Outubro
Na verdade, o Espiritismo apresenta um perigo real, mas não é aquele que se supõe. É preciso ser-se iniciado nos princípios da Ciência para bem compreendê-lo. Não nos dirigimos àqueles que lhe são alheios, mas aos próprios adeptos, àqueles que o praticam, pois que para esses é que há perigo. Importa que o conheçam, a fim de se porem em guarda. Sabe-se que um perigo previsto é um perigo meio evitado[1]. Diremos mais: para quem quer que esteja bem informado da Ciência, tal perigo não existe; existe apenas para aqueles que têm a presunção de saber, isto é, como em todas as coisas, para aqueles que não possuem a necessária experiência.
Um desejo muito natural em todos aqueles que começam a se ocupar do Espiritismo é ser médium, principalmente psicógrafo. É realmente o gênero que tem mais atração, dada a facilidade das comunicações e por ser o que melhor se desenvolve com o exercício. Compreende-se a satisfação que deve experimentar quem, pela primeira vez, vê a própria mão formar letras, depois palavras, depois frases em resposta aos seus pensamentos. Essas respostas que traça maquinalmente, sem saber o que faz; que o mais das vezes estão fora de qualquer ideia pessoal, não lhe podem deixar nenhuma dúvida quanto à intervenção de uma inteligência oculta. Assim, grande é a sua alegria de poder entreter-se com os seres de além-túmulo, com esses seres misteriosos e invisíveis que povoam os espaços: parentes e amigos já não mais se encontram ausentes; se não os vê com os olhos, nem por isso deixam de ali estar; conversam com ele, e ele os vê por pensamento; pode saber se são felizes, conhecer aquilo que fazem, o que desejam e trocar amabilidades. Compreende que entre eles a separação não é eterna e faz votos para apressar o instante em que poderiam reunir-se num mundo melhor. E não é tudo. Quanto não pode saber através dos Espíritos que com ele se comunicam? Não irão eles levantar o véu de todas as coisas? Agora já não há mais mistérios: basta perguntar para tudo ficar sabendo. Vê a Antiguidade sacudir diante dele a poeira do tempo; escavar as ruínas; interpretar as escrituras simbólicas e fazer reviver aos seus olhos os séculos passados. Este outro, mais prosaico e pouco preocupado em sondar o infinito onde se perde seu pensamento, cuida apenas de explorar os Espíritos para fazer fortuna. Os Espíritos, que devem ver tudo e tudo saber, não podem negar-se a permitir-lhe a descoberta de algum tesouro escondido ou de algum segredo maravilhoso.
Quem quer que se dê ao trabalho de estudar a ciência espírita jamais se deixará seduzir por esses belos sonhos. Sabe do que se deve abster a respeito do poder dos Espíritos, de sua natureza e do objetivo das relações que com os mesmos o homem pode estabelecer. Recordemos, para começar, em poucas palavras, os pontos principais que nunca devem ser perdidos de vista, porque são a chave que sustenta todo o edifício.
1.º ─ Os Espíritos não são iguais nem em poder, nem em conhecimento, nem em sabedoria. Como não passam de almas humanas desembaraçadas de seu envoltório corporal, apresentam uma variedade ainda maior do que encontramos entre os homens na Terra, porque eles vêm de todos os mundos e, entre os mundos, a Terra não é nem o mais atrasado nem o mais adiantado. Há, pois, Espíritos muito superiores, como os há muito inferiores; muito bons e muito maus; muito sábios e muito ignorantes; há os levianos, malévolos, mentirosos, astutos, hipócritas, facetos, espirituosos, trocistas, etc.
2.º ─ Estamos incessantemente cercados por uma nuvem de Espíritos que, pelo fato de serem invisíveis aos nossos olhos materiais, não deixam de estar no espaço, em redor de nós, ao nosso lado, espiando os nossos atos, lendo os nossos pensamentos, uns para nos fazer bem, outros para nos fazer mal, conforme sejam eles bons ou maus.
3.º ─ Pela inferioridade física e moral de nosso globo na hierarquia dos mundos, os Espíritos inferiores aqui são mais numerosos do que os superiores.
4.º ─ Entre os Espíritos que nos cercam, há os que se ligam a nós; que agem mais particularmente sobre o nosso pensamento, aconselhando-nos, e cuja influência seguimos, sem nos apercebermos. Melhor para nós se escutarmos apenas a voz dos bons.
5.º ─ Ligam-se os Espíritos inferiores apenas àqueles que os ouvem, junto aos quais têm acesso e aos quais se agarram. Se conseguirem estabelecer domínio sobre alguém, identificam-se com o seu próprio Espírito, fascinam-no, obsidiam-no, subjugam-no e o conduzem como se fosse uma criança.
6.º ─ A obsessão jamais se dá senão por Espíritos inferiores. Os bons Espíritos não produzem nenhum constrangimento: aconselham, combatem a influência dos maus e afastam-se, desde que não sejam ouvidos.
7º. ─ O grau de constrangimento e a natureza dos efeitos que ele produz marcam a diferença entre a obsessão, a subjugação e a fascinação.
A obsessão é a ação quase permanente de um Espírito estranho, que leva a pessoa a ser solicitada por uma necessidade incessante de agir desta ou daquela maneira e de fazer isto ou aquilo.
A subjugação é uma ligação moral que paralisa a vontade de quem a sofre e que impele a pessoa às mais desarrazoadas atitudes, frequentemente as mais contrárias ao seu próprio interesse.
A fascinação é uma espécie de ilusão produzida pela ação direta de um Espírito estranho ou por seus raciocínios capciosos. Essa ilusão produz alteração na compreensão das coisas morais, falseia o julgamento e leva a tomar-se o mal pelo bem.
8.º ─ Por sua vontade pode sempre o homem desembaraçar-se do jugo dos Espíritos imperfeitos, porque em virtude de seu livre-arbítrio, há escolha entre o bem e o mal. Se o constrangimento chegou ao ponto de paralisar a vontade e se a fascinação é tão grande que oblitera a razão, então a vontade de uma terceira pessoa pode substituí-la.
Antigamente dava-se o nome de possessão ao império exercido pelos maus Espíritos, quando sua influência ia até a aberração das faculdades. Mas a ignorância e os preconceitos muitas vezes tomaram como possessão aquilo que não passava de um estado patológico. Para nós, a possessão seria sinônimo de subjugação. Não adotamos esse termo por dois motivos: primeiro porque implica a crença em seres criados para o mal e a ele votados perpetuamente, quando apenas existem seres mais ou menos imperfeitos, e todos podem melhorar; segundo, porque ele implica igualmente a ideia de tomada de posse do corpo pelo Espírito estranho, uma espécie de coabitação, ao passo que existe apenas uma ligação. O vocábulo subjugação dá uma ideia perfeita. Assim, para nós, não há possessos, no sentido vulgar da palavra; há simplesmente obsedados, subjugados e fascinados.[2]
Por idêntico motivo não usamos o vocábulo demônio para designar os Espíritos imperfeitos, de vez que frequentemente esses Espíritos não são melhores que os chamados demônios; é apenas por causa da especialidade e da perpetuidade que estão ligadas a esse vocábulo. Assim, quando dizemos que não há demônios, não queremos dizer que apenas existam bons Espíritos. Longe disso. Sabemos muito bem que os há maus e muito maus, que nos solicitam para o mal, armam-nos ciladas, e isto nada tem de admirável, porque eles foram homens. Queremos dizer que não formam uma classe à parte na ordem da Criação, e que Deus deixa a todas as criaturas a capacidade de melhorar-se.
Bem assentado isto, voltemos aos médiuns. Nalguns, o progresso é lento, mesmo muito lento; por vezes submetem à prova a sua paciência. Noutros é rápido, e em pouco tempo chega o médium a escrever com tanta facilidade e, às vezes, com mais presteza do que faria em condições ordinárias. É então que pode tomar-se de entusiasmo, e é nisto que está o perigo, porque o entusiasmo provoca o enfraquecimento, e com os Espíritos é necessário ser forte. Parece um paradoxo dizer que o entusiasmo provoca enfraquecimento, entretanto, não há nada mais correto. Dir-se-á que o entusiasmo marcha com uma convicção e uma confiança que lhe permitem vencer todos os obstáculos, com o que haverá mais força. Sem dúvida, mas nós nos entusiasmamos tanto pelo falso quanto pelo verdadeiro. Aceitai as mais absurdas ideias do entusiasta e dele fareis tudo quanto quiserdes. O objeto de seu entusiasmo é, pois, o seu lado fraco, pelo qual podereis sempre dominá-lo. O homem frio, ao contrário, é impassível. Ele não se ilude; combina, pesa, examina maduramente e não se deixa seduzir por subterfúgios. É isto o que lhe dá força. Os Espíritos malévolos, que sabem disto tão bem ou melhor do que nós, sabem também tirar proveito da situação para subjugar os que desejam ter sob sua dependência. A faculdade de escrever como médium lhes serve maravilhosamente, porque é poderoso meio de captar a confiança e, assim, dela tirarão proveito, se não nos pusermos em guarda contra eles. Felizmente, como veremos mais tarde, o mal traz em si o remédio.
