o cunho da perfeição ou imperfeição do Espírito que os provoca. Ser-nos-á, pois, fácil fazer uma ideia sobre o estado moral de um mundo qualquer, conforme a natureza dos Espíritos que o habitam; de algum modo podemos descrever sua legislação, traçar um quadro de seus costumes, de seus usos, de suas relações sociais.

Suponhamos, então, um globo habitado exclusivamente por Espíritos da nona classe, Espíritos impuros, e para lá nos transportemos em pensamento. Veremos todas as paixões desencadeadas e sem freios; o estado moral no mais baixo grau do embrutecimento; a vida animal em toda sua brutalidade; falta de laços sociais, porque cada um vive e age apenas para si e para a satisfação de seus grosseiros apetites; ali reina o egoísmo como soberano absoluto e arrasta no seu cortejo o ódio, a inveja, o ciúme, a cupidez e o assassínio.

Passemos agora a uma outra esfera onde se encontram Espíritos de todas as classes da terceira ordem: Espíritos impuros, levianos, pseudossábios, neutros. Sabemos que em todas as classes dessa ordem predomina o mal, mas, sem ter a ideia do bem, a do mal decresce à medida que se afastam da última classe. O egoísmo é sempre o móvel principal das ações, mas os costumes são mais suaves, a inteligência mais desenvolvida; o mal se apresenta um tanto disfarçado, enfeitado, travestido. Estas mesmas qualidades engendram outro defeito — o orgulho, pois as classes mais elevadas são suficientemente esclarecidas para ter consciência de sua superioridade, mas não o são bastante para compreenderem aquilo que lhes falta. Daí sua tendência à escravização das classes inferiores ou das raças mais fracas, que mantêm sob o seu jugo. Como não têm o sentimento do bem, têm apenas o instinto do eu e põem a inteligência a serviço da satisfação de suas paixões. Numa tal sociedade, se dominar, o elemento impuro esmagará o outro; caso contrário, os menos maus procurarão destruir os seus adversários; em todo caso haverá luta, luta sangrenta, de extermínio, porque são dois elementos que têm interesses opostos. Para proteger os bens e as pessoas, haverá necessidade de leis, mas essas serão ditadas pelo interesse pessoal e não pela justiça; serão feitas pelo forte, em detrimento do fraco.

Suponhamos agora um mundo onde, entre os elementos maus que acabamos de ver, encontrem-se alguns da segunda ordem: então, em meio à perversidade veremos aparecerem algumas virtudes. Se os bons forem minoria, serão vítimas dos maus; à medida, porém, que se acentua seu predomínio, a legislação torna-se mais humana, mais equitativa e a caridade cristã deixa de ser para todos letra morta. Desse mesmo bem nascerá outro vício. A despeito da guerra que os maus declaram incessantemente aos bons, eles não podem evitar estimá-los em seu foro íntimo. Vendo o ascendente da virtude sobre o vício e não tendo força nem vontade de praticá-la, procuram parodiá-la e tomam a sua máscara. Daí os hipócritas, tão numerosos em toda sociedade onde a civilização é ainda imperfeita.

Continuemos nossa viagem através dos mundos e paremos naquele que nos dará um pouco de repouso do triste espetáculo que acabamos de assistir. É habitado só por Espíritos da segunda ordem. Que diferença! O grau de depuração atingido exclui entre eles qualquer pensamento mau e isto é o bastante para nos dar uma ideia do estado moral dessa terra feliz. A legislação é nela muito simples, pois os homens não têm necessidade de defender-se uns dos outros; ninguém quer mal ao próximo; ninguém se apropria do que lhe não pertence; ninguém procura viver em detrimento de seu vizinho. Tudo respira benevolência e amor; os homens não procuram prejudicar-se mutuamente; não existe ódio absolutamente; o egoísmo é desconhecido e a hipocrisia não teria objetivo. Ali não reina a igualdade absoluta porque esta pressupõe uma perfeita identidade de desenvolvimento intelectual e moral. Ora, vemos pela escala espiritual que a segunda ordem compreende vários graus de desenvolvimento, por isso, nesse mundo haverá desigualdades, porque uns serão mais adiantados que outros, mas como entre todos só há o pensamento do bem, os mais adiantados nada conceberão de orgulho nem os outros de inveja. O inferior compreende a ascendência do superior e se submete, porque tal ascendência é puramente moral e ninguém disso se serve para oprimir os outros.

As consequências que tiramos deste quadro, embora apresentadas de maneira hipotética, não são menos racionais, e cada um pode deduzir o estado social de um mundo qualquer, conforme a proporção dos elementos morais de que o supomos constituído.

Vimos que, abstração feita da revelação dos Espíritos, todas as probabilidades são para a pluralidade dos mundos. Ora, não é menos racional pensar que nem todos estejam no mesmo grau de perfeição e que, por isso mesmo, nossas suposições podem perfeitamente ser expressão da realidade.

De maneira positiva, conhecemos apenas o nosso. Que posição ocupa ele nessa hierarquia? Ora! Basta considerar o que se passa nele para ver que está longe de merecer a primeira classe, e estamos convencidos de que, ao ler estas linhas, já se lhe marcou a posição. Quando os Espíritos dizem que, se não está na última, estará numa das últimas, infelizmente o simples bom senso diz que não se equivocam. Temos muito a fazer para elevá-lo à categoria do que descrevemos por último; e precisamos que o Cristo nos viesse mostrar o caminho.

Quanto à aplicação que podemos fazer de nosso raciocínio aos vários globos de nosso turbilhão planetário, não temos senão o ensino dos Espíritos. Ora, para os que só admitem as provas palpáveis, o fato é que, a esse respeito, sua assertiva não tem a chancela da experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos com confiança as descrições dos viajantes sobre regiões que jamais vimos? Se só devemos crer no que vemos, creremos em pouca coisa. O que neste caso dá certo valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos quanto aos pontos capitais. Para nós, que temos testemunhado estas comunicações centenas de vezes; que as apreciamos nos seus mínimos detalhes; que lhes sondamos os pontos fracos e fortes; que observamos as similitudes e as contradições, nelas achamos todos os caracteres da probabilidade. Contudo, não as damos senão como informações e a título de ensinamentos, aos quais cada um será livre de dar a importância que melhor lhe parecer.

Segundo os Espíritos, Marte seria ainda menos adiantado do que a Terra. Os Espíritos ali encarnados parecem pertencer quase que exclusivamente à nona classe, a dos Espíritos impuros, de sorte que o primeiro quadro que demos acima seria uma descrição desse mundo. Vários outros pequenos globos são, com algumas nuanças, da mesma categoria. Em seguida viria a Terra. A maioria de seus habitantes pertence incontestavelmente a todas as classes da terceira ordem e uma parte insignificante às últimas classes da segunda ordem. Os Espíritos superiores, da segunda e da terceira classe, aqui desempenham por vezes missões de civilização e de progresso, mas constituem exceções. Mercúrio e Saturno vêm depois da Terra. A superioridade numérica dos bons Espíritos lhes dá preponderância sobre os Espíritos inferiores, do que resulta uma ordem social mais perfeita, relações menos egoístas e, consequentemente, condições de existência mais feliz. A Lua e Vênus são mais ou menos do mesmo grau e, sob todos os aspectos, mais adiantados que Mercúrio e Saturno. Urano e Netuno* seriam ainda superiores a estes últimos. É de supor que os elementos morais destes dois planetas sejam formados das primeiras classes da terceira ordem e de grande maioria de Espíritos da segunda. Os homens são ali infinitamente mais felizes do que na Terra, porque não têm que sustentar as mesmas lutas, nem sofrer as mesmas tribulações, assim como não se acham expostos às mesmas vicissitudes físicas e morais.


No original está: Juno e Urano. Deve ter sido erro gráfico, pois não existe planeta com o nome de Juno, e Netuno está faltando no texto. Juno é apenas o asteroide n. 3 descoberto por Harding. (N. da Eq. Rev. Edicel).


