Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Maio

Cenas da vida particular espírita.

Apresentamos no último número o quadro da vida espírita em conjunto.

Seguimos os Espíritos, desde que deixam o corpo terreno, e esboçamos rapidamente as suas ocupações. Hoje nos propomos mostrá-los em ação, para o que reunimos no mesmo quadro várias cenas íntimas, cujo testemunho nos foi dado através das comunicações. As numerosas conversas familiares de além-túmulo já publicadas nesta revista podem dar uma ideia da situação dos Espíritos, conforme o seu grau de progresso. Aqui, porém, há um caráter especial de atividade, que nos dá a conhecer ainda melhor o papel que, malgrado nosso, representam entre nós. O tema de estudo, cujas peripécias vamos relatar, se nos ofereceu espontaneamente e apresenta tanto mais interesse quanto o herói principal não é um desses Espíritos superiores, habitantes de mundos desconhecidos, mas um desses que, por sua natureza, ainda estão presos à Terra; um contemporâneo que nos deu provas manifestas de sua identidade. A ação se passa entre nós e cada um de nós tem nela um papel.

Além do mais, este estudo dos costumes espíritas tem de particular a circunstância de mostrar-nos o progresso dos Espíritos na erraticidade e a maneira de concorrermos para a sua educação.

Depois de longas experiências infrutíferas, das quais triunfou a sua paciência, um dos nossos amigos tornou-se, repentinamente, magnífico médium psicógrafo e audiente. Ocupado, certa vez, na psicografia, com outro médium seu amigo, a uma pergunta dirigida a um Espírito, obteve resposta esquisita e pouco séria, que não correspondia ao caráter do Espírito evocado. Tendo interpelado o autor da resposta, intimando-o, em nome de Deus, a dar-se a conhecer, o Espírito assinou Pierre Le Flamand. Estabeleceu-se então entre ambos, e mais tarde entre nós e o Espírito, uma série de conversas que vamos transcrever.

Primeira conversa.

1. Quem és? Não conheço ninguém com este nome.

— Um dos teus antigos colegas de colégio.

2. Não tenho a menor lembrança.

— Não te lembras de um dia ter levado uma surra?

3. É possível. Entre escolares isto acontece às vezes. Lembro-me de algo do gênero, mas também me recordo de ter pago na mesma moeda.

— Era eu, mas não guardei mágoa.

4. Obrigado. Tanto quanto me recordo, tu eras um moleque bastante mau.

— Agora te volta a memória! Pois não mudei enquanto vivi. Eu tinha a cabeça dura, mas no fundo não era mau. Brigava com o primeiro que aparecesse. Para mim era como se fosse uma necessidade. Quando virava as costas já não pensava mais no caso.

5. Quando e em que idade faleceste?

— Há quinze anos. Eu tinha cerca de vinte.

6. De que morreste?

— Um desatino de moço. . . consequência de minha falta de juízo. . .

7. Ainda tens família?
— Há muito que eu havia perdido pai e mãe; morava com o tio, meu único parente. Se fores a Cambrai aconselho-te a procurá-lo. É uma excelente criatura, de quem muito gosto, embora me tenha tratado duramente. Mas eu o merecia.

8. Ele tem o mesmo nome que você?

— Não. Em Cambrai não há mais ninguém com o meu nome. Chama-se W. . .; reside na rua. . . n.º. . . Verás que sou eu mesmo que falo contigo.

Nota. O fato foi verificado pelo próprio médium, num passeio feito algum tempo depois. Encontrou o Sr. W. . . no endereço indicado. Ele contou que de fato tinha tido um sobrinho com esse nome, estroina e endiabrado, falecido em 1844, pouco tempo depois de ter sido convocado para o serviço militar. Esta circunstância não havia sido indicada pelo Espírito. Fê-lo espontaneamente mais tarde. Veremos em que ocasião.

9. Por que obra do acaso vieste ao meu encontro?

— Foi por acaso, se assim o quiseres, mas eu prefiro acreditar que foi o meu bom gênio que me empurrou para ti, pois me parece que ambos lucraremos com o restabelecimento de nossas relações. . . Eu estava aqui ao lado, no teu vizinho, apreciando os quadros. . . mas não quadros de santos. . . de repente eu te avistei e vim. Vi-te ocupado a conversar com outro Espírito e quis meter-me na conversa.

10. Mas por que respondeste às perguntas feitas ao outro? Isto não é próprio de um bom camarada.

— Eu estava em presença de um Espírito sério e que não me parecia disposto a responder. Respondendo por ele, eu pensava que ele desatasse a língua, mas não tive sorte. Não dizendo a verdade, eu queria forçá-lo a falar.

11. Isto não é direito, pois poderia ter dado resultados desagradáveis, se eu não tivesse percebido o embuste.

— Tê-lo-ias verificado, mais cedo ou mais tarde.

12. Dize-me, então, como entraste aqui.

— Esta é boa! Porventura temos necessidade de tocar a campainha?

13. Então podes ir a toda parte e entrar em qualquer lugar?

— Mas é claro que sim, e sem fazer-me anunciar! Não é à toa que somos Espíritos.

14. Entretanto, eu pensava que nem todos os Espíritos pudessem penetrar em todas as reuniões.

— Pensas, por acaso, que teu quarto é um santuário e que eu seja indigno de nele penetrar?

15. Responde seriamente à minha pergunta e deixa-te de brincadeiras de mau gosto. Vês que não tenho disposição para elas e que os Espíritos mistificadores não são aqui bem recebidos.

— Há reuniões de Espíritos onde nós outros, gente à-toa, não podemos penetrar. Lá isso é verdade, mas são os Espíritos superiores que nos impedem e não vocês, homens. Aliás, quando vamos a algum lugar, sabemos muito bem ficar calados e à distância, se necessário. Escutamos, e quando a coisa nos enfastia, vamo-nos embora. . . Ora, vamos! Parece que não estás satisfeito com a minha visita.

16. É que eu não recebo com satisfação o primeiro que aparece e francamente, não fiquei satisfeito por perturbares uma conversa séria.

— Não te zangues. . . não desejo aborrecer-te. . . sou sempre bonzinho. Da próxima vez me farei anunciar.

17. Então estás morto há quinze anos. . .

— Entendamo-nos. Quem está morto é o meu corpo, mas eu, que te falo, não estou morto.

Nota. Encontram-se, por vezes, mesmo entre Espíritos levianos e brincalhões, palavras de grande profundeza. Este EU que não está morto é toda uma filosofia.

18. É assim que o compreendo. A propósito, dize-me uma coisa: Assim como estás agora, podes ver-me com tanta nitidez como se estivesses em teu corpo?

— Vejo-te ainda melhor. Eu era míope. Foi por isto que me quis livrar do serviço militar.

19. Então, com eu ia dizendo, estás morto há quinze anos e me parece que és tão desmiolado como antes. Quer dizer que não progrediste?

— Sou aquilo que era, nem pior, nem melhor.

20. Como passas o tempo?

— Não tenho outra ocupação senão divertir-me ou informar-me dos acontecimentos que podem ter influência sobre o meu destino. Vejo muitas coisas.

Passo parte do tempo em casa de amigos, no teatro. . . Por vezes surpreendo coisas engraçadas. . . Se as pessoas soubessem que têm testemunhas quando pensam estar sozinhas!. . . Enfim, procedo de maneira que o tempo me seja o menos pesado possível. . . Não saberia dizer quanto tempo isto durará, entretanto, há algum tempo que vivo assim. . . Tens visto muitos casos como este?

21. Em suma, és mais feliz do que eras quando vivo?

— Não.

22. Que é o que te falta? De nada mais necessitas; não sofres mais; não temes ser arruinado; vais a toda parte e tudo vês; não temes as preocupações, nem as doenças, nem os achaques da velhice. Não será isso uma existência feliz?

— Falta-me a realidade dos prazeres. Não sou suficientemente evoluído para gozar de uma felicidade moral. Desejo tudo aquilo que vejo, e isto é o meu suplício; aborreço-me e procuro matar o tempo como posso!. . . E como isto dura!. . .

Experimento um mal-estar indefinível; preferiria sofrer as misérias da vida a esta ansiedade que me acabrunha.

Nota. Não está aqui um quadro eloquente dos sofrimentos morais dos Espíritos inferiores? Invejar tudo quanto veem; ter os mesmos desejos e nada gozar de fato, deve ser verdadeira tortura.

23. Disseste que ias ver os amigos. Não tens aí uma distração?

— Meus amigos não percebem a minha presença. Além disso, não se lembram mais de mim. E isto me dói.

