Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Abril

Período psicológico.

Conquanto as manifestações espíritas se tenham verificado em todos os tempos, é incontestável que hoje se produzem de maneira excepcional. Interrogados sobre a matéria, os Espíritos foram unânimes na resposta: “São chegados os tempos marcados pela Providência para uma manifestação universal. Têm eles o encargo de dissipar as trevas da ignorância e dos preconceitos. É uma era nova que começa e que prepara a regeneração da humanidade”. Este pensamento acha-se desenvolvido de maneira notável numa carta que recebemos de um de nossos assinantes, da qual extraímos a seguinte passagem:

“Cada coisa tem seu tempo. O período que acaba de escoar-se parece ter sido especialmente destinado pelo Todo-Poderoso ao progresso das ciências físicas e matemáticas, e é provavelmente com o fito de dispor os homens aos conhecimentos exatos que ele se opôs, durante tanto tempo, à manifestação dos Espíritos, como se esta mesma manifestação pudesse ser prejudicial ao positivismo exigido pelo estudo das ciências. Numa palavra, quis habituar o homem a procurar nas ciências de observação a explicação de todos os fenômenos que a seus olhos se deviam produzir.

“Parece que o período científico chega hoje a seu termo. Após os imensos progressos nele realizados, não seria impossível que o novo período, que deve suceder àquele, fosse consagrado pelo Criador às iniciações de ordem psicológica. Na imutável lei de perfectibilidade estabelecida para os seres humanos, que pode ele fazer, depois de havê-los iniciado nas leis físicas do movimento e de lhes haver revelado motores com os quais mudam a face do globo? O homem sondou as profundezas mais longínquas do espaço; a marcha dos astros e o movimento geral do universo já lhe não guardam segredos; lê nas camadas geológicas a história da formação do globo; a luz se transforma, à sua vontade, em imagens duradouras; domina o raio; com o vapor e a eletricidade suprime as distâncias e o pensamento atravessa o espaço com a rapidez do relâmpago. Chegado a este ponto culminante, ao qual a História da humanidade não oferece nenhum símile, qualquer que tenha sido o seu grau de avanço nas eras remotas, parece-me razoável pensar que a ordem psicológica lhe abre uma nova estrada na via do progresso. É, pelo menos, o que se poderia induzir dos fatos que se produzem em nossos dias e se multiplicam por todos os lados. Esperemos, pois, que se aproxime o momento — se é que ainda não chegou — em que o Todo-Poderoso vai iniciar-nos em novas, grandes e sublimes verdades.

A nós cabe compreendê-lo e secundá-lo na obra da regeneração.

Esta carta é do Sr. Georges, do qual falamos em nosso primeiro número. Cabe-nos apenas felicitá-lo por seu progresso na doutrina. Os elevados pontos de vista que desenvolve demonstram que a compreende sob seu verdadeiro prisma. Para ele a doutrina não se resume na crença nos Espíritos e em suas manifestações: é toda uma filosofia. Como ele, admitimos que entramos no período psicológico. Os motivos que nos apresenta são perfeitamente racionais, posto não pensemos que o período científico tenha dito a última palavra; ao contrário, supomos que ainda nos reserva muitos outros prodígios. Estamos numa época de transição, na qual se confundem os caracteres dos dois períodos.

Os conhecimentos que os antigos possuíam sobre as manifestações dos Espíritos não serviriam de argumento contra a ideia do período psicológico que se prepara. Com efeito, notemos que na Antiguidade esses conhecimentos se limitavam a um estreito círculo de homens de escol. Sobre eles tinha o povo apenas algumas ideias, falseadas pelos preconceitos e desfiguradas pelo charlatanismo dos sacerdotes, que delas se serviam como um meio de dominação. Como já dissemos alhures, jamais esses conhecimentos se perderam: ficaram como fatos isolados, certamente porque não eram ainda chegados os tempos para que fossem compreendidos. Aquilo que hoje se passa tem um caráter completamente diverso: as manifestações são gerais; chocam a sociedade de alto a baixo. Os Espíritos já não ensinam nos recessos misteriosos dos templos, inacessíveis ao vulgo. Esses fatos se passam em plena luz. Eles falam uma linguagem a todos inteligível.

Tudo, pois, anuncia, do ponto de vista moral, uma nova fase para a humanidade.

O Espiritismo entre os druidas.

Sob o título Le vieux neuf*, o Sr. Edouard Fournier publicou, há dez anos, no Le Siècle, uma série de artigos tão notáveis, do ponto de vista de erudição, quanto interessantes em relação à História. Passando em revista todas as invenções e descobertas modernas, prova o autor que se o nosso século tem o mérito da aplicação e do desenvolvimento, não tem — pelo menos quanto à maior parte delas — o da prioridade. Na época em que o Sr. Fournier escrevia esses magníficos folhetins, ainda não se cogitava de Espíritos, sem o que não teria ele deixado de sublinhar que tudo quanto se passa hoje é mera repetição daquilo que os antigos sabiam tão bem ou melhor do que nós. Nós o lamentamos, porque suas profundas investigações ter-lhe-iam permitido escavar a antiga mística, tanto quanto escavou a Antiguidade industrial. Fazemos votos para que as suas laboriosas pesquisas sejam um dia dirigidas para esse lado.


* O velho novo.


Quanto a nós, as observações pessoais nenhuma dúvida nos deixam relativamente à Antiguidade e à universalidade da doutrina ensinada pelos Espíritos. A coincidência entre o que hoje nos dizem e as crenças das mais remotas eras é um fato significativo do mais elevado alcance. Faremos notar, entretanto, que se encontramos por toda parte os traços da doutrina espírita, em parte alguma a vemos completa. Parece ter sido reservada à nossa época a tarefa de coordenar esses fragmentos esparsos entre todos os povos, a fim de chegarmos à unidade de princípios, através de um conjunto mais completo e sobretudo mais geral de manifestações que, ao que parece, dão razão ao autor do artigo citado pouco antes, sobre o período psicológico no qual aparentemente vai entrando a humanidade.

Quase que por toda parte a ignorância e os preconceitos desfiguraram essa doutrina, cujos princípios fundamentais se misturam às práticas supersticiosas de todos os tempos, exploradas com o fim de abafar a razão. Entretanto, sob esse amontoado de absurdos germinavam as mais sublimes ideias, como sementes preciosas ocultas sob as sarças, à espera da luz vivificante do sol para se desenvolverem. Mais universalmente esclarecida, nossa geração afasta as sarças.

Esse arroteamento, entretanto, não pode ser feito sem transição.

Deixemos, pois, às boas sementes, o tempo necessário ao seu desenvolvimento e às más ervas o tempo para desaparecerem.

A doutrina druídica oferece-nos um curioso exemplo daquilo que acabamos de dizer. Essa doutrina, de que não conhecemos mais que as práticas exteriores, elevava-se, sob certos aspectos, às mais sublimes verdades. Mas essas verdades eram apenas para os iniciados: apavorado pelos sacrifícios sangrentos, o público colhia com santo respeito o agárico sagrado do carvalho e via apenas a fantasmagoria. Poderemos avaliá-lo pela citação do texto que segue, extraído de um documento tão precioso quão desconhecido, o qual lança uma luz completamente nova sobre a verdadeira teologia de nossos ancestrais.

“Oferecemos à reflexão de nossos leitores um texto céltico, há pouco publicado, cujo aparecimento causou certa emoção no mundo culto. É impossível ter certeza de sua autoria, bem como a que século remonta. É incontestável, entretanto, que pertence à tradição dos bardos do País de Gales, e essa origem é suficiente para conferir-lhe um valor de primeira grandeza.

“Sabe-se, com efeito, que o País de Gales é, ainda em nossos dias, o mais fiel asilo da nacionalidade gaulesa, que entre nós sofreu modificações muito profundas. Apenas roçada pela dominação romana, que nela se deteve pouco tempo e fracamente; preservada da invasão dos bárbaros pela energia de seus habitantes e pelas dificuldades de seu território; submetida, mais tarde, à dinastia normanda, a qual, entretanto, se viu obrigada a lhe deixar um certo grau de independência, o nome de Gales, Gallia, que sempre conservou, é um traço distintivo, pelo qual se liga, sem descontinuidades, ao período antigo.

“A língua kymrica, falada outrora em toda a parte setentrional da Gália, jamais deixou de ser usada, e muitos costumes são igualmente gauleses. De todas as influências estranhas, a única que logrou um triunfo completo foi o Cristianismo. Mas não o conseguiu sem grandes dificuldades, relativamente à supremacia da Igreja Romana, cuja reforma, no século XVI, não fez mais que determinar-lhe a queda há tanto tempo preparada nessas regiões cheias de um sentimento de indefectível independência.

