Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Março

Estudo sobre os Médiuns

Como intérpretes das comunicações espíritas, os médiuns têm um papel de extrema importância e nunca seria demasiada a atenção dada ao estudo de todas as causas que podem influenciá-los, e isto não só em seu próprio interesse, como também no daqueles que, não sendo médiuns, deles se servem como intermediários.

Poderão assim julgar o grau de confiança que merecem as comunicações por eles recebidas.

Todos, já o dissemos, são mais ou menos médiuns. Mas convencionou-se dar esse nome aos que apresentam manifestações patentes e, por assim dizer, facultativas. Ora, entre esses, as aptidões são muito diversas. Pode-se dizer que cada um tem a sua especialidade. Ao primeiro exame, duas categorias se desenham muito nitidamente: os médiuns de efeitos físicos e os de comunicações inteligentes. Estes últimos apresentam numerosas variedades, das quais as principais são: os escreventes ou psicógrafos, os desenhistas, os falantes, os audientes e os videntes. Os médiuns poetas, músicos e poliglotas constituem subclasses dos escreventes e falantes.

Não voltaremos às definições destes diversos gêneros. Queremos apenas e sucintamente lembrar o conjunto, para maior clareza.

De todos os gêneros de médiuns, o mais comum é o psicógrafo, e isso por ser a modalidade mais fácil de se adquirir pelo exercício. Eis por que, e com razão, para ela se dirigem geralmente os desejos e os esforços dos aspirantes. Também apresenta duas variedades, igualmente encontradas nas outras categorias: os escreventes mecânicos e os escreventes intuitivos. Nos primeiros o impulso da mão independe da vontade. Ela se move por si, sem que o médium tenha consciência do que escreve. Seu pensamento pode até mesmo ser dirigido para outra coisa. No médium intuitivo o Espírito age sobre o cérebro; seu pensamento atravessa, se assim podemos dizer, o pensamento do médium, sem que haja confusão. Em consequência, ele tem consciência do que escreve, por vezes mesmo uma consciência prévia, porque a intuição precede o movimento da mão; entretanto, o pensamento expresso não é o do médium. Uma comparação muito simples nos dá a compreender o fenômeno. Quando queremos conversar com alguém cuja língua não sabemos, servimo-nos de um intérprete. O intérprete tem consciência do pensamento dos interlocutores; ele deve entendê-lo, para poder expressá-lo; no entanto, esse pensamento não é dele. Assim, o papel do médium intuitivo é o mesmo de um intérprete entre nós e o Espírito. Ensinou-nos a experiência que os médiuns mecânicos e os intuitivos são igualmente bons, igualmente aptos para a recepção e a transmissão de boas comunicações. Como meio de convicção, os primeiros têm mais valor, sem dúvida, mas quando a convicção já foi adquirida, não há preferência útil.

A atenção deve ser inteiramente concentrada sobre a natureza das comunicações, isto é, sobre a aptidão do médium para receber as dos bons e as dos maus Espíritos.

Dizemos, então, que ele é bem ou mal assistido. Nisto se resume toda a questão, e essa questão é capital, desde que só ela pode determinar o grau de confiança que ele merece. É o que resulta do estudo e da observação, pelo que recomendamos nosso artigo precedente sobre os escolhos dos médiuns.

Com o médium intuitivo, a dificuldade está em se distinguir os seus pensamentos daqueles que lhe são sugeridos. Essa dificuldade existe também para ele. O pensamento sugerido lhe parece tão natural que ele o toma frequentemente pelo seu próprio e por isso duvida de sua faculdade. O meio de convencê-lo e de convencer os outros é um exercício frequente. Então, no número das evocações de que participará, apresentar-se-ão mil e uma circunstâncias; uma porção de informações íntimas, de particularidades das quais ele não poderia ter nenhum conhecimento prévio e que, de maneira irrecusável, denotarão total independência de seu Espírito.

As diferentes variedades de médiuns repousam sobre aptidões especiais, cujo princípio até agora não conhecemos bem. À primeira vista e para as pessoas que não fizeram um estudo sistemático desta ciência, parece que não é mais difícil a um médium escrever versos do que escrever prosa. Dir-se-á ─ sobretudo se ele for mecânico ─ que tanto pode o Espírito fazê-lo escrever numa língua estranha, quanto desenhar ou ditar música. Entretanto, não é assim. Embora a todo momento estejamos vendo desenhos, versos e músicas feitos por médiuns que, em estado normal, não são desenhistas, nem poetas, nem músicos, o certo é que nem todos são aptos à produção dessas coisas. A despeito de sua ignorância, possuem uma faculdade intuitiva e uma flexibilidade que os transforma nos mais dóceis instrumentos. Foi o que muito bem exprimiu Bernard Palissy, quando lhe perguntaram por que havia escolhido o Sr. Victorien Sardou, que não sabia desenhar, para fazer seus admiráveis desenhos.
“É porque eu o acho mais flexível”, respondeu ele. O mesmo acontece com outras aptidões. E ─ coisa interessante! ─ vimos Espíritos recusarem-se a ditar versos a médiuns que conheciam a arte poética, ao passo que os ditaram, e encantadores, a outros que lhes desconheciam as regras. Isto prova, ainda uma vez, que os Espíritos têm livre-arbítrio e que vã será a tentativa de submetê-los a nossos caprichos.

Resulta das observações precedentes que o médium deve seguir o impulso que lhe é dado, conforme a sua aptidão; que deve procurar aperfeiçoar essa aptidão pelo exercício; que será inútil querer adquirir a que lhe falta, porque isto seria talvez prejudicial à que possui. Forçando o nosso talento, nada faríamos com graça, diz La Fontaine, ao que podemos acrescentar: nada faríamos de bom. Quando um médium possui uma faculdade preciosa, com a qual pode tornar-se verdadeiramente útil, que se contente com ela e não busque a vã satisfação de seu amor-próprio numa variante que enfraqueceria a faculdade primordial. Se esta deve ser transformada, como frequentemente acontece, ou se ele deve adquirir uma nova, tudo virá espontaneamente e não por efeito de sua vontade.

A faculdade de produzir efeitos físicos constitui uma categoria bem distinta, que raramente se alia às comunicações inteligentes, sobretudo às de elevado alcance. Sabe-se que os efeitos físicos são peculiares aos Espíritos de classes inferiores, assim como entre nós a exibição de força aos saltimbancos. Ora, os Espíritos batedores estão nessa classe inferior; agem o mais das vezes por conta própria, para divertir-se ou vexar os outros, mas algumas vezes por ordem dos Espíritos superiores, que deles se servem, como nós dos trabalhadores. Seria absurdo pensar que Espíritos superiores viessem divertir-se em bater nas mesas ou fazê-las girar. Eles usam tais meios, dizemos nós, através de intermediários, quer para convencer-nos, quer para comunicar-se conosco, desde que não disponhamos de outros meios; mas os abandonam logo que possam agir de modo mais rápido, mais cômodo e mais direto, assim como nós abandonamos o telégrafo aéreo desde que tivemos o telégrafo elétrico. De modo algum devem ser desprezados os efeitos físicos, desde que para muitos representam um meio de convicção. Além disso oferecem precioso material de estudo sobre as forças ocultas. É de notar-se, entretanto, que os Espíritos geralmente recusam-nos aos que deles não necessitam ou, pelo menos, aconselham-nos a não se ocuparem com eles de modo especial. Eis o que a respeito escreveu o Espírito de São Luís, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:

“Zombaram das mesas girantes, mas não zombarão jamais da filosofia, da sabedoria e da caridade que brilham nas comunicações sérias. Aquelas foram o vestíbulo da Ciência, onde, ao entrar, devemos deixar os preconceitos, assim como quem deixa a capa. Nunca sereis por demais aconselhados a transformar as vossas reuniões em centros sérios. Que alhures se façam demonstrações físicas; que alhures se veja; que alhures se escute, mas que entre vós haja compreensão e amor. Que esperais parecer aos olhos dos Espíritos superiores, quando fazeis girar uma mesa?

Ignorantes! O sábio passa o seu tempo a recordar o abc da Ciência? Se vos virem, ao contrário, procurando obter comunicações inteligentes e instrutivas, considerar-vos-ão homens sérios, em busca da verdade”.

Impossível é resumir de modo mais lógico e mais preciso o caráter dos dois gêneros de manifestações. Aquele que recebe comunicações elevadas deve-as à assistência dos bons Espíritos. É uma prova da simpatia dos mesmos por ele.

Renunciar a elas para ocupar-se com efeitos materiais é trocar uma sociedade seleta por outra inferior. Querer aliar as duas coisas é atrair seres antipáticos e, nesse conflito, é provável que se vão os bons e que fiquem os maus.

