Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

Você está em: Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859 > Julho


Julho

Sociedade pariense de estudos Espíritas

Senhores,

No momento em que expira o vosso ano social, permiti que vos apresente um curto resumo da marcha e dos trabalhos da Sociedade.

Conheceis a sua origem. Ela se formou sem um desígnio premeditado, sem um projeto preconcebido. Alguns amigos se reuniam em minha casa num pequeno grupo; pouco a pouco esses amigos me pediram permissão para me apresentar seus amigos. Então não havia um presidente. Eram saraus íntimos, de oito ou dez pessoas, como os há às centenas, em Paris e alhures. Era natural, entretanto, que em minha casa eu tivesse a direção do que ali se fazia, já como dono, já em consequência dos estudos especiais que havia feito e que me davam certa experiência na matéria.

O interesse despertado por essas reuniões foi crescendo, embora não nos ocupássemos senão de coisas muito sérias. Pouco a pouco, um a um foi crescendo o número dos assistentes e minha modesta sala, muito pouco adequada para uma assembleia, tornou-se insuficiente. Foi então que alguns de entre vós propuseram se procurasse outra mais cômoda e que nos cotizássemos a fim de cobrir as despesas, pois não achavam justo que tudo corresse por minha conta, como até então.

Mas para nos reunirmos regularmente, além de um certo número de pessoas e num local diferente, era necessário nos conformássemos às exigências legais, ter um regulamento e, consequentemente, um presidente titulado. Enfim, era necessário constituir-se uma sociedade. Foi o que aconteceu, com o assentimento da autoridade, cuja benevolência não nos faltou. Era também necessário imprimir aos trabalhos uma direção metódica e uniforme, e houvestes por bem encarregar-me de continuar aquilo que fazia em minha casa, nas nossas reuniões particulares. Dei às minhas funções, que posso chamar de laboriosas, toda a exatidão e todo o devotamento de que fui capaz. Do ponto de vista administrativo, esforcei-me por manter nas sessões uma ordem rigorosa e por lhes dar um caráter de seriedade, sem o qual logo teria desaparecido o prestígio de assembleia séria. Agora, que minha tarefa está terminada e que o impulso foi dado, devo comunicar-vos a resolução que tomei de renunciar, para o futuro, a qualquer função na Sociedade, mesmo a de diretor de estudos. Não ambiciono nenhum título, a não ser o de simples membro titular, com o qual me sentirei sempre feliz e honrado. O motivo de minha decisão está na multiplicidade de meus trabalhos, que aumentam dia a dia, pela extensão de minhas relações e porque, além daqueles que conheceis, preparo outros trabalhos mais consideráveis, que exigem longos e laboriosos estudos e que não absorverão menos de dez anos26. Ora, os trabalhos da Sociedade não deixam de tomar muito tempo, quer na preparação, quer na coordenação e redação final. Além disso, reclamam uma assiduidade por vezes prejudicial às minhas ocupações pessoais e tornam indispensável a iniciativa quase exclusiva que me conferistes. É por este motivo, senhores, que tantas vezes tive de tomar a palavra, muitas delas lamentando que membros eminentes e esclarecidos nos privassem de suas luzes. Há muito tempo eu desejava demitir-me de minhas funções. Em várias circunstâncias externei esse desejo de maneira explícita, tanto aqui quanto particularmente, a diversos colegas, notadamente ao Sr. Ledoyen. Tê-lo-ia feito mais cedo, sem receio de causar perturbação na Sociedade, retirando-me ao meio do ano, mas poderia parecer uma defecção. E era necessário não dar esse prazer aos nossos adversários. Tive, pois, que cumprir a minha tarefa até o fim. Hoje, porém, que não mais existem esses motivos, apresso-me em vos comunicar a minha resolução, a fim de não entravar a escolha que deveis fazer. É justo que cada um participe dos encargos e das honras.

Num ano a Sociedade viu sua importância crescer rapidamente. O número de seus membros titulares triplicou em alguns meses. Tendes numerosos correspondentes nos dois continentes e a quantidade de ouvintes ultrapassaria o limite do possível, se não houvéssemos estabelecido como freio o estrito cumprimento do regulamento. Entre estes últimos, notastes a presença das mais altas notabilidades sociais e muitas figuras das mais ilustres. A pressa que há em solicitar admis são às vossas sessões demonstra o interesse que elas despertam, não obstante a ausência de qualquer experimentação destinada a satisfazer a curiosidade e, talvez, em virtude mesmo da sua simplicidade. Se nem todos saem convencidos, o que seria pretender o impossível, as pessoas sérias, as que não vêm com a ideia preconcebida de denegrir, levam da seriedade dos vossos trabalhos uma impressão que as predispõe a aprofundar essas questões. Aliás, não podemos senão aplaudir as restrições feitas à admissão de ouvintes estranhos. Assim evitamos uma multidão de curiosos importunos. A medida com a qual limitastes a admissão de estranhos a certas sessões, reservando as outras exclusivamente aos membros da Sociedade, teve como resultado vos dar mais liberdade nos estudos, que poderiam ser entravados pela presença de pessoas ainda não iniciadas e cuja simpatia não estivesse garantida.

Essas restrições parecerão muito naturais aos que conhecem a finalidade de nossa instituição e sabem que somos, antes de tudo, uma Sociedade de estudo e de pesquisas e não um veículo de propaganda. É por isto que não admitimos em nossas fileiras aqueles que, não possuindo as primeiras noções da ciência, nos fariam perder tempo em demonstrações elementares, incessantemente renovadas. Sem dúvida todos nós desejamos a propaganda das ideias que professamos, porque as julgamos úteis, e cada um de nós para isso contribui. Sabemos, porém, que só se adquire convicção através de observações contínuas e nunca por alguns fatos isolados, sem continuidade e sem raciocínio, contra os quais a incredulidade sempre poderá levantar objeções. Dir-se-á que um fato é sempre um fato. É um argumento irretorquível, sem dúvida, desde que não seja contestado nem contestável. Quando um fato sai do círculo de nossas ideias e de nossos conhecimentos, à primeira vista parece impossível. Quanto mais extraordinário, mais objeção levanta. Eis por que o contestam. Aquele que lhe sonda a causa e a descobre, encontra-lhe uma base e uma razão de ser; compreende a sua possibilidade e desde então não mais o rejeita.

Muitas vezes um fato só é inteligível por sua ligação com outros fatos. Tomado isoladamente pode parecer estranho, incrível e até absurdo. Mas se for um dos elos da cadeia; se tiver uma base racional; se se puder explicá-lo, desaparecerá qualquer anomalia.

Ora, para conceber esse encadeamento, para apreender esse conjunto a que somos conduzidos de consequência em consequência, é necessário, em todas as coisas ─ e talvez ainda mais no Espiritismo ─ uma série de observações racionais. O raciocínio é, pois, poderoso elemento de convicção, hoje mais do que nunca, porque as ideias positivas nos levam a saber o porquê e o como de cada coisa.

Admiramo-nos da persistência da incredulidade em matéria de Espiritismo, por parte de pessoas que viram, enquanto outras que nada viram são crentes firmes. Dirse-ia que são superficiais e que aceitam sem exame tudo quanto se lhes diz? Muito pelo contrário. As primeiras viram, mas não compreendem; as últimas não viram, mas compreendem, e compreendem porque raciocinam.

O conjunto de raciocínios sobre os quais se apoiam os fatos constitui a ciência, ciência ainda imperfeita, é certo, cujo apogeu ninguém pretende ter atingido, mas, enfim, é uma ciência em início e vossos estudos se dirigem para a pesquisa de tudo quanto pode alargá-la e constituí-la.

Eis o que importa seja bem sabido fora deste recinto, a fim de que não haja equívocos quanto aos nossos objetivos; a fim de que, ao virem aqui, não esperem vir a um espetáculo dado pelos Espíritos. A curiosidade tem um limite. Quando satisfeita, procura uma nova distração. Aquele que não para na superfície, que vê além do efeito material, sempre acha o que aprender. Para ele o raciocínio é uma fonte inesgotável, sem limites. Nossa linha de conduta não poderia ser mais bem traçada do que pelas admiráveis palavras que o Espírito de São Luís nos dirigiu, e que jamais deveríamos esquecer: “Zombaram das mesas girantes, mas não zombarão jamais da filosofia, da sabedoria, da caridade que brilham nas comunicações sérias.

Que alhures se veja; que alhures se escute, mas que entre vós haja compreensão e amor”.

A expressão “que entre vós haja compreensão” é todo um ensinamento. Nós devemos compreender, e procuramos compreender, porque não queremos crer como cegos. O raciocínio é o facho que nos guia. Mas o raciocínio de um só pode transviar-se. Eis porque nos quisemos reunir em sociedade, a fim de nos esclarecermos mutuamente pelo concurso recíproco de nossas ideias e observações.