“Pode-se mesmo dizer que, convertendo-se ao Cristianismo, os druidas não se extinguiram totalmente no País de Gales, como na nossa Bretanha e em outras regiões de sangue gaulês. Tiveram como consequência imediata uma sociedade muito solidamente constituída, aparentemente dedicada principalmente ao culto da poesia nacional, mas que, sob o manto poético, conservou com uma fidelidade notável a herança intelectual da Gália antiga: a Sociedade Bárdica do País de Gales, que, depois de se haver mantido como sociedade secreta durante toda a Idade Média, por uma transmissão oral de seus monumentos literários e de sua doutrina, à semelhança do que faziam os druidas, decidiu-se, ao redor dos séculos XVI e XVII, a confiar à escrita as partes mais essenciais dessa herança. Desse acervo, cuja autenticidade é assim atestada por uma cadeia tradicional ininterrupta, procede o texto de que falamos, e o seu valor, dadas essas circunstâncias, não depende, como se vê, da mão que teve o mérito de escrevê-lo, nem da época em que sua redação pôde assumir sua forma definitiva. O que ali transpira, acima de tudo, é o espírito dos bardos medievais, que por sua vez eram os últimos discípulos dessa corporação sábia e religiosa que, sob o nome de druidas, dominou a Gália durante o primeiro período de sua História, mais ou menos à maneira que o fez o clero latino durante a Idade Média.

“Ainda mesmo que estivéssemos privados de todas as luzes quanto à origem do texto de que se trata, é claro que estaríamos na via certa, dada sua concordância com os ensinamentos que os autores gregos e latinos nos deixaram relativamente à doutrina religiosa dos druidas. Constitui-se essa concordância de pontos indubitáveis de solidariedade, porque se apoiam em razões tiradas da própria substância de tais escritos. A solidariedade assim demonstrada em relação aos artigos capitais — os únicos de que nos falaram os Antigos — estende-se, naturalmente, aos desenvolvimentos secundários. Com efeito, penetrados do mesmo espírito, esses desenvolvimentos derivam necessariamente da mesma fonte; fazem corpo com o fundo e não se podem explicar senão por ele. Ao mesmo tempo que, por uma dedução tão lógica, eles remontam aos primitivos depositários da religião druídica, é impossível assinalar-lhes qualquer outro ponto de partida, porque, fora da influência druídica, a região de onde promanam não sofreu nenhuma outra, além da influência cristã, que é totalmente estranha a tais doutrinas.

“Os temas desenvolvidos nas tríades estão mesmo tão completamente fora do Cristianismo que as raras influências cristãs que aqui e ali se infiltraram no seu conjunto, logo à primeira vista se distinguem do fundo primitivo. Essas influências, oriundas ingenuamente da consciência dos bardos cristãos, mal conseguiram, se assim se pode dizer, ser intercaladas nos interstícios da tradição, mas não lograram fundir-se com ela. A análise do texto é, pois, tão simples quão rigorosa, pois pode reduzir-se a pôr de lado tudo quanto traz o selo do Cristianismo e, uma vez operada a triagem, considerar como de origem druídica tudo quanto fica visivelmente caracterizado por uma religião diferente da do Evangelho e dos Concílios.

Assim, para citar apenas o que é essencial, partindo do tão conhecido princípio de que o dogma da caridade em Deus e no homem é tão peculiar ao Cristianismo quanto o da migração das almas o é ao antigo Druidismo, um certo número de tríades, nas quais respira um espírito de amor jamais conhecido na Gália primitiva, traem-se imediatamente como as marcas de um caráter comparativamente moderno, ao passo que as outras, animadas por um sopro completamente diferente, revelam ainda melhor o cunho de alta Antiguidade que os distingue.

“Enfim, não é demais observar que a própria forma do ensino contido nas tríades é de origem druídica. Sabe-se que os druidas tinham uma predileção particular pelo número três e o empregavam especialmente, como no-lo mostram a maioria dos monumentos gauleses, para a transmissão de suas lições que, mediante essa forma precisa, mais facilmente era gravada na memória. Diógenes Laércio nos conservou uma dessas tríades, que resume sucintamente o conjunto de deveres do homem para com a Divindade, para com os semelhantes e para consigo mesmo: “Honrar os seres superiores, não cometer injustiça e cultivar em si a virtude viril”. A literatura dos bardos propagou inúmeros aforismos do mesmo gênero, relativos a todos os ramos do saber humano: Ciência, História, Moral, Direito, Poesia. Não os há mais interessantes nem mais adequados a inspirar grandes reflexões do que aqueles cujo texto publicamos a seguir, conforme a versão francesa do Sr. Adolphe Pictet.

“Desta série de tríades, as onze primeiras são consagradas à exposição dos atributos característicos da Divindade. É nesse segmento que a influência cristã, como era fácil de prever, teve a maior influência. Se não se pode negar que o Druidismo tenha conhecido o princípio da unidade de Deus, talvez por sua predileção pelo número ternário tenha concebido, de modo confuso, algo como a divina Trindade. É contudo incontestável que o que completa essa alta concepção teológica — a saber, a distinção das pessoas e, particularmente, da terceira — ficou completamente estranho a essa antiga religião. Tudo conduz à prova de que seus antigos sectários se preocupavam muito mais em estabelecer a liberdade do homem do que a caridade. Foi precisamente em consequência dessa falsa posição do ponto de partida que ela pereceu. Também parece razoável associar a uma influência cristã, mais ou menos determinada, todo esse exórdio, principalmente a partir da quinta tríade.

“Em seguida aos princípios gerais relativos à natureza de Deus, passa o texto a expor a constituição do universo. O conjunto dessa constituição é formulado superiormente em três tríades que, mostrando os seres particulares numa ordem absolutamente diferente daquela de Deus, completam a ideia que deve ser feita do Ser único e imutável. Sob fórmulas mais explícitas, essas tríades mais não fazem, entretanto, que reproduzir aquilo que já era sabido, pelo testemunho dos antigos, sobre a doutrina da circulação das almas, passando alternativamente da vida à morte e da morte à vida. Podemos considerá-los como o comentário de um verso célebre da Farsália*, no qual o poeta exclama, dirigindo-se aos sacerdotes da Gália, que se aquilo que ensinam é certo, a morte não é mais que o meio de uma longa vida: Longae vitae mors media est.”


* Poema de Lucano, poeta latino natural de Córdoba, na Espanha. Consta de 10 livros e narra a guerra civil entre César e Pompeu. (N. do T.)

Deus e o universo.

I. — Há três unidades primitivas e de cada uma delas não poderia existir mais que uma: um Deus, uma verdade e um ponto de liberdade, isto é, o ponto onde se encontra o equilíbrio de toda oposição.

II. — Três coisas procedem das três unidades primitivas: toda vida, todo bem e todo poder.

III. — Deus é necessariamente três coisas: a maior parte da vida, a maior parte da ciência e a maior parte do poder. De cada coisa não poderia haver uma parte maior.

IV. — Três coisas Deus não pode deixar de ser: o que deve constituir o bem perfeito, o que deve querer o bem perfeito e o que deve realizar o bem perfeito.

V. — Três garantias do que Deus faz e fará: seu poder infinito, sua sabedoria infinita e seu amor infinito, pois não há nada que não possa ser efetuado, que não possa tornar-se verdadeiro e que não possa ser desejado por um atributo.

VI. — Três fins principais da obra de Deus, como Criador de todas as coisas: diminuir o mal, reforçar o bem e esclarecer toda diferença, de modo que se possa saber o que deve ser ou, ao contrário, o que não deve ser.

VII. — Três coisas que Deus não pode deixar de conceder: o que há de mais vantajoso, o que há de mais necessário e o que há de mais belo para cada coisa.

VIII. — Três forças da existência: não poder ser de outro modo, não ser necessariamente outra e não poder ser melhor pela concepção. Nisto está a perfeição de todas as coisas.

IX. — Três coisas prevalecerão necessariamente: o supremo poder, a suprema inteligência e o supremo amor de Deus.

X. — As três grandezas de Deus: vida perfeita, ciência perfeita, poder perfeito.

XI. — Três causas originais dos seres vivos: o amor divino, de acordo com a suprema inteligência; a sabedoria suprema, pelo conhecimento perfeito de todos os meios; o poder divino, de acordo com a vontade, o amor e a sabedoria de Deus.

Os três círculos.

XII. — Há três círculos de existência: o círculo da região vazia (ceugant) onde, exceto Deus, não há nada vivo nem morto e nenhum ser que Deus não possa penetrar; o círculo da migração (abred) onde todo ser animado procede da morte, que o homem atravessou; e o círculo da felicidade (gwynfyd), onde todo ser animado procede da vida, e que o homem atravessará no céu.
XIII. — Três estados sucessivos dos seres animados: o estado de humilhação no abismo (annoufn), o estado de liberdade na humanidade e o estado de felicidade no céu.