24. Não tens amigos entre os Espíritos?

— Desatinados e inúteis como eu, que como eu se aborrecem. Sua companhia não é muito agradável. Aqueles que raciocinam e são felizes se afastam de mim.

25. Pobre rapaz! Eu te lamento, e se te puder ser útil, sê-lo-ei com prazer.

— Se soubesses como estas palavras me fazem bem! É a primeira vez que as ouço.

26. Não poderias encontrar oportunidades de ver e ouvir coisas boas e que fossem úteis ao teu progresso?

— Sim, mas para tanto seria preciso que eu soubesse aproveitar as lições. Confesso que prefiro assistir às cenas de amor e deboche, que não têm influenciado meu Espírito para o bem. Antes de vir até aqui, lá estava eu observando quadros que me despertavam certas ideias. . . Mas acabemos com isto. . . Entretanto, eu soube resistir à vontade de pedir uma reencarnação para gozar dos prazeres de que tanto abusei. Agora vejo quanto teria errado. Vindo à tua casa, sinto que fiz bem.

27. Pois então! Espero que para o futuro, caso queiras a minha amizade, me dês o prazer de não mais prestar atenção a esses quadros que podem despertar más ideias; que, ao contrário, penses naquilo que aqui poderás ouvir de bom e de útil para ti. Sentir-te-ás bem, acredite.

— Se é o teu propósito, será também o meu.

28. Quando vais ao teatro experimentas as mesmas emoções de quando vivo?

— Várias emoções diferentes. A princípio aquelas; depois misturo-me nas conversas e escuto coisas muito singulares.

29. Qual o teu teatro predileto?

— “Les Variétés”. Acontece-me, entretanto, muitas vezes, percorrer todos na mesma noite. Também vou aos bailes e aos locais de divertimento.

30. De modo que, ao mesmo tempo que te divertes, te instruis, por que é possível muito observar na tua posição.

— Sim, mas o que mais aprecio são certos colóquios. É realmente interessante ver a manobra de certas criaturas, sobretudo daquelas que ainda querem passar por jovens. Em todo esse palavreado, ninguém diz a verdade. Assim como se pinta o rosto, maquia-se o coração, de tal forma que ninguém se entende. Neste particular fiz um estudo dos costumes.

31. Pois aí está! Não vês que poderíamos ter boas conversas, como esta, da qual ambos podemos tirar proveito?

— Certamente. Como tu dizes, primeiro para ti, depois para mim. Tu tens as ocupações de que necessita o teu corpo. Eu posso dar todos os passos possíveis para instruir-me, sem prejudicar a minha existência.

32. Já que assim é, continuarás as tuas observações ou, como dizes, os teus estudos dos costumes. Até aqui quase que não os aproveitaste. É necessário que eles sirvam ao teu esclarecimento, para o que terás de fazê-lo com um objetivo sério e não para te divertires e matar o tempo. Dir-me-ás aquilo que viste. Raciocinaremos e tiraremos as conclusões para a nossa mútua instrução.

— Isto vai ser muito interessante. Sim, estou a teu serviço, sem dúvida nenhuma.

33. Isto não é tudo. Eu gostaria de proporcionar-te ocasião para a prática de uma boa ação. Queres?

— De todo o coração! Assim, dirão que poderei servir para alguma coisa. Dizeme logo o que devo fazer.

34. Devagar! Eu não confio missões assim delicadas àqueles em quem não tenho confiança. Tens boa vontade, não há dúvida. Terás, entretanto, a necessária perseverança? Eis a questão. É preciso, então, que eu te ensine a te conheceres melhor, a fim de saber aquilo de que és capaz e até que ponto posso contar contigo. Falaremos uma outra vez.

— Verás.

35. Por hoje, então, adeus!

— Até logo.

Segunda conversa.

36. Então, meu caro Pedro, refletiste seriamente sobre o que conversamos outro dia?

— Mais do que pensas. Tomei a peito provar-te que valho mais do que pareço. Sinto-me mais à vontade, desde que tenho algo a fazer. Agora tenho um objetivo e não me aborreço mais.

37. Falei de ti ao Sr. Allan Kardec. Dei-lhe conhecimento de nossa conversa, com o que ficou muito satisfeito. Ele deseja entrar em contato contigo.

— Eu sei. Estive na casa dele.

38. Quem te levou?

— Teu pensamento. Voltei aqui depois daquele dia; vi que tu lhe querias falar a meu respeito e disse com os meus botões: Vamos lá primeiro; possivelmente encontrarei material de observação e talvez uma ocasião de ser útil.

39. Gosto de ver-te com tão sérios pensamentos. Que impressão tiveste da visita?

— Oh! Muito grande. Aprendi coisas que nem suspeitava e que me esclareceram quanto ao meu futuro. É como uma luz que se fez em mim. Agora compreendo tudo quanto tenho a ganhar com o meu aperfeiçoamento. . . É preciso. . . é preciso.

40. Poderia eu, sem indiscrição, perguntar o que viste lá?

— Certamente. Tanto o que vi lá como em outros lugares, no entanto sempre direi apenas o que eu quiser. . . ou o que eu puder.

41. Como assim? Não podes dizer tudo quanto queres?

— Não. De alguns dias para cá vejo um Espírito que parece seguir-me por toda parte, que me impele ou me contém. Dir-se-ia que ele me dirige. Sinto um impulso, cuja causa desconheço, mas obedeço, malgrado meu. Se quero dizer ou fazer algo fora de propósito, posta-se à minha frente. . . olha-me. . . e eu me calo. . . eu paro.

42. Quem é esse Espírito?

— Nada sei; mas ele me domina.

43. Por que não lhe perguntas?

— Não ouso. Quando lhe quero falar ele me olha e eu sinto a língua travada.

Nota. É evidente que aqui o vocábulo língua está em sentido figurado. Os Espíritos não têm linguagem articulada.

44. Deves perceber se ele é bom ou mau.

— Deve ser bom, pois que me impede de dizer tolices. Mas é severo. . . Por vezes tem um ar encolerizado; outras vezes parece olhar-me com ternura. . . Veio-me a ideia de que poderia ser o Espírito de meu pai, que não quer dar-se a conhecer.

45. É provável. Parece que não está muito satisfeito contigo. Ouve bem. Vou dar-te uma informação a respeito disto. Sabemos que os pais têm por missão educar os filhos e encaminhá-los para o bem. Consequentemente, são responsáveis pelo bem ou pelo mal que os filhos praticarem, conforme a educação recebida, com o que sofrem ou são felizes no mundo dos Espíritos. A conduta dos filhos influi, pois, até certo ponto, sobre a felicidade ou a desventura de seus pais, depois de mortos. Como tua conduta na Terra não foi muito edificante e como, depois de morto, não fizeste grande coisa de bom, teu pai deve sofrer com isso, caso deva censurar-se por não te haver guiado bem. . .

— Se eu não me tornei um homem de bem, não foi por que me tenha faltado, mais de uma vez, a adequada corrigenda.

46. Talvez não tivesse sido o melhor meio de corrigir-te. Seja como for, sua afeição por ti é sempre a mesma e ele o prova aproximando-se de ti, caso seja ele, como o presumo. Deve sentir-se feliz com a tua mudança. Isto explica suas alternativas de ternura e de cólera. Quer auxiliar-te no bom caminho em que acabas de entrar, e quando te vir resolutamente empenhado nisso, estou certo que se dará a conhecer. Assim, trabalhando por tua própria felicidade, trabalharás pela dele. Eu não me admiraria se tivesse sido ele próprio quem te impeliu a vir até aqui. Se não o fez antes foi porque quis dar-te o tempo de compreenderes o vazio de tua existência sem obras e de sentir-lhe os desgostos.

— Obrigado! Obrigado!. . . Ele está aqui, atrás de ti! Pôs a mão sobre tua cabeça, como se te ditasse as palavras que acabas de proferir.

47. Voltemos ao Sr. Allan Kardec.

— Fui à casa dele anteontem à noite. Estava ocupado, escrevendo em seu gabinete. . . Trabalhava numa nova obra em preparo. . . Ah! Ele cuida bem de nós, pobres Espíritos. Se não somos conhecidos, não é por sua culpa.

48. Estava só?

— Só, sim, isto é, não havia lá outras pessoas. Havia, porém, ao seu redor, cerca de vinte Espíritos que cochichavam acima de sua cabeça.

49. Ele os escutava?

— Ouvia-os tão bem que olhava para todos os lados de onde vinha o ruído, para ver se não eram milhares de moscas. Depois abriu a janela para ver se não seria o vento ou a chuva.

Nota. O fato é absolutamente exato.

