Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Novembro

Devemos publicar tudo quanto os Espíritos dizem?

Essa pergunta nos foi dirigida por um dos nossos correspondentes.

Respondemo-la da maneira seguinte:

Seria bom publicar tudo quanto dizem e pensam os homens?

Quem quer que possua uma noção do Espiritismo, por superficial que seja, sabe que o mundo invisível é composto de todos aqueles que deixaram na Terra o envoltório visível. Despojando-se, porém, do homem carnal, nem todos se revestiram, por isso mesmo, da túnica dos anjos. Há, portanto, Espíritos de todos os graus de conhecimento e de ignorância, de moralidade e de imoralidade. Eis o que não devemos perder de vista. Não esqueçamos que entre os Espíritos, assim como na Terra, há seres levianos, desatentos e brincalhões; falsos sábios, vãos e orgulhosos de um saber incompleto; hipócritas, malévolos e, o que nos pareceria inexplicável, se de algum modo não conhecêssemos a fisiologia deste mundo, há sensuais, vilões e devassos que se arrastam na lama. Ao lado desses, assim como na Terra, há seres bons, humanos, benevolentes, esclarecidos e dotados de sublimes virtudes. Como, entretanto, o nosso mundo não está na primeira nem na última posição, embora mais vizinho da última que da primeira, disso resulta que o mundo dos Espíritos abrange seres mais avançados intelectual e moralmente do que os nossos homens mais esclarecidos, e outros que estão em situação inferior à dos homens mais inferiores.

Desde que esses seres têm um meio patente de comunicar-se com os homens e de exprimir os seus pensamentos por sinais inteligíveis, suas comunicações devem ser efetivamente o reflexo de seus sentimentos, de suas qualidades ou de seus vícios.

De acordo com o caráter e a elevação dos Espíritos, as comunicações poderão ser levianas, triviais, grosseiras e até mesmo obscenas, ou marcadas pela elevação intelectual, pela sabedoria e pela sublimidade. Eles se revelam por sua própria linguagem. Daí a necessidade de não aceitar cegamente tudo quanto vem do mundo oculto, e de tudo submeter a um severo controle. Com as comunicações de certos Espíritos, do mesmo modo que com os discursos de certos homens, poder-se-ia fazer uma coletânea muito pouco edificante. Temos sob os olhos uma pequena obra inglesa, publicada na América, que é prova disto. Dela pode-se dizer que uma senhora não a recomendaria como leitura à filha.

Por isso, não o recomendamos aos nossos leitores.

Há pessoas que acham isto engraçado e divertido. Que se deliciem na intimidade, mas que o guardem para si próprias. O que é ainda menos concebível é que se vangloriem de obter comunicações indecorosas. Isto é sempre indício de simpatias que não podem ser motivo de vaidade, sobretudo quando essas comunicações são espontâneas e persistentes, como acontece a certas pessoas. Isto absolutamente não permite que façamos um julgamento apressado de sua moralidade atual, pois conhecemos pessoas afligidas por esse gênero de obsessão, ao qual de modo algum se presta o seu caráter. Entretanto, como todos os efeitos, este também deve ter uma causa, e se não a encontramos na existência presente, devemos procurá-la numa experiência anterior. Se essa causa não está em nós, está fora de nós. Contudo, há sempre um motivo para estarmos nessa situação, mesmo que esse motivo seja apenas a fraqueza de caráter. Conhecida a causa, de nós depende fazê-la cessar.

Ao lado dessas comunicações francamente más, e que chocam qualquer ouvido um pouco delicado, outras há que são simplesmente triviais ou ridículas. Haverá algum inconveniente em publicá-las? Se forem divulgadas pelo que valem, haverá apenas um mal menor. Se o forem a título de estudo do gênero, com as devidas precauções e com os comentários e as restrições necessárias, poderão até mesmo ser instrutivas, na medida em que contribuam para se conhecer o mundo espírita em todas as suas nuanças. Com prudência e habilidade, tudo pode ser dito. O mal está em apresentar como sérias coisas que chocam o bom senso, a razão ou as conveniências. Neste caso, o perigo é maior do que se pensa.

Para começar, tais publicações têm o inconveniente de induzir em erro as pessoas que não estão em condições de examiná-las e discernir o verdadeiro e do falso, principalmente numa questão tão nova como o Espiritismo. Em segundo lugar, são armas fornecidas aos adversários, que não perdem a oportunidade de tirar desse fato argumentos contra a alta moralidade do ensino espírita, porque, diga-se mais uma vez, o mal está em apresentar seriamente coisas notoriamente absurdas. Alguns poderão até mesmo ver uma profanação no papel ridículo que emprestamos a certas personagens justamente veneradas, às quais atribuímos uma linguagem indigna delas. As pessoas que estudaram a fundo a ciência espírita sabem que atitude convém adotar em semelhantes casos. Sabem que os Espíritos zombeteiros não têm o menor escrúpulo de enfeitar-se com nomes respeitáveis, mas sabem também que esses Espíritos só abusam daqueles que gostam de se deixar abusar e que não sabem ou não querem destruir suas artimanhas pelos meios de controle já conhecidos. O público, que ignora isto, vê apenas uma coisa: um absurdo oferecido à sua admiração como se fosse coisa séria, e em razão disso diz para si mesmo que se todos os espíritas são como esse, não desmerecem o epíteto com que foram agraciados. Sem a menor dúvida, tal julgamento é precipitado. Vós acusais com justa razão os seus autores de leviandade e lhes dizeis: estudai o assunto e não examineis apenas uma face da medalha. Há, porém, tanta gente que julga a priori, sem se dar ao trabalho de erguer uma palha, principalmente quando não existe boa vontade, que é necessário evitar tudo quanto lhes possa dar motivos para censuras, tendo em vista que se a má vontade juntar-se à malevolência, o que é muito comum, ficarão encantadas por encontrarem o que criticar.

Mais tarde, quando o Espiritismo estiver vulgarizado, mais conhecido e compreendido pelas massas, tais publicações não terão mais influência do que hoje teria um livro de heresias científicas. Até lá, nunca seria demasiada a circunspecção, porque há comunicações que podem prejudicar essencialmente a causa que querem defender, em escala muito maior que os grosseiros ataques e as injúrias de certos adversários. Se algumas fossem feitas com tal objetivo, não teriam menor êxito. O erro de certos autores é escrever sobre um assunto antes de tê-lo aprofundado suficientemente, dando lugar, assim, a uma crítica fundamentada. Eles se queixam do julgamento temerário de seus antagonistas, sem atentar para o fato de que muitas vezes são eles mesmos que revelam seu ponto fraco. Aliás, a despeito de todas as precauções, seria presunção suporem-se ao abrigo de toda crítica, a princípio porque é impossível contentar a todo o mundo; depois, porque há os que riem de tudo, mesmo das coisas mais sérias, uns por sua condição, outros por seu caráter. Riem muito da religião. Não é, pois, de admirar que riam dos Espíritos, que não conhecem. Se pelo menos essas brincadeiras fossem espirituosas, haveria compensação. Infelizmente, elas em geral não brilham nem pela finura, nem pelo bom gosto, nem pela urbanidade e muito menos pela lógica. Façamos, pois, o melhor que pudermos, trazendo para nosso lado a razão e a conveniência, e assim traremos para o nosso lado também os trocistas.

Essas considerações serão facilmente compreendidas por todos, mas há uma não menos importante, pois se refere à própria natureza das comunicações espíritas, e por isso não devemos omiti-la. Os Espíritos vão aonde acham simpatia e onde sabem que serão ouvidos. As comunicações grosseiras e inconvenientes, ou simplesmente falsas, absurdas e ridículas, só podem emanar de Espíritos inferiores.

O simples bom senso o indica. Esses Espíritos fazem o que fazem os homens que se veem complacentemente escutados. Ligam-se àqueles que admiram as suas tolices e muitas vezes se apoderam deles e os dominam a ponto de fasciná-los e subjugá-los.

A importância que, pela publicidade, é dada às suas comunicações, os atrai, excita e encoraja. O único e verdadeiro meio de afastá-los é provar-lhes que não nos deixamos enganar, rejeitando impiedosamente, como apócrifo e suspeito, tudo aquilo que não for racional; tudo aquilo que desmentir a superioridade que se atribui ao Espírito que se manifesta e de cujo nome ele se serve. Então, quando vê que perde o seu tempo, ele se afasta.