XIV. — Três fases necessárias de toda existência em relação à vida: o começo em annoufn; a transmigração em abred e a plenitude em gwynfyd. Sem estas três coisas nada pode existir, exceto Deus.

“Assim, em resumo, sobre o ponto capital da Teologia cristã de que Deus, por seu poder criador, tira as almas do nada, as tríades não se pronunciam de maneira precisa. Depois de haver mostrado Deus na esfera eterna e inacessível, elas mostram simplesmente as almas se originando nas últimas camadas do universo, no abismo (annoufn); daí essas almas passam para o círculo das migrações (abred), onde seu destino é determinado através de uma série de existências, segundo o bom ou mau uso que hajam feito de sua liberdade; por fim, elevam-se ao círculo supremo (gwynfyd), onde cessam as migrações, onde não mais se morre, onde a vida se escoa na felicidade, conservando uma atividade perpétua e a plena consciência de sua individualidade. Na verdade, o Druidismo não cai no erro das teologias orientais, que levam o homem a ser finalmente absorvido no seio imutável da Divindade, pois, ao contrário, distingue um círculo especial, o círculo do vazio ou do infinito (ceugant), que forma o privilégio incomunicável do Ser supremo, e no qual nenhum ser, seja qual for o grau de sua santidade, jamais poderá penetrar. É o ponto mais elevado da religião, porque marca o limite fixado ao progresso das criaturas.

“O traço mais característico dessa Teologia, posto seja um traço puramente negativo, consiste na ausência de um círculo particular, tal como o Tártaro da antiguidade pagã, destinado à punição sem fim das almas criminosas. Para os druidas não existe o inferno propriamente dito. A distribuição dos castigos, aos seus olhos, efetua-se no círculo das migrações, pela ligação das almas em condições de existência mais ou menos infelizes, onde, sempre senhoras de sua liberdade, expiam suas faltas pelo sofrimento e se dispõem, pela reforma de seus vícios, a um futuro melhor. Em certos casos pode mesmo acontecer que as almas retrogradem até a região do annoufn, onde nascem, e à qual quase não se pode dar outro significado senão o da animalidade. Por esse lado perigoso da retrogradação, que nada justifica, porque a diversidade de condições de existência no círculo da humanidade é perfeitamente suficiente à penalidade de todos os graus, o Druidismo teria, então, chegado a deslizar até a metempsicose. Mas esse extremo desagradável, ao qual não conduz nenhuma necessidade da doutrina do desenvolvimento das almas pela via das migrações, como se verá pela série de tríades relativas ao regime do círculo de abred, parece ter ocupado no sistema da religião um lugar secundário.

“Salvo algumas obscuridades, devidas talvez às dificuldades de uma língua cujas profundezas metafísicas ainda não se nos tornaram bem conhecidas, as declarações das tríades relativas às condições inerentes ao círculo de abred derramam as mais vivas luzes sobre o conjunto da religião druídica. Sente-se que nela perpassa um sopro de superior originalidade. O mistério que à inteligência oferece o espetáculo de nossa existência atual adquire nela uma feição singular que não se encontra em parte alguma. Dir-se-ia que um grande véu, rompendo-se aquém e além da vida, deixa a alma nadar de repente, com uma força inesperada, através de uma extensão indefinida, de que jamais foi capaz de suspeitar por si mesma na sua prisão entre as portas espessas do nascimento e da morte.

“Seja qual for o julgamento a que cheguemos quanto à veracidade dessa doutrina, não podemos deixar de convir que seja profunda. Refletindo sobre o efeito que, inevitavelmente, deviam produzir sobre as almas simples, estes princípios sobre a sua origem e o seu destino, é fácil compreendermos a enorme influência que os druidas tinham adquirido naturalmente sobre o espírito de nossos antepassados. Em meio às trevas da Antiguidade, esses ministros sagrados não podiam deixar de aparecer, aos olhos da população, como os reveladores do Céu e da Terra.

XV ─ Três coisas necessárias no círculo de abred: o menor grau possível de toda a vida, e daí o seu começo; a matéria de todas as coisas, e daí o crescimento progressivo, que só se realiza no estado de carência; a formação de todas as coisas da morte, e daí a debilidade das existências.
XVI ─ Três coisas das quais todo ser vivo participa necessariamente, pela justiça de Deus: o socorro de Deus em abred, porque sem isso ninguém poderia conhecer coisa alguma; o privilégio de participar do amor de Deus; e o acordo com Deus, que é justo e misericordioso, quanto à realização pelo seu poder.

XVII
─ Três causas da necessidade do círculo de abred: o desenvolvimento da substância material de todo ser animado; o desenvolvimento do conhecimento de todas as coisas; e o desenvolvimento da força moral para superar todo contrário e Cythraul (o mau Espírito) e para libertar-se de Droug (o mal). Sem essa transição por cada estado de vida, não poderia haver nele a realização de nenhum ser.
XVIII ─ Três calamidades primitivas de abred: a necessidade, a ausência de memória e a morte.

XIX ─ Três condições necessárias para chegar à plenitude da ciência: transmigrar em abred; transmigrar em gwynfyd e recordar-se de todas as coisas passadas, até em annoufn.

XX ─ Três coisas indispensáveis no círculo de abred: a transgressão da lei, pois não pode ser de outro modo; o resgate pela morte ante Droug e Cythraul; o desenvolvimento da vida e do bem pelo afastamento de Droug no resgate da morte, e isto pelo amor de Deus, que abrange todas as coisas.

XXI ─ Três meios eficazes de Deus em abred para dominar Droug e Cythraul e para superar a sua posição, em relação ao círculo gwynfyd: a necessidade, a perda da memória e a morte.

XXII ─ Três coisas são primitivamente contemporâneas: o homem, a liberdade e a luz.

XXIII ─ Três coisas necessárias à vitória do homem sobre o mal: a firmeza contra a dor, a mudança e a liberdade de escolha. Com o poder que tem o homem de escolher, não é possível ter a certeza prévia de para onde irá.

XXIV ─ Três alternativas oferecidas ao homem: abred e gwynfyd; necessidade e liberdade; mal e bem. Com o todo em equilíbrio, o homem pode, à vontade, ligarse a um ou ao outro.

XXV ─ Por três coisas cai o homem na necessidade de abred: pela ausência de esforços para o conhecimento; pelo não apego ao bem e pelo apego ao mal. Em consequência destas coisas, desce em abred até o seu análogo e recomeça o curso de sua transmigração.

XXVII ─ Por três coisas retorna o homem necessariamente a abred, embora noutros sentidos esteja ligado ao que é bom: pelo orgulho, cai até o annoufn; pela falsidade, até o ponto do demérito equivalente; pela crueldade, até o grau correspondente de animalidade. Daí transmigra novamente para a Humanidade, como antes.

XXVII ─ As três principais coisas a obter no estado de humanidade: a ciência, o amor e a força moral, no mais alto grau possível de desenvolvimento, antes que sobrevenha a morte. Isto não pode ser obtido anteriormente ao estado de humanidade e não o pode ser senão pelo privilégio da liberdade e da escolha. Estas três coisas são chamadas as três vitórias.

XXVIII ─ Há três vitórias sobre Droug e Cythraul: a ciência, o amor e a força moral, porque o saber, o querer e o poder realizam o que quer que seja em sua conexão com as coisas. Estas três vitórias começam na condição de humanidade e se desenvolvem eternamente.

XXIX─ Três privilégios da condição do homem: o equilíbrio entre o bem e o mal, e daí a faculdade de comparar; a liberdade na escolha, e daí o julgamento e a preferência; o desenvolvimento da força moral em consequência do julgamento, e daí a preferência. Estas três coisas são necessárias à realização do que quer que seja.

“Assim, em resumo, o início dos seres no seio do Universo dá-se no mais baixo ponto da escala da vida. Se não é levar muito longe as consequências da declaração contida na vigésima sétima tríade, pode-se conjecturar que na doutrina druídica esse ponto inicial estava supostamente no abismo confuso e misterioso da animalidade. Daí resulta, consequentemente, desde a própria origem da história da alma, a necessidade lógica do progresso, pois os seres não são por Deus destinados a ficar em condição tão baixa e tão obscura. Contudo, nos estágios inferiores do Universo, esse progresso não se desenrola segundo uma linha contínua. Essa longa vida, nascendo tão baixo para elevar-se tanto, quebra-se em segmentos, solidários na base de sua sucessão, mas cuja misteriosa solidariedade, graças à falta de memória, escapa, pelo menos por algum tempo, à consciência do indivíduo. São essas interrupções periódicas no secular curso da vida que constituem aquilo a que chamamos morte, de maneira que a morte e o nascimento que, por uma consideração superficial, formam dois acontecimentos tão diversos, na realidade não são mais que as duas faces do mesmo fenômeno: uma voltada para o período que se acaba, a outra para o que se inicia.