Seja por entusiasmo, seja por fascínio dos Espíritos, ou seja por amor próprio, em geral o médium psicógrafo é levado a crer que os Espíritos que se comunicam com ele são superiores, e tanto mais, quanto mais os Espíritos, vendo sua propensão, não deixam de ornar-se com títulos pomposos, conforme a necessidade. Segundo as circunstâncias, tomam nomes de santos, de sábios, de anjos, da própria Virgem Maria, e fazem o seu papel como atores, vestindo ridiculamente a roupagem das pessoas que representam. Tirai-lhes a máscara e se tornam o que eram: ridículos. É isto o que se deve saber fazer, tanto com os Espíritos quanto com os homens.
Da crença cega e irrefletida na superioridade dos Espíritos que se comunicam, à confiança em suas palavras há apenas um passo, assim como acontece entre os homens. Se chegarem a inspirar essa confiança, alimentam-na por meio de sofismas e dos mais capciosos raciocínios, ante os quais frequentemente a gente baixa a cabeça. Os Espíritos grosseiros são menos perigosos: reconhecemo-los imediatamente e não inspiram mais que repugnância. Os mais temíveis, em seu mundo, como no nosso, são os Espíritos hipócritas: falam sempre com doçura; lisonjeiam as inclinações; são meigos, manhosos, pródigos em expressões carinhosas e em protestos de dedicação. É preciso ser realmente forte para resistir a semelhantes seduções.
Perguntareis: Onde está o perigo se os Espíritos são impalpáveis? O perigo está nos conselhos perniciosos que dão, aparentando benevolência, e nas atitudes ridículas, intempestivas ou funestas que nos levam a empreender. Já vimos alguns que fizeram certas pessoas andarem de região em região em busca de coisas fantásticas, com o risco de comprometer a saúde, a fortuna e a própria vida. Vimolos ditar, com a aparência de gravidade, as coisas mais burlescas e as máximas mais esquisitas.
Considerando-se que convém dar o exemplo ao lado da teoria, vamos relatar a história de uma pessoa nossa conhecida que esteve sob o domínio de uma fascinação semelhante.
O Sr. F..., moço instruído, de esmerada educação, de caráter suave e benevolente, mas um pouco fraco e indeciso, tornou-se médium psicógrafo com muita rapidez. Obsidiado pelo Espírito que dele se apoderou e lhe não dava repouso, escrevia incessantemente. Se uma pena ou um lápis lhe caía na mão, tomava-o num movimento convulsivo e enchia páginas e páginas em poucos minutos. Na falta de instrumento, simulava escrever com o dedo, em qualquer parte onde se encontrasse: na rua, nas paredes, nas portas etc. Entre outras coisas, esta lhe era ditada: “O homem é composto de três coisas: o homem, o mau Espírito e o bom Espírito. Todos vós tendes vosso mau Espírito, que está ligado ao corpo por laços materiais. Para expulsar o mau Espírito é necessário quebrar esses laços para o que é preciso enfraquecer o corpo. Quando este se acha suficientemente enfraquecido, o laço se parte e o mau Espírito vai embora, deixando apenas o bom.”
Em consequência desta bela teoria fizeram-no jejuar durante cinco dias consecutivos e velar à noite. Quando estava extenuado, eles lhe disseram: “Agora a coisa está feita e o laço partido. Teu mau Espírito se foi: ficamos apenas nós, em quem deves crer sem reservas.” E ele, persuadido de que seu mau Espírito havia fugido, acreditava cegamente em todas as suas palavras. A subjugação havia chegado a um ponto em que se lhe tivessem dito para atirar-se na água ou partir para os antípodas, ele o teria feito. Quando queriam obrigá-lo a fazer qualquer coisa que lhe repugnava, era arrastado por uma força invisível.
Damos uma pequena amostra de sua moral; a partir daí pode-se julgar o resto:
“Para ter melhores comunicações é necessário primeiro orar e jejuar durante vários dias, uns mais, outros menos. O jejum enfraquece os laços que existem entre o ego e um demônio particular ligado a cada ser humano. Esse demônio está ligado a cada pessoa pelo envoltório que une corpo e alma. Esse envoltório se enfraquece pela falta de alimento e permite que os Espíritos arranquem aquele demônio. Então Jesus desce ao coração da pessoa possessa, em lugar do mau Espírito. Esse estado de possuir Jesus em si é o único meio de atingir toda a verdade e muitas outras coisas.
“Quando a criatura conseguiu substituir o demônio por Jesus, ainda não possui a verdade. Para tê-la, é necessário crer. Deus não dá a verdade aos que duvidam: seria fazer algo de inútil e Deus nada faz em vão. Como a maioria dos médiuns novos duvidam do que dizem e escrevem, os bons Espíritos, a contragosto, por ordem formal de Deus, são obrigados a mentir e não têm outro jeito senão mentir até que o médium fique convencido; mas assim que ele acredita numa dessas mentiras, os Espíritos elevados se apressam em lhe desvelar os segredos do céu: a verdade inteira dissipa num instante essa nuvem de erros com que tinham sido obrigados a envolver o seu protegido.
“Chegado a esse ponto, nada mais tem o médium a temer. Os bons Espíritos jamais o deixarão. Contudo, ele não deve crer que tenha sempre a verdade e só a verdade. Seja para experimentá-lo, seja para puni-lo de faltas passadas, seja ainda para castigá-lo por perguntas egoísticas ou curiosas, os bons Espíritos lhe infligem correções físicas e morais, vindo atormentá-lo por ordem de Deus.
“Por vezes esses Espíritos elevados se lastimam da triste missão que desempenham: um pai persegue o filho durante semanas inteiras, um amigo ao seu amigo, tudo para a grande felicidade do médium. Então os Espíritos nobres dizem tolices, blasfêmias e até torpezas. É necessário que o médium resista e diga: Vós me tentais; sei que estou entre mãos caridosas de Espíritos ternos e afetuosos; que os maus já não podem aproximar-se de mim. Boas almas que me atormentais, não me impedireis de crer naquilo que me dissestes e que me haveis de dizer.
“Os católicos expelem mais facilmente o demônio[3] porque ele afastou-se um instante no dia do batismo. Os católicos são julgados pelo Cristo e os outros por Deus. É melhor ser julgado pelo Cristo. Os protestantes não têm razão em não admitir isto: é necessário que te tornes católico o quanto antes. Enquanto não fizeres isto, vai tomar água benta: este será o teu batismo.”
Mais tarde, depois de o jovem ter sido curado da obsessão de que fora vítima, por meios que relataremos, nós lhe pedimos que nos escrevesse essa história, fornecendo-nos também o texto dos preceitos que lhe haviam sido ditados. Transcrevendo-os, inscreveu sobre a cópia que nos enviou:
“Pergunto-me a mim mesmo se não ofendo a Deus transcrevendo semelhantes tolices.” A isto nós lhe respondemos: Não, o senhor não ofende a Deus; longe disso, pois agora reconhece a cilada em que caiu. Se lhe pedi uma cópia dessas máximas perversas, foi para marcá-las, como elas merecem; desmascarar os Espíritos hipócritas e alertar quem quer que receba coisa semelhante.
Um dia fá-lo-ão escrever: “Morrerás esta noite”. E ele responderá: Sinto-me muito aborrecido neste mundo; morramos, se assim deve ser; nada mais peço; que eu deixe de sofrer; isto é tudo o que desejo. ─ À noite adormece, crendo firmemente não mais despertar na Terra. No dia seguinte ficará muito surpreendido e mesmo desapontado por achar-se em seu leito habitual. Durante o dia escreve: “Agora que passaste pela prova da morte, que acreditaste firmemente que ias morrer, és para nós como um morto: podemos dizer-te toda a verdade; saberás tudo. Não há nada oculto para nós; nada mais haverá oculto para ti. Tu és uma reencarnação de Shakespeare.
Tua bíblia não é Shakespeare?”[4] No dia seguinte ele escreve:
─ Tu és Satã.
─ Esta também é forte demais, responde o Sr. F...
─ Não fizeste... não devoraste o Paraíso Perdido? Conheceste a Fille du diable de Béranger[5]; sabias que Satã havia de converter-se. Não acreditaste sempre; não o disseste; não o escreveste? Para converter-se, ele reencarna.
