Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Junho

Pedimos ao leitor que se reporte ao primeiro artigo que publicamos sobre o assunto. Este é a sua continuação e seria pouco inteligível se não se tivesse em mente aquele começo.

Como dissemos, as explicações que demos para as manifestações físicas fundam-se na observação dos fatos e na sua dedução lógica: concluímos de acordo com o que vimos. Como, porém, se processam na matéria eterizada as modificações que a tornam perceptível e tangível?

Para começar, deixaremos falarem os Espíritos a quem interrogamos a respeito, juntando depois os nossos comentários. As respostas que se seguem foram dadas pelo Espírito de São Luís e estão em concordância com o que anteriormente nos havia sido dito por outros Espíritos.

1. ─ Como pode aparecer um Espírito com a solidez de um corpo vivo?
Ele combina uma parte do fluido universal com o fluido que se desprende do médium apto para tal efeito. Esse fluido toma a forma que o Espírito deseja, mas geralmente essa forma é impalpável.

2. ─ Qual é a natureza desse fluido? ─ Fluido. Isto diz tudo.

3. ─ Esse fluido é material? ─ Semimaterial.

4. ─ É esse fluido que compõe o perispírito? ─ Sim,é a ligação do Espírito à matéria.

5. ─ É esse fluido que dá a vida, o princípio vital? ─ Sempre ele. Eu disse ligação.

6. ─ Esse fluido é uma emanação da Divindade? ─ Não.

7. ─ É uma criação da Divindade?
─ Sim. Tudo é criado, exceto o próprio Deus.

8. ─ O fluido universal tem alguma relação com o fluido elétrico, cujos efeitos conhecemos?
─ Sim. É o seu elemento.

9. ─ A substância etérea que existe entre os planetas é o fluido universal em questão?
─ Ele envolve os mundos. Sem o princípio vital, nada viveria. Se uma pessoa subisse além do envoltório fluídico dos globos, pereceria, porque seu envoltório fluídico dele se retiraria, para juntar-se à massa. Esse fluido vos anima. É ele que respirais.

10. ─ Esse fluido é o mesmo em todos os globos?
─ É o mesmo princípio, mais ou menos eterizado, conforme a natureza dos mundos. O vosso é um dos mais materiais.

11. ─ Desde que é esse fluido que compõe o perispírito, deve haver uma espécie de estado de condensação que, até certo ponto, o aproxima da matéria.
─ Sim, até um certo ponto, pois não tem as suas propriedades. Ele é mais ou menos condensado, conforme os mundos.

12. ─ São os Espíritos solidificados que levantam a mesa?
─ Esta pergunta ainda não conduzirá ao ponto que desejais. Quando uma mesa se move debaixo de vossas mãos, o Espírito evocado pelo vosso Espírito vai retirar do fluido universal aquilo com que há de animar essa mesa com uma vida factícia. Os Espíritos que produzem esse tipo de efeitos são sempre Espíritos inferiores ainda não inteiramente desprendidos de seu fluido ou perispírito. A mesa, assim preparada à sua vontade (à vontade dos Espíritos batedores), o Espírito a atrai e a movimenta, sob a influência de seu próprio fluido, desprendido por sua vontade. Quando a massa que quer levantar ou mover lhe é demasiado pesada, ele chama em seu auxílio Espíritos que se acham em condições idênticas às dele. Penso que me expliquei com bastante clareza para ser compreendido.


13. ─ Os Espíritos chamados em seu auxílio são seus inferiores?
─ Quase sempre são iguais. Frequentemente vêm por si mesmos.

14. ─ Compreendemos que os Espíritos superiores não se ocupem de coisas que lhes são inferiores. Mas perguntamos se, pelo fato de serem desmaterializados, teriam o poder de fazê-lo, caso tivessem vontade?
─ Eles têm a força moral, como os outros têm a força física. Quando necessitam dessa força, servem-se daqueles que a possuem. Não vos foi dito que eles se servem dos Espíritos inferiores como vos servis dos carregadores?


15. ─ De onde vem o poder especial do Sr. Home? ─ De sua organização.

16. ─ Que há nela de particular?
─ A pergunta não é precisa.

17. ─ Perguntamos se se trata de sua organização física ou moral. ─ Eu disse organização.

18. ─ Entre as pessoas presentes há alguém que possa ter a mesma faculdade do Sr. Home?
─ Têm-na em certo grau. Não foi um de vós que fez mover a mesa?

19. ─ Quando uma pessoa faz mover um objeto, é sempre com o auxílio de um Espírito estranho ou tal ação pode ser exclusiva do médium?
─ Algumas vezes o Espírito do médium pode agir sozinho. Na maioria das vezes, entretanto, é auxiliado pelos Espíritos evocados. Isto é fácil de reconhecer.

20. ─ Como é que os Espíritos aparecem com a indumentária que usavam na Terra?
─ Muitas vezes ela tem apenas a aparência. Aliás, para quantos fenômenos entre vós não tendes solução! Como é que o vento, que é impalpável, arranca e quebra árvores, que são matéria sólida?

21. ─ Que entendeis ao dizer que sua indumentária “é apenas uma aparência?” ─ Ao tocá-la, nada se encontra.

22. ─ Se bem compreendemos o que dissestes, o princípio vital reside no fluido universal; dele o Espírito extrai o envoltório semimaterial que constitui o seu perispírito e é por meio desse fluido que atua sobre a matéria inerte. É isso mesmo? ─ Sim, isto é, ele anima a matéria por uma espécie de vida factícia; a matéria se anima pela vida animal. A mesa que se move sob as vossas mãos vive e sofre como o animal; obedece por si mesma ao ser inteligente. Não é ele que a dirige, como o homem faz com um fardo. Quando a mesa se ergue, não é o Espírito que a levanta. É a mesa animada que obedece ao Espírito inteligente.


23. ─ Desde que o fluido universal é a fonte da vida, será ao mesmo tempo a fonte da inteligência?
─ Não. O fluido apenas anima a matéria.

Esta teoria das manifestações físicas oferece vários pontos de contato com a que demos, embora difira em certos aspectos. De uma e da outra ressalta um ponto capital: o fluido universal, no qual reside o princípio da vida, é o agente principal dessas manifestações e esse agente recebe o impulso do Espírito, quer encarnado, quer errante. Esse fluido condensado constitui o perispírito ou envoltório semimaterial do Espírito. Quando encarnado, o perispírito está unido à matéria do corpo; quando em estado de erraticidade, fica livre.

Ora, duas questões aqui se apresentam: a da aparição dos Espíritos e a do movimento que imprimem aos corpos sólidos.

Quanto ao primeiro, diremos que, no estado normal, a matéria eterizada do perispírito escapa à percepção dos nossos órgãos; só a alma pode vê-la, quer em sonhos, quer em estado sonambúlico ou, ainda, meio adormecida; numa palavra, sempre que houver suspensão total ou parcial da atividade dos sentidos. Quando o Espírito está encarnado, a substância do perispírito acha-se mais ou menos intimamente ligada à matéria do corpo; mais ou menos aderente, se assim podemos dizer. Em algumas pessoas há uma como que emanação desse fluido, em consequência de sua organização e é isto o que constitui propriamente os médiuns de influências físicas. Emanado do corpo, esse fluido se combina, segundo leis que ainda nos são desconhecidas, com aquele que forma o envoltório semimaterial de um Espírito estranho. Disso resulta certa modificação, uma espécie de reação molecular que lhe altera momentaneamente as propriedades, a ponto de torná-lo visível e, em certos casos, tangível. Esse efeito pode produzir-se com ou sem o concurso da vontade do médium, e é isto o que distingue os médiuns naturais dos médiuns facultativos. A emissão do fluido pode ser mais ou menos abundante: daí os médiuns mais ou menos potentes. Ela não é permanente, o que explica a intermitência daquele poder. Enfim, se levarmos em conta o grau de afinidade que pode existir entre o fluido do médium e o de tal ou qual Espírito, compreender-se-á que sua ação possa exercer-se sobre uns e não sobre outros.


Aquilo que acabamos de dizer evidentemente se aplica também à força mediúnica, no que concerne ao movimento dos corpos sólidos. Resta saber como se opera esse movimento.

Conforme as respostas acima, a questão se apresenta sob um aspecto inteiramente novo. Assim, quando um objeto é posto em movimento, arrebatado ou lançado no ar, não será o Espírito que o pega, o empurra ou o levanta, como nós o faríamos com a mão: ele, por assim dizer, o satura com o seu fluido, pela combinação com o do médium e, assim momentaneamente vivificado, o objeto age como se fosse um ser vivo, com a diferença de que, não tendo vontade própria, segue o impulso da vontade do Espírito. Essa vontade tanto pode ser do Espírito do médium quanto de um Espírito estranho e, algumas vezes, de ambos, agindo de acordo, conforme sejam ou não simpáticos. A simpatia ou antipatia que pode existir entre o médium e os Espíritos que se ocupam desses efeitos materiais explica por que nem todos são aptos a provocá-los.


Considerando-se que o fluido vital, emitido de alguma maneira pelo Espírito, dá uma vida factícia e momentânea aos corpos inertes e que outra coisa não é o perispírito senão o próprio fluido vital, segue-se que, quando encarnado, é o Espírito que dá vida ao corpo, por meio de seu perispírito: fica-lhe unido enquanto a organização o permite, e quando se retira, o corpo morre.