Colocados neste terreno, assemelhamo-nos a todas as demais instituições científicas, e nossos trabalhos produzirão mais prosélitos sérios do que se passássemos o tempo a fazer que as mesas se movessem e dessem pancadas. Em breve estaríamos fartos disso. Nosso pensamento requer um alimento mais sólido e, por isso, buscamos penetrar os mistérios do mundo invisível, cujos primeiros indícios são esses fenômenos elementares. Os que sabem ler se divertem a repetir sem cessar o alfabeto? Talvez tivéssemos maior afluência de curiosos, sucedendo-se em nossas sessões como personagens de um panorama mutável. Mas esses curiosos, que não poderiam adquirir uma convicção improvisada por verem um fenômeno para eles inexplicável que julgariam sem aprofundá-lo, seriam antes um obstáculo aos nossos trabalhos. Eis porque, não querendo desviar-nos do nosso caráter científico, afastamos todo aquele que nos procura sem um objetivo sério.

O Espiritismo tem consequências de tal gravidade; toca em questões de tal alcance; dá a chave de tantos problemas; oferece-nos, enfim, tão profundo ensino filosófico, que ao lado de tudo isso uma mesa girante é pura infantilidade.

A observação dos fatos, sem o raciocínio, dizíamos nós, é insuficiente para dar completa convicção. Poderíamos taxar de leviano aquele que se declarasse convencido por um fato que não tivesse compreendido. Esta maneira de proceder, entretanto, tem outro inconveniente que deve ser assinalado e do qual cada um de nós pode dar testemunho: é a mania de experimentação, como consequência natural disso.

Aquele que vê um fato espírita sem lhe haver estudado todas as suas implicações, geralmente não vê mais que o fato material. Então o julga do ponto de vista de suas próprias ideias, sem pensar que fora das leis comuns pode e deve haver leis desconhecidas. Julga poder manobrá-lo à sua vontade; impõe condições e não se convencerá, conforme diz, se o fato não se repetir de uma certa maneira, e não de outra. Imagina que se fazem experiências com os Espíritos como se fossem uma pilha elétrica. Desconhecendo sua natureza e sua maneira de ser, pois não as estudou, pensa que lhes pode impor a sua vontade, e imagina que eles devem agir a um simples sinal, pelo simples prazer de convencê-lo. Porque se dispõe a ouvi-los durante quinze minutos, supõe que devam ficar às suas ordens.

São erros em que não caem aqueles que se dão ao trabalho de aprofundar os estudos. Conhecem os obstáculos e não pedem o impossível. Em lugar de quererem convencer do seu ponto de vista os Espíritos, coisa a que eles não se submetem voluntariamente, colocam-se no ponto de vista dos Espíritos, com o que os fenômenos mudam de aspecto. Para isto são necessárias paciência, perseverança e firme vontade, sem o que nada se alcança.

Aquele que realmente quer saber, deve submeter-se às condições da coisa em si, e não querer que esta se submeta às suas próprias condições.

Por isto a Sociedade não se presta a experimentações que não dariam resultado, pois sabe, por experiência, que o Espiritismo, como qualquer outra ciência, não se aprende de um jacto e em poucas horas. Como uma sociedade séria, não quer tratar senão com gente séria, que compreende as obrigações impostas por tal estudo, desde que se queira fazê-lo conscienciosamente. Ela não reconhece como sérios os que dizem: Deixem-me ver um fato e eu me convencerei.

Significa isto que desprezamos os fatos?

Muito pelo contrário, pois toda a nossa ciência está baseada nos fatos. Pesquisamos com interesse todos aqueles que nos oferecem matéria de estudo ou confirmam princípios admitidos. Quero apenas dizer que não perdemos tempo em reproduzir os fatos que já conhecemos, do mesmo modo que um físico não se diverte em repetir incessantemente as experiências que nada de novo lhe ensinam.

Dirigimos nossa investigação a tudo quanto possa iluminar nossos caminhos, preferindo as comunicações inteligentes, fonte da filosofia espírita e cujo campo ilimitado é muito mais vasto que o das manifestações puramente materiais, de interesse apenas momentâneo.

Dois sistemas igualmente preconizados e praticados se apresentam na maneira de receber as comunicações de além-túmulo: uns preferem esperar as comunicações espontâneas; outros as provocam por um apelo direto a este ou àquele Espírito.

Pretendem os primeiros que na ausência de controle para estabelecer a identidade dos Espíritos, esperando a sua boa vontade, ficamos menos expostos a ser induzidos em erro. Desde que o Espírito fala é porque está presente e quer falar, ao passo que não temos certeza de que aquele que chamamos possa vir e responder. Os outros objetam que deixar falar o primeiro que apareça é abrir a porta tanto aos bons quanto aos maus. A incerteza da identidade não é objeção séria, pois muitas vezes dispomos de meios de constatá-la, sendo que essa constatação é, além do mais, objeto de um estudo ligado aos próprios princípios da ciência. O Espírito que fala espontaneamente limita-se quase sempre às generalidades, enquanto as perguntas lhe traçam um quadro mais positivo e mais instrutivo.

Quanto a nós, apenas condenamos a exclusividade de sistemas. Sabemos que ótimas coisas são obtidas de um e de outro modo. Se preferimos o segundo, é que a experiência nos ensina que nas comunicações espontâneas os Espíritos mistificadores não deixam de enfeitar-se com nomes respeitáveis, tanto quanto nas evocações. Têm mesmo o campo mais livre, ao passo que com as perguntas nós os dominamos muito mais facilmente, sem contar que as perguntas têm incontestável utilidade nos estudos. É a esta maneira de investigar que devemos a quantidade de observações recolhidas diariamente e que nos permitem penetrar mais profundamente nesses extraordinários mistérios. Quanto mais avançamos, mais se nos alarga o horizonte, mostrando quanto é vasto o campo que devemos ceifar.

As numerosas evocações que temos feito permitiram lançássemos o olhar investigador sobre o mundo invisível, de um a outro extremo, isto é, tanto naquilo que há de mais ínfimo quanto no que há de mais sublime. A incontável variedade de fatos e de caracteres que brotaram desses estudos realizados com profunda calma, com atenção contínua e com a prudente circunspecção de observadores sérios, abriunos os arcanos desse mundo para nós tão novo.

A ordem e o método aplicado em vossas pesquisas eram elementos indispensáveis ao sucesso.

Com efeito, sabeis por experiência que não basta chamar, ao acaso, o Espírito desta ou daquela pessoa. Os Espíritos não vêm assim, à nossa vontade ou capricho, e não respondem a tudo quanto a fantasia nos leva a lhes perguntar. Com os seres de além-túmulo são necessárias habilidade e uma linguagem adequada à sua natureza; às suas qualidades morais; a seu grau de inteligência; à posição que ocupam. Com eles, e segundo as circunstâncias, devemos ser dominadores ou submissos; compassivos com os que sofrem; humildes e respeitosos com os superiores; firmes com os maus e com os teimosos que só dominam aqueles que os escutam complacentemente. Enfim, é necessário saber formular e encadear metodicamente as perguntas, para que se obtenham respostas mais explícitas; captar nas respostas as nuanças que, por vezes, constituem traços característicos, revelações importantes e que escapam ao observador superficial, inexperiente ou ocasional.

A maneira de conversar com os Espíritos é, pois, uma verdadeira arte, que exige tato, conhecimento do terreno que pisamos e constitui, a bem dizer, o Espiritismo prático. Convenientemente dirigidas, as evocações podem ensinar muito.

Elas oferecem um poderoso elemento de interesse, de moralidade e de convicção. De interesse porque nos dão a conhecer o estado do mundo que a todos espera, do qual por vezes fazemos uma ideia extravagante; de moralidade porque nelas podemos ver, por analogia, a nossa sorte futura; de convicção, porque temos nessas conversas íntimas a prova manifesta da existência e da individualidade dos Espíritos, que nada mais são do que as nossas próprias almas, desprendidas da matéria terrena.

Desde que esteja formada a vossa opinião geral sobre o Espiritismo, não tendes necessidade de fundamentar as vossas convicções na prova material das manifestações físicas. Por outro lado, aconselhados pelos Espíritos, quisestes limitarvos ao estudo dos princípios e dos problemas morais, sem que para isso fosse negligenciado o exame dos fenômenos que podem auxiliar na pesquisa da verdade.

A crítica sistemática censurou-nos por aceitarmos muito facilmente as doutrinas de certos Espíritos, sobretudo no que concerne a questões científicas. Essas pessoas mostram, por isso mesmo, que não conhecem o verdadeiro escopo da Ciência Espírita, nem aquele a que nos propomos, com o que nos dão o direito de lhes devolver a censura de leviandade de julgamento.

