Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Fevereiro

Escolhos dos Médiuns

A mediunidade é uma faculdade multiforme. Apresenta uma infinidade de nuanças em seus meios e em seus efeitos. Quem quer que seja apto a receber ou transmitir as comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, seja qual for o meio empregado ou o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até a produção dos mais insólitos fenômenos. Contudo, no uso corrente, o vocábulo tem uma acepção mais restrita e se diz geralmente das pessoas dotadas de um poder mediúnico muito grande, tanto para produzir efeitos físicos como para transmitir o pensamento dos Espíritos pela escrita ou pela palavra. Embora não seja a faculdade um privilégio exclusivo, é certo que encontra refratários, pelo menos no sentido que se lhe dá. Também é certo que não deixa de apresentar escolhos aos que a possuem: pode ser alterada e até perder-se e, muitas vezes, ser uma fonte de graves desilusões. Sobre tal ponto julgamos útil chamar a atenção de todos quantos se ocupam de comunicações espíritas, quer diretamente, quer através de terceiros. Através de terceiros, dizemos, porque importa aos que se servem de médiuns poderem apreciar o valor e a confiança que merecem suas comunicações.

O dom da mediunidade depende de causas ainda imperfeitamente conhecidas e nas quais parece que o físico tem uma grande parte. À primeira vista pareceria que um dom tão precioso não devesse ser partilhado senão por almas de escol. Ora, a experiência prova o contrário, pois encontramos mediunidade potente em criaturas cuja moral deixa muito a desejar, enquanto outras, estimáveis sob todos os aspectos, não a possuem. Aquele que fracassa, a despeito de seus desejos, esforços e perseverança, não deve tirar conclusões desfavoráveis à sua pessoa nem julgar-se indigno da benevolência dos Espíritos. Se tal favor lhe não é concedido, outros há, sem dúvida, que lhe podem oferecer ampla compensação. Pela mesma razão, aquele que a desfruta não poderia dela prevalecer-se, pois a mediunidade não é nenhum sinal de mérito pessoal. O mérito, portanto, não está na posse da faculdade medianímica, que a todos pode ser dada, mas no uso que dela fazemos. Eis uma distinção capital, que jamais se deve perder de vista: a boa qualidade do médium não está na facilidade das comunicações, mas unicamente na sua aptidão para só receber as boas. Ora, é nisto que as suas condições morais são onipotentes; é nisso também que ele encontra os maiores escolhos.

Para perceber este estado de coisas e compreender o que vamos dizer é necessário reportar-se ao princípio fundamental de que entre os Espíritos há todos os graus de bondade e de maldade, de conhecimento e de ignorância; que os Espíritos pululam em redor de nós e que, quando nos julgamos sós, estamos incessantemente rodeados de seres que nos acotovelam, uns com indiferença, como estranhos, outros que nos observam com intenções mais ou menos benevolentes, conforme a sua natureza.
O provérbio “Cada ovelha busca a sua parelha” tem sua aplicação entre os Espíritos, como entre nós, e mais ainda entre eles, se possível, porque não estão, como nós, sob a influência de preceitos sociais. Contudo, se entre nós esses preceitos algumas vezes confundem homens de costumes e gostos muito diversos, tal confusão, de certo modo, é apenas material e transitória. A similitude ou a divergência de pensamentos será sempre a causa das atrações e repulsões.

Nossa alma, que afinal de contas não é mais que um Espírito encarnado, não deixa por isso de ser um Espírito. Se se revestiu momentaneamente de um envoltório material, suas relações com o mundo incorpóreo, embora menos fáceis do que quando no estado de liberdade, nem por isto são interrompidas de modo absoluto. O pensamento é o laço que nos une aos Espíritos, e pelo pensamento atraímos os que simpatizam com as nossas ideias e inclinações. Representemos, pois, a massa de Espíritos que nos envolvem, como a multidão que encontramos no mundo. Em todos os lugares aonde preferimos ir encontramos homens atraídos pelos mesmos gostos e pelos mesmos desejos. Às reuniões que têm objetivo sério vão homens sérios; às que são frívolas, vão os frívolos. Por toda parte encontram-se Espíritos atraídos pelo pensamento dominante. Se lançarmos um olhar sobre o estado moral da Humanidade em geral, compreenderemos sem dificuldade que nessa multidão oculta os Espíritos elevados não devem constituir a maioria. É esta uma das consequências do estado de inferioridade do nosso globo.

Os Espíritos que nos cercam não são passivos. Formam uma população essencialmente inquieta, que pensa e age sem cessar; que nos influencia, malgrado nosso; que nos excita e nos dissuade; que nos impulsiona para o bem ou para o mal, o que não nos tira o livre-arbítrio mais do que os bons ou maus conselhos que recebemos de nossos semelhantes. Entretanto, quando os Espíritos imperfeitos incitam alguém a fazer uma coisa má, sabem muito bem a quem se dirigem e não vão perder o tempo onde veem que serão mal recebidos. Eles nos excitam conforme as nossas inclinações ou conforme os germens que em nós veem e segundo as nossas disposições para escutá-los. Eis por que o homem firme nos princípios do bem não lhes dá oportunidade.

Estas considerações nos levam naturalmente ao problema dos médiuns. Como todas as criaturas, eles são submetidos à influência oculta dos Espíritos bons e maus; atraem-nos e repelem-nos conforme as simpatias de seu próprio Espírito e os Espíritos maus aproveitam-se de todas as falhas, como de uma falta de couraça, para introduzir-se junto a eles, intrometendo-se, malgrado seu, em todos os atos de sua vida particular. Além disso, tais Espíritos, encontrando no médium um meio de expressar seu pensamento de modo inteligível e de atestar sua presença, intrometem-se nas comunicações e as provocam, porque esperam ter mais influência por estemeio e acabam por assenhorear-se dele. Consideram-se como se estivessem em sua própria casa, afastando os Espíritos que lhes poderiam criar embaraços e, conforme a necessidade, lhes tomam os nomes e mesmo a linguagem, com o fito de enganar. Mas não podem representar esse papel por muito tempo. Com um pouco de contato com um observador experimentado e prevenido, logo são desmascarados. Se o médium se deixa dominar por essa influência, os bons Espíritos se afastam dele, ou absolutamente não vêm quando chamados, ou vêm com certa repugnância, porque veem que o Espírito que se identificou com o médium e que por assim dizer nele estabeleceu domicílio, pode alterar as suas instruções. Se tivermos que escolher um intérprete, um secretário, um mandatário qualquer, é evidente que escolheremos não um homem apenas capaz, mas, além disso, digno de nossa estima; que não confiaremos uma delicada missão, bem como nossos interesses a um insano ou a um frequentador de uma sociedade suspeita. Dá-se o mesmo com os Espíritos. Os Espíritos superiores não escolherão, para transmitir instruções sérias, um médium que tenha familiaridade com Espíritos levianos, a menos que haja necessidade e que não encontrem, no momento, outros médiuns à disposição; a menos, ainda, que queiram dar uma lição ao próprio médium, como por vezes acontece; mas, então, dele se servem só acidentalmente e o abandonam, se assim lhes convier, deixando-o entregue às suas simpatias, se ele faz questão de conservá-las. O médium perfeito seria, pois, o que nenhum acesso desse aos maus Espíritos, por um descuido qualquer. Essa condição é muito difícil de preencher, mas se a perfeição absoluta não é dada ao homem, sempre lhe é possível por seus esforços aproximar-se dela, e os Espíritos levam em conta sobretudo os esforços, a força de vontade e a perseverança.

Assim, o médium perfeito não teria senão comunicações perfeitas, em termos de verdade e de moralidade. Desde que a perfeição é impossível, o melhor médium seria o que desse as melhores comunicações. É pelas obras que eles podem ser julgados. As comunicações constantemente boas e elevadas, nas quais nenhum indício de inferioridade fosse notado, seriam incontestavelmente uma prova da superioridade moral do médium, porque atestariam simpatias felizes. Pelo simples fato de que o médium não é perfeito, Espíritos levianos, embusteiros e mentirosos podem imiscuir-se em suas comunicações, alterando-lhes a pureza e induzindo em erro o médium e aqueles que o procuram. Eis o maior escolho do Espiritismo, cuja gravidade não dissimulamos. É possível evitá-lo? Dizemos alto e bom som: sim, é possível. O meio não é difícil, exigindo apenas discernimento.
As boas intenções e a própria moralidade do médium nem sempre bastam para preservá-lo da intromissão dos Espíritos levianos, mentirosos e pseudossábios nas comunicações. Além das falhas de seu próprio Espírito, ele pode dar-lhes entrada por outras causas das quais a principal é a fraqueza de caráter e uma confiança excessiva na invariável superioridade dos Espíritos que com ele se comunicam. Essa confiança cega reside numa causa que a seguir explicaremos. Se não quisermos ser vítimas desses Espíritos levianos, é necessário julgá-los, e para isso temos um critério infalível: o bom-senso e a razão. Sabemos que as qualidades da linguagem que caracteriza entre nós os homens realmente bons e superiores são as mesmas para os Espíritos. Devemos julgá-los por sua linguagem.

Nunca seria demais repetir o que a caracteriza nos Espíritos elevados: é constantemente digna, nobre, sem bazofia nem contradição, isenta de trivialidades e marcada por um cunho de inalterável benevolência. Os bons Espíritos aconselham; não ordenam; não se impõem; calam-se naquilo que ignoram. Os Espíritos levianos falam com a mesma segurança do que sabem e do que não sabem; a tudo respondem sem se preocuparem com a verdade. Em mensagem supostamente séria, vimo-los, com imperturbável audácia, colocar César no tempo de Alexandre; outros afirmavam que não é a Terra que gira em redor do Sol. Resumindo: toda expressão grosseira ou apenas inconveniente; toda marca de orgulho e de presunção; toda máxima contrária à sã moral; toda notória heresia científica é, nos Espíritos, como nos homens, inconteste sinal de natureza má, de ignorância ou, pelo menos, de leviandade. Daí deduz-se que é necessário pesar tudo quanto eles dizem, passando-o pelo crivo da lógica e do bom-senso. Eis uma recomendação feita incessantemente pelos bons Espíritos. Dizem eles: “Deus não vos deu o raciocínio sem propósito.

Servi-vos dele a fim de saber o que estais fazendo.” Os maus Espíritos temem o exame. Dizem eles: “Aceitai nossas palavras e não as julgueis”. Se tivessem consciência de estar com a verdade, não temeriam a luz.

O hábito de perscrutar as mais simples mensagens dos Espíritos, de lhes pesar o valor ─ do ponto de vista do conteúdo e não da forma gramatical, com que pouco se preocupam eles ─ naturalmente afasta os Espíritos mal intencionados, que então não viriam inutilmente perder seu tempo, de vez que rejeitamos tudo quanto é mau ou tem origem suspeita. Mas quando aceitamos cegamente tudo quanto dizem, quando, por assim dizer, nos ajoelhamos ante sua pretensa sabedoria, eles fazem o que fariam os homens. Abusam de nós.

Se o médium for senhor de si; se não se deixar dominar por um entusiasmo irrefletido, poderá fazer o que aconselhamos. Mas acontece frequentemente que o Espírito o subjuga a ponto de fasciná-lo, levando-o a considerar admiráveis as coisas mais ridículas. Então ele se entrega cada vez mais a essa perniciosa confiança e, estribado em suas boas intenções e em seus bons sentimentos, julga isto suficiente para afastar os maus Espíritos. Não, isso não basta, pois esses Espíritos ficam satisfeitos por fazê-lo cair na cilada, para o que se aproveitam de sua fraqueza e de sua credulidade. Que fazer, então? Expor tudo a uma terceira pessoa desinteressada, para que essa, julgando com calma e sem prevenção, possa ver um argueiro onde o médium não via uma trave.

A ciência espírita exige uma grande experiência que só se adquire, como em todas as ciências, filosóficas ou não, através de um estudo longo, assíduo e perseverante, e por numerosas observações. Ela não abrange apenas o estudos dos fenômenos propriamente ditos, mas também e sobretudo os costumes, se assim podemos dizer, do mundo oculto, desde o mais baixo ao mais alto grau da escala.

Seria presunção julgar-se suficientemente esclarecido e graduado como mestre depois de alguns ensaios. Não seria esta a pretensão de um homem sério, pois quem quer que lance um golpe de vista investigador sobre esses estranhos mistérios, vê desdobrar-se à sua frente um horizonte tão vasto que longos anos não bastam para abrangê-lo. Há entretanto quem o queira fazer em alguns dias!

De todas as disposições morais, a que maior entrada oferece aos Espíritos imperfeitos é o orgulho. Este é para os médiuns um escolho tanto mais perigoso quanto menos o reconhecem. É o orgulho que lhes dá a crença cega na superioridade dos Espíritos que a ele se ligam porque se vangloriam de certos nomes que eles lhes impõem. Desde que um Espírito lhes diz: Eu sou Fulano, inclinam-se e não admitem dúvidas, porque seu amor próprio sofreria se, sob tal máscara, encontrasse um Espírito de condição inferior ou de baixo quilate. O Espírito percebe e aproveita o lado fraco; lisonjeia seu pretenso protegido; fala-lhe de origens ilustres que o enfunam ainda mais; promete-lhe um futuro brilhante, honra e fortuna, de que parece ser o distribuidor; se for necessário, mostra por ele uma ternura hipócrita. Como resistir a tanta generosidade? Numa palavra, ele o embrulha e o leva no beiço, como se diz vulgarmente; sua felicidade é ter alguém sob sua dependência. Interrogamos vários deles sobre os motivos de sua obsessão. Um deles assim nos respondeu. “Quero ter um homem que me faça a vontade. É o meu prazer”. Quando lhe dissemos que íamos fazer tudo para descobrir os seus artifícios e tirar a venda dos olhos de seu oprimido, disse: “Lutarei contra vós e não tereis resultado, porque farei tantas coisas que ele não vos acreditará.” É, com efeito, uma das táticas desses Espíritos malfazejos: inspiram a desconfiança e o afastamento das pessoas que podem desmascará-los e dar bons conselhos. Jamais acontece coisa semelhante com os bons Espíritos. Todo Espírito que insufla a discórdia, que excita a animosidade, que entretém os dissentimentos revela, por isso mesmo, sua natureza má. Seria preciso ser cego para não compreender isso e para crer que um bom Espírito pudesse arrastar à discórdia.

Muitas vezes o orgulho se desenvolve no médium à medida que cresce a sua faculdade. Ela lhe dá importância. Procuram-no e ele acaba por sentir-se indispensável. Daí, muitas vezes, um tom de jactância e de pretensão ou uns ares de suficiência e de desdém, incompatíveis com a influência de um bom Espírito.

Aquele que cai em tal engano está perdido, porque Deus lhe deu sua faculdade para o bem e não para satisfazer sua vaidade ou transformá-la em escada para a sua ambição. Esquece que esse poder, de que se orgulha, pode ser retirado e que, muitas
vezes, só lhe foi dado como prova, assim como a fortuna para certas pessoas. Se dele abusa, os bons Espíritos pouco a pouco o abandonam e o médium se torna um joguete de Espíritos levianos, que o embalam com suas ilusões, satisfeitos por terem vencido aquele que se julgava forte. Foi assim que vimos o aniquilamento e a perda das mais preciosas faculdades que sem isso ter-se-iam tornado os mais poderosos e os mais úteis auxiliares.

Isto se aplica a todos os gêneros de médiuns, quer de manifestações físicas, quer de comunicações inteligentes. Infelizmente o orgulho é um dos defeitos que somos menos inclinados a reconhecer em nós e menos ainda a acusar nos outros, porque eles não acreditariam. Ide dizer a um médium que ele se deixa conduzir como uma criança. Ele virará as costas, dizendo que sabe conduzir-se e que não vedes as coisas claramente. Podeis dizer a um homem que ele é bêbado, debochado, preguiçoso, desajeitado e imbecil, e ele rirá disso ou concordará; dizei-lhe que é orgulhoso e ficará zangado. É a prova evidente de que tereis dito a verdade. Neste caso, os conselhos são tanto mais difíceis quanto mais o médium evita as pessoas que os possam dar. Ele foge de uma intimidade que teme. Os Espíritos, sentindo que os conselhos são golpes desferidos no seu poder, empurram o médium, ao contrário, para quem lhe alimente as ilusões. Preparam-se, assim, muitas decepções, com o que sofrerá muito o amor próprio do médium. Feliz dele se não lhe resultarem ainda coisas mais graves.

Se insistimos longamente sobre este ponto foi porque nos demonstrou a experiência, em muitas ocasiões, que isto constitui uma das grandes pedras de tropeço para a pureza e a sinceridade das comunicações dos médiuns. Diante disto, é quase inútil falar das outras imperfeições morais, tais como o egoísmo, a inveja, o ciúme, a ambição, a cupidez, a dureza de coração, a ingratidão, a sensualidade, etc.

Cada um compreende que elas são outras tantas portas abertas aos Espíritos imperfeitos ou, pelo menos, causas de fraqueza. Para repelir esses Espíritos não basta dizer-lhes que se vão; nem mesmo basta querer e ainda menos conjurá-los. É necessário fechar-lhes a porta e os ouvidos; provar-lhes que somos mais fortes do que eles ─ e o somos, incontestavelmente pelo amor do bem, pela caridade, pela doçura, pela simplicidade, pela modéstia e pelo desinteresse, qualidades que granjeiam a benevolência dos bons Espíritos. É o apoio deles que nos dá força. Se por vezes nos deixam a braços com os maus, é isso uma prova para a nossa fé e para o nosso caráter.

Que os médiuns não se arreceiem demasiado da severidade das condições de que acabamos de falar. Elas são lógicas, havemos de convir, mas seria erro desanimar. É certo que as más comunicações que podemos receber são indício de alguma fraqueza, mas nem sempre sinal de indignidade. Podemos ser fracos, mas bons. Em qualquer caso, temos nelas um meio de reconhecer as próprias imperfeições. Já dissemos no outro artigo que não é necessário ser médium para estar sob a influência de maus Espíritos, que agem na sombra. Com a faculdade mediúnica, o inimigo se mostra e se trai. Ficamos sabendo com quem tratamos e poderemos combatê-lo. É assim que uma comunicação má pode tornar-se uma lição útil, se soubermos aproveitá-la.
Seria injusto, aliás, atribuir todas as más comunicações à conta do médium.

Falamos daquelas que ele obtém sozinho, sem qualquer outra influência, e não das que são produzidas num meio qualquer. Ora, todos sabem que os Espíritos, atraídos por esse meio, podem prejudicar as manifestações, quer pela diversidade de caracteres, quer pela falta de recolhimento. É regra geral que as melhores comunicações ocorrem na intimidade e num grupo concentrado e homogêneo. Em toda comunicação acham-se em jogo várias influências: a do médium, a do meio e a da pessoa que interroga. Essas influências podem reagir umas sobre as outras, neutralizar-se ou corroborar-se. Isto depende do fim a que nos propomos e do pensamento dominante. Vimos excelentes comunicações obtidas em reuniões e com médiuns que não possuíam todas as condições desejáveis. Nesse caso os bons Espíritos vinham por causa de uma pessoa em particular, porque isso era útil. Vimos também más comunicações obtidas por bons médiuns, unicamente porque o interrogante não tinha intenções sérias e atraía Espíritos levianos, que dele zombavam.

Tudo isto requer tato e observação. Compreende-se facilmente a preponderância que devem ter todas essas condições reunidas.


Os agêneres

Por várias vezes demos a teoria das aparições. Em nosso número passado recordamo-la a propósito dos estranhos fenômenos então relatados. Relembramo-la aos nossos leitores, para melhor compreensão do que se segue.

Todos sabem que no número das mais extraordinárias manifestações produzidas pelo Sr. Home estava o aparecimento de mãos perfeitamente tangíveis, que todos podiam ver e apalpar; que apertavam em cumprimento e que, de repente, ofereciam o vazio quando as queriam pegar de surpresa. É um fato positivo, produzido em diversas circunstâncias, atestado por numerosas testemunhas oculares. Por mais estranho e anormal que pareça, cessa o maravilhoso desde o momento em que é possível dar-lhe uma explicação lógica. Então entra na categoria dos fenômenos naturais, muito embora de uma ordem completamente diversa daqueles que se produzem aos nossos olhos e com os quais não os devemos confundir.

Nos fenômenos comuns podemos encontrar pontos de comparação, ─ como aquele cego que percebia o brilho da luz e as cores pelo toque da trombeta ─ mas não similitudes. É precisamente a mania de querer tudo assimilar ao que conhecemos que leva tanta gente à confusão: pensam que podem manejar esses elementos novos como se fossem hidrogênio e oxigênio. Ora, isto é um erro. Tais fenômenos são submetidos a condições que escapam ao círculo habitual de nossas observações. Antes de mais nada, é necessário conhecê-las e com elas nos conformarmos, se desejarmos obter resultado. É sobretudo necessário não perder de vista este princípio essencial, verdadeira chave da ciência espírita: o agente dos fenômenos vulgares é uma força física, material, que pode ser submetida às leis do cálculo, ao passo que nos fenômenos espíritas esse agente é constantemente uma inteligência que tem vontade própria e que não se submete aos nossos caprichos. Nessas mãos havia carne, pele, ossos e unhas reais? Evidentemente, não: era uma aparência, mas de tal ordem que produzia o efeito de uma realidade. Se um Espírito tem o poder de tornar visível e palpável uma parte qualquer de seu corpo etéreo, não existe razão para que não aconteça o mesmo com os outros órgãos. Suponhamos então que um Espírito estenda essa aparência a todas as partes do corpo, e teremos a impressão de ver um ser semelhante a nós, agindo como nós, quando não passa de um vapor momentaneamente solidificado. Tal é o caso do Duende de Bayonne. A duração dessa aparência está submetida a condições para nós desconhecidas. Sem dúvida depende da vontade do Espírito, que pode produzi-la ou desfazê-la à vontade, mas dentro de certos limites que ele nem sempre tem liberdade de transpor. Interrogados a respeito, bem como sobre todas as intermitências de quaisquer manifestações, sempre disseram os Espíritos que agiam em virtude de um consentimento superior.

Se a duração da aparência corporal é limitada para certos Espíritos, podemos dizer que, em princípio, ela é variável e pode persistir mais ou menos tempo, bem como pode produzir-se a todo momento e a qualquer hora. Um Espírito cujo corpo fosse inteiramente visível e palpável teria, para nós, a aparência de um ser humano; poderia conversar conosco e sentar-se em nosso lar, como qualquer visita, pois que o tomaríamos como um de nossos semelhantes.

Partimos de um fato patente ─ o aparecimento de mãos tangíveis ─ para chegar a uma suposição que lhe é consequência lógica. Entretanto não a teríamos aventado se a história do menino de Bayonne não nos tivesse aberto o caminho, mostrando-nos a possibilidade.

Interrogado a respeito, um Espírito superior respondeu que efetivamente podemos encontrar seres de tal natureza, sem que o suspeitemos. Acrescentou que isto é raro, mas que acontece.

Como para nos entendermos necessitamos de um nome para cada coisa, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas os chama agêneres, para indicar que sua origem não é o resultado de uma geração.

O fato que se segue, ocorrido recentemente em Paris, parece pertencer a esta categoria.

Uma pobre mulher estava na Igreja de São Roque e pedia a Deus que a auxiliasse na sua aflição. À saída, na Rua Santo Honorato, encontra um senhor que a aborda e lhe diz:

─ Minha boa senhora, ficaria contente se arranjasse trabalho?
─ Ah! Meu bom senhor, responde ela, peço a Deus que me faça este favor, porque estou muito necessitada.
─ Então vá à rua tal, número tanto. Procure a Senhora T... e ela lhe dará trabalho.

Dito isto, continuou o seu caminho. A pobre mulher foi sem demora ao endereço indicado.

A senhora procurada lhe disse:
─ Com efeito, tenho um trabalho para mandar fazer. Mas como não o disse a ninguém, não sei como pôde a senhora vir procurar-me.

Então a pobre necessitada, avistando um retrato na parede, respondeu.
─ Senhora, foi esse cavalheiro que me mandou.
─ Este cavalheiro? retrucou espantada a senhora. Mas é impossível! Este é o retrato de meu filho, falecido há três anos.
─ Não sei como pode ser isto, mas eu vos asseguro que foi esse senhor que eu encontrei ao sair da igreja, onde tinha ido pedir auxílio a Deus. Ele me abordou e foi ele mesmo que me mandou aqui.

De acordo com o que acabamos de ver, nada existe de surpreendente em que o Espírito do filho daquela senhora, a fim de prestar um serviço à pobre mulher, cuja prece por certo ouvira, lhe tenha aparecido sob a forma corpórea, para lhe indicar o endereço da própria mãe. Em que se transformou depois? Sem dúvida no que era antes: um Espírito, a menos que tivesse achado oportuno mostrar-se a outras pessoas sob a mesma aparência, continuando o seu passeio. Aquela mulher teria, assim, encontrado um agênere com o qual conversara.

Perguntarão, entretanto, por que não se teria apresentado à sua mãe?

Nestas circunstâncias, os motivos que determinam a ação dos Espíritos nos são completamente desconhecidos: agem como bem lhes parece, ou antes, conforme disseram, em virtude de uma permissão sem a qual não podem revelar a sua existência de um modo material. Aliás, compreende-se que a sua presença pudesse causar à mãe perigosa emoção. Quem sabe se não se apresentou a ela durante o sono ou de qualquer outro modo? Não terá sido, além disso, um meio de revelar-lhe sua existência?
É bem provável que ele tivesse sido testemunha invisível do encontro das duas senhoras.

Não nos parece que o Duende de Bayonne deva ser considerado como agênere, pelo menos nas circunstâncias em que se manifestou, pois que, para a família, ele teve sempre as características de um Espírito, que nunca procurou dissimular. Era o seu estado permanente. As aparências corporais que revestia eram apenas acidentais, ao passo que o agênere propriamente dito não revela a sua natureza e aos nossos olhos não passa de um homem comum. Sua aparição corpórea pode ter longa duração, conforme a necessidade, a fim de estabelecer relações sociais com um ou vários indivíduos.

Pedimos ao Espírito de São Luís a bondade de nos esclarecer sobre estes diversos pontos, respondendo às nossas perguntas.

1 ─ O Espírito do Duende de Bayonne podia mostrar-se corporalmente em outros lugares e a outras pessoas, além da sua família?
─ Sim, sem dúvida.

2 ─ Isto depende de sua vontade?
─ Não exatamente. O poder dos Espíritos é limitado. Só fazem o que lhes é permitido.

3 ─ Que aconteceria se se apresentasse a um desconhecido?
─ Tê-lo-iam tomado por uma criança comum. Dir-vos-ei entretanto uma coisa: por vezes existem na Terra Espíritos que revestem essa aparência e são tomados como homens.

4 ─ Tais seres pertencem à categoria dos Espíritos superiores ou dos inferiores?
─ Podem pertencer a uma ou a outra. São fatos raros, de que há exemplos na Bíblia.

5 ─ Raros ou não, basta a sua possibilidade para que mereçam atenção. Que aconteceria se, tomando tal ser por um homem comum, lhe fizessem um ferimento mortal? Ele morreria?
─ Desapareceria subitamente, como o jovem de Londres6.

6 ─ Eles têm paixões?
─ Sim. Como Espíritos, têm as paixões dos Espíritos, conforme a sua inferioridade. Se tomam um corpo aparente é, por vezes, para gozar das paixões humanas. Se são elevados, é com um fim útil.

7 ─ Podem procriar?
─ Deus não o permitiria. Isto é contrário às leis por ele estabelecidas na Terra e elas não podem ser contrariadas.

8 ─ Se um tal ser se nos apresentasse, teríamos um meio de reconhecê-lo?
─ Não, a não ser pelo desaparecimento inesperado. Seria o mesmo que o transporte de móveis de um para outro andar, que lestes anteriormente.

9 ─ Qual é o objetivo que pode levar certos Espíritos a tomar esse estado corporal? Eles agem para o bem ou para o mal?
─ Muitas vezes para o mal. Os bons Espíritos têm a seu favor a inspiração. Agem sobre a alma e pelo coração. Sabeis que as manifestações físicas são produzidas por Espíritos inferiores, e as de que tratamos são dessa categoria. Entretanto, como disse, os bons Espíritos também podem tomar essa aparência corporal, com um fim útil. Digo isto em princípio geral.

10 ─ Nesse estado podem tornar-se visíveis ou invisíveis à vontade?
─ Sim, pois podem desaparecer quando quiserem.

11 ─ Têm eles um poder oculto superior ao dos homens?
─ Têm apenas aquele que lhes dá a sua categoria na escala dos Espíritos.

12 ─ Têm necessidade real de alimento?
─ Não. O seu corpo não é real.

13 ─ Entretanto o jovem de Londres, embora não tivesse um corpo real, tomou o café da manhã com os amigos e lhes apertou a mão. Que aconteceu com o alimento ingerido?
─ Antes de apertar a mão, onde estavam os dedos que apertam? Compreendeis que o corpo desapareça? Por que não quereis compreender que também desapareça a matéria? O corpo do jovem de Londres não era real, pois se achava em Boulogne; era, portanto, aparência. Dava-se o mesmo com o alimento que parecia ingerir.

14 ─ Se tivéssemos entre nós um ser dessa espécie, isso seria bom ou ruim?
─ Seria ruim. Ademais, não é possível manter contatos prolongados com tais seres. Não vos podemos dizer muita coisa. Esses fatos são excessivamente raros e jamais têm um caráter de permanência. Ainda mais raras são as aparições corpóreas instantâneas, como a de Bayonne.

15 ─ Algumas vezes o Espírito protetor familiar toma essa forma?
─ Não. Não dispõe ele de recursos interiores? Ele os manipula com mais facilidade do que o faria sob uma forma visível e o tomássemos por um de nossos semelhantes.

16 ─ Perguntam se o Conde de Saint-Germain não pertenceria à categoria dos
agêneres.
─ Não. Ele era um hábil mistificador.

A história do jovem de Londres, relatada em nosso número de dezembro, é um fato de bicorporeidade, ou antes, de dupla presença, que difere essencialmente daquele de que tratamos. O agênere não tem corpo vivo na Terra; apenas o seu perispírito toma forma palpável. O jovem de Londres era perfeitamente vivo.

Enquanto seu corpo dormia em Boulogne, seu espírito, envolvido pelo perispírito, foi a Londres, onde tomou uma aparência tangível.

Aconteceu conosco um fato quase análogo. Enquanto estávamos calmamente na cama, um de nossos amigos nos viu várias vezes em sua casa, posto que sob aparência não tangível, sentando-nos a seu lado e conversando com ele, como de hábito. Uma vez nos viu de “chambre”, outras vezes de paletó. Transcreveu nossa conversa e no-la remeteu no dia seguinte. Percebe-se bem que era relativa a nossos trabalhos prediletos. Querendo fazer uma experiência, ofereceu-nos refresco. Eis a nossa resposta: “Não tenho necessidade disto, porque não é o meu corpo que está aqui, vós o sabeis. Não há a menor necessidade, portanto, de criar para vós uma ilusão.”

Uma circunstância muito esquisita ocorreu então. Quer por disposição natural, quer como resultado de nossos trabalhos intelectuais, sérios desde a nossa juventude, quase diríamos, desde a infância, o fundo de nosso caráter foi sempre de extrema gravidade, mesmo na idade em que não se pensa senão nos prazeres. Esta preocupação constante nos dá uma aparência de frieza, mesmo de muita frieza. É isto, pelo menos, o que muitas vezes nos tem sido censurado. Mas sob esse envoltório aparentemente glacial, talvez o Espírito sinta mais vivamente do se houvesse uma maior expansão exterior. Ora, em nossas visitas noturnas ao nosso amigo, ele ficou muito surpreso por nos ver completamente diferente: éramos mais extrovertido, mais comunicativo, quase alegre. Tudo em nós revelava a satisfação e a calma de sentir-se bem. Não estará aí um efeito do Espírito desprendido da matéria?

Meu amigo Hermann

Com este título, o Sr. H. Lugner publicou no folhetim do Journal des Débats, de 26 de novembro de 1858, uma espirituosa história fantástica, no gênero de Hoffmann e que, à primeira vista, parece ter alguma analogia com os nossos agêneres e os fenômenos de tangibilidade de que acabamos de falar. A extensão da história não nos permite reproduzi-la na íntegra. Limitar-nos-emos a analisá-la, fazendo notar que o autor relata como um fato de que tivesse sido testemunha e como se estivesse ligado por laços de amizade ao herói da aventura.

Esse herói, chamado Hermann, morava numa pequena cidade da Alemanha. “Era”, diz o narrador, “um belo rapaz de 25 anos, de porte avantajado, cheio de nobreza em todos os seus movimentos, gracioso e espirituoso no falar. Era muito instruído e sem o menor pedantismo; muito fino e sem malícia; muito cioso de sua dignidade e sem a menor arrogância. Logo, era perfeito em tudo e mais perfeito ainda em três coisas mais que no resto: Seu amor à filosofia; sua vocação particular pela valsa, e a doçura de seu caráter. Essa doçura não era fraqueza, nem medo dos outros, nem desconfiança exagerada de si mesmo. Era uma inclinação natural, uma superabundância desse milk of human kindness9 que de ordinário só encontramos nas ficções dos poetas e da qual a Natureza havia aquinhoado Hermann com uma dose invulgar. Ele continha e ao mesmo tempo animava os seus adversários com uma bondade onipotente e superior aos ultrajes. Podiam feri-lo, mas não encolerizá-lo. Seu barbeiro, um dia, ao frisá-lo, queimou-lhe a ponta da orelha. Hermann apressouse em desculpá-lo, atribuindo-se a culpa, assegurando que se havia mexido desajeitadamente. Não houve nada disso, posso dizê-lo em consciência, porque me achava presente e vi claramente que tudo foi devido à inabilidade do barbeiro. Deu ele muitas outras provas da imperturbável bondade de sua alma. Ouvia a leitura de maus versos com um ar angélico e respondia aos mais tolos epigramas com elogios bonitos, quando os piores espíritos haviam usado contra ele suas maldades. Essa doçura singular o havia tornado célebre. Não havia mulher que não daria a vida para vigiar sem trégua o caráter de Hermann, procurando fazê-lo perder a paciência ao menos uma vez na vida”.

“Acrescente-se a todos esses méritos a vantagem de uma completa independência e a posse de uma fortuna suficiente para que fosse contado entre os mais ricos homens da cidade e dificilmente podereis imaginar que faltasse alguma coisa à felicidade de Hermann. Entretanto não era feliz e dava frequentes mostras de tristeza... Isto era devido a uma enfermidade singular, que o afligira a vida toda e que há muito tempo vinha provocando a curiosidade de toda a sua cidadezinha”.

“Hermann não podia ficar desperto um instante depois do pôr do sol. Quando o dia se aproximava do fim, ele era tomado de uma languidez invencível e pouco a pouco caía numa letargia incontrolável e da qual ninguém o tirava. Deitava-se com o sol e levantava-se ao romper do dia. Seus hábitos matinais tê-lo-iam tornado um excelente caçador, se tivesse podido vencer o horror ao sangue e suportar a ideia de infligir uma morte cruel a inocentes criaturas.”

Eis os termos em que, num momento de desabafo, descreve ele a sua situação a seu amigo do Journal des Débats:

“Você sabe, meu caro amigo, a que enfermidade estou sujeito e que sono invencível me oprime regularmente, desde o pôr do sol até o seu nascer. Sobre isto você sabe o que todos sabem, e como todos, ouviu dizer que esse sono quase se confunde com a morte. Nada mais verdadeiro, e com esse prodígio eu pouco me importaria, eu juro, se a Natureza se contentasse em tomar-me o corpo como objeto de uma de suas fantasias. Mas minha alma também é seu joguete. Não lhe posso dizer sem horror a sorte bizarra e cruel que lhe foi infligida. Cada uma de minhas noites é preenchida por um sonho, e esse sonho se liga com a mais fatal clareza ao sonho da noite anterior. Esses sonhos - Deus o permitisse que fossem sonhos! - se seguem e se encadeiam como os acontecimentos de uma existência comum que se desenvolvesse à luz do sol e na companhia de outros homens. Vivo, portanto, duas vezes e levo duas existências diferentes. Uma se passa aqui, com você e com o fazem, quando me refiro a outra existência além daquela que passo com eles.

Entretanto, não estou aqui, vivendo e falando, sentado ao seu lado e bem desperto, como me parece, e quem pretendesse que nós sonhamos, ou que somos sombras, com justo motivo não passaria por um insensato? Então! meu caro amigo, cada um dos momentos, cada um dos atos que preenchem as horas de meu sono inevitável não tem menos realidade. Quando me acho inteiramente nessa outra existência, é esta que eu seria tentado a considerar como um sonho.”

“Entretanto, não sonho mais aqui do que lá. Vivo alternativamente nos dois lados e não poderia duvidar, embora minha razão fique estranhamente chocada, que minha alma anime sucessivamente dois corpos e se defronte, assim, com duas existências. Ah! meu caro amigo, prouvera a Deus que ela tivesse nesses dois corpos os mesmos instintos e a mesma conduta e que lá eu fosse o homem que vocês aqui conhecem e estimam. Mas não é nada disso, e não ousariam talvez contestar a influência do físico sobre o moral se minha história fosse conhecida. Não me quero gabar; aliás o orgulho que me pudesse inspirar uma de minhas existências é muito abatido pela vergonha inseparável da outra. Entretanto, posso dizer sem vaidade que aqui sou justamente amado e por todos respeitado; elogiam-me a figura e as maneiras; acham-me o aspecto nobre, liberal e distinto. Como você sabe, amo as letras, a filosofia, as artes, a liberdade, tudo o que faz o encanto e a dignidade da vida humana. Socorro os infelizes e não invejo ninguém. Você sabe que minha suavidade se tornou proverbial, como meu espírito de justiça e de misericórdia e meu insuperável horror à violência. Todas estas qualidades que me elevam e me adornam aqui, eu as expio lá, por vícios contrários. A Natureza, que aqui me cumulou de bênçãos, aprouve lá amaldiçoar-me. Não só me lançou a numa condição inferior, na qual sou obrigado a permanecer, sem letras e sem cultura, como deu a esse outro corpo, que também é meu, órgãos tão grosseiros ou tão perversos; sentidos tão cegos ou tão fortes; certas inclinações e necessidades, que minha alma obedece, em vez de comandar e se deixa arrastar por esse corpo despótico às mais vis desordens. Lá eu sou duro e covarde; perseguidor dos fracos e servil diante dos fortes; impiedoso e invejoso; naturalmente injusto e violento até o delírio. Entretanto sou eu mesmo, e por mais que me odeie e me despreze, não posso deixar de me reconhecer.”

“Hermann parou um instante. Sua voz estava trêmula e os olhos molhados. Esbocei um sorriso e lhe disse: “Quero abrandar a sua loucura, para melhor curá-la. Diga-me tudo. Para começar, onde se passa essa outra existência e com que nome você é conhecido?”

“Chamo-me William Parker, respondeu ele. Sou um cidadão de Melbourne, na Austrália. É para lá, nos antípodas, que voa minha alma, assim que os deixa. Quando o sol se põe aqui, ela deixa Hermann inanimado e o sol se levanta lá do outro lado quando ela vai dar vida ao corpo inanimado de Parker. Então começa minha miserável existência de vagabundagem, de fraude, de rixas e de mendicância. Frequento uma sociedade má, onde sou contado entre os piores. Estou em luta incessante com os companheiros e com frequência me acho de faca em punho. Estou sempre em guerra com a polícia e por vezes sou obrigado a esconder-me. Mas tudo tem um termo neste mundo; esse suplício está chegando a um fim. Felizmente cometi um crime. Matei covarde e estupidamente uma pobre criatura que estava ligada a mim. Assim levei ao cúmulo a indignação pública, já excitada por minhas atitudes perversas. O júri condenou-me à morte e espero minha execução. Algumas pessoas compassivas e religiosas intercederam por mim junto ao governador, a fim de obter-me graça ou pelo menos o sursis, que me desse tempo para me converter, mas é muito conhecida a minha natureza grosseira e intratável. Recusaram-no e amanhã, ou melhor, esta noite, serei infalivelmente conduzido à forca.”

“Pois bem, disse-lhe eu sorrindo. Tanto melhor para você e para nós. ‘E uma boa saída a morte desse patife. Uma vez lançado Parker na eternidade, Hermann viverá tranquilo; poderá velar como todo o mundo e ficar conosco dia e noite. Essa morte curá-lo-á, meu caro amigo, e eu sou grato ao governador de Melbourne por ter recusado graça a esse miserável.”

“Você se engana, respondeu Hermann com uma gravidade que me causou dó: morreremos juntos os dois, porque não somos senão um. Apesar de nossas diversidades e de nossa natural antipatia, temos apenas uma alma, que será ferida por um golpe único; em todas as coisas, respondemos um pelo outro. Crê então que Parker ainda estaria vivo se Hermann não tivesse sentido que tanto na morte como na vida eles eram inseparáveis? Teria eu hesitado um instante se tivesse podido arrancar e lançar no fogo essa outra existência, como o olho maldito de que falam as Escrituras? Eu estava tão feliz por viver aqui que não me podia resolver a morrer lá; e minha indecisão durou até que a sorte resolveu por mim essa terrível questão. Agora, tudo está acabado. Creia que estou fazendo a minha despedida.”

“No dia seguinte encontraram Hermann morto em seu leito. Alguns meses depois os jornais da Austrália trouxeram a notícia da execução de William Parker, com todas as circunstâncias descritas por seu duplo.”

Toda essa história é contada com um imperturbável sangue frio e em tom sério. Nada falta, nos detalhes que omitimos, para lhe dar um cunho de verdade. Em presença dos fenômenos estranhos que testemunhamos, um fato dessa natureza poderia parecer senão real, ao menos possível e, até certo ponto, ligado àqueles por nós citados. Não seria talvez análogo ao do jovem que dormia em Boulogne enquanto, ao mesmo tempo, falava com os amigos em Londres? E ao de Santo Antônio de Pádua, que no mesmo dia pregava na Espanha e se mostrava em Pádua, para salvar a vida de seu pai, acusado de assassinato?

À primeira vista pode-se dizer que se estes últimos fatos são exatos. Também não é impossível que esse Hermann vivesse na Austrália enquanto dormia na Alemanha, e reciprocamente. Embora esteja nossa opinião a respeito perfeitamente estabelecida, julgamo-nos no dever de relatá-la aos nossos instrutores de alémtúmulo, numa das sessões da Sociedade. À pergunta “É verdadeiro o fato relatado pelo Jornal des Débats?” responderam: “Não; é uma história feita especialmente para distrair os leitores. Perguntado: “Se não é verdadeira, é possível?” responderam ainda: “Não; uma alma não pode animar dois corpos.”

Com efeito, na história de Boulogne, embora o moço fosse visto simultaneamente em dois lugares, não havia realmente senão um só corpo de carne e osso, que estava em Boulogne. Em Londres havia apenas a aparência ou perispírito, tangível, é certo, mas não o próprio corpo, o corpo mortal. Ele não poderia morrer em Londres e em Boulogne. Ao contrário, segundo a história, Hermann teria, na realidade, dois corpos, de vez que um teria sido enforcado em Melbourne e o outro enterrado na Alemanha. A mesma alma teria, assim, animado simultaneamente duas existências, o que, conforme os Espíritos, não é possível.

Os fenômenos do gênero desse de Boulogne e de Santo Antônio de Pádua, embora muito frequentes, são aliás sempre acidentais e fortuitos num indivíduo e jamais têm um caráter de permanência, ao passo que o pretenso Hermann era assim desde a infância. Mas a razão mais grave é a diferença de caracteres. Com toda a certeza, se esses dois indivíduos não tivessem tido senão uma só e mesma alma, essa não poderia ser alternativamente de um homem de bem e de um bandido. É certo que o autor se baseia na influência do organismo. Lamentamos que esta seja a sua filosofia e, ainda mais, que procure aboná-la, porque isto seria negar a responsabilidade dos atos. Semelhante doutrina seria a negação de toda moral, porque reduziria o homem à condição de máquina.

Espíritos barulhentos - Como livrar-se deles.

Escrevem-nos de Gramat, no Lot:

“Numa casa da aldeia de Coujet, comuna de Bastat, no departamento de Lot, há cerca de dois meses ouvem-se ruídos extraordinários. A princípio eram golpes secos e muito semelhantes a pancadas de um machado no soalho e escutados por todos os lados: sob os pés, acima da cabeça, nas portas, nos móveis. Depois as passadas de um homem descalço e o tamborilar de dedos nas vidraças. Os moradores ficaram amedrontados e mandaram rezar missas. A população inquieta ia até a aldeia e escutava; a polícia tomou conhecimento, fez várias pesquisas e o barulho aumentou.

Em breve as portas se abriam; os objetos eram revirados; as cadeiras projetadas pela escada; os móveis transportados do rés-do-chão para o sótão. Tudo quanto informo ocorre em pleno dia e é atestado por grande número de pessoas. A casa não é um pardieiro antigo, sombrio e negro, que só pelo aspecto faz sonhar com fantasmas. É uma construção recente e risonha. Os proprietários são gente boa, incapazes de querer enganar e morrem de medo. Entretanto muitas pessoas pensam que ali não há nada de sobrenatural e procuram explicar tudo quanto se passa de extraordinário quer pela física, quer pelas más intenções que atribuem aos moradores. Eu, que vi e acredito, resolvi dirigir-me ao senhor para saber quais são os Espíritos que fazem todo esse barulho e conhecer o meio, caso exista, de silenciá-los. É um serviço que prestaria a essa boa gente, etc...”

Os fatos dessa natureza não são raros. Todos eles se assemelham mais ou menos e, em geral, só diferem pela intensidade e por sua maior ou menor tenacidade.

Em geral, as pessoas pouco se inquietam quando eles se limitam a alguns ruídos sem consequência, mas tornam-se verdadeira calamidade quando atingem certas proporções.

Nosso distinto correspondente pergunta-nos quais os Espíritos que fazem esse barulho. Não há dúvidas quanto à resposta. Sabe-se que só os Espíritos de uma ordem muito inferior são capazes de tanto.

Os Espíritos superiores, assim como entre nós as pessoas graves e sérias, não se divertem a fazer algazarra. Muitas vezes chamamo-los a fim de lhes perguntar por que motivo assim perturbam o repouso alheio. A maior parte não tem outro objetivo senão divertir-se. São antes Espíritos levianos do que maus. Riem-se do medo que provocam, como das inúteis pesquisas para descobrir a causa do tumulto. Muitas vezes se obstinam junto a um indivíduo que gostam de vexar e que perseguem de casa em casa; outras vezes se ligam a um determinado lugar, sem qualquer motivo, a não ser por capricho. Por vezes também é uma vingança que levam a efeito, como teremos ocasião de ver. Em certos casos, sua intenção é mais louvável: querem chamar a atenção e estabelecer contato, seja para fazer uma advertência útil à pessoa a quem se dirigem, seja para pedir algo para si mesmos. Muitas vezes vimo-los pedir preces; outros solicitavam o cumprimento, em seu nome, de promessas que não puderam cumprir; outros, enfim, no interesse de seu próprio repouso, queriam reparar alguma ação má que tinham praticado quando encarnados.

Em geral não há razão para nos amedrontarmos. Sua presença pode ser importuna, mas não é perigosa. Aliás, compreende-se que tenhamos desejo de nos desembaraçarmos deles. Entretanto, quase sempre fazemos exatamente o contrário do que deveríamos. Se são Espíritos que se divertem, quanto mais levarmos a coisa a sério, mais eles persistem, como meninos travessos que apoquentam tanto mais quanto mais veem que nos impacientamos, e que metem medo aos covardes. Se tomássemos o sábio partido de rir de suas malandrices, acabariam se cansando e deixando-nos tranquilos. Conhecemos alguém que, longe de irritar-se, os excitava, desafiava-os a fazer isto ou aquilo, de modo que ao cabo de alguns dias eles não mais apareceram. Entretanto, como dissemos, alguns têm motivos menos frívolos.

Eis por que é sempre útil saber o que eles querem. Se pedem alguma coisa, podemos estar certos de que suas visitas cessarão assim que forem satisfeitos. O melhor meio de instruir-se a respeito é evocar o Espírito através de um bom médium psicógrafo.
Por suas respostas veremos imediatamente com quem tratamos e, em consequência, poderemos agir. Se for um Espírito infeliz, manda a caridade que o tratemos com os cuidados que merece. Se for um brincalhão de mau gosto, poderemos agir com ele sem cerimônias. Se for malévolo, é preciso pedir a Deus que o torne melhor. Em todo caso, a prece só bons resultados poderá dar. Mas a gravidade das fórmulas de exorcismo causa-lhes riso e por elas não têm nenhum respeito. Se pudermos entrar em comunicação com eles, é necessário desconfiar das qualificações burlescas ou apavorantes que por vezes se atribuem para divertir-se com a nossa credulidade.

Em muitos casos a dificuldade está em não ter médiuns à disposição. Devemos então procurar substituí-los por nós mesmos ou interrogar o Espírito diretamente, de acordo com os preceitos que damos nas nossas Instruções Práticas sobre as Manifestações.

Embora produzidos por Espíritos inferiores, esses fenômenos são, muitas vezes, provocados por Espíritos de ordem mais elevada, com o fito de nos convencer da existência de seres incorpóreos e de um poder superior ao do homem. A repercussão daí resultante, o próprio medo que causam, chamam a atenção e acabarão por abrir os olhos dos mais incrédulos. Esses acham mais fácil levar tais fenômenos para o plano da imaginação, explicação muito cômoda, que dispensa quaisquer outras.

Entretanto, quando os objetos são desarrumados ou atirados à nossa cabeça, fora necessária uma imaginação muito complacente para supor que tais coisas acontecem, quando de fato não acontecem. Se observamos um efeito qualquer, ele terá, necessariamente, uma causa. Se uma observação calma e fria nos demonstra que tal efeito independe de toda vontade humana e de toda causa material; se, além disso, nos dá indícios evidentes de inteligência e de livre vontade, o que constitui o mais característico dos sinais, somos então forçados a atribuí-lo a uma inteligência oculta.

Quem são esses seres misteriosos? Eis o que os estudos espíritas nos ensinam da maneira menos contestável, através dos meios que nos apresentam de com eles nos comunicarmos. Além disso, esses estudos nos ensinam a separar o que é real daquilo que é falso ou exagerado nos fenômenos cujas causas não percebemos. Se se produz um efeito insólito ─ ruído, movimento, até mesmo uma aparição ─ o primeiro pensamento que devemos ter é que seja devido a uma causa absolutamente natural, que é o mais provável. Então é preciso investigar essa causa com o maior cuidado e não admitir a intervenção dos Espíritos senão com conhecimento de causa. É o meio de não nos iludirmos.

Dissertação de além-túmulo - A infância

Comunicação espontânea do Sr. Nélo, o médium, lida na sociedade a 14 de janeiro de 1859

Não conheceis o segredo que, na sua inocência, ocultam as crianças; não sabeis o que são, nem o que foram, nem o que hão de ser. Entretanto vós as amais, vós as prezais como se fossem uma parte de vós mesmos e de tal modo que o amor da mãe pelos filhos é considerado como o maior amor que um ser possa ter a outro ser. De onde vem essa doce afeição, essa terna benevolência que os próprios estranhos experimentam para com uma criança?
Vós o sabeis? Não. Eis o que vou explicar-vos. As crianças são os seres que Deus envia em novas existências. Para que elas não possam queixar-se de excesso de severidade, dá-lhes toda a aparência da inocência. Mesmo numa criança naturalmente má, os defeitos são cobertos pela inconsciência de seus atos. Essa inocência não é uma superioridade real sobre aquilo que foram antes. Não: é a imagem do que deveriam ser, e se não o são, a culpa cairá sobre elas unicamente.

Mas não foi apenas por elas que Deus lhes deu tal aspecto. Foi também ─ e sobretudo ─ por seus pais, cujo amor é necessário à sua fraqueza, pois esse amor ficaria singularmente enfraquecido à vista de um caráter impertinente e intratável, ao passo que supondo os filhos bons e meigos, lhes dão toda a sua afeição e cercam-nos das atenções mais delicadas. Quando, entretanto, as crianças não mais necessitam dessa proteção, dessa assistência que lhes foi dada durante quinze ou vinte anos, seu caráter real e individual se revela em toda a sua nudez: permanece bom, se for fundamentalmente bom, mas se irisa sempre de nuanças que estavam ocultas pela primeira infância. Vedes que os caminhos de Deus são sempre os melhores e que, quando se tem o coração puro, fácil é conceber a explicação.

Com efeito, imaginai que o Espírito dos filhos que nascem entre vós pode vir de um mundo em que adquiriu hábitos completamente diversos. Como quereríeis que estivesse em vosso meio esse novo ser, que vem com paixões completamente diversas das que possuís, com inclinações, com gostos totalmente opostos aos vossos? Como quereríeis que se incorporasse em vossas fileiras de modo diferente daquele que Deus o quis, isto é, pelo crivo da infância?