“Por isso a morte, considerada em si mesma, não é uma calamidade verdadeira, mas um benefício de Deus. Rompendo os hábitos estreitíssimos que havíamos contraído com a nossa vida presente, ela nos transporta a novas condições e dá lugar, assim, a que nos elevemos mais livremente a novos progressos.

“Assim como a morte, a perda da memória que a acompanha não deve ser tomada senão como um benefício. É uma consequência do primeiro ponto, porque, se no curso desta longa vida, a alma conservasse claramente suas lembranças de um período a outro, a interrupção seria meramente acidental e não haveria nem morte, propriamente dita, nem nascimento, pois que esses dois acontecimentos perderiam, desde então, o caráter absoluto que os distingue e lhes dá força.

Mesmo do ponto de vista dessa teologia, não é difícil perceber diretamente, no que respeita aos períodos passados, de que maneira a perda da memória poderia ser considerada um benefício, relativamente ao homem, na sua condição presente, porque se esses períodos passados, como a posição atual do homem num mundo de sofrimentos, constituem uma prova, infelizmente foram manchados de erros e de crimes, causa primeira das misérias e das expiações de hoje. Evidentemente é uma vantagem para a alma achar-se livre da visão de uma tão grande quantidade de faltas e, ao mesmo tempo, dos mais acabrunhadores remorsos que daí nasceriam. Como não a obriga a um arrependimento formal senão relativamente às culpas da vida atual, assim se compadecendo de sua fraqueza, Deus realmente lhe concede uma grande graça.

“Enfim, segundo esta mesma maneira de considerar o mistério da vida, as necessidades de toda natureza a que somos aqui submetidos e que, desde o nosso nascimento, por um desígnio por assim dizer fatal, determinam a forma de nossa existência no presente período, constituem um último benefício, tão sensível quanto os dois outros. Em definitivo, são essas necessidades que dão à nossa vida o caráter que melhor convém às nossas expiações e às nossas provas e consequentemente ao nosso desenvolvimento moral. São ainda essas mesmas necessidades, tanto de nossa organização física quanto das circunstâncias exteriores, em cujo meio somos colocados que, arrastando-nos forçosamente à morte, arrastam-nos, por isso mesmo, à nossa suprema libertação. Em resumo, como dizem as tríades em sua enérgica concisão, nelas se acham reunidas as três calamidades primitivas e os três meios eficazes de Deus em abred.

“Entretanto, por meio de que conduta a alma realmente se eleva nesta vida e merece, após a morte, alcançar um estado superior de existência?

“A resposta dada pelo Cristianismo a esta pergunta fundamental é de todos conhecida: é com a condição de destruir em si o egoísmo e o orgulho; de desenvolver no íntimo de sua substância as forças da humildade e da caridade, únicas eficazes e meritórias aos olhos de Deus. Bem-aventurados os mansos, diz o Evangelho. Bem-aventurados os humildes!

“A resposta do Druidismo é bem diversa e contrasta claramente com esta última. Conforme suas lições, a alma eleva-se na escala das existências, com a condição de, pelo trabalho sobre si mesma, fortificar a própria personalidade. Esse resultado ela obtém naturalmente, pelo desenvolvimento da força de caráter, aliada ao desenvolvimento do saber. É o que exprime a vigésima quinta tríade, que declara que a alma recai na necessidade de transmigrações, isto é, nas vidas confusas e mortais, não só por alimentar as paixões más, como pelo hábito do desleixo na realização das ações justas; pela falta de firmeza no apego ao que é prescrito pela consciência; em uma palavra, pela fraqueza de caráter. Além dessa falta de virtude moral, a alma é ainda retida em seu progresso para o Céu pela falta de aperfeiçoamento do Espírito. A iluminação intelectual, necessária à plenitude da felicidade, não se opera simplesmente na alma feliz por uma irradiação do Alto absolutamente graciosa. Ela só se produz na vida celeste se a própria alma soube fazer esforços desde esta vida para adquiri-la. Assim, a tríade não fala apenas da ausência de saber, mas da falta de esforços para saber, o que, no fundo, como para a virtude precedente, é um preceito de atividade e de movimento.

“Realmente, nas tríades seguintes, a caridade é recomendada tanto quanto a ciência e a força moral. Mas aqui, ainda, naquilo que tange à natureza divina, é sensível à influência do Cristianismo. É a ele, e não à forte mas dura religião de nossos antepassados, que pertence a pregação e a entronização, no mundo, da lei da caridade em Deus e no homem. Se esta lei brilha nas tríades, é por efeito de uma aliança com o Evangelho, ou melhor, de um feliz aperfeiçoamento da teologia dos druidas pela ação da dos apóstolos, e não por uma tradição primitiva. Subtraiamos este raio divino e teremos, em sua rude grandeza, a moral da Gália, moral que pôde produzir, na ordem do heroísmo e da ciência, poderosas personalidades, mas que não soube uni-las, nem entre si, nem com a multidão dos humildes24”.

A Doutrina Espírita não consiste apenas na crença nas manifestações dos Espíritos, mas em tudo quanto eles nos ensinam sobre a natureza e o destino das almas. Se, pois, nos reportarmos aos preceitos contidos no Livro dos Espíritos, onde encontraremos formulado todo o seu ensino, ficaremos admirados ante a identidade de alguns princípios fundamentais com os da doutrina druídica, dentre os quais um dos mais notáveis é, incontestavelmente, o da reencarnação. Nos três círculos, nos três estados sucessivos dos seres animados, encontramos todas as fases apresentadas por nossa escala espírita. Realmente, o que é o círculo de abred ou o da migração,

24 Extraído do Magasin Pittoresque, 1857.

senão as duas ordens de Espíritos que se depuram pelas existências sucessivas? No círculo gwynfyd o homem não transmigra mais; ele desfruta da suprema felicidade. Não é a primeira ordem da escala, a dos puros Espíritos que tendo realizado todas as provas, não mais necessitam da reencarnação e gozam a vida eterna? Notemos ainda que, segundo a doutrina druídica, o homem conserva o livre-arbítrio; que se eleva gradativamente, por sua vontade, por sua perfeição progressiva e pelas provas por que passou, do annoufn ou abismo, à perfeita felicidade em gwynfyd, com a diferença, entretanto, que o Druidismo admite a volta possível às camadas inferiores, ao passo que, segundo o Espiritismo, o Espírito pode ficar estacionário, mas não pode degenerar.

Para completar a analogia, bastaria acrescentar à nossa escala, abaixo da terceira ordem, o círculo de annoufn, que caracteriza o abismo ou a origem desconhecida das almas e, acima da primeira ordem, o círculo de ceugant, morada de Deus, inacessível às criaturas. O quadro seguinte tornará mais clara a comparação.

ESCALA ESPÍRITA[1]

ESCALA DRUÍDICA




Ceugant. Morada de Deus

1.ª ordem

1.ª Classe

Espíritos Puros. Não mais reencarnarão.

Gwynfyd. Morada dos bemaventurados. Vida eterna.


2.ª classe

Espíritos superiores*


2.ª ordem

Bons

Espíritos

3.ª ordem Espíritos imperfeitos

3.ª classe

4.ª classe

5ª classe

Espíritos de sabedoria*

Espíritos de ciência*

Espíritos benevolentes*

Abred. Círculo das migrações ou das diversas existências corpóreas, que as almas percorrem para chegar de annoufn a gwynfyd.

6.ª classe

7.ª classe

8.ª classe

9.ª classe

Espíritos neutros*

Espíritos pseudossábios*

Espíritos levianos*

Espíritos impuros*




Annoufn. Abismo, ponto de partida das almas

* Depurando-se e elevando-se pelas provas da reencarnação



Em sua Voyage aux sources du Nil[1] em 1768, conta James Bruce o que damos a seguir, a respeito de Gingiro, pequeno reino situado na parte sul da Abissínia, a leste do reino de Adel. Trata-se de dois embaixadores que Socínios, rei da Abissínia, enviou ao papa, por volta de 1625, e que tiveram de atravessar o Gingiro.

“Então, diz Bruce, foi necessário prevenir o rei de Gingiro da chegada da caravana e pedir-lhe audiência. Mas naquele momento estava ele ocupado em importante operação de magia, sem a qual jamais o soberano ousaria empreender coisa alguma.

