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Dezembro
AvisoOs senhores assinantes que não quiserem sofrer atraso na remessa da Revista Espírita para o ano de 1862 (5º ano) são convidados a renovar a assinatura antes de 31 de dezembro.
Os assinantes de 1862 poderão obter a coleção dos quatro anos precedentes, em conjunto, ao preço de 30 francos, em vez de 40 francos. Assim, com a assinatura corrente pagarão pelos cinco anos apenas 40 francos, isto é, pelo mesmo preço terão 5 anos em vez de 4, ou seja, uma diminuição de 20%. Os anos comprados isoladamente custam 10 francos cada, como no passado.
A segunda tiragem dos anos 1858, 1859 e 1860 se esgotaram. Acaba de ser feita uma terceira reimpressão.
NOTA: O número de janeiro de 1862 conterá um artigo muito desenvolvido sobre a Interpretação da doutrina dos anjos rebeldes, dos Anjos decaídos, do Paraíso perdido e sobre A origem e a condição moral do homem na Terra.
Os assinantes de 1862 poderão obter a coleção dos quatro anos precedentes, em conjunto, ao preço de 30 francos, em vez de 40 francos. Assim, com a assinatura corrente pagarão pelos cinco anos apenas 40 francos, isto é, pelo mesmo preço terão 5 anos em vez de 4, ou seja, uma diminuição de 20%. Os anos comprados isoladamente custam 10 francos cada, como no passado.
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NOTA: O número de janeiro de 1862 conterá um artigo muito desenvolvido sobre a Interpretação da doutrina dos anjos rebeldes, dos Anjos decaídos, do Paraíso perdido e sobre A origem e a condição moral do homem na Terra.
Próximo lançamento de novas obras do Sr. Allan Kardec
As seguintes novas obras do Sr. Allan Kardec aparecerão em breve:
O ESPIRITISMO NA SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES. Brochura destinada a popularizar os elementos da Doutrina Espírita. Será vendida a 25 centavos.
REFUTAÇÃO DAS CRÍTICAS CONTRA O ESPIRITISMO, do ponto de vista do Materialismo, da Ciência e da Religião. Esta última parte terá todos os desenvolvimentos necessários. Conterá a resposta à brochura do Padre Marouzeau.
Várias outras obras, das quais uma de importância mais ou menos igual, em volume, ao Livro dos Espíritos, serão publicadas durante o ano de 1862.
Organização do Espiritismo
1. ─
Até o presente, embora muito numerosos, os espíritas se têm disseminado por
todos os países, o que não é um dos caracteres menos salientes da Doutrina. Como
uma semente levada pelo vento, ela fixou raízes em todos os pontos do globo,
prova evidente de que sua propagação não é efeito de uma camarilha, nem de uma
influência local e pessoal. A princípio isolados, os adeptos se surpreenderam
hoje com seu número, e como a
similitude de ideias inspira o desejo de aproximação, procuram reunir-se e
fundar sociedades. Assim, de toda parte nos pedem instruções a propósito,
manifestando o desejo de união à Sociedade central de Paris. É, pois, chegado o
momento de nos ocuparmos do que se pode chamar a organização do Espiritismo. Sobre a formação das sociedades
espíritas, o Livro dos Médiuns (2.ª
edição) contém observações importantes, às quais remetemos os interessados,
pedindo-lhes que meditem com cuidado. Diariamente a experiência vem
confirmarlhes a justeza, que lembraremos de modo sucinto, acrescentando
instruções mais circunstanciadas.
2. ─
Inicialmente falemos dos adeptos ainda isolados em meio a uma população hostil
ou ignorante das ideias novas. Diariamente recebemos cartas de pessoas que
estão neste caso e que perguntam o que podem fazer na ausência de médiuns e de
coparticipantes do Espiritismo. Eles estão na situação em que, apenas há um
ano, se achavam os primeiros espíritas dos mais numerosos centros de hoje. Pouco
a pouco multiplicaram-se os adeptos e há cidades onde praticamente se contaram
por unidades isoladas, mas hoje o são por centenas e milhares. Em breve
dar-se-á o mesmo em toda parte. É uma questão de paciência. Quanto ao que devem
fazer, é muito simples. A princípio podem trabalhar por conta própria e
penetrar-se da doutrina pela leitura e meditação das obras especiais. Quanto
mais se aprofundarem, mais verdades consoladoras descobrirão, confirmadas pela
razão. Em seu isolamento, devem julgar-se felizes por terem sido os primeiros
favorecidos. Mas se se limitassem a colher na Doutrina uma satisfação pessoal,
seria uma espécie de egoísmo. Em razão de sua própria posição, têm uma bela e
importante missão a cumprir: a de espalhar a luz em seu redor. Os que aceitarem
essa missão e não se deixarem deter pelas dificuldades, serão largamente
recompensados pelo sucesso e pela satisfação de haver feito uma coisa útil. Sem
dúvida encontrarão oposição. Serão motivo da troça e dos sarcasmos dos
incrédulos, e mesmo da malevolência das pessoas interessadas em combater a
doutrina, mas onde estaria o mérito se não houvesse obstáculos a vencer? Assim,
aos que fossem detidos pelo medo pueril do que diriam, nada temos a dizer,
nenhum conselho a dar. Mas aos que têm a coragem de sua opinião, e que estão
acima das mesquinhas considerações mundanas, diremos que o que têm a fazer se
limita a falar abertamente do Espiritismo, sem afetação, como de uma coisa
muito simples e muito natural, sem pregá-la, e sobretudo sem buscar nem forçar
convicções, nem fazer prosélitos a todo custo. O Espiritismo não deve ser imposto. Vem-se a ele porque dele se
necessita, e porque ele dá o que não dão as outras filosofias. Convém mesmo
não entrar em explicações com os incrédulos obstinados, pois seria dar-lhes
muita importância e levá-los a pensar que se depende deles. Os esforços que se
façam para atraí-los afastam-nos, e, por amorpróprio, eles resistem na sua
oposição. Eis por que é inútil perder tempo com eles. Quando a necessidade se
fizer sentir, virão por si mesmos. Enquanto se espera, é preciso deixá-los
tranquilos, satisfeitos no seu ceticismo que, acreditai, muitas vezes lhes pesa
mais do que eles gostariam de deixar transparecer, porque, por mais que digam
em contrário, a ideia do nada após a morte tem algo de mais apavorante, de mais
pungente que a própria morte.
Ao lado dos trocistas encontrar-se-ão pessoas que
perguntarão: “Que é isto?” Esforçai-vos, então, em satisfazê-las,
proporcionando-lhes explicações conforme as disposições que neles encontrardes.
Quando se fala do Espiritismo em geral, é preciso considerar as palavras que se
pronunciam como grãos lançados a esmo. Muitos caem nas pedras e nada produzem,
mas se um único tiver caído em terra fértil, considerai-vos felizes. Cultivai-o
e ficai certos de que essa planta, frutificando, terá renovos. Para alguns
adeptos, a dificuldade é responder a certas objeções. A leitura atenta das
obras lhes fornecerá os meios, mas sobretudo poderão servir-se, com esse
objetivo, da brochura que vamos publicar sob o título de:
Refutação das críticas contra o Espiritismo, do ponto de vista
materialista, científico e religioso.
3. ─
Falemos agora da organização do Espiritismo nos centros já numerosos. O aumento
incessante dos adeptos demonstra a impossibilidade material de constituir numa
cidade, sobretudo numa cidade populosa, uma sociedade única. Além do número, há
a dificuldade das distâncias, que é obstáculo para muitos. Por outro lado, é
sabido que as grandes reuniões são menos favoráveis às belas comunicações, e
que as melhores são obtidas nos pequenos grupos. É necessário, pois,
empenhar-se em multiplicar os grupos particulares. Ora, como dissemos, vinte
grupos de quinze a vinte pessoas obterão mais e farão mais pela propaganda do
que uma sociedade única de quatrocentos membros. Os grupos se formam
naturalmente, pela afinidade de gostos, de sentimentos, de hábitos e de posição
social. Todos ali se conhecem e, como são reuniões particulares, tem-se
liberdade de definir a quantidade e de selecionar os que são admitidos.
4. ─
O sistema da multiplicação dos grupos tem ainda como resultado, conforme o
dissemos em várias ocasiões, de impedir os conflitos e as disputas por
supremacia e presidência. Cada grupo naturalmente é dirigido pelo chefe da
casa, ou por aquele que para isso for designado. Não há, a bem dizer,
presidente oficial, pois tudo se passa em família. O dono da casa, como tal,
tem toda a autoridade para manter a boa ordem. Com uma sociedade propriamente
dita, há necessidade de um local especial, de um pessoal administrativo, de um
orçamento, numa palavra, uma complicação de engrenagens que a má vontade de
alguns dissidentes mal intencionados poderia comprometer.
5. ─
A tais considerações, longamente desenvolvidas no Livro dos Médiuns, adicionaremos uma, que é preponderante. O
Espiritismo ainda não é visto com bons olhos por todo o mundo. Dentro em pouco
compreender-se-á que é de todo o interesse favorecer uma crença que melhora os
homens e é uma garantia da ordem social. Mas, até que estejam convencidos de
sua benéfica influência sobre o espírito das massas e de seus efeitos
moralizadores, os adeptos devem esperar que, seja por ignorância do verdadeiro
objetivo da doutrina, seja em vista do interesse pessoal, suscitar-lhes-ão
embaraços. Não serão apenas ridicularizados, mas, quando se quebrarem as armas
do ridículo, serão caluniados. Serão
acusados de loucura, de charlatanismo, de irreligião, de feitiçaria, a fim de
contra eles incitar o fanatismo. Loucura! Sublime loucura esta que faz crer em
Deus e no futuro da alma! Para os que em nada creem, é de fato uma loucura
acreditar na comunicação entre mortos e vivos, loucura que faz a volta ao mundo
e atinge os homens mais eminentes. Charlatanismo! Eles têm uma resposta
peremptória: o desinteresse, pois o charlatanismo jamais é desinteressado.
Irreligião! Eles que, desde que se tornaram espíritas, são mais religiosos do
que antes. Feitiçaria e comércio com o diabo! Eles, que negam a existência do
diabo e só reconhecem a Deus como senhor onipotente, soberanamente justo e bom.
Singulares feiticeiros estes que renegariam o seu Senhor e agiriam em nome de
seu antagonista! Na verdade, o diabo não deveria estar contente com seus
adeptos. Mas as boas razões são a menor preocupação dos que querem travar
discussões. Quando alguém quer matar seu cão, diz que está danado. Felizmente a
Idade Média lança os últimos e pálidos clarões sobre o nosso século. Como o
Espiritismo lhe vem dar o golpe de misericórdia, não é de admirar vê-la tentar
um supremo esforço. Mas, tenhamos certeza, a luta não será longa. Contudo, que
a certeza da vitória não nos torne imprudentes, porque uma imprudência poderia,
senão comprometer, pelo menos retardar o sucesso. Por esses motivos, a
constituição de sociedades numerosas talvez encontrasse obstáculos em certas
localidades, ao passo que o mesmo não ocorreria com as reuniões familiares.
6. ─
Acrescentemos mais uma consideração. As sociedades propriamente ditas estão
sujeitas a numerosas vicissitudes. Mil e uma causas, dependentes ou não de sua
vontade, podem conduzir à dissolução. Suponhamos que uma sociedade espírita
tenha reunido todos os adeptos de uma mesma cidade e que, por uma circunstância
qualquer, deixe de existir. Eis os membros dispersos e desorientados. Agora, se
em vez disto, houver cinquenta grupos, se alguns desaparecerem, sempre restarão
outros, e outros se formarão. São outras tantas plantas vivazes que brotam,
apesar de tudo. Não tenhais num campo somente uma grande árvore, pois um raio
pode abatêla. Tende cem, e o mesmo raio não atingiria todas, e quanto menores,
menos expostas estarão.
Assim, tudo milita em favor do sistema que propomos.
Quando um primeiro grupo, fundado em qualquer parte, se tornar muito numeroso,
que faça como as abelhas: que enxames saídos da colmeia materna fundem novas
colmeias que por sua vez formarão outras. Serão outros tantos centros de ação
irradiando em seu respectivo círculo, mais poderosos para a propaganda do que
uma sociedade única.