De todos os planetas, o mais adiantado em todos os sentidos é Júpiter. É o reino exclusivo do bem e da justiça, porque só tem bons Espíritos. Pode-se fazer uma ideia do estado feliz de seus habitantes, pelo quadro que demos de um mundo habitado apenas por Espíritos da segunda ordem.

A superioridade de Júpiter não está somente no estado moral dos seus habitantes; está também na sua constituição física. Eis a descrição que nos foi dada desse mundo privilegiado, onde se encontra a maior parte dos homens de bem que honraram nossa Terra com sua virtude e com seu talento:

A conformação do corpo é mais ou menos a mesma dos habiantes da Terra, mas ele é menos material, menos denso e de um peso específico muito pequeno. Enquanto nós rastejamos penosamente na Terra, o habitante de Júpiter se transporta de um a outro lugar, deslizando pela superfície do solo, quase sem fadiga, como o pássaro no ar ou o peixe na água. Sendo mais depurada a matéria de que é formado o corpo, dissipa-se após a morte, sem ser submetida à decomposição pútrida. Ali não se conhece a maioria das moléstias que nos afligem, sobretudo aquelas originadas nos excessos de todo gênero e na devastação das paixões. A alimentação está em analogia com essa organização eterizada; não seria suficientemente substancial para os nossos estômagos grosseiros, e a nossa seria demasiado pesada para eles. É composta de frutos e plantas, aliás, eles a haurem de alguma maneira, em sua maior parte, no meio ambiente, cujas emanações nutritivas aspiram. A duração da vida é proporcionalmente muito maior do que na Terra. A média equivale a cerca de cinco dos nossos séculos. O desenvolvimento é também muito rápido e a infância dura apenas alguns de nossos meses.

Sob esse envoltório leve, os Espíritos se desprendem facilmente e entram em comunicação recíproca apenas pelo seu pensamento, sem contudo se excluir a linguagem articulada; também a segunda vista lhes é faculdade permanente. Seu estado normal pode ser comparado ao de nossos sonâmbulos lúcidos.É por isso que eles se nos manifestam mais facilmente que os encarnados em mundos mais grosseiros e mais materiais. A intuição que têm do seu futuro; a segurança dada por uma consciência isenta de remorsos fazem com que a morte não lhes cause nenhuma apreensão. Veem-na chegar sem medo e como uma simples transformação.

Os animais não estão excluídos desse estado progressivo, posto não se aproximem daquele do homem, mesmo em relação ao físico. Seu corpo, mais material, está preso ao solo, como os nossos à Terra. Sua inteligência é mais desenvolvida que a dos nossos. A estrutura de seus membros adapta-se a todas as exigências do trabalho. Eles são encarregados da execução de obras manuais. São os servos e os capatazes. As ocupações do homem são puramente intelectuais. Para eles o homem é uma divindade, mas uma divindade tutelar, que jamais abusa de seu poder para oprimi-los.

Os Espíritos que habitam Júpiter geralmente se comprazem, quando querem comunicar-se conosco, em descrever seu planeta. Quando lhes perguntamos a razão, respondem que o fazem a fim de nos inspirarem o amor do bem, de par com a esperança de lá chegarmos um dia. Foi com este propósito que um deles, que viveu na Terra com o nome de Bernard Palissy, célebre oleiro do século XVI, tentou espontaneamente, e sem que ninguém lho pedisse, uma série de desenhos, tão notáveis por sua originalidade quanto pelo talento de execução, destinados a nos dar a conhecer, nos seus menores detalhes, esse mundo tão estranho e tão novo para nós. Uns retratam personagens, animais, cenas da vida privada; os mais admiráveis, entretanto, são os que representam habitações, verdadeiras obras primas de que coisa alguma na Terra nos poderia dar uma ideia, pois não se assemelham a nada que conhecemos. É um gênero de arquitetura indescritível, tão original e entretanto tão harmoniosa, de uma ornamentação tão rica e tão graciosa, que desafia a mais fecunda imaginação. Victorien Sardou, jovem literato de nosso círculo de amizade, cheio de talento e de futuro, mas sem habilidade de desenhista, lhe serviu de intermediário. Palissy prometeu-nos uma série que de certo modo será uma monografia ilustrada sobre esse mundo maravilhoso. Esperamos que essa original e interessante coletânea sobre a qual falaremos em artigo especial consagrado aos médiuns desenhistas, um dia possa ser entregue ao público.

O planeta Júpiter, a despeito do quadro sedutor que nos foi dado, não é, entretanto, o mais perfeito dos mundos. Outros há, de nós desconhecidos, que lhe são muito superiores, quer física, quer moralmente, e cujos habitantes gozam de felicidade ainda mais perfeita: são eles o repouso dos Espíritos mais elevados, cujo envoltório etéreo nada mais tem das propriedades conhecidas da matéria.

Já muitas vezes nos perguntaram se pensamos que a condição do homem daqui seria um obstáculo absoluto para que ele pudesse passar, sem intermediário, da Terra a Júpiter. A todas as perguntas relativas à doutrina espírita jamais respondemos por nossas próprias ideias, contra as quais sempre estamos em guarda. Limitamo-nos a transmitir o ensino que nos é dado e que não aceitamos levianamente e com irrefletido entusiasmo. À pergunta acima respondemos claramente, porque tal é o sentido formal de nossas instruções e o resultado de nossas próprias observações: SIM, deixando a Terra, o homem pode ir imediatamente a Júpiter, ou a um mundo análogo, pois esse não é único na sua categoria. Pode haver certeza disto? NÃO. No entanto, ele pode ir, pois existem na Terra, embora em número exíguo, Espíritos muito bons e bastante desmaterializados para não se sentirem deslocados num mundo onde o mal não tem acesso. Entretanto, ele não pode ter certeza disto, porque pode iludir-se quanto ao mérito pessoal e, por outro lado, pode ter alhures outra missão a cumprir. Os que podem esperar este favor seguramente não são nem os egoístas, nem os ambiciosos, nem os avarentos, nem os ingratos, nem os invejosos, nem os orgulhosos, nem os vaidosos, nem os hipócritas, nem os sensuais, nem qualquer um daqueles que se deixaram dominar pelo apego às coisas terrenas. A esses talvez ainda sejam precisas longas e rudes provas. Isso depende da sua vontade.

Confissões de Luís XI
História de sua vida, ditada por ele mesmo à sr.ta Ermance Dufaux.

Falando da História de Joana d’Arc ditada por ela mesma, e propondo-nos a citar várias passagens, dissemos que a sr.ta Dufaux havia escrito da mesma forma a História de Luís XI. Esse e trabalho, um dos mais preciosos no gênero, contém documentos preciosos do ponto de vista histórico. Nele Luís XI se mostra o profundo político que conhecemos. Além disso, dá-nos a chave de vários fatos até aqui não explicados. Do ponto de vista espírita, é uma das mais curiosas mostras de trabalhos de fôlego produzidos pelos Espíritos. A este respeito duas coisas são particularmente notáveis: a rapidez de execução, pois bastaram quinze dias para ditar a matéria de um grosso volume, e a lembrança tão precisa que pode um Espírito conservar de acontecimentos da vida terrena. Aos que duvidassem da origem desse trabalho e quisessem atribuí-lo à memória da sr.ta Dufaux, diríamos que na verdade seria preciso que uma criança de catorze anos tivesse uma memória fenomenal e uma não menos extraordinária precocidade para que pudesse escrever de uma assentada uma obra dessa natureza. Mas, admitindo que assim fosse, perguntamos onde essa criança teria obtido as explicações inéditas da sombria política de Luís XI e se não teria sido mais interessante que seus pais lhe atribuíssem o mérito. Das diversas histórias escritas por seu intermédio, a de Joana d’Arc é a única que foi publicada. Fazemos votos para que em breve as outras o sejam e lhes prevemos um sucesso tanto maior quanto mais espalhadas hoje se acham as ideias espíritas.