50. Reconheceste algum entre tantos Espíritos?

— Não. Não são aqueles cuja companhia eu procurava. Eu tinha a impressão de ser um intruso. Fiquei num canto a fim de observar.

51. Os Espíritos davam a impressão de observar o que ele escrevia?

— Penso que sim. Dois ou três, sobretudo, sopravam aquilo que ele escrevia e davam a impressão de ouvir a opinião dos outros. Contudo ele acreditava piamente que as ideias lhe eram próprias, e parecia contente com isso.

52. Foi tudo o que viste?

— Depois chegaram oito ou dez pessoas que se reuniram numa outra sala com Kardec. Puseram-se a conversar. Faziam perguntas e ele respondia, explicava.

53. Conheces as pessoas que lá estavam?

— Não. Sei apenas que havia pessoas importantes, porque a um deles chamavam sempre Príncipe, e a outro, senhor Duque. Também os Espíritos chegaram em massa. Havia pelo menos uns cem, dos quais alguns tinham uma espécie de coroa de fogo. Os outros mantinham-se à distância, escutando.

54. E tu, o que fazias?

— Também escutava. Mas sobretudo observava. Então veio-me a ideia de fazer uma manobra muito útil a Kardec. Quando eu tiver alcançado êxito, dir-te-ei o que foi. Depois deixei a reunião e vagando pelas ruas diverti-me em frente às lojas, misturando-me com a multidão.

55. De modo que, em vez de ir aos teus afazeres, perdias teu tempo?

— Não o perdi, porque impedi que fosse praticado um roubo.

56. Ah! Então tu te metes também nos assuntos da polícia?

— Por que não? Passando em frente a uma loja que estava fechada, notei que lá dentro se passava algo de singular; entrei; vi um moço muito agitado, que ia e vinha, como se quisesse ir à caixa do negociante. Havia com ele dois Espíritos, que lhe sopravam ao ouvido: Vamos, covarde! A gaveta está cheia; poderás divertir-te à vontade, etc. O outro tinha um rosto de mulher, belo e cheio de nobreza e qualquer coisa de celeste e de bom no olhar. Ele dizia: Vai-te, vai-te! Não te deixes tentar; e lhe soprava as palavras: prisão, desonra.

O moço hesitava. No momento em que se aproximava do balcão, meti-me à sua frente, para impedi-lo. O mau Espírito perguntou por que eu estava me metendo. Eu lhe disse que queria impedir que o moço cometesse uma ação indigna que talvez o levasse para as galés. Então o bom Espírito aproximou-se de mim e me disse: “É preciso que ele sofra a tentação; é uma prova. Se sucumbir, será por sua culpa.” O meu ladrão ia triunfar, depois que o mau Espírito empregou uma astúcia abominável, que deu resultado: fez-lhe ver uma garrafa sobre uma mesinha. Era aguardente. Inspirou-lhe a ideia de beber, a fim de ter coragem. O infeliz está perdido, pensei eu. . . Procuremos pelo menos salvar alguma coisa. Eu não tinha outro recurso senão avisar o patrão. . . Depressa! Num ápice, lá estava eu. Ele se preparava para jogar cartas com a mulher; era preciso achar um meio de fazê-lo descer.

57. Se ele fosse médium, poderias tê-lo feito escrever que ia ser roubado. Ele pelo menos acreditaria em Espíritos?

— Não tinha bastante espírito para saber o que é isso.

58. Eu ignorava que tivesses habilidade para fazer trocadilhos.

— Se me interrompes não direi mais nada. Provoquei-lhe um violento espirro. Ele quis tomar uma pitada e notou que havia deixado na loja a caixa de rapé. Chamou o filho que cochilava a um canto e mandou que fosse buscá-la. . . Não era isto o que eu queria. O menino levantou-se resmungando. Soprei à mãe que dissesse: Não acordes a criança, tu bem podes ir buscá-la. Por fim ele se decidiu. . . eu o acompanhei, para que se apressasse. Chegando à porta percebeu luz na loja e ouviu um barulho. Ficou tomado de medo; as pernas começaram a tremer; empurrei-o para frente. Se tivesse entrado subitamente, pegaria o ladrão como numa armadilha. Em vez disso o imbecil pôs-se a gritar: pega ladrão! O ladrão escapuliu, mas na precipitação, perturbado também pela aguardente, esqueceu o boné. O negociante entrou quando já não havia mais ninguém. . . Que acontecerá com o boné? Isto não é comigo. Aquele sujeito está metido em maus lençóis. Graças a mim não houve tempo de consumar-se o furto, do qual o negociante se livrou pelo medo. Isto não impediu que, ao subir, ele dissesse que tinha enfrentado um homem de seis pés de altura. ─ “Vejam só”, disse ele, “como são as coisas! Se eu não tivesse tido a ideia de tomar uma pitada!” ─ “Se eu não tivesse impedido que mandasses o menino!” retorquiu a mulher. ─ “Convenhamos que nós ambos farejamos bem!” ─ “Foi muita sorte!” Vês tu, meu caro, como nos agradecem!

59. És um bravo rapaz, meu caro Pedro. Eu te felicito. Não percas a coragem diante da ingratidão dos homens. Experimentarás isto muitas outras vezes, agora que te dispões a lhes prestar serviço, até mesmo entre os que acreditam na intervenção dos Espíritos.

— Sim, e sei que os ingratos serão pagos com ingratidão.

60. Vejo agora que posso contar contigo, e que tornar-te-ás realmente sério.

— Verás mais tarde que serei eu quem te ensinará moral.

61. Eu o necessito, como qualquer pessoa, e recebo de boa vontade os bons conselhos, venham de onde vierem. Eu te disse que queria que praticasses uma boa ação. Estás disposto?

— E duvidas?

62. Um dos meus amigos parece estar ameaçado de grandes decepções, se continuar pelo mau caminho em que se acha; suas ilusões poderão perdê-lo. Gostaria que tentasses reconduzi-lo ao bom caminho, por qualquer meio que pudesse impressioná-lo vivamente. Compreendes o meu pensamento?

— Sim. Queres que eu lhe produza alguma boa manifestação, como, por exemplo, uma aparição. Mas isto não depende de mim. Entretanto posso, eventualmente, e desde que tenha permissão para isso, dar provas sensíveis de minha presença, bem o sabes.

Nota. O médium ao qual este Espírito parece estar ligado é advertido de sua presença por uma impressão muito sensível, mesmo quando não lhe ocorre chamá-lo.

Reconhece-o por uma espécie de arrepio que sente nos braços, nas costas e nas espáduas. Às vazes, porém, os efeitos são mais enérgicos. Numa reunião em nossa casa, a 24 de março último, esse Espírito respondeu às perguntas por intermédio de outro médium. Falava-se de sua força física. De repente, como que para dar uma prova disso, ele agarrou um dos assistentes pela perna e por meio de violenta sacudida levantou-o da cadeira e o atirou, atordoado, para o outro lado da sala.

63. Farás o que quiseres, ou melhor, o que puderes. Aviso-te que ele tem alguma mediunidade.

— Tanto melhor para o meu desígnio.

64. Que pensas fazer?

— Para começar vou estudar a situação. Vou ver de que Espíritos está ele cercado e se há meios de algo fazer com eles. Uma vez em sua casa, eu me anunciarei, como fiz contigo. Interpelar-me-ão e eu responderei: “Sou eu, Pierre Le Flamand, mensageiro espiritual. Venho pôr-me ao vosso serviço e, ao mesmo tempo, desejo servir-vos. Ouvi dizer que alimentais certas esperanças que vos transtornam a cabeça e que já vos levam a voltar as costas aos amigos. Em vosso interesse, é meu dever advertir-vos de quanto vossas ideias estão longe de ser proveitosas à vossa felicidade futura. Palavra de Le Flamand! Posso garantir que vos venho visitar animado de boas intenções. Temei a cólera dos Espíritos e, mais ainda, a de Deus; e crede nas palavras do vosso servo que deseja vos afirmar que a sua missão é toda para o bem.” (sic).

Se me enxotarem, voltarei três vezes. Depois verei o que devo fazer. É isto?

65. Muito bem, meu amigo. Não digas mais nem menos.

— Palavra por palavra.

66. Mas se te perguntarem quem te encarregou dessa missão, que responderás?

— Espíritos superiores. Para o bem, posso não dizer toda a verdade.

67. Enganas-te. Desde que se trata do bem, é sempre por inspiração dos bons Espíritos. Assim, tua consciência pode estar tranquila, pois os maus Espíritos jamais nos levam a fazer boas coisas.

— Está entendido.

68. Agradeço-te e te felicito pela boa disposição. Quando queres que te chame para me comunicares o resultado de tua missão?