Julgamos ter respondido satisfatoriamente à pergunta do nosso correspondente sobre a conveniência e a oportunidade de certas publicações espíritas. Publicar sem exame, ou sem correção, tudo quanto vem dessa fonte, seria, em nossa opinião, dar prova de pouco discernimento. Esta é, pelo menos, a nossa opinião pessoal, que submetemos à apreciação daqueles que, desinteressados pela questão, podem julgar com imparcialidade, pondo de lado qualquer consideração individual. Como todo o mundo, temos o direito de dizer a nossa maneira de pensar sobre a ciência que é objeto de nossos estudos, e de tratá-la à nossa maneira, não pretendendo impor nossas ideias a quem quer que seja, nem apresentá-las como leis. Os que partilham da nossa maneira de ver o fazem porque creem, como nós, nela estar a verdade. O futuro mostrará quem está errado e quem tem razão.

Médiuns sem o saber

Na sessão da Sociedade, a 16 de setembro de 1859, foram lidos diversos fragmentos de um poema do Sr. de Porry, de Marselha, intitulado Urânia. Como então se observou, no poema abundam as ideias espíritas, aparentemente hauridas na fonte mesma do Livro dos Espíritos. Entretanto, constatou-se que na época em que o autor o escreveu não possuía nenhum conhecimento da Doutrina Espírita.

Nossos leitores certamente ficariam gratos se lhes déssemos alguns fragmentos. Eles se lembram, sem dúvida, do que foi dito relativamente à maneira pela qual o Sr. de Porry escreveu o seu poema, que parece denunciar uma espécie de mediunidade involuntária. (Vide o boletim da sessão particular de 16 de setembro, na Revista de outubro de 1859). Aliás, constantemente os Espíritos que nos cercam e que exercem sobre nós, malgrado nosso, uma influência incessante, aproveitam as disposições que encontram em certos indivíduos para transformá-los em instrumentos das ideias que querem exprimir e levar ao conhecimento dos homens. Tais indivíduos são, sem o saberem, verdadeiros médiuns, e para isto não necessitam possuir a mediunidade mecânica. Todos os homens de gênio, poetas, pintores e músicos estão neste caso.

Certamente seu Espírito pode produzir por si mesmo, caso seja bastante adiantado para tal, mas muitas ideias também lhe podem vir de uma fonte estranha. Quando pedem inspiração, não parece que estão fazendo uma invocação? Ora, o que é a inspiração senão uma ideia sugerida? Aquilo que tiramos do nosso próprio íntimo não é inspirado. Possuímo-lo e não temos necessidade de recebê-lo. Se o homem de gênio tirasse tudo de si mesmo, por que então lhe faltariam ideias exatamente no momento em que as busca? Não seria ele capaz de tirá-las de seu cérebro, como aquele que tem dinheiro o tira de seu bolso?
Se ele nada aí encontra em dado momento é porque nada tem. Por que, quando menos espera, as ideias brotam por si mesmas? Poderiam os fisiologistas dar a explicação desse fenômeno? Algum dia tentaram resolvê-lo? Eles dizem que o cérebro produz hoje, mas não produzirá amanhã. Mas por que não produzirá amanhã? Limitam-se a dizer que assim acontece porque ele já produziu na véspera.

Segundo a Doutrina Espírita, o cérebro pode sempre produzir o que está nele. É por isso que o homem mais inepto acha sempre alguma coisa a dizer, mesmo que seja uma tolice. Mas as ideias das quais não somos os donos, não são nossas. Elas nos são sugeridas. Quando a inspiração não vem é porque o inspirador não está presente ou não julga conveniente inspirar. Parece-nos que esta explicação é melhor do que a outra.

Poder-se-ia objetar que o cérebro, não produzindo, não deveria fatigar-se. Isto seria um erro. O cérebro não deixa de ser o canal por onde passam as ideias estranhas; o instrumento que executa. O cantor não fatiga seus órgãos vocais, embora a música não seja de sua autoria? Por que não se fatigaria o cérebro ao exprimir ideias que está encarregado de transmitir, embora não as tenha produzido? Sem dúvida é para lhe dar o repouso necessário à aquisição de novas forças que o inspirador lhe impõe um intervalo.

Pode ainda objetar-se que esse sistema tira ao produtor o mérito pessoal, ao lhe atribuir ideias de uma fonte estranha. A isto respondemos que, se as coisas assim se passassem, não saberíamos o que fazer e não teríamos tanta necessidade de nos envaidecermos com os méritos alheios. Mas essa objeção não é séria, porque, em primeiro lugar, não dissemos que o homem de gênio nada possa por si mesmo e em segundo lugar, porque as ideias que lhe são sugeridas se confundem com as suas próprias e nada as distingue, de modo que ele não pode ser censurado por atribuir a si próprio a sua paternidade, a não ser que as tivesse recebido a título de comunicação espírita comprovada e quisesse ter delas a glória. Isto, entretanto, poderia levar os Espíritos a fazê-lo passar por algumas decepções. Diremos, enfim, que se os Espíritos sugerem grandes ideias a um homem, dessas ideias que caracterizam o gênio, é porque o julgam capaz de compreendê-las, de elaborá-las e de transmiti-las. Eles não tomariam um imbecil para seu intérprete.

Podemos, pois, sentir-nos honrados por recebermos uma grande e bela missão, sobretudo se o orgulho não a desviar do seu objetivo louvável, e não provocar a perda do seu mérito.

Quer os pensamentos seguintes sejam do Espírito pessoal do Sr. de Porry, quer tenham sido sugeridos por via mediúnica indireta, o poeta não terá menos mérito, porque se a ideia lhe foi dada, a honra de tê-la elaborado não lhe pode ser negada.