Certamente não será a vós que pode ser ensinada a reserva com que deve ser acolhido aquilo que vem dos Espíritos. Estamos longe de aceitar tudo quanto eles dizem como artigos de fé. Sabemos que há entre eles todas as nuanças de saber e de moralidade. Para nós são toda uma população, que apresenta variedades cem vezes mais numerosas que as que percebemos entre os homens. O que queremos é estudar essa população; é chegar a conhecê-la e compreendê-la. Para tanto, estudamos as individualidades; observamos as diferenças sutis; procuramos identificar os traços distintivos de seus costumes, de seus hábitos, de seu caráter. Queremos, finalmente, identificar-nos, tanto quanto possível, com o estado desse mundo. Antes de ocupar uma habitação gostamos de saber como é ela; se ali estaremos confortavelmente.

Queremos conhecer os hábitos dos vizinhos; o tipo de sociedade que poderemos frequentar. Pois então! É a nossa morada futura. São os costumes da gente em cujo meio iremos viver que os Espíritos nos dão a conhecer.

Mas, assim como entre nós há pessoas ignorantes e de vistas curtas, que fazem uma ideia incompleta do nosso mundo material e do meio que lhes é estranho, também os Espíritos de horizonte moral limitado não podem apreender o conjunto e ainda se acham sob o império dos preconceitos e dos sistemas. Não podem, portanto, instruir-nos sobre tudo quanto se relaciona com o mundo espírita, do mesmo modo que um camponês não poderia fazê-lo em relação à alta sociedade parisiense ou ao mundo da Ciência. Seria, pois, fazer um triste juízo do nosso raciocínio, se pensassem que escutamos todos os Espíritos como se fossem oráculos.

Os Espíritos são o que são e nós não podemos alterar a ordem das coisas. Como nem todos são perfeitos, não aceitamos suas palavras senão com reservas e jamais com a credulidade das crianças. Julgamos, comparamos e tiramos conclusões do que observamos. Até mesmo os erros dos Espíritos constituem ensinamentos para nós, uma vez que não renunciamos ao nosso discernimento.

Estas observações aplicam-se igualmente a todas as teorias científicas que os Espíritos podem dar. Seria muito cômodo se bastasse interrogá-los para se encontrar a Ciência acabada e possuir todos os segredos da indústria. Não conquistamos a Ciência senão à custa de trabalho e de pesquisas. A missão dos Espíritos não é livrar-nos dessa obrigação. Nós sabemos, além disso, não apenas que nem todos os Espíritos sabem tudo, como também que há entre eles pseudossábios, assim como entre nós, os quais pensam saber aquilo que não sabem e falam daquilo que ignoram com a mais imperturbável audácia.

Um Espírito poderia, pois, dizer que é o Sol que gira, e não a Terra. Sua teoria não seria mais exata pelo fato de provir de um Espírito. Saibam, pois, aqueles que nos atribuem uma credulidade tão pueril, que tomamos toda opinião emitida por um Espírito como uma opinião pessoal; que não a aceitamos senão depois de havê-la submetido ao controle da lógica e dos meios de investigação fornecidos pela própria Ciência Espírita, meios que vós todos conheceis.

Tal é, senhores, o fim a que se propõe a Sociedade. Não cabe a mim, por certo, vo-lo dizer, posto me agrade recordá-lo aqui, a fim de que se minhas palavras repercutirem lá fora, ninguém se equivoque quanto ao seu verdadeiro sentido. De minha parte sinto-me feliz por não ter tido senão que vos acompanhar neste caminho sério, que eleva o Espiritismo à altura das ciências filosóficas. Vossos trabalhos já produziram frutos, porém os que se produzirão mais tarde são incalculáveis, desde que ─ e disso não tenho dúvidas ─ mantenhais as condições propícias a fim de atraírdes os bons Espíritos ao vosso meio.

O concurso dos bons Espíritos, tal é, com efeito, a condição sem a qual não se pode esperar a Verdade. Ora, depende de nós obter esse concurso. A primeira de todas as condições para merecermos a sua simpatia é o recolhimento e a pureza das intenções. Os Espíritos sérios vão aonde são chamados seriamente, com fé, fervor e confiança. Eles não gostam de ser usados em experiências, nem de dar espetáculo.

Ao contrário, gostam de instruir aqueles que os interrogam sem ideias preconcebidas. Os Espíritos levianos, que se divertem de todos os modos, vão a toda parte e de preferência aos lugares onde encontram ocasião para mistificar. Os maus são atraídos pelos maus pensamentos, e por maus pensamentos devemos compreender todos aqueles que não se conformam com os princípios da caridade evangélica. Assim, pois, quem quer que traga a uma reunião sentimentos contrários a esses preceitos, traz consigo Espíritos desejosos de semear a perturbação, a discórdia e os desafetos.

A comunhão de pensamentos e de sentimentos para o bem é, assim, uma condição primordial e não é possível encontrar essa comunhão num meio heterogêneo, onde têm acesso paixões inferiores como o orgulho, a inveja e o ciúme, paixões que sempre se revelam pela malevolência e pela acrimônia da linguagem, por mais espesso que seja o véu com que se procure encobri-las. Eis o abc da Ciência Espírita. Se quisermos fechar a porta desse recinto aos maus Espíritos, comecemos por fechar-lhes a porta de nossos corações e evitemos tudo quanto lhes possa conferir poder sobre nós. Se algum dia a Sociedade se tornasse joguete dos Espíritos enganadores, é que a ela teriam sido atraídos. Por quem? Por aqueles nos quais eles encontram eco, pois eles vão apenas aonde sabem que são escutados. É conhecido o provérbio: Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Podemos parodiá-lo em relação aos nossos Espíritos simpáticos, dizendo: Dize-me o que pensas e dir-te-ei com quem andas.

Ora, os pensamentos se traduzem por atos. Se admitirmos que a discórdia, o orgulho, a inveja e o ciúme não podem ser inspirados senão por maus Espíritos, aqueles que aqui trouxessem elementos de desunião suscitariam entraves, com o que indicariam a natureza de seus satélites ocultos. Então só poderíamos lamentar sua presença no seio da Sociedade. Queira Deus - e assim o espero - que isto nunca aconteça, e que, auxiliados pelos bons Espíritos, se a estes nos tornarmos favoráveis, a Sociedade se consolide, tanto pela consideração que tiver merecido, quanto pela utilidade de seus trabalhos.

Se tivéssemos em mira apenas experiências para satisfação de nossa curiosidade, a natureza das comunicações seria mais ou menos indiferente, pois nelas veríamos somente o que elas são. Como, porém, em nossos estudos não buscamos uma diversão para nós, nem para o público, mas o que queremos são comunicações verdadeiras, para isso necessitamos da simpatia dos bons Espíritos, e essa simpatia só é conseguida pelos que afastam os maus com a sinceridade de seu coração.

Dizer que Espíritos levianos jamais se introduziram em nosso meio, para encobrirmos qualquer ponto vulnerável de nossa parte, seria muita presunção de perfeição. Os Espíritos superiores podem até mesmo permiti-lo, a fim de experimentar a nossa perspicácia e o nosso zelo na busca da verdade. Entretanto, o nosso raciocínio deve pôr-nos em guarda contra as ciladas que nos podem ser armadas e em todos os casos dá-nos os meios de evitá-las.

O objetivo da Sociedade não é apenas a pesquisa dos princípios da Ciência Espírita. Ela vai mais longe. Estuda também as suas consequências morais, pois é principalmente nestas que está a sua verdadeira utilidade.

Ensinam os nossos estudos que o mundo invisível que nos circunda reage constantemente sobre o mundo visível e no-lo mostram como uma das forças da Natureza. Conhecer os efeitos dessa força oculta que nos domina e nos subjuga malgrado nosso, não será ter a chave de muitos problemas, as explicações de uma porção de fatos que passam despercebidos? Se esses efeitos podem ser funestos, conhecer a causa do mal não é ter um meio de preservar-se contra ele, assim como o conhecimento das propriedades da eletricidade nos deu o meio de atenuar os desastrosos efeitos do raio? Se então sucumbirmos, não nos poderemos queixar senão de nós mesmos, porque a ignorância não nos servirá de desculpa. O perigo está no império que os maus Espíritos exercem sobre as pessoas, o que não é apenas uma coisa funesta do ponto de vista dos erros de princípios que eles podem propagar, como ainda do ponto de vista dos interesses da vida material. Ensina a experiência que jamais nos abandonamos impunemente ao domínio dos maus Espíritos, porque suas intenções jamais podem ser boas. Uma de suas táticas para alcançar os seus fins é a desunião, pois sabem muito bem que podem facilmente dominar quem estiver sem apoio. Assim, o seu primeiro cuidado, quando querem apoderar-se de alguém, é sempre inspirar-lhe a desconfiança e o isolamento, a fim de que ninguém possa desmascará-los esclarecendo-o com conselhos salutares. Uma vez senhores do terreno, podem à vontade fascinar a pessoa com promessas sedutoras; subjugá-la por meio da lisonja às suas inclinações, para o que aproveitam o lado fraco que descobrem a fim de melhor fazê-la sentir, depois, a amargura das decepções; feri-la nas suas afeições; humilhá-la no seu orgulho e, muitas vezes, elevá-la por um instante apenas para precipitá-la de mais alto.