─ Concordo que eu tenha sido um anjo rebelde qualquer; mas o rei dos anjos...!
─ Sim, tu eras o anjo da intrepidez. Não és mau. Tens um coração orgulhoso; é
esse orgulho que é necessário abater. És o anjo do orgulho, que os homens chamam Satã. Que importa o nome! Foste o mau gênio da Terra. Eis-te humilhado... Os homens progredirão... Verás maravilhas. Tu enganaste os homens; enganaste a mulher na personificação de Eva, a mulher pecadora. Foi dito que Maria, a personificação da mulher sem manchas, esmagar-te-á a cabeça. Maria vai chegar.
Um instante depois escreve lenta e docemente:
─ Maria vem ver-te. Ela, que foi te procurar no fundo de teu reino de trevas, não te abandonará. Ergue-te, Satã. Deus está pronto para te estender os braços. Lê O Filho Pródigo. Adeus.
Num outro dia escreve:
─ Disse a serpente a Eva: Teus olhos abrir-se-ão e serás como os deuses. O demônio disse a Jesus: Dar-te-ei todo o poder. A ti eu digo, pois que acreditas em nossas palavras: nós te amamos; saberás tudo... Serás rei da Polônia.
─ Persevera nas boas disposições em que te colocamos. Esta lição levará a ciência espírita a dar um grande passo. Ver-se-á que os bons Espíritos podem dizer futilidades e mentiras para divertir-se à custa dos sábios. Disse Allan Kardec que um péssimo meio de reconhecer os Espíritos era fazê-los confessar Jesus em carne. Eu digo que só os bons Espíritos confessam Jesus em carne, e eu o confesso. Dize isto a Kardec.
Contudo, o Espírito teve pudor de não aconselhar o Sr. F... a imprimir essas belas máximas. Se o tivesse feito, ele certamente as teria publicado, o que seria uma atitude perversa, porque as teria distribuído como coisa séria.
Encheríamos um volume com todas as tolices que lhe foram ditadas e com as circunstâncias que se seguiram. Entre outras coisas fizeram-no desenhar um edifício de tais dimensões que as folhas de papel, coladas umas às outras, chegavam à altura de dois andares.
Observe-se que em tudo isto nada há de grosseiro ou banal. É uma série de raciocínios sofísticos encadeando-se com aparência de lógica. Nos meios empregados para enganá-lo há realmente uma arte infernal e, se nos tivesse sido possível relatar todas essas manifestações, ver-se-ia até que ponto era levada a astúcia e com que habilidade para isso eram empregadas palavras melífluas.
O Espírito que representava o papel principal nesse negócio dava o nome de François Dillois, quando não se cobria com a máscara de um nome respeitável. Mais tarde viemos a saber o que esse tal Dillois tinha sido em vida, e então, nada mais nos surpreendeu em sua linguagem. Mas no meio de todo esse aranzel era fácil reconhecer um bom Espírito que lutava, fazendo de quando em quando ouvir algumas boas palavras de desmentido dos absurdos do outro. Havia um combate evidente, mas a luta era desigual. O moço se achava de tal modo subjugado, que sobre ele a voz da razão era impotente. O Espírito de seu pai, notadamente, lhe fez escrever as seguintes palavras: “Sim, meu filho, coragem! Sofres uma rude prova, que será para o teu bem no futuro. Infelizmente, no momento, nada posso fazer para te libertar, e isto muito me custa. Vai ver Allan Kardec; escuta-o, e ele te salvará”.
Efetivamente, o Sr. F... veio procurar-me e, para começar, reconheci sem dificuldades a influência perniciosa sob que se achava, quer nas palavras, quer por certos sinais materiais que a experiência dá a conhecer, e que não nos podem enganar. Ele voltou várias vezes. Empreguei toda a minha força de vontade para chamar os bons Espíritos por seu intermédio; toda a minha retórica para lhe provar que era vítima de Espíritos detestáveis; que aquilo que escrevia não tinha senso, além de ser profundamente imoral. Para essa obra de caridade juntei-me a um colega, o Sr. T... e pouco a pouco conseguimos que escrevesse coisas sensatas. Ele tomou aversão àquele mau gênio, repelindo-o por vontade própria cada vez que tentava manifestar-se, e lentamente os bons Espíritos triunfaram.
Para modificar suas ideias, ele seguiu o conselho dos Espíritos, de entregar-se a um trabalho rude, que lhe não deixasse tempo para ouvir as sugestões más.
O próprio Dillois acabou confessando-se vencido e manifestou o desejo de progredir em nova existência. Confessou o mal que tinha tentado fazer e deu provas de arrependimento. A luta foi longa e penosa e ofereceu ao observador particularidades realmente curiosas. Hoje o Sr. F. sente-se livre e feliz. É como se tivesse deposto um fardo. Recuperou a alegria e agradece-nos o serviço que lhe prestamos.
Algumas pessoas deploram que haja Espíritos maus. Realmente, não é sem um certo desencanto que encontramos a perversidade neste mundo, onde gostaríamos de encontrar apenas seres perfeitos. Mas como assim é, nada podemos fazer: é preciso tomar as coisas como elas são. É a nossa própria inferioridade que faz com que pululem ao redor de nós os Espíritos imperfeitos. As coisas mudarão quando nos tornarmos melhores, como acontece nos mundos mais adiantados. Enquanto esperamos e ainda nos achamos nos subterrâneos do universo moral, somos advertidos: cabe a nós pormo-nos em guarda e não aceitar sem controle tudo quanto nos dizem. À medida que nos esclarece, a experiência deve tornar-nos circunspectos. Ver e compreender o mal é um meio de nos preservarmos contra ele. Não seria cem vezes mais perigoso ter ilusões quanto à natureza dos seres invisíveis que nos rodeiam? O mesmo se dá entre os homens, pois diariamente nos achamos expostos à malevolência e às sugestões pérfidas; são outras tantas provas, às quais a nossa consciência e a nossa razão nos oferecem os meios de resistir. Quanto mais difícil for a luta, maior será o mérito do sucesso. “Quem vence sem perigo triunfa sem glória.”
Esta história, que infelizmente não é a única de nosso conhecimento, levanta uma questão muito grave. Perguntar-se-á se não é para esse moço um aborrecimento ter sido médium. Não terá sido tal faculdade a causa da obsessão de que foi vítima?
Numa palavra, não será uma prova do perigo das comunicações espíritas?
Nossa resposta é simples e pedimos que a analisem cuidadosamente.
Não foram os médiuns que criaram os Espíritos. Eles sempre existiram e sempre exerceram sobre os homens uma influência salutar ou perniciosa. Para isto, pois, não é necessário ser médium. A faculdade medianímica não lhes é mais que um meio de manifestar-se; na falta dessa faculdade, agem de mil e uma outras maneiras. Se esse moço não fosse médium, nem por isso ter-se-ia subtraído à influência desse mau Espírito que sem dúvida lhe teria feito praticar extravagâncias, as quais teriam sido atribuídas a qualquer outra causa. Felizmente, para ele, permitindo a sua faculdade de médium que o Espírito se comunicasse por palavras, foi por essas palavras que o Espírito se traiu. Elas permitiram conhecer a causa de um mal que poderia ter tido consequências funestas para ele e que, como se viu, nós destruímos por meios muito simples e racionais, e sem exorcismos. A faculdade medianímica permitiu ver o inimigo, se assim nos podemos exprimir, face a face, e combatê-lo com suas próprias armas. Pode-se, pois, dizer, com absoluta certeza, que foi ela que o salvou. Quanto a nós, fomos apenas o médico que, tendo julgado a causa do mal, aplicamos o remédio.
Grave erro seria pensar que os Espíritos não exercem sua influência senão por comunicações verbais ou escritas. Essa influência é constante, e aqueles que não acreditam em Espíritos estão a ela expostos tanto quanto os outros, e até mais do que os outros, porque não têm, em contrapartida, o conhecimento.
A quantos atos, infelizmente, não somos levados e que teriam sido evitados se tivéssemos tido um meio de nos esclarecermos! Os mais incrédulos não se apercebem de que dizem uma verdade quando, em relação a um homem que se desencaminha, proclamam: É o seu mau gênio que o empurra para a perdição.
Regra geral: Quem quer que obtenha más comunicações espíritas, orais ou escritas, acha-se sob má influência. Essa influência se exerce sobre ele, quer escreva, quer não, isto é, seja ou não seja médium. A escrita fornece um meio de nos assegurarmos da natureza dos Espíritos que atuam sobre ele e de combatê-los, o que se faz com tanto maior sucesso quanto mais é conhecido o motivo que os leva a agir. Se ele for bastante cego para não compreender, outros podem abrir-lhe os olhos. Aliás, é necessário ser médium para escrever absurdos? Quem diz que entre todas essas elucubrações ridículas ou perigosas não haverá algumas cujos autores são impulsionados por Espíritos malévolos? Três quartas partes de nossas ações más e de nossos maus pensamentos são frutos dessa sugestão oculta.