— Eu te avisarei.



Música de além-túmulo

Mozart

O Espírito de Mozart acaba de ditar ao nosso excelente médium, Sr. Bryon-Dorgeval, um fragmento de sonata. Como meio de controle, este último o fez ouvir por diversos artistas, sem lhes indicar a origem, mas lhes perguntando apenas o que achavam do trecho. Cada um nele reconheceu, sem hesitação, o estilo de Mozart. O trecho foi executado na sessão da Sociedade de 8 de abril último, em presença de numerosos conhecedores, pela senhorinha de Davans, aluna de Chopin e distinta pianista, que teve a gentileza de nos prestar o seu concurso. Como elemento de comparação, a senhorinha de Davans executou antes uma sonata que Mozart compusera quando vivo. Todos foram unânimes em reconhecer não só a perfeita identidade do gênero, mas ainda a superioridade da composição espírita. A seguir, com o seu talento habitual, a mesma pianista executou um trecho de Chopin. Não poderíamos perder esta ocasião para invocar os dois compositores, com os quais tivemos a seguinte conversa.

1. ─ Sabeis, sem dúvida, o motivo por que vos chamamos.
─ Vosso chamado me é agradável.

2. ─ Reconheceis como ditado por vós o trecho que acabamos de ouvir?
─ Sim. Muito bem. Eu o reconheço perfeitamente. O médium que me serviu de intérprete é um amigo que não me traiu.

3. ─ Qual dos dois trechos preferis?
─ O segundo, sem termo de comparação.

4. ─ Por quê?
─ A doçura e o encanto são nele mais vivos e mais ternos.

NOTA: São estas, realmente, as qualidades reconhecidas no trecho.

5. ─ A música do mundo que habitais pode comparar-se à nossa?
─ Teríeis dificuldades de compreender. Temos sentidos que ainda não possuís.

6. ─ Disseram-nos que no vosso mundo há uma harmonia natural, universal, que não conhecemos aqui em baixo.
─ É verdade. Aí na Terra fazeis a música; aqui, toda a Natureza emite sons melodiosos.

7. ─ Poderíeis tocar piano?
─ Sem dúvida que sim. Mas não o quero. Seria inútil.

8. ─ Seria, entretanto, poderoso motivo de convicção.
─ Não estais convencidos?

NOTA: Sabe-se que os Espíritos jamais se submetem a provas. Muitas vezes fazem espontaneamente aquilo que não pedimos. Esta, aliás, entra na categoria das manifestações físicas, com as quais não se ocupam os Espíritos elevados.

9. ─ Que pensais da recente publicação de vossas cartas?
─ Avivaram muito a minha lembrança.

10. ─ Vossa lembrança está na memória de todos. Poderíeis precisar o efeito que essas cartas produziram na opinião pública?
─ Sim. Elas me fizeram mais amado e as criaturas se apegaram muito mais a mim, como homem, do que antes.

NOTA: A pessoa, aliás estranha à Sociedade, que fez estas últimas perguntas, confirma que foi essa realmente a impressão produzida por aquela publicação.

11. ─ Desejamos interrogar Chopin. Será possível?
─ Sim. Ele é mais triste e mais sombrio do que eu.

Chopin

12. (Após a evocação.) ─ Poderíeis dizer-nos em que situação estais como
Espírito?
─ Ainda errante.

13. ─ Lamentais a vida terrena?
─ Eu não sou infeliz.

14. ─ Sois mais feliz do que antes?
─ Sim, um pouco.

15. ─ Dizeis um pouco, o que quer dizer que não há grande diferença. Que é o que vos falta para o serdes mais?
─ Eu digo um pouco em relação àquilo que eu poderia ter sido, porque com a minha inteligência eu poderia ter avançado mais do que avancei.

16. ─ Esperais alcançar um dia a felicidade que vos falta atualmente?
─ Certamente que ela virá, mas serão necessárias novas provas.

17. ─ Mozart disse que sois sombrio e triste. Por que isto?
─ Mozart disse a verdade. Entristeço-me porque não cumpri a contento um compromisso assumido e não tenho coragem de recomeçar.

18. ─ Como considerais as vossas obras musicais?
─ Eu as prezo muito. Mas entre nós fazemo-las melhores, sobretudo as executamos melhor. Dispomos de mais recursos.

19. ─ Quem são, pois, os vossos executantes?
─ Temos às nossas ordens legiões de executantes, que tocam as nossas composições com mil vezes mais arte do que qualquer um dos vossos. São músicos completos. O instrumento de que se servem é a própria garganta, por assim dizer, e são auxiliados por instrumentos semelhantes a órgãos, de uma precisão e de uma sonoridade que acredito não possais compreender.

20. ─ Sois de fato errante?
─ Sim. Isto é, não pertenço a nenhum planeta exclusivamente.

21. ─ E os vossos executantes? São, também, errantes?
─ Errantes como eu.

22. (A Mozart) Teríeis a bondade de explicar o que acaba de dizer Chopin? Não compreendemos essa execução por Espíritos errantes.
─ Compreendo o vosso espanto. Entretanto, já vos dissemos que há mundos particularmente destinados aos seres errantes, mundos que eles podem habitar temporariamente, espécies de bivaques, de campos de repouso para esses Espíritos fatigados por uma longa erraticidade, estado que é sempre um pouco penoso.

23. (A Chopin) Reconheceis aqui um de vossos alunos?
─ Sim. Parece.

24. ─ Teríeis a bondade de assistir à execução de um trecho de vossa
composição?
─ Isto me daria muito prazer, sobretudo quando executado por uma pessoa que guardou de mim uma grata recordação. Que ela receba os meus agradecimentos.

25. ─ Quereis dar a vossa opinião sobre a música de Mozart?
─ Gosto muito. Considero Mozart meu mestre.

26. ─ Partilhais de sua opinião sobre a música de hoje?
─ Mozart disse que a música era melhor compreendida em seu tempo do que hoje. Isto é verdade. Objetarei, entretanto, que ainda existem verdadeiros artistas.

NOTA: O fragmento de sonata ditado pelo Espírito de Mozart acaba de ser publicado. Pode ser adquirido no Escritório da Revue Spirite ou na livraria espírita do Sr. Ledoyen, Palais Royal, Galerie d’Orléans, 31. Preço: 2 francos ─ Será remetido com porte pago contra vale postal daquela importância.


Mundos intermediários ou transitórios

Vimos, numa das respostas dadas no artigo anterior que, ao que parece, haveria mundos destinados aos Espíritos errantes. A ideia desses mundos não perpassava na mente de nenhum dos assistentes e ninguém nela teria pensado se não fora a espontânea revelação de Mozart, o que constitui uma nova prova de que as comunicações espíritas podem ser independentes de toda opinião preconcebida. Com o objetivo de aprofundar esta questão, nós a submetemos a um outro Espírito, fora da Sociedade e por intermédio de outro médium, que não tinha nenhum conhecimento do assunto.

1. (A Santo Agostinho) ─ Existem mundos que servem de estações aos Espíritos errantes, ou como pontos de repouso, conforme nos disseram?
─ Existem, mas apresentam diferentes graus, isto é, ocupam posição intermediária entre os outros mundos, conforme a natureza dos Espíritos que os procuram e que aí gozam de maior ou menor bem-estar.

2. ─ Os Espíritos que habitam esses mundos podem deixá-los à vontade?
─ Sim. Os Espíritos que os habitam podem afastar-se para ir aonde precisem. Imaginai-os como aves de arribação pousando sobre uma ilha a fim de refazerem as suas forças para prosseguirem em busca do seu destino.

3. ─ Os Espíritos progridem enquanto estacionam nesses mundos intermediários?
─ Certamente. Os que assim se reúnem fazem-no com o fito de instruir-se e poderem mais facilmente obter permissão para irem a melhores lugares e alcançar a posição dos eleitos.

4. ─ Esses mundos, por sua natureza especial, são perpetuamente reservados a Espíritos errantes?
─ Não. Sua situação é transitória.

5. ─ São habitados simultaneamente por seres corpóreos?
─ Não.

6. ─ Têm uma constituição semelhante à dos outros planetas?
─ Sim, mas a superfície é estéril.

7. ─ Por que essa esterilidade?
─ Aqueles que os habitam de nada precisam.

8. ─ Essa esterilidade é permanente e devida à sua natureza especial?
─ Não. Eles são transitoriamente estéreis.

9. ─ Então esses mundos são desprovidos de belezas naturais?
─ A Natureza se traduz pelas belezas da imensidade, não menos admiráveis que
as que chamais belezas naturais.