Extraímos da de Luís XI a passagem relativa à morte do Conde de Charolais.

Os historiadores, ante o fato histórico de que “Luís XI deu ao Conde de Charolais o governo geral da Normandia”, confessam que não compreendem como um rei, que era tão grande político, teria cometido tamanho erro*.


* Histoire de France, por Velly e continuadores.


As explicações dadas por Luís XI são difíceis de contestar, desde que confirmadas por três fatos de todos conhecidos: a conspiração de Constain; a viagem do Conde de Charolais em seguida à execução do culpado e, por fim, a obtenção, por esse príncipe, do governo geral da Normandia, província que reunia os Estados dos duques de Borgonha e da Bretanha, inimigos sempre ligados contra Luís XI.

Luís XI assim se exprime:

“O Conde do Charolais foi gratificado com o governo geral da Normandia e uma pensão de trinta e seis mil libras. Era uma imprudência muito grande aumentar desse modo o poder da casa de Borgonha. Embora essa digressão nos afaste do encadeamento dos negócios da Inglaterra, penso que é meu dever aqui explicar os motivos que me levaram a proceder desse modo.

“Pouco depois de seu regresso aos Países Baixos, o Duque Filipe de Borgonha tinha caído gravemente enfermo. O Conde de Charolais amava realmente seu pai, apesar dos desgostos que ele lhe havia causado. É certo que seu caráter fogoso e impulsivo e sobretudo minhas pérfidas insinuações poderiam desculpá-lo. Tratou-o com perfeita afeição filial e, dia e noite, não se arredava de seu leito.

“A crise do velho duque me levara a sérias reflexões. Eu odiava o conde e pensava que tudo devia temer de sua parte. Por outro lado, ele tinha apenas uma filha de tenra idade, circunstância que, após a morte do duque, que não dava mostras de viver muito mais, teria ocasionado uma menoridade que os Flamengos, sempre turbulentos, teriam tornado extremamente tempestuosa. Eu então poderia ter-me apoderado facilmente, se não de todos os bens da casa de Borgonha, pelo menos de uma parte, quer mascarando essa usurpação com uma aliança, quer lhe deixando tudo quanto a força lhe dava de odioso. Havia mais razões do que era preciso para mandar envenenar o Conde de Charolais. Além do mais, a ideia de um crime não mais me espantava.

Consegui seduzir o despenseiro do príncipe, Jean Constain. A Itália era uma espécie de laboratório dos envenenadores: foi para lá que Constain mandou Jean d’Ivy, que havia seduzido mediante uma soma considerável e que lhe seria paga ao regressar. D’Ivy quis saber a quem se destinava o veneno. O despenseiro teve a imprudência de confessar que era para o Conde de Charolais.

“Depois de se desincumbir de sua tarefa, d’Ivy apresentou-se para receber a soma combinada, mas, em vez de lha pagar, Constain o cobriu de injúrias. Furioso com a recepção, d’Ivy jurou vingar-se. Foi ao Conde de Charolais e contou-lhe tudo quanto sabia. Constain foi preso e conduzido ao Castelo de Rippemonde. O medo de ser torturado levou-o a confessar tudo, salvo a minha cumplicidade, esperando talvez que eu intercedesse em seu favor. Já se achava no alto da torre, local designado para o suplício, e já se preparavam para decapitá-lo, quando manifestou desejo de falar ao conde. Contou-lhe então o papel que eu havia desempenhado nessa tentativa. A despeito do espanto e da cólera que experimentou, o Conde de Charolais calou-se e os presentes apenas puderam fazer vagas conjecturas, baseadas nos movimentos de surpresa provocados pelos relatos. Apesar da importância dessa revelação, Constain foi decapitado e seus bens foram confiscados, mas entregues à família pelo Duque de Borgonha.

“Seu delator teve a mesma sorte, devida em parte à imprudência de uma resposta dada ao príncipe de Borgonha. Este lhe havia perguntado se, caso a soma prometida lhe tivesse sido paga, ele teria denunciado o complô. Ele teve a inconcebível temeridade de responder que não.

“Quando o Conde veio a Tours, pediu-me uma entrevista particular. Nela deixou extravasar todo o seu furor e encheu-me de censuras. Acalmei-o dando-lhe o governo geral da Normandia e a pensão de trinta e seis mil libras. O governo geral não passou de um título decorativo, e da pensão ele recebeu apenas a primeira parte.”

A fatalidade e os pressentimentos.
Instruções dadas por São Luís.


Um dos nossos correspondentes escreveu-nos o seguinte:

“Em setembro último, um barco ligeiro, fazendo a travessia de Dunquerque a Ostende, foi surpreendido por um temporal durante a noite. O barco virou e pereceram quatro dos oito homens que compunham a tripulação. Os outros quatro, em cujo número eu me achava, conseguiram manter-se sobre a quilha. Ficamos a noite inteira nessa horrível posição, sem outra perspectiva senão a morte, que se nos afigurava inevitável e da qual já sentíamos todas as angústias. Ao romper do dia, o vento nos empurrou para a costa e pudemos ganhar a terra a nado.

“Por que, nesse perigo, igual para todos, apenas quatro sucumbiram? Note que, a meu respeito, é a sexta ou sétima vez que escapo a um perigo tão iminente e mais ou menos nas mesmas condições. Sou realmente levado a pensar que mão invisível me protege. Que fiz eu para isso? Não sei muito; sou uma criatura sem importância e sem utilidade neste mundo e não me gabo de valer mais que os outros; longe disto: entre as vítimas do acidente havia um digno eclesiástico, modelo de virtude evangélica, e uma venerável irmã da congregação de São Vicente de Paulo, que ia cumprir uma santa missão de caridade cristã. Parece que a fatalidade representa um grande papel em meu destino. Os Espíritos não se achariam ali para alguma coisa? Seria possível conseguir deles uma explicação a respeito, perguntando-lhes, por exemplo, se são eles que provocam ou contornam os perigos que nos ameaçam?…”

Conforme o desejo de nosso correspondente, dirigimos as seguintes perguntas ao Espírito de São Luís, que se comunica de boa vontade, sempre que há uma instrução útil a ministrar.

1. Quando um perigo iminente ameaça alguém, é um Espírito que dirige o perigo e, quando dele escapa, é outro Espírito que o desvia?

Quando um Espírito se encarna, escolhe uma prova; escolhendo-a, cria-se uma espécie de destino que não pode conjurar, desde que a ele se submeteu. Falo das provas físicas. Conservando seu livre-arbítrio sobre o bem e o mal, o Espírito é sempre livre de suportar ou rejeitar a prova. Vendo-o fraquejar, um bom Espírito pode vir em seu auxílio, mas não pode influir sobre ele de modo a dominar sua vontade. Um Espírito mau, isto é, inferior, mostrando-lhe e exagerando o perigo físico, pode abalá-lo e apavorá-lo, mas nem por isso a vontade do Espírito encarnado fica menos livre de qualquer entrave.”

2. Quando um homem está na iminência de ser vítima de um acidente, parece-me que o livre-arbítrio nada vale. Pergunto, pois, se é um mau Espírito que provoca tal acidente, do qual de algum modo é a causa e, no caso em que escape do perigo, se um bom Espírito veio em seu auxílio.

“Os bons ou os maus Espíritos não podem sugerir senão pensamentos bons ou maus, segundo sua natureza. O acidente está marcado no destino do homem. Quando tua vida é posta em perigo, é sinal que tu mesmo o desejaste, a fim de te desviares do mal e te tornares melhor. Quando escapas ao perigo, ainda sob a influência do perigo que correste, pensas mais ou menos fortemente, conforme a ação mais ou menos forte dos bons Espíritos, em te tornares melhor. Sobrevindo um mau Espírito (e digo mau subentendendo o mal que nele ainda existe), pensas que igualmente escaparás a outros perigos e novamente te entregarás às tuas paixões desenfreadas.”