Perguntar-se-á se teríamos feito cessar a obsessão, caso o Sr. F... não fosse médium! Certamente. Apenas os meios teriam sido diferentes, de acordo com as circunstâncias. Mas então os Espíritos não teriam podido encaminhá-lo para nós, como o fizeram, e provavelmente a causa teria sido desconsiderada, de vez que não haveria manifestação espírita ostensiva.
Toda criatura de boa vontade e simpática aos bons Espíritos pode sempre, com o auxílio deles, paralisar uma influência perniciosa. Dizemos que deve ser simpática aos bons Espíritos porque se ela própria atrai os inferiores, é evidente que seria o mesmo que caçar lobo com lobo.
Em resumo, o perigo não está propriamente no Espiritismo, pois ele pode, ao contrário, servir de controle, preservando-nos daquilo a que, malgrado nosso, estamos expostos. O perigo está na propensão de certos médiuns para, mui levianamente, se crerem instrumentos exclusivos de Espíritos superiores e numa espécie de fascinação que não os deixa compreender as tolices de que são intérpretes. Até mesmo aqueles que não são médiuns podem ser arrastados. Terminaremos este capítulo com as seguintes considerações:
1.º ─ Todo médium deve prevenir-se contra a irresistível empolgação que o leva a escrever sem cessar e até em momentos inoportunos; deve ser senhor de si e não escrever senão quando queira;
2.º ─ Não dominamos os Espíritos superiores, nem mesmo aqueles que, não sendo superiores, são bons e benevolentes, mas podemos dominar e domar os Espíritos inferiores. Aquele que não é senhor de si não o pode ser dos Espíritos;
3.º ─ Não há outro critério senão o bom-senso para discernir o valor dos Espíritos. Qualquer fórmula dada para esse fim pelos próprios Espíritos é absurda e não pode emanar de Espíritos superiores;
4.º ─ Os Espíritos, como os homens, são julgados por sua linguagem. Toda expressão, todo pensamento, todo conceito, toda teoria moral ou científica que choque o bom-senso ou não corresponda à ideia que fazemos de um Espírito puro e elevado, emana de um Espírito mais ou menos inferior;
5.º ─ Os Espíritos superiores têm sempre a mesma linguagem com a mesma pessoa e jamais se contradizem;
6.º ─ Os Espíritos superiores são sempre bons e benevolentes. Em sua linguagem jamais encontramos acrimônia, arrogância, aspereza, orgulho, gabolice ou tola presunção. Eles falam com simplicidade, aconselham e se retiram quando não são ouvidos;
7.º ─ Não devemos julgar os Espíritos por sua forma material nem pela correção da linguagem, mas sondar-lhes o íntimo, perscrutar suas palavras, pesá-las friamente, maduramente e sem prevenção. Qualquer fuga ao bom-senso, à razão e à sabedoria não pode deixar dúvidas quanto à sua origem, seja qual for o nome com que se mascare o Espírito;
8.º ─ Os Espíritos inferiores receiam os que lhes analisam as palavras, desmascaram as torpezas e não se deixam prender por seus sofismas. Às vezes eles tentam resistir, mas acabam sempre fugindo, quando percebem que são os mais fracos;
9.º ─ Aquele que em tudo age tendo em vista o bem, eleva-se acima das vaidades humanas, expele do coração o egoísmo, o orgulho, a inveja, o ciúme e o ódio e perdoa aos seus inimigos, pondo em prática esta máxima do Cristo: “Fazei aos outros o que quereis que se vos faça”; simpatiza com os bons Espíritos, ao passo que os maus o temem e dele se afastam.
Seguindo estes preceitos, garantimo-nos contra as más comunicações e contra o domínio dos Espíritos impuros. Aproveitando tudo quanto nos ensinam os Espíritos verdadeiramente superiores contribuiremos, cada um à sua maneira, para o progresso moral da Humanidade.
[1] Diríamos, em Português: “Um homem prevenido vale por dois”, o que exprime a mesma ideia. (N. do T.).
[2] Na Revista Espírita de dezembro de 1863, no artigo “Um caso de possessão ─ Srta. Júlia” Allan Kardec passa a admitir a possessão. Em “A Gênese” (1868), capítulo XIV, artigo “Obsessões e possessões”, itens 47 e 48, Kardec explica a possessão.
[3] O jovem médium era protestante
[4] O Sr. F... conhece perfeitamente a língua inglesa, cujas obras-primas aprecia no original.
[5] A Filha do Diabo, de Pierre Jean Béranger (1780-1857). notável e popular poeta lírico francês, que deixou numerosas canções escritas ao gosto da Revolução Francesa, das quais as mais apreciadas são “O Cinco de Maio” e “A Velha Bandeira”. Em 1885 foi-lhe erigida uma estátua em Paris. (N. do T.).
“Infelizmente, nada de consolador vos tenho a comunicar relativamente à moléstia que sofre o nosso soberano há cerca de dois anos. Todos os tratamentos e remédios que os profissionais têm prescrito durante esse tempo nenhum alívio têm trazido aos padecimentos que abatem o Rei Oscar. Segundo o conselho de seus médicos, o Sr. Klugenstiern, que desfruta de alguma reputação como magnetizador, foi recentemente chamado ao Castelo de Drottningholm, onde continua a residir a família real, a fim de aplicar ao augusto doente um tratamento periódico de magnetismo. Aqui se chega a acreditar que, por singularíssima coincidência, a sede da doença do Rei Oscar se acha localizada precisamente no ponto da cabeça chamado cerebelo, como, infelizmente, parece ser também o caso do Rei Frederico Guilherme IV, da Prússia.”
Perguntamos se há apenas vinte e cinco anos os médicos teriam ousado prescrever publicamente um tal meio, mesmo a um simples particular, quanto mais, com mais forte razão, a uma cabeça coroada. Nessa época, todas as Faculdades científicas e todos os jornais esbanjavam sarcasmos para denegrir o magnetismo e seus partidários. Como mudaram as coisas neste curto espaço de tempo! Não só já não riem do magnetismo, mas ei-lo oficialmente reconhecido como agente terapêutico. Que lição para os que se riem das ideias novas! Ela os fará enfim compreenderem a imprudência de manifestar-se contra as coisas que não entendem? Temos uma porção de livros contra o magnetismo, escritos por homens eminentes. Ora, tais livros ficarão como mancha indelével sobre sua inteligência. Não teriam feito melhor em se calar e esperar? Então, como hoje em relação ao Espiritismo, manifestavam sua opinião contrária os homens mais eminentes, os mais esclarecidos, os mais conscienciosos. Nada lhes abalava o cepticismo. A seus olhos o magnetismo não passava de uma palhaçada indigna de gente séria. Que ação poderia ter um agente oculto, movido pelo pensamento e pela vontade e do qual não se podia fazer uma análise química? Apressemo-nos em declarar que os médicos suecos não foram os únicos a voltar atrás nessa ideia estreita e que por toda parte, na França como no estrangeiro, a opinião mudou completamente, a tal respeito. Isto é tão verdadeiro que, quando acontece um fenômeno sem explicação, diz-se que é um efeito magnético. Acham, pois, no magnetismo, a razão de ser de uma porção de coisas que eram levadas à conta da imaginação, essa razão tão cômoda para os que não sabem o que dizer.
O magnetismo curará o Rei Oscar? É uma outra questão. Sem dúvida ele operou curas prodigiosas e inesperadas, mas tem os seus limites, como tudo o que está na Natureza. Além do mais, é necessário levar em conta esta circunstância: em geral a ele recorrem apenas in extremis e em desespero de causa, muitas vezes quando o mal já fez devastações irremediáveis ou quando foi agravado por medicação inadequada. É necessário que seja muito poderoso para triunfar de tais obstáculos!
Se a ação do fluido magnético é hoje um ponto geralmente admitido, o mesmo não se dá em relação às faculdades sonambúlicas, que ainda encontram muitos incrédulos no mundo oficial, sobretudo no que toca às questões médicas. Contudo, temos de convir que sobre esse ponto os preconceitos se enfraqueceram singularmente, mesmo entre os homens de Ciência. Temos a prova disso no grande número de médicos que fazem parte de todas as sociedades magnéticas, tanto na França quanto no estrangeiro. De tal modo os fatos se vulgarizaram, que foi preciso ceder à evidência e seguir a corrente, quisessem ou não quisessem. O mesmo se dará em breve com a lucidez intuitiva, bem como com o fluido magnético.