10. ─ Há desses mundos em nosso sistema planetário?
─ Não.

11. ─ Desde que se trata de um estado transitório, a Terra estará um dia nesse número?
─ Ela já esteve.

12. ─ Em que época?
─ Durante a sua formação.

NOTA: Mais uma vez esta comunicação confirma a grande verdade de que nada é inútil na Natureza. Todas as coisas têm um fim, um destino; nada é vazio, tudo é habitado; a vida está em toda parte. Assim, durante a longa série de séculos decorridos antes do aparecimento do homem na face da Terra; durante esses lentos períodos de transição, atestados pelas camadas geológicas; antes mesmo da formação dos primeiros seres orgânicos, sobre essa massa informe; nesse árido caos onde os elementos se confundiam, não havia ausência de vida. Seres que não tinham as nossas necessidades, nem as nossas sensações físicas aqui se refugiavam. Quis Deus que, mesmo nesse estado imperfeito, ela servisse para alguma coisa. Quem, pois, ousaria dizer que entre esses milhares de mundos que circulam na imensidade, um só e dos menores, perdido na multidão, teria o privilégio exclusivo de ser povoado? Qual seria, então, a utilidade dos outros? Deus tê-los-ia criado apenas para deleitar os nossos olhos? Suposição absurda, incompatível com a sabedoria que brilha em todas as suas obras. Ninguém contestará que há nesta ideia dos mundos ainda inadequados à vida material e no entanto povoados por seres vivos apropriados ao meio, algo de grandioso e de sublime, onde talvez se encontre a solução de muitos problemas.

Ligação entre Espírito e corpo

Uma de nossas amigas, a Sra. Schutz, que é perfeitamente ligada ao mundo, e que parece não querer deixá-lo tão cedo, evocada enquanto dormia, mais de uma vez nos deu provas da perspicácia de seu Espírito nesse estado. Um dia, ou melhor, uma noite, depois de uma longa conversa, disse ela: “Estou fatigada. Necessito de repouso. Vou dormir. Meu corpo precisa disso”.

Diante disto, retorqui: “Vosso corpo pode repousar. Falando-vos, não o prejudico. É o vosso Espírito que aqui se acha e não o vosso corpo. Podeis então entreter-vos comigo, sem que o corpo sofra.”

Ela respondeu: “Estais enganado, pensando assim. Meu Espírito se destaca um pouco de meu corpo, mas é como um balão cativo, preso pelas cordas. Quando o balão recebe solavancos produzidos pelo vento, o poste em que está amarrado sente o efeito dos abalos transmitidos pelas amarras. Meu corpo representa o poste para o meu Espírito, com a diferença de que experimenta sensações desconhecidas do poste e que tais sensações fatigam bastante o cérebro. Eis por que, como o Espírito, meu corpo necessita de repouso.”

Esta explicação, na qual jamais havia pensado aquela senhora, conforme nos declarou, mostra perfeitamente as relações existentes entre o corpo e o Espírito, enquanto este desfruta um pouco da sua liberdade. Sabíamos muito bem que a separação absoluta só se dá depois da morte e mesmo algum tempo depois. Nunca, porém, essa ligação nos havia sido descrita com uma comparação tão clara e tão impressionante. Por isso felicitamos sinceramente aquela senhora que dormindo mostrou possuir tanta presença de espírito.

Isto, entretanto, não era para nós mais do que uma comparação engenhosa. Mas ultimamente a imagem tomou proporções de realidade.

O Sr. R.., antigo ministro-residente dos Estados Unidos junto ao rei de Nápoles, homem muito conhecedor do Espiritismo, fez-nos uma visita e perguntou se, nos fenômenos de aparição, já tínhamos observado uma distinção entre o Espírito de uma pessoa viva e o de um morto. Numa palavra, se quando um Espírito aparece espontaneamente, quer em vigília, quer durante o sono, temos um meio de reconhecer se se trata de um vivo ou de um morto. Informado de que não tínhamos outro meio senão perguntando ao Espírito, disse-nos que conhecia na Inglaterra um médium vidente, dotado de grande capacidade que, toda vez que se lhe apresenta o Espírito de uma pessoa viva, nota um rastro luminoso, partindo do peito, através do espaço, não interrompido por qualquer obstáculo material, que vai terminar no corpo. É uma espécie de cordão umbilical que une as duas partes momentaneamente separadas do ser vivo. Nunca o observou quando não havia vida corpórea. Assim reconhece se o Espírito é de um morto ou de um vivo.

A comparação da Sra. Schutz nos veio à mente e nós a tomamos como uma confirmação do fato que nos acabavam de relatar. Contudo, faremos a respeito uma observação.

Sabe-se que no momento da morte a separação não é brusca. O perispírito se desprende pouco a pouco e, enquanto dura a perturbação, conserva uma certa afinidade com o corpo. Não seria possível que o laço observado pelo vidente, de que acabamos de falar, subsistisse enquanto o Espírito aparece, no próprio instante da morte, ou poucos instantes depois, como acontece tão frequentemente ? Nesse caso, a presença desse cordão não seria indicativa de que a pessoa estivesse viva. O Sr. R... não nos soube dizer se o médium teria feito tal observação. Em todo caso, ela não é menos importante e lança nova luz sobre aquilo que podemos chamar a fisiologia dos Espíritos.

Refutação de um artigo de "L 'Univers"

Em sua edição de 13 de abril último, traz o jornal “l’Univers” um artigo de autoria do Abade Chesnel, no qual o problema do Espiritismo é longamente discutido. Nós o teríamos deixado sem resposta, como tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância, se se tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que revelam de parte dos seus autores a mais absoluta ignorância daquilo que atacam. Temos a satisfação de reconhecer que o artigo do Abade Chesnel é redigido com um espírito completamente diferente. Pela moderação e conveniência da linguagem, ele merece uma resposta, tanto mais necessária quanto o artigo contém um erro grave e pode dar uma ideia muito falsa, quer do Espiritismo em geral, quer em particular do caráter e do objetivo de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Eis o artigo, na íntegra.

“Todo o mundo conhece o espiritualismo do Sr. Cousin, essa filosofia destinada a substituir pouco a pouco a religião. Sob o mesmo título, hoje possuímos um corpo de doutrinas reveladas, que pouco a pouco se vai completando, e um culto realmente muito simples, mas de maravilhosa eficácia, pois que poria os devotos em comunicação real, sensível e quase que permanente com o mundo sobrenatural. “Esse culto tem reuniões periódicas, iniciadas pela invocação de um santo canonizado. Depois de constatada, entre os fiéis, a presença de São Luís, rei de França, pedem-lhe que proíba a entrada dos Espíritos malignos no templo e leem uma ata da sessão anterior. Depois, a convite do presidente, um médium sobe à tribuna, perto do secretário encarregado de anotar as perguntas feitas por um dos fiéis e as respostas ditadas ao médium pelo Espírito invocado. A assembleia assiste gravemente, piedosamente, a esta cena de necromancia, que por vezes é muito longa e, quando a ordem do dia se esgota, o povo se retira, mais convencido do que nunca da verdade do espiritualismo. No intervalo entre duas sessões, cada fiel não se esquece de manter contato assíduo, mas privado, com os Espíritos que lhe são mais acessíveis ou mais queridos. São muitos os médiuns, e quase que não existem segredos na outra vida que os médiuns não acabem por penetrar. Uma vez revelados aos fiéis, esses segredos não são subtraídos ao público. A Revue Spiritualiste, que se publica mensalmente, com regularidade, não recusa a assinatura aos profanos e quem quiser poderá comprar os livros que contêm o texto revelado, com seu comentário autêntico.

“Seríamos levados a crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos é muito hostil à Igreja Católica, que nunca deixou de proibir a prática da necromancia. Mas esses sentimentos mesquinhos, por mais naturais que pareçam, são estranhos, assegura-se, ao coração dos espiritualistas. Eles fazem justiça ao Evangelho e a seu Autor. Reconhecem que Jesus viveu, agiu, falou e sofreu, como contam os nossos quatro evangelistas. A doutrina evangélica é verdadeira, mas essa revelação, de que Jesus foi o instrumento, longe de excluir o progresso, deve ser completada. O espiritualismo é que vai dar ao Evangelho a sã interpretação que lhe falta e a complementação que ele espera há dezoito séculos.

“Além disso, quem poderá estabelecer limites ao progresso do Cristianismo ensinado, interpretado e desenvolvido tal qual o é pelas almas desprendidas da matéria, estranhas às paixões terrestres, aos nossos preconceitos e aos interesses humanos? O próprio infinito se nos desvela. Ora, o infinito não têm limites e tudo nos leva a esperar que a revelação do infinito prosseguirá ininterruptamente. À medida que se escoarem os séculos, ver-se-ão revelações acrescidas a revelações, sem que jamais se esgotem esses mistérios, cuja extensão e profundidade parece que aumentam à medida que se libertam da obscuridade que até agora os envolvia.