Longe de nós desprezar os médiuns de efeitos físicos. Eles têm a sua razão de ser e o sua finalidade providencial. Prestam incontestáveis serviços à Ciência Espírita, mas quando um médium possui uma faculdade que o põe em contato com seres superiores, não compreendemos que dela abdique, ou que deseje outras, a não ser por ignorância. Muitas vezes, o desejo de ser tudo faz com que acabe por não ser coisa alguma”.

Médiuns interesseiros

Em nosso artigo sobre os escolhos dos médiuns colocamos a cupidez no rol dos defeitos que podem dar acesso aos Espíritos imperfeitos. Não será inútil desenvolver este assunto. Na primeira linha dos médiuns interesseiros devem colocar-se aqueles que poderiam fazer de sua faculdade uma profissão, dando o que se costuma chamar de sessões ou consultas remuneradas. Não os conhecemos, pelo menos na França.

Como, porém, tudo pode tornar-se objeto de exploração, não seria de admirar que um dia quisessem explorar os Espíritos. Resta saber como eles encarariam o fato, se acaso se tentasse introduzir tal especulação. Mesmo sem iniciação no Espiritismo, compreende-se quanto isto representa de aviltante. Mas quem quer que conheça, por pouco que seja, as difíceis condições nas quais os bons Espíritos se comunicam conosco e quão pouco é preciso para afastá-los, bem como a sua repulsa por tudo quanto representa interesse egoístico, jamais poderá admitir que os Espíritos superiores sirvam ao capricho do primeiro que os evoque a tanto por hora. O simples bom-senso repele uma tal suposição. Não seria ainda uma profanação evocar seu pai, sua mãe, seus filhos e seus amigos por semelhante meio? Sem dúvida que dessa maneira se podem ter comunicações, mas só Deus sabe de que fonte! Os Espíritos levianos, mentirosos, travessos, zombeteiros e toda a caterva de Espíritos inferiores vêm sempre. Estão sempre prontos a tudo responder. São Luís nos dizia outro dia, na Sociedade: Evocai um rochedo e ele vos responderá.

Quem quiser comunicações sérias deve antes de tudo informar-se quanto à natureza das simpatias do médium com os seres de além-túmulo. Aquelas que são dadas pela ambição do lucro só podem inspirar uma confiança bem medíocre.

Médiuns interesseiros não são apenas os que poderiam exigir uma determinada importância. O interesse não se traduz apenas na expectativa de um lucro material, mas também nos pontos de vista ambiciosos de qualquer natureza, sobre os quais pode fundar-se a esperança pessoal. É ainda um tropeço que os Espíritos zombeteiros sabem utilizar muito bem, e de que se aproveitam com uma destreza e com uma desfaçatez verdadeiramente notáveis, acalentando enganadoras ilusões naqueles que assim se colocam sob sua dependência.

Em resumo, a mediunidade é uma faculdade dada para o bem e os bons Espíritos se afastam de quem quer que pretenda transformá-la em escada para alcançar seja o que for que não corresponda aos desígnios da Providência. O egoísmo é a chaga da Sociedade. Os bons Espíritos combatem-no e, portanto, não é possível supor que venham incentivá-lo. Isto é tão racional, que sobre tal ponto seria inútil insistir.

Os médiuns de efeitos físicos não estão nas mesmas condições. Sendo seus efeitos produzidos por Espíritos inferiores, pouco escrupulosos quanto aos sentimentos morais, um médium dessa natureza que quisesse explorar a sua faculdade poderia encontrar os que o assistissem sem muita repugnância. Mas teríamos ainda outro inconveniente. Assim como o médium de comunicações inteligentes, o de efeitos físicos não recebeu sua faculdade para seu prazer. Ela lhe foi dada com a condição de usá-la bem, Se dela abusar, ela lhe pode ser retirada ou revertida em seu prejuízo porque, afinal de contas, os Espíritos inferiores estão sujeitos às ordens de Espíritos superiores. Os inferiores gostam de mistificar, mas não gostam de ser mistificados. Se de boa vontade se prestam às brincadeiras e questões de curiosidade, não gostam, como os demais, de serem explorados e, a cada momento, provam que têm vontade própria; que agem quando e como bem entendem, o que faz com que o médium de efeitos físicos esteja ainda menos seguro da regularidade das manifestações do que os médiuns escreventes. Pretender produzi-las em dias e horas predeterminados seria dar mostras de profunda ignorância.

Que fazer então para ganhar o seu dinheiro? Simular os fenômenos. Eis o que pode acontecer, não só aos que disso fizessem uma profissão declarada, como também às criaturas aparentemente simples, que se limitassem a receber uma retribuição qualquer dos visitantes. Se o Espírito nada produz, eles produzem. A imaginação é muito fecunda quando se trata de ganhar dinheiro. É uma tese que desenvolveremos em artigo especial, a fim de prevenir quanto à fraude.

Concluímos, de tudo quanto precede, que o mais absoluto desinteresse é a melhor garantia contra o charlatanismo, pois não há charlatães desinteressados. Se o desinteresse nem sempre assegura a boa qualidade das comunicações inteligentes, arrebata dos maus Espíritos um poderoso meio de ação e fecha a boca a certos detratores.

Fenômeno de transfiguração

O fato que se segue foi extraído de uma carta que em setembro de 1857 recebemos de um dos nossos correspondentes em Saint-Etienne. Depois de falar de várias comunicações de que foi testemunha, ele acrescenta:

“Fato dos mais admiráveis se passa numa das famílias de nossas relações. Das mesas girantes passaram à poltrona que fala; depois um lápis foi fixado ao pé da poltrona e ela indicou a psicografia; praticaram-na durante muito tempo, mais como distração do que como coisa séria. Por fim a escrita designou uma das moças da casa e ordenou que lhe passassem as mãos sobre a cabeça, depois de fazê-la deitar-se. Ela adormeceu quase imediatamente e depois de um certo número de experiências, transfigurou-se. A moça tomava os traços, a voz e os gestos de parentes mortos; dos avós que jamais havia visto e de um irmão falecido há alguns meses. As transfigurações ocorriam sucessivamente na mesma sessão. Ela falava um dialeto que não é o de nossa época, segundo me disseram, pois não conheço o atual nem o outro. O que posso afirmar é que numa sessão onde havia tomado a aparência de seu irmão, vigoroso, folgazão, me deu essa jovem de treze anos um rude aperto de mão. Há aproximadamente 18 meses a dois anos o fenômeno se repete constantemente e da mesma maneira, com a única diferença que agora se produz natural e espontaneamente, sem imposição de mãos”.

Embora bastante raro, este fenômeno não é excepcional. Já nos falaram de diversos casos semelhantes e nós mesmo testemunhamos algo parecido em sonâmbulos no estado de êxtase, bem como nalguns extáticos que não se encontravam em estado sonambúlico. Por outro lado, é certo que as emoções violentas operam uma mudança na fisionomia, dando-lhe uma expressão completamente diferente daquela do estado normal. Não vemos, também, criaturas cujos traços móveis se prestam, de acordo com a vontade, a modificações que lhes dão a aparência de outras pessoas? Vemos por aí que a rigidez da face não é tal que não possa prestar-se a modificações passageiras mais ou menos profundas. Nada há, pois, de admirar que um fato semelhante possa ocorrer neste caso, quiçá por uma causa independente da vontade.

Eis as respostas que a respeito disto obtivemos de São Luís na sessão da Sociedade no dia 25 de fevereiro último.

1. ─ O caso de transfiguração de que acabamos de falar é verdadeiro?
─ Sim.

2. ─ Nesse fenômeno existe um efeito material?
─ O fenômeno de transfiguração pode dar-se de modo material, a tal ponto que as suas diversas fases poderiam ser reproduzidas em daguerreotipia.

3. ─ Como se produz esse efeito?
─ A transfiguração, como o entendeis, não passa de uma modificação da aparência, uma mudança ou uma alteração dos contornos, que pode ser produzida pela ação do próprio Espírito sobre o seu envoltório ou por uma influência exterior.
O corpo nunca muda, mas, por força de uma contração nervosa, reveste aparências diversas.

4. ─ Podem os espectadores ser enganados por uma falsa aparência?
─ Pode também acontecer que o perispírito represente o papel que bem conheceis. No caso citado houve contração nervosa, muito ampliada pela imaginação. Aliás, esse fenômeno é muito raro.

5. ─ O papel do perispírito seria análogo ao que ocorre nos fenômenos de bicorporeidade?
─ Sim.