O Espiritismo e o magnetismo ligam-se por laços íntimos, como ciências solidárias. Entretanto, quem acreditaria? O Espiritismo encontra os seus mais encarniçados adversários entre certos magnetizadores que nem por isso contam com a oposição dos espíritas. Os Espíritos sempre preconizaram o magnetismo, quer como meio de cura, quer como causa primeira de uma porção de coisas; defendem a sua causa e vêm prestar-lhe apoio contra os seus inimigos. Os fenômenos espíritas têm aberto os olhos de muita gente, ao mesmo passo aliando essas pessoas ao magnetismo. Não é estranho ver os magnetizadores esquecerem tão depressa os preconceitos de que foram vítimas; negarem a existência de seus defensores e lançarem contra eles os dardos que outrora eram lançados sobre si próprios? Isto não é nobre nem digno de homens a quem a Natureza, desvendando os seus mais sublimes mistérios, mais que aos outros tira o direito de pronunciarem o famoso nec plus ultra[1].
Tudo prova, no rápido desenvolvimento do Espiritismo, que em breve também ele terá foros de cidadania. Enquanto espera, aplaude com toda a sua força a posição que acaba de conquistar o magnetismo, como um sinal inconteste do progresso das ideias.
[1] Nec plus ultra ou non plus ultra (além daqui, nada mais) era, segundo a fábula e em língua latina, a inscrição gravada por Hércules nos montes Calpe e Abila, que formavam as chamadas colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), e que se julgava serem os limites do mundo. A expressão é usada para significar um limite intransponível. (N. do T.).
Temos em mãos um livrinho intitulado Abrégé, en forme de catéchisme, do curso elementar de instrução cristã, para utilização no catecismo e nas escolas cristãs, escrito pelo abade Marotte, vigário geral do bispo de Verdun em 1853. Redigida sob a forma de perguntas e respostas, a obra contém todos os princípios da doutrina cristã sobre o dogma, a História Sagrada, os mandamentos de Deus, os sacramentos, etc. Num dos capítulos sobre o primeiro mandamento, onde são tratados os pecados contra a religião, e depois de haver falado da superstição, da magia e dos sortilégios, diz o seguinte:
“P. ─ O que é o magnetismo?
“R. ─ É uma influência recíproca que por vezes se opera nos indivíduos, segundo uma harmonia de relações, quer pela vontade ou pela imaginação, quer pela sensibilidade física, e cujos principais fenômenos são a sonolência, o sono, o sonambulismo e o estado convulsivo.
“P. ─ Quais os efeitos do magnetismo?
“R. ─ Ordinariamente, ao que se diz, o magnetismo produz dois efeitos principais: 1.º) Um estado de sonambulismo, no qual o magnetizado, privado inteiramente do uso dos sentidos, vê, ouve, fala e responde a todas as perguntas que lhe são dirigidas; 2.º) Uma inteligência e uma sabedoria que só existem na crise: ele conhece seu estado, os remédios convenientes às suas doenças, bem como o que fazem certas pessoas, mesmo distantes.
“P. ─ Em sã consciência, é lícito magnetizar ou deixar-se magnetizar?
“R. ─ 1º) Se, para a operação magnética, são empregados meios, ou se por ela são obtidos efeitos que supõem a intervenção diabólica, ela será uma obra supersticiosa e jamais deve ser permitida. 2º) O mesmo se dá quando as comunicações magnéticas contrariam a modéstia. 3º) Supondo que se tenha o cuidado de afastar da prática do magnetismo todo abuso, todo perigo para a fé ou para os costumes, todo pacto com o demônio, é duvidoso que a ele seja permitido recorrer como a um remédio natural e útil”
Lamentamos que o autor tenha feito essa ressalva final, em contradição com o que precede. Com efeito, por que não seria permitido o uso de uma coisa salutar, desde que se afastem todos os inconvenientes assinalados, em seu ponto de vista? É verdade que ele não exprime uma proibição formal, mas uma simples dúvida sobre a permissão. Seja como for, isto não se encontra num livro de ciência, dogmático, para o uso exclusivo dos teólogos, mas num livro elementar, para o uso dos catecismos, isto é, destinado à instrução religiosa das massas. Consequentemente, não é uma opinião pessoal, mas uma verdade consagrada e reconhecida que o magnetismo existe; que produz o sonambulismo; que o sonâmbulo goza de faculdades especiais, em cujo número está a de ver sem o concurso dos olhos, mesmo a distância; de ouvir sem o concurso dos ouvidos; de manifestar conhecimentos que não possui em estado normal; de indicar remédios que lhe são salutares.
A qualificação do autor tem aqui grande importância. Não se trata de um homem obscuro que fala ou de um simples padre que emite sua opinião: é um vigário geral que ensina.
Mais um revés e mais um aviso aos que julgam com muita precipitação.
“Ontem o Dr. F... voltava para casa depois de ter feito algumas visitas aos seus doentes. Numa dessas visitas haviam-lhe dado uma garrafa de excelente rum, importado diretamente da Jamaica. O médico esqueceu no carro a garrafa preciosa. Lembrando-se, um pouco mais tarde, foi procurá-la e disse ao chefe do estacionamento que havia deixado numa das carruagens uma garrafa de um veneno muito violento e o aconselhou a prevenir aos cocheiros que tivessem o maior cuidado em não fazer uso daquele líquido mortal.
“Quando o Dr. F... acabava de chegar de volta ao seu apartamento, vieram chamá-lo às pressas, pois três cocheiros do vizinho estacionamento sofriam dores horríveis nas entranhas. Foi com muita dificuldade que os convenceu de que tinham bebido excelente rum e que sua indelicadeza não poderia ter tido mais graves consequências que aquele castigo imediato aos culpados.”
1. ─ São Luís poderia dar-nos uma explicação fisiológica dessa transformação das propriedades de uma substância inofensiva? Sabemos que, pela ação magnética, pode ocorrer tal transformação, mas no caso vertente não houve emissão de fluido magnético: agiu apenas a imaginação e não a vontade.
─ Vosso raciocínio é muito justo relativamente à imaginação. Mas os Espíritos malévolos que induziram aqueles homens a cometer um ato indelicado, fazem passar no sangue, na matéria, um arrepio de medo que bem poderíeis chamar de arrepio magnético, que distende os nervos e produz um frio em certas regiões do corpo. Bem sabeis que todo frio na região abdominal pode produzir cólicas. É, pois, um meio de punição que diverte os Espíritos que provocaram a realização do furto e ao mesmo tempo que os faz rir à custa daqueles a quem fizeram pecar. Em todo caso, não ocorreria a morte. Não houve mais que uma simples lição para os culpados e divertimento para Espíritos levianos. Assim procedem, sempre que se lhes oferece uma oportunidade, que até procuram, para sua satisfação. Nós podemos evitar isso, eu lhes afirmo, elevando-nos a Deus por pensamentos menos materiais que os que ocupavam o espírito daqueles homens. Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também aqueles que o ouvem. Nesse caso, pensais estar tratando com um homem de espírito, que no entanto não passa de um ignorante. Pensai bem, e compreendereis o que eu vos digo. Os Espíritos superiores não são, entretanto, inimigos da alegria. Por vezes gostam de rir para se vos tornarem agradáveis. Mas cada coisa tem o seu momento oportuno.
OBSERVAÇÃO: Dizendo que no caso relatado não havia emissão de fluido magnético, talvez não fôssemos muito exatos. Aqui aventuramos uma suposição. Como o dissemos, sabe-se que transformações das propriedades da matéria se podem operar sob a ação do fluido magnético dirigido pelo pensamento. Ora, não é possível admitir que, pelo pensamento do médico que queria fazer crer na existência de um tóxico e dar aos ladrões as angústias do envenenamento tivesse havido à distância uma espécie de magnetização do líquido que assim teria adquirido novas propriedades, cuja ação teria sido corroborada pelo estado moral dos indivíduos, a quem o medo tornara impressionáveis? Esta teoria não destruiria a de São Luís sobre a intervenção dos Espíritos levianos em semelhantes circunstâncias. Sabemos que os Espíritos agem fisicamente por meios físicos; podem, pois, a fim de realizar certos desígnios, servir-se daqueles que eles mesmos provocam e que nós lhes fornecemos inadvertidamente.
“De todas as comunicações dos Espíritos que nos são fornecidas, verifica-se que eles exercem uma influência direta sobre as nossas ações, uns solicitando-nos para o bem, outros para o mal. São Luís acaba de nos dizer:
─ “Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também àqueles que o ouvem.”
