Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Junho

O músculo que range

Os adversários do Espiritismo acabam de fazer uma descoberta que deve contrariar bastante os Espíritos batedores. É para eles um desses golpes do qual dificilmente se reabilitarão. Com efeito, que devem pensar esses pobres Espíritos da terrível cutilada com que os atingiram o Sr. Schiff, depois o Sr. Jobert (de Lamballe) e por fim o Sr. Velpeau? Parece-me vê-los muito embaraçados, resmungando mais ou menos assim: “Ora veja, meu caro, estamos em palpos de aranha! Estamos naufragados! Não havíamos contado com a Anatomia, que descobriu as nossas artimanhas. Positivamente não podemos viver num país onde há gente que enxerga tão longe!”

─ Vamos, senhores basbaques, que acreditastes em todas essas histórias do arco da velha; impostores que nos quisestes enganar, levando-nos a admitir a existência de seres que não vemos; ignorantes que admitis a existência de alguma coisa que escapa ao nosso escalpelo, inclusive a vossa alma. E vós todos, escritores espíritas ou espiritualistas, mais ou menos espirituosos, inclinai-vos e reconhecei que não passais de iludidos, de charlatães e até de marotos e de imbecis. Esses senhores vos deixam a escolha, porque aqui está a luz, a verdade pura:

“ACADEMIA DE CIÊNCIAS (Sessão de 18 de abril de 1859). DA INVOLUNTÁRIA CONTRAÇÃO MUSCULAR RÍTMICA. O Sr. Jobert (de Lamballe) comunica um fato curioso da involuntária contração rítmica do pequeno peroneal lateral direito, que confirma a opinião do Sr. Schiff, relativamente ao fenômeno oculto dos Espíritos batedores.

“A senhorinha X..., de 14 anos, forte, bem constituída, desde os 6 anos é afetada de movimentos involuntários regulares do pequeno músculo peroneal lateral direito e de batidas, que podem ser escutadas, por detrás do maléolo externo direito, com a regularidade do pulso. Apareceram pela primeira vez na perna direita, à noite, acompanhados de dor muito forte. Depois de pouco tempo, o pequeno peroneal lateral esquerdo foi atingido por uma afecção da mesma natureza, posto que de menor intensidade.

“O efeito desses batimentos é o de provocar dor; de produzir insegurança ao caminhar e até de provocar quedas. A jovem doente declarou-nos que a extensão do pé e a compressão exercida sobre certos pontos do pé e da perna chegam a pará-los, embora continue sentindo dores e fadiga no membro.

“Quando essa criatura interessante se nos apresentou, eis o estado em que a encontramos. Era fácil de constatar, ao nível do maléolo externo direito, no bordo superior dessa saliência óssea, um batimento regular, acompanhado de uma saliência passageira e de um levantamento das partes moles da região, os quais se apresentavam com um ruído seco, após cada contração muscular. Esse ruído era ouvido no leito, fora do leito e a uma distância bem considerável do lugar onde a moça repousava. Notável por sua regularidade e pela nitidez dos estalos, o ruído a acompanhava por toda parte. Auscultando o pé, a perna e o maléolo, distinguia-se um choque incômodo, que atingia todo o trajeto percorrido pelo músculo, tal qual um golpe que se transmite de uma a outra extremidade de uma viga. Por vezes o ruído se assemelhava a um atrito, a uma raspagem, quando as contrações eram menos intensas. Esses mesmos fenômenos se repetiam sempre, estivesse a doente de pé, sentada ou deitada, a qualquer hora do dia ou da noite em que a examinássemos.

“Se estudarmos o mecanismo desses batimentos e se, para maior clareza, descompusermos cada batimento em dois tempos, veremos que:

“No primeiro tempo o tendão do pequeno perônio lateral se desloca, saindo da goteira e por isso levantando o grande perônio lateral e a pele.

“No segundo tempo, realizado o fenômeno de contração, seu tendão se relaxa, retorna à goteira e, batendo nela, produz o ruído seco e sonoro de que acabamos de falar.

“Repetia-se, por assim dizer, de segundo em segundo, e cada vez o pequeno artelho sofria um abalo e a pele que recobria o quinto metatarso era levantada pelo tendão. Cessava quando o pé estava fortemente estendido. Cessava ainda quando se exercia pressão sobre o músculo ou sobre a bainha dos perônios.

“Nestes últimos anos, os jornais franceses e estrangeiros têm falado muito de ruídos semelhantes a marteladas, ora regulares, ora afetando um ritmo particular, e que se produziam em volta de certas pessoas deitadas em seu leito.

“Os charlatães se apoderaram desses fenômenos singulares, cuja realidade, aliás, é atestada por testemunhas fidedignas, e tentaram relacioná-los com a intervenção de uma causa sobrenatural, do que se serviram para explorar a credulidade pública.

“A observação da senhorinha X mostra como, sob a influência da contração muscular, podem os tendões deslocados, no momento em que entram nas goteiras ósseas, produzir batimentos que, para certas pessoas, anunciam a presença de Espíritos batedores.

“Com o exercício, qualquer pessoa pode adquirir a faculdade de produzir à vontade semelhantes deslocamentos dos tendões e batimentos secos que se ouvem à distância.

“Repelindo qualquer ideia de intervenção sobrenatural e notando que esses batimentos e esses ruídos estranhos se passavam sempre ao pé do leito dos indivíduos agitados pelos Espíritos, o Sr. Schiff se perguntou se a sede desses ruídos não estaria neles próprios, e não exteriormente. Seus conhecimentos anatômicos levaram-no a pensar que bem podia ser na perna, na região peroneal onde se acham uma superfície óssea, tendões e uma corrediça comum.

“Tendo-se arraigado em seu espírito essa maneira de ver, fez ele experiências e ensaios em si mesmo, os quais o convenceram de que o ruído tinha sua sede por detrás do maléolo externo e na corrediça dos tendões do perônio.

“Em breve o Sr. Schiff foi capaz de executar ruídos voluntários, regulares, harmoniosos e, perante um grande número de pessoas (cinquenta testemunhas), pôde imitar os prodígios dos Espíritos batedores, com ou sem sapatos, de pé ou deitado.

“O Sr. Schiff concluiu que todos esses ruídos se originam no tendão do grande perônio, quando passa na goteira peroneal, e acrescenta que eles coexistem com um adelgaçamento ou ausência da bainha comum no grande e no pequeno perônio.

Quanto a nós, admitindo inicialmente que todos esses batimentos são produzidos pela queda do tendão na superfície óssea peroneal, pensamos, entretanto, que não há necessidade de uma anomalia da bainha para que isto aconteça. Basta a contração do músculo, o deslocamento do tendão e sua volta à goteira para dar-se o ruído. Além disso, só o pequeno perônio é agente do citado ruído. Com efeito, ele afeta uma direção mais reta que o grande perônio, o qual sofre vários desvios em seu trajeto; está situado profundamente na goteira; recobre inteiramente a goteira óssea, de onde é natural concluir que o ruído é produzido pelo choque desse tendão sobre as partes sólidas da goteira. Ele apresenta fibras musculares até a entrada do tendão na goteira comum, ao passo que o contrário se dá com o grande perônio.

“O ruído é de intensidade variável e podem realmente distinguir-se as suas várias nuanças. É assim que, desde o ruído retumbante, que se ouve à distância, encontramos variedades de ruídos, de atritos, de serra, etc.

“Pelo método subcutâneo, fizemos incisões sucessivamente através do corpo do pequeno perônio lateral direito e do corpo do mesmo músculo do lado esquerdo de nossa doente e mantivemos os membros imobilizados por meio de um aparelho. Feita a sutura, as funções dos dois membros foram restabelecidas sem qualquer traço dessa singular e rara afecção.

“Sr. Velpeau. Os ruídos de que acaba de tratar o Sr. Jobert em seu interessante comunicado parecem ligados a uma questão muito ampla. Com efeito, observam-se os mesmos ruídos em inúmeras regiões. A anca, a espádua, a face interna do pé frequentemente lhe servem de sede. Observei, entre outros, o caso de uma senhora que por meio de certos movimentos de rotação da coxa produzia uma espécie de música suficientemente nítida para ser ouvida de um ao outro lado da sala. O tendão da parte longa do bíceps braquial a produz facilmente, saindo de sua bainha, quando os feixes fibrosos que o retêm naturalmente se relaxam e se rompem. Dá-se o mesmo com o músculo posterior da perna ou com o músculo flector do artelho, por trás do maléolo interno. Como bem o compreenderam os senhores Schiff e Jobert, tais ruídos se explicam pela fricção ou pelos sobressaltos dos tendões nas ranhuras ou contra os bordos de superfícies sinoviais. Consequentemente, são possíveis numa infinidade ou nas vizinhanças de uma porção de órgãos. Ora claros e sonoros, ora surdos e obscuros, por vezes úmidos, outras vezes secos, variam extremamente de intensidade.