3. A fatalidade que parece presidir aos destinos materiais de nossa vida seria, então, um efeito de nosso livre-arbítrio?

“Tu mesmo escolheste a tua prova; quanto mais rude for e melhor a suportares, tanto mais te elevas. Os que passam a vida na abundância e na felicidade humana são Espíritos fracos, que ficam estacionários. Assim, o número dos infortunados ultrapassa de muito o dos felizes deste mundo, de vez que em geral os Espíritos escolhem a prova que lhes dê mais frutos. Eles veem muito bem a futilidade de vossas grandezas e de vossos prazeres. Além disto, mesmo a vida mais feliz é sempre agitada, sempre perturbada, mesmo quando não o seja por meio da dor.”

4. Compreendemos perfeitamente tal doutrina, mas isto não explica se certos Espíritos têm uma ação direta sobre a causa material do acidente. Suponhamos que no momento em que um homem passa por uma ponte, a ponte desmorona. Quem levou o homem a passar por essa ponte?

“Quando um homem passa por uma ponte que deve cair não é um Espírito que o impele. É o instinto de seu destino que o leva para ela.”

5. Quem faz a ponte desmoronar?

“As circunstâncias naturais. A matéria tem em si as causas da destruição. No caso vertente, se o Espírito tiver necessidade de recorrer a um elemento estranho à sua natureza para mover as forças materiais, recorrerá de preferência à intuição espiritual. Assim, devendo desmoronar aquela ponte, tendo a água desajustado as pedras que a compõem ou a ferrugem roído as correntes que a sustentam, o Espírito, digamos, insinuará ao homem que passe por essa ponte, em vez de romper uma outra no momento em que ele passa. Aliás, tendes uma prova material do que digo: seja qual for o acidente, ocorre sempre naturalmente, isto é, as causas se ligam uma às outras e o produzem insensivelmente.”

6. Tomemos outro caso, em que a destruição da matéria não seja a causa do acidente. Um homem mal-intencionado dá-me um tiro; a bala apenas passa de raspão. Teria sido desviada por um bondoso Espírito?

“Não.”

7. Podem os Espíritos advertir-nos diretamente de um perigo? Eis um fato que parece confirmá-lo: Uma senhora sai de casa e segue pela avenida. Uma voz íntima lhe diz: Volta para casa. Ela vacila. A mesma voz faz-se ouvir várias vezes. Então ela volta, mas, refazendo-se, exclama: “Mas. . . que vim fazer em casa? Vou sair mesmo. Sem dúvida isto é efeito de minha imaginação.” Então retoma o caminho. Dados alguns passos, uma viga que tiravam de uma casa bate-lhe na cabeça e ela cai desacordada. Que voz era aquela? Não era um pressentimento do que lhe ia acontecer?

“Era o instinto. Aliás, nenhum pressentimento tem essas características: são sempre vagos.”

8. Que entendeis por voz do instinto?

Entendo que, antes de encarnar-se, o Espírito tem conhecimento de todas as fases de sua existência. Quando essas fases têm um caráter essencial, ele conserva uma espécie de impressão em seu foro íntimo e tal impressão, despertando ao aproximar-se o instante, torna-se pressentimento.”

Nota: As explicações acima se referem à fatalidade dos acontecimentos materiais. A fatalidade moral é tratada de maneira completa em O Livro dos Espíritos.

Utilidades de certas evocações particulares.

As comunicações que se obtêm de Espíritos muito elevados ou dos que animaram grandes personagens da antiguidade são preciosas, pelo alto ensino que contêm. Esses Espíritos adquiriram um grau de perfeição que lhes permite abarcar uma esfera de ideias mais extensa; penetrar mistérios que ultrapassam o alcance vulgar da humanidade e, por conseguinte, melhor que outros, iniciar-nos em certas coisas. Não se segue daí que as comunicações de Espíritos de ordens menos elevadas sejam sem utilidade. Longe disto: o observador colhe nelas diversos ensinos. Para conhecer os costumes de um povo é preciso estudá-lo em todos os graus da escala. Quem só o tivesse visto por uma face, conhecê-lo-ia mal. A história de um povo não é a história de seus reis e das sumidades sociais. Para julgá-lo é preciso vê-lo em sua vida íntima, nos seus hábitos particulares. Ora, os Espíritos superiores são as sumidades do mundo espírita. Sua própria elevação os coloca de tal modo acima de nós que ficamos espantados pela distância que nos separa.

Espíritos mais burgueses — permitam-nos a expressão — tornam para nós mais palpáveis as condições de sua nova existência. Neles, a ligação entre a vida corporal e a vida espírita é mais íntima; nós a compreendemos melhor, pois nos toca mais de perto. Aprendendo através deles mesmos em que se tornaram, o que pensam, o que experimentam as pessoas de todas as condições e de todos os caracteres, tanto os homens de bem como os viciosos, tanto os grandes quanto os pequenos, os felizes como os infelizes do século, numa palavra, os homens que viveram entre nós, que vimos e conhecemos, cuja vida real nos é conhecida, como suas virtudes e seus caprichos, compreendemos suas alegrias e seus sofrimentos; a eles nos associamos e colhemos um ensino moral tanto mais proveitoso quanto mais íntimas as relações entre eles e nós. Pomo-nos mais facilmente no lugar daquele que foi igual a nós, do que no daqueles que vemos apenas através da miragem de uma glória celeste. Os Espíritos vulgares mostram-nos a aplicação prática das grandes e sublimes verdades, cuja teoria nos ensinam os Espíritos superiores. Ademais, no estudo de uma ciência nada há de inútil: Newton encontrou a lei das forças do universo num fenômeno simplíssimo.

Tais comunicações têm outra vantagem: a de constatar a identidade dos Espíritos de modo mais preciso. Quando um Espírito nos diz que foi Sócrates ou Platão, somos obrigados a crer sob palavra porque ele não traz carteira de identidade. Podemos ver em suas palavras se desmente ou não a origem que ele se atribui: julgamo-lo Espírito elevado, eis tudo. Se realmente foi Sócrates ou Platão, pouco importa. Mas quando o Espírito de nossos parentes, de nossos amigos ou daqueles que conhecemos se nos manifesta, ocorrem mil e uma circunstâncias de detalhes íntimos, nos quais a identidade não poderia ser posta em dúvida. Dessa forma obtemos, de certo modo, a prova material. Pensamos, pois, que nos agradecerão se fizermos, de vez em quando, algumas dessas evocações íntimas: é o romance dos costumes da vida espírita — sem a ficção.



Palestras familiares de além-túmulo

O assassino Lemaire,

Condenado à pena máxima pelo Tribunal do Aisne*, foi executado a 31 de dezembro de 1857, evocado a 28 de janeiro de 1858.


* Tribunal de juízes superiores do Departamento do Aisne, no Norte da França.


1. Peço a Deus Todo Poderoso permitir que o assassino Lemaire, executado a 31 de dezembro de 1857, venha até nós.

— Eis-me aqui.

2. Como pudeste tão prontamente atender ao nosso apelo?

— Raquel o disse*.


* A srta. Raquel, evocada alguns dias antes, pela mesma médium, apresentou-se instantaneamente. A respeito deste assunto, foram-lhe feitas as seguintes perguntas:

— Como é que veio tão prontamente, no mesmo instante em que foi evocada? Dir-se-ia que já estava pronta.

— Quando Ermance (a médium) nos chama, vimos imediatamente.

— Você tem, pois, muita simpatia pela senhorita Ermance?

— Há um laço entre ela e nós. Ela vinha a nós. Nós vimos a ela.

— Não há, entretanto, semelhança no caráter de ambas. Como há simpatia?

— Jamais ela deixou inteiramente o mundo dos Espíritos.


3. Que sentimento experimentas em nossa presença?

— De vergonha.

4. Como é que uma jovem, mansa como um cordeiro, pode servir de intermediária a um ser sanguinário como tu?

— Deus o permite.

5. Conservaste toda a tua lucidez até o último instante?

— Sim.