“Disto se segue que aquilo que dizemos nem sempre vem de nós; que muitas vezes, como os médiuns falantes, não somos mais que intérpretes do pensamento de um Espírito estranho que se identificou com o nosso. Os fatos confirmam esta teoria e provam que muito frequentemente também os nossos atos são consequência desse pensamento que nos é sugerido. O homem que faz o mal cede, pois, a uma sugestão, quando bastante fraco para não resistir e quando faz ouvidos moucos à voz da consciência que tanto pode ser a sua própria quanto a de um bom Espírito que por seus avisos nele combate a influência de um Espírito malévolo.
“Segundo o senso comum, o homem tiraria de si mesmo todos os seus instintos. Estes proviriam de sua organização física, pela qual ele não é responsável, ou de sua própria natureza, na qual pode, a seus próprios olhos, procurar uma causa, alegando que não é culpado por ter sido criado assim. A Doutrina Espírita é evidentemente mais moral. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude. Dizendolhe que se ele faz o mal, cede a uma má sugestão estranha, deixa-lhe toda a responsabilidade, de vez que lhe reconhece o poder de resistir, coisa evidentemente mais fácil do que se tivesse que lutar contra a sua própria natureza. Assim, segundo a Doutrina Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre fechar os ouvidos à voz oculta que em seu foro íntimo o solicita para o mal, assim como pode fechá-los à voz material daquele que lhe fala. Ele o pode por vontade própria, pedindo a Deus a força necessária, para o que suplicará a assistência dos bons Espíritos. É isto o que Jesus nos ensina na sublime prece do Pater, quando nos manda dizer: Não nos deixeis sucumbir à tentação, mas livrai-nos do mal.”
Quando tomamos como pretexto de uma de nossas questões a pequena história que acabamos de relatar, não pensávamos no desenvolvimento que a mesma iria ter. Sentimo-nos duplamente feliz pelas belas palavras que ela mereceu de São Luís e de nosso eminente colega. Se não estivéssemos há muito tempo edificado quanto à alta capacidade deste último e quanto aos seus profundos conhecimentos em matéria de Espiritismo, seríamos tentado a crer que aquela teoria a ele se deve e que São Luís dele se serviu para completar o seu ensino. A isto somos levados a juntar as nossas próprias reflexões:
Esta teoria da causa excitadora de nossos atos, evidentemente ressalta de todo o ensino dado pelos Espíritos. Ela não só é de sublime moralidade, mas ainda revela o homem aos seus próprios olhos; mostra-o livre de abalar o jugo obsessor, assim como é livre para fechar a porta aos importunos: já não é qual máquina, agindo por um impulso independente de sua vontade; é um ser pensante que ouve, julga e escolhe livremente entre dois conselhos. Acrescentemos que, apesar disto, o homem absolutamente não é privado de iniciativa; ele a toma por movimento próprio, de vez que é um Espírito encarnado que conserva sob o envoltório corporal as qualidades e defeitos que tinha como Espírito. As faltas que cometemos têm, pois, a primeira fonte na imperfeição de nosso próprio Espírito, que ainda não atingiu a superioridade moral que terá um dia, mas que nem por isso deixa de ter o seu livrearbítrio. A vida corporal lhe é dada para purgar-se das imperfeições, pelas provas que nela sofre, e são precisamente essas imperfeições que o tornam mais fraco e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, os quais se aproveitam da circunstância para tentar fazê-lo sucumbir na luta que empreendeu. Se ele sair vencedor nessa luta, eleva-se; se fracassar, permanecerá o que era, nem melhor, nem pior. É uma prova a recomeçar, e isto pode se prolongar assim por muito tempo. Quanto mais se depurar, mais diminuirão seus pontos fracos e menos sujeito ficará aos que o solicitem para o mal; sua força moral crescerá proporcionalmente à sua elevação e dele afastar-se-ão os maus Espíritos.
Quem serão, pois, esses maus Espíritos? Serão aqueles que chamamos demônios? Não são os demônios na acepção vulgar do vocábulo, de vez que por demônios se compreende uma classe de seres criados para o mal e perpetuamente votados ao mal. Ora, dizem-nos os Espíritos que todos melhoram mais cedo ou mais tarde, conforme sua vontade, mas enquanto são imperfeitos, podem fazer o mal, assim como a água não purificada pode espalhar miasmas pútridos e mórbidos. Encarnados, depuram-se, desde que para tanto façam aquilo que é preciso; na condição de Espíritos, sofrem as consequências do que fizeram ou deixaram de fazer para seu melhoramento, consequências que eles sofrem também na Terra, pois as vicissitudes da vida são ao mesmo tempo expiação e prova.
Todos esses Espíritos, mais depurados ou menos depurados, constituem, quando encarnados, a espécie humana. Como a nossa Terra é um dos mundos menos adiantados, aqui se encontram mais Espíritos maus do que bons, razão pela qual aqui vemos tanta perversidade. Apliquemos pois todos os nossos esforços para não regressarmos a ela depois desta experiência, e para que mereçamos habitar um mundo melhor, numa dessas esferas privilegiadas onde o bem reina sem partilha e onde recordaremos como um mau sonho nossa passagem pela Terra.
ASSASSINATO DE CINCO CRIANÇAS POR OUTRA DE DOZE ANOS
PROBLEMA MORAL
Lemos na Gazette de Silésie:
“A 20 de outubro de 1857 escreveram-nos de Bolkenham que um crime apavorante acabara de ser cometido por um garoto de doze anos. Domingo último, dia 25[1], três filhos do Sr. Hubner, ferreiro, e dois do Sr. Fritche, sapateiro, brincavam no jardim deste último. O jovem H..., conhecido por seu mau caráter, a eles se reuniu e os convenceu a entrarem num baú que estava guardado numa casinha, no jardim, e que era utilizado pelo sapateiro para levar as suas mercadorias à feira. As cinco crianças dificilmente nele podiam caber, mas, aos risos, se apinharam no baú, uns sobre os outros. Assim que entraram, o monstro fechou o baú, sentou-se sobre ele e ficou durante três quartos de hora a escutar, primeiro os seus gritos, depois os seus gemidos.
“Quando finalmente cessaram os seus estertores e que ele as julgou mortas, abriu o baú. As crianças ainda respiravam. Tornou a fechá-lo, aferrolhou-o e foi empinar papagaio. Mas ao sair do jardim foi visto por uma menina. Compreende-se a ansiedade dos pais quando constataram o desaparecimento das crianças e o seu desespero quando, depois de longa procura, as encontraram no baú. Uma das crianças ainda vivia, mas não tardou a expirar. Denunciado pela menina que o vira sair do jardim, o jovem H... confessou seu crime com o maior sangue-frio e sem manifestar o menor arrependimento. As cinco vítimas, um garoto e quatro meninas de quatro a nove anos, foram hoje sepultadas.”
OBSERVAÇÃO: O Espírito interrogado é o da irmã do médium, que desencarnou há doze anos e sempre mostrou superioridade como Espírito.
1. ─ Você ouviu a leitura que acabamos de fazer, do assassinato de cinco crianças, na Silésia, por outra de doze anos?
─ Sim, minha pena ainda exige que escute as abominações da Terra.
2. ─ Que motivos teriam impelido um menino daquela idade a cometer uma ação tão atroz e com tamanho sangue-frio?
─ A maldade não tem idade. Ela é natural numa criança e raciocinada no homem adulto.
3. ─ Sua existência numa criança, sem raciocínio, não denotará a encarnação de um Espírito muito inferior?
─ Ela vem diretamente da perversidade do coração: é seu próprio Espírito que o domina e o impele à perversidade.
4. ─ Qual poderia ter sido a existência anterior de tal Espírito?
─ Horrível.
5. ─ Em sua anterior existência, pertenceria ele à Terra ou a um mundo ainda inferior?
─ Não sei bem, mas deveria pertencer a um mundo bem mais atrasado que a Terra. Ele ousou vir para a Terra. Será duplamente punido.
6. ─ Nessa idade teria o menino suficiente consciência do crime que cometeu? Caber-lhe-á responsabilidade como Espírito?
─ Ele tinha a idade da consciência. Isto basta.
7. ─ De vez que esse Espírito ousou vir à Terra, para ele muito elevada, pode ser constrangido a regressar a um mundo em relação com a sua natureza?
─ Sua punição é justamente retrogradar; é o próprio inferno. Eis a punição de Lúcifer, do homem espiritual que se rebaixou ao nível da matéria; é o véu que doravante lhe oculta os dons de Deus e sua divina proteção. Esforçai-vos, pois, na reconquista desses bens perdidos e tereis reconquistado o paraíso que o Cristo veio abrir para vós. É a presunção, o orgulho do homem que queria conquistar aquilo que só Deus podia ter.