“Esperemos que o exemplo dado a respeito pelos senhores Schiff e Jobert leve os fisiologistas ao estudo desses vários ruídos e que um dia eles deem a explicação racional dos fenômenos incompreendidos ou até agora atribuídos a causas ocultas e sobrenaturais.

“O Sr. Jules Cloquet, em apoio às observações do Sr. Velpeau sobre os ruídos anormais que podem produzir os tendões nas várias regiões do corpo, cita o exemplo de uma moça de 16 a 18 anos que lhe foi apresentada no Hospital São Luís, numa época em que os senhores Velpeau e Jobert estavam vinculados a esse mesmo estabelecimento. O pai da moça, que se intitulava pai de um fenômeno, espécie de saltimbanco, esperava tirar partido de sua filha, exibindo-a publicamente. Informou que a filha tinha no ventre um movimento de pêndulo. A moça estava perfeitamente conformada. Por um ligeiro movimento de rotação na região lombar da coluna vertebral, ela produzia estalos muito fortes, mais ou menos regulares, segundo o ritmo de ligeiros movimentos que ela imprimia à parte inferior do torso. Esses ruídos anormais podiam ser ouvidos muito distintamente a mais de 25 pés de distância, e se assemelhavam ao ruído das antigas assadeiras de carne. Dependiam da vontade da moça e pareciam estar situados nos músculos da região lombo-dorsal da coluna vertebral.”

Este artigo do L’Abeille médicale, que nos julgamos no dever de transcrever na íntegra, para edificação de nossos leitores, e a fim de não sermos acusados de pretender fugir a certos argumentos, foi reproduzido, com algumas variantes, em diversos jornais, acompanhado dos qualificativos costumeiros.

Não é nosso hábito revelar as grosserias. Passamos por cima, porque o nosso bom-senso nos diz que nada se prova com tolices e com injúrias, por mais sábio que se seja. Se o artigo em questão se tivesse limitado a essas banalidades, que nem sempre têm o cunho da urbanidade e da educação, não o citaríamos. Mas ele encara a questão do ponto de vista científico. Fatiga-nos com demonstrações, com as quais pretende pulverizar-nos. Vejamos, pois, se estamos realmente mortos pelo decreto da Academia de Ciências ou se temos alguma chance de viver como o pobre e louco Fulton, cujo sistema o Instituto declarou um sonho vazio e impraticável, quando apenas privou a França da iniciativa do navio a vapor. Quem sabe quais as consequências que tal força, nas mãos de Napoleão I, poderia ter tido nos ulteriores acontecimentos!

Faremos um ligeiro reparo sobre a qualificação de charlatães, atribuída aos partidários das ideias novas. Ela nos parece um tanto ousada, quando se aplica a milhões de criaturas que dessas ideias não tiram nenhum lucro e quando alcança os mais altos planos da escala social. Esquecem que em poucos anos o Espiritismo fez incríveis progressos em todas as partes do mundo; que se espalha entre os ignorantes, mas também entre os letrados; que em suas fileiras conta um bom número de médicos, de magistrados, de eclesiásticos, de artistas, de homens de letras, de altos funcionários ─ pessoas às quais geralmente se atribuem algumas luzes e um pouco de bom-senso. Ora, confundi-los no mesmo anátema e remetê-los sem-cerimoniosamente para os hospícios é agir com muita petulância.

Direis, entretanto: Trata-se de gente de boa-fé. São vítimas de uma ilusão. Não negamos o efeito; apenas contestamos a causa que lhe atribuís. A ciência acaba de descobrir a verdadeira causa; torna essa causa conhecida e, por isto mesmo, faz desabar todo esse andaime místico de um mundo invisível que pode seduzir as imaginações exaltadas, mas sinceras.

Não temos a pretensão de ser tido como sábio, e ainda menos ousaríamos colocar-nos no mesmo nível de nossos ilustres adversários. Diremos apenas que os nossos estudos pessoais de Anatomia e de Ciências físicas e naturais, que tivemos a honra de ensinar, nos permitem compreender sua teoria e que de modo algum nos sentimos aturdido por essa avalanche de vocábulos técnicos. Os fenômenos de que falam nos são perfeitamente conhecidos. Em nossas observações sobre os efeitos atribuídos aos seres invisíveis, tivemos o cuidado de não negligenciar uma causa tão patentemente desprezível. Quando se apresenta um fato, não nos contentamos com uma observação apenas. Queremos vê-lo por todos os ângulos, sob todas as faces, e antes de aceitar uma teoria, verificamos se ela abarca todas as circunstâncias e se nenhum fato desconhecido poderá contradizê-la.
Numa palavra, se ela resolve todas as questões. Eis o preço da verdade. Senhores, vós admitis perfeitamente que esta maneira de proceder é absolutamente lógica. Muito bem. Não obstante todo o respeito devido ao vosso saber, há algumas dificuldades na aplicação do vosso sistema ao que se costuma chamar Espíritos batedores.

A primeira é que pode-se considerar pelo menos singular que essa faculdade até aqui excepcional e considerada como um caso patológico, que o Sr. Jobert (de Lamballe) qualifica de rara e singular afecção, de repente se tenha tornado tão comum. É verdade que o Sr. de Lamballe diz que todos podem adquiri-la pelo exercício. Mas como também diz que é acompanhada de dor e fadiga, o que é perfeitamente natural, é de convir que seja necessária uma forte dose de vontade de mistificar para fazer seu músculo estalar durante duas ou três horas seguidas, sem nenhum lucro, com o único fito de divertir algumas pessoas. Falemos sério. Isto é mais grave, porque se trata de Ciência.

Esses senhores que descobriram esta maravilhosa propriedade do longo perônio não imaginam tudo quanto podem fazer esses músculos. Ora, aqui está um belo problema a resolver. Os tendões deslocados não batem apenas nas goteiras ósseas.

Por um efeito realmente singular, batem também nas portas, nas paredes, nos tetos, e tudo isto à vontade, exatamente nos pontos designados. Eis algo de mais forte: a Ciência estava longe de suspeitar de todas as virtudes desse músculo que range. Ele tem o poder de levantar uma mesa sem tocá-la; de fazê-la bater com os pés, andar pela sala e de manter-se no espaço sem ponto de apoio; de abri-la e fechá-la! E imaginai a sua força! De quebrá-la na queda.

Pensais que se trata de uma mesa frágil e leve como uma pena, que a gente levanta com um sopro? Que ilusão! Trata-se de mesas pesadas e maciças, de cinquenta a sessenta quilos, que obedecem às mocinhas e às crianças. Mas, dirá o Sr. Schiff, eu jamais vi tais prodígios. Isto é fácil de compreender. É que só quis ver pernas.

Terá o Sr. Schiff dado às suas ideias a necessária independência? Estava isento de qualquer prevenção? Temos o direito de duvidar, e não somos nós que o dizemos.

É o Sr. Jobert. Segundo ele, o Sr. Schiff, ao falar de médiuns, se perguntou se a sede de tais ruídos não estaria de preferência neles, e não fora deles. Seus conhecimentos de Anatomia o levaram a pensar que bem podia ser na perna. Estando este modo de ver bem arraigado em seu espírito, etc. Assim, conforme a confissão do Sr. Jobert, o Sr. Schiff tomou como ponto de partida não os fatos, mas a sua própria ideia, sua ideia preconcebida e bem arraigada. Daí as pesquisas num sentido exclusivo e, consequentemente, uma teoria exclusiva, que explica perfeitamente o fato que ele viu, mas não explica os que não viu. E por que não os viu?

Porque em seu pensamento só havia um ponto de partida verdadeiro e apenas uma explicação verdadeira. Partindo daí, todo o resto deveria ser falso e não mereceria exame. Disso resultou que, no ardor de atingir os médiuns, errou o golpe. Senhores, pensais conhecer todas as propriedades do grande perônio apenas porque o surpreendestes a tocar violão na bainha? Ora esta! Temos coisa muito diferente a registrar nos anais da Anatomia. Pensastes que o cérebro fosse a sede do pensamento. Errado! Pode-se pensar pelo tornozelo. As batidas dão prova de inteligência. Logo, se essas batidas vêm exclusivamente do perônio, quer do grande perônio, segundo o Sr. Schiff, quer do pequeno, segundo o Sr. Jobert (o que exigiria um acordo entre ambos), é que o perônio é inteligente. Isto nada tem de admirável. Fazendo estalar o seu músculo à vontade, executará aquilo que quiserdes: imitará a serra, o martelo, baterá sinais de atenção ou o compasso de uma música que se pedir. Vá lá, que seja, mas quando o ruído responde a uma coisa que o médium ignora absolutamente; quando vos revela esses pequenos segredos que só vós conheceis, esses segredos que a gente gostaria de enterrar profundamente, é preciso convir que o pensamento vem de outra parte do cérebro.