Agora se, em lugar da mesa, a madeira for talhada em estátua, e se agirmos sobre essa do mesmo modo que sobre a mesa, teremos uma estátua que se desloca do lugar, que responderá por movimentos e por pancadas; numa palavra, uma estátua momentaneamente animada de uma vida artificial. Que luz lança essa teoria sobre uma porção de fenômenos até aqui não explicados! Quantas alegorias e efeitos maravilhosos ela explica! É toda uma filosofia.

O ESPÍRITO BATEDOR DE BERGZABERN[1]

(SEGUNDO ARTIGO)

Extraímos as passagens que se seguem de uma nova brochura alemã, publicada em 1853 pelo Sr. Blanck, redator do jornal de Bergzabern, sobre o Espírito batedor de que falamos em nosso número de maio.

Os fenômenos extraordinários ali relatados, cuja autenticidade não poderia ser posta em dúvida, provam que, no particular, nada temos a invejar da América.

Observa-se no relato o cuidado meticuloso com que os fatos foram registrados. Fora desejável que, em casos semelhantes, houvesse sempre a mesma atenção e a mesma prudência.

Sabe-se hoje que os fenômenos desse gênero não resultam de um estado patológico; antes denotam uma excessiva sensibilidade, sempre fácil de excitar, nas pessoas em quem se manifestam. O estado patológico não é a causa eficiente; pode, entretanto, ser-lhe consecutivo. Em casos análogos, a mania de experimentação mais de uma vez tem causado acidentes graves, que teriam sido evitados se se houvesse deixado a natureza agir por si mesma. Em nossa Instrução prática sobre as manifestações espíritas[2] encontram-se os conselhos necessários para tais casos.

Acompanhemos o relatório do Sr. Blanck.

“Os leitores de nossa primeira brochura intitulada Os Espíritos batedores viram que as manifestações de Filipina Sänger têm um caráter enigmático e extraordinário. Relatamos esses fatos maravilhosos desde o seu começo até o momento em que a menina foi levada ao médico real do cantão. Vamos examinar agora o que se passou desde então.

Quando a menina deixou a casa do Dr. Bentner e regressou ao lar, as batidas e arranhaduras recomeçaram na casa dos Sänger. Até aquele momento, e mesmo depois da sua cura completa, as manifestações foram mais marcantes e mudaram de natureza[3]. No mês de novembro de 1852, o Espírito começou a assoviar; a seguir ouvia-se um ruído comparável ao de uma roda de carrinho de mão que girasse sobre o eixo seco e enferrujado, mas, de tudo isso, o mais extraordinário, incontestavelmente, foi a derrubada de móveis no quarto de Filipina, desordem essa que durou quinze dias.

Parece-me necessária uma ligeira descrição do lugar.

O quarto tem cerca de 18 pés de comprimento por 8 de largura e a ele se chega pela sala de estar. A porta de comunicação entre as duas peças fica à direita. O leito da menina estava colocado à direita; ao meio havia um armário e no canto, à esquerda, a mesa de trabalho de Sänger, na qual há duas cavidades circulares, cobertas por duas tampas.

Na tarde em que começou o rebuliço, a Sra. Sänger e sua filha mais velha, Francisca, estavam sentadas na primeira peça, junto a uma mesa e se ocupavam em descascar vagens. De repente caiu a seus pés um pequeno fuso, atirado do quarto de dormir. Elas ficaram muito assustadas, tanto mais quanto sabiam que não se encontrava ninguém no quarto, além de Filipina, então mergulhada em sono profundo. Além disso, o fuso fora lançado do lado esquerdo, embora se achasse na prateleira do pequeno armário, colocado à direita. Se tivesse sido atirado do leito, teria sido interceptado pela porta. Era, pois, evidente que a menina nada tinha a ver com o caso. Enquanto a família Sänger externava a sua surpresa com o acontecimento, algo caiu da mesa no soalho: era um retalho de pano que antes estava mergulhado numa bacia com água. Ao lado do fuso jazia também uma cabeça de cachimbo, cuja outra metade tinha ficado sobre a mesa. O que tornava a coisa ainda mais incompreensível era que a porta do armário onde estava o fuso, antes de ser atirado, achava-se fechada; que a água da bacia não tinha sido agitada e nem uma só gota tinha caído sobre a mesa. De repente, a menina, sempre adormecida, grita da cama: “Pai! saia! Ele atira! Saiam! Ele atiraria em você também. Eles obedeceram à ordem e assim que passaram à primeira peça, a cabeça do cachimbo foi atirada com muita força, mas não se quebrou. Uma régua que Filipina usava na escola seguiu o mesmo caminho. O pai, a mãe e a filha mais velha olhavam-se com espanto. Enquanto imaginavam a decisão a tomar, uma grande plaina do Sr. Sänger e um grande pedaço de madeira foram atirados do banco de carpinteiro para o outro quarto. Sobre a mesa de trabalho, as tampas estavam em seus lugares, mas, apesar disto, os objetos cobertos por elas também tinham sido jogados longe. Na mesma noite, os travesseiros da cama foram lançados sobre um armário e a colcha atirada contra a porta.

Num outro dia, tinham posto aos pés da menina, debaixo das cobertas, um ferro de engomar de cerca de seis libras. Logo ele foi atirado para a primeira sala; o cabo havia sido tirado e foi encontrado sobre uma poltrona, no quarto.

Testemunhamos as cadeiras colocadas a três pés da cama serem derrubadas; as janelas serem abertas, quando antes estavam bem fechadas, e isto assim que viramos as costas para entrar na sala. De outra feita, duas cadeiras foram transportadas para cima da cama, sem desarranjar as cobertas.

No dia 7 de outubro, a janela havia sido hermeticamente fechada, diante da qual fora estendido um pano branco. Assim que deixamos o quarto, foram dados golpes repetidos e com tanta violência que tudo estremeceu e as pessoas que passavam na rua fugiram apavoradas. Corremos para o quarto. A janela estava aberta, o pano atirado sobre o pequeno armário ao lado, as cobertas da cama e o travesseiro no chão, as cadeiras de pernas para o ar e a menina no leito, abrigada apenas pela camisola. Durante catorze dias a senhora Sänger não fez outra coisa senão refazer a cama.

Uma vez tinham deixado uma harmônica sobre uma cadeira. Ouviram-se sons. Entrando precipitadamente no quarto, encontraram, como sempre, a menina tranquila em seu leito. O instrumento estava sobre a cadeira, mas já não tocava.

Uma noite, ao sair do quarto da filha, Sänger recebeu nas costas, de arremesso, a almofada de uma cadeira. De outras vezes era um par de chinelos velhos, sapatos que estavam debaixo da cama, ou tamancos que lhe iam ao encontro.

Muitas vezes sopravam a vela acesa, sobre a mesa de trabalho.

As pancadas e arranhaduras se alternavam com essa demonstração do mobiliário. A cama parecia movimentada por mão invisível. À ordem de: “Balance a cama” ou “Nine a criança”, a cama ia e vinha, num e noutro sentido, com ruído; à ordem de “Alto!” ela parava. Nós, que vimos, podemos afirmar que quatro homens se sentaram na cama e, sem conseguirem paralisar o movimento, foram erguidos junto com o móvel.

Ao fim de catorze dias cessou o rebuliço dos móveis e as manifestações foram substituídas por outras.

Na noite de 26 de outubro achavam-se no quarto, entre outras pessoas, os Srs. Luís Soëhnée, licenciado em direito, e o capitão Simon, ambos de Wissembourg, bem como o Sr. Sievert, de Bergzabern. Nesse momento, Filipina Sänger encontrava-se mergulhada em sono magnético[4]. O Sr. Sievert apresentou-lhe um papel contendo cabelos, para ver o que ela faria com eles. Ela abriu o embrulho, sem entretanto descobrir os cabelos; aplicou-os sobre as pálpebras fechadas; afastou-os como que para examiná-los à distância e disse: “Eu bem queria saber o que está neste embrulho... São cabelos de uma senhora que não conheço... Se ela quiser vir, que venha... Não posso convidá-la, pois não a conheço.” Ela não respondeu às perguntas dirigidas pelo Sr. Sievert, mas, tendo colocado o papel na palma da mão, a estendia e virava, e o papel continuava suspenso. Depois o colocou na ponta do indicador e durante muito tempo fez a mão descrever um semicírculo, dizendo: “Não caia!” e o papel ficava na ponta do dedo. Depois, à ordem de “Agora caia!” ele se destacou, sem que ela tivesse feito o menor movimento para lhe determinar a queda. Súbito, voltando-se para a parede, disse: “Agora quero pregar-te à parede.” E ali colocou o papel que ficou colado durante aproximadamente 5 a 6 minutos, depois do que o retirou. Um exame minucioso do papel e da parede não permitiu descobrir nenhuma causa da aderência. Parece-nos um dever advertir que o quarto estava perfeitamente iluminado, o que permitia verificar todas essas particularidades com exatidão.

Na noite seguinte deram-lhe outros objetos: chaves, moedas, cigarreiras, relógios, anéis de ouro e de prata. Todos, sem exceção, ficavam suspensos à sua mão. Notou-se que a prata aderia mais facilmente que as outras substâncias, pois houve dificuldade em retirar-lhe as moedas e tal operação causou-lhe dor.