OBSERVAÇÃO: Uma observação é feita a propósito do verbo ousar, empregado pelo Espírito. Citam-se exemplos de Espíritos que se acharam em mundos para eles muito elevados e que foram obrigados a regressar a um outro mais em harmonia com sua própria natureza. A tal respeito alguém fez notar ter sido dito que os Espíritos não podem retrogradar. A isto respondemos que, realmente, os Espíritos não podem retrogradar, no sentido de que não é possível perder aquilo que foi adquirido em conhecimento e em moralidade; podem, entretanto, decair em posição. Um homem que usurpa uma posição superior à que lhe conferem sua capacidade e sua fortuna pode ser constrangido a abandoná-la e voltar à sua posição natural. Ora, não é a isto que se pode chamar decair, pois que ele apenas volta à sua esfera, de onde havia saído por ambição e por orgulho. O mesmo se dá em relação aos Espíritos que querem subir muito rapidamente para mundos onde se acharão deslocados.
Espíritos superiores também podem encarnar em mundos inferiores, onde vão cumprir missões de progresso. A isto não se pode chamar de retrogradação, pois é apenas devotamento.
8. ─ Em que é a Terra superior ao mundo ao qual pertencia o Espírito de quem acabamos de falar?
─ Ali há uma fraca ideia de justiça. É um começo de progresso.
9. ─ Depreende-se disto que em mundos inferiores à Terra não há nenhuma ideia de justiça?
─ Não. Os homens ali vivem apenas para si e não têm por móvel senão a satisfação de suas paixões e de seus instintos.
10. ─ Qual será a posição desse Espírito numa nova existência?
─ Se o arrependimento vier a apagar, senão totalmente, pelo menos em parte, a enormidade de suas faltas, então ficará na Terra; se, ao contrário, persistir no que chamais de impenitência final, irá para um lugar onde o homem se encontra no nível dos animais.
11. ─ Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?
─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.
[1] Há um erro de data, provavelmente de revisão. O dia 25 de outubro de 1857 foi mesmo domingo, mas o fato não poderia ter sido comunicado no dia 20. Assim, a carta deve ser datada de 28 ou 29, mais provavelmente de 29, e não como está no original. (N. do T.).
Temos um caso bem mais estranho que aquele para vos oferecer em nova perspectiva: já o vemos apontar no horizonte, no horizonte do Sul. Mas onde pretende chegar? Alguém escreveu que os ferros já estão em brasa, mas isto não nos basta. Trata-se do seguinte:
Um parisiense leu num jornal que se achava à venda um velho castelo nos Pireneus; comprou-o e nos primeiros dias gloriosos da bela estação lá foi instalar-se com seus amigos.
Jantaram alegremente e depois, ainda mais alegres, foram deitar-se. Restava passar a noite; a noite num velho castelo, perdido na montanha. No dia seguinte, todos os convidados se levantaram espantados, com cara de assombro; foram procurar seu hospedeiro e lhe fizeram a seguinte pergunta, com um ar lúgubre e misterioso:
─ Você não viu nada esta noite?
O proprietário não respondeu, de tão espantado que também se achava. Limitou-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça.
Então trocaram em voz baixa as impressões da noite: um ouvira vozes lamentosas, outro, ruído de correntes; este viu movimentos nas tapeçarias, aquele uma arca que o saudava; muitos sentiram que morcegos gigantescos pousavam sobre seus peitos. É um castelo da Dama Branca. Os criados declararam que, como ao rendeiro Dickson, os fantasmas lhes haviam puxado os pés. Ainda mais! As camas passeavam, as campainhas tocavam sozinhas e palavras fulgurantes sulcavam as velhas lareiras.
Decididamente, o castelo era inabitável. Os mais amedrontados debandaram imediatamente. Os mais corajosos enfrentaram a prova de uma segunda noite.
Até meia-noite tudo correu bem, mas desde que o relógio da torre do Norte lançou no espaço as doze badaladas, recomeçaram os ruídos e as aparições. De todos os lados surgiam fantasmas, monstros de olhos de fogo e dentes de crocodilo, agitando asas peludas. Aquilo tudo grita, salta, range os dentes e faz um sabbat dos infernos.
Impossível resistir a essa segunda experiência. Desta feita todos deixam o castelo e hoje o proprietário quer intentar uma ação de indenização por perdas e danos.
Que estranho processo não será este! E que triunfo para o grande evocador de Espíritos que é o Sr. Home! Poderá ser ele considerado perito neste assunto? Seja como for, e desde que nada há de novo sob o sol da justiça, esse processo, que julgarão ser uma novidade, não passa de uma velharia, pois existe um caso ainda não solucionado que, por ter a idade de duzentos e sessenta e três anos, não deixa de ser menos interessante.
É o caso que, no ano da graça de 1595, perante o senescal de Guyenne, um locatário chamado Jean Latapy moveu uma ação contra o proprietário, Robert de Vigne. Alegava Jean Latapy que a casa que de Vigne lhe havia alugado, uma velha casa de Bordéus, era inabitável e que ele fora obrigado a deixá-la. À vista disso pedia que a justiça determinasse a rescisão do contrato.
Sob que fundamento? Latapy os apresenta muito ingenuamente em suas conclusões:
“Porque havia encontrado a casa infestada de Espíritos que se apresentavam tanto sob a forma de crianças quanto sob outras formas, terríveis a apavorantes. Eles importunavam e inquietavam as pessoas; desarrumavam os móveis; faziam ruídos e algazarra por todos os lados e com força e violência derrubavam do leito aqueles que nele repousavam.”
O proprietário de Vigne opôs-se energicamente à rescisão do contrato. Respondia ele a Latapy: “Descreveis minha casa injustamente; é provável que tenhais apenas aquilo que mereceis e em vez de me fazer reproches, deveríeis, ao contrário, agradecer-me, pois que vos faço ganhar o Paraíso.”
Eis como o advogado do proprietário fundamentou esta singular proposição: “Se os Espíritos vêm atormentar Latapy e afligi-lo, com a permissão de Deus, deve ele suportar a justa pena e dizer como São Jerônimo: Quidquid patimur nostris peccatis meremur[1], e não atacar o proprietário, que é absolutamente inocente. Deveria antes ser grato àquele que assim lhe forneceu a maneira de, neste mundo, salvar-se das punições que, por seu demérito, o aguardam no outro.”
Para ser coerente, o advogado deveria ter pedido que Latapy pagasse uma certa indenização a de Vigne, por serviços prestados. Um lugar no Paraíso não vale o seu peso em ouro? Mas o generoso proprietário contentava-se com a denegação do pedido da ação, por isso, antes de intentá-la, Latapy deveria ter começado a combater e expulsar os Espíritos pelos meios que Deus e a Natureza nos deram.
“Por que não usava o loureiro? exclamava o advogado do proprietário. Por que não usava arruda ou o sal crepitando nas chamas e nos carvões acesos; penas de poupa ou uma composição de ervas, a chamada aerolus vetulus; com ruibarbo; com vinho branco; com sais pendurados à porta de entrada; couro de testa de hiena; fel de cachorro, que dizem ter uma virtude maravilhosa para expulsar os demônios? Por que não usava a erva Moly, que Mercúrio deu a Ulisses e da qual este se serviu como antídoto contra os encantos de Circe?...”
É evidente que o locatário Latapy tinha faltado a todos os seus deveres, não atirando sal crepitante às chamas, não fazendo uso do fel de cachorro e de algumas penas de poupa. Mas como teria sido obrigado a procurar também couro de testa de hiena, o senescal de Bordéus achou que esse material não era bastante comum para que Latapy não fosse desculpado por deixar em paz as hienas e determinou, belo e formoso, a rescisão do contrato de arrendamento.
Vedes em tudo isto que nem o proprietário, nem o locatário, nem os juízes põem em dúvida a existência e a algazarra dos Espíritos. Pareceria, pois, que há mais de dois séculos os homens seriam mais crédulos do que hoje, mas nós os ultrapassamos em credulidade, o que não é de estranhar-se: é mesmo necessário que a civilização e o progresso se revelem em algum lugar.”
Abstração feita dos acessórios com que a enfeitou o narrador, esta questão não deixa de ter seu lado embaraçoso, porque a lei não previu o caso em que Espíritos batedores tornariam uma casa inabitável. É um vício redibitório? Em nossa opinião há prós e contras, de acordo com as circunstâncias. Inicialmente, é necessário averiguar se o barulho é real ou se foi simulado com uma intenção qualquer, questão prévia e de boa-fé que prejulga as demais. Admitindo os fatos como reais, é preciso saber se são de natureza a perturbar o repouso. Se, por exemplo, se passassem coisas como em Bergzabern[2], é evidente que a posição não seria sustentável. O velho Sänger suporta aquilo tudo porque é em sua própria casa e não tem remédio, mas de modo algum um estranho se acomodaria numa habitação onde, constantemente, se ouve barulho ensurdecedor; onde os móveis são revirados; onde as portas e janelas se abrem e se fecham a torto e a direito; onde mãos invisíveis jogam objetos na cabeça das pessoas, etc. Parece que, em semelhantes condições, há lugar para reclamação e que, com justiça, um tal contrato não deveria ter validade, se os fatos tivessem sido dissimulados. Assim, de modo geral, o processo de 1595 parece ter sido bem julgado, mas resta esclarecer importante questão subsidiária, que só a ciência espírita poderia levantar e resolver.