De onde virá então? Ora essa! Do grande perônio. E isto não é tudo. Ele também é poeta, pois esse grande perônio faz versos encantadores, mesmo que jamais em sua vida o médium tenha sabido fazê-los. Ele é poliglota, pois dita coisas realmente muito sensatas, em línguas de que o médium ignora a mínima palavra. Ele é músico... nós bem o sabemos, pois o Sr. Schiff fez o seu executar sons harmoniosos, com ou sem sapatos, diante de cinquenta pessoas. Sim, mas também compõe. Ora, Sr. Dorgeval, o senhor, que ultimamente nos deu uma encantadora sonata, acredita piamente que a mesma tenha sido ditada pelo Espírito de Mozart? Que esperança!

Era o seu grande perônio que tocava piano. Na verdade, senhores médiuns, os senhores não suspeitavam que houvesse tanto espírito em seus calcanhares. Honra seja feita aos autores de uma tal descoberta. Que os seus nomes sejam escritos em letras garrafais, para a edificação da posteridade e para a honra de sua memória!

Dirão que brincamos com coisas sérias, pois brincadeiras não são raciocínios. De fato. Não menos racionais que tolices e grosseria.

Confessando nossa ignorância junto a esses senhores, aceitamos a sua sábia demonstração e a tomamos muito a sério. Pensávamos que certos fenômenos fossem produzidos por seres invisíveis, que se diziam Espíritos. Pode ser que nos tenhamos enganado. Como procuramos a verdade, não temos a tola pretensão de emperrar numa ideia que de modo tão peremptório nos demonstram ser falsa. A partir do momento em que o Sr. Jobert, por uma incisão subcutânea, eliminou os Espíritos, já não há mais Espíritos. Uma vez que, diz ele, todos os ruídos vêm do perônio, é preciso crê-lo e admitir todas as consequências. Assim, quando as batidas são dadas na parede ou no teto, ou o perônio lhes corresponde ou a parede tem um perônio.

Quando as batidas ditam versos por uma mesa que bate com o pé, de duas uma: ou a mesa é poetisa, ou tem um perônio. Isto nos parece lógico. Vamos mesmo mais longe. Um oficial nosso conhecido, fazendo experiências espíritas, recebeu um dia, por mão invisível, um par de bofetadas tão bem aplicadas que ainda as sentia duas horas depois. Como provocar uma reparação? Se isso acontecesse ao Sr. Jobert, ele não se inquietaria. Diria apenas ter sido esbofeteado pelo grande perônio.

Eis o que, a respeito, lemos no jornal La Mode, de 1.º de maio de 1859:

“A Academia de Medicina continua a cruzada dos espíritos positivistas contra todo gênero de maravilha. Depois de ter, com justa razão, mas um tanto desajeitadamente, fulminado o famoso doutor negro, pelo órgão do Sr. Velpeau, eis que acaba de ouvir o Sr. Jobert (de Lamballe) o qual revela, em pleno Instituto, o segredo daquilo que ele chama a grande comédia dos Espíritos batedores, representada com tanto sucesso nos dois hemisférios.

“Segundo o célebre cirurgião, todo toc-toc, todo pan-pan que de boa-fé faz arrepiar aqueles que os escutam; esses ruídos singulares, esses golpes secos, vibrados sucessivamente e como que cadenciados, precursores da chegada, sinais certos da presença dos habitantes do outro mundo, são simplesmente o resultado de um movimento imprimido a um músculo, um nervo, um tendão! Trata-se de uma bizarria da Natureza, habilmente explorada para produzir, sem que se possa constatar, essa música misteriosa que encantou e seduziu tanta gente.

“A sede da orquestra é na perna; é o tendão do perônio, tocando na bainha, que faz todos esses ruídos que são ouvidos sob as mesas ou à distância, à vontade do prestidigitador.

“De minha parte, duvido muito que o Sr. Jobert tenha posto a mão, como ele acredita, no segredo daquilo que ele mesmo chama “uma comédia” e os artigos que foram publicados neste mesmo jornal, por nosso confrade Sr. Escande, sobre os mistérios do mundo invisível, me parecem apresentar a questão com amplitude muito mais sincera e filosófica, no verdadeiro sentido da palavra. “Se, porém, os charlatães de todos os matizes são insuportáveis com o seu toque de caixa, temos de convir que esses senhores sábios por vezes não o são menos, com o apagador que pretendem aplicar sobre tudo aquilo que brilha fora dos candelabros oficiais.

“Eles não compreendem que a sêde do maravilhoso, que devora a nossa época, tem exatamente como causa o excesso de positivismo para onde certos espíritos quiseram arrastá-la. A alma humana sente necessidade de crer, de admirar e de contemplar o infinito. Trabalharam para tapar as janelas que o catolicismo lhe abria. Ela olha pelas claraboias, sejam estas quais forem”.

HENRY DE PÈNE

“Pedimos licença ao nosso distinto amigo Sr. Henry de Pène para uma observação. Ignoramos quando o Sr. Jobert fez esta imortal descoberta e qual o dia memorável em que a comunicou ao Instituto. O que sabemos é que esta original explicação já havia sido dada por outros. Em 1854, o Doutor Rayer, célebre clínico, que então não deu mostras de grande perspicácia, também apresentou ao Instituto um alemão cuja habilidade, na sua opinião, dava a chave de todos os knokings e rappings23 dos dois mundos. Como agora, tratava-se de deslocamento de um dos tendões musculares da perna, chamado o grande perônio. A demonstração foi feita numa sessão e a Academia exprimiu o seu reconhecimento por tão interessante comunicação. Alguns dias depois, um professor substituto da Faculdade de Medicina consignou o fato no Constitutionel e teve a coragem de acrescentar que “enfim os cientistas” se tinham pronunciado e o mistério estava “esclarecido”. Isto não impediu que o mistério persistisse e aumentasse, apesar da Ciência que, ao recusarse a fazer experiências, contenta-se em atacá-lo com explicações ridículas e burlescas, como estas a que acabamos de nos referir.

Pelo respeito devido ao Sr. Jobert (de Lamballe), apraz-nos pensar que se lhe tenha atribuído uma experiência que absolutamente não lhe pertence. Algum jornal, à cata de novidades, terá encontrado nalgum recanto esquecido de sua pasta, a antiga comunicação do Sr. Rayer e a terá ressuscitado, publicando-a sob seu patrocínio, a fim de variar um pouco. Mutato nomine, de te fabula narratur. “É desagradável, por certo, mas ainda melhor do que se o jornal tivesse dito a verdade”.

A. ESCANDE.

Intervenção da ciência no espiritismo

A rivalidade entre corporações científicas é um dos argumentos incessantemente invocados pelos adversários do Espiritismo. Por que não trataram elas dos fenômenos das mesas girantes? Se tivessem visto neles algo de sério, alegam, não se poriam em guarda contra fatos tão extraordinários, nem os tratariam com desdém. No entanto, hoje são todas contra vós. Não são os cientistas a luz das nações, e o seu dever não é espalhar a luz? Por que quereríeis que eles a abafassem, quando se apresentava tão bela ocasião de revelarem ao mundo uma força nova?

Para começar, grave erro é pensar que todos os cientistas são contra nós, pois que o Espiritismo se propaga precisamente na classe esclarecida. Não há sábios apenas na ciência oficial e nos corpos constituídos. Pode prejulgar-se a questão pelo fato de não desfrutar o Espiritismo foros de cidadania? É conhecida a circunspecção da ciência oficial em relação às ideias novas. Se ela jamais se houvesse enganado, então sua opinião poderia pesar na balança. Infelizmente, a experiência prova o contrário. Não repeliu ela como quimeras uma porção de descobertas que, mais tarde, ilustraram a memória de seus autores? Deve dizer-se que os sábios são ignorantes? Isso justifica os epítetos triviais que algumas pessoas de mau gosto gostam de aplicar-lhes? Certamente que não. Não há ninguém de bom-senso que não faça justiça aos sábios, reconhecendo, entretanto, que não são infalíveis e que, por isso mesmo, seu julgamento não é a última instância. Seu erro é resolver certas questões um pouco levianamente, confiando demasiado em suas luzes, antes que o tempo se tenha pronunciado, assim se expondo a receber o desmentido da experiência.