Um dos mais curiosos fatos nesse gênero foi o seguinte: Sábado, 11 de novembro, um oficial presente deu-lhe sua espada com o talabarte, no todo pesando 4 libras; constatou-se que tudo ficou suspenso ao dedo da médium, balançando-se durante muito tempo. O que não é menos singular é que todos esses objetos, fosse qual fosse a matéria, também ficavam suspensos. Tal propriedade magnética comunicava-se, por simples contato das mãos, às pessoas susceptíveis da transmissão do fluido. Disto tivemos vários exemplos.

Um capitão, o cavaleiro de Zentner, então servindo na guarnição de Bergzabern, testemunhou esses fenômenos e teve a ideia de colocar uma bússola perto da menina, para observar as variações. Na primeira tentativa a agulha fez um desvio de 15º, mas nas outras ficou imóvel, embora a menina a segurasse numa das mãos, acariciando-a com a outra. Esta experiência provou que tais fenômenos não se poderiam explicar pela ação do fluido mineral, mesmo porque a atração magnética não se exerce indiferentemente sobre todos os corpos.

Habitualmente, quando a pequena sonâmbula se dispunha a começar a sessão, chamava para o quarto todas as pessoas presentes. Ela dizia apenas: “Venham! venham!” ou então “Deem! deem!” Muitas vezes só se tranquilizava quando todos, sem exceção, estavam junto ao seu leito. Então pedia com solicitude e impaciência um objeto qualquer e, assim que lho entregavam, este se ligava a seus dedos. Frequentemente acontecia que dez, doze ou mais pessoas estivessem presentes e cada uma lhe apresentasse vários objetos. Durante a sessão, ela não admitia que lhe tomassem nenhum deles. Parecia preferir os relógios: abria-os com muita habilidade, examinava o movimento, fechava-os e os colocava próximo, para examinar outra coisa. Por fim, devolvia a cada um o que lhe havia sido entregue. Examinava os objetos com os olhos fechados e jamais lhes confundia o dono. Se alguém estendesse a mão para receber o que lhe não pertencia, ela o repelia. Como explicar essa distribuição múltipla e sem erros a tão grande número de pessoas? Em vão se tentaria que fizesse o mesmo com os olhos abertos. Terminada a sessão e retiradas as pessoas estranhas, recomeçavam as pancadas e arranhaduras, momentaneamente interrompidas.

Acrescente-se que a menina não queria que ninguém ficasse aos pés da cama, junto ao armário, onde o espaço entre os móveis era apenas de cerca de um pé. Se alguém aí se colocasse, afastava-o por meio de gestos. Se teimassem, ela demonstrava uma grande inquietação e com gestos imperiosos mandava que saíssem do lugar. Uma vez advertiu aos assistentes de que jamais ocupassem aquele lugar proibido, porque, dizia, não queria que sobreviesse uma desgraça a alguém. Este aviso foi tão peremptório que ninguém o esqueceu daí por diante.

Depois de algum tempo, às batidas e arranhaduras juntou-se um zumbido comparável ao som produzido por uma corda grossa de contrabaixo; uma espécie de assovio se misturava a esse zumbido. Se alguém pedisse uma marcha ou uma dança, logo era atendido o seu desejo: o músico invisível mostrava-se muito complacente.

Por meio das arranhaduras, chamava nominalmente as pessoas da casa ou os estranhos presentes. Todos compreendiam facilmente a quem era dirigido o apelo. A esse chamado, a pessoa designada respondia sim, para dar a entender que sabia tratar-se dela mesma. Então era executado, em sua homenagem, um trecho de música que por vezes provocava cenas cômicas. Se outra que não a pessoa indicada respondesse sim, o raspador fazia compreender por um não, expresso a seu modo, que nada lhe tinha a dizer naquele momento.

Estes fatos se produziram pela primeira vez na noite de l0 de novembro, e continuaram até o presente.

Eis como procedia o Espírito batedor para designar as pessoas:

Há muitas noites se havia notado que, ao fazer um pedido para que fizesse tal ou qual coisa, ele respondia por um golpe seco ou por uma arranhadura prolongada. Assim que o golpe era dado, o batedor começava a executar aquilo que se desejava; quando, ao contrário, ele arranhava, não satisfazia ao pedido. Então um médico teve a ideia de tomar o primeiro ruído por um sim e o segundo por um não, e desde então essa interpretação sempre se confirmou. Notou-se também que por uma série de arranhões mais ou menos fortes o Espírito exigia certas coisas das pessoas presentes. À custa de atenção e observando a maneira por que se produzia o ruído, pôde-se compreender a intenção do batedor. Assim, por exemplo, o velho Sänger contou que certa manhã, ainda pela madrugada, ouvira ruídos modulados de certa maneira. Embora de início não tivesse ligado a eles nenhum significado, notou que não cessavam enquanto se achasse na cama, pelo que entendeu o sentido: “Levanta-te!” Foi assim que pouco a pouco se familiarizaram com essa linguagem, e que por certos sinais se podia saber quais eram as pessoas designadas.

Chegou o aniversário do dia em que o Espírito batedor se havia manifestado pela primeira vez: muitas mudanças se haviam operado no estado de Filipina Sänger. Continuavam as pancadas, as arranhaduras e o zumbido, mas a todas essas manifestações juntou-se um grito especial, que ora parecia de um ganso, ora de um papagaio ou de qualquer outra ave grande. Ao mesmo tempo ouvia-se uma espécie de repicar na parede, semelhante ao ruído produzido pelas bicadas de um pássaro. Nesse período Filipina falava muito durante o sono e sobretudo parecia preocupada com um certo animal, semelhante a um papagaio, que ficava ao pé do leito, gritando e dando bicadas na parede. Quando desejávamos ouvir o papagaio, ele soltava gritos agudos. Várias perguntas foram feitas, tendo como resposta gritos do mesmo gênero; algumas pessoas pediram que dissesse Kakatoès, e foi ouvida distintamente a palavra Kakatoès, como se pronunciada pela própria ave[5]. Silenciaremos sobre fatos menos interessantes, limitando-nos a relatar aquilo que há de mais importante, no que diz respeito às modificações sobrevindas ao estado físico da menina.

Algum tempo antes do Natal as manifestações se renovaram com mais energia: os golpes e as arranhaduras tornaram-se mais violentos e duravam mais tempo. Mais agitada que de costume, muitas vezes Filipina pedia para não dormir em sua cama, mas na dos pais; ela rolava no seu leito, clamando: “Não posso mais ficar aqui; vou sufocar; eles vão encerrar-me na parede; socorro!” e a calma só se restabelecia quando a transportavam para outra cama. Apenas aí se encontrava, ouviam-se no alto pancadas muito fortes, como se viessem do sótão e como se um carpinteiro martelasse o vigamento. Por vezes eram mesmo tão fortes que abalavam a casa; as janelas eram sacudidas e as pessoas presentes sentiam o solo tremer sob os pés; outras vezes pancadas semelhantes eram dadas na parede, perto da cama. As perguntas eram, como de hábito, respondidas pelas pancadas, sempre alternadas com as arranhaduras.

Os fatos que se seguem, não menos curiosos, reproduziram-se inúmeras vezes:

Quando havia cessado o ruído e a menina repousava em sua caminha, com frequência a víamos prosternar-se, juntar as mãos, de olhos fechados, virar a cabeça para todos os lados, às vezes para a direita e às vezes para a esquerda, como se algo de extraordinário tivesse atraído sua atenção. Um amável sorriso então aparecia em seus lábios. Dir-se-ia que se dirigisse a alguém: estendia as mãos e pelo gesto depreendia-se que apertava as mãos de amigos e conhecidos. Também se via, depois de cenas tais, recair na sua atitude súplice, juntar novamente as mãos, curvar a cabeça até tocar as cobertas, depois endireitar-se e derramar lágrimas. Então suspirava e parecia orar com grande fervor. Nesses momentos seu rosto se transformava: ficava pálida e adquiria a expressão de uma mulher de 24 a 25 anos. Por vezes tal estado durava cerca de meia hora, durante a qual só dizia ah! ah! Pancadas, arranhaduras, zumbidos e gritos cessavam até que ela despertasse. Então o batedor novamente se fazia ouvir, procurando executar árias alegres, a fim de dissipar a penosa impressão deixada na assistência. Ao despertar, a menina achava-se muito abatida; apenas podia levantar os braços, e os objetos que lhe eram apresentados não ficavam mais suspensos em seus dedos.

Curiosos para saber o que experimentara, interrogaram-na várias vezes. Somente após reiterados pedidos foi que se decidiu a contar que tinha visto conduzir e crucificar o Cristo no Gólgota; que a dor das santas mulheres prosternadas ao pé da cruz e a crucificação lhe haviam produzido uma impressão indescritível. Também tinha visto uma porção de mulheres e de virgens vestidas de preto e mocinhas com longos vestidos brancos percorrendo em procissão as ruas de bonita cidade e, por fim, viu-se transportada a uma vasta igreja onde assistiu a um serviço fúnebre.

Em pouco tempo o estado de Filipina Sänger mudou a ponto de causar apreensão quanto à sua saúde, porque, estando desperta, divagava e sonhava em voz alta. Não reconhecia os pais nem a irmã nem qualquer outra pessoa. A esse estado veio juntar-se uma completa surdez, que persistiu durante quinze dias.

Não podemos silenciar sobre o que se passou nesse lapso de tempo.

