Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Fevereiro

Diferentes ordens de Espíritos.

Um ponto capital na doutrina espírita é o das diferenças existentes entre os Espíritos, quer do ponto de vista intelectual, quer moral. Sobre o assunto, o seu ensino jamais variou. Contudo, é essencial saber que eles não pertencem eternamente à mesma ordem e que, em consequência, essas ordens não constituem espécies distintas: são diferentes graus do desenvolvimento. Seguem os Espíritos a marcha progressiva da natureza. Os das ordens inferiores são ainda imperfeitos; depois de depurados, atingem as ordens superiores; avançam na hierarquia, à medida que adquirem qualidades, experiência e conhecimentos que lhes faltam. A criança de peito não se assemelha ao que será na idade madura, contudo, é sempre o mesmo ser.

A classificação dos Espíritos é baseada em seu grau de progresso, nas qualidades adquiridas e nas imperfeições de que devem despojar-se. Aliás, tal classificação nada tem de absoluto. Cada categoria só apresenta um caráter marcante no seu conjunto, mas de um a outro grau, a transição é insensível e, nos limites, a nuança se apaga, como nos reinos da natureza, nas cores do arco-íris ou como nos vários períodos da vida humana. Pode-se pois formar um maior ou menor número de classes, conforme o ponto de vista sob o qual se considerar o assunto. Dá-se o mesmo em todos os sistemas de classificação científica: podem ser mais ou menos completos, mais ou menos racionais, mais ou menos cômodos para a inteligência, mas, sejam o que forem, nada mudam com relação aos fundamentos da ciência.

Interrogados sobre este assunto, os Espíritos poderão ter variado quanto ao número de categorias, mas sem que isso tenha importância. Críticos aproveitaram essa aparente contradição, sem atentar em que eles não ligam maior importância ao que é puramente convencional. Para eles o pensamento é tudo. Deixam-nos a forma e a escolha das expressões, as classificações — numa palavra, os sistemas.

Acrescentemos ainda esta consideração: Não se deve nunca perder de vista que entre os Espíritos, como entre os homens, há os muito ignorantes, e que nunca estamos suficientemente prevenidos contra a tendência de pensar que todos devem saber tudo, pelo fato de serem Espíritos. Toda classificação exige método, análise e conhecimento aprofundado da matéria. Ora, no mundo dos Espíritos, os que têm conhecimentos limitados, como os ignorantes daqui, são incapazes de uma visão de conjunto e de formular um sistema, e aqueles que são capazes podem variar nos detalhes, conforme seu ponto de vista, especialmente quando uma divisão nada tem de absoluto. Lineu, Jussieu e Tournefort seguiram cada qual um método. Nem por isso a botânica mudou. É que eles não inventaram as plantas nem os seus caracteres. Eles observaram as analogias, segundo as quais formaram grupos ou classes.

Foi assim que também nós procedemos. Não inventamos os Espíritos nem seus caracteres. Vimos e observamos; julgamo-los por suas palavras e atos, depois os classificamos por suas similitudes. Eis o que qualquer um, em nosso caso, poderia ter feito.

Entretanto, não podemos reivindicar a autoria de todo o trabalho. Se o quadro que damos a seguir não foi traçado textualmente pelos Espíritos, e se é nossa a iniciativa, todos os elementos que o compõem foram hauridos em seus ensinamentos. O que nos restava era apenas formular uma disposição material.

Os Espíritos geralmente admitem três categorias principais ou grandes divisões. Na última, na base da escala, estão os Espíritos imperfeitos, que devem ainda percorrer todas ou quase todas as etapas; são caracterizados pela predominância da matéria sobre o Espírito e pela inclinação para o mal. Os da segunda são caracterizados pela predominância do Espírito sobre a matéria e pelo desejo do bem: são os Espíritos bons. A primeira, enfim, compreende os Espíritos puros, os que atingiram o grau supremo de perfeição.

Esta divisão nos parece perfeitamente racional e apresenta caracteres bem definidos. Só nos restava destacar, em número suficiente de divisões, as nuanças principais do conjunto. Foi o que fizemos com o concurso dos Espíritos, cujas benévolas instruções jamais nos faltaram.

Com auxílio deste quadro será fácil determinar a categoria e o grau de superioridade ou inferioridade dos Espíritos com os quais podemo-nos entreter e, em consequência, o grau de confiança e de estima que merecem. Além do mais, isto nos interessa pessoalmente, porque, como por nossa alma pertencemos ao mundo espírita no qual entraremos assim que deixarmos nosso envoltório mortal, ele nos mostra o que devemos fazer para chegarmos à perfeição e ao bem supremo.

Contudo, observaremos que os Espíritos não pertencem sempre e exclusivamente a esta ou àquela classe. Seu progresso só se realiza gradativamente e, muitas vezes, mais num sentido que no outro, podendo eles reunir caracteres de várias categorias, o que é fácil de observar por sua linguagem e por seus atos.



Escala Espírita.



Terceira ordem: Espíritos imperfeitos.

Características gerais. — Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as más paixões que lhes são consequentes.

Têm a intuição de Deus, mas não o compreendem.

Nem todos são essencialmente maus; uns têm mais leviandade, inconsequência e malícia que verdadeira maldade. Outros nem fazem o bem nem o mal, mas pelo simples fato de não fazerem o bem, revelam inferioridade. Outros, ao contrário, alegram-se no mal e ficam satisfeitos quando encontram ocasião de praticá-lo.

Podem aliar a inteligência à maldade ou à malícia, mas, seja qual for o seu desenvolvimento intelectual, suas ideias são pouco elevadas e seus sentimentos mais ou menos abjetos.

Seus conhecimentos sobre as coisas do mundo espírita são limitados e o pouco que sabem se confunde com ideias e preconceitos da vida corpórea. Só nos podem dar noções falsas e incompletas, mas o observador atento descobre muitas vezes em suas comunicações, mesmo que imperfeitas, a confirmação das grandes verdades ensinadas pelos Espíritos superiores.

Seu caráter é revelado pela linguagem. Todo Espírito que, nas comunicações, trai um mau pensamento, pode ser classificado na terceira ordem; por conseguinte, todo mau pensamento que nos é sugerido vem de um Espírito dessa ordem.

Eles veem a felicidade dos bons, e isto lhes é um tormento incessante, pois experimentam todas as angústias produzidas pela inveja e pelo ciúme.

Conservam a lembrança e a percepção dos sofrimentos da vida corpórea, e tal impressão é por vezes mais penosa do que a realidade. Sofrem, pois, realmente, pelos males a que foram submetidos e pelos que fizeram outros sofrerem. Como sofrem por muito tempo, julgam que sofrerão eternamente. Para castigá-los, quer Deus que pensem assim. Podem ser divididos em quatro grupos principais:

Nona classe. Espíritos impuros.

Inclinados ao mal, objeto de suas preocupações. Como Espíritos, dão conselhos pérfidos, insuflam a discórdia e a desconfiança e tomam todas as máscaras para melhor enganar. Ligam-se às pessoas de caráter suficientemente fraco para cederem às suas sugestões, a fim de levá-las à perdição, satisfeitos por poderem retardar o progresso, levando-as a sucumbir nas provas que enfrentam.

Nas manifestações se lhes reconhece a linguagem. A trivialidade, a grosseria das expressões, tanto nos Espíritos como nos homens, são sempre indício de inferioridade moral, senão intelectual. Suas comunicações revelam a baixeza de suas inclinações. Se procuram enganar, falando de uma maneira sensata, não conseguem por muito tempo representar o papel e acabam sempre revelando sua origem.

Certos povos fizeram-nos divindades malfazejas; outros designam-nos como demônios, gênios do mal ou Espíritos do mal.

Quando encarnados, os seres vivos que animam são inclinados a todos os vícios que geram as paixões vis e degradantes: a sensualidade, a crueldade, a trapaça, a hipocrisia, a cupidez e a sórdida avareza.

Fazem o mal por prazer, o mais das vezes sem motivo e, pelo ódio ao bem, quase sempre elegem suas vítimas entre gente de bem. São flagelos para a humanidade, seja qual for a classe a que pertençam, e o verniz da civilização não os isenta do opróbrio e da ignomínia.

Oitava classe. Espíritos levianos.

São ignorantes, malévolos, inconsequentes e zombeteiros. Metem-se em tudo, e a tudo respondem sem preocupação com a verdade. Gostam de causar pequenos aborrecimentos e pequenas alegrias; de produzir discórdias; de induzir maliciosamente ao erro por mistificações e por travessuras. A esta classe pertencem os Espíritos vulgarmente designados sob os nomes de duendes, diabretes, trasgos, gnomos. Eles estão sob a dependência de Espíritos superiores, que muitas vezes os empregam como nós o fazemos com os criados e os operários.