“Daí resulta, como consequência, que o espiritualismo é uma religião, porque nos põe em íntima relação com o infinito e absorve, alargando-o, o Cristianismo; que de todas as formas religiosas, presentes ou passadas é, como facilmente se reconhece, a mais elevada, a mais pura e a mais perfeita. Entretanto, engrandecer o Cristianismo é tarefa difícil, que não pode ser realizada sem derrubar as barreiras por detrás das quais ele se mantém entrincheirado. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira. Menos ardentes e melhor avisados, os espiritualistas só encontram duas, cuja redução lhes parece indispensável, a saber: a autoridade da Igreja Católica e o dogma das penas eternas.

“Constitui esta vida a única prova que ao homem é dado atravessar? A árvore ficará eternamente do lado em que caiu? O estado da alma, após a morte, é definitivo, irrevogável e eterno? Não, responde a necromancia espiritualista. Com a morte nada acaba. Tudo recomeça. A morte é para cada um de nós o ponto de partida de uma nova encarnação, de uma nova vida e de uma nova experiência.

“Segundo o panteísmo alemão, Deus não é o ser, mas o eterno vir a ser. Seja Deus como for, para os espiritualistas parisienses o homem não tem outro destino senão o devir progressivo ou regressivo, conforme seus méritos e obras. A lei moral ou religiosa tem uma verdadeira sanção nas outras vidas, onde os bons são recompensados e os maus punidos, mas durante um período mais ou menos longo, de anos ou de séculos, e não por toda a eternidade.

“O espiritualismo seria a forma mística do erro cujo teólogo é o Sr. Jean Reynaud? Talvez. Seria possível ir mais longe e dizer que entre o Sr. Reynaud e os novos sectários existe uma ligação mais estreita que a da identidade de doutrinas? Talvez, ainda. Mas esta questão, por falta de informações seguras, não será aqui resolvida de maneia definitiva.

“O que importa, muito mais que o parentesco ou as alianças heréticas do Sr. Jean Reynaud, é a confusão de ideias cuja manifestação é o progresso do espiritualismo; é a ignorância em matéria de religião que possibilita tanta extravagância; é a leviandade com que homens, aliás estimáveis, acolhem essas revelações do outro mundo, que não possuem nenhum mérito, nem mesmo o da novidade.

“É desnecessário remontar a Pitágoras e aos sacerdotes do Egito para descobrir as origens do espiritualismo contemporâneo. Encontrá-la-emos ao manusear os anais do magnetismo animal.

“Desde o século XVIII a necromancia representava um papel importante nas práticas do magnetismo. Vários anos antes que se tratasse dos Espíritos batedores na América, certos magnetizadores franceses obtinham, conforme diziam, da boca dos mortos ou dos demônios, a confirmação das doutrinas condenadas pela Igreja, notadamente a dos erros de Orígenes, relativamente à conversão futura dos anjos maus e dos réprobos.

“É preciso dizer, também, que o médium espiritualista, no exercício de suas funções, pouco difere do sujeito nas mãos do magnetizador, e que o círculo abarcado pelas revelações do primeiro nem mesmo ultrapassa o que limita a visão do segundo.

“Os ensinamentos que a curiosidade pública obtém em assuntos privados, por meio da necromancia, em geral nada ensinam além daquilo que já é sabido. A resposta do médium espiritualista é obscura nos pontos em que as nossas pesquisas pessoais não puderam esclarecer; é clara e precisa naquilo que nos é bem conhecido; emudece em relação a tudo quanto escapa aos nossos estudos e esforços. Numa palavra, parece que o médium tem uma visão magnética de nossa alma, mas não descobre nada além do que nela encontra já escrito. Esta explicação, que parece muito simples, está entretanto sujeita a graves dificuldades. Com efeito, ela supõe que uma alma naturalmente possa ler no fundo de outra alma, sem o auxílio de sinais e independentemente da vontade daquele que se tornaria, para o primeiro que chegasse, um livro aberto e perfeitamente legível. Ora, os anjos bons ou maus não possuem naturalmente esse privilégio, nem quanto a nós, nem nas relações diretas que mantêm entre si. Só Deus penetra imediatamente os Espíritos e perscruta o íntimo dos corações mais obstinadamente fechados à sua luz.

“Se os mais estranhos fatos espiritualistas que se contam são autênticos, é então necessário recorrer a outros princípios para explicá-los. Geralmente esquecemos que os fatos se referem a um assunto que preocupa fortemente o coração ou a inteligência; que provocou longas pesquisas, e sobre o qual frequentemente falamos fora do âmbito espiritualista. Nessas condições, que não devem ser postas de lado, um certo conhecimento das coisas que nos interessam não ultrapassa em nada os limites naturais do poder dos Espíritos.

“Seja como for, no espetáculo que hoje nos oferecem, não há mais que uma evolução do magnetismo, que se esforça por tornar-se uma religião.

“Sob a forma dogmática e polêmica que deve ao Sr. Jean Reynaud, a nova religião incorreu na condenação do Concílio de Périgueux, cuja autoridade, como todos se recordam, foi gravemente negada pelo culpado.

“Na forma mística que hoje toma em Paris, merece ela ser estudada, ao menos como um sinal dos tempos em que vivemos. O espiritualismo já aliciou um certo número de homens, entre os quais alguns são honrosamente conhecidos no mundo.

Esse poder de sedução que ele exerce; o progresso lento, mas ininterrupto que lhe é atribuído por testemunhas fidedignas; as pretensões que alardeia; os problemas que apresenta; o mal que pode fazer às almas, eis, sem dúvida, muitos motivos reunidos para atrair a atenção dos católicos. Tomemos cuidado para não emprestarmos à nova seita mais importância do que ela merece. Mas, a fim de evitar os exageros que tudo ampliam, não caiamos na mania de tudo negar ou amesquinhar. Nolite omni spiritui credere, sed probate spiritus si ex Deo sint, quoniam multi pseudoprophetae prodierunt in mundum. I João, 4: 1).”
L’ABBÉ FRANÇOIS CHESNEL

Sr. Abade,

O artigo que publicastes no l’Unirers, relativamente ao Espiritismo, contém vários erros, que importa retificar e que, sem a menor dúvida, provêm de um incompleto estudo da matéria. Para refutá-los todos fora necessário retomar, desde os alicerces, todos os pontos da teoria, bem como os fatos que lhe servem de base, o que não tenho a intenção de fazer aqui. Limito-me aos pontos principais. Fizestes bem em reconhecer que as ideias espíritas aliciaram um certo número de homens, entre os quais alguns honrosamente conhecidos no mundo. Esse fato, cuja veracidade ultrapassa em muito aquilo que imaginais, incontestavelmente merece a atenção das pessoas sérias, porque tantas personalidades notáveis pela inteligência, pelo saber e pela posição social não se apaixonariam por uma ideia despida de qualquer fundamento. A conclusão natural é que no fundo de tudo isto
deve haver alguma coisa.

Certamente objetareis que certas doutrinas, meio religiosas, meio sociais, nos últimos tempos encontraram sectários nas próprias fileiras da aristocracia intelectual, o que não as impediu de cair no ridículo. Assim, pois, os homens de inteligência podem ser arrastados por utopias.

A isto responderei que as utopias têm vida curta. Cedo ou tarde a razão lhes faz justiça. Será assim com o Espiritismo, se ele for uma utopia. Mas, se for uma verdade, triunfará de todas as oposições, de todos os sarcasmos, direi mesmo, de todas as perseguições, se as perseguições pertencerem ainda ao nosso século, e os detratores perderão seu tempo. Custe o que custar, seus opositores terão que aceitálo, como foram aceitas tantas coisas contra as quais se levantaram protestos em nome da razão. O Espiritismo é uma verdade? O futuro o dirá. Parece, entretanto, já haver um pronunciamento, tal a rapidez com que se propagam essas ideias. E notai bem que não é na classe ignorante e iletrada que se encontram aderentes. É, ao contrário, entre gente esclarecida.

Importa ainda considerar que todas as doutrinas filosóficas são obras de homens, cujos ideais são mais ou menos grandiosos, mais ou menos justos. Todas têm um chefe, em torno do qual se reuniram outros homens partidários do mesmo ponto de vista.