Ninguém é bom juiz senão em assuntos de sua competência. Se quisermos construir uma casa, chamaremos um músico? Se estivermos doentes, preferiremos ser tratados por um arquiteto? Se tivermos um processo, aconselhar-nos-emos com um dançarino? Enfim, se se tratar de uma questão de teologia, pediremos a sua solução a um químico ou a um astrônomo? Não. Cada qual no seu ofício. As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que podemos manejar à vontade. Os fenômenos por ela produzidos têm como agentes forças materiais. Os do Espiritismo têm como agentes inteligências que possuem sua independência, seu livre-arbítrio, e de modo algum se submetem aos nossos caprichos. Escapam destarte aos nossos processos anatômicos ou de laboratório, bem como aos nossos cálculos e, por consequência, não são mais de alçada da ciência propriamente dita. A ciência errou, pois, ao querer experimentar os Espíritos como uma pilha de Volta. Ela partiu de uma ideia fixa, preconcebida, à qual se aferra e quer forçosamente ligar à ideia nova. Fracassou, e assim devia ser, porque agiu a partir de uma analogia que não existe. Depois, sem ir mais longe, concluiu pela negativa: julgamento temerário, que o tempo diariamente se encarrega de reformar, como reformou tantos outros, e aqueles que o pronunciarem, serão por sua vez sentenciados pela vergonha de haverem levianamente assumido uma posição falsa contra o infinito poder do Criador. Assim, pois, as corporações científicas não devem, nem deverão jamais pronunciar-se sobre o assunto, pois ele não é mais de sua alçada do que o direito de decretar que Deus existe. É, pois, um erro tomá-las como juiz. Mas quem será o juiz? Arrogam-se os espíritas o direito de impor as próprias ideias? Não. O grande juiz, o juiz soberano é a opinião pública, e quando essa opinião se formar pelo assentimento das massas e dos homens esclarecidos, os cientistas oficiais a aceitarão como indivíduos e se submeterão à força das circunstâncias. Deixemos passar uma geração e com ela os preconceitos do amor próprio que se obstina, e veremos acontecer com o Espiritismo o mesmo que aconteceu com tantas outras verdades combatidas e que atualmente seria ridículo pôr em dúvida. Hoje os crentes são chamados de loucos, amanhã assim serão chamados aqueles que não creem, exatamente como outrora eram considerados loucos os que acreditavam que a Terra gira, o que não a impediu de girar.

Mas nem todos os sábios julgaram do mesmo modo. Alguns fizeram o seguinte raciocínio:

Não há efeito sem causa, e os mais vulgares efeitos podem ensejar a descoberta dos maiores problemas. Se Newton não tivesse prestado atenção à queda da maçã; se Galvani tivesse repelido a sua empregada, tratando-a de louca e de visionária, quando ela lhe falou das rãs que dançavam no prato, talvez ainda não tivéssemos descoberto a admirável lei da gravitação e as fecundas propriedades da pilha. O fenômeno designado sob o nome burlesco de dança das mesas não é mais ridículo que o da dança das rãs, e talvez encerre alguns dos segredos da Natureza que revolucionarão a Humanidade, quando possuirmos a sua chave.

Além disso, eles disseram: Desde que tanta gente se ocupa de tais fatos; desde que homens sisudos os estudaram, é que algo deve existir. Uma ilusão, uma maluquice, se quiserem, não pode ter esse caráter de generalidade. Poderá seduzir um círculo, um grupo, mas não dará a volta ao mundo.

Eis, particularmente, o que nos dizia ilustrado doutor em Medicina, então incrédulo e hoje fervoroso adepto:

“Dizem que os seres invisíveis se comunicam. Por que não? Antes da invenção do microscópio suspeitávamos da existência desses milhares de animálculos que causavam tanta devastação em nossa economia? Onde a impossibilidade material da existência, no espaço, de seres que escapam aos nossos sentidos? Acaso teríamos a ridícula pretensão de saber tudo e dizer a Deus que ele não nos pode ensinar mais nada? Se esses invisíveis que nos cercam são inteligentes, por que não se comunicariam conosco? Se estão em relação com os homens, devem representar um papel no destino e nos acontecimentos. Quem sabe se não serão uma das potências da Natureza, uma dessas forças ocultas que não suspeitamos? Que novo horizonte isto abre ao pensamento! Que vasto campo de observação! A descoberta do mundo invisível seria muito diversa da descoberta dos infinitamente pequenos. Seria mais que uma descoberta: seria toda uma revolução nas ideias. Que luz daí pode surgir!

Quantas coisas misteriosas seriam explicadas! Os que nisto acreditam são levados ao ridículo, mas o que isto prova? Não aconteceu o mesmo com todas as grandes descobertas? Cristóvão Colombo não foi repelido, coberto de desgostos e considerado um insensato? Essas ideias, disseram, são tão estranhas que a razão as recusa. Teríamos rido na cara de quem, há somente meio século, tivesse dito que em apenas alguns minutos nos corresponderíamos de um a outro extremo do mundo; que em algumas horas atravessaríamos a França; que com o vapor de um pouco de água fervente um navio navegaria contra o vento; que da água seriam tirados os meios de iluminar e de aquecer? Se um homem se tivesse proposto iluminar toda Paris em um minuto, com uma única fonte de uma substância invisível, teria sido enviado ao hospício. Seria acaso mais prodigioso que o espaço fosse povoado de seres pensantes que, depois de haverem vivido na Terra, deixaram o se envoltório material? Não encontramos no fato a explicação de uma porção de crenças que remontam à mais alta Antiguidade? Não é a confirmação da existência da alma, de sua individualidade depois da morte? Não é a prova da própria base da religião? Mas a religião só vagamente nos diz o que se tornam as almas. O Espiritismo o define. Que podem objetar os materialistas e os ateus? Vale a pena aprofundar semelhantes coisas”.

Eis as reflexões de um cientista, mas de um cientista despretensioso. São também as de uma porção de homens esclarecidos, que refletiram, estudaram seriamente, sem ideias preconcebidas e tiveram a modéstia de não dizer: Não compreendo, portanto não existe. Sua convicção formou-se pela observação e pelo recolhimento. Se essas ideias fossem quimeras, seria possível que tanta gente de escol as tivesse adotado? Que durante tanto tempo tivessem sido vítimas de uma ilusão? Não existe, pois, a impossibilidade material da existência de seres para nós invisíveis e que povoam o espaço. Esta simples consideração deveria ensejar um pouco mais de circunspecção. Ainda há pouco, quem teria pensado que uma gota de água límpida pudesse conter milhares de seres vivos, de uma pequenez que confunde a nossa imaginação? Ora, era mais difícil à razão conceber seres tão minúsculos, providos de todos os nossos órgãos e funcionando como nós, do que admitir os que chamamos Espíritos.

Perguntam os adversários por que motivo os Espíritos, que devem ter a preocupação de fazer prosélitos, não se prestam melhor ao trabalho de convencer certas pessoas cuja opinião teria grande influência. Acrescentam que os acusamos de falta de fé, e a isto respondem com razão que não podem ter fé por antecipação.

É um erro pensar que seja necessária a fé, mas a boa-fé é outra coisa. Há céticos que negam até a evidência e aos quais nem milagres convenceriam. Há mesmo os que ficariam muito aborrecidos se fossem obrigados a crer, pois o seu amor-próprio sofreria ao confessar que se enganaram. Que responder a criaturas que por toda parte não enxergam senão ilusão e charlatanismo? Nada. É preciso deixá-las tranquilas e dizerem, enquanto quiserem, que nada viram e, até, que nada lhes pudemos fazer ver. Ao lado desses céticos endurecidos, há os que querem ver a seu modo. Formada uma opinião, a esta tudo querem submeter, não compreendendo que haja fenômenos que não se submetam à sua vontade. Ou não sabem, ou não se querem curvar às condições necessárias. Se os Espíritos não se mostram tão interessados em convencê-los por meio de prodígios, é que no momento aparentemente pouco interesse têm em convencer certas pessoas, cuja importância não medem do mesmo modo pelo qual elas o fazem. É realmente pouco lisonjeiro, mas nós não governamos a sua opinião. Os Espíritos têm um modo de julgar as coisas nem sempre concordante com o nosso. Veem, pensam e agem de acordo com outros elementos. Enquanto nossa vista é circunscrita pela matéria, limitada pelo estreito círculo em cujo meio nos achamos, eles abarcam o conjunto. O tempo, que nos parece tão longo, é para eles um instante, e a distância, apenas um passo. Certos detalhes que nos parecem de importância extrema, a seus olhos não passam de infantilidades. Por outro lado, julgam importantes certas coisas cujo alcance não apreendemos. Para compreendê-los é necessário elevarmo-nos pelo pensamento acima do nosso horizonte material e moral e nos colocarmos em seu ponto de vista.