6. Imediatamente após a tua execução, tiveste consciência de tua nova existência?

— Eu estava mergulhado numa perturbação imensa, da qual ainda não saí. Senti uma grande dor; parece que meu coração a sentiu. Vi qualquer coisa rolar ao pé do cadafalso. Vi o sangue correr e minha dor tornou-se mais pungente.

7. Era uma dor puramente física, semelhante à causada por uma ferida grave, como, por exemplo, a amputação de um membro?

— Não. Imagina um remorso, uma grande dor moral.

8. Quando começaste a sentir essa dor?

— Desde que fiquei livre.

9. A dor física causada pelo suplício foi sentida pelo corpo ou pelo Espírito?

— A dor moral estava em meu Espírito. O corpo sentiu a dor física, mas, separado, o Espírito ainda a ressentia.

10. Viste teu corpo mutilado?

— Vi qualquer coisa informe, que aparentemente eu havia deixado, entretanto sentia-me inteiro. Eu era eu mesmo.

11. Que impressão te causou essa visão?

— Eu sentia demais a minha dor. Estava dominado por ela.

12. É verdade que o corpo vive ainda alguns instantes após a decapitação e que o supliciado tem consciência de suas ideias?

— O Espírito retira-se pouco a pouco. Quanto mais o apertam os laços da matéria, mais demorada é a separação.

13. Quanto tempo dura?

— Mais ou menos. (Ver a resposta anterior.)

14. Diz-se que tem sido notada, no rosto de certos supliciados, uma expressão de cólera, além de movimentos, como se ele quisesse falar. É o efeito de uma contração nervosa ou nisto participa a vontade?

— A vontade, porque o Espírito ainda não se havia retirado.

15. Qual o primeiro sentimento que experimentaste ao entrar na nova existência?

— Um sofrimento intolerável. Uma espécie de remorso pungente, cuja causa ignorava.

16. Tu te encontraste com os teus cúmplices que foram executados ao mesmo tempo?

— Por infelicidade nossa. Vermo-nos é um suplício contínuo. Cada um condena o crime do outro.

17. Encontras as tuas vítimas?

— Eu as vejo… São felizes… Seu olhar me persegue, e eu o sinto penetrar até o fundo do meu ser… Em vão procuro fugir.

18. Que sentimento experimentas à sua vista?

— Vergonha e remorso. Eu as elevei com minhas próprias mãos e ainda as odeio.

19. Que sentimento elas experimentam quando te veem?

— De piedade!

20. Elas têm ódio e desejo de vingança?

— Não. Suas preces atraem para mim a expiação. Não podeis avaliar que horrível suplício é tudo dever àquele a quem se odeia.

21. Lamentas a vida terrena?

— Só lamento os meus crimes. Se o fato ainda dependesse de mim, eu não mais sucumbiria.

22. Como foste conduzido à vida criminosa que levaste?

— Escuta! Eu me julgava forte; escolhi uma rude prova e cedi às tentações do mal.

23. A tendência para o crime estava em tua natureza ou foste arrastado pelo meio em que viveste?

— A tendência para o crime estava em minha natureza, porque eu era um Espírito inferior. Quis elevar-me rapidamente, mas pedi mais do que comportavam as minhas forças.

24. Se tivesses recebido bons princípios de educação, poderias desviar-te da vida do crime?

— Sim, mas eu escolhi a posição em que nasci.

25. Terias podido agir como um homem de bem?

— Como um homem fraco, tanto incapaz para o bem quanto para o mal. Eu poderia impedir, durante a minha existência, o avanço do mal que estava em minha natureza, mas não poderia elevar-me a ponto de praticar o bem.

26. Quando vivo, acreditavas em Deus?

— Não.

27. Diz-se que te arrependeste no momento de morrer. É verdade?

— Acreditei num Deus vingador5 e temi a sua justiça.

28. Agora é mais sincero o teu arrependimento?

— Ah! Vejo aquilo que fiz!

29. Que pensas agora de Deus?

— Eu o sinto e não o compreendo.

30. Achas justo o castigo que te foi infligido na Terra?

— Sim.

31. Esperas obter o perdão de teus crimes?

— Não sei.

32. Como pensas resgatar os crimes?

— Por novas provas, mas me parece que a Eternidade está entre mim e elas.

33. Como poderás expiar numa nova existência as faltas anteriores, se não te lembrares delas?

— Terei a sua intuição.

34. Essas provas serão cumpridas na Terra ou em outro mundo?

— Não sei.

35. Onde te achas agora?

— Em meu sofrimento.

36. Pergunto em que lugar te achas agora. . .

— Perto de Ermance.

37. Estás reencarnado ou errante?

— Errante. Se estivesse reencarnado teria esperança. Já disse: parece-me que a Eternidade está entre mim e a expiação.

38. Considerando-se que estás aqui, se te pudéssemos ver, com que aparência te apresentarias?

— Sob minha forma corporal, com a cabeça separada do tronco.

39. Podes aparecer-nos?

— Não. Deixai-me!

40. Podes dizer-nos como te evadiste da prisão de Montdidier?

— Não sei mais… Meu sofrimento é tão grande que só me resta a lembrança do crime… Deixai-me!

41. Poderíamos dar algum alívio aos teus sofrimentos?

— Fazei votos para que chegue a expiação.

A rainha de Oude.*


* Esta manifestação está no livro O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, capítulo VII, sob o título Espíritos endurecidos. — Oude é um antigo reino da Índia, cuja capital é Aódia (em inglês Luknow), entre o Ganges e o Himalaia. (N. da Eq. Rev.)


Nota. Nestas conversas suprimiremos, daqui por diante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.

1. Que sensação experimentastes ao deixar a vida terrena?

— Não poderei dizer. Experimento ainda uma perturbação.

2. Sois feliz?

— Não.

3. Por que não sois feliz?

— Tenho saudades da vida… não sei… experimento uma dor pungente. A vida ter-me-ia livrado disso… gostaria que meu corpo se levantasse do sepulcro.

4. Lamentais não terdes sido enterrada em vosso país, e sim entre os cristãos?

— Sim. A terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.

5. Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?

— Foram muito mesquinhas: eu era rainha e nem todos dobraram os joelhos diante de mim… Deixai-me… Obrigam-me a falar… Não quero que saibais o que agora sou… Fui rainha, notai bem.

6. Respeitamos a vossa hierarquia e vos pedimos que respondais para nos instruirmos. Pensais que um dia vosso filho recuperará os domínios paternos?

— Por certo meu sangue reinará, pois é digno disso.

7. Ligais à reintegração de vosso filho ao trono de Oude a mesma importância de quando vivíeis?

— Meu sangue não pode ser confundido com a multidão.

8. Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?

— O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.

9. Que pensais do futuro reservado àquele país?

— A Índia será grande entre as nações.

10. Não foi possível escrever no atestado de óbito o lugar de vosso nascimento. Podereis dizer-nos agora?

— Nasci do mais nobre sangue da Índia. Creio que nasci em Delhi.

11. Vós, que vivestes nos esplendores do luxo e cercada de honras, que pensais agora?

— Elas me eram devidas.

12. A classe que ocupastes na Terra vos confere uma posição mais elevada no mundo onde hoje estais?

— Sou sempre rainha… Que me mandem escravas para me servirem!… Não sei, parece que não se preocupam comigo aqui… Entretanto eu sou sempre eu.

13. Pertencíeis à religião muçulmana ou a uma religião indiana?

— Muçulmana; mas eu era grande demais para me ocupar de Deus.

14. Que diferença notais entre a religião que profes­sáveis e a religião cristã, quanto à felicidade futura do homem?

— A religião cristã é absurda, pois considera a todos como irmãos.

15. Qual a vossa opinião sobre Maomé?

— Não era filho de rei.

16. Ele tinha uma missão divina?

— Que me importa isso?

17. Qual a vossa opinião sobre o Cristo?

— O filho de carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.