Urânia

Abri aos meus clamores, ó véus do Santuário!
Trema o mau, brilhe o bom à luz do lampadário!
Agite-se o meu peito à santa claridade
Em cintilante flux dardejando a verdade!
E vós, ó pensadores que nas lutas coevas
Prometem-nos a luz e só nos dão as trevas,
Que em sonhos mentirosos, ilusões levianas
Embalais sem cessar as angústias humanas,
Assembleias de sábios, de orgulho a fremir,
Uma voz de mulher vos há de confundir!
Esse Deus que quereis do Universo afastar,
E que em vão pretendeis loucamente explicar,
Buscando em vãos sistemas descobrir-lhe a essência,
Malgrado vós, se revela à vossa consciência;
E aquele que se entrega a um raciocínio ledo,
Se o nega em alta voz, o proclama em segredo!
Tudo à sua vontade nasce, cresce e alterna;
Ele é a suprema base e a própria Vida Eterna;
Tudo nele repousa: o espírito e a matéria;
Que retire o seu sopro... ─ eis a morte sidérea!
Um dia disse o ateu: “Oh, Deus é uma quimera;
Filha do acaso, a vida é apenas uma espera;
O mundo, em que é lançado o ser em tenra idade,
É regido tão só pela necessidade.
Se a morte nos apaga os sentidos em chama,
O báratro do nada logo nos reclama;
A Natura imutável, em seu curso eterno,
Recolhe os nossos restos no seio materno.
Gozemos os instantes que os fados nos doem;
Nossas frontes em luz de rosas se coroem;
Só há um Deus: o prazer; em nossos desatinos
Desafiemos a fúria de incertos destinos!”
Mas logo que a consciência, a interna vingadora
Te censurar, ó louco, a culpa embriagadora,
O pobre repelido em gesto desumano,
O crime em que manchaste as tuas mãos de insano,
Será do selo escuro da matéria cega
Que no teu coração surge a luz que renega
Os teus crimes e os põe ao teu olhar ansioso,
Fazendo-te, que horror, ante ti mesmo odioso.
Então, do Soberano que a tua audácia ainda
Quer negar, sentirás a sua pujança infinda
A oprimir-te, a assediar-te, e embora teus esforços,
Em ti se revelar nos gritos do remorso!
Evitando os humanos, cheio de inquietude,
Procuras da floresta a negra solitude;
E pensas, nos selvagens dédalos que segues,
Escapar a esse Deus que sempre te persegue!
Sobre a presa em pedaços dorme o tigre em paz;
O homem vela em sangue na treva mordaz;
De olhar espavorido em fulgurante horror
Treme-lhe o corpo envolto em gélido suor;
Rumor surdo e sinistro fere-lhe os ouvidos;
Espectros ferozes cercam-no em gemidos;
E sua voz, confessando horríveis erros seus,
Exclama com terror: Graças vos dou, meu Deus!
É o remorso, o carrasco eterno da consciência,
Que nos revela em Deus nossa imortal essência;
É ele que, frequente, faz de um criminoso,
Pelo arrependimento, um mártir glorioso;
Dos brutos separando a humana criatura
Eis o remorso, a chama em que a alma se depura;
E é por seu aguilhão que o ser regenerado
Pela escala do bem se faz mais elevado.
Sim, a verdade brilha e do soberbo ateu
A audácia é repelida pelo esplendor seu.
O panteísmo vem, então, tentando expor
Do seu tolo argumento o estonteante licor.
“Oh mortais fascinados por sonho risível,
Onde ireis encontrar o Grão-Ser invisível?
Ei-lo ante o vosso olhar, o eterno Grande-Todo;
Tudo lhe forma a essência, ele resume o Todo;
Deus esplende no Sol, verdeja na folhagem,
Ruge pelo vulcão e troa na voragem,
Floresce nos jardins, murmura nos nascentes,
Suspira pela voz das aves docemente,
E tinge pelos ares diáfanos tecidos.
É ele que nos move e os órgãos entretidos
Em nós mantém; que pensa em nós, e os mais diversos
Seres são ele; enfim, eis Deus: é o Universo!”
Oh! Deus se manifesta a si mesmo contrário!
É ovelha e lobo, rola e víbora! Tão vário
Que se faz, vez a vez, pedra, planta e animal;
Sua natureza liga e funde o bem e o mal,
Percorre toda a escala, do bruto ao arcanjo!
É luz e lama, eterno, antitético arranjo!
Ele é bravo e covarde, é pequenino e ingente,
Verídico e farsante, imortal e morrente!
E ao mesmo tempo vítima e opressor, oprime;
Cultivando a virtude rola pelo crime;
Lamettrie e Platão num único epitélio,
Sócrates e Melito, Nero e Marco Aurélio,
Um servidor da glória e da ignomínia!
É a força que se afirma e que é também fulmínea!
Contra a sua própria essência afia o gume eterno,
Vota-se ao Paraíso e lança-se ao Inferno,
Invoca o nada e, para cúmulo da injúria,
Contra a sua própria obra eleva a voz em fúria!
Oh, não, mil vezes não, tal dogma monstruoso
Jamais pôde nascer num coração virtuoso.
Imerso no remorso, onde o crime se expia,
O temerário autor da doutrina doentia,
No seio do prazer sentiu-se apavorar
Pela imagem de um Deus que quisera negar;
E para o afastar, blasfemo dos blasfemos!
Uniu-o a este mundo e uniu-o a si mesmo.
Pelo menos, o ateu, premido no tumulto,
Ousando negar Deus, não lhe degrada o vulto.
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Deus, que esta raça humana busca sem cessar,
Deus, que embora ignoto temos de adorar,
É de todos os seres o princípio e o fim:
Mas, para o atingir, qual o caminho enfim?
Não será pela Ciência, efêmera miragem
Que nos fascina o olhar com sua brilhante imagem
E que, frustrando sempre um incapaz querer,
Esvai-se sob a mão que a julgava deter.
Sábios, acumulais escombros sobre escombros,
E os vossos vãos sistemas passam quais ribombos!
Esse Deus que ninguém pode ver sem morrer,
Cuja essência contém um terrível poder
Mas a seus filhos sabe ternamente amar,
Não podes compreendê-lo sem o igualar!
Ah, para unir-se a ele, reencontrá-lo um dia,
Deve a alma voar como o Amor o faria.
Atiremos ao vento o orgulho e a descrença,
Deus nos aplainará os caminhos da crença.
Seu amor infinito jamais afastou
Uma alma que sinceramente o procurou,
E que, calcando aos pés a riqueza e o prazer,
Aspira a confundir-se com o seu puro Ser.
Mas Deus, que ama o humilde, o coração piedoso,
Que expulsa do seu seio o déspota orgulhoso,
Que se oculta ao sábio e se abandona ao prudente,
Não admite partilha, como o amante inclemente.
E, para o agradar, é necessário opor
Às ilusões do mundo um firme desamor.
Felizes os seus filhos que, na solidão,
Ao Bom, ao Verdadeiro e ao Belo é que se dão.
Feliz o homem justo, absorvido inteiro
No tríplice clarão desse foco primeiro!
Em meio às aflições, no seu caudal profundo,
No círculo fechado deste pobre mundo,
Semelhante a um oásis em flor no deserto
O tesouro da fé à sua alma está aberto;
E Deus, sem se mostrar, o coração lhe invade
E dá-lhe uma alegria estranha à Humanidade.
Então o homem prudente aceita o seu destino
E da calma inviolável guarda o bem divino.
Quando a noite o envolve em seu véu constelado
Ele dorme tranquilo e absorve, embalado
Nos sonhos que inebriam o seu coração
Um antegozo celeste da suprema unção.
Tua alma que tem sede ardente da verdade
Quer mergulhar do Todo na profundidade?
Como um pintor, primeiro, cria pela mente
A obra-prima que o seu pincel torna patente,
O Eterno tudo tira da própria natura,
Mas sem se confundir com sua criatura,
Que recebendo a inteligência, luz dos céus,
É livre de falir ou de elevar-se a Deus.
Obra de sua mente e de sua palavra
Cada criação parte do seu seio... e lavra,
Num círculo traçado por leis imutáveis,
O destino escolhido, os fins realizáveis.
Como o artista, Deus pensa antes de produzir.
Como ele, o que produz poderá destruir.
Sim, fonte inesgotável de seres diversos
E dos globos semeados no imenso Universo,
Deus, força irrefreável, da sua Vida Eterna
Transmite às criações a chispa da luzerna.
O livro e a pintura pelo artista feitos,
São inertes produtos, jazem imperfeitos.
Mas o Verbo lançado pelo Onipotente
Destaca-se e se faz por si mesmo existente.
Sem cessar se transforma e jamais perecível
Do metal se projeta a espírito invisível.
O Verbo criador adormece na planta,
Sonha no animal, no homem se levanta;
Desce de grau em grau para logo subir,
Brilha na Criação, no conjunto a fulgir.
Forma nas ondas do éter a imensa cadeia
Que na pedra começa e no arcanjo se alteia.
Obedecendo às leis que regem os meios seus
Cada germe se achega ou se afasta de Deus,
Conforme se devota ao bem, ou o mal o atrai.
O ser inteligente, por si, sobe ou cai.
Ora, se o homem, na atmosfera do mal,
Se lança pelo crime ao plano do animal,
Já o homem puro em anjo se transforma, e esse anjo
Subindo grau a grau pode tornar-se arcanjo.
Elevado ao seu trono, o arcanjo, divindade,
Poderá conservar a personalidade
Ou fundir-se, afinal, na própria Onipotência
Que pode assimilar uma tão pura essência.
Assim, mais de um arcanjo, em celeste esplendor,
Com Deus se confundiu, num excesso de amor.
Mas outros, invejando a glória soberana,
Fascinados de orgulho, o pai da ira humana,
Quiseram discutir os desígnios de Deus
E mergulhar na noite dos segredos seus;
E esse Deus, que um olhar em pó os reduziria,
Apenas os queimou com sua luz que fulgia.
Depois, desfigurados, no Universo, errantes,
Sempre assaltados por remorsos devorantes,
Esses anjos perdidos por seu gesto incréu
Não ousam mais surgir no patamar do céu.
E a vergonha, aguçando os aguilhões ferais,
Atira a alma rebelde às penas infernais,
Enquanto o homem puro, as provas acabadas,
Se eleva ao Paraíso, atravessando escadas.
Todos esses diversos mundos no infinito,
Que firam teu olhar com seus raios benditos.
Que role pelo espaço a vaga universal
De mundos, como os seres, juntos em caudal.
Esses globos reunidos, focos luminosos,
São navios celestes, barcos fabulosos
Em que vagam no espaço, em planos distanciados,
As coortes de luz de Espíritos graduados.
Há mundos horrorosos e mundos felizes:
Nestes últimos reinam, soberanos juízes,
Três princípios divinos ─ honra, amor, justiça,
Cimentando a estrutura social sem cobiça.
Eternamente amados por seus habitantes
Constituem o penhor de venturas constantes.
Outros mundos, rodando em insolentes vertigens,
Seguiram o que os anjos em pecado exigem.
Esses mundos, autores da própria desgraça,
Trocaram por sua lei a lei de Deus sem jaça,
E em seu solo varrido por louca tormenta
A impura multidão dos seres se lamenta.
Nosso globo noviço, em seus passos primeiros,
Até hoje flutua entre esses dois roteiros.
Ultrajando a moral e a própria Natureza,
Quando um mundo de crime excede a sua devesa;
Quando os povos mergulham em prazeres frementes,
Fechando seus ouvidos à voz dos videntes;
Quando o Verbo divino, em seu mais leve traço,
Se apaga neste mundo enceguecido e baço;
Então do Onipotente a cólera a ferver
Cai sobre o condenado e o leva a perecer.
Arcanjos vingadores, com asas possantes
Batem a terra ímpia... e os mares ululantes
Alteando enormes ondas sobrepassam as fragas
E devastando o solo precipitam as águas;
Explode e ruge a chama dos vulcões rotundos
Dispersando no espaço os resíduos do mundo.
E o Soberano Ser, cuja vingança explode,
Quebra esse globo impuro que já crer não pode.
Nossa Terra mesquinha é uma região de prova
Em que o justo a sofrer em prantos se renova;
Purificando as lágrimas seu coração
Preparam-lhe o caminho de melhor mansão.
Não é portanto em vão que o sono anestesiante
Nos leva num transporte ao sonho inebriante,
E num rápido impulso somos conduzidos
A um radiante astro novo em luz entretecido,
Onde cremos errar em vastas pradarias
Percorridas por seres de sabedoria;
E vemos esse globo iluminado a sóis
Brancos, azuis e rubros, que, nos arrebóis,
Fazem cruzar no espaço os seus variados tons
E ao luar tingem os campos com seus entretons.
Se manténs neste mundo um coração virtuoso
Irás para esses globos de aspecto suntuoso,
Onde há alegria e paz, onde a sabedoria
Mora e a felicidade eterna se irradia.
Sim, tua alma vê essas radiosas regiões
Que os favores do céu embelezam em festões,
Onde o ser se depura e sobe pouco a pouco
Enquanto o mau regride em seu caminho louco,
E do reino do mal rodando em seus anéis
Cai de círculo em círculo entre os infiéis.
Espelho que reflete a imagem do Universo,
Nossa alma pressagia esses fados diversos.
A alma, essa energia que rege os sentidos,
Que logo lhe obedecem aos mínimos pedidos, ─
Que, como chama presa num vaso de argila,
Com seu ardor a frágil prisão aniquila, ─
A alma, que guarda a lembrança do passado
E às vezes sabe ler no futuro afastado,
Não é breve centelha do fogo vital.
Tu mesmo, tu compreendes que a alma é imortal.
Nas regiões espaciais, em plena eternidade,
Conservando a constância e a própria identidade,
Não, a alma não morre, apenas se transporta,
E de abrigo em abrigo ela sempre se exorta.
Nossa alma, ao isolar-se do mundo exterior,
Poderá conquistar um senso superior,
E na ebriez do sono magnético
Possuir outra visão e o dom profético.
Por instantes liberta dos liames terrestres,
Facilmente percorre as amplidões celestes,
E ágil, num salto, lançando-se ao firmamento,
Vê através dos corpos e lê no pensamento.

Swedenborg

Swedenborg é um desses personagens mais conhecidos de nome que de fato, ao menos pelo vulgo. Suas obras muito volumosas, e em geral muito abstratas, são lidas quase só pelos eruditos. Assim, a maioria das pessoas que delas falam ficariam muito embaraçadas para dizer o que ele era. Para uns, é um grande homem, objeto de profunda veneração, sem saberem por quê. Para outros, um charlatão, um visionário, um taumaturgo.

Como todos os homens que professam ideias contrárias às da maioria, especialmente quando essas ideias ferem certos preconceitos, ele teve e tem ainda os seus contraditores. Se estes últimos se tivessem limitado a refutá-lo, estariam no seu direito, mas o facciosismo nada respeita, e as mais nobres qualidades não são reconhecidas por ele. Swedenborg não poderia ser uma exceção.

Sua doutrina, sem dúvida, deixa muito a desejar. Ele próprio, hoje, está longe de aprová-la em todos os pontos. Entretanto, por mais refutável que seja, nem por isso deixará de ser um dos homens mais eminentes do seu século.

Os dados que seguem foram extraídos da interessante notícia enviada pela Sra. P... à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.

Emmanuel Swedenborg nasceu em Estocolmo, em 1688, e morreu em Londres, em 1772, aos 84 anos de idade. Seu pai, Joeper Swedenborg, bispo de Scava, era notável pelo mérito e pelo saber. O filho, porém, o ultrapassou em muito. Destacou-se em todas as ciências, sobretudo na Teologia, na Mecânica, na Física e na Metalurgia. Sua prudência, sabedoria, modéstia e simplicidade lhe valeram a alta reputação de que ainda hoje desfruta. Os reis o chamavam para os seus conselhos. Em 1716, Carlos XII o nomeou assessor na Escola de Metalurgia de Estocolmo. A rainha Ulrica o fez nobre, e ele ocupou os mais destacados postos, com distinção, até 1743, época em que teve a primeira revelação espírita. Tinha então 55 anos. Pediu demissão e não quis mais ocupar-se senão do seu apostolado e do estabelecimento da doutrina da Nova Jerusalém.

Eis como ele próprio conta a sua primeira revelação:

“Eu estava em Londres e jantava muito tarde, na minha modesta hospedaria, onde havia reservado um quarto, a fim de ter liberdade de meditar à vontade. Senti fome e comia com muito apetite. Depois da refeição, percebi que uma espécie de névoa se espalhava ante os meus olhos e vi o assoalho do meu quarto coberto de répteis horríveis, tais como serpentes, sapos, lagartos e outros. Sentia-me tomado de espanto, à medida que aumentavam as trevas, mas em breve elas se dissiparam.

Então vi claramente um homem em meio a uma luz viva e radiante, sentado a um canto da sala. Os répteis haviam desaparecido com as trevas. Encontrava-me só. Imaginai o medo que se apoderou de mim, quando o ouvi pronunciar distintamente, mas com um tom de voz capaz de imprimir terror: “Não comas tanto!” A essas palavras, minha vista se obscureceu, mas restabeleceu-se pouco a pouco e eu me vi sozinho no quarto. Ainda um pouco apavorado por tudo quanto havia visto, apresseime em recolher-me ao alojamento sem dizer palavra sobre o que havia acontecido.

Aí me entreguei à reflexão, mas não concebia que aquilo fosse efeito do acaso ou qualquer causa física.

“Na noite seguinte, o mesmo homem, ainda radiante de luz, apresentou-se e me disse: ‘Eu sou Deus, o Senhor, Criador e Redentor. Escolhi-te para explicar aos homens o sentido interior e espiritual da Sagrada Escritura. Ditarei o que deves escrever.’
“Dessa vez não fiquei tão apavorado, e a luz que o envolvia, embora muito viva e resplendente, não me produziu nos olhos nenhuma impressão dolorosa. Estava vestido de púrpura, e a visão durou um bom quarto de hora.

“Naquela mesma noite os olhos do meu homem interior foram abertos e dispostos para ver o céu, o mundo dos Espíritos e os infernos, e eu encontrei por toda parte várias pessoas conhecidas, algumas falecidas há muito tempo, outras recentemente. Desde aquele dia renunciei a todas as ocupações mundanas para trabalhar exclusivamente nas coisas espirituais, para me submeter à ordem que eu havia recebido. Muitas vezes me aconteceu, a seguir, ter abertos os olhos de meu Espírito e de ver em pleno dia aquilo que se passava no outro mundo; de falar com os Anjos e os Espíritos como falo com os homens”.

Um dos pontos fundamentais da doutrina de Swedenborg repousa naquilo que ele chama as correspondências. Na sua opinião, estando o mundo espiritual e o mundo natural ligados entre si, como o interior ao exterior, resulta que as coisas espirituais e as coisas naturais constituem uma unidade, por influxo, e que há entre elas uma correspondência.

Esse é o princípio, mas o que deve ser entendido por essa correspondência e por esse influxo, eis o que é difícil apreender.

A Terra, diz Swedenborg, corresponde ao homem. Os diversos produtos que servem à nutrição do homem correspondem a diversos gêneros de bens e de verdades, a saber: Os alimentos sólidos a gêneros de bens, e os alimentos líquidos a gêneros de verdades. A casa corresponde à vontade e ao entendimento, que constitui o mental humano. Os alimentos correspondem às verdades ou às falsidades, segundo a substância, a cor e a forma que apresentam.

Os animais correspondem às afeições: os úteis e mansos, às boas afeições; os nocivos e maus às afeições más; os pássaros mansos e belos às verdades intelectuais; os maus e feios às falsidades; os peixes, às ciências que se originam das coisas sensoriais; os insetos nocivos, às falsidades que vêm dos sentidos. As árvores e os arbustos correspondem a diversos gêneros de conhecimento; as ervas e a grama a diversas verdades científicas. O ouro corresponde ao bem celeste; a prata, à verdade espiritual; o bronze, ao bem natural, etc. etc. Assim, desde os últimos degraus da criação até o sol celeste e espiritual, tudo se mantém, tudo se encadeia pelo influxo que produz a correspondência.

O segundo ponto de sua doutrina é o seguinte: há um só Deus e uma só pessoa, que é Jesus Cristo.

O homem, criado livre, segundo Swedenborg, abusou de sua liberdade e de sua razão. Ele caiu, mas a sua queda tinha sido prevista por Deus e devia ser seguida da reabilitação, porque Deus, que é o amor em si mesmo, não podia deixá-lo no estado em que sua queda o havia mergulhado. Ora, como operar tal reabilitação? Colocá-lo no estado primitivo seria o mesmo que lhe tirar o livre-arbítrio e, assim, aniquilá-lo.

Foi subordinando-o às leis de sua ordem eterna que Ele procedeu à reabilitação do gênero humano. Vem a seguir a teoria muito difusa dos três sóis transpostos por Jeová, para se aproximar de nós e provar que ele é o próprio homem. Swedenborg divide o mundo dos Espíritos em três lugares diferentes: os céus, os intermediários e os infernos, mas sem lhes assinalar um lugar. “Depois da morte”, diz ele, “entramos no mundo dos Espíritos. Os santos se dirigem de boa vontade para um dos três céus e os pecadores para um dos três infernos, de onde jamais sairão”.

Esta doutrina desesperadora anula a misericórdia de Deus, porque lhe recusa o poder de perdoar os pecadores surpreendidos por morte violenta ou acidental.

Ainda que rendendo justiça ao mérito pessoal de Swedenborg como cientista e como homem de bem, não nos podemos constituir defensores de doutrinas condenadas pelo mais elementar bom-senso. O que resulta mais claramente, conforme o que conhecemos agora dos fenômenos espíritas, é a existência de um mundo invisível e a possibilidade de nos comunicarmos com ele. Swedenborg gozou de uma faculdade que em seu tempo pareceu sobrenatural. É por isto que admiradores fanáticos o encararam como um ser excepcional. Em tempos mais remotos teriam levantado altares em sua honra. Aqueles que não acreditavam nele o consideraram como um cérebro exaltado ou um charlatão. Para nós, era um médium vidente e um escritor intuitivo, como os há aos milhares, faculdade que pertence ao rol dos fenômenos naturais.

Ele cometeu um equívoco perfeitamente perdoável, tendo em vista sua inexperiência nas coisas do mundo oculto: o de aceitar muito cegamente tudo quanto lhe era ditado, sem o submeter ao controle severo da razão. Se tivesse pesado maduramente os prós e os contras, teria reconhecido princípios inconciliáveis com a lógica, por menos rigorosa que ela fosse. Hoje, provavelmente não teria caído na mesma falta, pois disporia dos meios de julgar e apreciar o valor das comunicações de além-túmulo. Teria sabido que constituem um campo onde nem todas as ervas devem ser colhidas, e que entre umas e outras o bom-senso, que não nos foi dado à toa, deve saber escolher.

A qualidade que a si mesmo se atribuiu o Espírito que a ele se manifestou bastaria para o pôr em guarda, sobretudo considerando a trivialidade de sua apresentação. Aquilo que ele próprio não fez, devemos fazê-lo agora, só aceitando de seus escritos o que eles contêm de racional. Seus próprios erros devem ser um ensinamento para os médiuns demasiado crédulos, de que certos Espíritos procuram fascinar, lisonjeando-lhes a vaidade ou os preconceitos por uma linguagem pomposa ou de aparência enganadora.

A anedota seguinte prova o grau de má fé dos adversários de Swedenborg, que procuravam todas as oportunidades para denegri-lo. Conhecendo suas faculdades, a rainha Luísa Ulrica o havia encarregado, um dia, de saber do Espírito de seu irmão, o príncipe da Prússia, por que algum tempo antes de sua morte não respondera a uma carta que ela lhe havia mandado, pedindo conselhos. Ao cabo de 24 horas, em audiência secreta, Swedenborg teria relatado à rainha a resposta do príncipe, concebida em termos tais, que essa, plenamente convencida de que ninguém, exceto ela própria e o seu falecido irmão conheciam o conteúdo da referida carta, foi tomada da mais profunda estupefação e reconheceu o poder miraculoso do grande homem.

Eis a explicação que dá a esse fato um dos seus antagonistas, o cavaleiro Beylon, leitor da rainha:

“Consideravam a rainha como um dos principais autores da tentativa de revolução ocorrida na Suécia em 1756, que custou a vida do conde Barhé e do marechal Horn. Pouco faltou para que o partido dos chapéus44, que então triunfava, não a tornasse responsável pelo sangue derramado.

Nessa situação crítica, ela escreveu ao irmão, o príncipe da Prússia, pedindo conselho e assistência. A rainha não recebeu resposta e como o príncipe tivesse morrido logo depois, jamais soube ela a causa de seu silêncio. Por isto encarregou Swedenborg de interrogar o Espírito do príncipe a tal respeito. Justamente à chegada da mensagem da rainha, estavam presentes os senadores Conde T... e Conde H...

Este último, que tinha interceptado a carta, sabia tão bem quanto seu cúmplice, o Conde T..., por que razão a carta ficara sem resposta, e ambos resolveram aproveitar a circunstância para fazer com que a rainha recebesse seus conselhos sobre muitas coisas. Então, foram à noite procurar o visionário e lhe ditaram a resposta. Swedenborg, que não estava inspirado, aceitou-a com açodamento. No dia seguinte correu para a rainha e, no silêncio do gabinete, lhe disse que o Espírito do príncipe lhe aparecera e o havia encarregado de anunciar-lhe o seu descontentamento e garantir-lhe que, se não respondera a carta, é que desaprovava a sua conduta, pois sua política imprudente e a sua ambição eram a causa do sangue derramado; que ela era culpada perante Deus e tinha que expiar essa culpa. Ele mandava pedir-lhe que não mais se intrometesse nos negócios do Estado, etc. etc. Convencida por esta revelação, a rainha acreditou em Swedenborg e tomou ardorosamente a sua defesa.

Esta anedota deu lugar a uma polêmica contínua entre os discípulos de Swedenborg e os seus detratores. Um padre sueco, chamado Malthesius, que veio a ficar louco, tinha publicado que Swedenborg, de quem ele era inimigo declarado, se havia retratado antes de morrer. A balela espalhou-se na Holanda, pelo outono de 1785, levando Robert Hindmarck a instaurar um inquérito e demonstrar a inteira falsidade da calúnia inventada por Malthesius.

A história de Swedenborg prova que a visão espiritual de que era dotado, em nada lhe prejudicou o exercício das faculdades naturais. Seu elogio fúnebre. Os dois partidos em luta chamavam-se dos Chapéus e dos Bonés. O primeiro era partidário de uma aliança com a França e queria a guerra. (N. do T.) pronunciado pelo acadêmico Landel, na Academia de Ciências de Estocolmo, mostra quanto era vasta a sua erudição e pelos discursos pronunciados na Dieta, em 1761 tomamos conhecimento de sua participação na direção dos negócios públicos do país.

A doutrina de Swedenborg fez numerosos prosélitos em Londres, na Holanda e mesmo em Paris, onde deu origem à Sociedade de que tratamos no número de outubro, à dos Martinistas, à dos Teósofos, etc. Se não foi aceita por todos com todas as suas consequências, teve contudo como resultado a propagação da crença na possibilidade de comunicação com os seres de além-túmulo, crença aliás muito antiga, como todos sabem, mas até agora oculta ao público pelas práticas misteriosas que a envolviam. O incontestável mérito de Swedenborg, seu profundo saber e sua alta reputação de sabedoria, tiveram grande influência na propagação dessas ideias, que hoje mais e mais se popularizam, pois crescem em plena luz e, longe de buscar a sombra do mistério, apelam à razão. Apesar dos erros do seu sistema, Swedenborg não deixa de ser uma das grandes figuras cuja lembrança ficará ligada à História do Espiritismo, do qual foi um dos primeiros e mais zelosos pioneiros.

Comunicação de Swedenborg prometida na sessão de 16 de setembro

Meus bons amigos e crentes fiéis. Desejei vir aqui, entre vós, para vos encorajar no caminho que seguis com tanto ânimo, relativamente à questão espírita. Vosso zelo é apreciado no mundo dos Espíritos. Prossegui, mas não vos descuideis, porque os obstáculos vos entravarão ainda por algum tempo. Assim como a mim, a vós não faltarão detratores, Há um século preguei o Espiritismo e tive inimigos de todos os gêneros. Também tive fervorosos adeptos, e isso sustentou a minha coragem.

A minha moral espírita e a minha doutrina não estão isentas de grandes erros, que hoje reconheço. Assim, as penas não são eternas, bem o vejo. Deus é muito justo e muito bom para punir eternamente a criatura que não tem força suficiente para resistir às paixões. Também aquilo que eu dizia do mundo dos Anjos, que é o que pregam nos templos, não passava de ilusão dos meus sentidos. De boa-fé eu julgava ver, e o disse, mas me enganei. Vós, sim, estais no melhor caminho, porque estais mais esclarecidos do que estávamos em meu tempo.

Continuai, mas sede prudentes, para que os vossos inimigos não tenham armas muito fortes contra vós. Vedes o terreno que ganhais diariamente. Coragem, pois! O futuro vos está garantido. O que vos dá forças é que falais em nome da razão. Tendes perguntas a dirigir-me? Eu vos responderei.

SWEDENBORG

1. ─ Foi em Londres, em 1745, que tivestes a primeira revelação. Vós a desejáveis? Então já vos ocupáveis das questões teológicas?
─ Já me ocupava com isso, mas de modo algum havia desejado essa revelação. Ela me veio espontaneamente.

2. ─ Qual foi o Espírito que vos apareceu e disse ser o próprio Deus? Era realmente Deus?
─ Não. Acreditei no que me dizia porque nele via um ser sobre-humano e por isso fiquei lisonjeado.

3. ─ Por que tomou ele o nome de Deus?
─ Para ser melhor obedecido.

4. ─ Pode Deus manifestar-se diretamente aos homens?
─ Certamente poderia, mas não o faz mais.

5. ─ Houve então um tempo em que ele se manifestou?
─ Sim, nas primeiras idades da Terra.

6. ─ Aquele Espírito vos fez escrever coisas que hoje reconheceis como errôneas, fê-lo com boa ou com má intenção?
─ Não o fez com má intenção. Ele próprio estava enganado, pois não era bastante esclarecido. Hoje eu vejo que as ilusões do meu próprio Espírito e da minha inteligência o influenciavam, malgrado seu. Entretanto, no meio de alguns erros de sistema, fácil é reconhecer grandes verdades.

7. ─ O fundamento da vossa doutrina repousa sobre as correspondências. Ainda acreditais nessas relações que descobríeis entre cada coisa do mundo material e cada coisa do mundo moral?
─ Não. É uma ficção.

8. ─ Que entendeis por estas palavras: Deus é o próprio homem?
─ Deus não é o homem: o homem é que é uma imagem de Deus.

9. ─ Por favor, desenvolvei o vosso pensamento.
─ Digo que o homem é a imagem de Deus, porque a inteligência, o gênio que ele por vezes recebe do céu é uma emanação da Onipotência Divina. Ele representa Deus na Terra, pelo poder que exerce sobre toda a Natureza e pelas grandes virtudes que tem a possibilidade de adquirir.

10. ─ Devemos considerar o homem como uma parte de Deus?
─ Não. O homem não é parte da Divindade. É apenas a sua imagem.

11. ─ Poderíeis dizer-nos de que maneira eram recebidas por vós as comunicações dos Espíritos? Escrevíeis aquilo que vos era revelado, à maneira dos médiuns, ou por inspiração?
─ Quando eu estava em silêncio e em recolhimento, meu Espírito como que ficava deslumbrado, em êxtase, e eu via claramente uma imagem à minha frente, que me falava e ditava o que eu deveria escrever. Por vezes, minha imaginação se misturava a isso.

12. ─ Que devemos pensar do fato narrado pelo cavaleiro de Beylon, relativamente à revelação que fizestes à rainha Luísa Ulrica?
─ Essa revelação é verdadeira. Beylon a desnaturou.

13. ─ Qual a vossa opinião sobre a Doutrina Espírita, tal qual é hoje?
─ Eu vos disse que estais num caminho mais seguro que o meu, visto que as vossas luzes são em geral mais amplas. Eu tinha que lutar contra uma ignorância muito maior e sobretudo contra a superstição.

A alma errante

No volume intitulado Les Six Nouvelles * de Maxime Ducamp, encontra-se uma história tocante, que recomendamos aos nossos leitores. É a de uma alma errante que conta suas próprias aventuras. Não temos a honra de conhecer o Sr. Maxime Ducamp, a quem jamais vimos.

Consequentemente, não sabemos se colheu seus ensinamentos em sua própria imaginação ou em estudos espíritas. Mas, seja como for, não podia ser mais felizmente inspirado.

Podemos julgá-lo pelo seguinte fragmento. Não falaremos do quadro fantástico no qual a novela é encaixada. Isto é um acessório sem importância e puramente formal.

“Eu sou uma alma errante, uma alma penada. Vago através dos espaços, esperando um corpo. Viajo nas asas do vento, no azul do céu, no canto dos pássaros, nas pálidas claridades do luar. Eu sou uma alma penada...

“Desde o instante em que Deus nos separou d’Ele, muitas vezes temos vivido na Terra, avançando de geração em geração, abandonando sem pesar os corpos que nos são confiados e continuando a obra do nosso próprio aperfeiçoamento através
das existências às quais nos submetemos.

“Quando deixamos este hospedeiro incômodo, que nos serve tão mal; quando ele vai fecundar e renovar a terra, de onde saiu; quando em liberdade, enfim, abrimos as asas, então Deus nos dá a conhecer o nosso objetivo. Vemos nossas existências precedentes; avaliamos o nosso progresso realizado durante séculos; compreendemos as punições e as recompensas que nos atingiram, pelas alegrias e pelas dores de nossa vida; vemos nossa inteligência crescer de nascimento em nascimento, e aspiramos ao estado supremo, pelo qual deixaremos esta pátria inferior para ganhar os planetas radiosos, onde as paixões são mais elevadas, o amor menos ambicioso, a felicidade mais constante, os órgãos mais desenvolvidos, os sentidos mais numerosos, e que serve de morada para os habitantes de mundos que, por suas virtudes, se aproximaram da beatitude, mais do que nós.

“Quando Deus nos envia novamente a corpos que devem viver para nós uma vida miserável, perdemos totalmente a consciência daquilo que antecedeu a esses novos renascimentos. O eu que havia despertado volta a dormir; não persiste mais. De nossas passadas existências restam apenas vagas reminiscências, que são para nós a causa de simpatias, de antipatias e por vezes de ideias inatas.

“Não falarei de todas as criaturas que viveram do meu sopro, mas a minha última existência sofreu uma desgraça tão grande, que é apenas dela que eu vos quero contar a história”.

Seria difícil definir melhor o princípio e a finalidade da reencarnação, a progressão dos seres, a pluralidade dos mundos e o futuro que nos espera. Eis agora, em duas palavras, a história daquela alma.

“Um moço amava uma jovem e era correspondido. Havia obstáculos opondo-se à sua união. Ele pediu a Deus que permitisse que durante o sono do corpo, sua alma se desprendesse a fim de ir visitar a bem-amada. Esse favor lhe foi concedido.

“Assim, todas as noites sua alma se evola, deixando o corpo em estado de completa inércia, estado de que não sai senão quando a alma retorna para se reincorporar. Durante esse tempo, vai visitar a sua amada.

“Ele a vê, sem que ela o suspeite. Quer falar-lhe, mas ela não o escuta. Observa-lhe os menores movimentos e surpreende-lhe o pensamento. Fica feliz com as alegrias dela e triste com as suas dores. Nada mais gracioso e mais delicado que o quadro destas cenas entre a moça e a alma invisível.

“Mas, oh! fraqueza do ser encarnado! Um dia, ou melhor, uma noite, ele esquece de si mesmo. Três dias se passam sem que pense em seu corpo, que não pode viver sem sua alma. De repente, pensa em sua mãe, que o espera e que deve estar inquieta por causa desse sono tão prolongado. Corre, mas é demasiado tarde. Seu corpo cessara de viver.

“Assiste aos seus funerais, depois consola sua mãe. Em desespero, a noiva não quer ouvir falar de nenhuma outra união. Vencida, entretanto, pelas solicitações da própria mãe, acaba cedendo, depois de longa resistência.

“A alma errante lhe perdoa uma infidelidade que não está em seu pensamento. Mas, para receber suas carícias e não mais deixá-la, pede para encarnar-se no filho que vai nascer”.

Se o autor não está convencido das ideias espíritas, devemos convir que representa muito bem o seu papel.

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* Librairie Nouvelle, Boulevard des Italiens.



O Espírito e o jurado

Um dos nossos correspondentes, homem de grande saber e portador de títulos científicos oficiais, o que não o impede de cometer a fraqueza de acreditar que temos uma alma e que essa alma sobrevive ao corpo, que depois da morte fica errante no espaço e ainda pode comunicar-se com os vivos, tanto mais quanto ele próprio é um bom médium e mantém conversas com os seres de além-túmulo, dirige-nos a seguinte carta:

“Senhor,

“Talvez julgueis acertado agasalhar na vossa interessante revista o fato seguinte:

“Há algum tempo eu era jurado. O tribunal devia julgar um moço, apenas saído da adolescência, acusado de ter assassinado uma senhora idosa em circunstâncias horríveis. O acusado confessava e contava os detalhes do crime com uma impassibilidade e um cinismo que faziam fremir a assembleia.

“Entretanto é fácil prever, em virtude da sua idade, da sua absoluta falta de educação e dados os estímulos recebidos em família, que fossem apresentadas em seu favor circunstâncias atenuantes, tanto mais que ele fora levado pela cólera, agindo contra uma provocação por injúrias.

“Eu quis consultar a vítima a respeito do grau de sua culpabilidade. Chamei-a, durante uma sessão, por uma evocação mental. Ela me fez saber que estava presente e eu pus minha mão às suas ordens. Eis a conversação que tivemos ─ eu, mentalmente, ela pela escrita:

“─ O que a senhora pensa de seu assassino?

“─ Não serei eu quem o acusará.

“─ Por quê?

“─ Porque ele foi levado ao crime por um homem que me fez a corte há cinquenta anos e que, nada tendo conseguido de mim, jurou vingar-se. Conservou, após a sua morte, o desejo de vingança e aproveitou as disposições do acusado para lhe inspirar o desejo de matar-me.

“─ Como sabe disso?

“─ Porque ele mesmo me disse, quando cheguei a este mundo que hoje habito.

“─ Compreendo sua reserva diante dos estímulos que o seu assassino não repeliu como deveria e poderia. Mas a senhora não pensa que a inspiração criminosa, à qual ele voluntariamente obedeceu, não teria sobre ele o mesmo poder, se não houvesse nutrido ou entretido, durante muito tempo, sentimentos de inveja, de ódio e de vingança contra a senhora e a sua família?

“─ Com certeza. Sem isso ele teria sido mais capaz de resistir. Eis por que digo que aquele que quis vingar-se aproveitou as disposições desse moço. O senhor compreende que ele não se teria dirigido a alguém que se dispusesse a resistir.

“─ Ele goza com a sua vingança?

“─ Não, pois vê que isso lhe custará caro. Além disso, em lugar de me fazer mal, ele me prestou um serviço, fazendo-me entrar mais cedo no mundo dos Espíritos, onde sou mais feliz. Foi, pois, uma ação má sem proveito para ele.
“Circunstâncias atenuantes foram admitidas pelo júri, baseadas nos motivos acima indicados, e a pena de morte foi descartada.

“A respeito do que acabo de contar, deve fazer-se uma observação moral de grande importância. É necessário concluir, com efeito, que o homem deve vigiar os seus menores pensamentos malévolos e até mesmo os seus maus sentimentos, por mais fugidios que pareçam, pois eles podem atrair para si Espíritos maus e corrompidos, e expô-lo, fraco e desarmado, às suas inspirações culposas. É uma porta que ele abre ao mal, sem compreender o perigo. Foi, pois, com um profundo conhecimento do homem e do mundo espiritual que Jesus Cristo disse: ‘Todo aquele que olhar para uma mulher para cobiçá-la, já em seu coração adulterou com ela." (Mat. 5:28).
“Tenho a honra, etc. SIMON M...”

Advertência de além-túmulo - O oficial da Criméria

O L’Indépendance Belge, que não pode ser acusado de excessiva benevolência para com as crenças espíritas, relatou o fato seguinte, reproduzido por vários jornais, e que por nossa vez transcrevemos com todas as reservas, pois não tivemos ocasião de constatar a sua realidade.

“Seja porque a nossa imaginação inventa e povoa um mundo das almas ao nosso lado e acima de nós; seja porque o mundo no qual estamos, vivemos e agimos existe realmente, é fora de dúvida, pelo menos para mim, que se produzem acidentes inexplicáveis que provocam a ciência e desafiam a razão.

“Na guerra da Crimeia, durante uma dessas noites tristes e lentas que se prestam maravilhosamente à melancolia, ao pesadelo e a todas as nostalgias do céu e da Terra, um jovem oficial, levantando-se de repente, sai de sua tenda, vai procurar um dos seus camaradas e lhe diz:

“─ Acabo de receber a visita de minha prima, a Srta. de T...

“─ Estás sonhando.

“─ Não. Ela entrou, pálida e sorridente, apenas deslizando no chão muito duro e muito áspero para os seus pés delicados. Olhou-me, depois que a sua voz doce bruscamente me despertara, e me disse: ‘Demoras muito! Toma cuidado! Algumas vezes a gente morre na guerra sem ir à guerra!’ Eu quis falar-lhe, levantar-me e correr para ela, mas ela recuou, e pondo o dedo sobre os lábios, disse: ‘Silêncio! Tem coragem e paciência. Nós voltaremos a ver-nos’. Ah, meu amigo! Ela estava muito pálida. Tenho certeza de que ela está doente e de que me chama.

“─ Estás doido e sonhando acordado, retorquiu o amigo.

“─ É possível, mas o que é esta agitação do meu coração, que a evoca e me faz vê-la?

“Os dois moços conversaram e pela madrugada o amigo acompanhou à tenda o oficial visionário, quando este estremeceu de repente e lhe disse:

“─ Ei-la, meu amigo! Ei-la diante da minha tenda... Ela me faz sinais dizendo que eu não tenho fé nem confiança.

“O amigo, é bom que se diga, nada via. Ele fez o que pôde para animar o camarada. Raiou o dia, e com o dia vieram as ocupações suficientemente sérias para que deixasse de pensar nos fantasmas da noite. Mas, por uma precaução muito razoável, no dia seguinte uma carta partiu para a França, pedindo urgentes notícias da Srta. de T... Alguns dias depois responderam que a Srta. de T... estava gravemente doente e que se o oficial pudesse obter uma licença, pensavam que sua visita teria ótimo efeito.

“Pedir licença no momento das lutas mais rudes, talvez na véspera de um ataque decisivo, dando como razão temores sentimentais, era coisa em que não se podia pensar. Contudo, creio lembrar-me que a licença foi pedida e concedida e que o moço oficial ia partir para a França, quando teve mais uma visão. Esta era pavorosa. A Srta. de T..., pálida e muda, deslizou uma noite para dentro da tenda e lhe mostrou o longo vestido branco que arrastava. O moço oficial nem por um momento duvidou que sua noiva estivesse morta. Estendeu a mão, pegou uma de suas pistolas e arrebentou os miolos.

“Com efeito, naquela mesma noite, naquela mesma hora a Srta. de T... havia dado o último suspiro.

“Esta visão era produzida pelo magnetismo? Não sei. Era loucura? Assim fosse! Mas era qualquer coisa que escapava às zombarias dos ignorantes e às zombarias ainda mais inconvenientes dos cientistas.

“Quanto à autenticidade do fato, posso garanti-la. Interrogai os oficiais que passaram esse longo inverno na Crimeia, e não serão poucos os que vos contarão fenômenos de pressentimento, de visão, de miragem da pátria e de parentes, análogas a esta que acabo de contar.

“O que se deve concluir? Nada, a não ser que eu terminasse a minha correspondência de uma maneira muito lúgubre, e que soubesse fazer dormir sem saber magnetizar.”

THÉCEL

Como dissemos no começo, não podemos constatar a autenticidade do fato. Mas o que podemos garantir é a sua possibilidade. Os exemplos verificados, antigos e recentes, de advertências de além-túmulo são tão numerosos que este nada tem de mais extraordinário que outros, testemunhados por tantas pessoas dignas de fé. Em outros tempos podiam parecer sobrenaturais, mas hoje, que se conhece a sua causa e que estão psicologicamente explicados, graças à teoria espírita, nada têm que os afaste das leis da Natureza. Acrescentaremos apenas uma observação: Se esse oficial tivesse conhecido o Espiritismo, saberia que o meio de se ligar à sua noiva não seria o suicídio, pois essa atitude pode afastá-los por muito mais tempo do que ele teria vivido na Terra. O Espiritismo lhe teria dito, além disso, que uma morte gloriosa, no campo de batalha, lhe teria sido mais proveitosa do que essa morte voluntária por um ato de fraqueza.

* * *

Eis outro fato de advertência de além-túmulo, relatado pela Gazette d’Arad (Hungria) de novembro de 1858:

“Dois irmãos israelitas de Gyek, Hungria, tinham ido a Grosswardein, levar suas duas filhas de 14 anos a um internato. Durante a noite seguinte à sua partida, outra filha de um deles, de 10 anos de idade, que ficara em casa, levantou-se sobressaltada e, chorando, contou à mãe que vira em sonhos o pai e o tio cercados por vários camponeses que lhes queriam fazer mal.

“A princípio a mãe não ligou nenhuma importância a essas palavras. Vendo, porém, que não podia acalmar a criança, levou-a à casa do maire local, onde a menina contou novamente o sonho, acrescentando que reconhecera entre os camponeses dois de seus vizinhos, e que o fato se passara na orla de uma floresta.

“Imediatamente o maire mandou verificar na casa dos dois camponeses, que realmente estavam ausentes. Depois, para se assegurar da verdade, mandou outros emissários na direção indicada, que encontraram cinco cadáveres nos confins de um bosque. Eram os dois pais com as filhas e o cocheiro que os conduzia. Os cadáveres haviam sido atirados sobre um braseiro para se tornarem irreconhecíveis. Logo a polícia começou a fazer pesquisas. Prendeu os dois camponeses designados, no momento em que procuravam trocar dinheiro manchado de sangue. Na prisão confessaram o crime, dizendo que reconheciam o dedo de Deus na pronta descoberta do seu crime.

Os convulsionários de Saint-Médard

Notícia ─ François Pâris, famoso diácono de Paris, falecido em 1727, aos trinta e sete anos de idade, era o filho mais velho de um conselheiro do Parlamento.

Naturalmente devia sucedê-lo no cargo, mas preferiu abraçar a carreira eclesiástica. Após a morte de seu pai, deixou os bens para o irmão. Durante algum tempo ensinou catecismo na paróquia de São Cosme; encarregou-se da direção dos clérigos e lhes fez conferências. O Cardeal de Noailles, a cuja causa estava ligado, quis nomeá-lo cura dessa paróquia, mas sobreveio um obstáculo imprevisto. O Padre Pâris consagrara-se inteiramente ao retiro. Depois de ter experimentado diversos eremitérios, fechou-se numa casa no bairro de São Marcelo. Lá entregou-se à prece, às práticas mais rigorosas da penitência e ao trabalho manual. Fazia meias para os pobres, que considerava como seus irmãos. Morreu nesse asilo.

O Padre Pâris havia aderido ao apelo da bula Unigenitus47, interposta pelos quatro bispos. Ele havia renovado seu apelo em 1720. Assim, devia ser descrito diversamente pelos partidos opostos. Tendo que fazer meias, produzira livros muito medíocres. Dele possuímos explicações da Epístola de São Paulo aos Romanos, da Epístola aos Gálatas, e uma análise da Epístola aos Hebreus, que pouca gente lê. Seu irmão mandou erigir-lhe um túmulo no pequeno cemitério de Saint-Médard, onde iam fazer preces os pobres que o piedoso diácono havia socorrido, alguns ricos que tinha edificado, algumas mulheres que tinha instruído. Houve curas que pareceram maravilhosas e convulsões que foram consideradas perigosas e ridículas.

A autoridade foi obrigada a fazer cessar esse espetáculo, determinando o fechamento do cemitério a 27 de janeiro de 1732. Então os mesmos entusiastas passaram a realizar suas convulsões em casas particulares. Na opinião de muita gente, o túmulo do diácono Pâris foi o túmulo do jansenismo. Mas algumas pessoas viram nisso o dedo de Deus, e mais se ligaram a uma seita que produzia tais maravilhas. Há muitas histórias desse diácono, das quais jamais teriam falado se não houvessem querido transformá-lo num taumaturgo.

Entre os fenômenos estranhos apresentados pelos Convulsionários de Saint-Médard citam-se:

A faculdade de resistir a pancadas tão terríveis, que os corpos deveriam ficar esmagados;

A de falar línguas ignoradas ou por eles esquecidas; Um desdobramento extraordinário da inteligência. Os mais ignorantes entre eles improvisavam discursos sobre a graça, sobre os males da igreja, sobre o fim do mundo, etc.;

A faculdade de ler o pensamento; Postos em contato com os doentes, experimentavam as dores exatamente nos mesmos lugares onde as pessoas que os consultavam sentiam. Nada era mais frequente do que ouvi-los predizer diversos fenômenos anormais que deveriam sobrevir no curso de suas doenças.

A insensibilidade física produzida pelo êxtase deu lugar a cenas atrozes. A loucura chegou ao ponto de realmente crucificarem vítimas infelizes; de lhes fazer sofrerem todos os detalhes da Paixão do Cristo. Essas vítimas ─ o fato é atestado pelas mais autênticas testemunhas ─ solicitavam as terríveis torturas, designadas entre os convulsionários pelo nome de grande socorro.

A cura dos doentes se operava pelo simples toque da pedra tumular ou pela poeira que encontravam em redor e que tomavam com qualquer bebida ou aplicavam sobre as úlceras. Essas curas, que foram muito numerosas, são atestadas por milhares de testemunhas, muitas das quais são homens de Ciência, no fundo incrédulos, que registraram os fatos sem saber a que atribuí-los.

PAULINE ROLAND

1. ─ Evocação do diácono Pâris.
─ Estou às vossas ordens.

2. ─ Qual é o vosso estado atual como Espírito?
─ Errante e feliz.

3. ─ Tivestes outras existências corporais, depois dessa que conhecemos?
─ Não. Estou constantemente ocupado em fazer o bem aos homens.

4. ─ Qual foi a causa dos estranhos fenômenos que se passavam com os visitantes do vosso túmulo?
─ Intriga e magnetismo.

OBSERVAÇÃO: Entre as faculdades de que eram dotados os convulsionários se reconhecem, sem dificuldade, algumas das quais o sonambulismo e o magnetismo oferecem numerosos exemplos. Tais são, entre outras: a insensibilidade física, a percepção do pensamento, a transmissão simpática das dores, etc. Assim não se pode duvidar de que os crisíacos estivessem numa espécie de estado de sonambulismo acordado, provocado pela influência que exerciam uns sobre os outros, inadvertidamente. Eles eram, ao mesmo tempo, magnetizadores e magnetizados.

5. ─ Por que motivo toda uma população foi subitamente dotada dessas estranhas faculdades?
─ Elas se comunicam muito facilmente em certos casos, e vós não sois tão estranhos às faculdades dos Espíritos para não compreenderdes que eles nisto tiveram uma grande participação, por simpatia para com aqueles que as provocavam.

6. ─ Participastes diretamente, como Espírito?
─ Nem de leve.

7. ─ Outros Espíritos participaram?
─ Muitos.

8. ─ Em geral, de que natureza eram?
─ Pouco elevada.

9. ─ Por que essas curas e esses fenômenos cessaram quando a autoridade se opôs, fechando o cemitério? A autoridade tinha, então, mais poder que os Espíritos?
─ Deus quis fazer cessar a coisa porque havia degenerado em abuso e escândalo. Foi preciso um meio, e ele empregou a autoridade dos homens.

10. ─ Desde que não participastes dessas curas, por que prefeririam o vosso túmulo ao de outro?
─ Pensais que eu tenha sido consultado? Escolheram o meu túmulo calculadamente. Minhas opiniões religiosas, em primeiro lugar, e o pouco de bem que eu tinha procurado fazer foram explorados.

Observações a propósito do vocábulo milagre

O Sr. Mathieu, que citamos em nosso artigo de outubro, a propósito dos milagres, dirige-nos a reclamação seguinte, que nos apressamos em atender:

“Senhor,

“Se eu não tenho a vantagem de estar de acordo convosco em todos os pontos, pelo menos estou naquilo que tivestes ocasião de dizer de mim no último número de vosso jornal. Assim, concordo perfeitamente com vossa observação a respeito do
vocábulo milagre.

“Se dele me servi em meu opúsculo, tive o cuidado de dizer, ao mesmo tempo, à pág. 4: ‘Convencido de que o vocábulo milagre exprime um fato produzido fora das leis conhecidas da Natureza; um fato que escapa a toda explicação humana, a toda interpretação científica’, supunha assim indicar suficientemente que dava ao vocábulo milagre um valor relativo e convencional. Parece-me, desde que tivestes o trabalho de me censurar, que me enganara.

“Em todo caso, conto com a vossa imparcialidade para que estas linhas, que tenho a honra de vos dirigir, encontrem acolhida no vosso próximo número. Não me sinto agastado, uma vez que os vossos leitores saibam que eu não quis dar ao vocábulo em questão o sentido que lhe censurais, e que houve inabilidade da minha parte ou malentendido da vossa, talvez mesmo um pouco de uma e de outra coisa.

“Recebei, etc.

“MATHIEU”

Como dissemos no nosso artigo, estávamos perfeitamente convencido do sentido em que o Sr. Mathieu havia empregado o vocábulo milagre. Assim, nossa crítica de modo algum visava à sua opinião, mas ao emprego do vocábulo, mesmo na sua mais racional acepção. Há tantas pessoas que não veem senão a superfície das coisas e que não se dão ao trabalho de aprofundá-las, o que não as impede de julgar como se as conhecessem, que tal título dado a um fato espírita poderia ser tomado ao pé da letra, de boa-fé por uns, de má fé pelo maior número.

Nossa observação a este respeito é tanto mais fundada quanto nos lembramos de ter lido algures, num jornal cujo nome nos escapa, um artigo onde aqueles que gozam da faculdade de provocar fenômenos espíritas eram classificados, por irrisão, como fazedores de milagres, e isto a propósito de um adepto muito zeloso, que estava, ele próprio, convencido de produzi-los. É o caso de lembrar que nada é mais perigoso do que um amigo imprudente. Nossos adversários são muito ansiosos em lançar-nos ao ridículo, sem que lhes ofereçamos pretexto.

Aviso

A abundância de matéria não nos permite inserir neste número o Boletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Dá-lo-emos no do mês de dezembro, num suplemento, juntamente com outras comunicações que tivemos de adiar por falta de
espaço.

ALLAN KARDEC

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