Quem é o autor do Espiritismo? Quem imaginou, certa ou errada, essa teoria? É verdade que se procurou coordená-la, formulá-la, explicá-la. Mas a ideia primeira, quem a concebeu? Ninguém. Ou melhor, todo mundo, porque todos puderam ver, e aqueles que não viram foi porque não quiseram ver ou porque quiseram ver a seu modo, sem romper o círculo de suas ideias preconcebidas, o que os fez ver e julgar mal. O Espiritismo decorre de observações que cada um pode fazer, que não constituem privilégio de ninguém, o que explica a sua irresistível propagação. Ele não é resultado de nenhum sistema individual, circunstância que o distingue de todas as outras doutrinas filosóficas. Essas revelações do outro mundo, dizeis, não têm nem mesmo o mérito da novidade. Seria, pois, um mérito a novidade? Quem alguma vez afirmou que isto foi uma descoberta moderna? Essas comunicações, sendo uma consequência da Natureza e produzindo-se pela vontade de Deus, fazem parte das leis imutáveis com as quais ele rege o mundo. Consequentemente, elas devem ter existido desde que o homem existe na Terra. Eis por que as encontramos na mais remota Antiguidade, entre todos os povos, tanto em sua história profana quanto na sagrada. A ancianidade e a universalidade desta crença são argumentos em seu favor. Tirar daí conclusões que lhes fossem desfavoráveis seria, antes de mais nada, uma falta de lógica.

Dizeis, a seguir, que a faculdade dos médiuns pouco difere da dos sujeitos em mãos dos magnetizadores ou, por outras palavras, do sonâmbulo. Admitamos, até, que haja perfeita identidade. Qual seria a causa dessa admirável clarividência sonambúlica que não encontra obstáculo nem na matéria nem na distância, e que se exerce sem o concurso dos órgãos da visão? Não seria a demonstração mais patente da existência e da individualidade da alma, eixo da religião?

Se eu fosse sacerdote e quisesse fazer um sermão, provando que há em nós algo mais que o corpo, demonstrá-lo-ia de maneira irrecusável pelos fenômenos do sonambulismo natural ou artificial. Se a mediunidade não passa de uma variedade do sonambulismo, nem por isso são os seus efeitos menos dignos de observação. Neles eu encontraria uma prova a mais em favor de minha tese e dela faria uma arma nova contra o ateísmo e o materialismo.

Todas as nossas faculdades são obra de Deus. Quanto maiores e mais maravilhosas, mais elas atestam o seu poder e a sua bondade.

Por mim, que durante trinta e cinco anos fiz estudos especiais sobre o sonambulismo; que o considerei como uma modalidade não menos profunda de quantas modalidades há de médiuns, afirmo, como todos aqueles que não julgam examinando apenas uma face do problema, que o médium é dotado de uma faculdade particular que não permite confundi-lo com o sonâmbulo e que a completa independência de seu pensamento é provada por fatos da maior evidência para quem quer que se coloque nas condições requeridas para observar imparcialmente.

Abstração feita das comunicações escritas, qual foi o sonâmbulo que já fez brotar um pensamento de um corpo inerte? Qual o que produziu aparições visíveis e até tangíveis? Qual o que pôde manter um corpo pesado no espaço sem ponto de apoio? Será por um efeito sonambúlico que em minha casa, há quinze dias, em presença de vinte testemunhas, um médium desenhou o retrato de uma jovem falecida há dezoito meses, a qual ele não havia conhecido e cujo retrato foi reconhecido pelo pai, que se achava presente? Será por efeito do sonambulismo que uma mesa responde com precisão às perguntas que lhe são feitas, e até a perguntas mentais?

Certamente, bem poderíamos admitir que o médium estivesse magnetizado. Difícil seria acreditar que a mesa fosse sonâmbula.
Dizeis que o médium não fala com clareza senão de coisas conhecidas. Como explicar o fato seguinte e centenas de outros do mesmo gênero, ocorridos inúmeras vezes e de meu conhecimento pessoal? Um dos meus amigos, excelente médium psicógrafo, pergunta a um Espírito se uma pessoa que ele havia perdido de vista há quinze anos ainda está viva. “Sim”, respondeu ele: “vive ainda. Mora em Paris, na rua tal, número tal”. Ele vai e encontra a pessoa no endereço indicado.

Trata-se de uma ilusão? Seu pensamento poderia sugerir-lhe tal resposta? Se em certos casos as respostas podem coincidir com o pensamento, seria racional concluir que se trata de uma lei geral?

Nisto, como em todas as coisas, os juízos precipitados são sempre perigosos, porque podem ser infirmados por fatos que não foram observados.

Aliás, senhor Abade, minha intenção não é dar aqui um curso de Espiritismo, nem discutir se ele é certo ou errado. Como já ficou dito, bastaria lembrar os numerosos fatos por mim citados na Revista Espírita, bem como as explicações dadas em meus diversos escritos.

Chego, então, à parte do artigo de Vossa Reverendíssima que me parece mais importante.

Destes ao vosso artigo o título: “Uma religião nova em Paris”. Supondo que este fosse, realmente, o caráter do Espiritismo, aí estaria um primeiro erro, pois que ele está longe de circunscrever-se a Paris. Conta milhões de aderentes espalhados nas cinco partes do mundo, e Paris não foi o foco primitivo.

Em segundo lugar, é ele uma religião? Fácil é demonstrar o contrário.

O Espiritismo está baseado na existência de um mundo invisível, formado de seres incorpóreos que povoam o espaço e que não são outra coisa senão as almas dos que viveram na Terra ou em outros globos, onde deixaram os seus envoltórios materiais. São esses seres aos quais demos, ou melhor, que se deram o nome de Espíritos. Esses seres, que nos rodeiam continuamente, exercem sobre os homens, malgrado seu, uma poderosa influência. Representam um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. Assim, pois, o Espiritismo pertence à Natureza e pode-se dizer que, numa certa ordem de ideias, é uma força, como a eletricidade é outra, sob diferente ponto de vista, e como a gravitação universal é uma terceira.

Ele nos desvenda mundos invisíveis, assim como o microscópio nos revelou o mundo dos infinitamente pequenos, de cuja existência não suspeitávamos. Assim, pois, os fenômenos cuja fonte é esse mundo invisível devem ter-se produzido e se produziram em todos os tempos, como bem o menciona a História de todos os povos. Apenas os homens, em sua ignorância, atribuíram tais fenômenos a causas mais ou menos hipotéticas e, a esse respeito, deram livre curso à imaginação, como o fizeram com todos os fenômenos cuja natureza conheciam imperfeitamente.

Melhor observado desde que se vulgarizou, o Espiritismo vem lançar luz sobre uma porção de problemas até aqui insolúveis ou mal resolvidos. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião e a prova é que conta como adeptos homens de todas as crenças, os quais, nem por isso, renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto; protestantes de todas as seitas; israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, menos materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com os princípios espíritas.

Assim, pois, o Espiritismo se fundamenta em princípios gerais independentes de toda questão dogmática. É verdade que ele tem consequências morais, como todas as ciências filosóficas. Essas consequências são compatíveis com o Cristianismo, porque o Cristianismo é, de todas as doutrinas, a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreender o Espiritismo em sua verdadeira essência.

O Espiritismo não é, pois, uma religião. Do contrário, teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode transformar suas opiniões numa religião e interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova igreja há uma grande distância e penso que seria imprudência seguir tal ideia. Em resumo, o Espiritismo ocupa-se da observação dos fatos e não das particularidades desta ou daquela crença; da pesquisa das causas; da explicação que os fatos podem dar dos fenômenos conhecidos, tanto na ordem moral quanto na ordem física, e não impõe nenhum culto aos seus partidários, do mesmo modo que a Astronomia não impõe o culto aos astros, nem a Pirotecnia o culto ao fogo. Ainda mais: assim como o sabeísmo nasceu da Astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo.
Hoje, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo com mais segurança. Ele nos põe em guarda contra os sistemas errados, frutos da ignorância. E a própria religião pode haurir nele a prova palpável de muitas verdades contestadas por certas opiniões. Eis porque, contrariando a maior parte das ciências filosóficas, um dos seus efeitos é reconduzir às ideias religiosas aqueles que se tresmalharam num cepticismo exagerado.