A eles não cabe descer até nós. Nós é que devemos subir até eles, o que conseguimos pelo estudo e pela observação. Os Espíritos gostam dos observadores assíduos e conscienciosos. Para esses, multiplicam as fontes de luz.

Não é a dúvida originária da ignorância que os afasta. É a fatuidade dos pretensos observadores que nada observam e que querem pô-los na berlinda e manobrá-los como bonecos; são sobretudo os sentimentos de hostilidade e de crítica que trazem na mente, quando não nas palavras, a despeito dos protestos em contrário. Para esses nada fazem os Espíritos e se preocupam muito pouco com o que possam dizer ou pensar, porque sua hora chegará. Eis por que dissemos que não é a fé que se torna necessária, mas a boa-fé.

Ora, perguntamos se os nossos sábios adversários estão sempre em tais condições. Eles querem os fenômenos sob seu controle, mas os Espíritos não obedecem ao seu comando. É necessário esperar a boa vontade deles. Não basta dizer: mostre-me tal fato e eu acreditarei. É preciso ter a vontade perseverante; deixar que os fatos se produzam espontaneamente, sem querer forçá-los ou dirigilos.

Aquilo que desejais é exatamente o que não obtereis, mas outros se apresentarão, e aquilo que quereis virá talvez no momento em que menos esperais.

Aos olhos do observador atento e assíduo multiplicaram-se os fenômenos, confirmando-se reciprocamente, mas aquele que pensa que basta virar a manivela para movimentar a máquina, engana-se redondamente. Que faz o naturalista que deseja estudar os costumes de um animal? Acaso lhe ordena que faça isto ou aquilo, a fim de ter a oportunidade de observá-lo à vontade e conforme as suas conveniências? Não. Ele sabe perfeitamente que não será obedecido. Mas espia as manifestações espontâneas de seu instinto; espera-as e as observa de passagem.

O simples bom-senso nos mostra que, com mais forte razão, assim deve ser com os Espíritos, que são inteligências muito mais independentes que a dos animais.



Palestras familiares de além-túmulo

Humboldt

Falecido a 6 de maio de 1859; evocado na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas aos 13 e 20 do mesmo mês.
(A São Luís). Poderíamos chamar o Espírito do Sr. Alexandre Humboldt, que acaba de falecer?
─ Se quiserdes, amigos.

1. (Evocação
─ Eis-me aqui. Como isto espanta!

2. ─ Por que isto vos espanta?
─ Estou longe daquilo que fui há apenas alguns dias.

3. ─ Se nós vos pudéssemos ver, como seríeis visto?
─ Como homem.

4. ─ Nosso chamado vos molesta?
─ Não, não.

5. ─ Tivestes consciência de vosso novo estado logo após a morte?
─ Eu a esperava há muito tempo.

NOTA: Nos homens que, como Humboldt, morrem de morte natural, e pela extinção gradual das forças vitais, o Espírito se reconhece muito mais prontamente do que naqueles cuja vida é bruscamente interrompida por um acidente ou morte violenta, porque já existe um começo de desprendimento antes de cessar a vida orgânica. Em Humboldt a superioridade do Espírito e a elevação dos pensamentos facilitaram o desprendimento, sempre mais lento e mais penoso naqueles cuja vida é unicamente material.

6. ─ Tendes saudades da vida terrestre?
─ Não, absolutamente. Sinto-me feliz. Não me sinto mais na prisão. Meu Espírito é livre... Que prazer! E que agradável momento aquele que me trouxe esta nova graça de Deus!

7. ─ Que pensais da estátua que vos será erigida na França, embora sejais estrangeiro?
─ Agradeço a honra que pessoalmente me é feita. O que, sobretudo, aprecio nisto é o sentimento de união revelado por esse fato e o desejo de extinguir todos os ódios.

8. ─ Vossas crenças mudaram?
─ Sim, muito. Mas ainda não revi tudo. Esperai um pouco antes de me falardes com mais profundidade.

NOTA: Esta resposta e aquele revi são característicos do estado em que ele se encontra. Apesar do rápido desprendimento do seu Espírito, existe ainda certa confusão de ideias. Tendo deixado o corpo apenas há oito dias, ainda não teve tempo de comparar suas ideias terrenas com as que pode ter atualmente.

9. ─ Estais contente com o emprego que fizestes de vossa existência terrena?
─ Sim. Eu cumpri, mais ou menos, o objetivo que me havia proposto. Servi à Humanidade, eis porque hoje sou feliz.

10. ─ Quando vos propusestes esse objetivo?
─ Quando vim para a Terra.

NOTA: Uma vez que se propôs um objetivo quando veio para a Terra, é que tinha feito um progresso anterior e sua alma não nascera ao mesmo tempo que o corpo. Esta resposta espontânea não pode ter sido provocada pela natureza da pergunta ou pelo pensamento do interlocutor.

11. ─ Escolhestes essa existência terrena?
─ Havia numerosos candidatos a essa obra. Eu pedi ao Ser por excelência que ma concedesse, e a obtive.

12. ─ Lembrai-vos da existência que precedeu a essa que acabais de deixar?
─ Sim. Ela se passou longe da Terra, num mundo muito diferente do vosso.

13. ─ Esse mundo é igual, inferior ou superior à Terra?
─ Desculpai. É superior.

14. ─ Sabemos que o nosso mundo está longe da perfeição e consequentemente não nos sentimos humilhados pelo fato de haver outros acima de nós. Mas, então, como viestes a um mundo inferior àquele que habitáveis?
─ Não damos aos ricos. Eu quis dar, por isso desci à cabana do pobre.

15. ─ Poderíeis dar-nos a descrição dos seres animados do mundo em que vivíeis?
─ Há pouco, ao falar-vos, tinha esse desejo, mas compreendi a tempo que teria dificuldade em vo-lo explicar perfeitamente. Ali os seres são bons, muito bons. Já conheceis este ponto, que é a base de todo o resto do sistema moral daqueles mundos. Ali nada entrava o desenvolvimento dos bons pensamentos; nada relembra os pensamentos maus; tudo é felicidade, pois cada um está contente consigo mesmo e com todos os que o cercam. Com referência à matéria e aos sentidos, qualquer descrição seria inútil. Quanta simplificação nas engrenagens de uma sociedade!

Hoje, que me acho em condições de comparar as duas, admiro-me da distância. Não penseis que vos digo isso para vos desencorajar. Não. Muito pelo contrário. É necessário que o vosso Espírito fique bem convencido da existência desses mundos. Então sentireis um desejo ardente de alcançá-los e vosso trabalho vos abrirá o caminho.

16. ─ Esse mundo faz parte do nosso sistema planetário?
─ Sim. Está muito próximo de vós. Entretanto, não podeis vê-lo, porque ele não tem luz própria e não recebe nem reflete a luz dos sóis que o rodeiam.

17. ─ Dissestes, há pouco, que a vossa precedente existência ocorreu longe de nós e agora dizeis que esse mundo está muito perto. Como conciliar as duas coisas?
─ Ele está longe de vós, se considerardes as vossas distâncias, as medidas terrenas. Entretanto estará próximo se tomardes o compasso de Deus e se, de um golpe de vista, tentardes abranger toda a Criação.

NOTA: Evidentemente poderemos considerá-lo longe se tomarmos como termo de comparação as dimensões do nosso globo, mas estará perto em relação a outros mundos que se acham a distâncias incalculáveis.

18. ─ Poderíeis precisar a região do céu onde o mesmo se acha?
─ Seria inútil. Os astrônomos jamais a conhecerão.

19. ─ A densidade desse mundo é a mesma que a do nosso globo?
─ A relação é de mil para dez.

20. ─ Esse mundo seria da natureza dos cometas?
─ Não, absolutamente.

21. — Se não tem luz própria e se não recebe nem reflete a luz solar, ali existe então uma obscuridade perpétua?
─ Os seres que lá vivem não necessitam absolutamente de luz. Para eles não há obscuridade; não a compreendem. Como sois cegos, pensais que ninguém pode ter o sentido da visão.

22. ─ Segundo certos Espíritos, o planeta Júpiter é muito superior à Terra. É verdade?
─ Sim. Tudo quanto vos disseram é verdade.

23. ─ Tornastes a ver Arago depois que voltastes ao mundo dos Espíritos?
─ Foi ele que me estendeu a mão quando deixei o vosso mundo.

24. ─ Em vida conhecestes o Espiritismo?
─ O Espiritismo, não. O magnetismo, sim.

25. ─ Qual a vossa opinião sobre o futuro do Espiritismo entre as organizações científicas?
─ Grandioso. Mas o seu caminho será penoso.