“O reino de Gingiro pode ser considerado como o primeiro desse lado da África em que se estabeleceu a estranha prática de predizer o futuro pela evocação dos Espíritos e por uma comunicação direta com o diabo.

“O rei de Gingiro achou que devia deixar passar oito dias para receber em audiência o embaixador e o seu companheiro, o jesuíta Fernandez. Em consequência, ao nono dia eles receberam permissão para ir à corte, onde chegaram na mesma tarde.

“Em Gingiro nada se faz sem recorrer à magia. Por aí se vê quanto a razão humana se acha degradada, a algumas léguas de distância. Que não nos venham dizer que tal fraqueza deve ser atribuída à ignorância ou ao calor da região. Por que um clima quente induziria os homens a se transformarem em magos, o que não se verificaria num clima frio? Por que a ignorância dilataria o poder do homem a ponto de fazê-lo transpor os limites da inteligência ordinária e dar-lhe a faculdade de se corresponder com uma nova ordem de seres, habitantes de outro mundo? Os etíopes, que abrangem quase toda a Abissínia, são mais negros que os gingiranos. Sua terra é mais quente e, como aqueles, são indígenas, nos lugares que habitam, desde o começo dos séculos. Entretanto nem adoram o diabo, nem pretendem ter com ele qualquer comunicação; não sacrificam homens em seus altares; enfim, entre eles nenhum traço se encontra dessa revoltante atrocidade.

“Nas partes da África que têm comunicação aberta com o mar, o comércio de escravos está em uso, desde os mais remotos séculos, mas o rei de Gingiro, cujos domínios se acham encerrados quase que no centro do continente, sacrifica ao diabo os escravos que não pode vender ao homem. É ali que começa esse horrível costume de derramar o sangue humano em todas as solenidades.

“Ignoro, diz o Sr. Bruce, até onde ele se estende para o sul da África, mas considero Gingiro como o limite geográfico do reino do diabo, do lado setentrional da península”.

Se o Sr. Bruce tivesse visto aquilo que hoje testemunhamos, nada de assombroso acharia na prática das evocações usadas em Gingiro. Ele só vê nelas uma crença supersticiosa, enquanto nós encontramos a sua causa no fato de manifestações falsamente interpretadas, que puderam produzir-se lá como alhures. O papel que a credulidade atribui nelas ao diabo nada tem de surpreendente. Inicialmente, é preciso observar que todos os povos bárbaros atribuem a um poder maléfico os fenômenos que não podem explicar. Em segundo lugar, um povo bastante atrasado, a ponto de sacrificar seres humanos, por certo não pode atrair ao seu meio Espíritos superiores. Por sua natureza, os que o visitam só poderão confirmá-los em sua crença. Além disso, há a considerar que os povos de certa parte da África conservaram um grande número de tradições judaicas, mais tarde mescladas com algumas ideias informes do Cristianismo, fonte em que, por força de sua ignorância, beberam a doutrina do diabo e dos demônios.



[1] Viagem às Nascentes do Nilo. Seu autor, o explorador inglês James Bruce, descobriu as nascentes do Nilo Azul, no lago de Tana. Bruce nasceu em 1730 e faleceu em 1794. (N. do T.)




Palestras familiares de além-túmulo



Bernard Palissy (9 de março de 1858)

NOTA: Por evocações anteriores, sabíamos que Bernard Palissy, o célebre oleiro do século XVI, habita Júpiter. As respostas que se seguem confirmam, em todos os pontos, quanto nos foi dito sobre esse planeta, em várias ocasiões, por outros Espíritos e através de diferentes médiuns. Pensamos que serão lidas com interesse, como complemento do quadro que traçamos em nosso último número. A identidade que apresentam com as descrições anteriores é um fato notável que vale pelo menos como uma presunção de exatidão.

1. ─ Para onde foste ao deixar a Terra?

─ Ainda me demorei nela.

2. ─ Em que condições estavas aqui?

─ Sob o aspecto de uma mulher amorosa e dedicada. Era uma simples missão.

3. ─ Essa missão durou muito?

─ Trinta anos.

4. ─ Lembras-te do nome dessa mulher?

─ Era obscuro.

5. ─ Agrada-te a estima em que são tidas as tuas obras? Isto te compensa os sofrimentos que suportaste?

─ Que me importam as obras materiais de minhas mãos? O que me importa é o sofrimento que me elevou.

6. ─ Com que fim traçaste, pela mão do Sr. Victorien Sardou os admiráveis desenhos que nos deste sobre o planeta Júpiter, onde habitas?

─ Com o fim de vos inspirar o desejo de vos tornardes melhores.

7. ─ Tendo em vista que vens com frequência a esta Terra que habitaste várias vezes, deves conhecer bastante o seu estado físico e moral para estabelecer uma comparação entre ela e Júpiter. Pediríamos que nos elucidasses sobre diversos pontos.

─ Ao vosso globo venho apenas como Espírito. O Espírito não tem mais sensações materiais.



ESTADO FÍSICO DO GLOBO

8. ─ Pode-se comparar a temperatura de Júpiter à de uma de nossas latitudes?

─ Não. Ela é suave e temperada; é sempre igual, enquanto a vossa varia. Lembrai-vos dos Campos Elíseos, cuja descrição já vos fizeram.

9. ─ O quadro que os Antigos nos deram dos Campos Elíseos seria resultado do conhecimento intuitivo que eles tinham de um mundo superior, tal como Júpiter, por exemplo?

─ Do conhecimento positivo. A evocação permanecia nas mãos dos sacerdotes.

10 ─ A temperatura, como aqui, varia conforme a latitude?

─ Não.

11. ─ Segundo os nossos cálculos, o Sol deve aparecer aos habitantes de Júpiter em tamanho muito pequeno e, consequentemente, dar muito pouca luz. Podes dizer-nos se a intensidade da luz é ali igual à da Terra ou se é menos forte?

─ Júpiter é cercado de uma espécie de luz espiritual, em relação com a essência de seus habitantes. A luz grosseira de vosso Sol não foi feita para eles.

12. ─ Há uma atmosfera?

─ Sim.

13. ─ A atmosfera de Júpiter é formada dos mesmos elementos que a atmosfera terrestre?

─ Não. Os homens não são os mesmos. Suas necessidades mudaram.

14. ─ Lá existe água e mares?

─ Sim.

15. ─ A água é formada dos mesmos elementos que a nossa?

─ Mais etérea.

16. ─ Há vulcões?

─ Não. Nosso globo não é atormentado como o vosso. Lá a Natureza não teve suas grandes crises. É a morada dos bem-aventurados. Nele, a matéria quase não existe.

17. ─ As plantas têm analogia com as nossas?

─ Sim, mas são mais belas.



ESTADO FÍSICO DOS HABITANTES

18. ─ A conformação do corpo dos seus habitantes tem relação com a nossa?

─ Sim, ela é a mesma.

19. ─ Podes dar-nos uma ideia de sua estatura, comparada com a dos habitantes da Terra?

─ Grandes e bem proporcionados. Maiores que os vossos maiores homens. O corpo do homem é como o molde de seu espírito: belo, onde ele é bom. O envoltório é digno dele: não é mais uma prisão.

20. ─ Lá os corpos são opacos, diáfanos ou translúcidos?

─ Há uns e outros. Uns têm tal propriedade, outros têm outra, conforme a sua finalidade.

21. ─ Compreendemos isto em relação aos corpos inertes. Mas nossa pergunta refere-se aos corpos humanos.

─ O corpo envolve o Espírito sem ocultá-lo, como um tênue véu lançado sobre uma estátua. Nos mundos inferiores, o envoltório grosseiro oculta o Espírito aos seus semelhantes. Mas os bons nada mais têm a ocultar: cada um pode ler no coração dos outros. Que aconteceria se assim fosse aqui?

22. ─ Lá existe diferença de sexo?

─ Sim, há por toda parte onde existe a matéria; é uma lei da matéria.

23. ─ Qual é a base da alimentação dos habitantes? É animal e vegetal como aqui?

─ Puramente vegetal. O homem é o protetor dos animais.

24. ─ Disseram-nos que parte de sua alimentação é extraída do meio ambiente, cujas emanações eles aspiram. É verdade?

─ Sim.

25. ─ Comparada com a nossa, a duração da vida é mais longa ou mais curta?

─ Mais longa.

26. ─ Qual é a duração média da vida?

─ Como medir o tempo?

27. ─ Não podes tomar um dos nossos séculos como termo de comparação?

─ Creio que mais ou menos cinco séculos

28. ─ O desenvolvimento da infância é proporcionalmente mais rápido que o nosso?

─ O homem conserva sua superioridade: a infância não comprime a inteligência nem a velhice a extingue.