A surdez de Filipina manifestou-se de meio-dia às três horas, e ela mesma declarou que ficaria surda por algum tempo e que ficaria doente. O que há de singular é que por vezes recobrava a audição durante cerca de meia hora, com o que se mostrava contente. Ela própria predizia o momento em que ensurdeceria e em que recuperaria a audição. Uma vez, entre outras, anunciou que à noite, às oito e meia, ouviria claramente durante meia hora. Com efeito, à hora predita voltou a ouvir, o que durou até as nove horas.

Durante a surdez, os traços se lhe alteravam: o rosto tomava uma expressão de estupidez, que perdia assim que voltava ao estado normal. Nada então a impressionava. Ela ficava sentada, olhando os presentes fixamente e sem reconhecê-los. Ninguém podia fazer-se compreender senão por sinais, aos quais em geral não respondia, limitando-se a fitar os olhos na pessoa que lhe dirigia a palavra. Uma vez agarrou pelo braço um dos presentes e lhe perguntou, enquanto o empurrava: Quem és tu? Nessa situação ficava por vezes mais de hora e meia imobilizada na cama. Seus olhos meio abertos paravam num ponto qualquer; de vez em quando giravam à direita e à esquerda, depois voltavam ao mesmo ponto. Toda a sensibilidade parecia então embotada: o pulso apenas batia e quando se colocava uma luz diante de seus olhos, não fazia nenhum movimento. Dir-se-ia morta.

Aconteceu uma tarde, durante a surdez que, estando deitada, pediu uma lousa e um giz. Então escreveu: “Às onze horas direi alguma coisa, mas exijo que fiquem tranquilos e silenciosos.” Depois destas palavras acrescentou cinco sinais semelhantes à escrita latina, mas que nenhum dos presentes pôde decifrar. Escreveram na lousa que ninguém compreendia aqueles sinais. Em resposta, ela acrescentou: “Não é que não possais ler!” E, mais embaixo: “Não é alemão. É uma língua estranha.” Em seguida, virando a ardósia, escreveu do outro lado: “Francisca” (sua irmã mais velha) “sentar-se-á à mesa e escreverá o que eu ditar.” Acompanhou as palavras por cinco sinais semelhantes aos primeiros e entregou a ardósia. Notando que os sinais não eram ainda compreendidos, pediu novamente a lousa e acrescentou: “São ordens particulares.”

Um pouco antes das onze horas, disse: “Ficai tranquilos. Que todos se sentem e prestem atenção!” e, ao soarem as onze, caiu no leito e entrou em sono magnético habitual. Alguns instantes depois, começou a falar, e isto durou, ininterruptamente, cerca de meia hora. Entre outras coisas declarou que durante o ano em curso produzir-se-iam fatos que ninguém poderia compreender e que seriam infrutíferas todas as tentativas feitas para explicá-los.

Durante a surdez da jovem Sänger renovaram-se algumas vezes o rebuliço dos móveis, o inexplicável abrir das janelas, o apagar das luzes sobre a mesa de trabalho. Aconteceu, uma noite, que dois bonés que estavam pendurados num cabide do quarto de dormir foram atirados sobre a mesa do outro quarto e entornaram uma xícara cheia de leite, espalhando-o pelo chão. As pancadas desferidas na cama eram tão violentas que ela se deslocou de seu lugar; outras vezes até a cama se desmontava ruidosamente, sem que, entretanto, se tivessem ouvido as pancadas.

Como ainda houvesse pessoas incrédulas ou que atribuíam essas ocorrências a uma brincadeira da menina que, em sua opinião, batia e arranhava com os pés ou com as mãos, apesar de que os fatos tivessem sido verificados por mais de cem testemunhas e se tivesse constatado que a menina mantinha os braços estendidos sobre as cobertas enquanto se produziam os ruídos, o Cap. Zentner imaginou um meio de convencê-las. Mandou vir da caserna dois cobertores muito grossos, os quais foram postos um sobre o outro, e ambos envolveram o colchão e os lençóis da cama; os cobertores eram muito felpudos, de modo que seria impossível neles produzir o menor ruído por simples atrito. Vestindo uma leve camisa e uma camisola de dormir, Filipina foi posta debaixo das cobertas e, apenas agasalhada, os golpes e arranhaduras se produziram como dantes, ora na madeira da cama, ora no armário vizinho, segundo o que tinham a exprimir.

Acontece muitas vezes que quando alguém cantarola ou assobia uma ária qualquer, o batedor a acompanha e os sons que se percebem parecem vir de dois, três ou quatro instrumentos: ouve-se ao mesmo tempo arranhar, bater, assobiar e roncar, conforme o ritmo da ária cantada. Muitas vezes, também, o batedor pede a um dos assistentes que cante uma canção. Designa-o pelo processo já nosso conhecido e quando a pessoa compreende que é a si mesma que o Espírito se dirige, por sua vez pergunta ao Espírito se quer que cante esta ou aquela canção. A resposta é dada por sim ou não. Ao cantar a ária indicada, ouve-se um acompanhamento perfeito de zumbidos e assobios. Depois de uma canção alegre, muitas vezes o Espírito pedia o hino Grande Deus, nós te louvamos ou a canção de Napoleão I. Se lhe pedíssemos para tocar sozinho esta última ou qualquer outra, ele a executava do começo ao fim.

Assim iam as coisas na casa de Sänger, quer de dia, quer de noite, durante o sono da menina ou quando em vigília, até o dia 4 de março de 1853, data em que as manifestações entraram em outra fase. Esse dia foi marcado por um fato ainda mais extraordinário que os precedentes.”

(continua no próximo número).

OBSERVAÇÃO: Os leitores hão de perdoar a extensão dada a estes curiosos detalhes. Pensamos, entretanto, que a continuação será lida com não menor interesse. Queremos fazer notar que os fatos não nos vêm de além-mar, cuja distância é um argumento, apesar de tudo, para certos cépticos. Eles não vêm nem mesmo de além Reno, pois se passaram em nossas fronteiras, quase sob nossos olhos e há seis anos apenas.

Como se vê, Filipina Sänger era uma médium natural muito complexa. Além da influência que exercia sobre os fenômenos bem conhecidos de ruídos e de movimentos, era uma sonâmbula extática. Ela conversava com os seres incorpóreos que via; ao mesmo tempo via os assistentes e lhes dirigia a palavra, mas nem sempre lhes respondia, o que prova que em certos momentos achava-se isolada. Para aqueles que conhecem os efeitos da emancipação da alma, as visões que descrevemos nada possuem que não possa ser facilmente explicado. É provável que, nesses momentos de êxtase, o Espírito da menina se visse transportado para qualquer lugar distante, onde assistiria, talvez em recordação, a uma cerimônia religiosa. Podemos admirar-nos da lembrança que trazia ao despertar, mas o fato não é insólito. Aliás, podemos notar que a lembrança era confusa e que se tornava necessário insistir muito para provocá-la.

Se observarmos atentamente o que se passava durante a surdez, reconheceremos sem dificuldade um estado cataléptico. Como a surdez era apenas temporária, é evidente que não causava alterações nos órgãos respectivos. O mesmo se dava com a obliteração das faculdades mentais, o que nada tinha de patológico, de vez que, em dado momento, tudo voltava ao estado normal. Esta espécie de estupidez aparente era devida a um mais completo desprendimento da alma, cujas excursões eram feitas com maior liberdade e não deixavam aos sentidos mais do que a vida orgânica. Imagine-se o efeito desastroso que teria produzido um tratamento terapêutico em semelhantes condições! A cada momento podem produzir-se fenômenos do mesmo gênero. Neste caso, não poderemos senão recomendar muita circunspecção. Uma imprudência pode comprometer a saúde e até a própria vida.



[1] ─ Para que o leitor não fique confuso diante de alguns senões nestes dois artigos e ainda no seguinte, versando sobre o mesmo assunto, queremos esclarecer.

Quanto ao primeiro artigo:

I ─ No original encontramos, de referência a um médico, as grafias Beutner e Bentner. Parece tratar-se de um erro tipográfico. Por mais conforme à língua alemã, preferimos a grafia Bentner.

II ─ O nome da família onde ocorreram os fenômenos aparece como Sänger depois como Senges. O certo deve ser Sänger ou Saenger, que significa cantor. Este, como muitos nomes semelhantes (adjetivos e adjetivos substantivos) derivam-se de uma forma verbal, tomando terminação er, que significa o agente da ação expressa pelo verbo, mas determinam uma alteração na vogal tônica do radical. Ex.: singea (cantar) sang (cantava); sänger (cantor). No alemão moderno, o trema sobre o a, o o e o u é substituído por um e. Assim, pode escrever-se Saenger. Preferimos, no caso, a forma antiga.

III ─ Não há declaração do nome do médium. O texto se refere a uma criança de onze anos. Traduzimos por menino, rapaz ou outra forma masculina porque, conquanto no original lêssemos enfant, que é forma epicena, os adjetivos que o acompanham estão sempre no masculino. Assim, lá está enfant... agé, endormi, avancé etc. É possível que o lapso de quem traduziu esse primeiro artigo do alemão para o francês se explique pelo emprego original da voz das kind (a criança) que é neutra em alemão, podendo ser aplicada a ambos os sexos.

Entretanto o segundo artigo começa com uma referência à volta da criança da casa do Dr. Bentner para o seu próprio lar; aí a voz enfant é empregada no feminino: l’enfant fut conduite; mais adiante há uma referência à cura de la jeune fille e seu nome é declinado ─ Philippine Senger ─ conforme a grafia francesa.

Tudo, pois, leva a crer que houve um equívoco cometido pela pessoa que traduziu o primeiro artigo do alemão para o francês.