26. ─ Pensais que um dia será aceito pelos meios científicos?
─ Certamente. Mas pensais que isto seja indispensável? Ocupai-vos antes de firmar seus primeiros preceitos no coração dos infelizes que enchem vosso mundo. Éo bálsamo que acalma os desesperos e dá esperanças.

NOTA: François Arago, chamado na sessão de 27 de maio, através de outro
médium, assim respondeu a perguntas análogas:

A ─ Quando vivo, qual a vossa opinião sobre o Espiritismo?
─ Eu o conhecia muito por alto e consequentemente não lhe ligava grande importância. Vós mesmos podeis concluir se mudei de opinião.

B ─ Pensais que ele um dia venha a ser aceito e reconhecido nos meios científicos, isto é, pela ciência oficial, de vez que há muitos sábios que pessoalmente o aceitam?
─ Não só penso, mas tenho certeza. Ele terá a sorte de todas as descobertas úteis à Humanidade. Escarnecido, a princípio, pelos sábios orgulhosos e pelos tolos ignorantes, acabará sendo por todos reconhecido.

27. ─ Qual a vossa opinião sobre o sol que nos ilumina?
─ Aqui nada aprendi ainda no terreno da Ciência. Entretanto, continuo a pensar que o Sol não passa de vasto centro elétrico.

28. ─ Esta opinião é reflexo da que tínheis como homem ou é a vossa como Espírito?
─ É a minha opinião de quando vivo, corroborada pelo que sinto agora.

29. ─ Desde que vindes de um mundo superior à Terra, como é que não adquiristes conhecimentos precisos sobre estas coisas antes da última existência e dos quais hoje vos lembraríeis?
─ Por certo que eu os tinha. Mas isso que me perguntais nenhuma relação tem com tudo quanto me foi possível aprender nas existências anteriores a esta que acabo de deixar, tão diferentes dela. A Astronomia, por exemplo, foi para mim uma Ciência totalmente nova.

30. ─ Muitos Espíritos nos têm dito que habitavam ou tinham habitado outros planetas. Nenhum, entretanto, nos disse habitar o Sol. Por quê?
─ É um centro elétrico e não um mundo. É um instrumento e não uma habitação.
─ Então não tem habitantes?
─ Habitantes permanentes, não. Visitas, sim.

31. ─ É possível que depois de algum tempo, quando tiverdes podido fazer novas observações, nos possais dar melhores informações sobre a natureza do Sol?
─ Sim, talvez, e com prazer. Entretanto não conteis muito comigo, pois não estarei errante por muito tempo.

32. ─ Para onde pensais que ireis quando deixardes a erraticidade?
─ Deus me permite repousar por alguns momentos. Vou aproveitar essa
liberdade para rever amigos muito queridos que me esperam. Depois, não sei ainda.

33. ─ Pedimos permissão para ainda vos dirigir algumas perguntas, que os vossos conhecimentos de História Natural sem dúvida permitem responder.
A sensitiva e a dioneia têm movimentos que acusam grande sensibilidade e, em certos casos, uma espécie de vontade, como por exemplo a última, cujos lóbulos apanham a mosca que pousa sobre ela, em busca de suco. Parece que a planta lhe oferece uma armadilha, para depois matá-la. Perguntamos se estas plantas são dotadas da faculdade de pensar; se tem uma vontade; se formam uma classe intermediária entre a natureza vegetal e a natureza animal. Numa palavra, representam a transição de uma à outra?
─ Tudo é transição em a Natureza, pelo simples fato de que nada é semelhante, apesar de que tudo se liga. Essas plantas não pensam e consequentemente não têm vontade. A ostra que se abre, bem como todos os zoófitos, absolutamente não pensam. Possuem apenas um instinto natural.

34. ─ Ao ser ferida, a planta experimenta sensação dolorosa?
─ Não.

NOTA: Um membro da sociedade manifesta a opinião de que os movimentos das plantas sensitivas são semelhantes aos produzidos pelas funções digestivas e circulatórias do organismo animal, os quais ocorrem sem a participação da vontade.

Com efeito, não vemos o piloro contrair-se no contato de certos corpos, recusando-lhes passagem? Deve ocorrer o mesmo com a sensitiva e com a dioneia, nas quais os movimentos não implicam a necessidade de uma percepção e, ainda menos, de uma vontade.

35. ─ Há homens fósseis?
─ O tempo os destruiu paulatinamente.

36. ─ Admitis tenha havido homens na Terra antes do dilúvio geológico?
─ Seria melhor obteres explicações mais claras sobre este assunto antes de fazeres a pergunta. Havia homens na Terra antes de muitos dilúvios.

37. ─ Adão não foi, então, o primeiro homem?
─ Adão é um mito. Onde colocas Adão?

38. ─ Mito ou não, falo da época que a História lhe assinala.
─ É para vós pouco passível de cálculo. É mesmo impossível avaliar o número de anos em que os primeiros homens ficaram num estado selvagem e bestial, que não cessou senão muito tempo depois de seu aparecimento sobre o globo.

39. ─ A Geologia achará um dia os traços materiais da existência do homem na Terra antes do período adâmico?
─ A Geologia, não; o bom-senso, sim.

40. ─ O progresso do reino orgânico na Terra está marcado pelo aparecimento sucessivo dos acotiledôneos, dos monocotiledôneos e dos dicotiledôneos. Existia o homem antes dos dicotiledôneos?
─ Não, sua fase foi a seguinte.

41. ─ Nós vos agradecemos a bondade de haverdes atendido ao nosso chamado, bem como os ensinamentos que nos ministrastes.
─ Foi um prazer. Adeus. Até a vista.

NOTA: Esta comunicação se distingue por um caráter geral de bondade, de benevolência e por uma grande modéstia, sinal incontestável de superioridade do Espírito. Não há um traço de jactância, de bazófia, de desejo de dominar e de imporse, que se nota nos que pertencem à classe dos pseudo sábios, Espíritos sempre mais ou menos imbuídos de sistemas e de preconceitos que procuram fazer prevalecer. No Espírito de Humboldt, tudo, mesmo os mais belos pensamentos, respira simplicidade e denota a ausência de pretensão.

Goethe

1. (Evocação).
─ Estou convosco.

2. ─ Qual a vossa situação como Espírito: errante ou reencarnado?
─ Errante.

3. ─ Sois mais feliz do que quando vivo?
─ Sim, pois estou desvencilhado do corpo grosseiro e vejo o que não via antes.

4. ─ Parece-me que em vida não tínheis uma situação infeliz. Onde, pois, a superioridade de vossa situação atual? Acabo de dizê-lo. Vós, adeptos do Espiritismo, deveis compreender tal situação.

5. ─ Qual a vossa opinião atual sobre o Fausto?
─ É uma obra que tinha por objetivo mostrar a vaidade e o vazio da Ciência humana e, por outro lado, exaltar o sentimento do amor, naquilo que ele tinha de belo e de puro, e condená-lo no que tinha de imoral e de mau.

6. ─ Foi por uma espécie de intuição do Espiritismo que descrevestes a influência dos maus Espíritos sobre o homem? Como fostes levado a fazer uma tal descrição?
─ Eu tinha a recordação quase exata de um mundo onde via exercer-se a influência dos Espíritos sobre os seres materiais.

7. ─ Tínheis, então, a recordação de uma existência precedente?
─ Sim, por certo.

8. ─ Poderíeis dizer se essa existência se passou na Terra?
─ Não, porque aqui não se veem os Espíritos agindo. Foi mesmo num outro mundo.

9. ─ Mas, então, já que podíeis ver os Espíritos em ação, deveria ser um mundo superior à Terra. Como é que viestes depois para um mundo inferior? Caístes? Tende a bondade de explicar.
─ Era um mundo superior até certo ponto, mas não como o entendeis. Nem todos os mundos têm a mesma organização, sem que, por isto, tenham uma grande superioridade. Além do mais, sabeis muito bem que entre vós eu cumpria uma missão que não podeis ignorar, pois ainda representais as minhas obras. Não houve queda, desde que servi, e ainda sirvo para a vossa moralização. Eu aplicava aquilo que podia haver de superior naquele mundo precedente para melhorar as paixões dos meus heróis.

10. ─ Sim, vossas obras ainda são representadas. Agora mesmo o Fausto acaba de ser adaptado para ópera. Assististes à sua representação?
─ Sim.

11. ─ Podeis dar-nos a vossa opinião sobre a maneira por que o Sr. Gounod interpretou o vosso pensamento através da música?
─ Gounod evocou-me sem o saber. Compreendeu-me muito bem. Como músico alemão eu não teria feito melhor. Talvez ele pense como músico francês.

12. ─ Que pensais do Werther?
─ Agora lhe reprovo o desenlace.