29. ─ Os homens são sujeitos a doenças?

─ Não estão sujeitos aos vossos males.

30. ─ A vida está dividida entre o sono e a vigília?

─ Entre a ação e o repouso.

31. ─ Poderias dar-nos uma ideia das várias ocupações dos homens?

─ Teria que falar muito. Sua principal ocupação é o encorajamento dos Espíritos que habitam os mundos inferiores, a fim de que perseverem no bom caminho. Não havendo entre eles infortúnios a serem aliviados, vão procurá-los onde esses existem: são os bons Espíritos que vos amparam e vos atraem para o bom caminho.

32. ─ Lá são cultivadas algumas artes?

─ Lá elas são inúteis. As vossas artes são brinquedos que distraem as vossas dores.

33. ─ A densidade específica do corpo humano permite ao homem transportar-se de um a outro ponto, sem ficar, como aqui, preso ao solo?

─ Sim.

34. ─ Existem lá o tédio e o desgosto da vida?

─ Não. O desgosto da vida origina-se no desprezo de si mesmo.

35. ─ Sendo o corpo dos habitantes de Júpiter menos denso que os nossos, é formado de matéria compacta e condensada ou vaporosa?

─ Compacta para nós, mas não para vós. Ela é menos condensada.

36. ─ O corpo, considerado como feito de matéria, é impenetrável?

─ Sim.

37. ─ Os habitantes têm, como nós, uma linguagem articulada?

─ Não. Há entre eles a comunicação pelo pensamento.

38. ─ A segunda vista é, como nos informaram, uma faculdade normal e permanece entre vós?

─ Sim. O Espírito não conhece entraves. Nada lhe é oculto.

39. ─ Se nada é oculto ao Espírito, conhece ele o futuro? (Referimo-nos aos Espíritos encarnados em Júpiter).

─ O conhecimento do futuro depende do grau de perfeição do Espírito: isto tem menos inconvenientes para nós do que para vós; é-nos mesmo necessário, até certo ponto, para a realização das missões de que nos incumbem. Mas dizer que conhecemos o futuro sem restrições seria nivelar-nos a Deus.

40. ─ Podeis revelar-nos tudo quanto sabeis sobre o futuro?

─ Não. Esperai até que tenhais merecido sabê-lo.

41. ─ Comunicai-vos mais facilmente que nós com os outros Espíritos?

─ Sim; sempre. Não existe mais a matéria entre eles e nós.

42. ─ A morte inspira o mesmo horror e pavor que entre nós?

─ Por que seria ela apavorante? Entre nós já não existe o mal. Só o mau se apavora ante o seu último instante. Ele teme o seu juiz.

43. ─ Em que se transformam os habitantes de Júpiter depois da morte?

─ Crescem sempre em perfeição, sem passar por mais provas.

44. ─ Não haverá em Júpiter Espíritos que se submetam a provas a fim de cumprir uma missão?

─ Sim, mas não é uma prova. Só o amor do bem os leva ao sofrimento.

45. ─ Podem eles falhar em sua missão?

─ Não, porque são bons. Só existe fraqueza onde há defeitos.

46. ─ Poderias nomear alguns dos Espíritos habitantes de Júpiter que tenham desempenhado uma grande missão na Terra?

─ São Luís.

47. ─ Não poderias nomear outros?

─ Que vos importa? Há missões desconhecidas, cujo objetivo é a felicidade de um só. Por vezes são as maiores e as mais dolorosas.



DOS ANIMAIS

48. ─ O corpo dos animais é mais material que o dos homens?

─ Sim. O homem é o rei, o deus planetário.

49. ─ Há animais carnívoros?

─ Os animais não se estraçalham mutuamente. Vivem todos submetidos ao homem e se amam entre si.

50. ─ Há porém animais que escapam à ação do homem, assim como os insetos, os peixes e os pássaros?

─ Não. Todos lhe são úteis.

51. ─ Disseram-nos que os animais são os operários e os capatazes que executam os trabalhos materiais, constroem as habitações etc. É exato?

─ Sim. O homem não mais se rebaixa para servir ao semelhante.

52. ─ Os animais servidores estão ligados a uma pessoa ou família, ou são tomados e trocados à vontade, como aqui?

─ Todos estão ligados a uma família particular. Vós mudais à procura do melhor.

53. ─ Os animais servidores vivem em escravidão ou no estado de liberdade? São uma propriedade, ou podem, à vontade, mudar de patrão?

─ Estão no estado de submissão.

54. ─ Os animais trabalhadores recebem alguma remuneração por seus trabalhos?

─ Não.

55. ─ As faculdades dos animais são desenvolvidas por uma espécie de educação?

─ Eles as desenvolvem por si mesmos.

56. ─ Têm os animais uma linguagem mais precisa e caracterizada que a dos animais terrenos?

─ Certamente.



ESTADO MORAL DOS HABITANTES

57. ─ As habitações de que nos deste uma mostra nos teus desenhos estão reunidas em cidades como aqui?

─ Sim. Aqueles que se amam se reúnem. Só as paixões estabelecem a solidão em torno do homem. Se o homem ainda mau procura o seu semelhante, que é para ele um instrumento de dor, por que o homem puro e virtuoso deveria fugir de seu irmão?

58. ─ Os Espíritos são iguais ou de várias graduações?

─ De diversos graus, mas da mesma ordem.

59. ─ Pedimos que te reportes especialmente à escala espírita que demos no segundo número da Revista e que nos digas a que ordem pertencem os Espíritos encarnados em Júpiter.

─ Todos bons, todos superiores. Por vezes o bem desce até o mal; entretanto, o mal jamais se mistura com o bem.

60. ─ Os habitantes formam diferentes povos como aqui na Terra?

─ Sim, mas todos unidos entre si pelos laços do amor.

61. ─ Sendo assim, as guerras são desconhecidas?

─ Pergunta inútil.

62. ─ O homem poderá chegar, na Terra, a um tal grau de perfeição que a guerra seja desnecessária?

─ Ele chegará a isto, sem a menor dúvida. A guerra desaparecerá com o egoísmo dos povos e à medida que melhor seja compreendida a fraternidade.

63. ─ Os povos são governados por chefes?

─ Sim.

64. ─ Em que consiste a autoridade dos chefes?

─ No seu grau superior de perfeição.

65. ─ Em que consiste a superioridade e a inferioridade dos Espíritos em Júpiter, de vez que todos são bons?

─ Eles têm maior ou menor soma de conhecimentos e de experiência; depuram-se à medida que se esclarecem.

66. ─ Como aqui na Terra, lá existem povos mais ou menos avançados que outros?

─ Não, mas entre os povos há diversos graus.

67. ─ Se o povo mais adiantado da Terra fosse transportado para Júpiter, que posição ocuparia?

─ A que entre vós é ocupada pelos macacos.

68. ─ Lá os povos se regem por leis?

─ Sim.

69. ─ Há leis penais?

─ Não há mais crimes.

70. ─ Quem faz as leis?

─ Deus as fez.

71 ─ Há ricos e pobres? Por outras palavras: há homens que vivem na abundância e no supérfluo e outros a quem falta o necessário?

─ Não. Todos são irmãos. Se um possuísse mais do que o outro, com esse repartiria; não seria feliz quando seu irmão fosse necessitado.

72. ─ De acordo com isso, as fortunas de todos seriam iguais?

─ Eu não disse que todos são igualmente ricos. Perguntaste se haveria gente com o supérfluo enquanto a outros faltasse o necessário.

73. ─ As duas respostas se nos afiguram contraditórias. Pedimos que estabeleças a concordância.

─ A ninguém falta o necessário; ninguém tem o supérfluo. Por outras palavras, a fortuna de cada um está em relação com a sua condição. Estais satisfeito?

74. ─ Agora compreendemos. Mas te perguntamos, entretanto, se aquele que tem menos não é infeliz em relação àquele que tem mais?

─ Ele não pode sentir-se infeliz, se não é invejoso nem ciumento. A inveja e o ciúme produzem mais infelizes que a miséria.

75. ─ Em que consiste a riqueza em Júpiter?

─ Em que isto vos importa?

76. ─ Há desigualdades sociais?

─ Sim.

77. ─ Em que estas se fundam?

─ Nas leis da sociedade. Uns são mais adiantados que outros na perfeição. Os superiores têm sobre os outros uma espécie de autoridade, como um pai sobre os filhos.

78. ─ As faculdades do homem são desenvolvidas pela educação?

─ Sim.

79. ─ Pode o homem adquirir bastante perfeição na Terra para merecer passar imediatamente a Júpiter?

─ Sim. Mas na Terra o homem é submetido a imperfeições a fim de estar em relação com os seus semelhantes.