6. ─ Então nos casos de transfiguração é necessário que haja um desaparecimento do corpo real, de modo que os espectadores não vejam senão o perispírito sob forma diferente?
─ Não propriamente desaparecimento físico, mas oclusão. Entendei-vos sobre os vocábulos.

7. ─ Do que acabais de dizer parece podermos concluir que no fenômeno de transfiguração pode haver dois efeitos: I ─ alteração dos traços do corpo real, por força de uma contração nervosa; II ─ aparência variável do perispírito, tornado visível. É isso mesmo?
─ Certamente.

8. ─ Qual a causa primeira desse fenômeno?
─ A vontade do Espírito.

9. ─ Todos os Espíritos podem produzi-lo?
─ Não. Os Espíritos nem sempre podem fazer o que querem.

10. ─ Como explicar a força anormal dessa moça, transfigurada na pessoa de
seu irmão?
─ Não possui o Espírito uma grande força? Aliás, é a do corpo em seu estado normal.

OBSERVAÇÃO: Este fato nada tem de surpreendente. Muitas vezes vemos pessoas muito fracas, dotadas momentaneamente de uma força prodigiosa, devida a uma superexcitação.

11. ─ Desde que, no fenômeno de transfiguração, o olho do observador pode ter uma imagem diferente da realidade, dar-se-á o mesmo em certas manifestações físicas? Por exemplo: quando uma mesa se ergue sem contato das mãos e a vemos acima do solo, é realmente a mesa que se desloca?
─ Ainda perguntais?

12. ─ O que a levanta?
─ A força do Espírito.

OBSERVAÇÃO: Este fenômeno já foi explicado por São Luís e dele tratamos de modo completo nos números de maio e junho de 1858, a propósito da teoria das manifestações físicas. Disseram-nos que neste caso a mesa ou qualquer outro objeto que se move está animado de uma vida factícia momentânea que lhe permite obedecer à vontade do Espírito.

Algumas pessoas quiseram ver no fato uma simples ilusão de óptica que, por uma espécie de miragem, as faria ver uma mesa no espaço, quando realmente ela estava no solo. Se assim fosse, a coisa não seria menos digna de atenção. É curioso como aqueles que querem contestar ou criticar os fenômenos espíritas expliquem-nos por causas que também seriam verdadeiros prodígios e igualmente difíceis decompreender. Mas por que tratar o assunto com tanto desdém? Se a causa que apontam é real, por que não aprofundá-la? O físico procura conhecer a causa do menor movimento da agulha magnética; o químico, da mais ligeira mudança na atração molecular14. Por que, então, ver com indiferença fenômenos tão estranhos como esses de que falamos, quer sejam eles consequência de simples desvio do raio visual, quer uma nova aplicação das leis conhecidas? Isto não é lógico. Certamente não seria impossível que por um efeito de óptica análogo ao que nos faz ver um objeto na água mais alto do que realmente está, por causa da refração dos raios luminosos, uma mesa nos parecesse no espaço quando estivesse no solo. Há, porém, um fato que resolve definitivamente o problema. É quando a mesa cai ruidosamente no chão e se quebra. Isto não parece uma ilusão de óptica.

Voltemos à transfiguração.

Se uma contração muscular pode modificar os traços fisionômicos, não o será senão dentro de certos limites; mas certamente se uma mocinha toma a aparência de um velho, nenhum efeito fisiológico lhe faria criar barba. Então devemos procurar uma causa alhures. Recordando quanto dissemos anteriormente a respeito do papel do perispírito em todos os fenômenos de aparição, mesmo de pessoas vivas, compreender-se-á que aí está a chave do fenômeno de transfiguração. Com efeito, desde que o perispírito pode isolar-se do corpo; que pode tornar-se visível; que, por sua extrema sutileza, pode tomar diversas aparências, conforme a vontade do Espírito, concebe-se sem dificuldade que assim se passe com uma pessoa transfigurada: o corpo continua o mesmo; só o perispírito mudou de aspecto. Mas então, perguntareis, em que se torna o corpo? Por que motivo o observador não vê uma imagem dupla, isto é, de um lado o corpo real e do outro o perispírito transfigurado? Fatos estranhos, dos quais falaremos dentro em pouco, provam que por força da fascinação que, em tais circunstâncias, se opera no observador, o corpo real pode, de alguma sorte, ser oculto pelo perispírito.

O fenômeno que é objeto deste artigo já nos foi comunicado há muito tempo. Se dele ainda não havíamos falado é que não nos propomos transformar a nossa Revista em simples catálogo de fatos destinados a alimentar a curiosidade; uma árida compilação sem apreciação e sem comentários. Nossa tarefa seria então muito fácil, mas nós a levamos mais a sério. Antes de mais nada, dirigimo-nos aos homens de raciocínio; àqueles que como nós querem compreender as coisas, tanto mais que isto é possível. Ora, ensinou-nos a experiência que os fatos, por mais estranhos e multiplicados que sejam, não são elementos de convicção. Quanto mais estranhos forem, menos convincentes serão. Quanto mais extraordinário é um fato, tanto mais anormal se nos afigura e menos dispostos estaremos a acreditar. Queremos ver, e tendo visto, ainda duvidamos; desconfiamos de ilusão e de conivência. Já isto não acontece quando para os fatos encontramos uma causa plausível. Vemos diariamente criaturas que atribuíam os fenômenos espíritas à imaginação e à credulidade cega e que hoje são adeptos fervorosos, precisamente porque agora tais fenômenos não lhes repugnam à razão: explicam-nos, compreendem a sua possibilidade e creem, mesmo sem ter visto.

Tendo que falar de certos fatos, deveríamos esperar que os princípios fundamentais estivessem suficientemente desenvolvidos, a fim de compreendermos as suas causas. Entre esses fatos está a transfiguração. Para nós, o Espiritismo é mais do que uma crença: é uma ciência, e nos sentimos felizes por ver que os nossos leitores nos compreenderam.

Diatribes

Com certeza algumas pessoas esperam encontrar aqui uma resposta a certos ataques pouco comedidos à Sociedade, a nós pessoalmente e, em geral, aos partidários do Espiritismo, ataques dos quais temos sido vítimas nos últimos tempos.

Pedimos que se reportem ao nosso artigo sobre a polêmica espírita, que abriu o nosso número de novembro último, no qual fizemos a nossa profissão de fé a respeito. Poucas palavras devemos acrescentar, uma vez que não nos sobra tempo para discussões ociosas. Que aqueles que têm tempo a perder para rir de tudo, mesmo daquilo que não compreendem; para a maledicência; para a calúnia ou para as piadas, fiquem satisfeitos: não temos a pretensão de lhes criar obstáculos. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, composta de homens dignos por seu saber e por sua posição, tanto franceses como estrangeiros, médicos, escritores, artistas, funcionários, oficiais, negociantes, etc., recebendo diariamente as mais altas notabilidades sociais e tendo correspondência com todas as partes do mundo, está acima das pequenas intrigas do ciúme e do amor-próprio. Ela prossegue seus trabalhos na calma e no recolhimento, sem se inquietar com as piadas de mau gosto que não poupam nem mesmo as mais respeitáveis organizações.

Com referência ao Espiritismo em geral, que é uma das potências da Natureza, a zombaria virá a dobrar-se, como se dobrou de encontro a tantas outras coisas consagradas pelo tempo. Essa utopia, essa maluquice, como o classificam certas pessoas, já deu a volta ao mundo e nem mesmo todas as diatribes impedirão a sua marcha, do mesmo modo que outrora os anátemas não impediram que a Terra girasse. Deixemos, pois, que os gracejadores riam à vontade, desde que assim lhes apraz. Fá-lo-ão à custa do espírito. Se eles riem da religião, por que não haveriam de rir do Espiritismo, que é uma ciência? Esperamos que nos prestem mais serviços do que prejuízos e que nos poupem despesas de publicidade, porque não há um só de seus artigos, mais ou menos espirituosos, que não tenha produzido a venda de alguns de nossos livros e que não nos tenha proporcionado alguns assinantes. Obrigado, pois, pelo serviço que nos prestam involuntariamente. Também pouco diremos quanto ao que nos toca pessoalmente. Perdem seu tempo todos quantos nos atacam ostensiva ou disfarçadamente, se julgam que nos perturbam. Também se enganam, se pensam em nos barrar o caminho, pois nada pedimos e apenas aspiramos a tornar-nos útil, no limite das forças que Deus nos concedeu. Por mais modesta que seja a nossa posição, contentamo-nos com aquilo que para muitos seria mediocridade. Não ambicionamos posição, nem honras ou fortuna. Não desejamos o mundo nem os seus prazeres. Aquilo que não podemos ter não nos causa desgosto e o vemos com a mais completa indiferença. Isso não é compatível com nossos gostos, consequentemente não invejamos a nenhum daqueles que possuem tais vantagens, se vantagens há ─ o que a nossos olhos é um problema ─ porque os prazeres pueris deste mundo não asseguram um melhor lugar no outro, muito pelo contrário. Nossa vida é toda de trabalho e de estudo e consagramos ao trabalho até os momentos de repouso. Nisto não há nada que possa causar inveja. Como tantos outros, trazemos a nossa pedra ao edifício que se ergue; entretanto, coraríamos se disso fizéssemos um degrau para atingir fosse o que fosse. Que outros tragam mais pedras que nós! Que outros trabalhem tanto e melhor que nós e os veremos com sincera alegria. O que queremos, antes de mais nada e acima de tudo, é o triunfo da Verdade, venha de onde vier, pois não temos a pretensão de ver sozinho a luz. Se isso deve proporcionar alguma glória, o campo a todos está aberto e estenderemos a mão a todos aqueles que, neste duro curso da vida, nos seguirem lealmente, com abnegação e sem segundas intenções pessoais.