13. ─ Não teria essa obra feito muito mal, exaltando paixões?
─ Fez, e causou desgraças.

14. ─ Foi a causa de muitos suicídios. Sois por isso responsável?
─ Desde que houve uma influência maléfica espalhada por mim, é exatamente por isso que sofro ainda e de que me arrependo.

15. ─ Parece-me que em vida tínheis grande antipatia pelos franceses. Ainda a tendes hoje?
─ Sou muito patriota.

16. ─ Ainda vos ligais mais a um país do que a outro?
─ Amo a Alemanha por seu pensamento e por seus costumes quase patriarcais.

17. ─ Quereis dar-nos a vossa opinião sobre Schiller?
─ Somos irmãos pelo Espírito e pelas missões. Schiller tinha uma grande e nobre alma, de que eram reflexos as suas obras. Fez menos mal do que eu. É-me superior, porque era mais simples e mais verdadeiro.

18. ─ Poderíeis dar-nos a vossa opinião sobre os poetas franceses em geral, comparando-os aos alemães? Não se trata de vão sentimento de curiosidade, mas de nossa instrução. Consideramos os vossos sentimentos muito elevados para nos privarmos de vos pedir imparcialidade, deixando de lado qualquer preconceito nacional.
─ Sois curiosos, mas quero satisfazer-vos. Os franceses modernos escrevem muitas vezes belos poemas, mas empregam mais palavras bonitas do que boas ideias. Deveriam aplicar-se mais ao sentimento do que à mente. Falo em geral, mas faço exceções em favor de alguns: um grande poeta pobre, entre outros.

19. Um nome é sussurrado na assembleia. ─ É deste que falais?
─ Pobre, ou que simula pobreza.

20. ─ Gostaríamos de obter uma vossa dissertação sobre assunto de vossa escolha, para nossa instrução. Teríeis a bondade de nos ditar alguma coisa?
─ Fá-lo-ei mais tarde, por outros médiuns. Evocai-me em outra ocasião.

O negro pai César

Pai Cesar, homem livre, de cor, falecido a 8 de fevereiro de 1859, com 138 anos de idade, perto de Covington, nos Estados Unidos, nasceu na África e foi levado para Louisiana com cerca de 15 anos. Os restos mortais desse patriarca da raça negra foram acompanhados ao cemitério por um certo número de habitantes de Covington e uma multidão de gente de cor.
Sociedade, 25 de março de 1859.

1. (A São Luís) ─ Teríeis a bondade de dizer se podemos invocar o preto Pai César, a quem acabamos de nos referir?
─ Sim. Ajudá-lo-ei a responder.

NOTA: Este começo faz supor a situação do Espírito que desejávamos interrogar.

2. (Evocação).
─ Que quereis de mim? O que pode fazer um pobre Espírito como eu numa reunião como a vossa?

3. ─ Sois mais feliz agora do que quando vivo?
─ Sim, porque a minha situação na Terra não era boa.

4. ─ No entanto, éreis livre. Em que vos sentis mais feliz agora?
─ Porque meu Espírito não é mais negro.

NOTA: Esta resposta é mais sensata do que parece à primeira vista. Com certeza jamais o Espírito é negro. Ele quer dizer que, como Espírito, não tem mais as humilhações às quais está sujeita a raça negra.

5. ─ Vivestes muito tempo. Isto foi aproveitado para o vosso progresso?
─ Eu me aborreci na Terra, mas a uma certa idade não sofria o suficiente para ter a felicidade de progredir.

6. ─ Agora, em que empregais o vosso tempo?
─ Procuro esclarecer-me e saber em que corpo poderei fazê-lo.

7. ─ Em vida o que pensáveis dos brancos?
─ São bons, mas vãos e orgulhosos de uma brancura de que não são a causa.

8. ─ Porventura considerais a brancura como uma superioridade?
─ Sim, desde que fui desprezado por ser preto.

9. (A São Luís) ─ A raça negra é realmente inferior?
─ A raça negra desaparecerá da Terra. Ela foi feita para uma latitude diferente da vossa.

10. (Ao Pai César) ─ Dissestes que procurais um corpo com qual possais avançar. Escolhereis um corpo branco ou preto?
─ Um branco, porque o desprezo me faria mal.

11. ─ Vivestes realmente até a idade que vos é atribuída, de 138 anos?
─ Não sei exatamente, pela razão que mencionastes.

NOTA: Acabáramos de tecer considerações acerca da idade dos negros, que só podia ser calculada aproximadamente, porque não tinham registro civil, especialmente os nascidos na África.

12. (A São Luís) ─ É certo que por vezes os brancos reencarnam em corpos negros?
─ Sim. Quando, por exemplo, um senhor maltratou um escravo, pode pedir, como expiação, para viver num corpo de negro, a fim de sofrer por sua vez aquilo que fez sofrer e, por esse meio, adiantar-se e obter o perdão de Deus.




Variedades

A princesa de Rebinina

Sabeis que todos os sonâmbulos, todas as mesas girantes, todas as aves magnetizadas, todos os lápis simpáticos e todas as cartomantes predizem a guerra há muito tempo?... Neste sentido têm sido feitas profecias a muitas pessoas importantes que, afetando não levar em consideração essas pretensas revelações do mundo sobrenatural, não deixaram de ficar vivamente preocupadas com isso. De nossa parte, sem resolver a questão num ou noutro sentido, e achando mesmo que, naquilo em que François Arago punha suas dúvidas, pelo menos é permitido não nos pronunciarmos, limitamo-nos a relatar, sem comentá-los, alguns fatos de que fomos testemunha.

Há oito dias fomos convidado para uma reunião espírita em casa do Barão de G... À hora marcada, todos os convidados, em número de doze apenas, achavam-se em volta da mesa... milagrosa, uma simples mesa de acaju, sobre a qual, aliás, fora servido, para começar, o chá com os sanduíches habituais. Necessário é dizer, antes de mais nada, que desses doze convidados nenhum poderia razoavelmente incorrer na pecha de charlatanismo. O dono da casa, parente próximo de alguns ministros, pertence a uma importante família estrangeira.

Os fiéis eram constituídos por dois oficiais ingleses muito distintos; um guardamarinha francês; um príncipe russo muito conhecido; um médico de grande nomeada; um milionário; um secretário de embaixada e dois ou três vultos importantes do bairro de Saint-Germain. Nós éramos o único profano entre essas pessoas ilustres do Espiritismo, mas, em nossa qualidade de cronista parisiense e de cético por dever, não poderíamos ser acusados de uma credulidade... exagerada.

A reunião, pois, não poderia ser posta sob suspeita de representar uma comédia. E que comédia! Uma comédia inútil e ridícula, na qual cada um teria voluntariamente aceito o duplo papel de mistificador e de mistificado? Isto não é admissível. Além disso, com que propósito? Com que interesse? Não seria o caso de perguntar: “A quem se engana aqui?”

Não. Ali não havia má fé nem loucura. Se quiserem, concordemos que houve acaso... É tudo quanto a nossa consciência permite concedermos.

Ora, eis o que se passou:

Depois de haverem interrogado o Espírito sobre uma porção de coisas, perguntaram-lhe se as esperanças de paz ─ que então pareciam muito grandes ─ tinham fundamento.
─ Não, respondeu ele muito claramente, em duas ocasiões diferentes.
─ Teremos a guerra?
─ Com certeza!...
─ Quando?
─ Em oito dias.
─ Entretanto, o Congresso só se reunirá no mês que vem... Isto afasta muito a eventualidade de um começo de hostilidades.
─ Não haverá Congresso!
─ Por quê?
─ A Áustria recusar-se-á.
─ E qual será a causa vitoriosa?
─ A da justiça e do direito... a da França.
─ E como será a guerra?
─ Curta e gloriosa.

Isto nos traz à memória um outro fato do mesmo gênero, que também se passou sob nossas vistas, há alguns anos.

Todos se recordam que durante a guerra da Crimeia, o Imperador Nicolau chamou à Rússia todos os súditos que moravam na França, sob pena de lhes confiscar os bens em caso de desobediência.

Então nos encontrávamos em Leipzig, na Saxônia, onde, como aliás por toda parte, havia um vivo interesse pela campanha que se iniciava. Um dia recebemos o seguinte bilhete:

“Estou aqui por algumas horas apenas. Venha ver-me no Hotel da Polônia, n. 13! Princesa de Rebinina.”

Era muito nossa conhecida a princesa Sofia de Rebinina, uma criatura encantadora e distinta, cuja história era todo um romance (que um dia escreveremos) e que nos honrava chamando-nos de amigo. Apressamo-nos em atender ao seu amável convite, pois ficamos tão agradavelmente surpreendido quanto satisfeito por sua passagem por Leipzig.