No terceiro artigo, que sairá no próximo número, há uma nota no rodapé, página 183 do original, com um agradecimento ao Sr. Alfred Pireaux, funcionário dos correios, pela tradução dessa interessante brochura. Como, porém, se vê claramente no início do segundo artigo, o relato é extraído de uma nova brochura alemã, cuja citação é continuada no terceiro. Está visto, pois, que havia uma primeira brochura e, assim, o lapso quanto ao nome do médium não se deve ao tradutor citado linhas acima, nem à nossa versão brasileira, já corrigida neste volume.

Para finalizar: o médium foi a menina Filipina Sänger, de onze anos, e não um seu irmão, pois, no texto dos artigos segundo e terceiro, o único Sänger masculino que é citado é papá Sänger. (N. do T.)


[2] Este livrinho de Kardec foi abolido pelo autor, assim que lançou O Livro dos Médiuns. (N. do T.)


[3] Teremos ocasião de falar da indisposição da criança. Como, porém, após a sua cura, reproduziram-se os mesmos efeitos, temos uma prova evidente de que eles não dependiam de seu estado de saúde.


[4] Uma sonâmbula de Paris se havia posto em contato com a jovem Filipina e, desde então, esta caía espontaneamente em sonambulismo. Nessa ocasião passa­vam-se fatos notáveis, que relataremos de outra feita. (Nota do tradutor francês).


[5] Variedade de papagaio do arquipélago indiano, caracterizado por um topete de penas amarelas que se eriçam, em forma de crista. O nome kakatua ou kakatoa é onomatopaico: deriva-se do próprio grito da ave que, como as nossas araras, o repetem continuamente.



I


Um homem saiu muito cedo e foi à praça para contratar operários. Ora, ali viu dois homens do povo, sentados e de braços cruzados. Chegou-se a um deles e assim o abordou: “Que fazes aí?” Ao que o mesmo lhe respondeu: “Não tenho trabalho.” Disse então aquele que procurava trabalhadores: “Toma a tua ferramenta e vem ao meu campo, na vertente da colina, onde sopra o vento sul; cortarás as urzes e revolverás o solo até o cair da noite. A tarefa é dura, mas terás um bom salário.” O homem do povo pôs a enxada no ombro, agradecendo-lhe por isso, de todo o coração.

Ouvindo isto, o outro operário levantou-se e aproximou-se, dizendo: “Senhor, deixe-me ir também trabalhar no campo.” E, tendo-lhes dito a ambos que o seguissem, marchou à frente, para mostrar o caminho. Depois, quando chegaram à encosta da colina, dividiu o trabalho em dois e se foi.

Quando ele partiu, o último dos operários contratados pôs fogo no mato da gleba que lhe coube por sorte e revolveu a terra com a enxada. Sob o ardor do sol, o suor porejava-lhe de sua fronte. O outro o imitou, a princípio murmurando, mas em breve parou o trabalho e fincando a enxada no chão sentou-se ao lado, olhando o trabalho do companheiro.

Ora, ao cair da tarde veio o dono do campo e examinou o trabalho. Chamando o operário diligente, felicitou-o dizendo: “Trabalhaste bem. Eis o teu salário.” E despediu-o, dando-lhe uma moeda de prata. O outro também se aproximou, reclamando o preço de seu salário, mas o dono lhe disse: “Mau trabalhador, meu pão não matará a tua fome, porque tu deixaste inculta a parte de meu campo que te foi confiada. Não é justo que aquele que nada fez seja recompensado como o que trabalhou bem.”

E despediu-o sem nada lhe dar.


II
Eu vos digo que a força não foi dada ao homem, nem a inteligência ao seu espírito para que consuma seus dias na ociosidade, mas para ser útil aos seus semelhantes. Ora, aquele cujas mãos estiverem desocupadas e o espírito ocioso será punido e deverá recomeçar a sua tarefa.

Em verdade vos digo que sua vida será posta de lado como coisa imprestável, quando seu tempo se cumprir. Compreendei isto como uma comparação. Qual de vós, possuindo no pomar uma árvore que não dá frutos, não dirá ao servo: “Corte aquela árvore e lance-a no fogo, pois seus ramos são estéreis?” Ora, assim como aquela árvore será cortada por causa de sua esterilidade, também a vida do preguiçoso será lançada no refugo, por ter sido estéril em boas obras.



Palestras familiares de além-túmulo

O SR. MORISSON, MONOMANÍACO

Em março último noticiava um jornal inglês o que se segue, a respeito do Sr. Morisson, recentemente falecido na Inglaterra, deixando uma fortuna de cem milhões de francos. Segundo aquele jornal, nos dois últimos anos de vida ele era presa de singular monomania. Imaginava-se reduzido a extrema pobreza e devia ganhar o pão de cada dia com um trabalho manual. A família e os amigos haviam reconhecido a inutilidade dos esforços para lhe tirar aquilo da cabeça. Era pobre, não possuía um ceitil e devia trabalhar para viver: essa a sua convicção. Todas as manhãs punham-lhe uma enxada nas mãos e mandavam-no trabalhar em seus próprios jardins. Daí a pouco vinham procurá-lo, pois a tarefa estava concluída; pagavam-lhe um modesto salário pelo trabalho feito e ele ficava contente. Seu espírito ficava tranquilo e sua mania satisfeita.

Se o tivessem contrariado teria sido o mais infeliz dos homens.

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso que permita venha comunicar-se conosco o Espírito de Morisson, recém-falecido na Inglaterra, deixando uma fortuna considerável.

─ Aqui está ele.

2. ─ Lembra-se do estado em que se achava durante os dois últimos anos de sua existência corpórea?

─ É sempre o mesmo.

3. ─ Depois da morte seu Espírito ficou ressentido da aberração das faculdades durante a sua vida?

─ Sim.

São Luís completa a resposta, dizendo espontaneamente: “Desprendido do corpo, o Espírito sente, durante algum tempo, a compressão dos seus laços.”

4. ─ Assim, após a morte, seu Espírito não recobrou imediatamente a plenitude de suas faculdades?

─ Não.

5. ─ Onde está agora?

─ Atrás de Ermance.

6. ─ Você é feliz ou infeliz?

─ Algo me falta... Não sei o que... Procuro... Sim, sofro.

7. ─ Por que sofre?

─ Sofre pelo bem que não fez. (Resposta de São Luís).

8. ─ Por que essa mania de julgar-se pobre, quando possuía tão grande fortuna?

─ Eu o era. Em verdade, rico é aquele que não tem necessidades.

9. ─ De onde vinha essa ideia de que lhe era necessário trabalhar para viver?

─ Eu era louco e ainda sou.

10. ─ Como lhe veio essa loucura?

─ Que importa? Eu tinha escolhido essa expiação.

11. ─ Qual é a origem de sua fortuna?

─ Que te importa?

12. ─ Entretanto a sua invenção não visava aliviar a Humanidade?

─ E enriquecer-me.

13. ─ Que uso você fazia da fortuna quando gozava da plenitude da razão?

─ Nenhum. Creio que eu a gozava.

14. ─ Por que lhe teria Deus concedido fortuna, desde que não devia empregá-la utilmente para os outros?

─ Eu tinha escolhido a prova.

15. ─ Aquele que goza de uma fortuna adquirida no trabalho não é mais escusável por se apegar a ela do que o que nasceu no seio da opulência e jamais conheceu a necessidade?

─ Menos.

São Luís acrescenta: “Aquele conhece a dor, mas não a alivia.”

16. ─ Você se lembra de sua existência precedente a esta que acaba de deixar?

─ Sim.

17. ─ O que você era então?

─ Um operário

18. ─ Você nos disse que é infeliz. Vê um termo para o seu sofrimento?

─ Não.

São Luís acrescenta: “É cedo demais.”

19. ─ De quem depende isto?

─ De mim. Assim mo disse aquele que está ali.

20. ─ Conhece aquele que está ali?

─ Vós o chamais Luís.

21. ─ Sabeis o que foi ele em França no século XIII?

─ Não... Eu o conheço por vosso intermédio... Agradeço por aquilo que me ensinou.

22. ─ Você acredita numa outra existência corporal?

─ Sim.

23. ─ Se deve renascer na vida corpórea, de quem dependerá sua futura posição social?

─ De mim, suponho eu. Tantas vezes escolhi que isto só de mim poderá depender.

OBSERVAÇÃO: As palavras tantas vezes escolhi são características. Seu estado atual prova que, apesar das numerosas existências, pouco progrediu, e que para ele, é sempre um recomeço.

24. ─ Que posição social escolheria se pudesse recomeçar?

─ Baixa. Avança-se com mais segurança. Só se está encarregado de si mesmo.

25. ─ (A São Luís): Não haverá um sentimento de egoísmo na escolha de uma posição humilde, na qual não se deve ter o encargo senão de si mesmo?

─ Em parte alguma se têm encargos apenas para consigo mesmo. O homem responde pelos que o cercam e não só pelas almas cuja educação lhe foi confiada, mas ainda pelos outros. O exemplo faz todo o mal.

26. ─ (A Morisson): Nós lhe agradecemos a bondade com que nos respondeu e rogamos a Deus lhe dê forças para suportar novas provas.

─ Vós me aliviastes. Eu aprendi.