7. ─
Admitida, pois, em princípio, a formação dos grupos, resta o exame de várias
questões importantes. A primeira de todas é a uniformidade na doutrina. Essa
uniformidade não seria melhor garantida por uma sociedade compacta, pois os
dissidentes sempre teriam facilidade de se retirar, formando grupo à parte.
Quer a sociedade seja una ou fracionada, a uniformidade será a consequência
natural da unidade de base que os grupos adotarem. Ela será completa em todos
os grupos que seguirem a linha traçada pelo Livro
dos Espíritos e pelo Livro dos
Médiuns. Um contém os princípios da filosofia da ciência; o outro contém as
regras da parte experimental e prática. Essas obras estão escritas com bastante
clareza para não dar lugar a interpretações divergentes, condição essencial de
toda nova doutrina.
Até o presente essas obras servem de regulador à
imensa maioria dos espíritas e por toda parte são acolhidas com inequívoca
simpatia. Os que delas quiseram afastar-se puderam reconhecer, por seu
isolamento e pelo decrescente número de seus partidários, que não tinham a seu
favor a opinião geral. Tal assentimento, dado pelo maior número, tem grande
valor. É um julgamento que não poderia ser suspeito de influência pessoal,
desde que espontâneo e declarado por milhares de pessoas que nos são
completamente desconhecidas. Uma prova desse assentimento é que nos pediram
para traduzi-las para diversas línguas: espanhol, inglês, português, alemão,
italiano, polonês, russo e até tártaro. Sem presunção podemos, pois, recomendar
o seu estudo e a sua prática nas diversas reuniões espíritas, e isto com tanto
mais razão quanto são as únicas, até o momento, em que a ciência é tratada de
maneira completa. Todas as que foram publicadas sobre a matéria apenas
abordaram alguns pontos isolados da questão. Aliás, não temos absolutamente a
pretensão de impor as nossas ideias. Emitimo-las, por ser direito nosso. Que as
adotem aqueles a quem elas convêm. Os demais têm o direito de rejeitá-las. As
instruções que damos são, pois, e naturalmente, para os que marcham conosco;
para os que nos honram com o título de seu
chefe espírita e de modo algum pretendemos regulamentar os que querem
seguir outra via. Entregamos a doutrina que professamos à apreciação geral.
Ora, temos encontrado muitos aderentes para nos dar confiança e nos consolar de
algumas dissidências isoladas. Aliás, o futuro será o juiz em última instância.
Com os homens atuais desaparecerão, pela força das coisas, as susceptibilidades
do amorpróprio ferido, as causas de ciúme, de ambição e de frustração de
esperanças materiais. Não mais considerando as pessoas, ver-se-á apenas a
doutrina, e o julgamento será imparcial. Quais as ideias novas que, no seu aparecimento,
não tiveram seus contraditores mais ou menos interessados? Quais os
propagadores dessas ideias que não foram alvo dos ataques da inveja, sobretudo
se o sucesso lhes coroou os esforços? Mas voltemos ao nosso assunto.
8. ─
O segundo ponto é a constituição dos grupos. Uma das primeiras condições é a
homogeneidade, sem a qual não haveria comunhão de pensamento. Uma reunião não
pode ser estável, nem séria, se não houver simpatia entre os componentes. E não
pode haver simpatia entre pessoas que têm ideias divergentes e que fazem uma
oposição surda, quando não aberta. Longe de nós com isso dizer que seja
necessário abafar a discussão, porque, ao contrário, recomendamos o exame
escrupuloso de todas as comunicações e de todos os fenômenos. Fica, pois, bem
entendido que cada um pode e deve emitir sua opinião, mas há pessoas que
discutem para impor a sua e não para esclarecer. É contra o espírito de
oposição sistemática que nos levantamos; contra as ideias preconcebidas que não
cedem nem mesmo ante a evidência. Tais pessoas incontestavelmente são uma causa
de perturbação, que é preciso evitar. A este respeito, as reuniões espíritas
estão em condições excepcionais. O que elas requerem, acima de tudo, é o
recolhimento. Ora, como estar recolhido se a cada momento a gente é distraída
por uma polêmica acrimoniosa? Se reina entre os assistentes um sentimento de
azedume e quando se sente, em torno de si, seres que sabemos hostis e em cujo
rosto se lê o sarcasmo e o desdém por tudo quanto não está de acordo com a sua
opinião?
9. ─
No Livro dos Médiuns (nº 28)
traçamos o caráter das principais variedades de espíritas. Sendo tal distinção
importante para o assunto que nos ocupa, julgamos dever lembrá-la.
Pode-se pôr em primeira linha os que acreditam pura e
simplesmente nas manifestações. Para eles o Espiritismo é apenas uma ciência de
observação, uma série de fatos mais ou menos curiosos; a filosofia e a moral
são acessórios de que pouco se ocupam e cujo alcance não os preocupa.
Chamamo-los espíritas experimentadores.
Vêm a seguir os que veem no Espiritismo algo além dos
fatos. Compreendem o seu alcance filosófico; admiram a moral dele decorrente,
mas não a praticam; extasiam-se ante as belas comunicações, como ante um sermão
eloquente que ouvem, mas do qual não tiram proveito. A influência sobre o seu
caráter é insignificante ou nula. Em nada mudam seus hábitos e não se privam de
nenhum prazer: o avarento é sempre sovina, o orgulhoso sempre cheio de si, o
invejoso e o ciumento sempre hostis. Para eles a caridade cristã é apenas uma
bela máxima e os bens deste mundo prevalecem, em sua opinião, sobre os do
futuro. São os espíritas imperfeitos.
Ao lado destes há outros, mais numerosos do que se
pensa, que não se limitam a admirar a moral espírita, mas que a praticam e a
aceitam em todas as suas consequências. Convencidos de que a existência terrena
é uma prova passageira, tratam de aproveitar estes curtos instantes para
avançar na via do progresso, esforçando-se por fazer o bem e reprimir suas más
inclinações. Suas relações são sempre seguras, porque a convicção os afasta de
todo mau pensamento. Em tudo a caridade é sua regra de conduta. São os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos.
10. ─ Se
bem compreendido o que precede, compreender-se-á também que um grupo formado
exclusivamente por elementos desta última classe estaria nas melhores
condições, porque somente entre praticantes da lei de amor e de caridade é que
se pode estabelecer uma séria ligação fraternal. Entre homens para quem a moral
é mera teoria, a união não seria durável. Como eles não impõem nenhum freio ao
orgulho, à ambição, à vaidade e ao egoísmo, não o imporão, também, às suas
palavras; quererão ser os primeiros, quando deveriam diminuir-se; irritar-se-ão
com as contradições e não terão escrúpulos em semear a perturbação e a
discórdia. Entre verdadeiros espíritas, ao contrário, reina um sentimento de
confiança e de benevolência recíproca. Nesse meio simpático é possível
sentir-se à vontade, ao passo que há constrangimento e ansiedade num ambiente
misto.
11. ─
Isto está na natureza das coisas e nada inventamos a respeito. Daí se segue
que, na formação de grupos, deva exigir-se a perfeição? Seria simplesmente
absurdo, pois seria querer o impossível e nessas condições ninguém poderia
pretender dele fazer parte. Tendo por objetivo a melhora dos homens, o
Espiritismo não vem procurar os perfeitos, mas os que se esforçam em tornar-se
perfeitos pondo em prática os ensinos dos Espíritos. O verdadeiro espírita não
é o que alcançou a meta, mas o que seriamente quer atingi-la. Sejam quais forem
os seus antecedentes, será bom espírita desde que reconheça suas imperfeições e
seja sincero e perseverante no propósito de emendar-se. Para ele o Espiritismo
é uma verdadeira regeneração, porque ele rompe com o seu passado. Indulgente
para com os outros, como quereria que fossem para consigo, de sua boca não
sairá nenhuma palavra malévola nem cortante contra ninguém. Aquele que, numa
reunião, se afastasse das conveniências, não só provaria uma falta de cortesia
e de urbanidade, mas uma falta de caridade. Aquele que se chocasse com a
contradição e pretendesse impor a sua personalidade ou as suas ideias, daria
prova de orgulho. Ora, nem um nem outro estariam no caminho do verdadeiro
Espiritismo, isto é, do Espiritismo cristão. Aquele que pensa ter uma opinião
mais justa que os outros, poderá fazê-la mais bem aceita pela doçura e pela
persuasão. O azedume, de sua parte, seria uma péssima opção.
12. ─ A
simples lógica demonstra, pois, a quem quer que conheça as leis do Espiritismo,
quais os melhores elementos para a composição dos grupos realmente sérios, e
não hesitamos em dizer que são estes que têm a maior influência na propagação
da doutrina. Pela consideração que impõem, e pelo exemplo que dão de suas
consequências morais, provam a sua gravidade e impõem silêncio à troça que,
quando se contrapõe ao bem, é mais do que ridícula, porque é odiosa. Mas que
quereis que pense um crítico incrédulo que assiste a experiências cujos
assistentes são os primeiros a considerá-la um brinquedo? Dela sai ainda mais
incrédulo do que entrou.
13. ─
Acabamos de indicar a melhor composição dos grupos. Mas a perfeição não é mais
possível nos conjuntos do que nos indivíduos. Indicamos os objetivos e dizemos
que quanto mais nos aproximarmos deles, tanto mais satisfatórios serão os
resultados. A gente é, por vezes, dominada pelas circunstâncias, mas é à
eliminação dos obstáculos que se devem direcionar todos os cuidados.
Infelizmente, quando se cria um grupo, a gente é muito pouco rigorosa na
escolha, porque, antes de tudo, quer formar um núcleo. Para nele ser admitido,
quase sempre basta um simples desejo ou uma adesão às ideias mais gerais do
Espiritismo. Mais tarde é que se percebe ter-se facilitado.
14. ─
Num grupo sempre há o elemento estável e o indeciso. O primeiro é composto de
pessoas assíduas, que formam a base; o segundo, das que são admitidas
temporária e acidentalmente. É à composição do elemento estável que é essencial
prestar escrupulosa atenção, e neste caso não se deve hesitar em sacrificar a
quantidade à qualidade, porque é ele que impulsiona e serve de regulador. O
elemento flutuante é menos importante, porque se tem liberdade de modificá-lo à
vontade. Não se deve perder de vista que as reuniões espíritas, como aliás
todas as reuniões em geral, têm as fontes de sua vitalidade na base sobre as
quais se assentam. Neste particular, tudo depende do ponto de partida. Aquele
que tem a intenção de organizar um grupo em boas condições deve, antes de tudo,
assegurar-se do concurso de alguns adeptos sinceros, que levem a doutrina a
sério e cujo caráter conciliatório e
benevolente seja conhecido. Formado esse núcleo, ainda que de três ou quatro
pessoas, estabelecer-se-ão regras precisas, quer para as admissões, quer para a
realização de sessões e para a ordem dos trabalhos, regras às quais os
recémvindos terão que se conformar. Essas regras podem sofrer modificações
conforme as circunstâncias, mas há algumas que são essenciais.
15. ─
Sendo a unidade de princípios um dos pontos essenciais, ela não pode existir
naqueles que, não tendo estudado, não podem ter opinião formada. A primeira
condição a impor, se não se quiser distrair, a cada instante, por objeções ou
por perguntas ociosas é, portanto, o estudo prévio. A segunda é uma profissão
de fé categórica e uma adesão formal à doutrina do Livro dos Espíritos, além de outras condições especiais julgadas
convenientes. Isto quanto aos membros titulares e dirigentes. Para os
assistentes, que geralmente vêm para adquirir um pouco mais de conhecimentos e
de convicção, pode-se ser menos rigoroso; contudo, como existem os que poderiam
causar perturbação com observações fora de propósito, é importante assegurar-se
de suas disposições. É necessário sobretudo, e sem exceção, afastar os curiosos
e quem quer que seja atraído por motivo frívolo.
16. ─ A
ordem e a regularidade dos trabalhos são igualmente essenciais. Consideramos
eminentemente útil abrir cada sessão pela leitura de algumas passagens do Livro dos Médiuns e do Livro dos Espíritos. Por esse meio
ter-se-ão sempre presentes à memória os princípios da ciência e os meios de
evitar os escolhos encontrados a cada passo na prática. Assim, a atenção
fixar-se-á sobre muitos pontos que por vezes escapam numa leitura particular e
poderão dar lugar a comentários e discussões instrutivas, das quais os próprios
Espíritos poderão participar.