Era um domingo, dia 13, e o tempo estava naturalmente cinzento e triste, como de costume nesta parte da Saxônia. Encontramos a princesa em seu aposento, mais graciosa e espirituosa do que nunca; apenas um pouco pálida e melancólica.

Fizemos-lhe esta observação.

Para começar, respondeu-nos ela, parti como uma bomba. Tinha de ser assim, pois estamos em guerra e sinto-me um pouco fatigada da viagem. Depois, embora agora sejamos inimigos, não vos oculto que é com pena que deixo Paris. Há muito tempo me considerava quase francesa, e a ordem do Imperador faz-me romper com um velho e doce hábito.─ Por que não ficastes tranquilamente no vosso lindo apartamento da Rua
Rumfort?
─ Porque me teriam cortado as rendas.
─ Ora! Mas não contais entre nós com tantos e tão bons amigos?
─ Sim... pelo menos o creio. Mas na minha idade uma mulher não gosta de se dar em hipoteca... Os juros por vezes são maiores do que o capital! Ah! Se eu fosse velha, seria outra coisa. Mas então não me emprestariam.
Aí a princesa mudou de assunto.
─ Ah! Disse ela, sabeis que tenho uma natureza muito absorvente... Aqui não conheço viva alma... Posso contar convosco durante o dia todo?

É fácil adivinhar a nossa resposta.

À uma hora ouvimos o sino no pátio e descemos para o almoço no salão. Nesse momento, todos falavam da guerra... e das mesas girantes.

No que concerne à guerra, a princesa estava certa de que a frota anglo-francesa seria destruída no Mar Negro e ela mesma ter-se-ia corajosamente encarregado de incendiá-la, se o Imperador Nicolau lhe houvesse confiado essa delicada e perigosa missão. Quanto às mesas girantes sua fé era menos sólida, mas propôs fazermos algumas experiências, com outro de nossos amigos que lhe havíamos apresentado na hora da sobremesa.

Subimos para os seus aposentos. Ali nos serviram café. Como chovia, passamos a tarde a interrogar uma tripeça, dessas que ainda se veem por aqui.
─ E a mim, perguntou de repente a princesa, nada tens a dizer?
─ Não.
─ Por quê?
A mesinha bateu treze pancadas. Ora, devemos lembrar que era um dia 13 e que o apartamento da Princesa de Rebinina tinha o número 13.
─ Isto quer dizer que o número 13 me é fatal? perguntou a princesa, que tinha algum receio supersticioso desse número.
─ Sim! bateu a mesa.
─ Não importa!... Sou um Bayard do sexo feminino. Podes falar sem medo, seja o que for que tenhas a anunciar-me. Interrogamos a tripeça, que persistiu, de começo, na sua prudente reserva. Por fim, conseguimos arrancar-lhe as seguintes palavras:
─ Doente... oito dias... Paris.., morte violenta!

A princesa achava-se muito bem. Acabara de deixar Paris e não esperava tão cedo rever a França... A profecia da mesa era pelo menos absurda quanto aos três primeiros pontos... Quanto ao último, inútil acrescentar que nem quisemos deter-nos sobre ele.

A princesa deveria partir às oito horas da noite, pelo trem de Dresden, a fim de chegar a Varsóvia dois dias depois, pela manhã, mas perdeu o trem.
─ Na verdade, disse ela, vou deixar aqui minha bagagem e tomarei o trem das quatro horas da manhã.
─ Então ireis pernoitar no hotel?
─ Voltarei para lá, mas não me deitarei. Vou assistir da frisa dos estrangeiros ao baile desta noite. Gostaríeis de fazer-me companhia?

O Hotel da Polônia, cujos vastos e magníficos salões comportam pelo menos duas mil pessoas, dá quase que diariamente, no verão como no inverno, um grande baile, organizado por alguma sociedade da cidade, mas reserva para a assistência, no alto, uma galeria particular, onde os viajantes podem apreciar o espetáculo, ver a animação e ouvir uma orquestra excelente.

Aliás, na Alemanha jamais se esquecem dos estrangeiros, que têm por toda parte frisas reservadas, o que explica por que os alemães que vêm a Paris pela primeira vez pedem sempre, nos teatros e concertos, a frisa dos estrangeiros.

O baile daquele dia era muito brilhante e a princesa, apesar de simples espectadora, mostrava um verdadeiro prazer. Assim, tinha esquecido a tripeça e suasinistra predição, quando um dos garçons do hotel lhe trouxe um telegrama que acabara de chegar. O telegrama dizia assim:

“Madame Rebinina, Hotel da Polônia, Leipzig. Presença indispensável Paris.

Graves interesses!” Seguia-se a assinatura do procurador da princesa. Algumas horas mais tarde ela retomava o caminho de Colônia, em vez do trem de Dresden. Oito dias depois soubemos que tinha morrido!

PAULIN NIBOYET

O major Georges Sydenham

Encontramos o seguinte relato numa coleção notável de histórias autênticas de aparições e de outros fenômenos espíritas, publicada em Londres em 1682, pelo Reverendo J. Granville e pelo Dr. H. More. O título é: Aparição do Espírito doMajor Georges Sydenham ao Capitão V. Dyke, extraída de uma carta do Sr. Jacques Douche, de Mongton, ao Sr. J. Granville.

... Pouco tempo depois da morte do Major Georges, o Dr. Th. Dyke, parente próximo do Capitão, foi chamado para tratar de uma criança doente. O doutor e o capitão deitaram-se no mesmo leito. Depois de um ligeiro sono, o capitão chamou o criado e lhe pediu que trouxesse duas velas acesas, as maiores e mais grossas que encontrasse. O doutor lhe perguntou o que isso significava.

Respondeu-lhe o capitão:

“O senhor sabe de minhas discussões com o major, relativamente à existência de Deus e à imortalidade da alma. Não nos foi possível elucidar estes pontos, embora sempre o tivéssemos desejado.

“Ficou combinado entre nós dois que aquele que morresse primeiro viria na terceira noite após os funerais, entre meia noite e uma hora, ao jardim desta pequenacasa e ali esclareceria o sobrevivente a esse respeito.

“É hoje mesmo”, acrescentou o capitão, “que o major deve cumprir a sua promessa.”

Em vista disso, pôs o relógio ao seu lado, levantou-se às onze e meia, tomou uma vela em cada mão, saiu pela porta dos fundos e passeou no jardim durante duas horas e meia. Voltando, declarou ao doutor que nada vira nem ouvira que não fosse muito natural. Mas, ─ acrescentou ele ─ sei que o major teria vindo se pudesse. Seis semanas depois o capitão foi a Eaton, levar o filho para o colégio, tendo o doutor vindo com ele. Hospedaram-se numa estalagem, com a tabuleta de São Cristóvão, onde ficaram dois ou três dias, mas não dormiram juntos, como em Dulversan. Ocupavam dois quartos separados.

Uma manhã o capitão ficou mais tempo que de costume em seu quarto, antes de chamar o doutor. Por fim entrou no quarto deste último com as feições alteradas, cabelos eriçados, os olhos esbugalhados e o corpo todo trêmulo.
─ “Que aconteceu, primo capitão?” perguntou o doutor.
─ Eu vi o major, respondeu o capitão. O doutor parecia sorrir.
─ Eu lhe afirmo que o vi hoje, ou jamais o vi em toda a minha vida.

Então me contou a seguinte história:

“Esta manhã, ao romper do dia, alguém chegou à beira da minha cama, arrancou as cobertas e gritou: Cap, cap (era a palavra que de costume o major usava para chamar o capitão).

Respondi: Ora viva, meu major!

Ele continuou: Não pude vir naquele dia. Agora, porém, eis-me aqui e lhe digo: “Há um Deus, muito justo e terrível. Se você não mudar de pele, verá quando aqui chegar.”

Sobre a mesa havia uma espada que o major me havia dado. Fez duas ou três voltas no quarto, tomou da espada, desembainhou-a e não a encontrando tão polida quanto deviar, disse: “Cap, cap, quando esta espada era minha estava mais bem conservada.”

A estas palavras desapareceu subitamente.

O capitão não só ficou perfeitamente persuadido da realidade do que tinha visto e ouvido, mas desde então se tornou muito mais sério. Seu caráter, outrora leviano e jovial, foi notavelmente modificado. Quando convidava seus amigos, tratava-os com prodigalidade, mas se mostrava muito sóbrio consigo mesmo. As pessoas que o conheciam asseguravam que ele acreditava muitas vezes ouvir repetirem-se nos seus ouvidos as palavras do major, durante os dois anos que viveu depois desta aventura.

ALLAN KARDEC


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