OBSERVAÇÃO: Reconhece-se facilmente nas respostas acima o estado moral do Espírito. Elas são curtas e, quando não monossilábicas, têm algo de sombrio e de vago. Um louco melancólico não falaria diferentemente. Essa persistência da aberração das ideias após a morte é um fato notável, mas que não é constante, ou que por vezes apresenta um caráter completamente diverso. Teremos ocasião de citar vários outros exemplos, onde se estudam as diferentes formas de loucura.


O SUICIDA DA SAMARITANA

Recentemente os jornais noticiaram o seguinte fato: “Ontem (7 de abril de 1858) pelas sete horas da noite, um homem de cerca de cinquenta anos, vestido decentemente, apresentou-se no estabelecimento da Samaritana e pediu um banho. O empregado admirou-se de que, após duas horas, o indivíduo não chamasse; decidiu-se a entrar no banheiro para ver se não se sentira indisposto. Testemunhou então um horrível espetáculo: o infeliz havia cortado a garganta com uma navalha e todo o sangue se havia misturado à água da banheira. Desde que a identidade não pôde ser estabelecida, o cadáver foi transportado para o necrotério.”

Pensamos que seria possível tirar um ensinamento útil à nossa instrução da conversa com o Espírito desse homem. Assim, evocamo-lo a 13 de abril, apenas seis dias após a sua morte.

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco.

─ Espera... (Depois de alguns instantes): Ei-lo.

OBSERVAÇÃO: Para compreender esta resposta é preciso que se saiba que, em geral, em todas as reuniões regulares, há um Espírito familiar, do médium ou da família, que está sempre presente, sem ser preciso chamá-lo. É ele que faz virem os que são evocados e, conforme seja mais ou menos elevado, serve como mensageiro ou dá ordens aos Espíritos que lhe são inferiores. Quando nossas reuniões têm como intérprete a Srta. Ermance Dufaux, é sempre o Espírito de São Luís que voluntariamente toma esse encargo. Foi ele que deu a resposta acima.

2. ─ Onde você está agora?

─ Não sei... Dizei-me onde me encontro.

3. ─ Na Rua Valois (Palais-Royal), n.º 35, numa reunião de pessoas que se ocupam de estudos espíritas e que lhe são benevolentes.

─ Dizei-me se estou vivo... Eu sufoco no caixão.

4. ─ Quem o convidou a vir até nós?

─ Senti-me aliviado.

5. ─ Que motivo o levou ao suicídio?

─ Estou morto?... Não!... Estou em meu corpo... Não sabeis quanto sofro!... Eu sufoco!... Que uma mão piedosa venha dar-me um fim!

OBSERVAÇÃO: Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada naquilo que poderíamos chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrenas ainda se acham vivazes. Ele não acredita que está morto.

6. ─ Por que não deixou nenhum elemento de identificação?

─ Estou abandonado. Fugi do sofrimento para encontrar a tortura.

7. ─ Você tem ainda os mesmos motivos para ficar incógnito?

─ Sim. Não coloqueis um ferro em brasa na ferida que sangra.

8. ─ Poderia dar-nos o seu nome, idade, profissão e domicílio?

─ Não a tudo. Não!...

9. ─ Você tinha uma família, uma mulher, filhos?

─ Eu estava abandonado. Ninguém me amava.

10. ─ O que você fez para não ser amado por ninguém?

─ Quantos há como eu!... Um homem pode estar abandonado no meio da própria família, quando nenhum coração o ama.

11. ─ Você experimentou alguma hesitação ao realizar o suicídio?

─ Eu tinha sede de morrer... Esperava o repouso.

12. ─ Como é que a ideia do futuro não o levou a renunciar àquele desígnio?

─ Eu não cria mais no futuro; estava sem esperanças. O futuro é a esperança.

13. ─ Que reflexões você fez ao sentir extinguir-se a vida?

─ Não refleti; senti... Mas a minha vida não se extinguiu... minha alma está ligada ao corpo... não morri..., entretanto sinto que os vermes me roem.

14. ─ Que sentimento experimentou no momento em que se completou a morte?

─ Ela está completa?

15. ─ Foi doloroso o momento em que se extinguiu a vida?

─ Menos doloroso do que depois. Então, só o corpo sofreu.

São Luís continua:

─ O Espírito libertava-se de um fardo que o esmagava. Ele sentia a volúpia da dor.

(A São Luís): ─ Esse estado é o que sempre se segue ao suicídio?

─ Sim. O Espírito do suicida fica ligado ao corpo até o termo de sua vida. A morte natural é o enfraquecimento da vida. O suicídio a interrompe bruscamente.

─ Esse estado será o mesmo em toda morte acidental independente da vontade e que abrevia a duração natural da vida?

─ Não. Que entendeis por suicídio? O Espírito só é culpado por suas obras.

OBSERVAÇÃO: Havíamos preparado uma série de perguntas que nos propuséramos dirigir ao Espírito desse homem sobre a sua nova existência. Diante de suas respostas, elas perderam o sentido. Era evidente, para nós, que nenhuma consciência tinha ele da situação. A única coisa que nos pôde descrever foi o seu sofrimento.

Essa dúvida sobre a morte é muito comum nos recém-falecidos e principalmente naqueles que em vida não elevaram a alma acima da matéria. À primeira vista é um fenômeno bizarro, mas explicável muito naturalmente. Se perguntarmos a uma pessoa que pela primeira vez é levada ao sonambulismo se está adormecida, ela responderá quase sempre que não, e sua resposta é lógica. O interrogante é que formula mal a pergunta, servindo-se de um termo impróprio. A ideia de sono, no falar comum, está ligada à da suspensão de todas as faculdades sensitivas. Ora, o sonâmbulo, que pensa e vê; que tem consciência de sua liberdade moral, não crê que durma e, com efeito, não dorme, na acepção vulgar do vocábulo. Eis por que responde que não está dormindo, até familiarizar-se com essa nova maneira de entender a coisa. O mesmo acontece com o homem que acaba de morrer. Para ele a morte era o nada. Ora, como ocorre com o sonâmbulo, ele vê, sente a fala. Para ele, portanto, a vida continua, e ele assim o afirma, até que tenha adquirido consciência de seu novo estado.



ENVENENAMENTO DO DUQUE DE GUYENNE

...Ocupei-me depois da Guyenne. Odet d’Aidies, senhor de Lescun, que se tinha desentendido comigo, conduzia os preparativos da guerra com uma vivacidade maravilhosa. Era com muito esforço que alimentava o ardor belicoso de meu irmão, o Duque de Guyenne. Ele tinha de combater um adversário temível no espírito de meu irmão: a Senhora Thouars, amante de Carlos, Duque de Guyenne.

Essa mulher não procurava senão tirar partido do poder que exercia sobre o jovem duque, a fim de desviá-lo da guerra, pois não ignorava que a guerra tinha por objetivo o casamento do seu amante. Seus inimigos secretos tinham afetado, em sua presença, louvar a beleza e as brilhantes qualidades da noiva. Isto foi suficiente para persuadi-la de que sua desgraça seria certa se aquela princesa desposasse o Duque de Guyenne. Certa da paixão de meu irmão, recorreu às lágrimas, às preces e a todas as extravagâncias de uma mulher perdida em semelhante situação. O pusilânime Carlos cedeu e comunicou suas novas resoluções a Lescun. Lescun imediatamente preveniu o Duque de Bretanha e os interessados, os quais, alarmados, mandaram representações a meu irmão. Estas, porém, não surtiram senão o efeito de mergulhálo novamente em suas dúvidas.

Entretanto, a favorita conseguiu, não sem dificuldade, dissuadi-lo novamente da guerra e do casamento. A partir de então, a morte da favorita foi decidida por todos os príncipes.

Com receio de que meu irmão viesse atribuí-la a Lescun, cuja antipatia pela Senhora Thouars lhe era conhecida, decidiram conquistar Jean Faure Duversois, monge beneditino, confessor de meu irmão e abade de Saint-Jean d’Angély. Esse homem era um dos maiores entusiastas da Senhora de Thouars e ninguém ignorava o ódio que votava a Lescun, cuja influência política invejava. Não era provável que meu irmão lhe atribuísse a morte da amante, pois aquele sacerdote era um dos favoritos que maior confiança lhe mereciam. Desde que apenas a sede de grandeza o ligava à favorita, deixou-se facilmente corromper.

Durante muito tempo eu tentei seduzir o abade, mas ele sempre repelia minhas ofertas. Entretanto, deixava-me a esperança de atingir o meu objetivo.

Ele facilmente percebeu a situação em que se meteria prestando aos príncipes o serviço que lhe pediam, pois sabia que não lhes era difícil desembaraçar-se de um cúmplice. Por outro lado, conhecia a inconstância de meu irmão e temia tornar-se sua vítima.

Para conciliar sua segurança com seus interesses, resolveu sacrificar seu jovem senhor. Tomando tal partido, tinha tantas chances de êxito quantas de fracasso. Para os príncipes, a morte do jovem Duque de Guyenne deveria ser o resultado de um erro ou de um incidente imprevisto. Mesmo quando imputada ao Duque da Bretanha e seus comparsas, a morte da favorita teria passado despercebida, por assim dizer, pois que ninguém teria descoberto os motivos que lhe emprestavam uma importância real, do ponto de vista político.