80. ─ Quando um Espírito deixa a Terra e deve reencarnar-se em Júpiter, fica errante durante algum tempo, até encontrar o corpo a que se deve unir?

─ Fica errante durante algum tempo, até que se tenha livrado das imperfeições terrenas.

81. ─ Há várias religiões?

─ Não. Todos professam o bem e todos adoram um só Deus.

82. ─ Há templos e um culto?

─ Por templo há o coração do homem; por culto, o bem que ele faz.



MEHEMET-ALI, ANTIGO PAXÁ DO EGITO

16 de março de 1858



1. ─ O que vos induziu a atender ao nosso apelo?

─ Vim para vos instruir.

2. ─ Estais contrariado por vir até nós e por terdes de responder às perguntas que desejamos fazer?

─ Não. Desejo mesmo responder às que tiverem por fim a vossa instrução.

3. ─ Que provas poderemos ter de vossa identidade? Como é possível saber que não foi outro Espírito que tomou o vosso nome?

─ Qual seria a vantagem?

4. ─ Sabemos por experiência que muitas vezes os Espíritos inferiores tomam nomes supostos. Eis por que vos fizemos essa pergunta.

─ Eles tomam também os elementos de prova. Mas o Espírito que põe uma máscara também se revela pelas próprias palavras.

5. ─ Sob que forma e em que lugar vos encontrais entre nós?

─ Sob aquela que tem o nome de Mehemet-Ali; perto de Ermance.

6. ─ Gostaríeis que vos déssemos um lugar especial?

─ Sim. A cadeira vazia.


OBSERVAÇÃO: Havia uma cadeira vaga, a que ninguém havia prestado atenção.


7. ─ Tendes uma lembrança nítida de vossa última existência corpórea?

─ Não a tenho ainda nítida, pois a morte me deixou sua perturbação.

8. ─ Sois feliz?

─ Não. Sou desgraçado.

9. ─ Estais errante ou reencarnado?

─ Errante.

10. ─ Recordais-vos daquilo que fostes na existência anterior a esta?

─ Eu era um pobre na Terra. Invejei as grandezas terrenas e subi para sofrer.

11. ─ Se puderdes renascer na Terra, que condição escolhereis de preferência?

─ A obscura: os deveres são menores.

12. ─ Que pensais agora da posição que ocupastes ultimamente na Terra?

─ Pura vaidade! Quis conduzir os homens. Sabia eu conduzir-me a mim mesmo?

13. ─ Dizia-se que já há algum tempo a vossa razão estava alterada. É verdade?

─ Não.

14. ─ A opinião pública aprecia aquilo que fizestes pela civilização do Egito e por isso vos coloca entre os grandes príncipes. Ficais satisfeito com isso?

─ Que me importa? A opinião dos homens é o vento do deserto que levanta o pó.

15. ─ Vedes com prazer os vossos descendentes seguindo o mesmo caminho? Os seus esforços vos interessam?

─ Sim, porque eles têm por objetivo o bem comum.

16. ─ Entretanto sois acusado de atos de grande crueldade. Agora os lamentais?

─ Eu os expio.

17. ─ Vedes aqueles a quem mandastes massacrar?

─ Sim.

18. ─ Que sentimento experimentam eles a vosso respeito?

─ Ódio e piedade.

19. ─ Desde que deixastes essa vida, não mais revistes o sultão Mahmud?

─ Sim. Em vão fugimos um do outro.

20. ─ Que sentimento experimentais reciprocamente?

─ O de aversão.

21. ─ Qual a vossa opinião atual sobre as penas e recompensas que nos esperam depois da morte?

─ A expiação é justa.

22. ─ Qual o maior obstáculo que tivestes de vencer para a realização de vossos planos progressistas?

─ Eu reinava sobre escravos.

23. ─ Pensais que se o povo que tivestes de governar fosse cristão, teria sido menos rebelde à civilização?

─ Sim. A religião cristã eleva a alma; a maometana apenas fala à matéria.

24. ─ Quando vivo, vossa fé na religião muçulmana era absoluta?

─ Não. Eu considerava Deus maior.

25. ─ Que pensais agora dessa religião?

─ Ela não forma os homens.

26. ─ Na vossa opinião, Maomé tinha missão divina?

─ Sim, mas a desvirtuou.

27. ─ Em que a desvirtuou?

─ Ele quis reinar.

28. ─ Que pensais de Jesus?

─ Esse vinha de Deus.

29. ─ Na vossa opinião, quem fez mais pela felicidade humana: Jesus ou Maomé?

─ Por que o perguntais? Qual o povo que foi regenerado por Maomé? A religião cristã saiu pura das mãos de Deus; a maometana é obra de um homem.

30. ─ Credes que uma dessas duas religiões esteja destinada a apa­gar-se da face da Terra?

─ O homem progride sempre. A melhor perdurará.

31. ─ Que pensais da poligamia, consagrada pela religião muçulmana?

─ É um dos laços que retêm na barbárie os povos que a professam.

32. ─ Credes que a escravidão da mulher seja conforme os desígnios de Deus?

─ Não. A mulher é igual ao homem, de vez que o Espírito não tem sexo.

33. ─ Diz-se que o povo árabe não pode ser conduzido senão pelo rigor. Não pensais que os maus tratos, em vez de o submeterem, apenas o embrutecem?

─ Sim. Este é o destino do homem. Ele se avilta quando escravizado.

34. ─ Podeis transportar-vos à Antiguidade, quando o Egito era florescente, e dizer-nos as causas de sua decadência moral?

─ A corrupção dos costumes.

35. ─ Parece que ligais pouca importância aos monumentos históricos que cobrem o solo do Egito. Não podemos compreender tal indiferença por parte de um príncipe amigo do progresso.

─ Que importa o passado! O presente não o substituiria.

36. ─ Poderíeis explicar-vos mais claramente?

─ Sim. Era desnecessário relembrar ao egípcio degradado um passado muito brilhante, pois não o teria compreendido. Desdenhei aquilo que me parecia inútil. Eu não podia enganar-me?

37. ─ Os sacerdotes do antigo Egito conheciam a Doutrina Espírita?

─ Era a deles.

38. ─ Eles recebiam manifestações?

─ Sim.

39. ─ As manifestações recebidas pelos sacerdotes egípcios tinham a mesma fonte que as recebidas por Moisés?

─ Sim. Ele foi iniciado por aqueles.

40. ─ Por que, então, as manifestações recebidas por Moisés eram mais potentes que as recebidas pelos sacerdotes egípcios?

─ Moisés queria revelar, enquanto os sacerdotes egípcios queriam apenas ocultá-las.

41. ─ Pensais que a doutrina dos sacerdotes egípcios tinha alguma ligação com a dos indianos?

─ Sim. Todas as religiões-mães estão ligadas entre si por laços quase invisíveis. Elas procedem de uma mesma fonte.

42. ─ Dessas duas religiões, isto é, a dos egípcios e a dos indianos, qual a matriz?

─ Elas são irmãs.

43.─ Como é que vós, que em vida éreis tão pouco esclarecido sobre estes assuntos, podeis agora responder com tanta profundidade?

─ Outras existências me ensinaram.

44. ─ No estado de erraticidade em que agora vos encontrais, tendes pleno conhecimento de vossas existências anteriores?

─ Sim, salvo da última.

45. ─ Vivestes, então, no tempo dos Faraós?

─ Sim. Três vezes vivi na terra egípcia: como sacerdote, como mendigo e como príncipe.

46. ─ Sob que reinado fostes sacerdote?

─ Já faz tanto tempo! O príncipe era o vosso Sesóstris.

47. ─ Assim sendo, dir-se-ia que não progredistes, pois que agora expiais os erros de vossa última existência.

─ Sim, mas progredi lentamente. Acaso eu era perfeito por ser um sacerdote?

48. ─ É porque fostes sacerdote naqueles tempos que nos pudestes falar com conhecimento de causa da antiga religião dos Egípcios?

─ Sim, mas não sou suficientemente perfeito para tudo saber. Outros leem o passado como num livro aberto.

49. ─ Poderíeis explicar-nos o motivo da construção das pirâmides?

─ É muito tarde.

NOTA: Eram quase onze horas da noite.

50. ─ Não vos faremos senão esta pergunta. Pedimos que tenhais a bondade de respondê-la.

─ Não. É muito tarde. Esta pergunta traria outras mais.

51. ─ Poderíeis fazer-nos o favor de responder em outra ocasião?

─ Não me comprometo.

52. ─ Não obstante, nós vos agradecemos a benevolência com que nos respondestes às outras perguntas.

─ Bem! Eu voltarei.