Sabíamos muito bem que, arvorando abertamente a bandeira das ideias das quais nos fizemos um dos propagadores, afrontando preconceitos, atrairíamos inimigos, sempre prontos a desferir setas envenenadas contra quem quer que erga a cabeça e se ponha em evidência. Há, porém, uma diferença entre eles e nós. Não queremos para eles o mal que nos procuram fazer, porque compreendemos a fragilidade humana e é somente nisto que a eles nos julgamos superior. O homem se avilta pela inveja, pelo ódio, pelo ciúme e por todas as paixões mesquinhas, mas eleva-se pelo esquecimento das ofensas. Eis a moral espírita. Ela vale menos que a moral das pessoas que estraçalham o próximo? Ela nos foi ditada pelos Espíritos que nos assistem. Por aí podemos julgar se eles são bons ou maus. Ela nos mostra as coisas do alto tão grandes, e as de baixo tão pequenas que apenas devemos lamentar aqueles que voluntariamente se torturam para proporcionar efêmeras satisfações ao seu amor-próprio.



Palestras familiares de além-túmulo

Paul Gaimard

Médico da marinha e viajante naturalista, falecido a 11 de dezembro de 1858 com 64 anos de idade. Foi evocado a 24 do mesmo mês, por um de seus amigos, o Sr. Sardou.

1. ─ (Evocação).
─ Eis-me aqui. Que queres?

2. ─ Qual o teu estado atual?
─ Estou errante como os Espíritos que deixam a Terra e sentem o desejo de avançar pelo caminho do bem. Buscamos, estudamos e depois escolhemos.

3. ─ Modificaram-se as tuas ideias sobre a natureza do homem?
─ Muito. Bem podes avaliar.

4. ─ Que pensas agora sobre o gênero de vida que levaste, na existência que acabas de deixar aqui na Terra?
─ Estou contente, porque trabalhei.

5. ─ Pensavas que para o homem tudo acaba no túmulo. Daí o teu epicurismo e o desejo que por vezes exprimias de viver séculos, a fim de bem gozar a vida. Que pensas dos vivos que têm apenas essa filosofia?
─ Lamento-os. Todavia, isto lhes é útil. Com tal sistema podem apreciar friamente tudo quanto entusiasma os outros. Isto lhes permite julgar de maneira sadia muitas coisas que facilmente fascinam os crédulos.

NOTA: É a opinião pessoal do Espírito, que damos como tal e não como máxima.

6. ─ O homem que se esforça moralmente, mais do que intelectualmente, procede melhor do que aquele que se liga sobretudo ao progresso intelectual e despreza o moral?
─ Sim. O aspecto moral é mais importante. Deus dá espírito como recompensa aos bons, ao passo que o moral deve ser adquirido.

7. ─ Que entendes por espírito que Deus dá?
─ Uma vasta inteligência.

8. ─ Entretanto há muitos maus que possuem uma vasta inteligência. ─ Já o disse. Perguntastes o que era preferível procurar adquirir, e eu vos disse que o moral era preferível. Mas quem trabalha o aperfeiçoamento de seu Espírito pode adquirir um alto grau de inteligência. Quando compreendereis os subentendidos?

9. ─ Estás completamente desprendido da influência material do corpo?
─ Sim. Aquilo que a respeito vos foi dito abrange apenas uma parte da Humanidade.

NOTA: Aconteceu algumas vezes que Espíritos evocados, mesmo alguns meses depois de sua morte, declararam que ainda se encontravam sob a influência da matéria. Todos eles, porém, tinham sido homens que não haviam progredido nem moral nem intelectualmente. É a esta parte da Humanidade que se refere o Espírito de Paul Gaimard.

10. ─ Tiveste na Terra outras existências além da última?
─ Sim.

11. ─ Esta última é uma consequência da precedente?
─ Não. Houve um grande intervalo entre elas.

12. ─ Apesar do intervalo não poderia, entretanto, haver uma certa relação entre essas duas existências?
─ Se bem me entendes, cada minuto de nossa vida é consequência do minuto anterior.

NOTA: Assistindo a esta reunião, o Dr. B. externou a opinião de que certos instintos, por vezes despertados em nós, bem poderiam ser o reflexo de uma existência anterior. Cita vários casos perfeitamente verificados em senhoras jovens que, durante a gravidez, foram levadas a atos ferozes, como, por exemplo, uma que agarrou o braço de um jovem açougueiro e lhe deu valentes dentadas; outra que cortou a cabeça de uma criança e ela própria a levou ao Comissariado de Polícia; uma terceira que matou o marido, cortou-o em pedacinhos, salgou-o e dele se alimentou durante vários dias. Perguntou aquele médico se, em existência anterior, não teriam elas sido antropófagas.

13. ─ Ouviste o que acaba de dizer o Dr. B. Serão esses instintos, que nas senhoras grávidas têm o nome de desejos, uma consequência de hábitos contraídos numa existência anterior?
─ Não. São uma loucura transitória; uma paixão no seu mais alto grau. O Espírito fica eclipsado pela vontade.

NOTA: O Dr. B. faz notar que os médicos consideram realmente esses atos como casos de loucura passageira. Nós compartilhamos tal opinião, mas por outros motivos, uma vez que as pessoas não familiarizadas com os fenômenos espíritas geralmente são levadas a atribuí-los exclusivamente às causas que conhecem. Estamos persuadidos de que devemos ter reminiscências de certas disposições morais anteriores. Diremos, até, que é impossível que as coisas se passem de outro modo, pois o progresso só se realiza paulatinamente. Mas não é este o caso de que se trata, porque as pessoas em causa não davam nenhum sinal de ferocidade, fora daquele estado patológico. Evidentemente nelas não havia senão uma perturbação momentânea das faculdades morais. Reconhece-se o reflexo das disposições anteriores por meio de outros, de certa maneira inequívocos, que desenvolveremos em artigo especial, apoiado pelos fatos.

14. ─ Em tua última existência realizaste simultaneamente progresso moral e intelectual?
─ Sim. Principalmente intelectual.

15. ─ Poderias dizer-nos qual o gênero de tua penúltima existência?
─ Oh! Fui obscuro. Tive uma família, que tornei infeliz. Mais tarde o expiei duramente. Mas por que mo perguntais? Isto já passou e agora me acho em nova fase.

NOTA: Paul Gaimard morreu solteiro, com a idade de 64 anos. Mais de uma vez se lamentou por não haver constituído um lar.

16. ─ Esperas reencarnar brevemente?
─ Não. Quero antes pesquisar. Gostamos deste estado de erraticidade porque a alma é mais senhora de si; o Espírito tem mais consciência de sua força. A carne pesa, obscurece e entrava.

NOTA: Todos os Espíritos dizem que no estado de erraticidade pesquisam, estudam, observam, a fim de fazer a escolha. Não está aí a contrapartida da vida corporal? Não erramos, às vezes, durante anos, antes de nos fixarmos numa carreira que consideramos mais adequada ao nosso progresso? Por vezes não a mudamos, à medida que amadurecemos? Cada dia não é empregado em buscar o que fazer no dia seguinte?
Ora, que representam as diversas existências corpóreas para o Espírito, senão fases, períodos, dias da vida espírita que é, como bem o sabemos, a vida normal, pois a vida corpórea é apenas transitória e passageira? Nada mais sublime que esta teoria. Não está ela em concordância com a harmoniosa grandiosidade do Universo? Ainda uma vez, não fomos nós que a inventamos e lamentamos não possuir esse mérito. Entretanto, quanto mais a aprofundamos, mais a achamos fecunda em soluções de problemas até aqui não explicados.