Admitindo que pudessem ser acusados pela morte de meu irmão, achar-se-iam eles expostos aos maiores perigos, porque teria sido meu dever castigá-los rigorosamente. Sabiam que não era boa vontade que me faltava e que no caso o povo poderia voltar-se contra eles. Então o próprio Duque de Borgonha, alheio ao que se tramava em Guyenne, teria sido forçado a aliar-se a mim, sob pena de se ver acusado de cumplicidade. Mesmo nesta última hipótese, tudo teria resultado em meu favor. Eu poderia fazer que Carlos, o Temerário, fosse declarado criminoso de lesamajestade e levar o Parlamento a condená-lo à morte, pelo assassinato de meu irmão. Tais condenações, pronunciadas por aquele alto tribunal, tinham sempre grandes resultados, sobretudo quando eram de uma incontestável legitimidade.

Vê-se facilmente que interesse tinham os príncipes em manejar o abade. Por outro lado, nada mais fácil do que desfazer-se dele em segredo.

Mas comigo o abade de Saint-Jean tinha maiores chances de impunidade. O serviço que prestava era-me da maior importância, sobretudo naquele momento, porque a liga formidável que se formava e da qual o Duque de Guyenne era o centro deveria perder-me infalivelmente. O único meio de destruí-la seria a morte de meu irmão, o que representava a minha salvação. Ele aspirava o favor de Tristão, o Eremita, pensando que, por esse meio, elevar-se-ia acima dele ou pelo menos partilharia minhas boas graças e minha confiança nele. Aliás, os príncipes tinham cometido a imprudência de lhe deixar em mãos provas incontestes de sua culpabilidade: eram diversos escritos, e como estavam redigidos em termos muito vagos, não era difícil substituir a pessoa de meu irmão pela de sua favorita, ali designada nas entrelinhas. Entregando-me esses documentos, ele afastava de mim qualquer dúvida relativa à minha inocência; por isto subtraía-se ao único perigo que corria ao lado dos príncipes e, provando que de nenhum modo eu me achava envolvido no envenenamento, deixava de ser meu cúmplice e me isentava de qualquer interesse em mandar matá-lo.

Restava provar que ele próprio não estava metido nisso. Esta era uma dificuldade menor. Para começar, ele estava seguro de minha proteção; depois, os príncipes não tinham provas de sua culpabilidade, e ele poderia devolver-lhes as acusações, a título de calúnias.

Tudo bem ponderado, enviou-me um emissário que fingiu ter vindo espontaneamente dizer-me que o Abade de Saint-Jean estava descontente com meu irmão. Vi imediatamente todo o partido que poderia tirar de tal disposição e caí na armadilha preparada pelo astuto abade. Não suspeitando que aquele homem tivesse sido enviado por ele, despachei um de meus espiões de confiança. Saint-Jean representou tão bem o seu papel, que o emissário foi enganado. Baseado em seu relatório, escrevi ao abade, a fim de conquistá-lo. Ele aparentou muitos escrúpulos, mas eu triunfei, embora com alguma dificuldade. Concordou em ficar encarregado do envenenamento de meu jovem irmão. Eu estava tão pervertido que não hesitei em cometer esse crime horrível.

Henri de la Roche, escudeiro da repostaria do duque, ficou encarregado de preparar um pêssego que seria oferecido pelo próprio abade à Sra. de Thouars, enquanto merendava à mesa de meu irmão. A beleza desse fruto era notável. Ela chamou a atenção do príncipe e o partilhou com ele. Apenas tinham ambos comido, a favorita sentiu dores violentas nas entranhas e dentro em pouco expirou no meio de atrozes sofrimentos. Meu irmão experimentou os mesmos sintomas, mas com muito menor violência.

Talvez pareça estranho que o abade se tivesse servido de tal meio para envenenar o seu jovem senhor. Na verdade, o menor incidente poderia prejudicar o seu plano. Era, entretanto, o único que a prudência poderia autorizar: ele admitia a possibilidade de um engano. Tocada pela beleza do pêssego, era muito natural que a Sra. de Thouars chamasse a atenção de seu amante e lhe oferecesse a metade; ele não poderia deixar de aceitá-la e de comer um pouco, ainda que por consideração. Admitindo que comesse apenas um pedacinho, isto seria suficiente para provocar os primeiros sintomas necessários; um envenenamento posterior poderia determinar a morte, como consequência do primeiro.

Os príncipes ficaram tomados de terror assim que souberam das consequências funestas do envenenamento da favorita. Eles não tiveram a menor suspeita da premeditação do abade. Pensaram apenas em dar todas as aparências de naturalidade à morte da jovem senhora e à doença de seu amante. Nenhum deles tomou a iniciativa de oferecer um contra-veneno ao infeliz príncipe, com receio de se comprometer. Realmente tal atitude daria a entender que o veneno era conhecido e, consequentemente, que alguém era cúmplice do crime.

Graças à sua juventude e à força de seu temperamento, Carlos resistiu ao veneno por algum tempo. Seus sofrimentos físicos não fizeram outra coisa senão reconduzi-lo aos antigos projetos com mais ardor. Temendo que a doença diminuísse o zelo de seus oficiais, quis que esses renovassem o juramento de fidelidade. Como ele exigia que eles se engajassem a seu serviço, contra tudo e contra todos, mesmo contra mim, alguns dentre eles, temerosos de sua morte, que parecia próxima, recusaram-se a fazê-lo e passaram para a minha corte.

OBSERVAÇÃO: No número anterior vimos os detalhes interessantes, dados por Luís XI, relativamente à sua morte. O fato que acabamos de relatar não é menos notável sob o duplo ponto de vista da História e do fenômeno das manifestações. Aliás, só tínhamos dificuldades quanto à escolha: a vida desse rei, tal qual foi ditada por ele próprio, é incontestavelmente a mais completa que possuímos e, podemos dizer, a mais imparcial. O estado do espírito de Luís XI lhe permite hoje apreciar as coisas em seu justo valor. Pelos três fragmentos escolhidos, pode-se ver como faz o próprio julgamento. Ele explica sua política melhor que qualquer de seus historiadores. Não se absolve de sua conduta e, em sua morte, tão triste e tão vulgar para um monarca algumas horas antes todo-poderoso, vê um castigo antecipado.

Como fenômeno de manifestações, este trabalho oferece um interesse especial. Ele prova que as comunicações espíritas podem esclarecer-nos sobre a História, desde que nos saibamos colocar em condições favoráveis. Fazemos votos para que a publicação da vida de Luís XI, bem como a não menos interessante de Carlos VIII, igualmente concluída, venham em breve colocar-se ao lado da de Joana d’Arc.



SUA OPINIÃO SOBRE AS COMUNICAÇÕES EXTRACORPÓREAS
Vemos daqui certos escritores eméritos darem de ombros ao simples enunciado de uma história escrita pelos Espíritos. Dizem eles:

─ Como os seres do outro mundo podem vir controlar o nosso saber, controlarnos a nós, sábios da Terra? Ora esta! Isto é possível?

Senhores, não vos forçamos a acreditar; nem mesmo faremos o menor esforço no sentido de vos tirar tão cara ilusão. No interesse de vossa glória futura, vos convidamos, até, a inscrever os vossos nomes em caracteres indestrutíveis ao pé desta modesta sentença: Todos os partidários do Espiritismo são insensatos, pois a nós tão somente cabe julgar até onde vai o poder de Deus. Isto para que a posteridade não os esqueça. Ela própria verá se lhes deve dar lugar ao lado daqueles que pouco antes repeliram os homens a quem a Ciência e o reconhecimento público hoje erigem estátuas.

Eis aqui, contudo, um escritor cuja alta capacidade todos reconhecem e que, também ele, se arrisca a passar por um cabeça oca; também ele arvora a bandeira das ideias novas sobre as relações do mundo físico com o mundo extracorpóreo. Na Histoire de France, de Henri Martin, tomo 6, página 143, lemos o seguinte, a propósito de Joana d’Arc:

“... Existe na Humanidade uma ordem excepcional de fatos morais e físicos que aparentemente derrogam as leis ordinárias da Natureza: são os estados de êxtase e de sonambulismo, quer artificial, quer espontâneo, com todos os admiráveis fenômenos de perturbação dos sentidos, de insensibilidade total ou parcial do corpo, de exaltação da alma, de percepções fora de todas as condições da vida habitual. Os fatos dessa classe foram julgados sob pontos de vista completamente opostos. Vendo perturbadas ou deslocadas as relações costumeiras dos órgãos, os fisiologistas qualificam de doença os estados extático e sonambúlico. Admitem a realidade dos fenômenos que eles podem enquadrar na patologia e negam todo o resto, isto é, tudo aquilo que pareça estar fora das leis estabelecidas pela Física. A seus olhos a doença se converte em loucura, quando à alteração da ação dos órgãos se juntam alucinações dos sentidos e visões de objetos que só existem para o visionário.

“Um eminente fisiologista sustentou muito austeramente que Sócrates era um louco, porque julgava conversar com o seu demônio.

“Os místicos respondem não só afirmando que são reais os extraordinários fenômenos de percepções magnéticas, questões sobre as quais eles encontram inumeráveis auxiliares e inumeráveis testemunhas fora do misticismo, bem como sustentando que as visões dos extáticos têm objetos reais, certamente não vistos pelos olhos do corpo, mas pelos do Espírito. Para eles o êxtase é a ponte lançada do mundo visível ao invisível; o meio de comunicação do homem com os seres superiores; a lembrança e a promessa de uma existência melhor, de onde decaímos e que devemos reconquistar.

“Nesse debate, que partido devem tomar a História e a Filosofia?