Sabemos que as manifestações espontâneas dos Espíritos podem ocorrer sem objetivo determinado e sem que se dirijam contra esta ou aquela pessoa; que, efetivamente, há lugares assombrados por Espíritos batedores que parece aí fixaram domicílio e contra os quais todas as conjurações empregadas são ineficazes. Digamos, entre parêntesis, que existem meios eficazes de nos desembaraçarmos deles, mas que tais meios não consistem na intervenção de pessoas conhecidas por produzirem à vontade semelhantes fenômenos, porque os Espíritos que se acham às suas ordens são da mesma natureza daqueles que devem ser expulsos. Longe de afastá-los, sua presença apenas poderia atrair outros. Mas também sabemos que, numa porção de casos, tais manifestações se dirigem contra certos indivíduos, como em Bergzabern. Os fatos provaram que a família, principalmente a pequena Filipina, era seu objetivo direto, de tal modo que estamos convencidos de que se a família deixasse aquela casa, os novos moradores nada teriam que temer. Aquela gente levaria suas tribulações para seu novo domicílio.
A questão a examinar, do ponto de vista legal, é se as manifestações ocorriam antes ou somente depois da entrada do novo proprietário. Neste último caso seria evidente que este é quem teria levado os Espíritos perturbadores e, pois, a ele incumbiria a inteira responsabilidade; se, ao contrário, as perturbações ocorriam anteriormente e persistem, é que estas prender-se-iam ao local e, assim, a responsabilidade caberia ao vendedor.
O advogado do proprietário raciocinava com a primeira hipótese e seu argumento não era baldo de lógica. Resta saber se o locatário havia levado consigo esses hóspedes importunos, coisa que o processo não apurou.
Quanto ao processo ora pendente, cremos que o meio de fazer boa justiça seria fazer as constatações de que acabamos de falar. Se estas provarem a anterioridade das manifestações e que o fato foi dissimulado pelo vendedor, estamos diante do caso de um comprador enganado quanto à qualidade do objeto da transação. Ora, manter a venda em semelhantes condições talvez seja prejudicar o adquirente pela depreciação do imóvel. É, pelo menos, causar-lhe um prejuízo considerável, constrangendo-o a guardar uma coisa de que não pode fazer uso, assim como um cavalo cego, que se houvesse adquirido como são.
Seja como for, a causa em lide deve ter consequências graves. Quer seja rescindido o contrato, quer seja mantido por falta de provas suficientes, será reconhecida a existência do fato das manifestações. Rejeitar a propositura sob a alegação de que se fundamenta em motivos ridículos é expor-se a receber, mais cedo ou mais tarde, um desmentido da experiência, como tantas vezes aconteceu com as mais eminentes figuras, por se haverem apressado em negar aquilo que não entendiam. Se nossos pais podem ser censurados por excessiva credulidade, nossos descendentes sem dúvida nos reprocharão por havermos pecado pelo excesso contrário.
Enquanto esperamos, eis o que se passa aos nossos olhos e que até chegamos a constatar. Referimo-nos à crônica do La Patrie, de 4 de setembro de 1858:
“A Rua du Bac está em polvorosa. Lá ainda ocorrem diabruras. A casa de número 65 consta de dois blocos. O que dá para a rua tem duas escadarias que se confrontam.
“Há uma semana, em diversas horas do dia e da noite, em todos os andares do prédio, as campainhas soam e se agitam violentamente. Quando vão abrir, não ninguém à entrada.
“A princípio pensaram que fosse brincadeira e cada um se pôs a observar, para ver se descobria o seu autor.
“Um dos inquilinos teve o cuidado de despolir um vidro de sua cozinha e ficou de atalaia. Enquanto vigiava com a maior atenção, sua campainha foi sacudida. Ele pôs o olho no postigo, ninguém! Correu à escadaria, ninguém! Voltou para casa e tirou o cordão da campainha. Uma hora depois, quando se sentia triunfante, a campainha começou a tocar galhardamente. Ele a vê tocar e fica mudo e consternado.
“Noutras portas os cordões das campainhas ficam torcidos e enrodilhados, como serpentes feridas. Procura-se uma explicação e chama-se a polícia.“Mas que mistério é esse? Ainda o ignoram.”
[1] Tudo aquilo a que estamos expostos merecemos por nossos pecados. (N. do T.).
[2] Vide os números 5, 6 e 7 da REVISTA ESPÍRITA
“A pequena cidade de Lichtfield, no Kentucky, conta numerosos adeptos da doutrina do espiritualismo magnético. Um fato incrível, que acaba de se passar ali, por certo não dará pequena contribuição para o aumento dos partidários dessa religião nova.
“Há alguns dias a Sra. Park foi subitamente atingida por um mal que de início os médicos declararam não poder debelar. A paciente era vítima de alucinações e uma terrível febre a atormentava constantemente. A Srta. Harris passava todas as noites em claro. No quarto dia de sua doença, a Sra. Park sentou-se na cama, pediu água e começou a conversar com a irmã. Circunstância singular é que a febre havia desaparecido de repente; o pulso tornara-se regular e ela falava com a maior facilidade. Toda feliz, a Srta. Harris pensou que a irmã estivesse fora de perigo.
“Depois de haver falado de seu marido e dos filhos, a Sra. Park aproximou-se ainda mais da irmã e lhe disse:
“Pobre irmã, vou deixar-te. Sinto que a morte se aproxima. Mas, pelo menos a minha partida deste mundo servirá para te converter. Morrerei dentro de uma hora e serei enterrada amanhã. Evita com muito cuidado acompanhar meu corpo ao cemitério, porque meu Espírito, revestido de seus despojos mortais, aparecer-te-á antes que o ataúde seja coberto de terra. Então tu acreditarás no espiritualismo.”
“Acabando de pronunciar estas palavras, a doente deitou-se tranquilamente. Mas, uma hora depois, como havia anunciado, a Srta. Harris teve a dor de verificar que o coração de sua irmã havia deixado de pulsar.
“Vivamente emocionada pela espantosa coincidência entre este acontecimento e as palavras proféticas da defunta, resolveu seguir as ordens que lhe haviam sido dadas e no dia seguinte ficou em casa sozinha, enquanto todos se haviam encaminhado para o cemitério.
“Depois de haver fechado os postigos da câmara mortuária, sentou-se numa poltrona, perto da cama de onde acabara de sair o corpo de sua irmã.
“Apenas decorridos cinco minutos ─ contou mais tarde a Srta. Harris ─ vi como que uma nuvem branca destacar-se no fundo do quarto. Pouco a pouco a forma se desenhou melhor: era a de uma mulher, meio velada; aproximou-se lentamente de mim; percebi o ruído de passos leves no soalho; por fim meus olhos admirados se acharam em presença de minha irmã...
“Seu rosto, longe de possuir essa palidez mate que nos mortos impressiona tão penosamente, estava radiante. Suas mãos, cuja pressão bem senti sobre as minhas, tinham conservado todo o calor da vida. Fui como que transportada a uma esfera nova, por essa aparição maravilhosa. Supondo já pertencer ao mundo dos Espíritos, apalpei o meu peito e a minha cabeça, para me certificar de minha existência. Mas nada de penoso havia nesse êxtase.
“Depois de ter permanecido assim em minha frente durante alguns minutos, sorridente mas silenciosa, minha irmã pareceu fazer um violento esforço e me disse com voz suave:
“─ Já é tempo de eu partir. Meu anjo condutor espera-me. Adeus! Cumpri minha promessa. Crê e espera!”
“Acrescenta o Patrie: “O jornal de onde extraímos a notícia maravilhosa não nos diz se a Srta. Harris se converteu à doutrina espiritualista. Entretanto, nós o admitimos, porque muita gente se deixaria convencer por muito menos.” Acrescentamos, por nossa própria conta, que o relato nada tem que deva causar espanto àqueles que estudaram os efeitos e as causas dos fenômenos espíritas. Os fatos autênticos deste gênero são bastante numerosos e têm sua explicação no que dissemos a esse respeito em várias circunstâncias. Teremos oportunidade de narrar outros, vindos de menos longe do que este.
ALLAN KARDEC[1]
[1] Paris – Tipografia de Cosson & Cia., Rua do Four-Saint-Germain, 43.