17. ─ Em que planeta pensas ou desejas reencarnar?
─ Não sei. Dai-me tempo para procurar.

18. ─ Que gênero de existência pedirias a Deus?
─ A continuação da última; o maior desenvolvimento possível das faculdades intelectuais.

19. ─ Parece que colocas em primeira linha as faculdades intelectuais e que deixas as faculdades morais em segundo plano, contrariando o que disseste anteriormente.
─ Meu coração ainda não se encontra suficientemente bem formado para poder apreciar as outras.

20. ─ Vês outros Espíritos e te relacionas com eles?
─ Sim.

21. ─ Entre esses há alguns que tenhas conhecido na Terra?
─ Sim. Dumont-d’Urville.

22. ─ Vês também o Espírito de Jacques Arago, com quem viajaste?
─ Sim.

23. ─ Esses Espíritos estão nas mesmas condições em que estás?
─ Não. Uns são mais elevados, outros menos.

24. ─ Referimo-nos aos Espíritos de Dumont-d’Urville e de Jacques Arago.
─ Não quero especificar.

25. ─ Estás satisfeito por te havermos evocado?
─ Sim, principalmente por causa de uma pessoa.

26. ─ Poderemos fazer algo por ti?
─ Sim.

27. ─ Se te evocássemos dentro de alguns meses, terias ainda a bondade de
responder as nossas perguntas?
─ Com prazer. Adeus.

28. ─ Tu te despedes. Queres ter a bondade de dizer para onde vais?
─ Sem mais delongas (para expressar-me como teria feito há poucos dias), vou atravessar um espaço mil vezes mais considerável que o percurso que fiz na Terra em minhas viagens, que considerava tão longas, e isto em menos de um segundo, de um pensamento. Vou a uma reunião de Espíritos, onde tomarei lições e onde poderei aprender minha nova ciência, minha vida nova. Adeus.

OBSERVAÇÃO: Quem tivesse conhecido perfeitamente o Sr. Paul Gaimard constataria que esta comunicação está marcada pelo cunho de sua individualidade. Aprender, ver, conhecer era a sua paixão dominante. Eis o que explica suas viagens ao redor do mundo e às regiões do Polo Norte, bem como suas excursões à Rússia e à Polônia, quando da primeira irrupção do cólera na Europa. Dominado por essa paixão e por essa necessidade de satisfazê-la, conservava um raro sangue frio ante os
maiores perigos. Foi assim que graças à sua calma e à sua firmeza soube livrar-se das garras de uma tribo de antropófagos que o havia surpreendido no interior de uma ilha da Oceania.

Uma frase sua caracteriza perfeitamente essa avidez de ver fatos novos, de assistir ao espetáculo de acidentes imprevistos. Um dia, diante do mais dramático período de 1848, exclamou ele: “Que felicidade viver numa época tão fértil em acontecimentos extraordinários e imprevistos!”

Quase que unicamente voltado para as ciências que tratam da matéria organizada, seu espírito havia negligenciado muito as ciências filosóficas. Assim, poder-se-ia dizer que lhe faltava elevação em tais ideias. Contudo nenhum ato de sua vida prova que jamais tivesse desconhecido as grandes leis morais impostas à Humanidade. Em suma, o Sr. Paul Gaimard tinha uma bela inteligência. Essencialmente probo e honesto, naturalmente obsequioso, era incapaz de causar o menor prejuízo a quem quer que fosse. Apenas se lhe pode fazer a censura de ter sido, talvez, demasiadamente amigo dos prazeres; mas nem o mundo nem os prazeres corromperam o seu raciocínio ou o seu coração. Assim, o Sr. Paul Gaimard fez por merecer as saudades de seus amigos e de quantos o conheceram.
SARDOU


Sra. Reynaud

Sonâmbula, falecida em Annonay, há cerca de um ano. Embora analfabeta, tinha uma lucidez notável, sobretudo em questões médicas. Pensando que pudesse obter ensinamentos úteis, um dos nossos correspondentes que a conhecera em vida, dirigiu-nos algumas perguntas para lhe serem feitas, caso julgássemos conveniente interrogá-la. Foi o que fizemos na sessão da Sociedade de 28 de janeiro de 1859.

Às do nosso correspondente, juntamos algumas perguntas que nos pareceram interessantes.

1. ─ (Evocação).
─ Eis-me aqui. Que quereis de mim?

2. ─ Tendes uma lembrança exata de vossa existência corpórea?
─ Sim, muito precisa.

3. ─ Podeis descrever-nos vossa situação atual?
─ É a mesma de todos os Espíritos que habitam a Terra. Geralmente possuem a intuição do bem, e no entanto não podem conseguir a felicidade perfeita, reservada somente a maior grau de perfeição.

4. ─ Quando viva, éreis sonâmbula lúcida. Poderíeis dizer-nos se vossa lucidez de então era análoga à que tendes agora, como Espírito?
─ Não. Era diferente, pois não tinha a prontidão e a justeza que meu Espírito possui agora.

5. ─ A lucidez sonambúlica é uma antecipação da vida espírita, isto é, um afastamento do Espírito em relação à matéria?
─ É uma das fases da vida terrena; mas a vida terrena é a mesma que a vida celeste.

6. ─ Que quereis significar, dizendo que a vida terrena é a mesma que a vida
celeste?
─ Que a cadeia das existências é formada de anéis seguidos e contínuos. Nenhuma interrupção lhe suspende o curso. Pode, pois, dizer-se que a vida terrena é a continuação da vida celeste precedente e o prelúdio da vida celeste futura, e assim por diante, para todas as encarnações que o Espírito venha a ter. Isto faz que entre duas encarnações não haja uma separação tão absoluta como pensais.
Observação: Durante a vida terrestre o Espírito ou alma pode agir independentemente da matéria e, em certos momentos, o homem goza da vida espírita, durante o sono ou mesmo em estado de vigília. Desde que as faculdades do Espírito se exercem malgrado a presença do corpo, há entre a vida terrestre e a vida de além-túmulo uma constante correlação, que levou a Sra. Reynaud a dizer que era a mesma. A resposta subsequente aclarou o seu pensamento.

7. ─ Porque então nem todos são sonâmbulos?
─ É que ainda ignorais que todos vós o sois, mesmo sem sono e bem acordados, mas em graus diversos.

8. ─ Compreendemos que todos o sejamos mais ou menos, durante o sono, desde que o estado de sonho é uma espécie de sonambulismo imperfeito. Mas que quereis dizer quando afirmais que o somos, mesmo em estado de vigília?
─ Não tendes intuições de que não vos dais conta, e que não passam de uma faculdade do Espírito? O poeta é um médium, um sonâmbulo.

9. ─ Vossa faculdade sonambúlica contribuiu para o desenvolvimento do vosso Espírito depois da morte?
─ Pouco.

10. ─ No momento da morte ficastes perturbada por muito tempo?
─ Não. Reconheci-me imediatamente. Estava rodeada de amigos.

11. ─ Atribuís o vosso pronto desprendimento à vossa lucidez sonambúlica?
─ Sim, um pouco. Eu já tinha conhecimento da sorte dos agonizantes, mas isso não me teria servido de nada se eu não tivesse uma alma capaz de conquistar uma vida melhor graças a uma maior quantidade de boas faculdades.

12. ─ É possível ser bom sonâmbulo sem possuir um Espírito de ordem elevada?
─ Sim. As faculdades sempre estão em concordância. Apenas vos enganais quando pensais que essas faculdades requerem boas disposições. Não, o que pensais ser bom, muitas vezes é ruim. Se não compreendeis, eu desenvolverei esta ideia. Há sonâmbulos que conhecem o futuro e contam fatos passados dos quais nenhum conhecimento possuem em estado normal. Outros há que descrevem perfeitamente o caráter das pessoas que os interrogam; dizem a idade exatamente, assim como a quantia que têm no bolso, etc. Isto não requer nenhuma superioridade real. É apenas o exercício da faculdade que o Espírito possui e que se manifesta nos sonâmbulos adormecidos. O que requer uma real superioridade é o emprego que podem fazer para o bem; é a consciência do bem e do mal; é conhecer Deus melhor que os homens o conhecem; é poder dar conselhos aptos a fazer progredir no caminho do bem e da felicidade.

13. ─ O uso feito de sua faculdade influi sobre o estado de espírito do sonâmbulo após a morte?
─ Sim, e muito, assim como o bom ou mau uso de todas as faculdades dadas por Deus.

14. ─ Poderíeis explicar-nos como tendes conhecimentos médicos, sem terdes feito qualquer estudo?
─ É sempre uma faculdade do Espírito. Outros Espíritos me aconselhavam. Eu era médium: é o estado de todos os sonâmbulos.