Aqui vêm confundir-se todos os pensamentos, todos os caracteres, todas as variedades de seres engendrados por essa multidão de mundos onde crescem as criaturas. E vós mesmos, ao morrer, encontrar-vos-eis em outra espécie de infância, em meio a novos irmãos. Em vossa nova existência não terrena ignorais os hábitos, os costumes e as relações desse mundo novo para vós. Com dificuldade manejareis uma língua que não estais habituados a falar, uma língua mais viva do que o vosso pensamento atual. A infância tem ainda outra utilidade. Os Espíritos só entram na vida corpórea para o seu aperfeiçoamento, para sua melhora; a fraqueza da infância os torna flexíveis, acessíveis aos conselhos da experiência daqueles que têm o encargo de fazê-los progredir. É nesse período que seu caráter pode ser reformado, pela repressão de suas más inclinações. Tal o dever que Deus confiou aos pais, missão sagrada pela qual hão de responder.

Assim, a infância não é apenas útil, necessária e indispensável, mas também uma consequência natural das leis estabelecidas por Deus e que regem o Universo.

OBSERVAÇÃO: Chamamos a atenção dos leitores para esta dissertação notável, cujo elevado alcance filosófico é facilmente compreensível. Que há de mais belo, de mais grandioso que esta solidariedade existente entre todos os mundos? Que de mais conveniente para nos dar uma ideia da bondade e da majestade de Deus? A Humanidade cresce por tais pensamentos, ao passo que se rebaixa se a reduzimos às mesquinhas proporções de nossa vida efêmera e de nosso mundo, imperceptível entre os mundos.

Correspondência - Loudéac, 20 de dezembro de 1858.
Senhor Allan Kardec.
Felicito-me por estar em contato convosco através do gênero de estudos a que mutuamente nos entregamos. Há mais de vinte anos eu me ocupava com uma obra que devia ter por título Estudo sobre os Germens. Deveria ser especialmente sobre fisiologia, entretanto minha intenção era demonstrar a insuficiência do sistema de Bichat, que não admite senão a vida orgânica e a vida de relação. Eu queria provar que existe um terceiro modo de existência, que sobrevive aos dois outros, em estado anorgânico. Esse terceiro modo não é outra coisa senão a vida anímica ou espírita, como a chamais. Numa palavra, é o gérmen primitivo que engendra os dois outros modos de existência: orgânica e de relação. Também queria demonstrar que os germens são de natureza fluídica, que são biodinâmicos, atrativos, indestrutíveis, autógenos e em número definido, tanto no nosso planeta quanto em todos os meios circunscritos.

Quando apareceu Céu e Terra, de Jean Reynaud, fui obrigado a modificar minhas convicções. Reconheci que o meu sistema era demasiado estreito, e admiti, como ele, que os astros, pela troca de eletricidade que podem estabelecer reciprocamente, por meio de várias correntes elétricas, devem necessariamente favorecer a transmigração dos germens ou Espíritos da mesma natureza fluídica. Quando se falou das mesas girantes, entreguei-me logo a essa prática e obtive resultados tais que não tive mais nenhuma dúvida quanto às manifestações.

Compreendi logo que chegara o momento em que o mundo invisível ia tornar-se visível e tangível, e que, desde então, marchávamos para uma revolução sem precedentes nas Ciências e na Filosofia. Entretanto, eu estava longe de esperar que um jornal espírita pudesse estabelecer-se tão depressa e manter-se na França. Hoje, senhor, graças à vossa perseverança, é um fato consumado e de grandíssimo alcance.

Estou longe de pensar que todas as dificuldades foram vencidas. Encontrareis muitos obstáculos e sofrereis muitos gracejos, mas, no final das contas, a verdade brilhará; chegar-se-á a reconhecer a justeza da observação do nosso célebre professor Gay-Lussac, que nos dizia em seu curso, a propósito dos corpos imponderáveis e invisíveis, que estas eram expressões inexatas que apenas constatavam a nossa limitação no estado atual da Ciência, acrescentando que seria mais lógico chamá-los de imponderados.

Assim também quanto à visibilidade e à tangibilidade. Aquilo que para um não é visível, o é para outro, mesmo a olho nu. Exemplo: os sensitivos. Enfim, a audição, o olfato e o paladar, que não passam de modificações da propriedade tangível, são nulos no homem quando comparados com os do cão, da águia e de outros animais.

Nada há, pois, de absoluto, nessas propriedades, que se multiplicam conforme os organismos. Nada há de invisível, de intangível, de imponderável. Tudo poderá ser visto, tocado ou pesado, quando nossos órgãos, que são os nossos primeiros e mais preciosos instrumentos, se tiverem tornado mais sutis.

A tantas experiências a que deveis ter recorrido para constatar o nosso terceiro modo de existência, a vida espírita, peço que acrescenteis a seguinte: Magnetizai um cego de nascença e, no estado sonambúlico, fazei-lhe uma série de perguntas sobre as formas e as cores. Se o sensitivo for lúcido, provar-vos-á, de modo peremptório, que sobre essas coisas tem um conhecimento que não lhe foi possível adquirir senão em uma ou várias existências anteriores.

Termino, senhor, pedindo-vos aceiteis minhas felicitações muito sinceras pelo gênero de estudos a que vos consagrais. Como jamais temi manifestar as minhas opiniões, podeis inserir esta em vossa revista, se a julgardes útil. Vosso servo muito dedicado,

MORHÉRY, Doutor em Medicina.

OBSERVAÇÃO: Sentimo-nos feliz com a autorização que o Dr. Morhéry nosconcede para a publicação, com o seu nome, da notável carta que acabamos de ler. Ela prova que há nele, ao lado do homem de ciência, o homem sensato, que vê algo além das nossas sensações e que sabe fazer o sacrifício de suas opiniões pessoais em face da evidência. Nele a convicção não é fé cega, mas raciocinada. É a dedução lógica do sábio que não pensa saber tudo.

Uma noite esquecida ou a feiticeira Manuza

Ditada pelo Espírito de Frédéric Soulé (Terceira e última publicação)
VII

─ Levante-se, disse-lhe Nureddin, e siga-me.
Nazara lançou-se em pranto aos seus pés, pedindo clemência.
─ Nenhuma piedade para semelhante falta, disse o falso sultão. Prepare-se para
morrer.

Nureddin sofria muito por lhe falar desse modo, mas não julgava azado o momento para se dar a conhecer.

Vendo que era impossível dobrá-lo, Nazara o seguiu trêmula. Voltaram aos aposentos. Aí Nureddin disse a Nazara que fosse vestir-se convenientemente. Depois, terminada a toalete e sem outra explicação, disse-lhe que iriam, ele e Ozana (o anão) conduzi-la para um subúrbio de Bagdá onde encontraria aquilo que merecia. Cobriram-se com grandes mantos, a fim de não serem reconhecidos, e saíram do palácio. Mas, oh! terror! apenas transpuseram as portas do palácio mudaram de aspecto aos olhos de Nazara; não eram o Sultão e Ozana, nem os vendedores de roupas, mas o próprio Nureddin e Tanapla. Ficaram tão aterrados, principalmente Nazara, por se encontrarem tão perto da morada do Sultão, que estugaram o passo, a fim de não serem reconhecidos.

Mal haviam entrado na casa de Nureddin e ela foi cercada por uma porção de homens, escravos e tropas enviadas pelo Sultão para prendê-los.

Ao primeiro ruído, Nureddin, Nazara e o anão refugiaram-se nos mais retirados aposentos do palácio. Lá, o anão lhes disse que nada deviam recear. Só uma coisa deviam fazer, a fim de não serem presos: pôr na boca o dedo mínimo da mão esquerda e assoviar três vezes. Nazara devia fazer o mesmo e imediatamente ficariam invisíveis para aqueles que queriam prendê-los.

O rumor continuou a aumentar de maneira alarmante; então, Nazara e Nureddin seguiram o conselho de Tanapla: quando os soldados penetraram em seus aposentos acharam-nos vazios. Retiraram-se após minuciosas buscas. Então o anão disse a Nureddin que fizesse o contrário do que havia feito, isto é, que pusesse na boca o pequeno dedo da mão direita e assoviasse três vezes. Feito isso, logo se converteram no que eram antes.

Em seguida o anão os advertiu de que não estavam em segurança naquela casa e que deviam deixá-la por algum tempo, até que se apaziguasse a cólera do Sultão.

Então ofereceu-se para conduzi-los ao seu palácio subterrâneo, onde estariam muito à vontade, enquanto seriam providenciados os meios para que pudessem, sem receio, retornar a Bagdá nas melhores condições possíveis.

VIII

Nureddin hesitava, mas Nazara tanto insistiu que ele acabou concordando. O anão mandou que fossem ao jardim, chupassem uma laranja com o rosto voltado para o nascente e que então seriam transportados sem o perceber. Fizeram um ar de dúvida, mas Tanapla objetou-lhes que não compreendia a sua dúvida depois do que por eles havia feito.