Não é de nosso conhecimento que o Sr. Home tenha feito aparecer, pelo menos visivelmente a todos, outras partes do corpo além das mãos. Cita-se, entretanto, um general falecido na Crimeia, como tendo aparecido à sua viúva e visível só para ela, posto não tenhamos nem mesmo constatado a autenticidade do relato, principalmente no que concerne à intervenção do Sr. Home no caso. Limitamo-nos àquilo que podemos afirmar.

Por que mãos em vez de pés ou de uma cabeça?

Eis o que ignoramos e o que ignora ele também.

Interrogados a respeito, os Espíritos responderam que outros médiuns poderiam

fazer aparecer todo o corpo. Aliás, não é isto o mais importante: se só as mãos aparecem, as outras partes do corpo não são menos patentes, como veremos logo a seguir.

Em geral o aparecimento da mão se manifesta primeiramente sob a toalha da mesa, por ondulações produzidas ao percorrer toda a superfície. Depois se mostra às bordas da toalha, que ela levanta; por vezes vem postar-se sobre a toalha, bem no meio da mesa; outras vezes toma um objeto e o leva para baixo da toalha. Essa mão, a todos visível, nem é vaporosa nem translúcida: tem a cor e a opacidade naturais; no pulso, termina de forma indefinida. Se alguém a toca com precaução, confiança e sem segunda intenção hostil, ela oferece a resistência, a solidez e a impressão de mão viva; seu calor é suave, um tanto úmido e comparável ao de um pombo morto há cerca de meia hora. Não é absolutamente inerte, pois age, presta-se aos movimentos que se lhe imprimem, ou resiste, acaricia-nos, ou nos aperta. Se, pelo contrário, quisermos pegá-la bruscamente e de surpresa, apenas encontraremos o vazio.

Contou-nos uma testemunha ocular o fato que se segue, e que se passou com ela.

Tinha entre os seus dedos uma campainha de mesa; mão invisível a princípio, e pouco depois perfeitamente visível, veio pegá-la, fazendo esforços para arrebatá-la; não o tendo conseguido, passou a puxá-la por cima, a fim de fazê-la escorregar. O esforço de tração era sensível quanto teria sido o de qualquer mão humana. Havendo tentado segurar violentamente essa mão, a sua apenas encontrou o ar; tendo aberto os dedos, a campainha ficou suspensa no ar e foi lentamente pousar no soalho.

Algumas vezes há várias mãos.

A mesma testemunha contou-nos este outro fato:

Várias pessoas achavam-se reunidas em torno de uma dessas mesas de sala de jantar que se abrem em duas. Ouvem-se batidas; a mesa se agita, abre-se por si mesma e através da fenda aparecem três mãos: uma de tamanho normal, outra muito grande e uma terceira muito peluda. Tocam-nas, apalpam-nas, elas apertam as mãos dos circunstantes e depois se dissolvem.

Em casa de um dos nossos amigos que havia perdido uma criança em tenra idade, o que aparece é a mão de um recém-nascido. Todos podem vê-la e tocá-la. Essa criança senta-se no colo da mãe, que sente distintamente a impressão de todo o seu corpo sobre os joelhos.

Muitas vezes a mão vem pousar sobre vós. Então a vedes, e se não, sentis a pressão de seus dedos. Por vezes ela vos acaricia; outras vos belisca até produzir dor. Em presença de várias pessoas o Sr. Home sentiu que lhe pegavam o pulso, e os assistentes puderam ver-lhe a pele distendida. Um instante depois ele sentiu que o mordiam; a marca dos dentes ficou impressa durante mais de uma hora.

A mão que aparece também pode escrever. Algumas vezes ela para no meio da mesa, toma um lápis e traça as letras num papel adrede preparado. Na maioria das vezes, porém, leva o papel para debaixo da mesa e o devolve todo escrito. Se a mão fica invisível, a escrita parece produzir-se por si mesma. Por este meio conseguemse respostas às diversas perguntas que se pode fazer.

Outro gênero de manifestações não menos notável, mas que se explica pelo que acabamos de dizer, é o dos instrumentos de música que tocam sozinhos. Em geral são pianos ou acordeons. Em tais circunstâncias, veem-se distintamente as teclas se moverem, bem como o fole. A mão que toca ora é visível, ora invisível. A ária que se ouve pode ser conhecida e tocada a pedido. Se o artista invisível é deixado à vontade, produz acordes harmoniosos, cujo efeito lembra a vaga e suave melodia da harpa eólia.

Em casa de um de nossos assinantes, onde tais fenômenos se produziram muitas vezes, o Espírito que assim se manifestava era o de um moço falecido há algum tempo, amigo da família que quando vivo revelava notável talento musical. A natureza das árias que preferia tocar não deixava a menor dúvida quanto à sua identidade para todos aqueles que o haviam conhecido.

O mais extraordinário fato neste gênero de manifestações não é, em nossa opinião, o da aparição. Se esta fosse sempre aeriforme, seria compatível com a natureza etérea que atribuímos aos Espíritos. Ora, nada se oporia a que essa matéria eterizada se tornasse perceptível à vista, por uma espécie de condensação, sem perder a sua propriedade vaporosa. O que há de mais estranho é a solidificação dessa mesma matéria, suficientemente resistente para deixar uma visível impressão em nossos órgãos. No próximo número daremos a explicação desse fenômeno singular, conforme o ensinamento dos próprios Espíritos. Hoje nos limitaremos a deduzir-lhe uma consequência relativa ao toque espontâneo dos instrumentos de música. Com efeito, desde que a ocasional tangibilidade dessa matéria eterizada é um fato constatado, e desde que em tal estado a mão, aparente ou não, oferece resistência suficiente para exercer pressão sobre os corpos sólidos, não é de admirar que ela possa exercer uma pressão suficiente para mover as teclas de um instrumento. Por outro lado, fatos não menos positivos provam que essa mão pertence a um ser inteligente. Nada, pois, de admirar que essa inteligência se manifeste por sons musicais, de vez que pode fazê-lo pela escrita e pelo desenho.

Uma vez entrados nesta ordem de ideias, as batidas vibradas, o movimento dos objetos e todos os fenômenos espíritas de ordem material se explicam muito naturalmente.

Em certos indivíduos a malevolência não conhece limites. A calúnia tem sempre veneno contra todo aquele que se eleva acima da multidão. Os adversários do Sr. Home acharam que o ridículo é uma arma muito frágil: ela devia amolgar-se contra os nomes respeitáveis que o cercam com a sua proteção. Desde que não podiam rir à sua custa, procuraram denegri-lo. Espalharam o boato, com o objetivo que bem compreendemos e as más línguas o repetem de que o Sr. Home não havia partido para a Itália, conforme fora anunciado, mas que estava na prisão de Mazas, sob o peso de graves acusações, que são contadas como anedotas, de que são sempre ávidos os desocupados e os amigos de escândalos.

Podemos afirmar que nada há de verdadeiro em todas essas maquinações infernais. Temos à vista várias cartas do Sr. Home, datadas de Pisa, de Roma e de Nápoles, onde atualmente ele se encontra. Estamos, pois, em condição de provar aquilo que afirmamos.

Têm razão os Espíritos de afirmar que os verdadeiros demônios se acham entre os homens.

* * *

Lê-se num jornal: “Conforme a Gazette des Hôpitaux[1], neste momento contam-se no hospital de “alienados” de Zurique 25 pessoas que perderam a razão graças às mesas girantes e aos Espíritos batedores”.

Para começar, perguntamos se está bem averiguado que esses 25 alienados devem todos a perda da razão aos Espíritos batedores, o que é contestável, pelo menos até haver provas autênticas. Admitindo que esses estranhos fenômenos tenham podido impressionar de modo prejudicial certos caracteres fracos, perguntaríamos se, por outro lado, o medo do diabo não fez mais loucos do que a crença nos Espíritos. Ora, de vez que os Espíritos não são impedidos de bater, o perigo está na crença de que todos aqueles que se manifestam são demônios. Afastese esta ideia, dando a conhecer a verdade, e não haverá mais medo do que dos vagalumes. A ideia de que se é assediado pelo diabo é feita sob medida para perturbar a razão.

Em contraposição, temos uma outra notícia, de outro jornal, que diz: “Há um curioso documento estatístico das funestas consequências a que, entre os ingleses, arrasta o hábito da intemperança e das bebidas fortes. De cada 100 indivíduos entrados no hospital de alienados de Hamwel, há 72 cuja alienação mental deve ser atribuída à embriaguez”.

* * *

Recebemos de nossos assinantes numerosos relatos de fatos muito interessantes que nos apressaremos a publicar em nossas próximas edições, de vez que a falta de espaço não nos permite fazê-lo nesta.

ALLAN KARDEC30



[1] Gazeta dos hospitais.

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