15. ─ Os medicamentos prescritos por um sonâmbulo lhe são sempre indicados por outro Espírito ou o são também por instinto, como acontece com os animais que buscam a erva que lhes é salutar?
─ São-lhe indicados, se ele pede conselhos, caso sua experiência não lhe baste. Ele os conhece por suas qualidades.

16. ─ O fluido magnético é o agente da lucidez dos sonâmbulos, como a luz o é para nós?
─ Não. Ele é o agente do sono.

17. ─ O fluido magnético é o agente da visão, no estado de Espírito?
─ Não.

18. ─ Não nos vedes aqui tão claramente como se estivésseis viva, e com o vosso corpo?
─ Agora vejo melhor. Vejo, além disso, o homem interno.

19. ─ Poderíeis ver-nos da mesma maneira se estivéssemos na obscuridade?
─ Da mesma forma.

20. ─ Vede-nos melhor, pior ou tão bem como nos veríeis quando viva, e em
estado sonambúlico?
─ Melhor ainda.

21. ─ Qual é o agente ou intermediário que vos permite ver?
─ Meu Espírito. Não tenho olhos nem pupilas; não tenho retina nem cílios; entretanto, vejo melhor do que cada um de vós vê o vizinho. Vedes pelos olhos, mas é o vosso Espírito que vê.

22. ─ Tendes consciência da obscuridade?
─ Sei que ela existe para vós, não para mim.

OBSERVAÇÃO: Isto confirma o que sempre nos foi dito: que a faculdade de ver é uma propriedade inerente à natureza mesma do Espírito e que reside em todo o seu ser. No corpo ela é localizada.

23. ─ A dupla vista pode ser comparada ao estado sonambúlico?
─ Sim. A faculdade não vem do corpo.

24. ─ O fluido magnético emana do sistema nervoso ou está espalhado na
atmosfera?
─ Do sistema nervoso, mas o sistema nervoso o tira da atmosfera, sua fonte principal. A atmosfera não o possui em si. Ele vem dos seres que povoam o Universo. Não é o nada que o produz. É, ao contrário, uma acumulação da vida e da eletricidade desprendida dessa multidão de seres.

25. ─ O fluido nervoso é um fluido próprio ou seria o resultado da combinação de todos os outros fluidos imponderáveis que penetram nos corpos, tal como o calórico, a luz, a eletricidade?
─ Sim e não. Não conheceis os fenômenos suficientemente para assim falar. Vossos vocábulos não exprimem aquilo que quereis dizer.

26. ─ Qual a causa do entorpecimento produzido pela ação magnética?
─ A agitação produzida pela sobrecarga de fluido que o magnetizado acumula.

27. ─ O poder magnético do magnetizador depende de sua constituição física?
─ Sim, mas muito de seu caráter. Numa palavra: depende dele mesmo.

28. ─ Quais as qualidades morais que podem ajudar o sonâmbulo no desenvolvimento de sua faculdade?
─ As boas. Perguntastes quais as que podem ajudar.

29. ─ Quais os defeitos que mais o prejudicam?
─ A má-fé.

30. ─ Quais as qualidades mais essenciais para o magnetizador?
─ O coração; as boas intenções sempre firmes; o desinteresse.

31 ─ Quais os defeitos que mais o prejudicam?
─ As más inclinações, ou melhor, o desejo de prejudicar.

32. ─ Víeis os Espíritos quando viva e em estado sonambúlico?
─ Sim.

33. ─ Por que nem todos os sonâmbulos os veem?
─ Todos os veem por momentos e em diversos graus de clareza.

34. ─ De onde vem, para certas pessoas não sonâmbulas, a faculdade de ver os Espíritos no estado de vigília?
─ Isto é dom de Deus, como para outros a inteligência e a bondade.

35. ─ Tal faculdade resulta de uma organização física especial?
─ Não.

36. ─ Ela pode ser perdida?
─ Sim, tanto quanto pode ser adquirida.

37. ─ Quais as causas que podem determinar a sua perda?
─ Já o dissemos: as intenções malévolas. Como primeira condição é necessário propor-se a fazer bom uso dela. Isto posto, deve-se verificar se tal favor é merecido, pois que ele não é dado inutilmente. O que prejudica os que a possuem é que a ela se mescla sempre essa infeliz paixão humana que tão bem conheceis ─ o orgulho ─ mesmo quando há o desejo de buscar os melhores resultados. Vangloriam-se daquilo que é obra somente de Deus e, muitas vezes, querem tirar proveito. Adeus.

38. ─ Saindo daqui, aonde ireis?
─ Às minhas ocupações.

39. ─ Poderíeis dizer-nos quais são vossas ocupações?
─ Tenho algumas, assim como vós. Procuro instruir-me e para isso frequento a sociedade dos que são melhores do que eu. Para descansar, faço o bem. Minha vida se passa na esperança de atingir uma felicidade maior. Não temos necessidades materiais a satisfazer e, consequentemente, toda a nossa atividade visa nosso progresso moral.

Hitoti, chefe taitiano

Um oficial de marinha, presente à sessão da Sociedade no dia 4 de fevereiro último, mostrou desejos de evocar um chefe taitiano, chamado Hitoti, que conhecera pessoalmente, quando estivera na Oceania.

1. ─ (Evocação).
─ Que quereis?

2. ─ Poderíeis dizer-nos por que preferistes abraçar a causa francesa na Oceania?
─ Eu gostava dessa nação. Além disso, meu interesse a tanto me obrigava.

3. ─ Ficastes satisfeito com a viagem à França, que proporcionamos ao vosso neto e com os cuidados que lhe foram dispensados?
─ Sim e não. Talvez a viagem tenha aperfeiçoado bastante o seu espírito, mas isso tornou-o completamente alheio à sua pátria, porque lhe deu ideias que jamais deveriam ter brotado nele.

4. ─ Das recompensas recebidas do governo francês, quais as que mais vos satisfizeram?
─ As condecorações.

5. ─ E entre essas condecorações, qual a que preferis?
─ A Legião de Honra.

OBSERVAÇÃO: Esta circunstância era ignorada do médium e de todos os presentes. Foi confirmada pela pessoa que fez a evocação. Embora o médium empregado fosse intuitivo e não mecânico, como poderia ser a ele atribuído tal pensamento? Poder-se-ia admiti-lo em se tratando de uma pergunta banal, mas isto seria inadmissível quando se trata de um fato positivo, do qual ninguém lhe poderia ter dado uma ideia.

6. ─ Sois mais feliz agora do que quando vivo?
─ Sim, muito mais.

7. ─ Em que estado se encontra o vosso Espírito?
─ Errante, mas devo reencarnar brevemente.

8. ─ Quais as vossas ocupações nessa vida errante?
─ Instruir-me.

OBSERVAÇÃO: Esta resposta é quase geral por parte de todos os Espíritos errantes. Os mais adiantados moralmente acrescentam que se ocupam em fazer o bem e assistem aos que necessitam de seus conselhos.

9. ─ De que maneira vos instruís, já que não o fazeis do mesmo modo que quando estáveis vivo?
─ Trabalho meu Espírito e viajo. Compreendo que isto vos é pouco compreensível. Mais tarde vireis a sabê-lo.

10. ─ Quais as regiões que frequentais com melhor disposição?
─ Regiões? Eu não viajo pela vossa Terra, ficai bem certos. Subo e desço; vou para um lado e para o outro, moral e fisicamente. Vi e examinei com o maior cuidado mundos ao vosso nascente e ao vosso poente e que ainda se encontram em terríveis estados de barbárie e outros que estão imensamente acima de vós.

11. ─ Dissestes que em breve estaríeis encarnado. Sabeis em que mundo? -
─ Sim. Nele já estive muitas vezes.

12. ─ Podeis designá-lo?
─ Não.

13. ─ Por que em vossas viagens desprezais a Terra?
─ Porque a conheço.

14. ─ Embora não viajeis mais pela Terra, ainda pensais nalgumas pessoas a
quem amastes?
─ Pouco.

15. ─ Não vos preocupais mais com as pessoas que vos testemunharam
afeição?
─ Pouco.

16. ─ Recordai-vos delas?
─ Muito bem. Mas nós nos veremos novamente e então espero pagar tudo. Perguntam-me se não me preocupo com isto. Não, mas nem por isso me esqueço delas.

17. ─ Não revistes esse amigo ao qual pouco antes eu aludia e que, como vós, também está morto?
─ Sim, mas nós nos veremos mais materialmente. Encarnaremos na mesma esfera e nossas existências se tocarão.