Tendo descido ao jardim e chupado a laranja como lhes fora indicado, viram-se subitamente elevados a uma altura prodigiosa. De súbito experimentaram um forte abalo e um grande frio e sentiram que desciam a grande velocidade. Nada viram durante o trajeto, mas quando tomaram consciência da situação, achavam-se no subsolo, num magnífico palácio iluminado por vinte mil velas.

Deixemos os dois namorados em seu palácio subterrâneo e voltemos ao nosso anão, que havíamos deixado na casa de Nureddin. Vimos que o sultão enviara os seus soldados para prender os fugitivos. Depois de haverem rebuscado os mais afastados recantos da habitação, bem como os jardins, sem nada encontrar, tiveram que regressar e prestar contas ao sultão de suas buscas infrutíferas.

Tanapla acompanhou-os em todo o percurso, com um ar brincalhão e de vez em quando perguntava quanto o sultão pagaria a quem lhe entregasse os dois fugitivos.

E acrescentava: “Se o sultão estiver disposto a conceder-me uma hora de audiência, eu lhe direi algo que o acalmará e ele ficará muito satisfeito de poder desembaraçar-se de uma mulher como Nazara, que possui um mau gênio e que faria cair sobre ele todas as desgraças possíveis, se lá ficasse por mais algumas luas”.

O chefe dos eunucos prometeu-lhe dar o recado e transmitir-lhe a resposta do sultão.

Mal chegaram ao palácio, o chefe dos negros veio dizer-lhe que o seu senhor o aguardava; mas o preveniu de que seria empalado se fosse com imposturas.

Nosso monstrinho apressou-se a chegar ao sultão. Em presença desse homem duro e severo, inclinou-se três vezes, como é de hábito perante os príncipes de Bagdá.
─ O que tens a dizer-me? perguntou o sultão. Sabes o que te espera se não disseres a verdade. Fala! eu te escuto.
─ Grande Espírito, celeste Lua, tríade de Sóis, não direi senão a verdade.

Nazara é filha da Fada Negra e do Gênio da Grande Serpente dos Infernos. Sua presença em tua casa te acarretaria todas as pragas imagináveis: chuva de serpentes, eclipse do sol, lua azul impedindo os amores noturnos; enfim, todos os teus desejos seriam contrariados e tuas mulheres envelheceriam antes que passasse uma lua. Eu poderia dar-te uma prova do que digo. Sei onde se acha Nazara. Se queres, irei buscá-la e poderás convencer-te. Só há um meio de evitar estas desgraças É dá-la a Nureddin. Nureddin também não é o que pensas: é o filho da feiticeira Manuza e do gênio Rochedo de Diamante. Se os casares, em sinal de reconhecimento, Manuza te protegerá. Se recusares... Pobre príncipe! Eu te lamento. Experimenta. Depois decidirás.
O sultão ouviu muito calmo as palavras de Tanapla, mas logo a seguir chamou uma tropa de homens armados e mandou prender o pequeno monstro, até que um acontecimento viesse provar aquilo que acabara de dizer.
Tanapla respondeu:
─ Pensava que estivesse tratando com um grande príncipe; vejo, entretanto, que me enganei e deixo aos gênios o cuidado de vingar os seus filhos. Dito isto, seguiu os que tinham vindo prendê-lo.

IX

Apenas algumas horas haviam passado desde que Tanapla entrara na prisão, quando o sol se cobriu de uma nuvem sombria, como se um véu quisesse roubá-lo à Terra; depois ouviu-se um grande ruído e de uma montanha, à entrada da cidade, saiu um gigante armado, dirigindo-se para o palácio do sultão.

Não direi que o sultão tivesse ficado muito calmo. Longe disso. Ele tremia como uma folha de laranjeira açoitada por Éolo. À aproximação do gigante, mandou fechar todas as portas e ordenou prontidão a todos os soldados, a fim de defender o seu príncipe. Mas, oh! Estupefação! À aproximação do gigante todas as portas se abriram, como se empurradas por mão invisível; depois, gravemente, o gigante avançou para o sultão, sem fazer um sinal e sem dizer uma palavra. À sua vista, o sultão caiu de joelhos e suplicou ao gigante que o poupasse e dissesse o que exigia.

─ Príncipe! disse o gigante, não digo muita coisa da primeira vez. Apenas te advirto. Faze o que Tanapla te aconselhou e te asseguramos a nossa proteção. Do contrário, sofrerás as consequências de tua teimosia. Dito isto, retirou-se.

A princípio o sultão ficou muito aterrado, mas ao fim de um quarto de hora refez-se do susto e, longe de seguir o conselho de Tanapla, mandou publicar um édito prometendo magnífica recompensa a quem o pusesse no encalço dos fugitivos.

Depois mandou postar guardas às portas do palácio e da cidade e esperou pacientemente. Entretanto sua paciência não durou muito, ou melhor, não lhe deram tempo de submetê-la à prova. Logo ao segundo dia apareceu às portas da cidade um exército que parecia saído das entranhas da terra. Os soldados vestiam peles de toupeira e tinham como escudos cascos de tartaruga; usavam machados feitos de lascas de rochedos.

À sua aproximação os guardas quiseram opor resistência, mas o aspecto formidável do exército logo fê-los baixarem as armas. Abriram as portas sem dizer palavra, sem romper suas filas e a tropa inimiga marchou solenemente para o palácio. O sultão quis resistir à entrada de seus aposentos, mas, com grande surpresa, os guardas adormeceram e as portas se abriram por si mesmas. Depois o chefe do exército avançou com passo grave até os pés do sultão e lhe disse:

─ Vim dizer-te o seguinte: Vendo a tua teimosia, Tanapla nos mandou procurarte.

Ao invés de ser o sultão de um povo que não sabes governar, vamos conduzir-te para o meio das toupeiras. Tornar-te-ás uma toupeira e serás um sultão amaciado. Vê o que preferes: isto ou fazer aquilo que te disse Tanapla? Tens dez minutos para refletir.

X

O sultão preferiria resistir. Mas, para a sua felicidade, após alguns momentos de reflexão, concordou com as exigências. Apenas quis impor uma condição: que os fugitivos não habitassem o seu reino. Foi-lhe prometido, e imediatamente, sem saber como nem para onde, o exército desapareceu de sua vista.

Agora que a sorte dos dois amantes estava perfeitamente assegurada, voltemos a eles, lembrando que os havíamos deixado no palácio subterrâneo.

Depois de alguns minutos, deslumbrados, encantados pelo aspecto das maravilhas que os cercavam, quiseram visitar o palácio e os seus arredores. Viam jardins deslumbrantes e, coisa estranha! ali viam quase que tão claramente quanto a céu aberto. Aproximaram-se do palácio. Todas as portas estavam abertas e havia aparatos como para uma grande festa. À porta encontrava-se uma dama magnificamente vestida. Nossos fugitivos não a identificaram logo. Entretanto, aproximando-se mais, reconheceram Manuza, a feiticeira. Manuza, completamente transformada, já não era a velha suja e decrépita. Era uma senhora de certa idade, mas ainda bela e de porte magnífico.

─ Nureddin, disse-lhe ela, eu te prometi ajuda e assistência. Hoje vou cumprir a minha promessa. Estás no fim de teus males e vais receber o preço de tua tenacidade. Nazara vai ser tua esposa. Além disso, dou-te este palácio. Nele habitarás e serás o rei de um povo bravo e reconhecido. Eles são dignos de ti, como és digno de reinar sobre eles.

A estas palavras ouviu-se uma música harmoniosa. De todos os lados apareceu inumerável multidão de homens e mulheres em trajes de festa. À sua frente, grão senhorese grandes damas vinham prostrar-se aos pés de Nureddin. Ofereceram-lhe uma coroa de ouro cravejada de diamantes e disseram que o reconheciam como rei; que o trono lhe pertencia como herança paterna; que havia 400 anos eles estavam encantados pela vontade de magos perversos e esse encantamento só deveria terminar pela presença de Nureddin. Em seguida fizeram um longo discurso sobre as virtudes dele e as de Nazara.

Então Manuza lhes disse:

─ Sois felizes e nada mais tenho a fazer aqui. Se um dia tiverdes necessidade de mim, batei na estátua que está no meio do vosso jardim e eu virei imediatamente. Dito isto, desapareceu. Nureddin e Nazara tinham vontade de retê-la por mais tempo a fim de agradecer-lhe por toda a bondade que demonstrara para com eles. Depois de conversarem alguns momentos, voltaram aos seus súditos. As festas e os regozijos duraram oito dias. Seu reinado foi longo e feliz. Viveram milhares de anos e posso dizer-vos que ainda vivem. Só que o seu país jamais foi descoberto, ou melhor, nunca se tornou conhecido.

FIM

OBSERVAÇÃO: Chamamos a atenção dos leitores para as observações que antecederam este conto, nos números de novembro de 1858 e janeiro de 1859.
ALLAN KARDEC

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