Eis, senhores, o que nos mostram os exemplos que a cada momento se desdobram aos nossos olhos, tanto no mundo dos Espíritos quanto no mundo corpóreo, circunstância que podemos aproveitar para nós próprios, ao mesmo tempo que procuramos torná-la proveitosa aos outros. Entretanto, perguntarão se não atrairemos os maus Espíritos, evocando homens que foram o rebotalho da Sociedade.

Não, porque jamais sofremos a sua influência. Só haverá perigo quando é o Espírito que se impõe; nunca, porém, quando nos impomos ao Espírito. Sabeis que tais Espíritos não atendem ao vosso chamado senão constrangidos e forçados; que em geral se acham tão deslocados em vosso meio que têm pressa em retirar-se. Para nós sua presença é um estudo, porque para conhecer é necessário ver tudo. O médico não chega ao apogeu do conhecimento senão sondando as mais hediondas chagas.

Ora, essa comparação do médico é tanto mais justa quanto mais sabeis das chagas que temos curado e dos sofrimentos que temos aliviado. Nosso dever é nos mostrarmos caridosos e benevolentes para com os seres de além-túmulo, assim como para com os nossos semelhantes.

Senhores, pessoalmente eu desfrutaria de um privilégio extraordinário se tivesse ficado isento de crítica. Não nos pomos em evidência sem nos expormos aos dardos dos que não pensam como nós. Há, porém, duas espécies de crítica: uma que é malévola, acerba, envenenada, na qual o ciúme se trai a cada palavra; a outra, que visa a sincera procura da verdade, tem características absolutamente diversas. A primeira só merece o desdém. Jamais com ela me preocupei. Só a outra é discutível.

Algumas pessoas disseram que fui muito precipitado nas teorias espíritas; que ainda não havia chegado o tempo de estabelecê-las, pois as observações não estavam completas.

Permiti-me algumas palavras sobre o assunto.

Duas coisas há que considerar no Espiritismo: a parte experimental e a filosófica ou teórica.

Abstração feita do ensino dos Espíritos, pergunto se, em meu nome, não tenho, como tantos outros, o direito de elucubrar um sistema filosófico. Não está o campo da opinião aberto a todo mundo? Por que, então, não posso dar a conhecer o meu?

Cabe ao público julgar se ele tem ou não tem sentido.

Mas essa teoria, em vez de me conferir qualquer mérito, se mérito ela tem, eu declaro que emana inteiramente dos Espíritos.

─ Vá lá que seja, dirão alguns, mas isto é ir muito longe.

─ Aqueles que pretendem dar a chave dos mistérios da Criação; desvendar o princípio das coisas e a natureza infinita de Deus, não vão mais longe do que eu, que declaro, em nome dos Espíritos, que não é dado ao homem aprofundar essas coisas sobre as quais só podemos fazer conjecturas mais ou menos prováveis.

─ Andais muito depressa.

─ Mas seria erro tomar a dianteira a certas pessoas? Aliás, quem as impede de andar?

─ Os fatos não foram ainda suficientemente observados.

─ Como não? Certo ou errado, eu creio tê-los observado suficientemente. Devo esperar as boas disposições dos que ficam para trás? Minhas publicações não barram o caminho a ninguém.

─ Sendo os Espíritos sujeitos a erro, quem vos diz que aqueles que vos deram instruções não se tenham enganado?

─ Com efeito, toda a questão reside nisto, pois a objeção de precipitação é muito pueril. Ora! Eu devo dizer em que se funda a minha confiança na veracidade e na superioridade dos Espíritos que me instruíram. Para começar direi que, conforme o seu conselho, nada aceito sem controle e sem exame. Só adoto uma ideia quando ela me parece racional, lógica e concorde com os fatos e as observações, desde que nada de sério venha contradizê-la. Entretanto, meu julgamento não poderá ser um critério infalível. O assentimento que encontrei por parte de pessoas mais esclarecidas do que eu dá-me a primeira garantia. Mas eu encontro outra não menos preponderante no caráter das comunicações que foram feitas, desde que me ocupo de Espiritismo. Jamais ─ posso dizê-lo ─ escapou uma única dessas palavras, um só desses sinais pelos quais sempre se traem os Espíritos inferiores, mesmo os mais astuciosos. Jamais dominação; jamais conselhos equívocos ou contrários à caridade e à benevolência; jamais prescrições ridículas. Longe disso, neles só encontrei pensamentos grandes, nobres, sublimes, isentos de pequenez e de mesquinharia.

Numa palavra, suas relações comigo, nas menores como nas maiores coisas, foram sempre tais que, se tivesse sido um homem que me falasse, eu o teria considerado o melhor, o mais sábio, o mais prudente, o mais moralizado e o mais esclarecido. Senhores, aqui estão os motivos de minha confiança, corroborada pela identidade do ensino dado a uma porção de outras pessoas, antes e depois da publicação de minhas obras. O futuro dirá se estou certo ou errado. Enquanto isto, creio ter ajudado o progresso do Espiritismo, colocando algumas pedras em seu edifício. Mostrando que os fatos podem assentar-se no raciocínio, terei contribuído para fazê-lo sair do caminho frívolo da curiosidade, a fim de fazê-lo entrar na via séria da demonstração, a única apta a satisfazer aos homens que pensam e que não se detêm na superfície.

Termino, meus senhores, pelo rápido exame de uma questão atual.

Fala-se de outras sociedades que desejam rivalizar com a nossa.

Dizem que uma delas já conta com 300 membros e que possui recursos financeiros consideráveis. Quero crer que não seja uma fanfarronada, tão pouco elogiável para os Espíritos que a tiverem suscitado quanto para aqueles que lhe fazem eco. Se for uma realidade, nós a felicitamos sinceramente, desde que ela obtenha a necessária unidade de sentimentos para frustrar a influência dos maus Espíritos e consolidar a sua existência.

Desconheço completamente quais são os elementos da sociedade ou das sociedades que dizem em formação. Farei apenas uma observação geral.

Há em Paris e alhures uma porção de reuniões íntimas, como outrora foi a nossa, onde se trata mais ou menos seriamente das manifestações espíritas, sem falar dos Estados Unidos, onde elas se contam aos milhares. Conheço algumas nas quais as evocações são feitas nas melhores condições e onde são obtidas coisas notáveis. É a consequência natural do número crescente de médiuns que se desenvolvem de todos os lados, a despeito dos sarcasmos. E quanto mais avançarmos, mais se multiplicarão esses centros.

Formados espontaneamente de elementos muito pouco numerosos e variáveis, esses centros nada têm de fixo nem de regular e não constituem sociedades propriamente ditas. Para uma sociedade regularmente organizada são necessárias condições de vitalidade completamente diversas, em razão do próprio número de pessoas que as compõem, de sua estabilidade e de sua permanência. A primeira dessas condições é a homogeneidade de princípios e da maneira de ver. Toda sociedade formada de elementos heterogêneos traz em si o germe da dissolução. Podemos considerá-la natimorta, seja qual for o seu objetivo: político, religioso, científico ou econômico.

Uma sociedade espírita requer outra condição ─ a assistência dos bons Espíritos
─ se quisermos obter comunicações sérias, porque dos maus, caso lhes permitamos tomarem pé, nada obteremos senão mentiras, decepções e mistificação. Este é o preço de sua própria existência, pois que os maus serão os primeiros agentes de sua destruição. Eles a minarão pouco a pouco, caso não a derrubem logo de início.

Sem homogeneidade não haverá comunhão de pensamentos e, portanto, não serão possíveis nem calma nem recolhimento. Ora, os bons só se apresentam onde encontram tais condições. Como encontrá-las numa reunião onde as crenças são divergentes, onde alguns nem mesmo creem e, por conseguinte, onde domina incessantemente o espírito de oposição e de controvérsia? Eles só assistem aos que desejam ardentemente esclarecer-se para o bem, sem segundas intenções, e não para satisfazer uma vã curiosidade.

Querer formar uma sociedade espírita fora destas condições seria dar provas da mais absoluta ignorância dos princípios mais elementares do Espiritismo. Seríamos nós, pois, os únicos capazes de reuni-las? Seria muito impertinente e além do mais muito ridículo de nossa parte assim pensar. Aquilo que nós fizemos, outros seguramente podem fazê-lo. Que outras sociedades se ocupem, então, de trabalhos iguais aos nossos, prosperem e se multipliquem. Tanto melhor; mil vezes melhor, porque será um sinal de progresso nas ideias morais. Tanto melhor, sobretudo, se forem bem assistidas e se tiverem boas comunicações, das quais não pretendemos possuir o privilégio. Como só visamos a nossa instrução pessoal e o interesse da Ciência, que a nossa sociedade não oculte nenhuma ideia e especulação direta ou indireta, nenhuma ambição e que sua existência não repouse sobre uma questão de dinheiro. Que as outras sociedades sejam consideradas como nossas irmãs e não concorrentes. Se formos invejosos, provaremos que somos assistidos por maus Espíritos. Se uma delas se constituísse para nos criar rivalidades, com a ideia preconcebida de nos suplantar, por seu objetivo revelaria a própria natureza dos Espíritos que presidiram à sua formação, desde que um tal pensamento nem seria bom, nem caridoso, e os bons Espíritos não simpatizam com os sentimentos de ódio, ciúme e ambição.