18. ─ Somos gratos por terdes atendido ao nosso apelo.
─ Adeus. Trabalhai e pensai.

OBSERVAÇÃO: A pessoa que fez a evocação e que conhece os costumes desses povos declara que esta última frase está de acordo com os seus hábitos. Entre eles é uma expressão usual, de certo modo banal, e que o médium não poderia adivinhar. Reconhece igualmente que toda a conversa está em relação com o caráter do Espírito evocado e que sua identidade lhe é evidente.

A resposta à pergunta 17 oferece notável particularidade: encarnaremos na mesma esfera e nossas existências se tocarão. Está provado que os seres que se amaram se encontram no mundo dos Espíritos. Entretanto parece, de acordo com muitas respostas análogas, que podem seguir um ao outro em outras existências corporais. Aí, sem que disso se deem conta, as circunstâncias aproximam-nos, quer pelos laços de parentesco, quer pelas relações de amizade. Isto nos dá a razão de certas simpatias.

Um duende

O Sr. J..., um dos nossos companheiros na Sociedade, por diversas vezes tinha visto chamas azuis passeando sobre o seu leito. Certos de que se tratava de uma manifestação, tivemos a ideia de evocar um desses Espíritos, na sessão de 20 de janeiro último, a fim de nos instruirmos sobre a sua natureza.

1. ─ (Evocação).
─ Mas que queres de mim?

2. ─ Com que fim te manifestaste em casa do Sr. J...?
─ Que te importa?

3. ─ Em verdade, a mim pouco importa, mas para o Sr. J... é diferente.
─ Ah! Que boa razão!

NOTA: Estas primeiras perguntas foram feitas pelo Sr. Kardec. O Sr. J... continuou o interrogatório.

4. ─ É que eu não recebo qualquer um em minha casa, de boa vontade.
─ Estás enganado. Eu sou muito bom.

5. ─ Faze-me então o favor de dizer o que vens fazer em minha casa.
─ Julgas acaso que, pelo fato de ser bom, eu te devo obedecer?

6. ─ Disseram-me que és um Espírito leviano.
─ Pois neste caso julgaram-me muito mal.

7. ─ Se é calúnia, prova-o.
─ Eu não ligo.

8. ─ Eu bem poderia empregar um meio de te fazer dizer quem és.
─ Palavra que isto me divertiria um pouco.

9. ─ Intimo-te a que digas o que vens fazer em minha casa.
─ Tinha um único propósito: divertir-me.

10. ─ Isto não concorda com o que me foi dito pelos Espíritos superiores.
─ Fui mandado a tua casa e tu sabes a razão. Estás satisfeito?

11. ─ Então mentiste?
─ Não.

12. ─ Não tinhas, então, más intenções?
─ Não. Disseram-te o mesmo que eu.

13. ─ Podes dizer qual a tua categoria entre os Espíritos?
─ Tua curiosidade me agrada.

14. ─ Desde que pretendes ser bom, por que não respondes de modo mais conveniente?
─ Porventura eu te insultei?

15. ─ Não, mas por que respondes de maneira evasiva e te recusas a dar-me as explicações que te peço?
─ Tenho a liberdade de fazer o que quero, entretanto sob o comando de certos Espíritos.

16. ─ Ainda bem! Vejo com prazer que começas a ser mais razoável, por isso prevejo que iremos ter relações amigáveis.
─ Deixa de conversa fiada. Será muito melhor.

17. ─ Sob que forma aqui estás?
─ Não tenho nenhuma forma.

18. ─ Sabes o que é o perispírito?
─ Não, a não ser que seja o vento.

19. ─ Que poderia eu fazer para te ser agradável?
─ Já te disse. Cala-te.

20. ─ A missão que vieste desempenhar em minha casa te fez progredir como Espírito?
─ Isto é outro assunto. Não me faças tais perguntas. Sabes que obedeço a certos Espíritos. Dirige-te a eles. Quanto a mim, deixa-me ir.

21. ─ Porventura teríamos tido más relações numa outra existência, o que seria a causa de teu mau humor?
─ Não te recordas de quanto disseste mal de mim e a quem quisesse ouvir? Cala-te, digo-te eu.

22. ─ Eu só digo de ti aquilo que me foi dito por Espíritos superiores a teu respeito.
─ Também disseste que eu te havia obsidiado.

23. ─ Ficaste satisfeito com o resultado obtido?
─ Isso é problema meu.

24. ─ Queres então que conserve de ti uma opinião desfavorável?
─ É possível. Vou-me embora.

OBSERVAÇÃO: Pelas conversas relatadas podemos ver a diversidade extrema existente na linguagem dos Espíritos, conforme o seu grau de elevação. A dos Espíritos desta natureza é caracterizada quase sempre pela grosseria e pela impaciência. Quando chamados a reuniões sérias, percebe-se que não vêm de boa vontade e têm pressa de partir, porque não se sentem à vontade no meio de seus superiores e de pessoas que os apertam com perguntas. Já não acontece o mesmo nas reuniões frívolas, onde as pessoas se divertem com as suas facécias. Ali estão em seu ambiente e se regalam.





Plínio, o moço

Carta a Sura (Liv. VII - Carta 27)

“O repouso de que gozamos permite que ensineis e permite que eu aprenda. Gostaria eu de saber se os fantasmas têm algo de real; se têm uma verdadeira expressão; se são gênios ou se não passam de imagens vãs, criadas por imaginações perturbadas pelo medo. O que me inclina a crer que há verdadeiros espectros é o que me contam como tendo acontecido a Curtius Rufus. Quando ele ainda não tinha nome nem fortuna, havia acompanhado à África aquele a quem coubera o governo.

Ao cair da noite, passeava sob um pórtico, quando se lhe apresentou uma senhora de um porte e de uma beleza mais que humanos, e lhe disse: “Eu sou a África. Venho predizer o que te vai acontecer. Irás a Roma; desempenharás os mais altos cargos; depois voltarás para governar esta província, onde morrerás.”

Tudo aconteceu como ela havia predito. Diz-se mesmo que, aportando a Cartago, ao sair do navio, a mesma figura se lhe apresentou, vindo ao seu encontro no cais.

“O que há de verdade é que ele caiu doente e que, julgando o futuro pelas boas coisas do passado e a infelicidade que o ameaçava pela boa sorte de que havia gozado, logo perdeu a esperança de sua cura, apesar da opinião otimista dos seus.

“Eis, entretanto, uma outra história, não menos surpreendente e muito mais horrível. Vou contá-la tal qual a recebi.

“Havia em Atenas uma casa muito grande e muito confortável, mas desacreditada e deserta. No mais profundo silêncio da noite ouviam-se ruídos de ferros e, se se prestasse bem atenção, um rumor de correntes, que a princípio parecia vir de longe, aproximava-se pouco a pouco. Em breve via-se o espectro como que de um velho, muito magro, muito abatido, com uma longa barba e cabelos desgrenhados, com correntes nos pés e nos pulsos, as quais sacudia horrivelmente.

Daí as noites horrorosas e em claro para os habitantes daquela casa. A insônia prolongada trazia a doença, e a doença, redobrando o pavor, era seguida pela morte, porque durante o dia, embora o espectro não aparecesse, a impressão que havia deixado o fazia reviver sempre aos olhos de todos e o medo causado gerava novo medo. Por fim a casa foi abandonada inteiramente ao fantasma. Contudo, foi posto um aviso de que estava exposta à venda ou para locar, na esperança de que alguém, menos avisado de tão terrível incômodo, viesse a ser enganado.

“O filósofo Atenodoro veio a Atenas. Lê o aviso e procura saber o preço. A modicidade causa-lhe suspeitas. Procura informar-se. Contam-lhe a história e, longe de interromper o negócio, trata de concluí-lo sem demora. Instala-se e à tarde determina que lhe preparem o leito no quarto da frente; que lhe tragam suas pranchetas, sua pena e luz, e que as demais pessoas se retirem para os fundos da casa. Temendo que sua imaginação chegasse a um temor tão frívolo a ponto de imaginar fantasmas, aplica seu espírito, seus olhos e sua mão a escrever. No começo da noite um profundo silêncio reina na casa, como por toda parte. Depois ouve o entrechoque de ferros e barulho de correntes. Não levanta os olhos nem larga a pena; tranquiliza-se e esforça-se por escutar. O ruído aumenta, aproxima-se e dá a impressão de estar junto à porta do quarto. Ele olha e vê o espectro, tal qual lhe haviam descrito. O fantasma estava de pé e o chamava com o dedo. Atenodoro faz sinal com a mão para que espere um pouco e continua a escrever como se nada estivesse acontecendo. O espectro recomeça o barulho com as correntes, que faz soar aos ouvidos filósofo. Ele olha ainda uma vez e vê que continua a ser chamado com o dedo. Então, sem mais delongas, levanta-se, toma da luz e o segue. O fantasma caminha com um passo lento, como se oprimido pelo peso das correntes. Chegando ao pátio interno da casa, desaparece de súbito, deixando ali o nosso filósofo, que colhe ervas e folhas, com as quais marca o lugar em que ele o havia deixado, a fim de identificá-lo. No dia seguinte foi procurar os magistrados e pediu que mandassem escavar naquele lugar. Cavaram e encontraram ossos ainda presos a correntes. O tempo havia consumido a carne. Depois de juntá-los cuidadosamente, fizeram o enterro público e depois de terem rendido as últimas homenagens ao morto, ele nunca mais perturbou o sossego da casa.