18. Que pensais do costume muçulmano de subtrair as mulheres aos olhares dos homens?

— Penso que as mulheres foram feitas para dominar. Eu era mulher.

19. Alguma vez invejastes a liberdade de que desfrutam as mulheres da Europa?

— Não. Que me importava a sua liberdade? Elas são servidas de joelhos?

20. Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?

— Que me importam as mulheres? Se me falasses de rainhas!…

21. Recordai-vos de ter tido outras existências na Terra, antes desta que acabais de deixar?

— Devo ter sido sempre rainha.

22. Por que viestes tão prontamente ao nosso apelo?

— Eu não o queria; fui forçada… Pensais que me dignaria a responder? Quem sois vós junto de mim?

23. Quem vos obrigou a vir?

— Não sei… Entretanto, aqui não deve haver ninguém maior do que eu.

24. Em que lugar aqui vos encontrais?

— Perto de Ermance.

25. Sob que forma aqui estais?

— Sou sempre rainha… Pensais que eu haja deixado de o ser? Sois pouco respeitoso… Sabei que às rainhas se fala de outra maneira.

26. Por que não vos podemos ver?

— Eu não quero.

27. Se pudéssemos ver-vos, seria com os vossos vestidos, ornatos e joias?

— Certamente!

28. Como é que tendo deixado tudo isso, vosso Espírito conservou a aparência, sobretudo de vossas vestes e joias?

— Elas não me deixaram… Sou sempre tão bela quanto era… Não sei que ideia fazeis de mim! É verdade que nunca me vistes.

29. Que impressão vos causa estardes em nosso meio?

— Se eu pudesse, não estaria aqui. Tratais-me com tão pouco respeito! Não quero que me tratem assim… Chamai-me Majestade, do contrário não responderei mais.

30. Vossa Majestade compreendia a língua francesa?

— Por que não? Eu sabia tudo.

31. Gostaria Vossa Majestade de responder em inglês?

— Não… Não me deixareis tranquila?… Quero ir embora… Deixai-me. Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?… Sou rainha e não escrava.

32. Pedimos apenas a bondade de responder ainda a duas ou três perguntas.

Resposta de São Luís, que estava presente:

— Deixai-a, pobre transviada! Tende piedade de sua cegueira. Que ela vos sirva de exemplo! Não sabeis quanto sofre o seu orgulho.

Observação. Esta conversa oferece vários ensinamentos. Evocando esta grandeza decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas muito profundas, dado o tipo de educação das mulheres daquele país. Pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um mais verdadeiro sentimento da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas terrenas. Longe disto, nela as ideias terrenas conservavam toda a sua força: é o orgulho, que nada perde de suas ilusões; que luta contra sua própria fraqueza e que, na verdade, deve sofrer muito na sua impotência. Na previsão de respostas de natureza completamente diferentes, tínhamos preparado diversas perguntas que perderam a significação. As respostas foram tão diferentes daquilo que esperávamos, como também as pessoas presentes, que não poderíamos ver nelas a influência de um pensamento estranho. Elas têm, entretanto, um cunho tão característico de personalidade, que demonstram claramente a identidade do Espírito que se manifestou.

Com razão a gente se admira de ver Lemaire, o homem degradado e manchado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de Além-Túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação muito exata da situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja posição social poderia ter nela desenvolvido o senso moral, as ideias terrenas não sofreram qualquer modificação. Parece fácil explicar a razão dessa anomalia. Por mais degradado que fosse, Lemaire vivia no meio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido sobre sua natureza grosseira; sem o perceber, havia absorvido alguns raios da luz que o cercava e essa luz fez nascer nele pensamentos abafados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir.

A situação é completamente outra com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a falta absoluta de cultura intelectual, tudo devia ter contribuído para manter em todo o seu vigor as ideias de que se imbuíra na infância. Nada pôde modificar essa natureza primitiva sobre a qual os preconceitos mantiveram todo o seu império.

O Dr. Xavier.
Diversas questões psicofisiológicas.

Um médico de grande talento, que designaremos pelo nome de Xavier, falecido há alguns meses, havia-se ocupado muito de magnetismo e deixara um manuscrito que supunha viesse revolucionar a ciência. Antes de morrer havia lido o Livro dos Espíritos e desejado um contato com seu autor. A moléstia de que sucumbiu não o permitira. Sua evocação foi feita a pedido de sua família, e as respostas, eminentemente instrutivas, levaram-nos a inseri-la nesta coletânea, mas suprimindo tudo o que era de interesse particular.

1. Lembrai-vos do manuscrito que deixastes?

— Ligo-lhe pouca importância.

2. Qual a vossa opinião atual sobre ele?

— Obra vã de um ser que se ignorava a si mesmo.

3. Entretanto, pensáveis que essa obra revolucionaria a ciência.

— Agora vejo muito claramente.

4. Como Espírito, poderíeis corrigir e acabar o manuscrito?

— Parti de um ponto que conhecia mal. Talvez tivesse que refazer tudo.

5. Sois feliz ou infeliz?

— Espero e sofro.

6. Que esperais?

— Novas provas.

7. Qual a causa de vossos sofrimentos?

— O mal que fiz.

8. Entretanto, não fizestes o mal intencionalmente.

— Conheces bem o coração humano?

9. Sois errante ou encarnado?

— Errante.

10. Quando vivo, qual a vossa opinião sobre a Divindade?

— Não acreditava nela.

11. E agora?

— Não creio bastante.

12. Desejáveis entrar em contato comigo. Lembrai-vos disto?

— Sim.

13. Vedes-me e reconheceis-me como a pessoa com quem desejáveis entrar em relação?

— Sim.

14. Que impressão vos deixou o Livro dos Espíritos?

— Ele me desconcertou.

15. Que pensais dele agora?

— É uma grande obra.

16. Que pensais do futuro da doutrina espírita?

— É grande, mas certos discípulos a prejudicam.

17. Quais os que a prejudicam?

— Os que atacam coisas reais: as religiões, as primeiras e mais simples crenças dos homens.

18. Como médico e em razão dos estudos que fizestes, sem dúvida podeis responder às seguintes perguntas: Pode o corpo conservar por alguns instantes a vida orgânica após a separação da alma?

— Sim.

19. Por quanto tempo?

— Não há tempo.

20. Peço que esclareçais a resposta.

— Isto dura apenas alguns instantes.

21. Como se opera a separação entre a alma e corpo?

— Como um fluido que se escapa de um recipiente qualquer.

22. Há uma linha de separação real entre a vida e a morte?

— Os dois estados se tocam e se confundem. Assim, o Espírito se desprende pouco a pouco de seus laços; desata-os e não os arrebenta.

23. Esse desprendimento da alma opera-se mais prontamente nuns que noutros?

— Sim, nos que em vida se elevaram acima da matéria, pois sua alma pertence mais ao mundo dos Espíritos que ao terrestre.

24. Em que momento se opera a união entre alma e corpo na criança?

— Quando a criança respira, como se ela recebesse a alma com o ar exterior.

Observação. Esta opinião é consequência do dogma católico. Realmente a Igreja ensina que a alma só será salva pelo batismo; ora, como a morte natural intrauterina é muito frequente, que aconteceria a essa alma que, segundo a Igreja, fosse privada do único meio de salvação, caso existisse no corpo antes do nascimento? Para ser coerente, seria necessário que o batismo fosse realizado, senão de fato, pelo menos intencionalmente, depois do momento da concepção.

25. Como, então, explicais a vida intrauterina?

— Como a planta que vegeta. A criança vive sua vida animal.

26. Há crime em privar a criança da vida antes de nascer, considerando-se que nessa época a criança não tem alma e, pois, não é um ser humano?

— A mãe ou qualquer outra pessoa que tirasse a vida a uma criança antes de nascer cometeria um crime, pois impediria uma alma de suportar as provas de que o corpo deveria ser instrumento.

27. Não obstante, dar-se-ia a expiação que deveria sofrer a alma impedida de reencarnar?

— Sim, mas Deus sabia que a alma não se uniria àquele corpo. Assim, nenhuma alma deveria unir-se àquele envoltório corporal: era a prova da mãe.

28. Caso a vida da mãe corresse perigo com o nascimento da criança, haveria crime em sacrificar esta para salvar aquela?

— Não. É preferível sacrificar o ser que não existe ao que existe.

29. A união entre alma e corpo opera-se instantânea ou gradualmente, isto é, será necessário um tempo apreciável para que tal união seja completa?

— O Espírito não entra bruscamente no corpo. Para medir esse tempo, imaginai que o primeiro sopro que a criança recebe é a alma que entra no corpo: o tempo em que o peito se eleva e se abaixa.

30. A união da alma com tal ou qual corpo é predestinada ou a escolha só se verifica no momento de nascer?

— Deus a marcou. Esta questão requer maiores desenvolvimentos. Escolhendo a prova que quer passar, o Espírito pede para encarnar. Ora, Deus, que tudo sabe e tudo vê, soube e viu previamente que tal alma unir-se-ia a tal corpo. Quando o Espírito nasce nas baixas camadas sociais, sabe que sua vida será de labor e sofrimento. A criança que vai nascer tem uma existência que resulta, até certo ponto, da posição dos pais.

31. Por que pais bons e virtuosos têm filhos de natureza perversa? Por outras palavras, por que as boas qualidades dos pais não atraem sempre, por simpatia, um bom Espírito para lhes animar o filho?

— Um mau Espírito pede bons pais, na esperança de que seus conselhos o dirijam por melhor caminho.

32. Podem os pais, pelo pensamento e pela prece, atrair para o corpo da criança um bom Espírito ao invés de um inferior?

— Não. Podem, entretanto, melhorar o Espírito da criança a que deram nascimento. É seu dever. Os maus filhos são uma prova para os pais.

33. Compreende-se o amor materno pela conservação da vida do filho, mas, levando-se em conta que esse amor está em a Natureza, por que há mães que odeiam os filhos, e isto muitas vezes desde o nascimento?

— Maus Espíritos que procuram entravar o Espírito da criança, a fim de que sucumba na prova que desejou.

34. Agradecemos as explicações que nos destes.

— Para vos instruir, tudo farei.

Nota: A teoria dada por este Espírito sobre o instante da união da alma ao corpo não é bem exata. A união começa desde a concepção, isto é, desde o momento em que o Espírito, sem estar encarnado, liga-se ao corpo por um laço fluídico que se vai reforçando cada vez mais, até o nascimento. A encarnação só se completa quando a criança respira (Vide o Livro dos Espíritos, n.º 344 e seguintes).


O Sr. Home — II

Como dissemos, o Sr. Home é um médium do gênero daqueles sob cuja influência se produzem, mais especialmente, fenômenos físicos, sem excluir por isso as manifestações inteligentes. Todo efeito que revela a ação de uma vontade livre é, por isso mesmo, inteligente, isto é, deixa de ser puramente mecânico e não poderia ser atribuído a um agente exclusivamente material. Daí às comunicações instrutivas de um elevado alcance moral e filosófico há, entretanto, uma grande distância e não é de nosso conhecimento que o Sr. Home as obtenha de tal natureza. Não sendo um médium escrevente, a maioria das respostas são dadas por batidas vibradas, indicativas das letras do alfabeto, meio sempre imperfeito e bastante lento que dificilmente se presta a desenvolvimentos de certa extensão. Entretanto, ele também consegue a escrita, mas por processo de que falaremos daqui a pouco.

Digamos, de início, como princípio geral, que as manifestações ostensivas, aquelas que nos chocam os sentidos, podem ser espontâneas ou provocadas. As primeiras são independentes da vontade; muitas vezes, mesmo, dão-se contra a vontade daquele que lhes é objeto e para quem nem sempre são agradáveis. Fatos deste gênero são frequentes e, sem remontar aos relatos mais ou menos autênticos dos tempos remotos, a História contemporânea oferece-nos numerosos exemplos cuja causa, a princípio ignorada, está hoje perfeitamente conhecida: tais são, por exemplo, os ruídos insólitos, os movimentos desordenados dos objetos, o puxar de cortinas, o arrancar das cobertas, certas aparições, etc.

Algumas pessoas são dotadas de uma faculdade especial que lhes dá o poder de provocar esses fenômenos, ao menos parcialmente, por assim dizer, à vontade. Essa faculdade não é muito rara e, em cem pessoas, pelo menos cinquenta a possuem, em maior ou menor grau.

O que distingue o Sr. Home é que nele a faculdade está desenvolvida, como nos médiuns de sua espécie, de modo por assim dizer excepcional. Uns não conseguem mais do que leves pancadas ou um insignificante deslocamento de uma mesa, enquanto que sob a influência do Sr. Home fazem-se ouvir os ruídos mais retumbantes e todo o mobiliário de uma sala pode ser revirado e os móveis amontoados uns sobre os outros. Por mais surpreendentes que pareçam tais fenômenos, o entusiasmo de alguns admiradores muito zelosos ainda achou um jeito de amplificá-los por meio de pura invencionice. Por outro lado, os detratores não ficaram inativos: contaram a seu respeito toda sorte de histórias que só se passaram em sua imaginação.

Eis um exemplo:

O Marquês de…, uma das figuras que mais interesse demonstraram pelo Sr. Home, e em cuja residência ele era recebido na intimidade, achava-se um dia com ele na ópera. Na plateia estava o Sr. P…, um dos nossos assinantes, que conhece ambos pessoalmente. Seu vizinho estabelece conversa com ele. O assunto é o Sr. Home.

─ O senhor acreditaria, diz ele, que aquele pretenso feiticeiro, aquele charlatão, encontrou meios de penetrar em casa do Marquês de… mas os seus artifícios foram descobertos e ele foi posto na rua a pontapés, como um vil intrigante?

─ O senhor tem certeza? pergunta o Sr. P… O senhor conhece o marquês?

─ Certamente, responde o interlocutor.

─ Nesse caso, retorquiu o Sr. P…, olhe para aquele camarote. O senhor poderá vê-lo, em companhia do próprio Home, no qual não parece que queira dar pontapés.

Diante disso, o nosso infeliz narrador, achando melhor não continuar a conversa, tomou o chapéu e desapareceu.

Por aí se pode avaliar o valor de certas afirmações. Por certo, se alguns fatos divulgados pela maledicência fossem verdadeiros, ter-lhe-iam fechado muitas portas. Entretanto, como as casas mais respeitáveis sempre lhe estiveram abertas, é de concluir-se que sempre e por toda parte ele se conduziu como um cavalheiro. Aliás, basta haver conversado um pouco com o Sr. Home para ver que, com a sua timidez e sua simplicidade de caráter, ele seria o mais desajeitado dos embusteiros. Insistimos neste ponto pela moralidade da causa.

Voltemos às suas manifestações.

Como o nosso objetivo é dar a conhecer a verdade, no interesse da ciência, tudo quanto relataremos foi colhido em fontes de tal maneira autênticas que lhe podemos garantir a mais escrupulosa exatidão: obtivemo-lo de testemunhas oculares muito sérias, muito esclarecidas e altamente colocadas, de modo que sua sinceridade não poderá ser posta em dúvida. Se se dissesse que tais pessoas poderiam ter sido, de boa-fé, vítimas de uma ilusão, responderíamos que há circunstâncias que afastam toda suposição desse gênero. Aliás, tais pessoas estavam muito interessadas em conhecer a verdade para não se premunirem contra qualquer falsa aparência.