Aliás, nós possuímos um meio infalível para não temer nenhuma rivalidade. É o que nos dá São Luís: Que haja entre vós compreensão e amor, disse-nos ele.

Trabalhemos, pois, para nos compreendermos. Lutemos com os outros, mas lutemos com caridade e com abnegação. Que o amor ao próximo esteja inscrito em nossa bandeira e seja a nossa divisa. Com isto desafiaremos a zombaria e a influência dos maus Espíritos. Neste particular poderão igualar-nos, e assim será melhor, pois serão irmãos que nos chegam. De nós depende, entretanto, não sermos nunca ultrapassados.

Mas, dirão, vós tendes uma maneira de ver que não é a nossa. Não podemos simpatizar com princípios que não admitimos, porque nada prova que estejais com a verdade. A isto responderei: nada prova que estejais mais certos do que nós, pois que ainda duvidais, e a dúvida não é uma doutrina. A gente pode divergir de opinião sobre pontos da Ciência, sem se morder nem atirar pedras, o que seria pouco digno e pouco científico. Pesquisai, pois, do vosso lado, como nós pesquisamos do nosso. O futuro dará razão a quem de direito. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amorpróprio de persistir em ideias falsas. Há, porém, princípios sobre os quais temos a certeza de não estar enganados: o amor ao bem, a abnegação e a abjuração de todo sentimento de inveja e de ciúme.

Estes são os nossos princípios, com os quais sempre é possível simpatizar sem comprometimento. É o laço que deve unir todos os homens de bem, seja qual for a sua divergência de opinião. Só o egoísmo põe entre eles uma barreira intransponível.
São estas, meus senhores, as observações que acreditei dever apresentar-vos ao deixar as funções que me confiastes. Do fundo do coração agradeço a todos aqueles que me testemunharam simpatia. Aconteça o que acontecer, minha vida está consagrada à obra que empreendemos e eu me sentirei feliz se meus esforços puderem ajudar a fazê-la entrar no caminho sério que é a sua essência, o único que lhe pode assegurar o futuro.

A finalidade do Espiritismo é melhorar aqueles que o compreendem.

Procuremos dar o exemplo e mostrar que para nós a doutrina não é letra morta.

Numa palavra, sejamos dignos dos bons Espíritos, se quisermos que eles nos assistam. O bem é uma couraça contra a qual virão sempre quebrar-se as armas da malevolência.

ALLAN KARDEC.

Boletim - Da sociedade pariense de estudos espíritas

Doravante publicaremos regularmente o relato das sessões da Sociedade.
Contávamos fazê-lo a partir deste número, mas o excesso de matéria nos obriga a adiá-lo para a próxima edição.
Os sócios residentes fora de Paris e os membros correspondentes poderão, assim, acompanhar os trabalhos da Sociedade. Por hoje nos limitamos a dizer que apesar da intenção do Sr. Allan Kardec, expressa no seu discurso de encerramento, de renunciar à presidência, quando da renovação administrativa, foi ele reeleito por unanimidade, menos um voto e uma cédula em branco.
Julgou ele inconveniente persistir na recusa do cargo, diante de um testemunho tão lisonjeiro. Contudo, só o aceitou condicionalmente e sob a reserva expressa de demitir-se de suas funções no momento em que a Sociedade estiver em condições de oferecer a presidência a alguém cujo nome e posição social sejam de natureza a lhe oferecer maior relevo. Seu desejo era poder consagrar todo o seu tempo aos trabalhos e estudos que vem fazendo.



Palestras familiares de além-túmulo

Notícias da guerra

O governo permitiu que os jornais apolíticos dessem notícias da guerra. Como, porém, são abundantes os relatos sob todas as formas, seria inútil repeti-los aqui. A maior novidade para os nossos leitores é uma história vinda do outro mundo.

Embora não seja extraída da fonte oficial do Moniteur, nem por isso oferece menos interesse do ponto de vista dos nossos estudos. Assim, pensamos interrogar algumas das gloriosas vítimas da vitória, presumindo que daí pudéssemos extrair alguma instrução útil. Semelhantes temas de estudo, e principalmente de atualidade, não se apresentam a cada passo. Não conhecendo pessoalmente nenhum dos participantes da última batalha, rogamos aos Espíritos que nos assistem que nos enviassem alguém. Chegamos a pensar que a presença de um estranho seria preferível à de amigos ou de parentes dominados pela emoção. Dada uma resposta afirmativa, obtivemos as seguintes comunicações.

O zuavo de Magenta

1. ─ Rogamos a Deus Todo Poderoso permita ao Espírito de um militar morto na batalha de Magenta vir comunicar-se conosco.
─ Que quereis saber?

2. ─ Onde vos encontráveis quando vos chamamos?
─ Não saberia dizer.

3. ─ Quem vos preveniu que desejávamos conversar convosco?
─ Alguém mais sagaz do que eu.

4. ─ Quando em vida duvidáveis que os mortos pudessem vir conversar com os vivos?
─ Oh! Isso não.

5. ─ Que sensação experimentais por estardes aqui?
─ Isto me causa prazer. Segundo me dizem, tendes grandes coisas a fazer.

6. ─ A que corpo do exército pertencíeis? (Alguém diz a meia-voz: Pela linguagem parece um zuzu27.)
─ Ah! Bem o dizes!

7. ─ Qual era o vosso posto?
─ O de todo o mundo.

8. ─ Como vos chamáveis?
─ Joseph Midard.

9. ─ Como morrestes?
─ Quereis saber tudo sem pagar nada?

10. ─ Ainda bem que não perdestes a jovialidade. Dizei, dizei; nós pagaremos depois. Como morrestes?
─ De uma ameixa que recebi28.

11. ─ Ficastes contrariado com a morte?
─ Palavra que não! Estou bem aqui.

12. ─ No momento da morte percebestes o que houve?
─ Não. Eu estava tão atordoado que não podia acreditar.

NOTA: Isto está de acordo com o que temos observado nos casos de morte violenta. Não se dando conta imediatamente da sua situação, o Espírito não se julga morto. Este fenômeno se explica muito facilmente. É análogo ao dos sonâmbulos, que não acreditam que estejam dormindo. Realmente, para o sonâmbulo, a ideia de sono é sinônima de suspensão das faculdades intelectuais. Ora, como ele pensa, não acredita que dorme. Só mais tarde se convence, quando familiarizado com o sentido ligado a esse vocábulo.

Dá-se o mesmo com um Espírito surpreendido por uma morte súbita, quando nada está preparado para a separação do corpo. Para ele, a morte é sinônimo de destruição, de aniquilamento. Ora, desde que ele vive, sente e pensa, entende que não está morto. É preciso algum tempo para reconhecer-se.

13. ─ No momento de vossa morte, a batalha não havia terminado. Seguistes as suas peripécias?
─ Sim, pois como vos disse, não me julgava morto. Eu queria continuar batendo nos outros cães29.

14. ─ Que sensação experimentastes então?
─ Eu estava encantado, pois me sentia muito leve.

15. ─ Víeis os Espíritos dos vossos camaradas deixando os corpos?
─ Eu nem pensava nisso, pois não me acreditava morto.

16. ─ Em que se transformava, nesse momento, a multidão de Espíritos que perdia a vida no tumulto da batalha?
─ Creio que faziam o mesmo que eu.

17. ─ Encontrando-se reunidos nesse mundo dos Espíritos, que pensavam aqueles que se batiam mais encarniçadamente? Ainda se atiravam uns contra os outros?
─ Sim. Durante algum tempo, e conforme o seu caráter.

18. ─ Reconhecei-vos melhor agora?
─ Sem isto não me teriam mandado aqui.

19. ─ Poderíeis dizer-nos se entre os Espíritos de soldados mortos há muito tempo ainda se encontravam alguns interessados no resultado da batalha? (Rogamos a São Luís que o ajudasse nas respostas, a fim de que, para nossa instrução, fossem tão explícitas quanto possível).
─ Em grande quantidade. É bom que saibais que esses combates e suas consequências são preparados com muita antecedência e que os nossos adversários não se envolveriam em crimes, como fizeram, se a isto não tivessem sido compelidos em razão das consequências futuras, que não tardareis a conhecer.

20. ─ Deveria haver ali Espíritos que se interessavam no sucesso dos austríacos. Haveria então dois campos de batalha entre eles?
─ Evidentemente.