“O que acabo de contar, faço-o sob a palavra de outrem. Eis, porém, o que posso assegurar aos outros sob a minha própria fé.

“Tenho um liberto chamado Marcus, que não é ignorante. Estava ele deitado com seu irmão mais novo, quando lhe pareceu ver alguém sentado em sua cama e que aproximava uma tesoura de sua cabeça e chegava a lhe cortar os cabelos acima da fronte. Pela manhã percebeu que tinha os cabelos cortados no alto da cabeça e que os cabelos se achavam espalhados em sua volta. Pouco depois semelhante ocorrência foi verificada com um de meus familiares, o que permitiu que não mais duvidasse da veracidade da outra. Um de meus jovens escravos dormia com os seus companheiros nos aposentos que lhes eram destinados. Segundo contaram, dois homens vestidos de branco vieram pela janela, rasparam-lhe a cabeça enquanto dormia e se foram como tinham vindo. No dia seguinte encontraram-no tosquiado, como tinha sido encontrado o outro e os cabelos esparsos pelo chão.

“Estas aventuras não tiveram outra consequência, a não ser que fui acusado perante Domiciano, sob cujo império elas ocorreram. Se ele tivesse vivido, eu não teria escapado, pois encontraram em sua pasta uma queixa contra mim, dada por Carus. Daí pode conjecturar-se que, como o costume dos acusados é negligenciar o cabelo e deixá-lo crescer, aqueles que tinham cortado o da minha gente indicavam que eu estava fora de perigo. Suplico que ponhais nisto toda a vossa erudição. O assunto é digno de profunda meditação e talvez eu não seja indigno de participar de vossas luzes. Se, como é vosso costume, derdes um balanço nas duas opiniões contrárias, fazei que a balança penda para algum lado, a fim de me tirar da inquietude em que me acho. Só por isto vos consulto. ─ Adeus.”

Respostas de Plínio às perguntas dirigidas na sessão do dia 28 de janeiro, na sociedade

1. ─ (Evocação).
─ Falai e eu responderei.

2. ─ Embora estejais morto há 1.743 anos, tendes recordação de vossa existência em Roma ao tempo de Trajano?
─ Por que, então, nós Espíritos não nos poderíamos recordar? Tendes lembrança de muitos atos de vossa infância. Que é para o Espírito uma existência passada senão a infância das existências pelas quais devemos passar antes de chegarmos ao fim das provas? Toda existência terrena ou envolvida pelo véu material, é um passo para o éter e, ao mesmo tempo, uma infância espiritual e material; espiritual, porque o Espírito ainda se acha no começo das provas; material, porque ele apenas acaba de entrar nas fases grosseiras por que deve passar a fim de depurar-se e instruir-se.

3. ─ Poderíeis dizer-nos o que tendes feito desde aquela época?
─ Seria longo dizer o que fiz. Procurei fazer o bem. Sem dúvida não quereis passar horas e horas até que eu conte tudo. Contentai-vos, pois, com uma resposta. Repito: procurei fazer o bem, instruir-me e levar as criaturas terrenas e errantes a se aproximarem do Criador de todas as coisas, daquele que nos dá o pão da vida espiritual e material.

4. ─ Que mundo habitais agora?
─ Pouco importa. Estou um pouco por toda parte. O espaço é o meu domínio e o de muitos outros. Estas são questões que um Espírito sábio e esclarecido pela luz santa e divina não deve responder, a não ser em ocasiões muito raras.

5. ─ Numa carta que escrevestes a Sura relatais três casos de aparição.
Lembrai-vos deles?
─ Eu os sustento porque são verdadeiros. Diariamente tendes fatos semelhantes a que não prestais atenção. Eles são muito simples, mas na época em que vivi eram considerados surpreendentes. Disso não vos deveis admirar. Ponde de lado essas coisas porque tendes outras mais extraordinárias.

6. ─ Contudo, teríamos vontade de vos fazer algumas perguntas a respeito.
─ Responderei de maneira geral e isto vos deve bastar. Entretanto, perguntai, se fizerdes absoluta questão. Darei respostas lacônicas.

7. ─ No primeiro caso, uma senhora aparece a Curtius Rufus e lhe diz que é a África. Mas quem era essa senhora?
─ Uma grande figura. Parece-me que ela é muito simples para homens esclarecidos como os do século XIX.

8. ─ Qual o motivo que impelia o Espírito que apareceu a Atenodoro e por que aqueles ruídos das correntes?
─ Símbolo da escravidão; manifestação; meio de convencer os homens e de lhes chamar a atenção, fazendo falar da coisa e ainda de provar a existência do mundo espiritual.

9. ─ Perante Trajano defendestes a causa dos cristãos perseguidos. Fostes levado por simples motivo de humanidade ou por convicção da verdade de sua doutrina?
─ Eu tinha os dois motivos;,mas a humanidade ocupava o segundo lugar.

10. ─ Que pensais do vosso panegírico de Trajano?
─ Deveria ser refeito.

11. ─ Escrevestes uma história do vosso tempo que se perdeu. Poderíeis reparar tal perda no-la ditando?
─ O mundo dos Espíritos não se manifesta especialmente por estas coisas. Tendes essas formas de manifestações, mas elas têm seu objetivo. São outras tantas balizas, fincadas à direita e à esquerda da grande via da verdade. Mas deixai; não vos ocupeis com isto nem a isto consagreis os vossos estudos. Cabe a nós o cuidado de ver e de julgar o que vos importa saber. Cada coisa tem o seu tempo. Não vos afasteis, pois, da linha que vos traçamos.

12. ─ Temos satisfação de fazer justiça às vossas boas qualidades e, sobretudo, ao vosso desinteresse. Dizem que nada exigíeis dos clientes a quem defendíeis. Tal desinteresse seria tão raro em Roma quanto o é entre nós?
─ Não lisonjeeis as minhas qualidades passadas. Não me preocupam mais. O desinteresse é praticamente inexistente no vosso século. Em cada duzentos homens encontrareis apenas um ou dois realmente desinteressados. Sabeis muito bem que este é um século do egoísmo e do dinheiro. Atualmente os homens são feitos de lama e se revestem de metal. Outrora havia sentimento, o estofo dos Antigos; hoje existe apenas a condição social.

13. ─ Mesmo sem absolver o nosso século, parece que ele vale mais do que aquele em que vivestes e no qual a corrupção estava no auge e a delação não conhecia nada de sagrado.
─ Faço uma generalização muito exata. Sei que à época em que eu vivia não havia muito desinteresse, entretanto havia aquilo que não possuís ou o possuís em dose muito fraca ─ o amor do belo, do nobre, do grande. Falo para todo o mundo. O homem de hoje, sobretudo os povos do Ocidente, e particularmente os franceses, têm o coração pronto para fazer grandes coisas, mas isto não passa de um lampejo passageiro. Logo vem a reflexão e a reflexão considera e diz: o positivo, o positivo antes de mais nada. Então o egoísmo e o dinheiro voltam a tomar a dianteira. Nós nos manifestamos justamente porque vós vos afastais dos princípios dados por Jesus.

Até à vista. Vós não compreendeis.

Observação: Compreendemos muito bem que o nosso século muito deixa a desejar. Sua chaga é o egoísmo e o egoísmo engendra a cupidez e a sede de riquezas.

Sob este ponto de vista estamos longe do desinteresse de que o povo romano deu tantos exemplos sublimes, durante uma certa época, mas que não foi a de Plínio.

Entretanto seria injusto desconhecer a sua superioridade em mais de um ponto, mesmo sobre os mais belos tempos de Roma, que também tiveram os seus exemplos de barbárie. Então havia ferocidade até na grandeza e no desinteresse, ao passo que o nosso século será marcado pelo abrandamento dos costumes e pelos sentimentos de justiça e de humanidade que presidem a todas as instituições que vê nascer e até às questões entre os povos.
ALLAN KARDEC


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