A Sociedade a que vos referis tem seu objetivo expresso no próprio título. A denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de nenhuma seita. Ela tem um caráter tão diverso que os seus estatutos proíbem tratar de questões religiosas. Está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, na verdade, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos resultantes das relações entre o mundo visível e o invisível. Tem seu presidente, seu secretário, seu tesoureiro, como todas as sociedades. Não convida o público às suas sessões, nas quais não há discursos nem qualquer coisa com o caráter de um culto qualquer. Processa seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiramente porque é uma condição necessária para as observações e em segundo lugar porque sabe que devem ser respeitados aqueles que não vivem mais na Terra. Ela os chama em nome de Deus, porque crê em Deus, em sua onipotência, e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão. Abre as sessões com um apelo geral aos bons Espíritos, porque, sabendo que existem bons e maus Espíritos, cuida para que estes últimos não se venham intrometer fraudulentamente nas comunicações que são recebidas e induzir em erro.

Que prova isto? Que não somos ateus. Mas de modo algum implica que sejamos adeptos de uma religião. Disto teria ficado convencida a pessoa que vos descreveu o que se passa entre nós, se tivesse acompanhado os nossos trabalhos, principalmente se os tivesse julgado com menos leviandade e talvez com espírito menos prevenido e menos apaixonado.
Os fatos protestam, portanto, por si próprios, contra a qualificação de nova seita que dais à Sociedade, certamente por não a conhecerdes melhor.

Terminais o artigo chamando a atenção dos católicos para o mal que o Espiritismo faz às almas. Se as consequências do Espiritismo fossem a negação de Deus, da alma, de sua individualidade após a morte, do livre-arbítrio do homem, das penas e recompensas futuras, seria uma doutrina profundamente imoral. Longe disso, ele prova, não pelo raciocínio, mas pelos fatos, essas bases fundamentais da religião, cujo inimigo mais perigoso é o materialismo. Ainda mais: por suas consequências ensina a suportar com resignação as misérias desta vida; acalma o desespero e ensina os homens a se amarem como irmãos, conforme os divinos preceitos de Jesus. Se soubésseis, como eu, quantos incrédulos endurecidos ele encaminhou; quantas vítimas arrancou ao suicídio pela perspectiva da sorte reservada àqueles que abreviam a vida, contrariando a lei de Deus; quantos ódios acalmou, aproximando inimigos! É a isto que chamais fazer mal às almas? Não. Não podeis pensar assim e apraz-me supor que, se o conhecêsseis melhor, o julgaríeis de outra maneira.

Direis que a religião pode fazer tudo isto. Longe de mim contestá-lo, mas acreditais que para aqueles que ele encontrou rebeldes teria sido melhor que continuassem numa incredulidade absoluta? Se o Espiritismo triunfou sobre ela; se lhes apresentou claramente aquilo que se lhes afigurava obscuro e evidente aquilo que lhes parecia duvidoso, onde está o mal? Por mim direi que em vez de perder almas, ele as salvou.

Atenciosamente,
ALLAN KARDEC.


O livro dos Espíritos entre os selvagens

Sabíamos que o Livro dos Espíritos tem leitores simpáticos em todas as partes do mundo, mas com certeza não teríamos suspeitado encontrá-lo entre os selvagens da América do Sul, não fosse uma carta que nos chegou de Lima, há poucos meses, cuja tradução integral nos pareceu interessante publicar, à vista do fato significativo que a mesma encerra e cujo alcance facilmente se compreende. Tem a carta um comentário, que dispensa qualquer reflexão de nossa parte. Excelentíssimo Senhor Allan Kardec.

Desculpai-me por não vos escrever em francês. Compreendo essa língua pela leitura, mas não a escrevo correta e inteligivelmente.

Há mais de dez anos visito com certa frequência os povos aborígines que habitam a encosta oriental dos Andes, nestas regiões americanas dos confins do Peru. Vosso Livro dos Espíritos, que adquiri numa viagem a Lima, acompanha-me nestas solidões. Não vos admireis que eu diga tê-lo lido com avidez e que o releio continuamente. Também não viria tomar o vosso tempo com tão pouco, se não fossem certas informações que vos devem interessar e se não desejasse receber os conselhos que espero de vossa bondade, pois não duvido que os vossos sentimentos humanos estejam de acordo com os sublimes princípios de vosso livro.

Estes povos que chamamos selvagens o são menos do que geralmente se pensa. Se se disser que moram em cabanas e não em palácios; que não conhecem as nossas artes e as nossas ciências; que ignoram a etiqueta da gente civilizada, serão verdadeiramente selvagens, mas em relação à inteligência, encontramos entre eles ideias de uma justeza admirável; uma grande finura de observação e sentimentos nobres e elevados. Compreendem com maravilhosa facilidade e têm um espírito incomparavelmente menos tardo que os camponeses da Europa. Desprezam aquilo que lhes parece inútil, em relação à simplicidade que lhes basta ao gênero de vida. A tradição de sua antiga independência é entre eles sempre viva, razão por que têm uma insuperável aversão aos seus conquistadores. Mas, se odeiam a raça em geral, ligam-se aos indivíduos que lhes inspiram uma confiança absoluta. É a essa confiança que devo a sorte de viver na sua intimidade. Quando me acho em seu meio, sinto-me em maior segurança do que em algumas grandes cidades. Quando os deixo, ficam tristes e me fazem prometer que voltarei. Quando volto, toda a tribo está em festa.

Estas explicações se faziam necessárias pelo seguinte: Disse-vos que tinha comigo o Livro dos Espíritos. Um dia inventei de traduzir algumas passagens e fiquei muito surpreendido de ver que eles o compreendiam melhor do que eu supunha, dadas certas observações muito judiciosas que faziam. Eis um exemplo.

A ideia de reviver na Terra lhes parece absolutamente natural. Um dia um deles me perguntou: Quando nós morrermos poderemos renascer entre os brancos?
─ Certamente, respondi.
─ Então tu podes ser um dos nossos parentes?
─ É possível.
─ Com certeza é por isto que és bom para conosco e nós te amamos.
─ Também é possível.
─ Então quando encontramos um branco não lhe devemos fazer mal, porque talvez seja um dos nossos irmãos.

Certamente vos admirais, como eu, de tal conclusão de um selvagem e do sentimento de fraternidade que nele brotou. Aliás, para eles não é nova a ideia dos Espíritos. Está em suas crenças e eles estão persuadidos de que é possível conversar com os parentes mortos, que nos vêm visitar. O importante é disso tirar partido para moralizá-los, e não creio que seja impossível, pois ainda não têm os vícios de nossa civilização.

É para isto que necessito dos vossos conselhos e da vossa experiência. A meu ver, não há razão para supor que só podemos influenciar as criaturas ignorantes falando-lhes aos sentidos. Penso, ao contrário, que essa seria apenas uma forma de mantê-las nessas ideias estreitas e de desenvolver-lhes a tendência à superstição.

Penso que o raciocínio, quando nos soubermos colocar no nível das inteligências, terá sempre uma influência mais duradoura. Aguardando a resposta com que, espero, me obsequiareis, recebei, etc.

DON FERNANDO GUERRERO

Aforismo espíritas e pensamentos soltos

Quando quiserdes estudar a aptidão de um médium, não evoqueis logo por seu intermédio o primeiro Espírito de que vos lembrardes, pois jamais se disse que o médium seja apto a servir de intérprete a todos os Espíritos, e os Espíritos levianos podem usurpar o nome daquele a quem chamais. Evocai de preferência o seu Espírito familiar, porque este virá sempre; então o julgareis por sua linguagem e estareis em condições de melhor apreciar a natureza das comunicações que o médium recebe.
Os Espíritos encarnados agem por si mesmos, conforme sejam bons ou maus.

Também podem agir sob a ação de Espíritos não encarnados, dos quais são instrumentos para o bem ou para o mal, ou para a realização algum feito. Somos, pois, malgrado nosso, os agentes da vontade dos Espíritos para aquilo que acontece no mundo, tanto no interesse geral, quanto no individual. Assim, encontramos alguém que nos induz a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Pensamos que é o acaso que no-lo envia, quando na maioria dos casos são os Espíritos que nos impelem uns para os outros, porque tal encontro deve conduzir a um resultado determinado.

* * *

Encarnando em diferentes posições sociais, os Espíritos são como atores que fora da cena se trajam como toda a gente e no palco usam todas as vestimentas e representam todos os papéis, desde o rei até o trapeiro.

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Há pessoas que não temem a morte, que cem vezes enfrentaram, no entanto experimentam um certo medo da escuridão. Não receiam os ladrões e no entanto, na solidão, num cemitério, à noite, temem alguma coisa. São os Espíritos que estão junto a elas e cujo contacto lhes produz uma impressão que resulta num medo inexplicável.


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As origens que certos Espíritos nos atribuem, pela revelação de pretensas existências anteriores, são muitas vezes um meio de sedução e uma tentação para o nosso orgulho, que se envaidece por ter sido tal ou qual personagem.

ALLAN KARDEC

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