OBSERVAÇÃO: Não parece que estamos vendo aqui os deuses de Homero tomando partido, uns pelos Gregos, outros pelos Troianos? Na verdade, quem eram esses deuses do paganismo, senão os Espíritos que os Antigos haviam transformado em divindade? Não temos razão quando dizemos que o Espiritismo é uma luz que esclarecerá diversos mistérios, a chave de numerosos problemas?

21. ─ Eles exerciam alguma influência sobre os combatentes?
─ Muito considerável.

22. ─ Podeis descrever-nos de que maneira eles exerciam tal influência?
─ Da mesma maneira que todas as influências dos Espíritos se exercem sobre os homens.

23. ─ Que esperais fazer agora?
─ Estudar mais do que o fiz em minha última etapa.

24. ─ Ides voltar como espectador aos combates que ainda serão travados?
─ Ainda não sei. Tenho afeições que me prendem no momento. Contudo, espero de vez em quando dar uma fugida, para me divertir com as surras subsequentes.

25. ─ Que gênero de afeição vos retém ainda?
─ Uma velha mãe doente e sofredora, que chora por mim.

26. ─ Peço que me desculpeis o mau pensamento que me atravessou o espírito,
relativamente à afeição que o retém.
─ Não tem importância. Digo bobagens para vos fazer rir um pouco. É natural que não me tomeis por grande coisa, tendo em vista o regimento medíocre a que pertenci. Ficai tranquilos, eu só me engajei por causa dessa pobre mãe. Mereço um pouco que me tenham mandado a vós.

27. ─ Quando vos encontráveis entre os Espíritos, ouvíeis o rumor da batalha? Víeis as coisas tão claramente como em vida?
─ A princípio eu a perdi de vista, mas depois de algum tempo via muito melhor, porque percebia todas as artimanhas.

28. ─ Pergunto se escutáveis o troar do canhão.
─ Sim.

29. ─ No momento da ação, pensáveis na morte e naquilo em que vos tornaríeis, caso fosseis morto?
─ Eu pensava no que seria de minha mãe.

30. ─ Era a primeira vez que entráveis em fogo?
─ Não, não. E a África?

31. ─ Vistes a entrada dos franceses em Milão?
─ Não.

32. ─ Aqui sois o único dos que morreram na Itália?
─ Sim.

33. ─ Pensais que a guerra durará muito tempo?
─ Não. É fácil e por isso mesmo pouco meritório fazer tal predição.

34. ─ Quando vedes, entre os Espíritos, um dos vossos chefes, ainda o reconheceis como vosso superior?
─ Se ele o for, sim; se não, não.

OBSERVAÇÃO: Na sua simplicidade e no seu laconismo, esta resposta é eminentemente profunda e filosófica. No mundo espírita, a superioridade moral é a única reconhecida. Quem não a teve na Terra, fosse qual fosse a sua posição, não tem, de fato, superioridade nenhuma. Lá o chefe pode estar abaixo do soldado e o patrão abaixo do servidor. Que lição para o nosso orgulho!

35. ─ Pensais na justiça de Deus e vos inquietais por isso?
─ Quem não pensaria nisso? Felizmente não tenho muito o que temer. Eu resgatei, por algumas ações que Deus considerou boas, as poucas leviandades que cometi como zuzu, como dizeis.

36. ─ Assistindo a um combate, poderíeis proteger um de vossos companheiros e desviar dele um golpe fatal?
─ Não. Não podemos fazer isso. A hora da morte é marcada por Deus. Se tem que acontecer, nada o impedirá, do mesmo modo ninguém poderá atingi-la se sua hora não tiver soado.

37. ─ Vedes o General Espinasse?
─ Não o vi ainda. Mas espero vê-lo em breve.


SEGUNDA CONVERSA
(17 DE JUNHO DE 1859)

38. (Evocação).
─ Presente! Firme! Em frente!

39. ─ Lembrai-vos de ter vindo aqui há oito dias?
─ Como não?!

40. ─ Disseste-nos que ainda não tínheis visto o General Espinasse. Como poderíeis reconhecê-lo, já que ele não levou consigo seu uniforme de general?
─ Não, mas eu o conheço de vista. Ademais, não temos uma porção de amigos junto a nós, prontos a nos revelar a senha? Aqui não é como no quartel. A gente não tem medo de dar um encontrão com alguém, e eu vos garanto que só os velhacos ficam sozinhos.

41. ─ Sob que aparência aqui vos encontrais?
─ Zuavo.

42. ─ Se vos pudéssemos ver, como o veríamos?
─ De turbante e culote.

43. ─ Pois bem! Suponhamos que nos aparecêsseis de turbante e culote. Onde teríeis arranjado essas roupas, desde que deixastes as vossas no campo de batalha?
─ Ora, ora! Não sei como é isto mas lenho um alfaiate que mas arranja.

44. ─ De que são feitos o turbante e o culote que usais? Não tendes ideia?
─ Não. Isto é lá com o trapeiro.

OBSERVAÇÃO: Esta questão da vestimenta dos Espíritos, como várias outras não menos interessantes, ligadas ao mesmo princípio, foram completamente elucidadas por novas observações feitas no seio da Sociedade. Daremos notícias disso no próximo número. Nosso bom zuavo não é suficientemente adiantado para resolver sozinho. Foi-nos preciso, para isso, o concurso de circunstâncias que se apresentaram fortuitamente e que nos puseram no caminho certo.

45. ─ Sabeis a razão pela qual nos vedes, ao passo que nós não vos podemos ver?
─ Acredito que vossos óculos estão muito fracos.

46. ─ Não seria por essa mesma razão que não vedes o general em seu uniforme?
─ Sim, mas ele não o veste todos os dias.

47. ─ Em que dias o veste?
─ Ora essa! Quando o chamam ao palácio.

48. ─ Por que estais aqui vestido de zuavo se não vos podemos ver?
─ Simplesmente porque ainda sou zuavo, mesmo depois de cerca de oito anos, e porque entre os Espíritos conservamos essa forma durante muito tempo. Mas isso apenas entre nós. Compreendeis que quando vamos a um mundo muito diferente, como a Lua ou Júpiter, não nos damos ao trabalho de fazer essa toalete toda.

49. ─ Falais da Lua e de Júpiter. Porventura já lá estivestes depois de morto?
─ Não. Não estais me entendendo. Depois da morte nos informamos de muitas coisas. Não nos explicaram uma porção de problemas da nossa Terra? Não conhecemos Deus e os outros seres muito melhor do que há quinze dias? Com a morte, o Espírito sofre uma metamorfose que não podeis compreender.

50. ─ Revistes o corpo deixado no campo de batalha?
─ Sim. Ele não está bonito.

51. ─ Que impressão vos deixou essa vista?
─ De tristeza.

52. ─ Tendes conhecimento de vossa existência anterior?
─ Sim, mas não é suficientemente gloriosa para que possa me pavonear.

53. ─ Dizei-nos apenas o gênero de vida que tínheis.
─ Simples mercador de peles de animais selvagens.

54. ─ Nós vos agradecemos a bondade de ter vindo pela segunda vez.
─ Até breve. Isto me diverte e me instrui. Já que sou bem tolerado aqui, voltarei de boa vontade.


Um oficial superior morto em Magenta

1. ─ (Evocação).
─ Eis-me aqui.

2. ─ Poderíeis dizer como atendestes tão prontamente ao nosso apelo?
─ Eu estava prevenido do vosso desejo.

3. ─ Por quem fostes prevenido?
─ Por um emissário de Luís.

4. ─ Tínheis conhecimento da existência de nossa sociedade?
─ Vós o sabeis.

OBSERVAÇÃO: O oficial em questão tinha realmente ajudado a sociedade a ser registrada.

5. ─ Sob que ponto de vista consideráveis a nossa sociedade, quando ajudastes na sua formação?
─ Eu não estava ainda inteiramente decidido, mas me inclinava muito a crer. Sem os acontecimentos que sobrevieram, certamente teria ido instruir-me no vosso círculo.

6. ─ Há muitas grandes notabilidades que comungam as ideias espíritas, mas não o confessam de público. Seria desejável que pessoas influentes arvorassem abertamente essa bandeira?
─ Paciência. Deus o quer, e desta vez a expressão corresponde à verdade.

7. ─ De que classe influente da sociedade pensais que deverá partir o exemplo?
─ De todas as classes. Inicialmente de algumas, depois de todas.

8. ─ Do ponto de vista do estudo, poderíeis dizer-nos, embora morto mais ou menos na mesma época em que foi morto o zuavo que há pouco aqui esteve, se vossas ideias são mais lúcidas do que as dele?
─ Muito. Aquilo que ele vos pôde dizer testemunhando uma certa elevação foilhe soprado. Ele é muito bom, mas muito ignorante, e um pouco leviano.