“A História não poderia determinar com precisão os limites nem a extensão dos fenômenos, nem das faculdades extáticas e sonambúlicas, mas constata que ocorrem por toda parte; que os homens sempre lhes deram crédito; que eles exerceram uma ação considerável sobre os destinos do gênero humano; que se manifestaram não apenas entre os contemplativos, mas também entre os gênios mais potentes e mais ativos e a maioria dos grandes iniciados; que por mais desarrazoados que sejam muitos extáticos, nada existe de comum entre as divagações da loucura e as visões de tantos outros; que as visões podem ser ligadas a certas leis; que os extáticos de todos os lugares e de todos os tempos têm aquilo que se poderia chamar uma linguagem comum, a linguagem dos símbolos, da qual a poesia não é mais que um derivativo, linguagem que exprime, mais ou menos constantemente, as mesmas ideias e os mesmos sentimentos por intermédio das mesmas imagens.

“Talvez seja temerário concluir algo em nome da Filosofia. Entretanto, depois de haver reconhecido a importância moral desses fenômenos, por mais obscura que nos seja a sua lei e a sua finalidade; depois de havê-los distinguido em dois graus, um inferior, que não passa de uma estranha extensão ou deslocamento inexplicável da ação dos órgãos, e outro superior, que é uma prodigiosa exaltação das forças morais e intelectuais, o filósofo poderia, ao que nos parece, sustentar que a ilusão do inspirado consiste em tomar como revelação feita por seres exteriores, anjos, santos ou gênios, as revelações interiores dessa personalidade infinita que está em nós e que, por vezes, entre os melhores e os maiores, manifesta por lampejos de forças latentes que ultrapassam quase que incomensuravelmente as faculdades de nossa atual condição. Numa palavra, em linguagem acadêmica, são para nós fatos de subjetividade; na linguagem das antigas filosofias místicas e das mais adiantadas religiões, são revelações do ferouer[2] mazdeísta, do bom demônio (de Sócrates), do anjo da guarda, desse outro Eu que não passa do eu eterno, em plena posse de si mesmo, planando sobre o eu mergulhado nas sombras desta vida. É a figura do magnífico símbolo zoroastriano representado por toda parte em Persépolis e em Nínive: o ferouer alado ou o eu celeste, planando sobre a pessoa terrena.

“Negar a ação dos seres exteriores sobre o inspirado; não ver em suas pretensas manifestações mais que a forma dada às intuições do extático pelas crenças de seu tempo e de seu meio; buscar a solução do problema nas profundezas da personalidade humana, não é absolutamente pôr em dúvida a intervenção divina nos grandes fenômenos e nas grandes existências. O autor e sustentáculo de toda vida, por mais essencialmente independente que seja de cada criatura e de toda a criação; por mais distinta que seja de nosso ser contingente a sua personalidade absoluta, não é um ser exterior, isto é, estranho a nós e não é do exterior que ele nos fala. Quando a alma mergulha em si mesma, nela o encontra e, em toda inspiração salutar, nossa liberdade se associa à sua Providência. Aqui, como em tudo, é necessário prever o duplo perigo da incredulidade e da piedade mal esclarecida: uma não vê senão ilusões e impulsos puramente humanos; a outra se recusa a admitir qualquer parcela de ilusão, de ignorância ou de imperfeição onde só vê o dedo de Deus, como se os enviados de Deus deixassem de ser homens, homens de um certo tempo e de um certo lugar, e como se os relâmpagos sublimes que lhes atravessam a alma nela depositassem a Ciência universal e a perfeição absoluta. Nas mais evidentemente providenciais inspirações, os erros que vêm dos homens se misturam à verdade que vem de Deus. O ser infalível a ninguém comunica a sua infalibilidade.

“Julgamos que esta digressão não será tida por supérflua. Deveríamos pronunciar-nos sobre o caráter e sobre a obra daquela inspirada que no mais alto grau deu testemunho das faculdades extraordinárias de que falamos acima e que as aplicou à mais brilhante missão dos tempos modernos. Era preciso tentar emitir uma opinião à altura da categoria dos seres excepcionais à qual pertence Joana d’Arc.”



[2] Na religião avéstica, ser sobrenatural correspondente aos gênios dos romanos ou aos anjos guardiães da Religião Católica.




OS BANQUETES MAGNÉTICOS

A 26 de maio, aniversário natalício de Mesmer, realizaram-se os dois banquetes anuais que reúnem o escol dos magnetizadores de Paris e os adeptos estrangeiros que se juntam a eles. Sempre temos perguntado por que motivo essa solenidade comemorativa é celebrada em dois banquetes rivais, onde cada grupo bebe à saúde do outro e onde, sem resultado, ergue-se um brinde à união.

Naquele momento, tem-se a impressão de que estão prestes a se entenderem. Por que, então, uma cisão entre homens que se dedicam ao bem da Humanidade e ao culto da verdade? A verdade não se lhes apresenta sob a mesma luz? Têm eles duas maneiras de entender o bem da Humanidade? Estão divididos quanto aos princípios de sua Ciência? Absolutamente. Eles têm as mesmas crenças e o mesmo mestre, que é Mesmer. Se esse mestre, cuja memória invocam, atende a seu apelo, como o cremos, deve sofrer ao ver a desunião dos discípulos.

Felizmente essa desunião não desencadeará guerras como as queensanguentaram o mundo, em nome do Cristo, para eterna vergonha dos que se diziam cristãos. Entretanto, por mais inofensiva que seja, essa guerra não é menos lamentável, embora se limite aos golpes de pena e ao fato de beber cada um no seu canto. Gostaríamos de ver os homens de bem unidos por um mesmo sentimento de confraternização. Com isso a ciência magnética lucraria em progresso e em consideração.

Uma vez que os dois campos não estão divididos por divergências doutrinárias, em que se funda, então, o seu antagonismo? Não lhe podemos descobrir a causa senão nas susceptibilidades inerentes à imperfeição de nossa natureza, das quais nem mesmo os homens superiores por vezes estão isentos. Em todos os tempos o gênio da discórdia agitou o seu facho sobre a Humanidade. Isto significa, do ponto de vista espírita, que os Espíritos inferiores, invejosos da felicidade dos homens, encontram entre eles acesso muito fácil. Felizes aqueles que têm bastante força moral para repelir as suas sugestões.

Deram-nos a honra de convidar-nos para ambas as reuniões. Como se realizaram simultaneamente, e porque não passamos ainda de um Espírito muito materialmente encarnado, não possuindo o dom da ubiquidade, não nos foi possível satisfazer senão a um desses atenciosos convites. Fomos à reunião presidida pelo Dr. Duplanty.

É preciso dizer que ali os partidários do Espiritismo não constituem maioria. Contudo, verificamos prazerosamente que, salvo alguns piparotes dados nos Espíritos, nos versos espirituosas cantados pelo Sr. Julio Lovi e naqueles não menos divertidos, cantadas pelo Sr. Fortier, que teve as honras de um bis, a Doutrina Espírita não sofreu de ninguém críticas inconvenientes, em que são férteis alguns adversários, a despeito da educação de que se gabam.

Longe disso, num discurso notável e justamente aplaudido, o Dr. Duplanty proclamou, alto e bom som, o respeito que devemos ter pelas crenças sinceras, mesmo quando delas não compartilhamos. Sem pronunciar-se pró ou contra o Espiritismo, ele fez sabiamente observar que os fenômenos do magnetismo, revelando-nos um poder até então desconhecido, devem tornar-nos ainda mais circunspectos em relação aos que ainda se podem revelar e que, pelo menos, seria imprudência negar os que não compreendemos ou não chegamos a constatar, principalmente quando se apoiam na autoridade de homens honrados, cujas luzes e cuja lealdade não poderiam ser postas em dúvida.

São palavras sensatas, que agradecemos ao Sr. Duplanty. Elas contrastam singularmente com as de certos adeptos do Magnetismo, que inconsideradamente lançam o ridículo sobre uma doutrina que confessam desconhecer, esquecidos de que outrora também eles foram alvo dos sarcasmos; que também eles foram enviados aos hospícios e atacados pelos cépticos como inimigos do bom-senso e da religião. Hoje, que o Magnetismo se reabilitou pela força das circunstâncias; que dele não mais riem; que podemos sem susto confessar-nos magnetizadores, é pouco digno e pouco caritativo usarem dessas represálias contra uma ciência irmã que só lhes pode dar um benéfico apoio.

Nós não atacamos os homens, dizem eles; apenas rimos daquilo que parece ridículo, enquanto esperamos que a luz se faça para nós. Em nossa opinião, a ciência magnética, que professamos há 35 anos, deveria ser inseparável da seriedade. Parece-nos que neste mundo não falta pasto para a sua verve satírica, não havendo necessidade de tomarem como alvo as coisas sérias. Eles se esquecem de que foi usada contra eles a mesma linguagem; que eles próprios acusavam os incrédulos por julgarem levianamente e diziam, como nós agora, por nossa vez: “Paciência! Rirá melhor quem rir por último!”


ERRATUM
No nº 5 (maio de 1858), uma falha tipográfica desfigurou um nome próprio que, por isso mesmo, perdeu o sentido. No artigo “Conversas familiares de alémtúmulo – Mozart – Segunda conversa”, em vez de Poryolise, ler Pergolèse[1].

ALLAN KARDEC[2]



[1] Nesta edição, a falha foi corrigida a tempo. (N. do T.).


[2] Tipografia de Cosson & Cia., Rua do Four-Saint-Germain, 43.

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