Geralmente o Sr. Home inicia suas sessões pelos fatos conhecidos: pancadas numa mesa, ou em qualquer outra parte do apartamento, pela maneira como já o descrevemos. Vem a seguir o movimento da mesa, que se opera, a princípio, pela imposição de mãos, dele só ou de várias pessoas reunidas, depois à distância e sem contato: é uma espécie de ensaio. Muito frequentemente ele não obtém mais que isto. Depende da disposição em que se encontra e, algumas vezes também, da dos assistentes. Há pessoas perante as quais jamais produziu coisa alguma, mesmo pessoas amigas. Não nos alongaremos sobre esses fenômenos hoje tão conhecidos e que não se distinguem senão por sua rapidez e energia. Muitas vezes, após várias oscilações e balanços, a mesa se destaca do solo e eleva-se gradativamente, lentamente, por pequenos impulsos, não apenas alguns centímetros, mas até o teto e fora do alcance das mãos. Depois de haver ficado suspensa no espaço durante alguns segundos, desce como havia subido, lentamente, gradativamente.

A suspensão de um corpo inerte e de um peso específico incomparavelmente maior que o do ar é um fato conhecido e, pois, compreende-se que o mesmo se possa dar com um corpo animado. Não nos consta que o Sr. Home tivesse agido sobre outra pessoa além dele mesmo; ainda assim o fato não ocorreu só em Paris, mas em vários lugares, tanto em Florença quanto na França, e principalmente em Bordéus, em presença das mais respeitáveis testemunhas, cujos nomes citaríamos, caso fosse preciso.

Como a mesa, ele foi elevado até o teto e desceu do mesmo modo. O que há de bizarro neste fenômeno é que não se produz por um ato de sua vontade. Ele mesmo nos disse que não se apercebe do fato e pensa que está sempre no solo, salvo quando olha para baixo. São as testemunhas que o veem elevar-se. Quanto a ele, nesses momentos experimenta a sensação produzida pelo balanço do navio sobre as ondas. Aliás, este fato não é absolutamente peculiar ao Sr. Home. A História registra diversos exemplos autênticos, que relataremos posteriormente.

De todas as manifestações produzidas pelo Sr. Home, a mais extraordinária é, sem dúvida, a das aparições, razão por que nelas mais insistimos, à vista das graves consequências daí decorrentes e da luz que elas lançam sobre uma porção de outros fatos. O mesmo se dá com os sons produzidos no ar; instrumentos de música que tocam sozinhos, etc. Examinaremos tais fenômenos detalhadamente no próximo número.

De volta de uma viagem à Holanda, onde produziu uma sensação profunda na corte e na alta sociedade, o Sr. Home acaba de partir para a Itália. Com a saúde gravemente alterada, ele necessitava de um clima mais suave.

Confirmamos prazerosamente a notícia dada por alguns jornais, de um legado de 6.000 francos de renda que lhe fez uma senhora inglesa por ele convertida à doutrina espírita e em reconhecimento pela satisfação que ela experimentou. Sob todos os aspectos, o Sr. Home merecia esta prova de consideração. De parte da doadora, o ato é um precedente que terá o aplauso de todos quantos partilham de nossas convicções. Esperemos que um dia a doutrina tenha o seu Mecenas: a posteridade inscreverá seu nome entre os benfeitores da humanidade.

A Religião nos ensina a existência da alma e a sua imortalidade; o Espiritismo dá-nos a sua prova viva e palpável, não mais pelo só raciocínio, mas também pelos fatos.

O materialismo é um dos vícios da sociedade atual, porque engendra o egoísmo. Que há, realmente, fora do eu, para que tudo seja referido à matéria e à vida presente?

Intimamente ligada às ideias religiosas, esclarecendo-nos sobre a nossa natureza, a doutrina espírita nos mostra a felicidade na prática das virtudes evangélicas; ela lembra ao homem os seus deveres para com Deus, para com a sociedade e para consigo mesmo. Ajudar na sua propagação é desferir um golpe mortal na chaga do cepticismo que nos invade como um mal contagioso. Honra, pois, aos que empregam nessa obra os bens com que Deus os favoreceu na Terra!

Magnetismo e Espiritismo.

Quando apareceram os primeiros fenômenos espíritas, algumas pessoas pensaram que essa descoberta, se é que se pode usar esta palavra, iria desferir um golpe de morte no magnetismo, e que aconteceria como ocorre nas invenções: a mais aperfeiçoada determina o esquecimento de sua predecessora. Tal erro não tardou a se dissipar e prontamente se reconheceu o parentesco próximo das duas ciências. Com efeito, baseando-se ambas na existência e na manifestação da alma, longe de se combaterem, podem e devem prestar-se mútuo apoio, pois elas se completam e se explicam mutuamente. Entretanto, seus respectivos adeptos discordam nalguns pontos: certos magnetistas ainda não admitem a existência ou, pelo menos, a manifestação dos Espíritos. Eles pensam que podem tudo explicar só pela ação do fluido magnético, opinião que nos limitamos a constatar, reservando-nos para discuti-la mais tarde. Nós mesmos a partilhávamos a princípio, mas, como tantos outros, tivemos que nos render à evidência dos fatos.

Ao contrário, os adeptos do Espiritismo são todos concordes com o magnetismo. Todos admitem sua ação e reconhecem nos fenômenos sonambúlicos uma manifestação da alma. Esta oposição, aliás, se enfraquece dia a dia, e é fácil prever que não está longe o dia em que cessará qualquer distinção. Tal divergência de opiniões nada tem de surpreendente. No começo de uma ciência ainda tão nova, é muito fácil que cada um, olhando as coisas de seu ponto de vista, dela forme uma ideia diferente. As ciências mais positivas tiveram sempre, e têm ainda, suas escolas, que sustentam ardorosamente teorias contrárias. Os cientistas têm levantado escola contra escola, bandeira contra bandeira e, muitas vezes, para sua dignidade, as polêmicas se tornaram irritantes e agressivas para o amor próprio ofendido, ultrapassando os limites de uma sábia discussão. Esperemos que os sectários do magnetismo e do Espiritismo, melhor inspirados, não deem ao mundo o escândalo de discussões tão pouco edificantes e sempre fatais à propagação da verdade, seja qual for o lado em que ela esteja.

Podemos ter nossa opinião, sustentá-la e discuti-la, mas o meio de nos esclarecermos não é nos digladiando, processo pouco digno de homens sérios e que se torna ignóbil desde que entre em jogo o interesse pessoal.

O magnetismo preparou o caminho do Espiritismo, e os rápidos progressos desta última doutrina são incontestavelmente devidos à vulgarização das ideias sobre a primeira. Dos fenômenos magnéticos, do sonambulismo e do êxtase às manifestações espíritas há apenas um passo. Sua conexão é tal que, por assim dizer, é impossível falar de um sem falar do outro. Se tivermos que ficar fora da ciência do magnetismo, nosso quadro ficará incompleto e poderemos ser comparados a um professor de Física que se abstivesse de falar da luz. Contudo, como o magnetismo já possui entre nós órgãos especiais justamente acreditados, seria supérfluo insistirmos sobre um assunto já tratado com superioridade de talento e de experiência. A ele não nos referiremos, pois, senão acessoriamente, mas de maneira suficiente para mostrar as relações íntimas das duas ciências que, na verdade, não passam de uma.

Devíamos aos nossos leitores esta profissão de fé, que terminamos com uma justa homenagem aos homens de convicção que, enfrentando o ridículo, o sarcasmo e os dissabores, dedicaram-se corajosamente à defesa de uma causa tão humanitária.

Seja qual for a opinião dos contemporâneos sobre o seu proveito pessoal, opinião que é sempre mais ou menos o reflexo das paixões vivazes, a posteridade far-lhes-á justiça: ela colocará os nomes do Barão Du Potet, diretor do Journal du Magnétism; do Sr. Millet, diretor da Union Magnétique, ao lado de seus ilustres pioneiros, o Marquês de Puységur e o sábio Deleuze. Graças aos seus esforços perseverantes, o magnetismo, popularizado, fincou pé na ciência oficial, onde já se fala dele aos cochichos. Este vocábulo passou à linguagem comum: já não afugenta e, quando alguém se diz magnetizador, já não riem mais ao seu rosto.

Allan Kardec.

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