9. Ainda vos interessais pelo sucesso das nossas armas?
─ Muito mais do que nunca, pois hoje conheço o objetivo.

10. ─ Podeis definir o vosso pensamento? O objetivo sempre foi confessado publicamente e, sobretudo em vossa posição, deveríeis conhecê-lo?
─ O objetivo estabelecido por Deus, vós o conheceis?

OBSERVAÇÃO: Ninguém ignorará a gravidade e a profundidade desta resposta. Quando vivo, ele conhecia o objetivo dos homens, Como Espírito, vê o que há de providencial nos acontecimentos.

11. ─ De um modo geral, que pensais da guerra?
─ Meu desejo é que progridais rapidamente, para que ela se torne tão impossível quanto inútil.

12. ─ Credes que chegará o dia em que ela será impossível e inútil?
─ Penso que sim, e não duvido. Posso dizer-vos que esse momento não está tão longe quanto pensais, embora não vos dê a esperança de que o vejais.

13. ─ No momento da morte vos reconhecestes imediatamente?
─ Reconheci-me quase que imediatamente, graças às vagas noções que tinha do Espiritismo.

14. ─ Podeis dizer algo a respeito do Sr... também morto na última batalha?
─ Ele ainda está nas redes da matéria. Tem mais trabalho em se desvencilhar. Seus pensamentos não se tinham voltado para este lado.

OBSERVAÇÃO: Assim, o conhecimento do Espiritismo auxilia no desprendimento da alma após a morte e abrevia o período de perturbação que acompanha a separação. Isto é compreensível, pois o Espírito conhecia antecipadamente o mundo em que se encontra.

15. ─ Assististes à entrada de nossas tropas em Milão?
─ Sim, e com alegria. Fiquei encantado com a ovação que acolheu as nossas tropas, a princípio por patriotismo, depois, pelo futuro que as aguarda.

16. ─ Como Espírito podeis exercer alguma influência sobre os planos estratégicos?
─ Credes que isto não tenha sido feito desde o princípio e tendes dificuldades de imaginar por quem?

17. ─ Como foi que os austríacos abandonaram tão rapidamente uma praça forte como Pavia?
─ Por medo.

18. ─ Então estão desmoralizados?
─ Completamente. Ademais, se agimos sobre os nossos num sentido, deveis pensar que sobre eles age uma influência de outra natureza.

OBSERVAÇÃO: Aqui a intervenção dos Espíritos nos acontecimentos é inequívoca. Eles preparam as vias para a realização dos desígnios da Providência. Os Antigos teriam dito que era obra dos Deuses. Nós dizemos que é obra dos Espíritos, por ordem de Deus.

19. ─ Podeis dar a vossa opinião sobre o General Giulay como militar, pondo de lado qualquer sentimento nacionalista?
─ Pobre, pobre general!

20. ─ Voltaríeis com prazer se vos pedíssemos?
─ Estou à vossa disposição e prometo vir, mesmo sem o vosso chamado. Deveis acreditar que a simpatia que tinha por vós não pode senão aumentar. Adeus.




Resposta à réplica do abade chesnel em "L 'Univers"

Em seu número de 28 de maio último, o jornal L’Univers inseriu a resposta que demos ao artigo do Abade Chesnel sobre o Espiritismo, fazendo-a seguir de uma réplica do abade. A esse segundo artigo, que reedita os argumentos do primeiro, sem a urbanidade da forma a que todo mundo concordou em fazer justiça, não poderíamos responder senão repetindo quanto já tínhamos dito, o que nos parece completamente inútil. O Abade Chesnel não mede esforços para provar que o Espiritismo é, deve ser e não pode deixar de ser senão um religião nova, porque dele decorre uma filosofia e porque nele nos ocupamos da constituição física e moral dos mundos. Sob esse aspecto, todas as filosofias seriam religiões. Ora, como são abundantes os sistemas e que têm partidários mais ou menos numerosos, isto restringiria singularmente o círculo do catolicismo. Não sabemos até que ponto seria imprudente e perigoso proclamar uma tal doutrina, por que seria provocar uma cisão que não existe. É pelo menos dar a ideia. Observai bem a que consequências chegais. Quando a Ciência contestou o sentido do texto bíblico dos seis dias da Criação, lançaram anátemas; disseram que era um ataque à religião. Hoje, que os fatos deram razão à Ciência; que já não há meios de contestá-los, a não ser negando a luz, a Igreja se pôs de acordo com a Ciência. Suponhamos que então se tivesse dito que aquela teoria científica era uma religião nova, uma seita, porque parecia em contradição com os livros sagrados; porque destruía uma interpretação dada há séculos. Disso resultaria que não era possível ser católico e adotar essas ideias novas.

Pensemos, pois, a que se reduziria o número dos católicos, se fossem excluídos todos os que não acreditam que Deus tenha feito a Terra em seis vezes vinte e quatro horas.

Dá-se o mesmo com o Espiritismo. Se o considerardes como uma religião nova, é que aos vossos olhos ele não é católico. Ora, acompanhai o meu raciocínio. De duas uma: ou é uma realidade, ou é uma utopia. Se for uma utopia, não há preocupação, porque cairá por si mesmo. Se for uma realidade, nem todos os raios o impedirão de ser, do mesmo modo que outrora a Terra não foi impedida de girar. Se há verdadeiramente um mundo invisível que nos circunda; se podemos comunicarnos com esse mundo e dele obter ensinamentos sobre o estado de seus habitantes ─ e nisto está todo o Espiritismo ─ em pouco tempo isto parecerá tão natural como ver o Sol ao meio-dia ou encontrar milhares de seres vivos e invisíveis numa gota de água cristalina. Essa crença será tão vulgarizada que sereis forçados a vos render à evidência. Se aos vossos olhos essa crença é uma religião nova, ela está fora do catolicismo, pois não pode ser simultaneamente a religião católica e uma religião nova. Se pela força das coisas e da evidência ela se generaliza, e não pode deixar de ser assim, pois se trata de uma lei da Natureza, do vosso ponto de vista não haverá mais católicos e vós mesmos não sereis mais católico, porque sereis forçado a agir
como todos.

Eis, senhor abade, o terreno para o qual nos arrasta a vossa doutrina, e ela é tão absoluta que já me gratificais com o título de sumossacerdote dessa religião, honra de que, realmente, eu não suspeitava. Mas ides mais longe. Na vossa opinião, todos os médiuns são os sacerdotes dessa religião. Aqui eu vos detenho em nome da lógica. Até aqui me havia parecido que as funções sacerdotais eram facultativas; que se era sacerdote apenas por um ato da própria vontade; que não se era malgrado seu e em virtude de uma faculdade natural. Ora, a faculdade dos médiuns é uma faculdade natural que depende da sua organização, como a faculdade sonambúlica; que não requer sexo, nem idade, nem instrução, pois a encontramos nas crianças, nas senhoras e nos velhos; entre os sábios, como entre os ignorantes. Seria compreensível que rapazes e moças fossem sacerdotes sem o querer e sem o saber?

Realmente, senhor abade, é abusar do direito de interpretar as palavras. Como eu disse, o Espiritismo está fora de todas as crenças dogmáticas, com as quais não se preocupa. Nós o consideramos uma ciência filosófica, que nos explica uma porção de coisas que não compreendemos e, por isto mesmo, em vez de abafar as ideias religiosas, como certas filosofias, fá-las brotar naqueles em que elas não existem. Se, entretanto, quiserdes elevá-lo a todo custo ao plano de uma religião, vós o atirais num caminho novo. É o que compreendem perfeitamente muitos eclesiásticos que, longe de empurrar para o cisma, esforçam-se por conciliar as coisas, em virtude deste raciocínio: se há manifestações do mundo invisível, isto não pode ser senão pela vontade de Deus e nós não podemos ir contra a sua vontade, a menos se dissermos que neste mundo acontece alguma coisa sem a sua permissão, o que seria uma impiedade. Se eu tivesse a honra de ser sacerdote, disso me serviria em favor da religião. Faria disso uma arma contra a incredulidade e diria aos materialistas e ateus: Pedis provas? Ei-las, é Deus que as manda.

Variedades
Lord Castlereagh e Bernadotte


Há cerca de quarenta anos aconteceu a seguinte aventura ao Marquês de Londonderry, mais tarde Lord Castlereagh. Fora visitar um gentil-homem das relações de um de seus amigos, que habitava, no Norte da Irlanda, um desses velhos castelos a que os romancistas dão preferência para teatro das aparições. O aspecto do apartamento do marquês estava em perfeita harmonia com o edifício. Com efeito, o madeiramento ricamente esculpido e enegrecido pelo tempo; o enorme arco da chaminé, semelhante à entrada de um túmulo; a tapeçaria pesada e cheia de pó, que tapava todas as aberturas e circundava o leito, eram bem de molde a dar uma feição melancólica aos pensamentos.

Lord Londonderry examinou o seu quarto e travou conhecimento com os antigos senhores do castelo que pareciam esperar a sua saudação de pé, retratados nas telas fixadas nas paredes. Depois de ter despedido o criado de quarto, foi deitarse.