Eles parecem, mais do que os outros, ligados à matéria, e aparentam ser os principais agentes das vicissitudes dos elementos do globo, quer vivam no ar, na água, no fogo, nos corpos sólidos ou nas entranhas da Terra. Muitas vezes manifestam sua presença por efeitos sensíveis, tais como pancadas, movimento e deslocamento anormal dos corpos sólidos, agitação do ar, etc., o que lhes valeu o nome de Espíritos batedores. Reconhece-se que tais fenômenos não são devidos a uma causa fortuita e natural quando têm um caráter intencional e inteligente. Todos os Espíritos podem produzir esses fenômenos, mas os Espíritos elevados em geral deixam essas atribuições aos inferiores, mais aptos para as coisas materiais do que para as inteligentes.

Em suas comunicações com os homens, sua linguagem é por vezes espirituosa e alegre, mas quase sempre sem profundidade. Apreendem os caprichos e o ridículo, que exprimem em traços mordazes e satíricos. Se por vezes tomam nomes fictícios, é mais por malícia do que por maldade.

Sétima classe. Espíritos pseudossábios.

De conhecimentos bastante extensos, julgam saber mais do que realmente sabem. Tendo feito algum progresso sob vários pontos de vista, sua linguagem tem um caráter sério e pode levar a enganos quanto à sua capacidade e às suas luzes, mas muito comumente é simples reflexo dos preconceitos e das ideias sistemáticas da vida terrena. É a mistura de algumas verdades ao lado dos maiores absurdos, em cujo meio sobressaem a presunção, o orgulho, a inveja e a teimosia, de que não se despojaram.

Sexta classe. Espíritos neutros.

Nem são bastante bons para fazerem o bem, nem bastante maus para fazerem o mal. Inclinam-se para um ou para o outro e não se alçam acima do vulgar na humanidade, tanto para o moral quanto para a inteligência. Apegam-se às coisas do mundo, de cujas alegrias grosseiras têm saudades.




Segunda ordem: Bons espíritos.

Características gerais. — Predominância do Espírito sobre a matéria; desejo do bem. As qualidades e a capacidade de fazer o bem são proporcionais ao grau atingido: uns têm ciência; outros, sabedoria e bondade; os mais adiantados reúnem o saber às qualidades morais. Como não se acham completamente desmaterializados, conservam mais ou menos, conforme sua classe, os traços da existência corporal, tanto na forma da linguagem quanto nos hábitos, onde chegamos mesmo a descobrir certas manias, sem o que seriam Espíritos perfeitos.

Compreendem Deus e o infinito e já desfrutam da felicidade dos bons. Sentem-se felizes pelo bem que praticam e pelo mal que impedem. O amor que os une lhes é uma fonte de inefável felicidade, que não é alterada nem pela inveja, nem pelos pesares, nem pelos remorsos, nem por quaisquer outras das más paixões que atormentam os Espíritos imperfeitos, mas todos têm ainda que passar por provas, antes de atingirem a perfeição absoluta.

Como Espíritos, suscitam bons pensamentos; desviam os homens dos caminhos do mal; protegem em vida os que se tornam dignos dessa proteção e neutralizam a influência dos Espíritos imperfeitos sobre aqueles que não se comprazem em submeter-se a ela.

Quando encarnados, são bons e benevolentes para com os seus semelhantes. Não são movidos por orgulho ou egoísmo, nem pela ambição. Não experimentam ódio, rancor, inveja ou ciúme e fazem o bem pelo bem.

A esta ordem pertencem os Espíritos designados nas crenças vulgares como bons gênios, gênios protetores, Espíritos do bem. Nos tempos de superstição e de ignorância, foram transformados em divindades benfazejas.

Também podem ser divididos em quatro grupos principais:

Quinta classe. Espíritos benevolentes.

A bondade é sua qualidade predominante. Gostam de servir aos homens e de protegê-los, mas seu saber é limitado: seu progresso foi realizado mais no sentido moral que intelectual.

Quarta classe. Espíritos de ciência.

O que principalmente os distingue é a extensão dos conhecimentos. Preocupam-se menos com as questões morais do que com as científicas, para as quais têm maior aptidão, mas só encaram a ciência do ponto de vista da utilidade, nela não misturando nenhuma das paixões características dos Espíritos imperfeitos.

Terceira classe. Espíritos de sabedoria.

Seu caráter distintivo são as qualidades morais da mais elevada ordem. Seus conhecimentos não são ilimitados, mas são dotados de uma capacidade intelectual que lhes dá um juízo seguro sobre os homens e as coisas.

Segunda classe. Espíritos superiores.

Reúnem ciência, sabedoria e bondade. Sua linguagem constantemente digna e elevada só respira benevolência, e por vezes é sublime. Sua superioridade os torna, mais que os outros, aptos para nos darem as mais justas noções sobre as coisas do mundo incorpóreo, nos limites do conhecimento permitido ao homem. Comunicam-se de boa vontade com aqueles que de boa-fé procuram a verdade e cuja alma é bastante desprendida dos laços terrenos para compreendê-la, mas afastam-se dos que são animados pela curiosidade ou desviados da prática do bem pela influência da matéria.

Quando excepcionalmente reencarnam na Terra, é para cumprir uma missão de progresso. Oferecem-nos, então, o tipo da perfeição a que a humanidade pode aspirar neste mundo.




Primeira ordem: Espíritos puros.

Características gerais. ─ É nula a influência da matéria. Absoluta superioridade intelectual e moral em relação aos Espíritos de outras ordens.
Primeira classe. Espíritos puros.

Percorreram todos os graus da escala e se despojaram de todas as impurezas da matéria. Tendo atingido a suprema perfeição a que é susceptível a criatura, não têm que passar por provas nem por expiações. Não mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, têm a vida eterna que se realiza no seio de Deus.

Desfrutam de uma felicidade inalterável, pois já não se acham sujeitos às necessidades nem às vicissitudes da vida material, mas tal felicidade não é uma ociosidade monótona passada numa contemplação perpétua. Eles são os mensageiros e os ministros de Deus, cujas ordens executam para a manutenção da harmonia universal. Comandam todos os Espíritos que lhes são inferiores, ajudando-os a se aperfeiçoarem e designando-lhes missões. Assistir os homens em suas angústias, excitá-los ao bem ou à expiação das faltas que os afastam da suprema felicidade, são-lhes agradáveis ocupações. Por vezes são designados sob o nome de anjos, arcanjos ou serafins.

Os homens podem entrar em comunicação com eles, mas muito presunçoso seria aquele que pretendesse tê-los constantemente às suas ordens.



Quanto às suas qualidades íntimas, os Espíritos são de diferentes ordens, que percorrem sucessivamente à medida que se depuram. Como estado, podem estar encarnados, isto é, unidos a um corpo, num mundo qualquer, ou errantes, isto é, desligados de um corpo material e esperando nova encarnação para se melhorarem.

Os Espíritos errantes não formam uma categoria especial. Trata-se de um dos estados em que se podem encontrar.

O estado errante ou a erraticidade não significa inferioridade para os Espíritos, pois que nele podemos encontrá-los de todos os graus. Todo Espírito que não está encarnado é, por isso mesmo, errante, salvo os Espíritos puros, que, não devendo passar por outras encarnações, estão em estado definitivo.

Sendo a encarnação um estado transitório, a erraticidade é realmente o estado normal dos Espíritos, e esse estado não lhes é, forçosamente, uma expiação. Nesse estado são felizes ou desventurados, conforme seu grau de elevação e o bem ou o mal que hajam praticado.

Mademoiselle Clairon e o fantasma.

Esta história produziu celeuma em seu tempo, pela posição da heroína e pelo grande número de pessoas que a testemunharam. A despeito de sua singularidade, provavelmente teria sido esquecida se Mademoiselle Clairon não a tivesse consignado em suas Memórias, de onde extraímos o relato que se segue. A analogia que ela apresenta com alguns fatos que se passam em nossos dias dá-lhe um lugar natural nesta coletânea.

Como se sabe, Mademoiselle Clairon era tão notável por sua beleza como por seu talento como cantora e trágica. Ela havia inspirado a um jovem bretão, o Sr. de S. . ., uma dessas paixões que frequentemente decidem uma vida, quando não se tem suficiente força de caráter para triunfar. Mademoiselle Clairon a ela respondeu apenas com amizade. Entretanto, a assiduidade do Sr. de S. . . tornou-se de tal modo importuna que ela resolveu romper as relações em definitivo. A mágoa que ele sentiu produziu-lhe uma longa enfermidade, de que veio a morrer. Isto foi em 1743. Mas demos a palavra a Mademoiselle Clairon.

“Dois anos e meio haviam decorrido entre o dia em que nos conhecemos e a sua morte. Ele mandou pedir-me que concedesse aos seus últimos instantes a doçura de me ver. Minhas relações me impediram de fazê-lo. Morreu tendo ao seu redor apenas os criados e uma velha dama, única companhia que tinha desde muito tempo. Ele morava em Rempart, perto de Chaussée d’Antin, onde começavam a construir. Eu, na Rua de Bussy, perto da Rua do Sena e da abadia Saint-Germain. Eu estava com minha mãe, e vários amigos que foram jantar comigo. . . Acabara de cantar belas canções pastorais que haviam encantado os meus amigos quando, ao soarem as onze horas, ouvimos um grito agudíssimo. Sua modulação sombria e sua duração espantaram a todos; senti-me desfalecer e estive quase um quarto de hora desacordada. . .

“Todos da minha família, os amigos, os vizinhos, a própria polícia ouviam o mesmo grito, sempre à mesma hora, partindo sempre de sob as minhas janelas e como se viesse vagamente do ar. . . Raramente eu jantava na cidade, mas nesses dias nada se ouvia e, muitas vezes, quando perguntava a minha mãe e a meus domésticos se havia novidades, logo que me recolhia ao meu quarto, ele partia do meio de nós.

“Uma vez o presidente de B. . ., com quem eu havia jantado, quis acompanhar-me, para certificar-se de que nada aconteceria no caminho. Quando, à minha porta, me dava boa-noite, o grito partiu de entre ele e eu. Como toda Paris, ele sabia da história, entretanto foi levado para a carruagem mais morto do que vivo.

“Outra vez pedi ao meu camarada Rosely que me acompanhasse à Rua Saint-Honoré para escolher tecidos. O único assunto de nossa conversa foi o meu fantasma, como o chamavam. Esse jovem, muito talentoso, não acreditava em nada, mas tinha ficado impressionado com a minha aventura. Solicitava-me que evocasse o fantasma, prometendo-me acreditar se ele me respondesse. Fosse por fraqueza ou por audácia, fiz o que ele me pedia. O grito se ouviu três vezes, terrível por seu estrépito e pela rapidez. De volta, foi necessário o auxílio de todos para sermos tirados da carruagem, onde estávamos desacordados, tanto um como outro. Depois desta cena fiquei alguns meses sem nada ouvir. Julgava-me quite para sempre. Puro engano.

“Todos os espetáculos haviam sido transferidos para Versalhes, para o casamento do Delfim. Tinham-me arranjado um quarto na Avenida Saint-Cloud, que eu ocupava com a Sra. Grandval. Às três da manhã eu lhe disse: Estamos no fim do mundo; seria muito difícil que o grito nos viesse procurar aqui. . . Estalou! A Sra. Grandval pensou que o inferno inteiro estava no quarto. Correu, de camisola, de alto a baixo da casa, onde ninguém pôde pregar olhos durante a noite. Pelo menos foi a última vez que ouvimos.

“Sete ou oito dias depois, quando conversava com pessoas de minhas relações habituais, o toque das onze horas foi seguido de um tiro de fuzil, dado numa de minhas janelas. Todos nós ouvimos o tiro e vimos o fogo, mas a janela não sofreu nenhum dano. Concluímos todos que visavam a minha vida; que haviam errado o alvo e que era preciso, para o futuro, tomar precauções. O Sr. de Marville, então alferes de polícia, mandou vasculhar as casas localizadas em frente à minha. A rua ficou cheia de toda sorte de espias possíveis, mas, por mais cuidados que se tomassem, durante três meses a fio aquele tiro foi visto e ouvido, sempre à mesma hora, no mesmo caixilho, sem que, entretanto, jamais alguém tivesse podido ver de onde partia. O fato foi consignado nos registros policiais.

“Acostumada ao meu fantasma, que eu considerava um pobre diabo que se limitava a fazer estripulias, não me apercebi da hora. Como fazia calor, abri a janela malsinada e, com o intendente, nos debruçamos no balcão. Batem as onze horas, ouve-se o tiro e ambos somos atirados ao meio da sala, onde caímos como mortos. Tornando a nós mesmos e sentindo que tudo havia passado, examinando-nos para constatar que ambos havíamos recebido — ele na face esquerda e eu na face direita — a mais terrível bofetada que jamais poderia ser aplicada, nos pusemos a rir como dois loucos.

“Dois dias depois, convidada por Mademoiselle Dumesnil para uma festa à noite em sua casa, na Porta Branca, tomei uma carruagem às onze horas com minha camareira. Havia um belo luar e nós fomos conduzidas por bulevares que começavam a ser guarnecidos de casas. Perguntou-me a camareira:

“— Não foi aqui que morreu o Sr. de S. . .?

“— Segundo as informações que me deram, respondi-lhe eu, deve ter sido aqui — e apontei uma das duas casas à nossa frente.

“De uma delas partiu o mesmo tiro que me perseguia. Atravessou nossa carruagem, e o cocheiro disparou a viatura, crente de que era assaltado por ladrões.

“Chegamos ao destino tendo apenas nos refeito, pois devo confessar que de minha parte, durante muito tempo conservei uma impressão de terror. Mas esta façanha foi a última com arma de fogo.

“À explosão sucedeu um bater de palmas, com certo compasso e repetição. Esse ruído, ao qual a bondade do público me havia acostumado, passou-me despercebido durante algum tempo, mas os meus amigos o notaram. Disseram-me: ‘Nós temos espreitado. É às onze horas, quase à vossa porta, que a coisa se dá. Ouvimos mas não vemos ninguém. Não pode deixar de ser a continuação daquilo que a senhora tem experimentado.’ Como o ruído nada tinha de terrível, não lhe guardei o tempo de duração. Também não prestei atenção aos sons melodiosos que depois se ouviram. Parecia uma voz celeste dando o mote de uma ária nobre e tocante, prestes a ser cantada. Essa voz começava no quarteirão de Bussy e acabava em minha porta. Como acontecera antes com todos os outros sons, ouvia-se, mas nada se via. Por fim, tudo cessou em pouco mais de dois anos e meio.”

Algum tempo depois, Mademoiselle Clairon teve, por intermédio da senhora idosa que havia ficado como única amiga dedicada do Sr. de S. . . o seguinte relato de seus últimos instantes.

“Ele contava os minutos, disse-lhe ela, quando, às dez e meia, o lacaio veio dizer-lhe que, decididamente, a senhora não viria. Depois de um momento de silêncio tomou-me a mão num impulso desesperado, que me apavorou, e disse: Que cruel! ... ela nada ganhará com isto. Eu a perseguirei, tanto depois de morto quanto a persegui em vida! . . . Procurei acalmá-lo, mas estava morto”.

Na edição que temos em mãos, esta história é precedida da seguinte nota, sem assinatura:

“Eis uma anedota singularíssima, que provocou e provocará sem dúvida as mais diversas opiniões. A gente ama o maravilhoso, mesmo quando não acredita nele. Mademoiselle Clairon parece convencida da realidade dos fatos que descreve. Contentar-nos-emos em fazer notar que ao tempo em que foi ou se supôs atormentada por seu fantasma, ela tinha de vinte e dois anos e meio a vinte e cinco anos, que é a idade da inspiração e que esta faculdade nela era continuamente exercitada e exaltada pelo gênero de vida que levava, no teatro e fora dele. É preciso ainda lembrar que ela disse, no começo de suas memórias, que na infância foi entretida apenas com aventuras de aparições e de feiticeiros, que lhe diziam tratar-se de histórias verídicas.”

Só conhecemos o fato através do relato de Mademoiselle Clairon. Assim, só podemos julgar por indução. Ora, nosso raciocínio é o seguinte: Descrito pela mesma Mademoiselle Clairon nos seus mais minuciosos detalhes, o fato tem mais autenticidade do que se fora relatado por terceiros. Acrescente-se que quando escreveu a carta onde o fato vem descrito, contava cerca de sessenta anos e, pois, havia passado da idade da credulidade, de que fala o autor da nota. Esse autor não põe em dúvida a boa-fé de Mademoiselle Clairon quanto à sua aventura: apenas admite tenha ela sido vítima de uma ilusão. Que o tivesse sido uma vez, nada tem de extraordinário, mas que o tivesse sido durante dois anos e meio já se nos afigura mais difícil. Mais difícil ainda é supor que tal ilusão tenha sido partilhada por tantas pessoas, testemunhas auriculares e oculares dos fatos, inclusive pela própria polícia.

Para nós, que conhecemos o que se pode passar nas manifestações espíritas, a aventura nada contém de surpreendente e a aceitamos como provável. Nesta hipótese não vacilamos em admitir que o autor de todos esses malefícios não seja outro senão a alma ou Espírito do Sr. de S. . ., principalmente se atentarmos para a coincidência de suas últimas palavras com a duração dos fenômenos. Havia ele dito: “Eu a perseguirei, tanto depois de morto quanto a persegui em vida.” Ora, suas relações com Mademoiselle Clairon haviam durado dois anos e meio, ou seja, tanto tempo quanto as manifestações produzidas depois de sua morte.

Ainda algumas palavras sobre a natureza desse Espírito. Ele não era mau, e é com razão que Mademoiselle Clairon o classifica como um pobre diabo, mas também não se pode dizer que fosse a própria bondade. A paixão violenta sob a qual sucumbiu como homem, prova que nele predominavam as ideias terrenas. Os traços profundos dessa paixão, que sobreviveu à destruição do corpo, provam que, como Espírito, ainda se achava sob a influência da matéria. Sua vingança, por mais inofensiva que fosse, denota sentimentos pouco elevados. Se, pois, nos reportarmos ao nosso quadro da classificação dos Espíritos, não será difícil determinar-lhe a classe: a ausência de maldade real o afasta naturalmente da última classe, a dos Espíritos impuros, mas evidentemente tinha muito das outras classes da mesma ordem, pois nada nele poderia justificar uma posição superior.

Digna de nota é a sucessão das várias maneiras pelas quais manifestou sua presença. No mesmo dia e no momento exato de sua morte, fez-se ouvir pela primeira vez e em meio a um jantar alegre. Quando vivo, via Mademoiselle Clairon em pensamento, cercada por essa auréola com que a imaginação envolve o objeto de uma paixão ardente. Desde, porém, que a alma se desembaraçou de seu véu material, a ilusão cedeu à realidade. Lá está ele, ao seu lado, vendo-a cercada de amigos, tudo lhe excitando os ciúmes. Seu canto e sua alegria parecem um insulto ao seu desespero e este se traduz por um grito de raiva, repetido diariamente, à mesma hora, como se para censurá-la por se haver recusado a levar-lhe consolo em seus últimos instantes. Aos gritos se sucedem os tiros, inofensivos, é certo, mas que nem por isso denotam menos uma raiva impotente e o propósito de lhe perturbar o repouso. Mais tarde seu desespero toma um caráter mais sereno; evoluindo sem dúvida para ideias mais sãs, parece haver tomado um partido: resta-lhe a lembrança dos aplausos de que ela foi objeto, e ele os repete. Mais tarde, enfim, diz-lhe adeus, fazendo-a ouvir sons que se diriam o eco dessa voz melodiosa que em vida tanto o encantara.

Isolamento dos corpos pesados.

O movimento impresso aos corpos inertes pela vontade é hoje de tal modo conhecido que seria quase pueril relatar fatos do gênero. Já o mesmo não acontece quando o movimento é acompanhado por fenômenos menos vulgares como, por exemplo, o de sua suspensão no espaço. Embora os anais do Espiritismo citem numerosos exemplos, esse fenômeno apresenta uma tal derrogação das leis da gravidade, que é naturalíssima a dúvida dos que o testemunham. Nós mesmo, nós o confessamos, por mais habituado que estejamos às coisas extraordinárias, ficamos muito contente de poder constatar-lhe a realidade.

O fato que vamos relatar repetiu-se várias vezes aos nossos olhos, em reuniões verificadas outrora em casa do Sr. B. . ., na Rua Lamartine, e sabemos que se produziu inúmeras vezes noutros lugares. Podemos, portanto, atestá-lo como incontestável. Eis como as coisas se passavam:

Oito ou dez pessoas, entre as quais algumas dotadas de um poder especial, embora não fossem reconhecidas como médiuns, sentavam-se em torno de uma mesa de jantar, maciça e pesada, com as mãos às suas bordas e todos unidos pela intenção e pela vontade. Depois de um tempo mais ou menos longo, de dez a quinze minutos, conforme as disposições do ambiente fossem mais o menos favoráveis, a despeito de seu peso de cem quilos, a mesa se punha em movimento; deslizava para a direita ou para a esquerda no soalho; dirigia-se para as diversas partes da sala que fossem indicadas; depois se erguia, ora num pé, ora noutro, até formar um ângulo de 45.º e balançava-se rapidamente, imitando a arfagem e o balanceio de um navio. Se em tal posição a assistência redobrasse os esforços da vontade, a mesa se levantava completamente do solo, elevava-se de dez a vinte centímetros, sustentando-se no espaço sem nenhum apoio, durante alguns segundos, depois caía com todo seu peso.

O movimento da mesa, o levantamento sobre um pé e o balanço eram produzidos mais ou menos à vontade. Ocorria com frequência e várias vezes na sessão, mesmo sem nenhum contato das mãos. A vontade bastava para que a mesa se dirigisse para o lado indicado.

O isolamento completo era mais difícil de obter, mas foi repetido muitas vezes para que se não pudesse considerá-lo como um fato excepcional. Isto não se passava na presença exclusiva de adeptos que pudessem ser inquinados de muito acessíveis à ilusão, mas à frente de vinte ou trinta pessoas, entre as quais, por vezes, algumas muito pouco simpáticas e que não deixavam de levantar a suspeita de uma secreta preparação, sem consideração para com os donos da casa, cujo caráter honesto deveria afastar qualquer suspeita de fraude e para os quais seria aliás um prazer muito singular passar algumas horas por semana a mistificar uma assembleia sem o menor proveito.

Relatamos o fato em toda a sua simplicidade, sem restrição nem exagero. Assim, não diremos que vimos a mesa volitar no espaço como uma pena, no entanto, tal como se apresenta, o fato não demonstra menos a possibilidade de isolamento dos corpos pesados sem ponto de apoio, por meio de uma força ainda desconhecida. Também não diremos que era bastante estender a mão ou fazer um sinal qualquer para que, no mesmo instante, a mesa se movesse e se elevasse como que por encanto.

Ao contrário, diremos, para sermos fiéis à verdade, que os primeiros movimentos sempre se operavam com certa lentidão, e que só gradativamente adquiriam o máximo de intensidade. O soerguimento completo só se verificava depois de alguns movimentos preparatórios, que eram como que ensaios para uma espécie de arremesso. A força atuante parecia redobrar de esforços pelo encorajamento dos assistentes, como um homem ou um cavalo que cumpre uma tarefa pesada e que é excitado por gestos e palavras. Uma vez produzido o efeito, tudo voltava à calma, e por alguns instantes nada era obtido, como se aquela mesma força tivesse necessidade de tomar fôlego.

Teremos muitas ocasiões de citar fenômenos desse gênero, quer espontâneos, quer provocados, e realizados em proporções e circunstâncias muito mais extraordinárias. Mas quando tivermos sido testemunha, relatá-los-emos sempre de modo a evitar qualquer interpretação falsa ou exagerada. Se no caso acima nos tivéssemos contentado em dizer que havíamos visto uma mesa de cem quilos elevar-se ao simples contato das mãos, não há dúvida de que muita gente haveria de pensar que a mesa tinha subido até o forro e com a rapidez de um olhar. É assim que as coisas mais simples se tornam prodígios, pelas proporções emprestadas pela imaginação. Que não será quando os fatos atravessarem os séculos e passarem pela boca dos poetas! Se disséssemos que a superstição é filha da realidade, o conceito seria tomado como um paradoxo. Contudo, nada mais verdadeiro: não há superstição que não repouse sobre um fundo real. Tudo está em discernir onde uma começa e o outro acaba. O verdadeiro meio de combater as superstições não é contestá-las de maneira absoluta. No espírito de certa gente há ideias que se não desenraizam facilmente, porque sempre há fatos que podem citar em apoio de sua opinião. Ao contrário, é preciso mostrar o que há de real. Então restará apenas o exagero ridículo, ao qual o bom senso fará justiça.

A floresta de Dodona e a estátua de Memnon.

Para chegar à floresta de Dodona passamos pela Rua Lamartine e paramos um instante em casa da Sra. B. . ., onde vimos um móvel dócil propor-nos um novo problema de estática.

Os assistentes, em qualquer número, colocavam-se em volta da mesa em questão, numa ordem também qualquer, pois ali nem há números nem lugares cabalísticos; as mãos apoiam-se à borda da mesa; mentalmente, ou em voz alta, fazem apelo aos Espíritos que costumam vir a seu convite. É conhecida nossa opinião a respeito desse gênero de Espíritos, razão por que os tratamos um tanto sem cerimônia. Quatro ou cinco minutos apenas são decorridos e um ruído claro de toc, toc se faz ouvir na mesa, por vezes bastante forte a ponto de ser ouvido na sala vizinha; repete-se tanto tempo e tantas vezes quanto se queira. A vibração é sentida nos dedos, e aplicando-se o ouvido à mesa — o que não se deve esquecer — reconhece-se que o ruído, sem engano possível, se origina na substância mesma da madeira, pois toda a mesa vibra, dos pés ao tampo.

Qual a causa desse ruído? É a madeira que estala ou, como se costuma dizer, um Espírito? Afastemos, inicialmente, qualquer ideia de fraude, pois encontramonos em casa de gente séria e de boa companhia, incapaz de se divertir à custa daqueles que recebem de boa vontade. Aliás, essa casa não é privilegiada. Os mesmos fatos se reproduzem em muitas outras, igualmente honestas. Permitam-nos, entretanto, antes da resposta, uma pequena digressão.

Um jovem bacharelando estava em seu quarto, estudando pontos do exame de Retórica, quando bateram à porta. Penso que todos admitem ser possível distinguir a natureza do ruído, e sobretudo na sua repetição, se é causado por um estalo da madeira, pela agitação do vento ou por qualquer outra causa fortuita, ou se é alguém que bate, querendo entrar. Neste último caso o ruído tem um caráter intencional, que não pode ser confundido. É o que pensa o nosso estudante. Entretanto, para não se incomodar inutilmente, quis certificar-se, pondo à prova o visitante. Se for alguém, diz ele, bata uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes; bata no alto, em baixo, à direita ou à esquerda; bata o compasso musical; bata a chamada militar, etc., e a cada um desses pedidos, o ruído obedece com a mais perfeita exatidão. Com certeza, pensa ele, não pode ser o estalo da madeira, nem o vento, nem mesmo um gato, por mais inteligente que seja. Eis um fato. Vejamos a que consequências seremos conduzidos pelos argumentos silogísticos.

Assim, ele fez o seguinte raciocínio: Ouço um barulho, logo, é alguma coisa que o produz. Esse barulho obedece às minhas ordens, portanto, a causa que o produz me compreende. Ora, o que compreende tem inteligência, portanto a causa desse barulho é inteligente. Se é inteligente, não é a madeira nem o vento; se, pois, não é a madeira nem o vento, é alguém. Então foi abrir a porta. Vejamos que não é preciso ser doutor para chegar a esta conclusão e julgamos nosso futuro bacharel suficientemente aferrado aos seus princípios para concluir do seguinte modo:

Suponhamos que ao abrir a porta ele não encontre ninguém, e que o barulho continue exatamente como antes. Ele seguira o seu sorites[1]: “Acabo de provar a mim mesmo, sem contestação, que o barulho é produzido por um ser inteligente, uma vez que responde ao meu pensamento. Ouço sempre esse barulho à minha frente e é certo que não sou eu quem bate, portanto, é um outro. Ora, se esse outro eu não vejo, claro que ele é invisível. Os seres corporais que pertencem à humanidade são perfeitamente visíveis. Este que bate, sendo invisível, não é um ser humano corpóreo. Ora, desde que chamamos Espíritos aos seres incorpóreos, aquele que bate, não sendo corpóreo, é pois um Espírito”.

Julgamos perfeitamente lógicas as conclusões do nosso estudante. Apenas, aquilo que nós demos como suposição é uma realidade, no tocante às experiências que se faziam em casa da Sra. B. . . Diremos mais, que era desnecessária a imposição das mãos, e que todos os fenômenos se produzem igualmente bem, com a mesa livre de qualquer contato. Assim, conforme o desejo expresso, as batidas eram dadas na mesa, na parede, na porta e em outros lugares designados verbal ou mentalmente. Eles indicavam a hora e o número de pessoas presentes; batiam o avanço e a chamada militares, assim como o compasso de uma música conhecida; imitavam o trabalho do toneleiro, o ruído da serra, o eco, as descargas de patrulhas ou de pelotões, e outros efeitos que seria longo descrever. Contaram-nos que em certos círculos ouvia-se a imitação do sibilar do vento, o ciciar das folhas, o estrondo do trovão, o marulho das vagas, o que nada tem de surpreendente. A inteligência da causa tornava-se patente quando, por meio desses golpes, eram obtidas respostas categóricas a certas perguntas. Ora, é a esta causa inteligente que chamamos ou, melhor dizendo, que ela mesma se chamou Espírito. Quando esse Espírito queria dar uma comunicação mais desenvolvida, indicava, por um sinal particular, que queria escrever; então o médium escrevente tomava o lápis e transmitia seu pensamento por escrito.

Entre os assistentes, não falando dos que estavam em volta da mesa, mas de todas as pessoas que enchiam o salão, havia incrédulos autênticos, meio crentes e crentes fervorosos que, como se sabe, constituem uma mistura pouco favorável. Os primeiros, nós os deixamos à vontade, esperando que a luz se faça para eles. Respeitamos todas as crenças, mesmo a incredulidade, que constitui uma espécie de crença, quando essa se respeita suficientemente para não chocar as opiniões contrárias. Assim, pois, não diremos que suas observações sejam destituídas de utilidade. Seu raciocínio, muito menos prolixo que o do nosso estudante, geralmente pode ser assim resumido: Eu não creio em Espíritos, portanto, não podem ser Espíritos, e como não são Espíritos, é um truque. Tal suposição os leva a admitir que a mesa teria um maquinismo, à maneira de Robert Houdin. Nossa resposta a isso é muito simples: primeiro, seria preciso que todas as mesas e todos os móveis tivessem maquinismos, uma vez que não os há privilegiados; segundo, não se conhece qualquer mecanismo suficientemente engenhoso para produzir à vontade todos os efeitos que acabamos de descrever; em terceiro lugar, seria necessário que a Sra. B. . . tivesse preparado propositalmente paredes e portas de seu apartamento, o que é pouco provável; em quarto lugar, enfim, teria sido necessário preparar ainda as mesas, as portas, as paredes de todas as casas onde semelhantes fenômenos se produzem diariamente, o que também não é de presumir-se, porque então seria conhecido o hábil construtor de tantas maravilhas.

Os meio crentes admitem todos os fenômenos, mas estão indecisos quanto à sua causa. Nós os mandamos de volta aos argumentos do nosso futuro bacharel.

Os crentes apresentam três nuanças bem características.

Há os que nas experiências não veem mais que um divertimento e um passatempo, e cuja admiração se traduz por estas e outras expressões: É admirável! É singular! É engraçado! Mas não vão além disso. A seguir vêm os sérios, instruídos, observadores, a quem nenhum detalhe escapa e para os quais as menores coisas constituem material para estudo. Vêm por fim os ultra-crentes, se assim os podemos chamar ou, melhor dito, os de crença cega, que podem ser censurados por seu excesso de credulidade; desde que sua fé não é suficientemente esclarecida, têm uma tal confiança nos Espíritos, que lhes admitem um completo conhecimento e sobretudo a presciência. Assim, é de boa-fé que fazem perguntas sobre todos os assuntos, sem pensar que teriam tido as mesmas respostas do primeiro cartomante a quem pagassem. Para esses, a mesa falante não é objeto de estudo e de observação; é um oráculo. Contra isso há apenas a forma trivial e os seus usos vulgares. Mas se a madeira de que ela é feita, em vez de ser trabalhada para as necessidades domésticas, estivesse de pé, teríamos uma árvore falante; se nela fosse esculpida uma estátua, teríamos um ídolo, ante o qual viriam prostrar-se as pessoas crédulas.

Agora transponhamos os mares e vinte e cinco séculos, transportando-nos ao pé do monte Taurus, no Épiro. Ali encontraremos a floresta sagrada, cujos carvalhos proferiam oráculos. Acrescentemos o prestígio do culto e a pompa das cerimônias religiosas e facilmente teremos a explicação da veneração de um povo ignorante e crédulo, incapaz de ver a realidade através de tantos meios de fascinação.

A madeira não é a única substância que pode servir de veículo à manifestação dos Espíritos batedores. Vimo-la produzir-se em muros e, por conseguinte, na pedra. Temos assim, pois, as pedras falantes. Se essas pedras representam um personagem sagrado, temos a estátua de Memnon ou a de Júpiter Amon proferindo oráculos como as árvores de Dodona.

É verdade que a História não nos diz que esses oráculos eram proferidos por pancadas, como em nossos dias. Na floresta de Dodona era pelo sibilar do vento através das árvores, pelo ciciar das folhas ou pelo murmúrio da fonte que brotava ao pé do sagrado carvalho de Júpiter. Diz-se que a estátua de Memnon emitia sons melodiosos aos primeiros raios do sol. Mas também nos diz a História, como teremos oportunidade de demonstrar, que os antigos conheciam perfeitamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos batedores. Ninguém duvide que nisso esteja o princípio de sua crença na existência de seres animados nas árvores, nas pedras, nas águas, etc. Mas, desde que tal gênero de manifestação foi explorado, as batidas já não bastavam; eram muito numerosos os visitantes, para que a cada um se oferecesse uma sessão particular; aliás, teria sido muito simples: era necessário o prestígio e, desde que enriqueciam o templo com suas oferendas, essas despesas deviam ser cobertas. O essencial era que o objeto fosse olhado como sagrado e habitado por uma divindade. Nestas condições, era possível fazê-lo dizer aquilo que se quisesse, sem necessidade de tantas precauções.

Os sacerdotes de Memnon, ao que se diz, empregavam fraudes: a estátua era oca e os sons que emitia eram produzidos por processos acústicos. Isto é possível e mesmo provável. Os próprios Espíritos batedores, que em geral são menos escrupulosos que os outros, não estão sempre, como já o dissemos, à disposição do primeiro que chega. Eles têm sua vontade, suas ocupações, suas susceptibilidades e nem uns nem outros gostam de ser explorados pela cupidez. Que descrédito para os sacerdotes se o seu ídolo não falasse convenientemente! Também era necessário suprir o seu silêncio e, se fosse necessário, dar uma ajuda. Aliás era muito mais cômodo não ter tantas apoquentações, bastando formular a resposta conforme as circunstâncias. O que vemos hoje prova que, apesar de tudo isto, as crenças antigas tinham por princípio o conhecimento das manifestações espíritas, razão por que dissemos que o Espiritismo moderno é o despertar da antiguidade, mas da antiguidade esclarecida pelas luzes da civilização e da realidade.

A avareza.

Dissertação moral ditada por são Luis à Senhora Ermance Dufaux a 6 de janeiro de 1858.

I


Tu que possuis, escuta-me. Um dia dois filhos do mesmo pai receberam cada um seu alqueire de trigo. O mais velho fechou o seu num lugar retirado. O outro encontrou no caminho um pobre que pedia esmolas, correu para ele a despejar em seu manto a metade do trigo que recebera. Depois, seguiu seu caminho e foi semear o resto no campo paterno.

Por esse tempo veio uma grande fome e as aves do céu morriam à beira dos caminhos. O irmão mais velho correu ao seu esconderijo, mas ali só encontrou poeira. O caçula ia tristemente contemplar seu trigo seco no pé, quando deparou com o pobre que havia ajudado. ─ Irmão, disse-lhe o mendigo, eu estava morrendo e tu me socorreste; agora que a esperança secou em teu coração, segue-me. Teu meio alqueire rendeu cinco vezes em minhas mãos. Matarei a tua fome e viverás em abundância.

II

Escuta-me, avarento! Conheces a felicidade? Sim, não é? Teus olhos brilham com reflexos sombrios nas órbitas que a avareza tornou mais profundas; teus lábios se cerram; tuas narinas se dilatam e teus ouvidos ficam atentos. Sim, eu escuto: é o tinir do ouro que tua mão acaricia, ao se derramar no teu escaninho. Tu dizes: que suprema volúpia! Silêncio, vem gente! Fecha depressa! Oh! Como estás pálido! Teu corpo todo estremece. Domina-te! Os passos se afastam. Abre! Olha ainda o teu ouro. Abre! Não tremas. Estás perfeitamente só. Ouves? Não é nada. É o vento que geme nas frestas. Olha! Quanto ouro! Mergulha as mãos; faze soar o metal. Tu és feliz.

Feliz, tu! Mas a noite não te dá repouso, e teu sono é povoado de fantasmas.

Tens frio! Aproxima-te da lareira. Aquece-te a esse fogo que crepita tão alegremente. Cai neve; o viajante friorento envolve-se em seu manto; o pobre tirita sob os andrajos. A chama da lareira diminui; atira mais lenha. Não; para! É o teu ouro que consomes com essa madeira; é o teu ouro que queimas!

Tens fome! Olha, toma, sacia-te. Tudo isto é teu. Pagaste com o teu ouro. Com o teu ouro! Esta abundância te revolta; este supérfluo será necessário para manter-se a vida? Não, este pedaço de pão será bastante; ainda é muito. Tuas roupas caem em frangalhos; tua casa se fende e ameaça ruína; sofrerás frio e fome; mas que importa! Tens ouro!

Infeliz! A morte vai separar-te deste ouro. Deixá-lo-ás à borda de teu túmulo, como a poeira que o viajante sacode à soleira da porta, onde a família querida o espera para festejar o regresso.

Teu sangue enfraquecido, envelhecido por tua voluntária miséria, gelou-se em tuas veias. Os herdeiros ávidos atiram teu corpo a um recanto de cemitério; eis-te face a face com a eternidade. Miserável! Que fizeste desse ouro que te foi confiado para aliviar o pobre? Ouves estas blasfêmias? Vês estas lágrimas? Vês este sangue? São as blasfêmias dos sofrimentos que terias podido acalmar; são as lágrimas que fizeste correr; é o sangue que derramaste. Tens horror a ti mesmo; desejarias fugir e não podes. Sofres, desesperado! Tu te contorces no teu sofrimento. Sofre! Não haverá piedade para contigo! Não tiveste entranhas para o teu irmão infeliz. Quem teria para ti? Sofre! Sofre sempre! Teu suplício não terá fim. Para te punir, Deus quer que assim o creias.

OBSERVAÇÃO: Ouvindo o fim destas eloquentes e poéticas palavras, estávamos surpreendidos por ouvir São Luís falar da eternidade dos sofrimentos, quando todos os Espíritos superiores são concordes em combater tal crença, quando as últimas palavras: para te punir, Deus quer que assim o CREIAS, tudo explicaram. Nós as reproduzimos nos caracteres gerais dos Espíritos da terceira ordem. Com efeito, quanto mais imperfeitos os Espíritos, mais restritas e circunscritas as suas ideias. Para eles o futuro é vago, e não o compreendem. Eles sofrem; seus sofrimentos são longos, e para quem sofre há muito tempo, isto é sofrer sempre. Este pensamento, por si só, é um castigo.

Num próximo artigo citaremos fatos de manifestações que poderão esclarecer-nos quanto à natureza dos sofrimentos de além-túmulo.

SENHORITA CLARY D. . .

Evocação.

Nota: A Senhorita Clary D. . . interessante menina, falecida em 1850, aos 13 anos de idade, desde então ficou como o gênio da família, onde é evocada com frequência e onde dá um grande número de comunicações do mais alto interesse. A conversa que damos a seguir ocorreu entre nós a 12 de janeiro de 1857, por intermédio de seu irmão, que é médium.

— Você tem lembrança precisa de sua existência corporal?

— O Espírito vê o presente, o passado e um pouco do futuro, conforme sua perfeição e sua proximidade de Deus.

— Esta condição de perfeição é relativa apenas ao futuro, ou se refere igualmente ao presente e ao passado?

— O Espírito vê o futuro mais claramente à medida que se aproxima de Deus. Depois da morte, a alma vê e abarca de um relance todas as passadas migrações, mas não pode ver aquilo que Deus lhe prepara. Para isto é preciso que esteja inteiramente em Deus, há muitas existências.

— Sabe em que época será sua reencarnação?

— Em 10 ou em 100 anos.

— Na Terra ou em outro mundo?

— Num outro.

— O mundo para onde irá, comparado com a Terra, terá condições melhores, iguais ou inferiores?

— Muito melhores que as da Terra. Lá se é feliz.

— Visto que você se encontra aqui entre nós, está em um lugar determinado? Em que lugar?

— Estou em aparência etérea. Posso dizer que meu Espírito propriamente dito estende-se muito mais longe. Vejo muitas coisas e me transporto muito longe daqui com a velocidade do pensamento. Minha aparência está à direita de meu irmão e guia-lhe o braço.

— Esse corpo etéreo de que se reveste permite-lhe experimentar sensações físicas, como, por exemplo, de calor e de frio?

— Quando me lembro muito de meu corpo sinto uma espécie de impressão, como quando se tira um manto e se fica com a sensação de que, por algum tempo, ainda se está com ele.

— Você disse que pode transportar-se com a velocidade do pensamento. O pensamento não é a própria alma que se desprende de seu envoltório?

— Sim.

— Quando seu pensamento se dirige a alguma parte, como se dá a separação de sua alma?

— A aparência se desvanece. O pensamento vai só.

— É, pois, uma faculdade que se destaca; o ser fica onde está?

— A forma não é o ser.

— Mas como age esse pensamento? Não age sempre por meio da matéria?

— Não.

— Quando sua faculdade de pensar se destaca, você não age, então, por meio da matéria?

— A sombra se desvanece e reproduz-se onde o pensamento a guia.

— Considerando-se que você tinha apenas 13 anos quando seu corpo morreu, como é que, sobre perguntas tão abstratas, pode nos dar respostas que estão fora do alcance de uma criança de sua idade?

— Minha alma é muito antiga!

— Entre suas existências anteriores pode citar-nos uma na qual tivesse elevado ao máximo os seus conhecimentos?

─ Estive no corpo de um homem que tornei virtuoso. Depois de sua morte, estive no corpo de uma menina cujo rosto estampava a própria alma. Deus me recompensa.

─ Poderia ser-nos permitido vê-lo aqui tal qual é atualmente?

— Poderia.

— Como seria possível? Depende de nós, de você ou das pessoas mais íntimas?

— De vocês.

— Que condições deveríamos satisfazer para consegui-lo?

─ Vocês se recolherem por algum tempo, com fé e fervor; estarem em menor número; isolarem-se um pouco e arranjarem um médium do gênero de Home.

O sr. Home.

Os fenômenos operados pelo Sr. Home produziram tanto maior sensação quanto é certo que vêm confirmar os maravilhosos relatos de além-mar, a cuja veracidade se liga uma certa desconfiança. Ele nos mostrou que, pondo de lado a mais larga margem devida ao exagero, ainda ficava bastante para atestar a realidade dos fatos passados fora de todas as leis conhecidas.

Falou-se muito do sr. Home, e de várias maneiras, e nós confessamos que ele estava longe de provocar simpatia em todos, nuns por espírito de sistema, noutros por ignorância. Nestes últimos queremos até admitir uma opinião conscienciosa, se por si mesmos não puderam constatar os fatos; mas se, em tal caso, a dúvida é permitida, é sempre fora de propósito uma hostilidade sistemática e apaixonada. Em toda relação de causa, julgar sem conhecimento é falta de lógica e difamar sem provas é esquecer as conveniências.

Por um instante, façamos abstração da intervenção dos Espíritos e não vejamos, nos fatos relatados, mais do que fenômenos físicos. Quanto mais estranhos forem eles, mais atenção merecem. Que os expliquem como quiserem, mas não os contestem a priori, se não quiserem que tal julgamento seja posto em dúvida. O que nos deve admirar, e que nos parece ainda mais anormal que os fenômenos em questão, é ver esses mesmos que incessantemente deblateram contra a oposição de certos grupos científicos às ideias novas; que continuamente lhes lançam em rosto — e isso em linguagem menos comedida — os dissabores experimentados pelos autores das mais importantes descobertas; que a todo momento citam Fulton, Jenner e Galileu, escorregarem, eles próprios, em erro semelhante, eles que dizem, e com razão, que ainda não há muito tempo, quem quer que houvesse falado em corresponder-se de um extremo ao outro da Terra em alguns segundos teria passado por insensato. Se acreditam no progresso, do qual se dizem apóstolos, que sejam então coerentes consigo mesmos e não atraiam para si o reproche que lançam aos outros, de negar aquilo que não compreendem.

Mas voltemos ao sr. Home. Vindo a Paris em outubro de 1855, viu-se, desde a chegada, atirado no mais elevado mundo, circunstância que deveria ter imposto mais circunspeção no julgamento que lhe fazem, porque, quanto mais elevado e esclarecido é esse mundo, menos suspeita de se ter benevolamente transformado em joguete por um aventureiro.

Esta mesma posição suscitou comentários. Pergunta-se quem é o sr. Home. Para viver nesta sociedade e fazer viagens dispendiosas, diz-se que é necessário ter fortuna. Se não a tem, deve ser sustentado por gente poderosa. Sobre esse tema levantaram-se mil e uma suposições, cada qual mais ridícula. Que não disseram de sua irmã, que ele foi buscar há cerca de um ano! Dizia-se que era uma médium mais possante que ele; que os dois deveriam realizar prodígios que fariam empalidecer os de Moisés. Mais de uma vez nos dirigiram perguntas a tal respeito. Eis agora a nossa resposta.

Vindo à França, o sr. Home não se dirigiu ao público. Ele nem gosta nem procura a publicidade. Se tivesse vindo com propósito de especulação, teria corrido o país, servindo-se da propaganda; teria procurado todas as oportunidades para manifestar-se, no entanto, ele as evita; teria estabelecido um preço às suas manifestações, ao passo que nada pede a ninguém. Apesar de sua reputação, o sr. Home não é o que se pode chamar um homem público. Sua vida privada pertence exclusivamente a ele. Desde que nada pede, ninguém tem o direito de perguntar como vive, sem cometer uma indiscrição. É mantido por gente poderosa? Isto não nos interessa. Tudo quanto podemos dizer é que nesta sociedade de escol ele conquistou simpatias reais e fez amigos dedicados, ao passo que, com um pelotiqueiro, a gente paga, diverte-se, e acabou-se.

No sr. Home vemos apenas um homem dotado de uma faculdade notável. O estudo dessa faculdade é tudo quanto nos interessa e tudo quanto deve interessar aos que não são movidos apenas por sentimentos de curiosidade. A História ainda não abriu para ele o livro de seus segredos. Até lá ele pertence à ciência.

Quanto à sua irmã, eis a verdade: É uma menina de onze anos, que ele trouxe a Paris para a sua educação, de que está encarregada ilustre figura. Ela mal sabe em que consiste a faculdade do irmão. Como se vê, é tudo muito simples e muito prosaico para os amantes de maravilhas.

Agora, por que o sr. Home teria vindo à França? Não foi para tentar fortuna, como acabamos de provar. Para conhecer o país? Mas ele não o percorre; sai pouco e não tem absolutamente hábitos de turista. O motivo patente é o conselho dos médicos que acham o clima da Europa necessário à sua saúde, mas os fatos mais naturais são por vezes providenciais. Pensamos, pois, que se ele veio é porque devia vir.

A França, ainda em dúvida no que concerne às manifestações espíritas, precisava que lhe fosse desferido um grande golpe; foi o sr. Home quem teve esta missão e, quanto mais alto foi o golpe, maior foi a sua repercussão. A posição, o crédito, as luzes dos que o acolheram e que se convenceram pela evidência dos fatos, abalaram as convicções de muita gente, mesmo entre as pessoas que foram testemunhas oculares.

Terá sido, pois, a presença do sr. Home um poderoso auxiliar na propagação das ideias espíritas. Se não convenceu a todo mundo, lançou sementes que frutificarão tanto mais quanto mais se multiplicarem os médiuns. Essa faculdade, como dissemos alhures, não constitui privilégio exclusivo; existe em estado latente e em diversos graus numa porção de indivíduos, esperando apenas ocasião de se desenvolver. O princípio está em nós, por efeito mesmo da nossa organização. Ele está em a natureza, e todos o temos em germe. Não está longe o dia em que veremos surgirem médiuns de todos os lados, em nosso meio, em nossas famílias, entre os pobres como entre os ricos, a fim de que a verdade seja por todos conhecida, porque, conforme o que está anunciado, é uma era nova, uma fase nova que se inicia para a humanidade. A evidência e a vulgarização dos fenômenos espíritas darão novo curso às ideias morais, como o vapor deu novo curso às indústrias.

Se a vida privada do sr. Home deve estar fechada às investigações de uma indiscreta curiosidade, há certos detalhes que, a justo título, podem interessar ao público e, para a apreciação dos fatos, o seu conhecimento pode ser mesmo útil.

O sr. Daniel Dunglas Home nasceu a 15 de março de 1833, perto de Edimburgo. Tem, pois, atualmente, 24 anos. Descende da antiga e nobre família dos Dunglas da Escócia, outrora soberana. É um moço de estatura mediana, louro e cuja fisionomia melancólica nada tem de excêntrica; é de compleição muito delicada, de costumes simples e meigos, de caráter afável e benevolente, sobre o qual o contato das grandezas nem lançou arrogância nem ostentação. Dotado de excessiva modéstia, jamais faz alarde de sua maravilhosa faculdade; jamais fala de si mesmo e se, numa expansão de intimidade, conta casos pessoais, faz com simplicidade e jamais com a ênfase própria das criaturas com as quais a malevolência procura compará-lo. Muitos fatos íntimos, de nosso conhecimento pessoal, provam seus sentimentos nobres e a elevação de sua alma. Nós o constatamos com tanto maior prazer quanto mais se conhece a influência das disposições morais sobre a natureza das manifestações.

Os fenômenos de que o Sr. Home é instrumento involuntário por vezes têm sido contados por amigos muito zelosos com um entusiasmo exagerado, do qual se apoderou a malevolência. Sendo como são, não necessitam de amplificação, mais nociva do que útil à causa. Como o nosso fim é o estudo sério de tudo quanto se liga à ciência espírita, fechar-nos-emos na estrita realidade dos fatos constatados por nós mesmos ou pelas testemunhas oculares mais dignas de fé. Podemos, pois, comentá-los, com a certeza de que não estamos conjeturando sobre coisas fantásticas.

O sr. Home é um médium do gênero dos que produzem manifestações ostensivas, sem excluir por isto as comunicações inteligentes, mas as suas predisposições naturais lhe dão para as primeiras uma aptidão toda especial. Sob sua influência ouvem-se os mais estranhos ruídos; o ar se agita; os corpos sólidos se movem, levantam-se, transportam-se de um lado a outro, através do espaço; instrumentos de música produzem sons melodiosos; aparecem seres do mundo extracorpóreo que falam, que escrevem e que por vezes nos abraçam até produzir dor. Muitas vezes ele próprio se viu, em presença de testemunhas oculares, elevado, sem apoio, a vários metros de altura.

Do que nos tem sido ensinado sobre a classe de Espíritos que em geral produzem tais manifestações, não se deve concluir que o sr. Home só esteja em contato com a classe ínfima do mundo espírita. Seu caráter e as qualidades morais que o distinguem, ao contrário, devem atrair para ele as simpatias de Espíritos superiores. Para os Espíritos inferiores, ele não passa de um instrumento destinado a abrir os olhos aos cegos de maneira enérgica, sem que por isso esteja privado de comunicações de ordem mais elevada. É uma missão que ele aceitou, missão não isenta de tribulações nem de perigos, mas que realiza com resignação e perseverança, sob a égide do Espírito de sua mãe, seu verdadeiro anjo da guarda.

A causa das manifestações do sr. Home lhe é inata; sua alma, que parece não se prender ao corpo senão por fracos liames, tem mais afinidade com o mundo espírita do que com o mundo corpóreo. Eis por que se desprende sem esforço e, mais facilmente que os outros, entra em comunicação com os seres invisíveis.

Essa faculdade se lhe revelou desde a mais tenra idade. Aos seis meses seu berço se balançava sozinho, na ausência da babá, e mudava de lugar. Em seus primeiros anos era tão débil que mal se sustinha; sentado no tapete, quando não alcançava os brinquedos, estes vinham pôr-se ao seu alcance. Aos três anos teve suas primeiras visões, cuja memória não conservou. Tinha nove anos quando a família se mudou para os Estados Unidos; lá continuaram os mesmos fenômenos com intensidade crescente, à medida que avançava em idade, mas a sua reputação como médium só se criou em 1855, época em que as manifestações espíritas começaram a se popularizar naquele país. Em 1854 veio à Itália, como dissemos, por motivo de saúde. Espantou Florença e Roma com verdadeiros prodígios.

Convertido ao catolicismo nesta última cidade, assumiu o compromisso de romper relações com o mundo dos Espíritos. Realmente, durante um ano parece ter sido abandonado por seu poder oculto, mas como tal poder está acima de sua vontade, no fim desse tempo, conforme lhe havia anunciado o Espírito de sua mãe, as manifestações reapareceram com uma nova força. Sua missão estava traçada; deveria destacar-se entre aqueles que a Providência escolheu para nos revelar, por sinais patentes, o poder que se superpõe a todas as grandezas humanas.

Se o sr. Home fosse, como o pretendem os que julgam sem ver, somente um hábil prestidigitador, teria sempre, sem a menor dúvida, mágicas prontas em sua sacola. Entretanto, não é senhor de produzi-las à vontade. Ser-lhe-ia impossível dar sessões regulares, pois muitas vezes, no momento exato em que tivesse necessidade de sua faculdade, esta poderia faltar. Por vezes, os fenômenos se manifestam espontaneamente, no momento em que menos se espera, enquanto que doutras vezes não é possível provocá-los, o que é uma circunstância pouco favorável para quem quisesse fazer exibições com hora marcada.

Uma prova temos no fato seguinte, tomado entre centenas de outros. Havia mais de quinze dias que o sr. Home não obtinha qualquer manifestação quando, almoçando em casa de um amigo com duas ou três pessoas conhecidas, de repente ouviram-se pancadas nas paredes, nos móveis e no teto. Parece que voltam, disse ele. Nesse momento o sr. Home estava sentado num canapé com um amigo. Um criado trouxe a bandeja de chá e preparava-se para colocá-la sobre a mesa, no meio do salão. Conquanto muito pesada, a mesa levantou-se subitamente do solo, elevando-se a cerca de 20 a 30 centímetros de altura, como se tivesse sido atraída pela bandeja. Apavorado, o criado deixou a bandeja cair. De um salto, a mesa se lançou na direção do canapé e veio pousar diante do sr. Home e seu amigo, sem que coisa alguma do que estava em cima se tivesse desarranjado. Inquestionavelmente, este fato não é o mais curioso de quantos temos ouvido, mas apresenta esta particularidade digna de menção: é que se produziu espontaneamente, sem provocação, num círculo íntimo, onde nenhum dos assistentes, cem vezes testemunhas de fatos idênticos, necessitava de novas provas. Certamente não era o caso de o sr. Home demonstrar as suas habilidades, se habilidades existem. Num próximo artigo citaremos outras manifestações.

Manifestações de Espíritos.
Respostas ao Sr. Viennet, por Paul Auguez.

O sr. Paul Auguez é um adepto sincero e esclarecido da doutrina espírita. Sua obra, que lemos com muito interesse, e na qual se reconhece a pena elegante do autor dos Élus de l’avenir, é uma demonstração lógica e sábia dos pontos fundamentais desta doutrina, isto é, da existência dos Espíritos, de suas relações com os homens e, consequentemente, da imortalidade da alma e de sua individualidade após a morte. Seu fim principal é responder às agressões sarcásticas do Sr. Viennet. Ele não aborda senão os pontos capitais, limitando-se a provar com os fatos, com o raciocínio e com as autoridades mais respeitáveis, que esta crença não é fundada sobre ideias sistemáticas ou preconceitos vulgares. Ao contrário, repousa sobre bases sólidas. A arma do Sr. Viennet é o ridículo; a do Sr. Auguez é a ciência. Pelas numerosas citações que atestam um estudo sério e uma profunda erudição, ele prova que se os adeptos de hoje, apesar de sua cifra sempre crescente, e as pessoas esclarecidas de todos os países que a eles se ligam, são, como pretende o ilustre acadêmico, cérebros desequilibrados, tal enfermidade lhes é comum com a da maioria dos gênios que honram a humanidade.


* Em português, Eleitos do futuro.

Nas suas refutações, o sr. Auguez conservou sempre a dignidade de linguagem, mérito que nunca será por demais louvado. Em parte alguma se encontram essas diatribes deslocadas, transformadas em lugares-comuns de mau gosto e que nada provam, a não ser a falta de urbanidade. Tudo quanto diz é grave, sério, profundo, à altura do sábio a quem se dirige. Tê-lo-á convencido? Ignoramos; duvidamos mesmo, para falar com franqueza. Mas como, em definitivo, seu livro é feito para todos, as sementes que espalha não serão perdidas. Por mais de uma vez teremos ocasião de citar passagens de sua obra no curso desta publicação, à medida que formos arrastados pela natureza do assunto.

A teoria desenvolvida pelo sr. Auguez, salvo talvez alguns pontos secundários, é a mesma que professamos. Assim, não faremos a respeito nenhuma crítica à sua obra marcante, que será lida com proveito. Apenas uma coisa desejaríamos: um pouco mais de clareza nas demonstrações e de método na ordenação da matéria. O sr. Auguez tratou do assunto cientificamente, porque se dirigia a um sábio capaz, com certeza, de compreender as coisas mais abstratas, mas deveria ter pensado que escrevia menos para um homem do que para um público que lê sempre com mais prazer e mais proveito aquilo que compreende sem esforço.

Aos leitores da Revista Espírita.

Vários de nossos leitores quiseram responder ao apelo que fizemos em nosso primeiro número, relativamente a informações a nos serem fornecidas. Grande cópia de fatos foi assinalada, entre os quais alguns muito importantes, pelo que somos infinitamente agradecidos. Não o somos menos pelas reflexões que por vezes os acompanham, mesmo quando revelam incompleto conhecimento da matéria. Elas permitirão esclarecimentos sobre pontos que não tiverem sido bem compreendidos. Se não fazemos menção imediata aos documentos que nos são fornecidos, nem por isso nos passam despercebidos. Sempre tomamos boa nota, a fim de que, mais cedo ou mais tarde, sejam aproveitados.

A falta de espaço não é a causa única que pode retardar a publicação, mas ainda a oportunidade das circunstâncias e a necessidade de ligá-los aos artigos, aos quais podem servir de complemento útil.

A multiplicidade de nossas ocupações, somada à extensa correspondência, nos deixa por vezes na impossibilidade material de responder como desejáramos, e como era nosso dever, às pessoas que nos honram com suas cartas. Rogamos encarecidamente que não interpretem mal o nosso silêncio, independente de nossa vontade. Esperamos que sua boa vontade não arrefeça e que não interrompam sua interessante correspondência. Neste particular, novamente chamamos a atenção para a nota no fim da introdução do nosso primeiro número, a respeito de informações que solicitamos obsequiosamente, pedindo, além disso, que não deixem de dizer-nos quando poderemos, sem inconvenientes, fazer menção às pessoas e aos lugares.

As observações acima se aplicam igualmente às questões que nos são dirigidas sobre vários pontos de doutrina. Quando requerem maior desenvolvimento, tanto menos possível nos é responder por escrito, quando muitas vezes a mesma coisa deve ser repetida a muitas pessoas. Como nossa revista se destina a servir de meio de correspondência, as respostas terão aqui seu lugar natural, à medida que os assuntos tratados nos oferecerem oportunidade. Isto será tanto mais vantajoso e de proveito para todos, quanto mais completas puderem ser as respostas.

Allan Kardec.


Paris. Tipografia B. Corion, Rua Bonaparte, 64.

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