Não é menos necessário recolher em pastas todas as
comunicações recebidas, por ordem de data, com indicação do médium que serviu
de intermediário. Esta última referência é útil para o estudo do gênero da faculdade
de cada um. Muitas vezes, porém, acontece que tais comunicações são esquecidas,
tornando-se letra morta. Isto desencoraja os Espíritos que as haviam dado
visando a instrução dos assistentes. É essencial, pois, fazer uma coletânea das
mais instrutivas e lê-las de tempos em tempos. Muitas vezes essas comunicações
são de interesse geral e não são dadas pelos Espíritos apenas para a instrução
de uns poucos e para serem abandonadas nos arquivos. Assim, é útil que sejam
levadas ao conhecimento de todos, pela publicidade. Examinaremos esta questão
em artigo no próximo número, indicando o modo mais simples, o mais econômico e
ao mesmo tempo o mais próprio para alcançar o objetivo.
17. ─
Como se vê, nossas instruções se dirigem exclusivamente aos grupos formados por
elementos sérios e homogêneos; aos que querem seguir a rota do Espiritismo
moral, visando o progresso de cada um, fim essencial e único da doutrina;
enfim, aos que nos querem mesmo aceitar por guia e levar em conta os conselhos
de nossa experiência. É incontestável que um grupo formado nas condições
indicadas funcionará com regularidade, sem entraves e de maneira proveitosa. O
que um grupo pode fazer, outros também o podem. Suponhamos, então, numa cidade,
um número qualquer de grupos constituídos nas mesmas bases. Haverá
necessariamente entre eles unidade de princípios, pois seguem a mesma bandeira;
haverá união simpática, pois sua máxima é amor e caridade; numa palavra, são os
membros de uma mesma família, entre os quais não haveria concorrência, nem rivalidade
de amor-próprio, desde que todos estivessem animados dos mesmos sentimentos do
bem.
18. ─
Entretanto, seria útil que houvesse entre eles um ponto de ligação, um centro
de ação. Conforme as circunstâncias e as localidades, os diversos grupos, pondo
de lado questões pessoais, poderiam designar para isto o que, por sua posição e
importância e relativa, fosse o mais apto para dar ao Espiritismo um impulso
salutar. Conforme a necessidade, e se fosse preciso evitar susceptibilidades,
um grupo central, formado de delegados de todos os grupos, tomaria o nome de grupo diretor. Na impossibilidade de nos
correspondermos com todos, com este teríamos relações mais diretas. Também
poderíamos, em certos casos, encarregar especialmente um para nos representar.
Sem prejuízo das relações que se estabelecerão, por
força das circunstâncias, entre os grupos de uma mesma cidade que trilham
caminhos idênticos, uma assembleia geral anual poderia reunir os espíritas dos
diversos grupos numa festa familiar, que seria, ao mesmo tempo, a festa do
Espiritismo. Seriam pronunciados discursos e lidas as comunicações mais
notáveis, ou as mais apropriadas às circunstâncias.
O que é possível entre os grupos de uma mesma cidade,
também o é entre os grupos diretores de diversas cidades, desde que entre eles
haja comunhão de vistas e de sentimentos, isto é, desde que possam manter
relações recíprocas. Indicaremos os meios para isto, quando falarmos das formas
de publicidade.
19. ─
Como se vê, tudo isto é de execução muito simples e sem engrenagens
complicadas, mas tudo depende do ponto de partida, isto é, da composição dos
grupos primitivos. Se eles forem constituídos por bons elementos, serão outras
tantas boas raízes que darão bons renovos. Se, ao contrário, forem formados por
elementos heterogêneos e antipáticos; por espíritas duvidosos, mais ocupados
com a forma do que com o fundo, que consideram a moral como parte acessória e
secundária, há que esperar polêmicas irritantes e sem saída; pretensões
pessoais; estremecimentos de susceptibilidades e, em consequência, conflitos
precursores da desorganização. Entre verdadeiros espíritas, tais quais os
definimos, que veem o objetivo essencial do Espiritismo na moral, que é a mesma
para todos, haverá sempre abnegação da personalidade, condescendência e
benevolência e, por conseguinte, segurança e estabilidade nas relações. Eis por
que temos insistido tanto sobre as qualidades fundamentais.
20. ─
Talvez digam que estas severas restrições constituem um obstáculo à propagação.
É um erro. Não acrediteis que abrindo a porta ao primeiro que aparecer fareis
mais prosélitos. A experiência aí está para mostrar o contrário. Seríeis
assaltados por uma multidão de curiosos e indiferentes, que ali viriam como
para um espetáculo. Ora, os curiosos e os indiferentes são embaraços e não
auxiliares. Quanto aos incrédulos por sistema ou por orgulho, por mais que lhes
mostreis, não tratarão disso senão com zombaria, porque não o compreenderão e
não querem darse ao trabalho de compreender. Já o dissemos, e não seria demais
repetir, que a verdadeira propagação, a que é útil e frutífera, é feita pelo
ascendente moral das reuniões sérias. Se houvessem acontecido apenas reuniões
desse tipo, os espíritas seriam ainda mais numerosos, porque, é bom que se
diga, muitos foram desviados da doutrina porque só assistiram a reuniões
fúteis, sem ordem e sem seriedade. Sede, pois, sérios, na plena acepção da
palavra, e as pessoas sérias virão a vós. São esses os melhores propagadores,
porque falam com convicção e tanto pregam pelo exemplo quanto pela palavra.
21. ─ Do
caráter essencialmente sério das reuniões não se deve inferir que se tenha de
proscrever sistematicamente as manifestações físicas. Como dissemos no Livro dos Médiuns (nº. 326), elas são de
incontestável utilidade, do ponto de vista do estudo dos fenômenos e para a
convicção de certas pessoas. No entanto, para obterse proveito sob esse duplo
ponto de vista, há que excluir-se todo pensamento frívolo. Uma reunião que
possuísse um bom médium de efeitos físicos e que se ocupasse desse gênero de
manifestações com ordem, método e seriedade, cuja condição moral oferecesse toda a garantia contra o charlatanismo e
a fraude, não só poderia obter coisas notáveis, do ponto de vista
fenomênico, mas produziria o bem em abundância. Assim, aconselhamos a não
desprezar esse gênero de experiência, desde que se disponha de médiuns
adequados e para tanto se organizem sessões especiais, independentes daquelas
dedicadas a comunicações morais e filosóficas. Os médiuns poderosos dessa
categoria são raros, mas há fenômenos que, embora mais vulgares, não são menos
interessantes e concludentes, porque provam, de maneira evidente, a
independência do médium. Deste número são as comunicações pela tiptologia
alfabética, que às vezes dão os mais imprevistos resultados. A teoria desses
fenômenos é necessária para que se compreenda a maneira pela qual se operam,
pois é raro que levem uma convicção profunda aos que não os compreendem. Ela
tem, além disso, a vantagem de dar a conhecer as condições normais em que esses
fenômenos podem produzir-se, e, consequentemente, de evitar as tentativas
inúteis e de permitir que se descubra a fraude, caso ocorra em qualquer parte.
Equivocaram-se supondo que fôssemos sistematicamente
contrário às manifestações físicas. Preconizamos e preconizaremos sempre as
comunicações inteligentes, sobretudo as que têm alcance moral e filosófico,
porque só elas tendem para o objetivo essencial e definitivo do Espiritismo.
Quanto às outras, jamais lhes contestamos a utilidade, mas nos levantamos
contra o deplorável abuso que delas fazem, ou que podem fazer; contra a
exploração feita pelo charlatanismo; contra as más condições em que são realizadas
as mais das vezes, e que se prestam ao ridículo. Dissemos e repetimos que as
manifestações físicas são o começo da ciência e que não se avança ficando no
á-bê-cê; que se o Espiritismo não
tivesse saído das mesas girantes, não teria crescido como cresceu, e que talvez
hoje nem mais se falasse dele. Eis por que nos esforçamos por fazê-lo entrar na
via filosófica, certo de que então, dirigindo-se mais à inteligência do que aos
olhos, tocaria o coração e deixaria de ser um modismo. É com esta condição única
que poderia fazer a volta ao mundo e implantar-se como doutrina. Ora, o
resultado ultrapassou, e de muito, a nossa expectativa. Às manifestações
físicas só damos uma importância relativa e não absoluta. Aí está o nosso erro,
aos olhos de certas pessoas que delas fazem uma ocupação exclusiva e nada mais
veem. Se delas não nos ocupamos pessoalmente é porque nada de novo nos
ensinariam e porque temos coisas mais essenciais a fazer. Longe de censurar os
que delas se ocupam, ao contrário, encorajamo-los, desde que o façam em
condições realmente proveitosas. Sempre que conhecermos reuniões desse gênero,
dignas de confiança, seremos os primeiros a recomendá-las à atenção dos novos
adeptos. Tal é, sobre este assunto, a nossa profissão de fé categórica.
22. ─
Dissemos no começo que diversas reuniões espíritas pediram para unir-se à
Sociedade de Paris. Usaram até a palavra afiliar-se.
A respeito, faz-se necessária uma explicação.
A Sociedade de Paris foi a primeira a constituir-se
regular e legalmente. Por sua posição e pela natureza de seus trabalhos, teve
uma grande participação no desenvolvimento do Espiritismo e, em nossa opinião,
justifica o título de Sociedade
Iniciadora, que lhe deram certos Espíritos. Sua influência moral se fez
sentir longe e, embora ela seja numericamente restrita, tem consciência de ter
feito mais pela propaganda do que se tivesse aberto suas portas ao público.
Formou-se com o único objetivo de estudar e aprofundar a Ciência Espírita. Para
isto não necessita de um auditório numeroso nem de muitos membros, pois sabe
que a verdadeira propaganda é feita pela influência dos princípios. Como não é
movida por qualquer interesse material, um excesso numérico lhe seria mais
prejudicial que útil. Assim, com satisfação, ela verá multiplicarem-se ao seu
redor as reuniões particulares formadas em boas condições, e com as quais
poderia estabelecer relações de confraternidade. Ela não seria coerente com
seus princípios, nem estaria à altura de sua missão, se pudesse conceber a
sombra da inveja. Os que a julgassem capaz disto não a conhecem.
Estas observações bastam para mostrar que a Sociedade
de Paris não poderia ter a pretensão de absorver as outras sociedades que se pudessem
formar em Paris ou alhures, com os mesmos procedimentos habituais. A palavra afiliação seria, pois, imprópria, porque
suporia uma espécie de supremacia material, a que absolutamente não aspira, e
que até teria inconvenientes. Como Sociedade iniciadora e central, pode
estabelecer com os outros grupos ou Sociedades relações puramente científicas,
mas a isto se limita o seu papel. Ela não exerce qualquer controle sobre essas
sociedades, que em nada dependem dela e ficam inteiramente livres para constituir-se
como bem o entenderem, sem ter que prestar contas a ninguém, e sem que a
Sociedade de Paris tenha que imiscuir-se seja no que for em seus negócios.
Assim, as sociedades estrangeiras
podem formar-se nas mesmas bases; declarar que adotam os mesmos princípios, sem
depender dela senão pela concentração dos estudos e pelos conselhos que lhe
podem pedir e que ela terá prazer em dar.
Por outro lado, a Sociedade de Paris não se gaba de
estar, mais que as outras, ao abrigo das vicissitudes. Se, por assim dizer, as
tivesse em suas mãos e se, por uma causa qualquer, cessasse de existir, a falta
de um ponto de apoio resultaria em perturbação. Os grupos ou Sociedades devem
buscar um ponto de apoio mais sólido que numa instituição humana,
necessariamente frágil. Eles devem adquirir sua vitalidade nos princípios da
doutrina, que são os mesmos para todas e que a todas sobrevivem, estejam ou não
esses princípios representados por uma sociedade constituída.
23. ─
Estando claramente definido o papel da Sociedade de Paris para evitar qualquer
equívoco ou falsa interpretação, as relações que estabelecerá com as sociedades
estrangeiras são extremamente simplificadas, limitando-se a relações morais,
científicas e de mútua benevolência, sem qualquer sujeição. Elas permutarão o resultado
de suas observações, quer através de publicações, quer de correspondência. Para
que a Sociedade de Paris possa estabelecer essas relações, é preciso
necessariamente que ela tenha informações exatas das sociedades estrangeiras
que entendem marchar pelo mesmo caminho e adotar a mesma bandeira. Ela então as
incluirá na lista de seus correspondentes. Se houver vários grupos numa cidade,
serão representados pelo grupo central de que falamos no parágrafo 18.
24. ─
Indicaremos agora alguns trabalhos com os quais as diversas sociedades poderão
colaborar, de maneira útil. Mais tarde indicaremos outros.
Sabe-se que os Espíritos, não possuindo todos a
soberana Ciência, podem encarar certos princípios de um ponto de vista pessoal
e, consequentemente, nem sempre estarem de acordo. O melhor critério da verdade
está naturalmente na concordância dos princípios ensinados sobre diversos
pontos, por Espíritos diferentes e por meio de médiuns estranhos uns aos
outros. Assim foi composto o Livro dos
Espíritos. Mas ainda restam muitas questões importantes que podem ser
resolvidas dessa maneira, e cuja solução terá tanto maior autoridade quanto
obtida por uma grande maioria. Assim, a Sociedade de Paris poderá
ocasionalmente dirigir perguntas dessa natureza a todos os grupos correspondentes
que, através de seus médiuns, pedirão a solução a seus guias espirituais.
Outro trabalho consiste nas pesquisas bibliográficas.
Existe um grande número de obras antigas e modernas, nas quais se encontram
testemunhos mais ou menos diretos em favor das ideias espíritas. Uma coletânea
desses testemunhos seria tarefa muito preciosa, mas é quase impossível ser
feita por uma só pessoa. Torna-se fácil, ao contrário, se cada um se dispuser a
colher alguns elementos em suas leituras e estudos e transmiti-los à Sociedade
de Paris, que os coordenará.
25. ─ No
estado atual das coisas, esta é a única organização possível do Espiritismo.
Mais tarde as circunstâncias poderão modificá-la, mas nada se deve fazer de
inoportuno. Já é muito que em tão pouco tempo os adeptos se tenham multiplicado
a ponto de conduzir a este resultado. Há nesta simples disposição um panorama
que pode estender-se ao infinito, pela própria simplicidade das engrenagens.
Não busquemos, pois, complicá-las, com receio de obstáculos. Os que fizerem a
gentileza de testemunhar-nos alguma confiança, podem estar certos de que não os
deixaremos para trás e que tudo virá a seu tempo. É somente a esses, como
dissemos, que nos dirigimos nestas instruções, sem a pretensão de nos impormos
aos que não marcham conosco.
Para denegrir, disseram que queríamos fazer escola no
Espiritismo. E por que não teríamos esse direito? O Sr. de Mirville não tentou
fundar uma escola demoníaca? Por que seríamos obrigados a seguir a reboque
deste ou daquele? Não temos o direito de ter uma opinião, formulá-la,
publicá-la e proclamá-la? Se ela encontra tão numerosos aderentes, é que
aparentemente não a julgam destituída de senso comum. Mas aí está nosso erro
aos olhos de certas pessoas que não nos perdoam por havermos chegado primeiro
que eles, e sobretudo por termos triunfado. Que isto seja uma escola, já que
assim o querem. Para nós será uma glória escrever em sua fachada: Escola do Espiritismo Moral, Filosófico e
Cristão. Para ela convidamos todos os que têm por divisa amor e caridade. A todos que se ligam a
esta bandeira, todas as nossas simpatias e o nosso concurso jamais faltarão.
ALLAN KARDEC
Necrologia - Morte do Sr. Jobard
O Espiritismo acaba de perder um de seus mais fervorosos e esclarecidos adeptos. O Sr. Jobard, diretor do Museu Real da Indústria de Bruxelas, oficial da Legião de Honra, membro da Academia de Dijon e da Sociedade Promocional de Paris, morreu em Bruxelas, de um ataque de apoplexia, a 27 de outubro de 1861, aos 69 anos de idade. Nasceu em Baissey, Alto-Marne, a 14 de maio de 1792. Tinha sido, sucessivamente, engenheiro do cadastro; fundador do primeiro estabelecimento de litografia na Bélgica; diretor do Industrial e do Courrier Belge; redator do Bulletin de l’Industrie Belge, do Presse, e, ultimamente, do Progrès International. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas lhe havia conferido o título de presidente honorário. Eis a apreciação feita pelo Siècle:
“Espírito original, fecundo, pronto para o paradoxo e para o sistema, o Sr. Jobard prestou reais serviços à tecnologia industrial e à causa, tanto tempo abandonada, da propriedade intelectual, da qual foi defensor teimoso e talvez excessivo. Suas teorias sobre o assunto foram formuladas no seu Maunotopole, de 1844. Deve-se a esse polígrafo infatigável uma porção de escritos e brochuras sobre todos os assuntos possíveis, desde o psiquismo oriental até à utilidade dos tolos na ordem social. Deixa ainda contos e fábulas picantes. Entre as suas numerosas invenções figura a engenhosa e econômica lâmpada para um, que figurou na Exposição Universal de Paris em 1855.”
Nenhum jornal do nosso conhecimento falou desta que tinha sido uma das características mais marcantes dos últimos anos de sua vida: sua completa adesão à Doutrina Espírita, cuja causa havia abraçado com entusiasmo, pois é custoso aos adversários do Espiritismo admitirem que homens de gênio, que não podem ser taxados de loucura sem que se duvide de sua própria razão, adotem essas ideias novas. Com efeito, é para eles um dos pontos mais embaraçosos, e dos quais jamais puderam dar uma explicação satisfatória, que a propagação dessas ideias tenha acontecido a princípio e de preferência na classe mais esclarecida da Sociedade. Assim, eles se escondem no axioma banal que diz que o gênio é primo irmão da loucura. Alguns até afirmam, de boa-fé e sem sorrir, que Sócrates, Platão e todos os filósofos e sábios que professaram semelhantes ideias não passavam de loucos, sobretudo Sócrates, com seu demônio familiar. Com efeito, é possível ter-se o senso comum e crer que se tenha um Espírito às suas ordens? Então, o Sr. Jobard não poderia encontrar guarida diante desse areópago que se erige em juiz supremo da razão humana, da qual pretende ser o modelo ideal. Disseram-nos que foi para poupar a reputação do Sr. Jobard, e pelo respeito à sua memória, que passaram em silêncio sobre essa fase de seu espírito.
A obstinação nas ideias falsas jamais foi tida como prova de bom-senso. É, além disso, estreiteza, quando se trata do orgulho, o que é o caso mais comum. O Sr. Jobard provou que era ao mesmo tempo homem de senso e de espírito, ao abjurar sem hesitação suas primeiras teorias sobre o Espiritismo, ao ser-lhe demonstrado que não estava certo.
Sabe-se que nos primeiros tempos, antes que a experiência houvesse elucidado o problema, surgiram vários sistemas, e que cada um explicava à sua maneira esses novos fenômenos. O Sr. Jobard era partidário do sistema da alma coletiva. Segundo esse sistema “só a alma do médium se manifesta, mas identifica-se com a dos vários outros seres vivos, presentes ou ausentes, de maneira a formar um todo coletivo, reunindo as aptidões, a inteligência e os conhecimentos de cada um.” De todos os sistemas criados nessa época, quantos ficaram de pé até hoje? Não sabemos se este ainda tem partidários, mas o que é positivo é que o Sr. Jobard, que o tinha preconizado e ampliado, foi um dos primeiros a abandoná-lo, quando apareceu o Livro dos Espíritos, a cuja doutrina se ligou francamente, como o atestam suas várias cartas que publicamos.
Sobretudo a doutrina da reencarnação o tinha ferido como um raio de luz. Dizia-nos ele um dia: “Se me atrapalhei tanto no dédalo dos sistemas filosóficos, é que me faltava uma bússola. Eu só encontrava caminhos sem saída e que não me levavam a nada. Nenhum me dava uma solução concludente dos mais importantes problemas. Por mais que quebrasse a cabeça, sentia que me faltava uma chave para chegar à verdade. Ora! Essa chave está na reencarnação, que tudo explica de maneira tão lógica, tão conforme à justiça de Deus, que a gente diz naturalmente: “Sim, é preciso que seja assim.”
Depois de sua morte, o Sr. Jobard fez pouco caso de certas teorias científicas que havia sustentado em vida. Disso falaremos no próximo número, no qual publicaremos as conversas que com ele tivemos. Enquanto esperamos, diremos que ele se mostrou prontamente desprendido e que a perturbação durou muito pouco tempo. Como todos os espíritas que o precederam, ele confirma em todos os pontos o que nos foi dito do mundo dos Espíritos, onde ele se encontra muito melhor que na Terra, na qual, não obstante, deixa pesares sinceros em todos os que chegaram a apreciar seu eminente saber, sua benevolência e sua afabilidade. Não era um desses cientistas ciumentos, que barram o caminho aos novatos cujo mérito lhes faz sombra. Todos esses, ao contrário, aos quais estendeu a mão e abriu caminho bastariam para lhe formar um belo cortejo. Em resumo, o Sr. Jobard era um homem de progresso, trabalhador infatigável e partidário de todas as ideias grandiosas, generosas e próprias a fazer avançar a Humanidade. Se sua perda é lamentável para o Espiritismo, não o é menos para as artes e a indústria, que escreverão seu nome em seus anais.
“Espírito original, fecundo, pronto para o paradoxo e para o sistema, o Sr. Jobard prestou reais serviços à tecnologia industrial e à causa, tanto tempo abandonada, da propriedade intelectual, da qual foi defensor teimoso e talvez excessivo. Suas teorias sobre o assunto foram formuladas no seu Maunotopole, de 1844. Deve-se a esse polígrafo infatigável uma porção de escritos e brochuras sobre todos os assuntos possíveis, desde o psiquismo oriental até à utilidade dos tolos na ordem social. Deixa ainda contos e fábulas picantes. Entre as suas numerosas invenções figura a engenhosa e econômica lâmpada para um, que figurou na Exposição Universal de Paris em 1855.”
Nenhum jornal do nosso conhecimento falou desta que tinha sido uma das características mais marcantes dos últimos anos de sua vida: sua completa adesão à Doutrina Espírita, cuja causa havia abraçado com entusiasmo, pois é custoso aos adversários do Espiritismo admitirem que homens de gênio, que não podem ser taxados de loucura sem que se duvide de sua própria razão, adotem essas ideias novas. Com efeito, é para eles um dos pontos mais embaraçosos, e dos quais jamais puderam dar uma explicação satisfatória, que a propagação dessas ideias tenha acontecido a princípio e de preferência na classe mais esclarecida da Sociedade. Assim, eles se escondem no axioma banal que diz que o gênio é primo irmão da loucura. Alguns até afirmam, de boa-fé e sem sorrir, que Sócrates, Platão e todos os filósofos e sábios que professaram semelhantes ideias não passavam de loucos, sobretudo Sócrates, com seu demônio familiar. Com efeito, é possível ter-se o senso comum e crer que se tenha um Espírito às suas ordens? Então, o Sr. Jobard não poderia encontrar guarida diante desse areópago que se erige em juiz supremo da razão humana, da qual pretende ser o modelo ideal. Disseram-nos que foi para poupar a reputação do Sr. Jobard, e pelo respeito à sua memória, que passaram em silêncio sobre essa fase de seu espírito.
A obstinação nas ideias falsas jamais foi tida como prova de bom-senso. É, além disso, estreiteza, quando se trata do orgulho, o que é o caso mais comum. O Sr. Jobard provou que era ao mesmo tempo homem de senso e de espírito, ao abjurar sem hesitação suas primeiras teorias sobre o Espiritismo, ao ser-lhe demonstrado que não estava certo.
Sabe-se que nos primeiros tempos, antes que a experiência houvesse elucidado o problema, surgiram vários sistemas, e que cada um explicava à sua maneira esses novos fenômenos. O Sr. Jobard era partidário do sistema da alma coletiva. Segundo esse sistema “só a alma do médium se manifesta, mas identifica-se com a dos vários outros seres vivos, presentes ou ausentes, de maneira a formar um todo coletivo, reunindo as aptidões, a inteligência e os conhecimentos de cada um.” De todos os sistemas criados nessa época, quantos ficaram de pé até hoje? Não sabemos se este ainda tem partidários, mas o que é positivo é que o Sr. Jobard, que o tinha preconizado e ampliado, foi um dos primeiros a abandoná-lo, quando apareceu o Livro dos Espíritos, a cuja doutrina se ligou francamente, como o atestam suas várias cartas que publicamos.
Sobretudo a doutrina da reencarnação o tinha ferido como um raio de luz. Dizia-nos ele um dia: “Se me atrapalhei tanto no dédalo dos sistemas filosóficos, é que me faltava uma bússola. Eu só encontrava caminhos sem saída e que não me levavam a nada. Nenhum me dava uma solução concludente dos mais importantes problemas. Por mais que quebrasse a cabeça, sentia que me faltava uma chave para chegar à verdade. Ora! Essa chave está na reencarnação, que tudo explica de maneira tão lógica, tão conforme à justiça de Deus, que a gente diz naturalmente: “Sim, é preciso que seja assim.”
Depois de sua morte, o Sr. Jobard fez pouco caso de certas teorias científicas que havia sustentado em vida. Disso falaremos no próximo número, no qual publicaremos as conversas que com ele tivemos. Enquanto esperamos, diremos que ele se mostrou prontamente desprendido e que a perturbação durou muito pouco tempo. Como todos os espíritas que o precederam, ele confirma em todos os pontos o que nos foi dito do mundo dos Espíritos, onde ele se encontra muito melhor que na Terra, na qual, não obstante, deixa pesares sinceros em todos os que chegaram a apreciar seu eminente saber, sua benevolência e sua afabilidade. Não era um desses cientistas ciumentos, que barram o caminho aos novatos cujo mérito lhes faz sombra. Todos esses, ao contrário, aos quais estendeu a mão e abriu caminho bastariam para lhe formar um belo cortejo. Em resumo, o Sr. Jobard era um homem de progresso, trabalhador infatigável e partidário de todas as ideias grandiosas, generosas e próprias a fazer avançar a Humanidade. Se sua perda é lamentável para o Espiritismo, não o é menos para as artes e a indústria, que escreverão seu nome em seus anais.
Auto-de-fé em Barcelona
(Vide o número de novembro de 1861)
Os jornais espanhóis não foram tão sóbrios de reflexões quanto os jornais franceses sobre esse acontecimento. Seja qual for a opinião que se professa quanto às ideias espíritas, há no fato em si algo de tão estranho para o tempo em que vivemos, que mais excita piedade do que cólera contra gente que parece ter dormido durante vários séculos e ter despertado sem consciência do caminho que a Humanidade percorreu, julgando-se ainda no ponto de partida.
Eis um extrato do artigo a respeito, publicado por Las Novedades, um dos grandes jornais de Madrid:
“O auto de fé celebrado há alguns meses em La Coruña, onde queimaram grande número de livros, à porta de uma Igreja, tinha produzido em nosso espírito e no de todos os homens de ideias liberais uma tristíssima impressão. Mas é com uma indignação ainda bem maior que foi recebida e notícia, em toda a Espanha, do segundo auto de fé celebrado em Barcelona, nessa capital civilizada da Catalunha, em meio a uma população essencialmente liberal, à qual sem dúvida foi feito este insulto bárbaro, porque nela se reconhecem grandes qualidades.”
Depois de relatar os fatos, conforme o jornal de Barcelona, acrescenta:
“Eis o repugnante espetáculo autorizado pelos homens da União Liberal, em pleno século XIX: uma fogueira em La Corunã, outra em Barcelona, e ainda muitas outras, que não faltarão, em outros lugares. É o que devia acontecer, pois é uma consequência imediata do espírito geral que domina o atual estado de coisas e que em tudo se reflete. Reação no interior, no tocante aos projetos de lei apresentados; reação no exterior, apoiando os governos reacionários da Itália, antes e depois de sua queda, combatendo as ideias liberais em todas as ocasiões, buscando por todos os lados o apoio da reação, obtido ao preço das mais ineptas concessões.”
Seguem-se longas considerações referentes aos sintomas e às consequências desse ato, mas que, pelo seu caráter essencialmente político, não são do programa de nosso jornal.
O Diário de Barcelona, jornal ultramontano, foi o primeiro a anunciar o auto de fé, dizendo: “Os títulos dos livros queimados bastavam para justificar a sua condenação. É direito e dever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quando se dá mais latitude à liberdade de imprensa, principalmente nos países que
gozam da terrível chaga da liberdade de cultos.”
La Corona, jornal de Barcelona, faz a respeito estas reflexões:
“Esperávamos que nosso colega (o Diário), que tinha dado a notícia, tivesse a bondade de satisfazer a curiosidade do público seriamente alarmado por semelhante ato, incrível nos tempos em que vivemos, mas foi em vão que esperamos as explicações. Desde então temos sido assaltados por perguntas sobre esse acontecimento, e a bem da verdade devemos dizer que os amigos do governo com isso sofrem mais penas do que os que lhe fazem oposição.
“Com o objetivo de satisfazer a curiosidade tão vivamente excitada, pusemonos em busca da verdade e temos o pesar de dizer que o fato é verdadeiro e que, com efeito, o auto de fé foi celebrado nas seguintes circunstâncias:
(Segue o relato que demos em nosso último número).
“Os expedientes usados para chegar a esse resultado não podem ser mais expeditos nem mais eficazes. Foram apresentados ao controle da alfândega os livros acima e foi dito ao comissário que não podiam ser expedidos sem permissão do senhor bispo. O senhor bispo estava ausente. À sua volta, apresentaram-lhe um exemplar de cada obra, e depois de tê-los lido ou mandado ler por pessoas de sua confiança, conformando-se com o julgamento de sua consciência, ordenou fossem lançados ao fogo, pois eram imorais e contrários à fé católica. Reclamaram contra tal sentença e pediram ao governo, já que não permitiam a circulação de tais livros na Espanha, que pelo menos fosse permitido ao seu proprietário devolvê-los ao lugar de procedência, mas até isto foi recusado, sob a alegação de que, sendo contrários à moral e à fé católica, o governo não podia consentir que esses livros fossem perverter a moral e a religião de outros países. Apesar disto, o proprietário foi obrigado a pagar os direitos, que, parece, não deveriam ser exigidos. Uma grande multidão assistiu ao auto de fé, o que nada tem de admirável, se se levar em conta a hora e o lugar da execução e sobretudo a novidade do espetáculo. O efeito produzido sobre os assistentes foi de estupefação entre alguns, de riso em outros e de indignação no maior número, à medida que se davam conta do que se passava. Palavras de ódio saíram de várias bocas, depois vieram as piadas, os ditos galhofeiros e mordentes dos que viam com extremo prazer a cegueira de certos homens. Nisto têm razão, porque entreveem nessa reação, digna do tempo da Inquisição, o mais rápido triunfo de suas ideias. Eles zombavam, para que essa cerimônia não aumentasse o prestígio da autoridade que, com tanta complacência, se presta a exigências verdadeiramente ridículas. Quando esfriaram as cinzas dessa nova fogueira, observou-se que pessoas que estavam presentes, ou que passavam por perto e tinham sabido do fato, dirigiram-se para o local do auto de fé e recolheram como lembrança uma parte das cinzas.
“Tal é o relato dos acontecimentos, que as pessoas que se encontram não podem deixar de comentar entre si. Indignam-se, lamentam-se ou se alegram, conforme a maneira de interpretar as coisas. Os partidários sinceros da paz, do princípio de autoridade e da religião se afligem com essas demonstrações reacionárias, porque compreendem que às reações sucedem as revoluções e porque sabem que aqueles que semeiam ventos só podem colher tempestades. Os liberais sinceros se indignam pelo fato de que semelhantes espetáculos sejam dados ao mundo por homens que não compreendem a religião sem intolerância e querem impô-la, como Maomé impunha o seu Alcorão.
“Agora, abstração feita da qualificação dada aos livros queimados, examinaremos o fato em si. Pode a jurisprudência admitir que um bispo diocesano tenha uma autoridade sem apelo e possa impedir a publicação e a circulação de um livro? Dirão que a lei de imprensa determina o que deve ser feito neste caso. Mas determina essa lei que os livros, por piores e mais perniciosos que sejam, devem ser lançados ao fogo com tal aparato? Nela não encontramos nenhum artigo que justifique ato semelhante. Além disso, os livros em questão foram publicamente declarados. Um comissário declara livros à alfândega, porque poderiam estar na categoria assinalada pelo Art. 6.º e passam pela censura diocesana. O governo poderia proibir-lhes a circulação, e a coisa estaria acabada. Os sacerdotes deveriam limitar-se a aconselhar aos seus fiéis a abstenção de tal ou qual leitura, se a julgassem contrária à moral e à religião, mas não se lhes deveria conceder um poder absoluto, que os torna juízes e carrascos. Abstemo-nos de emitir opinião sobre o valor das obras queimadas. O que vemos é o fato, são as tendências e o espírito que ele revela. De agora em diante, em que diocese se absteriam de usar, senão de abusar, de uma faculdade que, em nossa opinião, o próprio governo não tem, se em Barcelona, na liberal Barcelona, o fazem? O absolutismo é muito sagaz. Ele tenta dar um golpe de autoridade em qualquer parte. Se é bem sucedido, ousa mais. Esperemos, contudo, que os esforços do absolutismo sejam inúteis, e que todas as concessões que lhe fazem não tenham outro resultado senão o de desmascarar o partido que, renovando cenas como a de quinta-feira última, se precipite cada vez mais no abismo para onde corre às cegas. É o que nos leva a esperar o efeito produzido pelo auto de fé em Barcelona.”
Eis um extrato do artigo a respeito, publicado por Las Novedades, um dos grandes jornais de Madrid:
“O auto de fé celebrado há alguns meses em La Coruña, onde queimaram grande número de livros, à porta de uma Igreja, tinha produzido em nosso espírito e no de todos os homens de ideias liberais uma tristíssima impressão. Mas é com uma indignação ainda bem maior que foi recebida e notícia, em toda a Espanha, do segundo auto de fé celebrado em Barcelona, nessa capital civilizada da Catalunha, em meio a uma população essencialmente liberal, à qual sem dúvida foi feito este insulto bárbaro, porque nela se reconhecem grandes qualidades.”
Depois de relatar os fatos, conforme o jornal de Barcelona, acrescenta:
“Eis o repugnante espetáculo autorizado pelos homens da União Liberal, em pleno século XIX: uma fogueira em La Corunã, outra em Barcelona, e ainda muitas outras, que não faltarão, em outros lugares. É o que devia acontecer, pois é uma consequência imediata do espírito geral que domina o atual estado de coisas e que em tudo se reflete. Reação no interior, no tocante aos projetos de lei apresentados; reação no exterior, apoiando os governos reacionários da Itália, antes e depois de sua queda, combatendo as ideias liberais em todas as ocasiões, buscando por todos os lados o apoio da reação, obtido ao preço das mais ineptas concessões.”
Seguem-se longas considerações referentes aos sintomas e às consequências desse ato, mas que, pelo seu caráter essencialmente político, não são do programa de nosso jornal.
O Diário de Barcelona, jornal ultramontano, foi o primeiro a anunciar o auto de fé, dizendo: “Os títulos dos livros queimados bastavam para justificar a sua condenação. É direito e dever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quando se dá mais latitude à liberdade de imprensa, principalmente nos países que
gozam da terrível chaga da liberdade de cultos.”
La Corona, jornal de Barcelona, faz a respeito estas reflexões:
“Esperávamos que nosso colega (o Diário), que tinha dado a notícia, tivesse a bondade de satisfazer a curiosidade do público seriamente alarmado por semelhante ato, incrível nos tempos em que vivemos, mas foi em vão que esperamos as explicações. Desde então temos sido assaltados por perguntas sobre esse acontecimento, e a bem da verdade devemos dizer que os amigos do governo com isso sofrem mais penas do que os que lhe fazem oposição.
“Com o objetivo de satisfazer a curiosidade tão vivamente excitada, pusemonos em busca da verdade e temos o pesar de dizer que o fato é verdadeiro e que, com efeito, o auto de fé foi celebrado nas seguintes circunstâncias:
(Segue o relato que demos em nosso último número).
“Os expedientes usados para chegar a esse resultado não podem ser mais expeditos nem mais eficazes. Foram apresentados ao controle da alfândega os livros acima e foi dito ao comissário que não podiam ser expedidos sem permissão do senhor bispo. O senhor bispo estava ausente. À sua volta, apresentaram-lhe um exemplar de cada obra, e depois de tê-los lido ou mandado ler por pessoas de sua confiança, conformando-se com o julgamento de sua consciência, ordenou fossem lançados ao fogo, pois eram imorais e contrários à fé católica. Reclamaram contra tal sentença e pediram ao governo, já que não permitiam a circulação de tais livros na Espanha, que pelo menos fosse permitido ao seu proprietário devolvê-los ao lugar de procedência, mas até isto foi recusado, sob a alegação de que, sendo contrários à moral e à fé católica, o governo não podia consentir que esses livros fossem perverter a moral e a religião de outros países. Apesar disto, o proprietário foi obrigado a pagar os direitos, que, parece, não deveriam ser exigidos. Uma grande multidão assistiu ao auto de fé, o que nada tem de admirável, se se levar em conta a hora e o lugar da execução e sobretudo a novidade do espetáculo. O efeito produzido sobre os assistentes foi de estupefação entre alguns, de riso em outros e de indignação no maior número, à medida que se davam conta do que se passava. Palavras de ódio saíram de várias bocas, depois vieram as piadas, os ditos galhofeiros e mordentes dos que viam com extremo prazer a cegueira de certos homens. Nisto têm razão, porque entreveem nessa reação, digna do tempo da Inquisição, o mais rápido triunfo de suas ideias. Eles zombavam, para que essa cerimônia não aumentasse o prestígio da autoridade que, com tanta complacência, se presta a exigências verdadeiramente ridículas. Quando esfriaram as cinzas dessa nova fogueira, observou-se que pessoas que estavam presentes, ou que passavam por perto e tinham sabido do fato, dirigiram-se para o local do auto de fé e recolheram como lembrança uma parte das cinzas.
“Tal é o relato dos acontecimentos, que as pessoas que se encontram não podem deixar de comentar entre si. Indignam-se, lamentam-se ou se alegram, conforme a maneira de interpretar as coisas. Os partidários sinceros da paz, do princípio de autoridade e da religião se afligem com essas demonstrações reacionárias, porque compreendem que às reações sucedem as revoluções e porque sabem que aqueles que semeiam ventos só podem colher tempestades. Os liberais sinceros se indignam pelo fato de que semelhantes espetáculos sejam dados ao mundo por homens que não compreendem a religião sem intolerância e querem impô-la, como Maomé impunha o seu Alcorão.
“Agora, abstração feita da qualificação dada aos livros queimados, examinaremos o fato em si. Pode a jurisprudência admitir que um bispo diocesano tenha uma autoridade sem apelo e possa impedir a publicação e a circulação de um livro? Dirão que a lei de imprensa determina o que deve ser feito neste caso. Mas determina essa lei que os livros, por piores e mais perniciosos que sejam, devem ser lançados ao fogo com tal aparato? Nela não encontramos nenhum artigo que justifique ato semelhante. Além disso, os livros em questão foram publicamente declarados. Um comissário declara livros à alfândega, porque poderiam estar na categoria assinalada pelo Art. 6.º e passam pela censura diocesana. O governo poderia proibir-lhes a circulação, e a coisa estaria acabada. Os sacerdotes deveriam limitar-se a aconselhar aos seus fiéis a abstenção de tal ou qual leitura, se a julgassem contrária à moral e à religião, mas não se lhes deveria conceder um poder absoluto, que os torna juízes e carrascos. Abstemo-nos de emitir opinião sobre o valor das obras queimadas. O que vemos é o fato, são as tendências e o espírito que ele revela. De agora em diante, em que diocese se absteriam de usar, senão de abusar, de uma faculdade que, em nossa opinião, o próprio governo não tem, se em Barcelona, na liberal Barcelona, o fazem? O absolutismo é muito sagaz. Ele tenta dar um golpe de autoridade em qualquer parte. Se é bem sucedido, ousa mais. Esperemos, contudo, que os esforços do absolutismo sejam inúteis, e que todas as concessões que lhe fazem não tenham outro resultado senão o de desmascarar o partido que, renovando cenas como a de quinta-feira última, se precipite cada vez mais no abismo para onde corre às cegas. É o que nos leva a esperar o efeito produzido pelo auto de fé em Barcelona.”
A toutinegra, o pombo e o peixinho (Fábula)
 Senhora e Senhorita C., de Bordéus.
Amor e Caridade
(Espiritismo)
Em meio a uma roseira, à margem de um cercado,
(Espiritismo)
Em meio a uma roseira, à margem de um cercado,
Havia a toutinegra posto a sua ninhada.
Nascera bem feliz aquela petizada.
Mas um desastre, oh Deus! lhe estava reservado!
Entre os fogos do céu a tormenta rugiu
E a chuva em torrentes caiu.
Nos campos se formou um vastíssimo lago
E pronto inundou-se o cercado.
Já longe da roseira o ninho se balança;
A ave, sobre as águas, o protege ansiosa;
Não leva o coração firmado na esperança:
Bem distante cintila a estrela generosa.
Entanto, escorre a água; e com a água da vargem
O riacho recebe o ninho balouçante
Que apesar dos escolhos semeados na margem
Atinge facilmente o leito expectante.
Pelo meio do rio, um banquinho de areia
Se elevava acima das águas;
Ajudada por um zéfiro amigo, uma vaga
Para ele impeliu a barquinha tão cheia.
Tocando-lhe a borda, a pobre ave,
Ao sentir da alegria o primeiro transporte,
Caiu logo depois numa tristeza grave:
Nesse lugar, qual será a sua sorte?
Seus pequeninos já pediam alimento.
Devia ela, para ir longe procurá-lo,
Ali expostos na areia abandoná-los?
Se haviam sido salvos numa vaga amiga,
Não deviam temer uma vaga inimiga
Ou o funesto efeito de um golpe de vento?
No mesmo instante, ali pousa um pombo trocaz.
“Desculpai-me, diz ela, ó meu pássaro audaz,
Apelar para a vossa bondade:
Trato da salvação de toda uma família.
Oh, devolvei ao campo e à roseira tranquila
Estas pequenas vítimas da tempestade.
Dignai-vos abrir as asas generosas.
Não é tão longe, e as vossas garras vigorosas
Jamais levaram assim carga tão leve”
Não se fez surdo o pombo a essa voz e em tom breve:
“Eu deploro o vosso infortúnio,
Mas tenho a lamentar que um caso de pecúlio,
Exigindo que eu siga do meu voo o curso,
Me prive da alegria de vos dar concurso.
Mas ficai sem inquietude
E segui o conselho que a solicitude
Me torna feliz de vos dar:
Confiai na vossa sorte...
O gênio benfeitor
Que a vida vos salvou, não há de se indispor
Convosco e vos abandonar.”
E contente de si, aos ares se lançou.
Uma pequena carpa, a nadar, escutou
E tudo viu, tudo entendeu.
“Consolai-vos, disse ela, ó mãe desesperada!
Eu bem compreendo a vossa dor amargurada,
Mas ainda nem tudo se perdeu.
Não disponho de forças para repartir,
Mas espero poder vos conduzir.”
E, pegando na boca um longo filamento,
Abundante na espessura do ninho,
Puxou-o, deslizando em seu caminho.
A toutinegra, em pé, habilmente o ajudava,
De asas abertas ao vento.
A carga se inquietou, e o peixe, que puxava,
Para flutuar sereno a marcha equilibrava,
Evitando as correntes na passagem.
Já estão perto da borda...
E chegaram!
A toutinegra alegre e os filhos encontraram
Farta relva e bom mato pela margem.
E o peixe então lhe diz:
“No porvir, pelo menos,
Nos grandes não confiai; o clamor da miséria
Só fracamente ecoa em corações em férias;
Seus dons são o conselho e a condolência.
Mas a cordial assistência
Só se encontra nos pequenos.
C. DOMBRE
Do sobrenatural - Pelo Sr. Guizot
Da nova obra do Sr. Guizot, L’Église et la societé chrétienne em 1861, extraímos o notável capítulo a respeito do Sobrenatural. Não é, como poderiam pensar, um discurso pró ou contra o Espiritismo, porque não aborda a nova doutrina, mas, como aos olhos de muitos o Espiritismo é inseparável do sobrenatural, que segundo uns é uma superstição e segundo outros uma verdade, é interessante conhecer a opinião de um homem do valor do Sr. Guizot sobre a matéria. Há nesse trabalho observações de incontestável justeza, mas, em nossa opinião, também há grandes erros devidos ao ponto de vista em que se coloca o autor. Faremos o seu exame aprofundado em nosso próximo número.
“Todos os ataques de que hoje é objeto o Cristianismo, por mais diversos que sejam na sua natureza e na sua medida, partem de um mesmo ponto e tendem ao mesmo fim, a negação do sobrenatural nos destinos do homem e do mundo e a abolição do elemento sobrenatural na religião cristã, como em todas as religiões, na sua história como nos seus dogmas.
“Materialistas, panteístas, racionalistas, céticos, críticos, eruditos, uns abertamente, outros discretamente, todos pensam e falam sob o império da ideia de que o mundo e o homem, a natureza moral como a natureza física, são apenas governados por leis gerais, permanentes e necessárias, cujo curso nenhuma vontade especial jamais veio ou virá suspender ou modificar.
“Não penso aqui discutir plenamente esta questão, que é fundamental de toda religião. Quero apenas submeter aos adversários declarados ou ocultos do sobrenatural, duas observações, ou mais exatamente dois fatos que, em minha opinião, a decidem.
“É sobre uma fé natural ou sobrenatural, sobre um instinto inato do sobrenatural, que toda religião se funda. Não digo toda ideia religiosa, mas toda religião positiva, prática, poderosa, durável, popular. Em todos os lugares, sob todos os climas, em todas as épocas da História, em todos os graus da civilização, o homem traz em si esse sentimento, que eu gostaria mais de chamar pressentimento, de que o mundo que vê, a ordem em cujo seio vive, os fatos que se sucedem regular e constantemente ao seu redor não são tudo. Neste vasto conjunto, em vão ele faz diariamente descobertas e conquistas; em vão observa e constata sabiamente as leis permanentes que tudo presidem. Seu pensamento não se encerra neste universo entregue à sua ciência. Este espetáculo não basta à sua alma. Ela se lança alhures. Ela busca. Ela entrevê outra coisa. Ela aspira para o Universo e para si mesma por outros destinos e por outro senhor:
“Para além de todos estes céus o Deus dos Céus reside”, disse Voltaire, e o Deus que está além de todos os céus não é a natureza personificada, é o sobrenatural em pessoa. É a ele que se dirigem as religiões; é com a finalidade de pôr o homem em relação com ele que elas se fundam. Sem a fé instintiva dos homens no sobrenatural, sem seu impulso espontâneo e invencível para o sobrenatural, não haveria religião.
“Entre todos os seres aqui, o único que ora é o homem. Entre seus instintos morais, nenhum é mais natural, mais universal, mais invencível que a prece. A criança nela se comporta com uma docilidade solícita. O velho a ela se dobra como num refúgio contra a decadência e o isolamento. A prece sobe por si aos jovens lábios que apenas balbuciam o nome de Deus e aos lábios dos agonizantes que nem mais têm forças para pronunciá-lo. Em todos os povos, célebres ou obscuros, civilizados ou bárbaros, encontram-se a cada passo atos e fórmulas de invocação. Por toda parte onde vivem os homens, em certas circunstâncias, em certas horas, sob o império de determinadas impressões da alma, os olhos se elevam, as mãos se juntam, os joelhos se dobram para implorar ou render graças, para adorar ou apaziguar. Com transporte ou tremor, publicamente ou no íntimo do coração, é à prece que o homem se dirige, em último recurso, para encher o vazio de sua alma ou carregar os fardos de seu destino. É na prece que procura, quando tudo lhe falha, apoio para a sua fraqueza, consolo para as suas dores, esperança para a sua virtude. “Ninguém desconhece o valor moral e interior da prece, independentemente de sua eficácia quanto ao seu objetivo. Pelo simples fato de pedir, a alma se alivia, se ergue, se acalma, se fortalece. Voltando-se para Deus, experimenta esse sentimento de volta à saúde e ao repouso que se espalha no corpo, quando passa de uma aparência tempestuosa e pesada a uma atmosfera serena e pura. Deus vem em auxílio aos que o imploram, antes e sem que saibam se os ouvirá.
“Ouvi-los-á? Qual é a eficácia exterior e definitiva da prece? Eis o mistério, o impenetrável mistério dos desígnios e da ação de Deus sobre cada um de nós. O que sabemos é que, quer se trate de nossa vida exterior, quer da interior, não somos só nós que dela dispomos, conforme nosso pensamento e vontade própria. Todos os nomes que dermos a esta parte do nosso destino, que não vem de nós mesmos: acaso, fortuna, estrela, natureza, fatalidade, são outros tantos véus lançados sobre nossa impiedade ignorante. Quando assim falamos, recusamos ver Deus onde ele está. Além da estreita esfera onde estão encerradas a força e a ação do homem, está Deus, que reina e atua. Há no ato natural e universal da prece, uma fé natural e universal nessa ação permanente, e sempre livre, de Deus sobre o homem e seu destino. “Somos trabalhadores com Deus”, diz São Paulo. Trabalhadores com Deus e na obra dos destinos gerais da Humanidade e na de nosso próprio destino, presente e futuro. Aí está o que nos faz entrever a prece como o laço que une o homem a Deus. Mas aí a luz se detém para nós. “Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos.” Nós aí marchamos sem conhecê-los. Crer sem ver e orar sem prever é a condição que Deus impôs ao homem neste mundo, para tudo quanto ultrapassa seus limites. É na consciência e na aceitação desta ordem sobrenatural que consistem a fé e a vida religiosas.
“Assim, tem razão o Sr. Edmond Scherer, quando duvida que “o racionalismo cristão seja e jamais possa ser uma religião.” E por que o Sr. Jules Simon, que se inclina ante Deus com um respeito tão sincero, intitulou seu livro: La religion naturelle? Deveria tê-lo chamado Philosophie religieuse. A filosofia persegue e atinge algumas das grandes ideias sobre as quais se funda a religião. Mas, pela natureza de seus processos e pelos limites de seu domínio, jamais fundou, nem poderia fundar uma religião. Falando mais precisamente, não há religião natural, pois desde que abolido o sobrenatural, também desaparece a religião.
“Que essa fé instintiva no sobrenatural, fonte da religião, possa ser, e seja também a fonte de uma infinidade de erros e de superstições, e por sua vez fonte de uma infinidade de males, quem pensa em negar? Aqui, como em tudo, é a condição do homem que o bem e o mal se misturem incessantemente nos seus destinos e nas suas obras como nele mesmo, mas, dessa incurável mistura não se segue que nossos grandes instintos não tenham sentido e não façam senão nos tresmalhar, quando nos elevam. Aspirando a isto, sejam quais possam ser os nossos desvios, continua certo que o sobrenatural está na fé natural do homem e que é a condição sine qua non, o verdadeiro objeto, a própria essência da religião.
“Eis um segundo fato que, penso, merece toda a atenção dos adversários do sobrenatural.
“É reconhecido e constatado pela Ciência que nosso globo nem sempre esteve no estado em que hoje se acha; que em épocas diversas e indeterminadas sofreu revoluções, transformações que lhe alteraram a face, o regime físico, a população; que o homem, em particular, nem sempre existiu e que, em vários dos estados sucessivos pelos quais este mundo passou, o homem não poderia ter existido.
“Como apareceu? De que maneira e por que poder começou o gênero humano na Terra?
“Para sua origem pode haver apenas duas explicações: ou foi um produto do trabalho próprio e íntimo das forças naturais da matéria, ou foi obra de um poder sobrenatural, exterior e superior à matéria. Para o aparecimento do homem cá embaixo, uma destas duas causas se faz necessária: a geração espontânea ou a criação.
“Mas admitindo, o que de minha parte absolutamente não admito, as gerações espontâneas, esse modo de produção não poderia, nem jamais teria podido produzir senão seres crianças, à primeira hora e no primeiro estado da vida nascente. Creio que ninguém jamais disse, e que ninguém jamais dirá que pela virtude de uma geração espontânea, o homem, isto é, o homem e a mulher, o par humano, tivessem podido sair, e tivessem saído, um dia, do seio da matéria já formados e grandes, em plena posse de sua estatura, de sua força, de todas as suas faculdades, como o paganismo grego fez sair Minerva do cérebro de Júpiter.
“É somente sob esta condição que, aparecendo pela primeira vez na Terra, nela teria podido viver, perpetuar-se e fundar o gênero humano. Imagine-se o primeiro homem nascendo no estado de primeira infância, vivo mas inerte, ininteligente, impotente, incapaz de bastar-se a si mesmo um só momento, tiritando e gemendo, sem mãe para escutá-lo e nutri-lo! Aí está, entretanto, o primeiro homem que o sistema da geração espontânea poderia gerar.
“Evidentemente, a outra origem do gênero humano é a única admissível, a única possível. Só o fato sobrenatural da criação explica a primeira aparição do homem aqui na Terra.
“Os que negassem e abolissem o sobrenatural, aboliriam, no mesmo golpe, toda religião real. E é em vão que triunfam do sobrenatural, tantas vezes erradamente introduzido em nosso mundo e em nossa história. Eles são constrangidos a deter-se diante do berço sobrenatural da Humanidade, impotentes para dele fazerem sair o homem sem a mão de Deus”.
GUIZOT
“Todos os ataques de que hoje é objeto o Cristianismo, por mais diversos que sejam na sua natureza e na sua medida, partem de um mesmo ponto e tendem ao mesmo fim, a negação do sobrenatural nos destinos do homem e do mundo e a abolição do elemento sobrenatural na religião cristã, como em todas as religiões, na sua história como nos seus dogmas.
“Materialistas, panteístas, racionalistas, céticos, críticos, eruditos, uns abertamente, outros discretamente, todos pensam e falam sob o império da ideia de que o mundo e o homem, a natureza moral como a natureza física, são apenas governados por leis gerais, permanentes e necessárias, cujo curso nenhuma vontade especial jamais veio ou virá suspender ou modificar.
“Não penso aqui discutir plenamente esta questão, que é fundamental de toda religião. Quero apenas submeter aos adversários declarados ou ocultos do sobrenatural, duas observações, ou mais exatamente dois fatos que, em minha opinião, a decidem.
“É sobre uma fé natural ou sobrenatural, sobre um instinto inato do sobrenatural, que toda religião se funda. Não digo toda ideia religiosa, mas toda religião positiva, prática, poderosa, durável, popular. Em todos os lugares, sob todos os climas, em todas as épocas da História, em todos os graus da civilização, o homem traz em si esse sentimento, que eu gostaria mais de chamar pressentimento, de que o mundo que vê, a ordem em cujo seio vive, os fatos que se sucedem regular e constantemente ao seu redor não são tudo. Neste vasto conjunto, em vão ele faz diariamente descobertas e conquistas; em vão observa e constata sabiamente as leis permanentes que tudo presidem. Seu pensamento não se encerra neste universo entregue à sua ciência. Este espetáculo não basta à sua alma. Ela se lança alhures. Ela busca. Ela entrevê outra coisa. Ela aspira para o Universo e para si mesma por outros destinos e por outro senhor:
“Para além de todos estes céus o Deus dos Céus reside”, disse Voltaire, e o Deus que está além de todos os céus não é a natureza personificada, é o sobrenatural em pessoa. É a ele que se dirigem as religiões; é com a finalidade de pôr o homem em relação com ele que elas se fundam. Sem a fé instintiva dos homens no sobrenatural, sem seu impulso espontâneo e invencível para o sobrenatural, não haveria religião.
“Entre todos os seres aqui, o único que ora é o homem. Entre seus instintos morais, nenhum é mais natural, mais universal, mais invencível que a prece. A criança nela se comporta com uma docilidade solícita. O velho a ela se dobra como num refúgio contra a decadência e o isolamento. A prece sobe por si aos jovens lábios que apenas balbuciam o nome de Deus e aos lábios dos agonizantes que nem mais têm forças para pronunciá-lo. Em todos os povos, célebres ou obscuros, civilizados ou bárbaros, encontram-se a cada passo atos e fórmulas de invocação. Por toda parte onde vivem os homens, em certas circunstâncias, em certas horas, sob o império de determinadas impressões da alma, os olhos se elevam, as mãos se juntam, os joelhos se dobram para implorar ou render graças, para adorar ou apaziguar. Com transporte ou tremor, publicamente ou no íntimo do coração, é à prece que o homem se dirige, em último recurso, para encher o vazio de sua alma ou carregar os fardos de seu destino. É na prece que procura, quando tudo lhe falha, apoio para a sua fraqueza, consolo para as suas dores, esperança para a sua virtude. “Ninguém desconhece o valor moral e interior da prece, independentemente de sua eficácia quanto ao seu objetivo. Pelo simples fato de pedir, a alma se alivia, se ergue, se acalma, se fortalece. Voltando-se para Deus, experimenta esse sentimento de volta à saúde e ao repouso que se espalha no corpo, quando passa de uma aparência tempestuosa e pesada a uma atmosfera serena e pura. Deus vem em auxílio aos que o imploram, antes e sem que saibam se os ouvirá.
“Ouvi-los-á? Qual é a eficácia exterior e definitiva da prece? Eis o mistério, o impenetrável mistério dos desígnios e da ação de Deus sobre cada um de nós. O que sabemos é que, quer se trate de nossa vida exterior, quer da interior, não somos só nós que dela dispomos, conforme nosso pensamento e vontade própria. Todos os nomes que dermos a esta parte do nosso destino, que não vem de nós mesmos: acaso, fortuna, estrela, natureza, fatalidade, são outros tantos véus lançados sobre nossa impiedade ignorante. Quando assim falamos, recusamos ver Deus onde ele está. Além da estreita esfera onde estão encerradas a força e a ação do homem, está Deus, que reina e atua. Há no ato natural e universal da prece, uma fé natural e universal nessa ação permanente, e sempre livre, de Deus sobre o homem e seu destino. “Somos trabalhadores com Deus”, diz São Paulo. Trabalhadores com Deus e na obra dos destinos gerais da Humanidade e na de nosso próprio destino, presente e futuro. Aí está o que nos faz entrever a prece como o laço que une o homem a Deus. Mas aí a luz se detém para nós. “Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos.” Nós aí marchamos sem conhecê-los. Crer sem ver e orar sem prever é a condição que Deus impôs ao homem neste mundo, para tudo quanto ultrapassa seus limites. É na consciência e na aceitação desta ordem sobrenatural que consistem a fé e a vida religiosas.
“Assim, tem razão o Sr. Edmond Scherer, quando duvida que “o racionalismo cristão seja e jamais possa ser uma religião.” E por que o Sr. Jules Simon, que se inclina ante Deus com um respeito tão sincero, intitulou seu livro: La religion naturelle? Deveria tê-lo chamado Philosophie religieuse. A filosofia persegue e atinge algumas das grandes ideias sobre as quais se funda a religião. Mas, pela natureza de seus processos e pelos limites de seu domínio, jamais fundou, nem poderia fundar uma religião. Falando mais precisamente, não há religião natural, pois desde que abolido o sobrenatural, também desaparece a religião.
“Que essa fé instintiva no sobrenatural, fonte da religião, possa ser, e seja também a fonte de uma infinidade de erros e de superstições, e por sua vez fonte de uma infinidade de males, quem pensa em negar? Aqui, como em tudo, é a condição do homem que o bem e o mal se misturem incessantemente nos seus destinos e nas suas obras como nele mesmo, mas, dessa incurável mistura não se segue que nossos grandes instintos não tenham sentido e não façam senão nos tresmalhar, quando nos elevam. Aspirando a isto, sejam quais possam ser os nossos desvios, continua certo que o sobrenatural está na fé natural do homem e que é a condição sine qua non, o verdadeiro objeto, a própria essência da religião.
“Eis um segundo fato que, penso, merece toda a atenção dos adversários do sobrenatural.
“É reconhecido e constatado pela Ciência que nosso globo nem sempre esteve no estado em que hoje se acha; que em épocas diversas e indeterminadas sofreu revoluções, transformações que lhe alteraram a face, o regime físico, a população; que o homem, em particular, nem sempre existiu e que, em vários dos estados sucessivos pelos quais este mundo passou, o homem não poderia ter existido.
“Como apareceu? De que maneira e por que poder começou o gênero humano na Terra?
“Para sua origem pode haver apenas duas explicações: ou foi um produto do trabalho próprio e íntimo das forças naturais da matéria, ou foi obra de um poder sobrenatural, exterior e superior à matéria. Para o aparecimento do homem cá embaixo, uma destas duas causas se faz necessária: a geração espontânea ou a criação.
“Mas admitindo, o que de minha parte absolutamente não admito, as gerações espontâneas, esse modo de produção não poderia, nem jamais teria podido produzir senão seres crianças, à primeira hora e no primeiro estado da vida nascente. Creio que ninguém jamais disse, e que ninguém jamais dirá que pela virtude de uma geração espontânea, o homem, isto é, o homem e a mulher, o par humano, tivessem podido sair, e tivessem saído, um dia, do seio da matéria já formados e grandes, em plena posse de sua estatura, de sua força, de todas as suas faculdades, como o paganismo grego fez sair Minerva do cérebro de Júpiter.
“É somente sob esta condição que, aparecendo pela primeira vez na Terra, nela teria podido viver, perpetuar-se e fundar o gênero humano. Imagine-se o primeiro homem nascendo no estado de primeira infância, vivo mas inerte, ininteligente, impotente, incapaz de bastar-se a si mesmo um só momento, tiritando e gemendo, sem mãe para escutá-lo e nutri-lo! Aí está, entretanto, o primeiro homem que o sistema da geração espontânea poderia gerar.
“Evidentemente, a outra origem do gênero humano é a única admissível, a única possível. Só o fato sobrenatural da criação explica a primeira aparição do homem aqui na Terra.
“Os que negassem e abolissem o sobrenatural, aboliriam, no mesmo golpe, toda religião real. E é em vão que triunfam do sobrenatural, tantas vezes erradamente introduzido em nosso mundo e em nossa história. Eles são constrangidos a deter-se diante do berço sobrenatural da Humanidade, impotentes para dele fazerem sair o homem sem a mão de Deus”.
GUIZOT
Meditações filosóficas e religiosas
Ditadas ao Sr. Alfred Didier, médium, pelo Espírito de Lamennais
(Sociedade espírita de Paris)
Já publicamos um certo número de comunicações ditadas pelo Espírito de Lamennais e podemos observar o seu alto alcance filosófico. Por vezes o assunto era claramente definido, outras vezes, porém, não tinha um caráter bastante distinto para que fosse fácil lhe dar um título. Tendo feito a observação ao Espírito, ele respondeu que se propunha a dar uma série de dissertações sobre assuntos variados, à qual propunha o título genérico de Meditações filosóficas e religiosas, com a liberdade de dar um título particular aos assuntos que o comportassem. Então suspendemos a publicação até que tivéssemos um conjunto susceptível de ser coordenado. É tal publicação que hoje começamos e continuaremos nos próximos números.
Devemos levar em consideração que os Espíritos chegados a um alto grau de perfeição são os únicos aptos a julgar as coisas de maneira totalmente correta; que até lá, seja qual for o desenvolvimento de sua inteligência, e mesmo de sua moralidade, podem estar mais ou menos imbuídos de suas ideias terrenas e ver as coisas de seu ponto de vista pessoal, o que explica as contradições muitas vezes encontradas em suas apreciações. Lamennais nos parece estar neste caso. Sem dúvida há em suas comunicações muitas coisas boas e belas, em termos de idéias e de estilo, mas há, evidentemente, as que podem ser submetidas à crítica, e pelas quais não assumimos nenhuma responsabilidade. Cada um tem a liberdade de aproveitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais, que sem contradita é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, e o caráter sombrio, melancólico e místico do homem incontestavelmente se reflete no do Espírito e, consequentemente, nas suas comunicações. Só sob esse ponto de vista elas já seriam interessante motivo de observação.
I
“As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, nunca. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, sobretudo nos corações, e assim não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível, mas a alma é imortal, porque una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, ela toma moralmente o aspecto da matéria; ela se divide e, por conseguinte, é submetida a provas infelizes nas suas novas reencarnações. A religião é, pois, a força do homem. Diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo. Diariamente ela ouve as blasfêmias que lhe são atiradas à face, mas, forte e inabalável como a Virgem, ela assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta”.
II
SANSÃO
Devemos levar em consideração que os Espíritos chegados a um alto grau de perfeição são os únicos aptos a julgar as coisas de maneira totalmente correta; que até lá, seja qual for o desenvolvimento de sua inteligência, e mesmo de sua moralidade, podem estar mais ou menos imbuídos de suas ideias terrenas e ver as coisas de seu ponto de vista pessoal, o que explica as contradições muitas vezes encontradas em suas apreciações. Lamennais nos parece estar neste caso. Sem dúvida há em suas comunicações muitas coisas boas e belas, em termos de idéias e de estilo, mas há, evidentemente, as que podem ser submetidas à crítica, e pelas quais não assumimos nenhuma responsabilidade. Cada um tem a liberdade de aproveitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais, que sem contradita é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, e o caráter sombrio, melancólico e místico do homem incontestavelmente se reflete no do Espírito e, consequentemente, nas suas comunicações. Só sob esse ponto de vista elas já seriam interessante motivo de observação.
I
“As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, nunca. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, sobretudo nos corações, e assim não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível, mas a alma é imortal, porque una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, ela toma moralmente o aspecto da matéria; ela se divide e, por conseguinte, é submetida a provas infelizes nas suas novas reencarnações. A religião é, pois, a força do homem. Diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo. Diariamente ela ouve as blasfêmias que lhe são atiradas à face, mas, forte e inabalável como a Virgem, ela assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta”.
II
SANSÃO
“Após uma leitura da Bíblia sobre a história de Sansão, vi em pensamento um quadro análogo aos do possante artista que a França acaba de perder, Decamps. Vi um homem de estatura colossal e membros musculosos, como o Dia de Michelângelo. Esse homem forte dormia ao lado de uma mulher que queimava, em volta dela, perfumes tais que os orientais sempre souberam introduzir em seu luxo e costumes efeminados. Os membros desse gigante entraram em lassidão e um gatinho ora saltava sobre ele, ora sobre a mulher junto a ele. A mulher curvou-se para ver se o gigante dormia, depois tomou uma tesourinha e se pôs a cortar a cabeleira ondulada do colosso. Sabeis o resto. Homens armados atiraram-se sobre ele e o aguilhoaram. ─ O homem preso nas malhas de Dalila chamava-se Sansão, disse-me de repente um Espírito que logo vi junto de mim. Esse homem representa a Humanidade enfraquecida pela corrupção, isto é, pela avidez e pela hipocrisia. Quando Deus estava com ela, a Humanidade levantou as portas de Gaza, como Sansão. Quando a Humanidade teve por sustentáculo a liberdade, isto é, o Cristianismo, esmagou os seus inimigos, como o gigante, sozinho, esmagou o exército dos Filisteus. ─ “Assim, respondi ao meu Espírito, a mulher que está junto dele...” Ele não me deixou concluir e me disse: “É a que substituiu Deus; pense que não quero falar da corrupção dos séculos passados, mas do vosso”. Desde muito tempo Sansão e Dalila se haviam apagado ante os meus olhos. Eu via o anjo, sempre só, que me disse sorrindo: “A Humanidade está vencida”. Então seu rosto tornou-se reflexivo e profundo, e acrescentou: “Eis os três seres que devolverão à Humanidade seu vigor primitivo: chamam-se Fé, Esperança e Caridade. Eles virão dentro de alguns anos e fundarão uma nova doutrina que os homens chamarão Espiritismo”.
III
(Continuação)
Cada fase religiosa da Humanidade possuiu a força divina materializada nas figuras de Sansão, de Hércules e de Rolando. Um homem armado com os argumentos da lógica nos diria: “Eu vos adivinho, mas tal comparação me parece muito sutil e lenta”. É verdade, talvez até agora não tenha vindo ao espírito de ninguém; contudo, examinemos. Eu vos falei ultimamente de Sansão, emblema da força da fé divina nos primeiros tempos. A Bíblia é um poema oriental; Sansão é a figura material dessa força impetuosa que derrubou Heliodoro no átrio do templo e que reuniu as ondas do mar Vermelho, depois de havê-las separado. Essa grande força divina tinha abatido exércitos e derrubado os muros de Jericó. Sabeis que os gregos vieram do Egito e do Oriente. Esta tradição de Sansão não existia senão no domínio da Filosofia e da História egípcia. Os gregos desbastaram os colossos de granito do Egito; armaram Hércules com uma maça e lhe deram vida. Hércules fez seus doze trabalhos, venceu a hidra de Lerna, a hidra dos sete pecados capitais e tornou-se, nesse mundo pagão, o símbolo da força divina encarnada na Terra. Dele fizeram um deus. Mas notai quais foram os vencedores desses dois gigantes. Há que sorrir? Que chorar? como pergunta Lamartine. Foram duas filhas de Eva: Dalila e Dejanira. Como vedes, a tradição de Sansão e de Hércules é a mesma de Dalila e Dejanira. Apenas Dalila tinha substituído a cabeleira das filhas do Faraó pelo diadema de Vênus.
Pela tarde, no famoso vale de Roncevales, um gigante, deitado numa ravina profunda, berrava o nome de Carlos Magno, em gritos desesperados. Estava meio esmagado sob enorme rochedo que suas mãos desfalecentes em vão tentavam remover. Pobre Rolando! Tua hora chegou. Os bascos te insultam do alto do rochedo e ainda te lançam pedras enormes. Entre os teus inimigos se acham mulheres. Talvez Rolando tenha amado uma: sempre Dalila e Dejanira. A História não o diz, mas isto é muito provável. Contudo, Rolando morreu como Sansão e Hércules. Discuti agora, se quiserdes, senhores, mas parece-me que este acontecimento não é tão sutil. Qual será, nos tempos futuros, a personificação da força do Espiritismo? Quem viver verá, diz-se na Terra. Aqui se diz: O homem sempre verá.
LAMENNAIS
(Continua no próximo número)
III
(Continuação)
Cada fase religiosa da Humanidade possuiu a força divina materializada nas figuras de Sansão, de Hércules e de Rolando. Um homem armado com os argumentos da lógica nos diria: “Eu vos adivinho, mas tal comparação me parece muito sutil e lenta”. É verdade, talvez até agora não tenha vindo ao espírito de ninguém; contudo, examinemos. Eu vos falei ultimamente de Sansão, emblema da força da fé divina nos primeiros tempos. A Bíblia é um poema oriental; Sansão é a figura material dessa força impetuosa que derrubou Heliodoro no átrio do templo e que reuniu as ondas do mar Vermelho, depois de havê-las separado. Essa grande força divina tinha abatido exércitos e derrubado os muros de Jericó. Sabeis que os gregos vieram do Egito e do Oriente. Esta tradição de Sansão não existia senão no domínio da Filosofia e da História egípcia. Os gregos desbastaram os colossos de granito do Egito; armaram Hércules com uma maça e lhe deram vida. Hércules fez seus doze trabalhos, venceu a hidra de Lerna, a hidra dos sete pecados capitais e tornou-se, nesse mundo pagão, o símbolo da força divina encarnada na Terra. Dele fizeram um deus. Mas notai quais foram os vencedores desses dois gigantes. Há que sorrir? Que chorar? como pergunta Lamartine. Foram duas filhas de Eva: Dalila e Dejanira. Como vedes, a tradição de Sansão e de Hércules é a mesma de Dalila e Dejanira. Apenas Dalila tinha substituído a cabeleira das filhas do Faraó pelo diadema de Vênus.
Pela tarde, no famoso vale de Roncevales, um gigante, deitado numa ravina profunda, berrava o nome de Carlos Magno, em gritos desesperados. Estava meio esmagado sob enorme rochedo que suas mãos desfalecentes em vão tentavam remover. Pobre Rolando! Tua hora chegou. Os bascos te insultam do alto do rochedo e ainda te lançam pedras enormes. Entre os teus inimigos se acham mulheres. Talvez Rolando tenha amado uma: sempre Dalila e Dejanira. A História não o diz, mas isto é muito provável. Contudo, Rolando morreu como Sansão e Hércules. Discuti agora, se quiserdes, senhores, mas parece-me que este acontecimento não é tão sutil. Qual será, nos tempos futuros, a personificação da força do Espiritismo? Quem viver verá, diz-se na Terra. Aqui se diz: O homem sempre verá.
LAMENNAIS
(Continua no próximo número)
ALLAN KARDEC