Apenas apagara a vela, logo percebeu um raio de luz que iluminava a abóbada de seu leito. Convencido de que não havia fogo na grelha; de que as cortinas estavam fechadas e de que, minutos antes, o quarto se achava mergulhado na mais completa escuridão, supôs que um intruso ali houvesse penetrado. Voltando-se rapidamente para o lado de onde vinha a luz, com grande espanto viu a figura de uma bela criança, cercada de um halo.

Persuadido da integridade de suas faculdades, mas desconfiando de uma mistificação de um dos numerosos hóspedes do castelo, Lord Londonderry avançou para a aparição, que se afastava diante dele. À medida que ele se aproximava ela recuava. Chegando ao sombrio arco da imensa lareira, sumiu no chão. Lord Londonderry não dormiu a noite inteira.

Resolveu não fazer nenhuma alusão ao que lhe tinha acontecido, até poder examinar atentamente as feições de todas as pessoas da casa. Ao café, procurou em vão surpreender alguns sorrisos disfarçados, olhares de conivência e piscar de olhos que geralmente denunciam os autores dessas conspirações domésticas.

A conversação seguiu seu curso ordinário. Estava animada e nada revelava uma mistificação. Por fim o marquês não pôde resistir ao desejo de contar o que ele tinha visto. O senhor do Castelo observou que o relato de Lord Londonderry deveria parecer muito estranho aos que, desde longa data, não visitavam aquele castelo e não conheciam as lendas da família. Então, voltando-se para Lord Londonderry, disse:

“Vistes a criança brilhante... Alegrai-vos, pois é presságio de muita sorte. Entretanto eu preferiria que não se tratasse dessa aparição”.

Em outra ocasião, Lord Castlereagh viu a criança brilhante na Câmara dos Comuns. No dia de seu suicídio teve ele uma aparição semelhante.* Sabe-se que esse Lord, um dos principais membros do Ministério Harrowby e o mais encarniçado perseguidor de Napoleão durante o seu revés, seccionou a carótida a 22 de agosto de 1823, morrendo instantaneamente.

Dizem que a sorte espantosa de Bernadotte lhe havia sido predita por uma necromante famosa, que também anunciara a de Napoleão I e que desfrutava da confiança da Imperatriz Josefina.

Bernadotte estava convencido de que uma espécie de divindade tutelar se dedicava à sua proteção. Talvez as tradições maravilhosas que cercavam o seu berço não fossem estranhas a esse pensamento que jamais o abandonava. Na verdade conta-se na sua família uma crônica antiga, segundo a qual uma fada, esposa de um de seus antepassados, havia predito que um rei ilustraria a sua posteridade.

Eis um fato que prova quanto o maravilhoso havia conservado o seu domínio sobre o espírito do Rei da Suécia. Ele queria cortar à espada as dificuldades que lhe opunha a Noruega e enviar o seu filho Oscar à frente de um exército para submeter os rebeldes. O Conselho de Estado fez viva oposição a esse projeto. Um dia em que Bernadotte acabara de ter uma discussão acalorada sobre o assunto, montou a cavalo e afastou-se da Capital a galope. Depois de um longo percurso chegou às orlas de uma espessa floresta. De repente apresentou-se aos seus olhos uma velha vestida de modo muito bizarro e com os cabelos desgrenhados.

─ “Que quereis?” perguntou bruscamente o rei.
A feiticeira respondeu sem se desconcertar:

─ “Se Oscar combater nesta guerra que premeditas, não dará os primeiros golpes, mas os receberá.”
Tocado pela aparição e por suas palavras, Bernadotte voltou ao palácio. No dia seguinte, tendo ainda no rosto os sinais de uma longa vigília cheia de agitação, apresentou-se ao Conselho e disse: “Mudei de ideia. Negociaremos a paz, mas quero condições honrosas”.

Em sua Vie de M. de Rancé, fundador da Ordem da Trapa, conta Chateaubriand que um dia esse homem célebre passeava pela avenida do Castelo de Veretz, quando lhe pareceu ver um grande incêndio que consumia o aviário. Voou para lá. O fogo diminuía à medida que ele se aproximava. A certa distância o braseiro transformouse num lago de fogo, no meio do qual erguia-se a meio corpo uma mulher devorada pelas chamas.

Tomado de pavor, voltou correndo para casa. Chegou exausto e atirou-se semimorto sobre a cama.

Só muito tempo depois ele contou essa visão, cuja simples lembrança o fazia empalidecer.

Esses mistérios pertencem à loucura? Parece que o Sr. Brière de Boismont os atribui a uma ordem mais elevada de coisas, com o que estou de acordo. Isto não desagrada ao meu amigo Dr. Lélut. Prefiro acreditar no gênio familiar de Sócrates e nas vozes de Joana d’Arc do que na demência do filósofo e na da virgem de Domrémy.

Há fenômenos que ultrapassam a inteligência; que desconcertam as ideias recebidas, mas diante de cuja evidência é preciso que se incline, humilde, a lógica humana. Nada é tão brutal e principalmente irrecusável como um fato. Tal é a nossa opinião e principalmente a de Guizot:

“Qual a grande questão, a questão suprema que hoje preocupa os Espíritos? É a questão colocada entre os que reconhecem e os que não reconhecem uma ordem sobrenatural, verdadeira e soberana, embora impenetrável à razão humana; a questão levantada, para dar às coisas o seu verdadeiro nome, entre o supernaturalismo e o racionalismo. De um lado os incrédulos, os panteístas, os céticos de toda espécie, os puros racionalistas; do outro os cristãos.

“Para a nossa salvação presente e futura é necessário que a fé na ordem sobrenatural; que o respeito e submissão à ordem sobrenatural penetrem no mundo e na alma humana; nos grandes Espíritos como nos Espíritos simples; nas regiões mais elevadas como nas mais humildes. A influência real, verdadeiramente eficaz e regeneradora das crenças religiosas tem essa condição. Fora daí são superficiais e estão muito perto de tornar-se vãs”. (Guizot)

Não, a morte não separa para sempre, mesmo neste mundo, os eleitos que Deus recebeu em seu seio e os exilados que ficaram neste vale de lágrimas, In hac lacrymarum valle, para empregar as palavras melancólicas da Salve Rainha. Há horas misteriosas e benditas em que os mortos bem-amados se debruçam sobre os que choram e lhes murmuram ao ouvido palavras de consolo e de esperança. Guizot, esse Espírito severo e metódico, tem razão de proclamar: “Fora daí as crenças religiosas são superficiais e estão muito perto de tornar-se vãs”. SAM. (Extraído do La Patrie de 5 de junho de 1859)



___________________________________________
* Forbes Winslow – Anatomy of suicide, 1 vol. in-8o, p. 242. London, 1840.



O que é o Espiritismo?

INTRODUÇÃO AO CONHECIMENTO DO MUNDO INVISÍVEL OU DOS ESPÍRITOS, CONTENDO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA ESPÍRITA E A RESPOSTA A ALGUMAS OBJEÇÕES PREJUDICIAIS.

por ALLAN KARDEC

Autor de O Livro dos Espíritos e diretor da Revista Espírita. Grand in-8 - Preço: 60 c. *

As pessoas que só possuem do Espiritismo um conhecimento superficial são naturalmente levadas a fazer certas perguntas, cujo estudo completo lhes daria sem dúvida a solução, mas lhes falta tempo e muitas vezes vontade para se entregarem a observações seguidas. Desejariam, antes de empreender essa tarefa, ao menos saber do que se trata e se vale a pena se ocuparem com isso. Assim, pareceu-nos útil apresentar, num quadro restrito, a resposta a algumas perguntas fundamentais que nos são dirigidas diariamente. Para o leitor será uma primeira iniciação e para nós, tempo ganho pela dispensa de constantes repetições das mesmas coisas. A forma de diálogo pareceu-nos mais conveniente, porque não tem a aridez da forma puramente dogmática.

Terminamos esta introdução por um resumo que permitirá, numa leitura rápida, apreender o conjunto dos princípios fundamentais da Ciência. Aqueles que depois desta curta exposição julgarem o assunto digno de sua atenção, poderão aprofundálo com conhecimento de causa. Na maioria das vezes as objeções nascem das ideias falsas que adquirimos a priori sobre aquilo que não conhecemos. Retificar tais ideias é antecipar-se às objeções. Eis o objetivo a que nos propusemos ao publicar este opúsculo.

As pessoas estranhas ao Espiritismo nele encontrarão os meios de, em pouco tempo e com pouca despesa, adquirir uma ideia do assunto; as que já são iniciadas, a maneira de resolver as principais dificuldades que lhes são propostas. Contamos com o concurso de todos os amigos desta ciência, auxiliando na divulgação desse curto resumo.

ALLAN KARDEC

_____________________________________
* Todas as obras do Sr. Allan Kardec se acham nas casas Ledoyen, Dentu e na redação da Revista.



TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados