Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862
Contendo
Os fatos de manifestação de Espíritos, bem como todas as notícias relativas ao Espiritismo.
O ensino dos Espíritos sobre as coisas do mundo visível e do mundo invisível; sobre as ciências, a moral, a imortalidade da alma, a natureza do homem e seu futuro.
A história do Espiritismo na antiguidade; suas relações com o magnetismo e o sonambulismo; a explicação de lendas e crenças populares, da mitologia de todos os países, etc.
Publicada sob a direção
do sr. Allan Kardec.
Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente.
A potência da causa inteligente se dá em razão da grandeza do efeito.
Janeiro
Ensaio de interpretação da doutrina dos anjos decaídosComo o princípio das coisas está nos segredos de Deus, que não no-lo revela senão à medida que o julga adequado, ficamos reduzidos a conjeturas. Muitos sistemas foram imaginados para resolver essa questão, e até hoje nenhum satisfez completamente à razão. Nós também vamos tentar levantar uma ponta do véu. Seremos mais felizes que nossos antecessores? Não o sabemos. Só o futuro decidirá. A teoria que apresentamos é, pois, uma opinião pessoal, entretanto parece-nos em concordância com a razão e com a lógica. É isso o que aos nossos olhos lhe dá um certo grau de probabilidade.
Para começar, constatamos ser impossível descobrir qualquer parcela da verdade, a não ser com o auxílio da teoria espírita. Ela já resolveu uma porção de problemas até agora insolúveis, e é com a ajuda das balizas que ela nos oferece que tentaremos remontar ao curso dos tempos. O sentido literal de certas passagens dos livros sagrados, contraditado pela Ciência, repelido pela razão, produziu muito mais incrédulos do que se pensa, dada a obstinação aplicada em fazer daquilo um artigo de fé. Se uma interpretação racional fizer com que seja aceita, evidentemente reaproximará da Igreja os que dela se afastaram.
Antes de prosseguir, é essencial nos entendamos a respeito dos vocábulos. Quantas querelas não deveram a sua eternização senão à ambiguidade de certas expressões, que cada um tomava no sentido de suas ideias pessoais! Isto ficou demonstrado em O Livro dos Espíritos, a propósito do vocábulo alma. Dizendo claramente em que acepção a tomávamos, cortamos cerce qualquer controvérsia. O vocábulo anjo está no mesmo caso: empregam-no indiferentemente, no bom e no mau sentido, dizendo: “os anjos bons e os maus, o anjo da luz e o anjo das trevas”, donde se segue que, na acepção geral, ele apenas significa Espírito. Evidentemente é nesse último sentido que deve ser entendido, ao se falar de anjos decaídos e de anjos rebeldes. Conforme a Doutrina Espírita, nisto concorde com muitos teólogos, os anjos não são seres de criação privilegiada, isentos de trabalho imposto aos outros, por um favor especial, mas Espíritos chegados à perfeição por esforços e méritos próprios. Se os anjos fossem seres criados perfeitos, sendo a revolta contra Deus um sinal de inferioridade, aqueles que se revoltaram não poderiam ser anjos. Também nos diz a Doutrina que os Espíritos progridem, mas não retrogradam, porque jamais perdem as qualidades adquiridas. Ora, a rebelião por parte de seres perfeitos seria uma retrogradação, porquanto ela só se concebe partindo de seres ainda atrasados.
Para evitar qualquer equívoco, conviria reservar a expressão anjos para os Espíritos puros e chamar os demais apenas Espíritos bons ou maus. Mas, como o uso consagrou essa expressão em relação aos anjos decaídos, nós dizemos que a tomamos na sua acepção geral. Ver-se-á que nesse sentido a ideia de queda e de rebelião é perfeitamente admissível.
Não conhecemos e talvez jamais venhamos a conhecer o ponto de partida da alma humana. Tudo quanto sabemos é que os Espíritos são criados simples e ignorantes; que progridem intelectual e moralmente; que em virtude do livrearbítrio, uns tomaram o bom caminho, outros um caminho errado; que uma vez posto o pé no atoleiro, se afunda cada vez mais; que depois de uma sequência ilimitada de existências corpóreas, realizadas na Terra e em outros mundos, depuram-se e chegam à perfeição que os aproxima de Deus.
Um ponto de difícil compreensão é a formação dos primeiros seres vivos na Terra, cada um em sua espécie, desde a planta até o homem. A teoria a esse respeito exarada em O Livro dos Espíritos se nos afigura a mais racional, embora só incompletamente e de modo hipotético ela resolva esse problema, que reputamos insolúvel, tanto para nós quanto para a maioria dos Espíritos aos quais não é dado penetrar o mistério das origens. Se os interrogamos a tal respeito, os mais sábios dizem ignorá-lo; outros, menos modestos, tomam a iniciativa e a postura de reveladores e ditam sistemas, produto de suas ideias pessoais, apresentando-os como a verdade absoluta. É contra a mania dos sistemas de certos Espíritos, em relação ao princípio das coisas, que nos devemos pôr em guarda. O que, aos nossos olhos, prova a sabedoria dos que ditaram O Livro dos Espíritos é a reserva que souberam guardar sobre questões dessa natureza. Em nossa opinião, não é prova de sabedoria resolver essas questões de maneira absoluta, como fizeram alguns, sem se inquietarem com impossibilidades materiais resultantes dos dados fornecidos pela Ciência e pela observação. Aquilo que dizemos acerca do aparecimento dos primeiros homens na Terra diz respeito à formação dos corpos, porque, uma vez formado o corpo, é mais fácil conceber que o Espírito venha tomar posse dele. Dados os corpos, o que nos propomos examinar aqui é o estado dos Espíritos que os animaram, a fim de chegar, se possível, a definir de modo mais racional do que se tem feito até agora, a doutrina da queda dos anjos e do paraíso perdido.
Se não admitirmos a pluralidade das existências corpóreas, temos que admitir que a alma é criada ao mesmo tempo que se forma o corpo, porque, uma de duas: ou a alma que anima o corpo ao nascer já viveu, ou não viveu ainda. Entre essas duas hipóteses não há meio-termo. Ora, da segunda hipótese ─ de que a alma não tenha vivido ─ decorre uma porção de problemas insolúveis, tais como a diversidade de aptidões e de instintos, incompatíveis com a justiça de Deus; a sorte das crianças que morrem em tenra idade; a dos cretinos, dos idiotas, etc., ao passo que tudo se explica naturalmente, se se admitir que a alma já viveu e que, ao encarnar-se em novo corpo, traz o que havia adquirido anteriormente. Assim é que as Sociedades progridem gradativamente; sem isto, como explicar a diferença existente entre o presente estado social e o dos tempos de barbárie? Se as almas fossem criadas ao mesmo tempo que os corpos, as que hoje nascem seriam absolutamente novas e tão primitivas quanto as que viviam há milhares de anos. Acrescente-se que entre elas não haveria qualquer conexão, nenhuma relação necessária; seriam completamente independentes umas das outras. Por que, então, as almas de hoje seriam melhor aquinhoadas por Deus que as criadas anteriormente? Por que então compreendem melhor? Por que têm instintos mais apurados e costumes mais suaves? Por que têm a intuição de certas coisas sem as haverem aprendido? Desafiamos à solução desse impasse, a menos que se admita que Deus tenha criado almas de diversas qualidades, conforme os tempos e os lugares, proposição essa inconciliável com a ideia de uma soberana justiça. Dizei, ao contrário, que as almas de hoje já viveram em épocas remotas; que foram bárbaras como o seu século, mas que progrediram; que para cada nova existência trazem as aquisições das existências anteriores e que, consequentemente, as almas dos tempos civilizados não foram criadas mais perfeitas, mas que se aperfeiçoaram por si mesmas com o tempo, e tereis, assim, a única explicação plausível para a causa do progresso social.
Estas considerações, tiradas da teoria da reencarnação, são essenciais para a compreensão de um fato de que falaremos a seguir.
Embora possam os Espíritos encarnar-se em diferentes mundos, parece que, em geral, realizam um certo número de migrações no mesmo globo e no mesmo meio, a fim de melhor aproveitarem a experiência adquirida; não saem desse meio senão para um pior, por punição, ou para um melhor, como recompensa. Disso resulta que, durante um certo período, a população do globo é, com pequenas variações, composta dos mesmos Espíritos, que aí reaparecem em diversas épocas, até atingirem um grau de depuração que lhes permita a transferência para mundos mais adiantados.
Conforme o ensino dado pelos Espíritos superiores, essas emigrações e imigrações dos Espíritos encarnados na Terra ocorrem de tempos em tempos, individualmente; mas, em certas épocas, realizam-se em massa, por força das grandes revoluções que fazem desaparecerem quantidades inumeráveis deles, sendo substituídos por outros Espíritos que sobre a Terra, ou sobre uma parte da Terra, constituem uma nova geração.
O Cristo disse uma coisa notável que não foi compreendida, como, aliás, muitas outras passagens tomadas ao pé da letra, quando sempre falava por imagens e parábolas. Anunciando os grandes acontecimentos no mundo físico e no mundo moral, disse ele: “Na verdade vos digo que não passará esta geração sem que se cumpram todas estas coisas”[1]. Ora, a geração do tempo do Cristo passou há mais de dezoito séculos, sem que essas coisas tivessem sido cumpridas. Disso devemos concluir ou que o Cristo se enganou, o que é inadmissível, ou que suas palavras tinham um sentido oculto, que foi mal interpretado.
Se, porém, nos reportarmos ao que dizem os Espíritos, não apenas a nós, mas pelos médiuns de todos os países, estaremos próximos da realização dos tempos preditos, de uma época de renovação social, isto é, de uma época dessas grandes emigrações dos Espíritos que habitam a Terra. Que os tendo enviado para cá, a fim de se melhorarem, Deus os deixou aqui o tempo necessário para progredirem. Deulhes a conhecer as suas leis, primeiro por Moisés, depois pelo Cristo; advertiu-os pelos profetas; em suas reencarnações sucessivas eles puderam aproveitar tais ensinamentos; agora os tempos são chegados, e aqueles que não aproveitaram as luzes, os que violaram a lei de Deus e desconheceram o seu poder, irão deixar a Terra onde, de agora em diante, estariam deslocados do meio pelo progresso moral que se realiza e ao qual só trariam entraves, quer como homens, quer como Espíritos. A geração da qual falava o Cristo não poderia ser entendida como a dos homens que viviam em seu tempo, fisicamente falando, mas deveria entender-se como a geração dos Espíritos que na Terra percorreram os diversos períodos de suas reencarnações e que irão deixá-la. Eles serão substituídos por uma nova geração de Espíritos que, moralmente mais adiantados, farão reinar entre si a lei do amor e da caridade ensinada pelo Cristo e cuja felicidade não será perturbada pelo contado dos maus, dos orgulhosos, dos egoístas, dos ambiciosos e dos ímpios.
Segundo o que dizem os Espíritos, parece mesmo que entre as crianças que agora nascem, muitas são reencarnações de Espíritos dessa nova geração. Quanto aos da antiga geração que tiverem méritos, mas que, apesar de tudo, não tiverem atingido um suficiente grau de depuração para chegarem a mundos mais adiantados, poderão continuar a habitar a Terra e aqui passar por mais algumas encarnações. Mas então, em vez de estarem em processo de punição, isto será uma recompensa, pois aqui serão mais felizes e em constante progresso. O tempo em que desaparece uma geração de Espíritos para dar lugar a outra pode ser considerado como o fim do mundo, isto é, do mundo moral.
Em que serão convertidos os Espíritos expulsos da Terra? Os próprios Espíritos nos dizem que eles irão habitar mundos novos, onde encontrarão seres ainda mais atrasados que os daqui, aos quais terão que fazer progredir, transmitindo-lhes o produto dos conhecimentos adquiridos.
O contato do meio bárbaro em que estarão ser-lhes-á uma expiação cruel e uma fonte de incessantes padecimentos físicos e morais, dos quais terão tanto mais consciência quanto maior for o desenvolvimento de sua inteligência. Mas essa expiação será, ao mesmo tempo, uma missão que lhes oferecerá meios de resgatar seu passado, conforme a maneira pela qual a desempenharem. Aí sofrerão uma série de reencarnações, durante um período mais ou menos longo, no fim do qual os que tiverem merecido serão retirados para mundos melhores, talvez para a própria Terra, que será, então, um recanto de felicidade e de paz, enquanto que os da Terra subirão, pouco a pouco, até o estado de anjos ou puros Espíritos.
Isto é muito demorado, dirão alguns. Não seria melhor ir de uma vez da Terra para o Céu? Sem dúvida, mas com tal sistema tendes a alternativa de ir, também em massa, da Terra para o Inferno, por toda a eternidade. Ora, haveis de concordar que, sendo aqui em baixo muito rara a soma de virtudes necessárias para ir diretamente da Terra para o Céu, poucos homens poderiam ter certeza de possuí-las. Disso resulta que há mais probabilidades de irem para o Inferno do que para o Paraíso. Não vale mais a pena fazer uma caminhada mais longa, mas com a certeza de atingir o objetivo? No estado atual da Terra ninguém se preocupa de a ela voltar, mas nada a isto obriga, porque depende de cada um progredir de tal modo, enquanto aqui se encontra, que possa merecer uma promoção. Nenhum prisioneiro, saindo do cárcere, pensa em voltar para ele, e o meio é muito simples. Basta não cair em nova falta. Também o soldado acharia muito cômodo tornar-se marechal rapidamente, entretanto, é preciso que faça essa conquista.
Remontemos ao curso dos tempos, e do presente, como ponto conhecido, procuremos deduzir o desconhecido, ao menos por analogia, embora sem a certeza de uma demonstração matemática.
A questão de Adão, como tronco único da espécie humana na Terra, é muito controvertida, como se sabe, porque as leis da Antropologia lhe demonstram a impossibilidade, sem falar dos documentos autênticos da história chinesa, que provam que a população do globo remonta a uma época muito anterior à que a cronologia bíblica assinala para Adão. Então a história de Adão é um conto da carochinha? Não é provável. É uma figura que, como todas as alegorias, deve encerrar uma grande verdade, cuja chave só será dada pelo Espiritismo. A questão principal, a nosso ver, não é saber se o personagem Adão existiu realmente, nem em que época viveu, mas se a raça humana, designada como sua posteridade, é uma raça decaída. A solução desta questão não é vazia de conteúdo moral, porque, esclarecendo-nos quanto ao nosso passado, pode orientar a nossa conduta para o futuro.
Notemos, de saída, que a ideia de queda aplicada ao homem é uma insensatez, quando separada da reencarnação, do mesmo modo que a responsabilidade que carregássemos pela falta de nosso primeiro pai. Se a alma de cada homem é criada ao nascer, é que não existia antes. Assim, não terá qualquer relação, direta ou indireta, com a que cometeu a primeira falta. Então surge a pergunta: como pode ela ser responsável por isso? A dúvida sobre tal ponto conduz naturalmente à dúvida e mesmo à incredulidade sobre muitos outros, pois se falso é o ponto de partida, falsas devem ser, também, as consequências. Tal o raciocínio de muita gente. Ora! Tal raciocínio cairá se considerarmos o espírito, e não a letra do texto bíblico, e se nos reportarmos aos princípios da Doutrina Espírita, destinados, conforme foi dito, a reanimar a fé que se extingue.
Notemos, ainda, que a ideia dos anjos rebeldes, dos anjos decaídos, do paraíso perdido, se acha em quase todas as religiões e no estado de tradição entre quase todos os povos. Ela deve, pois, assentar-se numa verdade. Para compreender o verdadeiro sentido que deve ser ligado à qualificação de anjos rebeldes, não é necessário supor uma luta real entre Deus e os anjos ou Espíritos, de vez que o vocábulo anjo é aqui tomado numa acepção geral. Admitindo-se que os homens sejam Espíritos encarnados, que são os materialistas e os ateus senão anjos ou Espíritos em revolta contra a Divindade, pois que negam a sua existência e nem reconhecem o seu poder nem as suas leis? Não é por orgulho que pretendem que tudo aquilo de que são capazes vem deles próprios e não de Deus? Não é o cúmulo da rebelião pregar o nada depois da morte? Não são muito culpados os que se servem da inteligência, de que se vangloriam, para arrastar os seus semelhantes para o precipício da incredulidade? Até certo ponto não praticam um ato de revolta aqueles que, sem negar a Divindade, desconhecem os verdadeiros atributos de sua essência? Os que se cobrem com a máscara da piedade para o cometimento de ações más? Aqueles cuja fé no futuro não os desliga dos bens deste mundo? Os que em nome de um Deus de paz violentam a primeira de suas leis: a lei da caridade? Os que semeiam a perturbação e o ódio pela calúnia e pela maledicência? Enfim, aqueles cuja vida voluntariamente inútil se escoa na inatividade, sem proveito para si próprios nem para os seus semelhantes? A todos serão pedidas contas, não só do mal que tiverem feito, mas do bem que tiverem deixado de fazer. Ora! Todos esses Espíritos que empregaram tão mal as suas encarnações, uma vez expulsos da Terra e enviados a mundos inferiores, entre populações ainda na infância da barbárie, que serão senão anjos decaídos, remetidos à expiação? Não será para eles a Terra que deixam um paraíso perdido, em comparação com o meio ingrato onde ficarão relegados durante milhares de séculos, até o dia em que tiverem merecido a libertação?
Se remontamos, agora, à origem da raça atual, simbolizada na pessoa de Adão, encontramos todos os caracteres de uma geração de Espíritos expulsos de outro mundo e exilados, por causas semelhantes, na Terra já povoada, mas por homens primitivos, mergulhados na ignorância e na barbárie, e que eles tinham por missão fazê-los progredir, trazendo para o seu meio as luzes de uma inteligência já desenvolvida. Não é, realmente, o papel até aqui desempenhado pela raça adâmica? Relegando-a para esta terra de trabalho e de sofrimento, não teria Deus razão para dizer: “Tu extrairás o teu pão com o suor de teu rosto?” Se ela mereceu tal castigo por causas semelhantes às que vemos hoje, não será justo dizer que se perdeu por orgulho? Na sua mansuetude não lhe poderia prometer que lhe enviaria um salvador, isto é, aquele que deveria iluminar o caminho a seguir para alcançar a felicidade dos eleitos? Esse salvador foi enviado na pessoa do Cristo, que ensinou a lei do amor e da caridade, como a verdadeira âncora de salvação.
Aqui se apresenta uma consideração importante. A missão do Cristo é facilmente compreendida admitindo-se que se trata dos mesmos Espíritos, que viveram antes e depois de sua vinda, e que assim puderam tirar proveito de seus ensinamentos, ou do mérito de seu sacrifício; mas já é mais difícil de compreender, sem a reencarnação, a utilidade desse mesmo sacrifício em prol de Espíritos criados posteriormente à sua vinda e que, assim, Deus teria criado manchados por faltas daqueles com os quais não tinham qualquer relação.
Essa raça de Espíritos parece ter completado o seu tempo na Terra. Dentre eles, alguns aproveitaram o seu tempo e progrediram, e por isso mereceram recompensa; outros, por sua obstinação em fechar os olhos à luz, esgotaram a mansuetude do Criador e mereceram castigo. Assim cumprir-se-á a palavra do Cristo: “Os bons ficarão à minha direita e os maus à minha esquerda”.
Um fato parece apoiar a teoria que atribui uma preexistência aos primeiros habitantes dessa raça na Terra: É que Adão, tido como o tronco, é representado com um desenvolvimento intelectual imediato muito superior ao das raças selvagens atuais; que os seus primeiros descendentes em pouco tempo mostraram aptidão para trabalhos de arte muito adiantados. Ora, o que sabemos do estado dos Espíritos em sua origem indica o que teria sido Adão, do ponto de vista intelectual, se sua alma tivesse sido criada ao mesmo tempo que o seu corpo. Admitindo que, por exceção, Deus lhe tivesse dado uma alma já mais perfeita, restaria explicar por que os selvagens da Nova-Holanda, por exemplo, se saem do mesmo tronco, são infinitamente mais atrasados que o pai comum. Ao contrário, tudo prova, pelo físico e pelo moral, que pertencem a outra raça de Espíritos, mais próximos de sua origem, e que ainda necessitam de um grande número de migrações corpóreas antes de atingirem os graus menos avançados da raça adâmica. A nova raça que vai surgir, fazendo reinar por toda parte a lei do Cristo, que é a lei de justiça, de amor e de caridade, apressará o seu adiantamento. Os que escreveram a história da Antropologia terrestre apegaram-se sobretudo aos caracteres físicos; o elemento espiritual foi quase sempre negligenciado e é invariavelmente negado pelos escritores que nada admitem fora da matéria. Quando este for levado em conta no estudo das ciências, lançará uma luz nova sobre uma porção de problemas ainda obscuros, porque o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, que desempenha um papel preponderante nos fenômenos físicos, tanto quanto nos fenômenos morais.
Vejamos, resumidamente, um exemplo de chocante analogia com o que se passa, em escala maior, no mundo dos Espíritos, e que nos ajudará a compreendê-lo.
A 24 de maio de 1861 a fragata Iphigénie desembarcou na Nova Caledônia uma companhia disciplinar composta de 291 homens. O comandante da colônia baixou, à sua chegada, a seguinte ordem do dia:
“Ao desembarcar nesta terra distante, já compreendestes o papel que vos está reservado.
“A exemplo de nossos bravos marinheiros, que servem aos vossos olhos, vós nos ajudareis a levar com brilho, para o meio das tribos selvagens da Nova Caledônia, o facho da civilização. Pergunto-vos: não é uma bela e nobre missão? Vós a desempenhareis dignamente.
“Escutai a voz e os conselhos dos vossos chefes. Eu estou à testa deles. Que as minhas palavras sejam bem entendidas.
“A escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos suboficiais e cabos é uma garantia segura de todos os esforços que serão tentados para fazer de vós excelentes soldados; direi mais, para vos elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se assim o quiserdes.
“Vossa disciplina é severa e deve sê-lo. Posta em nossas mãos, sabei-o, será firme e inflexível, mas também justa e paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação...”
Temos aqui homens que, por seu mau comportamento, foram expulsos de um país civilizado e, como castigo, enviados para um meio bárbaro. Que lhes disse o chefe? “Infringistes as leis do vosso país; fostes causa de desordem e de escândalo e de lá fostes expulsos. Mandam-vos para cá. Mas podeis resgatar o vosso passado; pelo trabalho podeis conquistar aqui uma posição honrosa e vos tornardes cidadãos honestos. Tendes aqui uma bela missão a cumprir, a de trazer a civilização a estas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos distinguir os que se conduzirem bem.”
Para aqueles homens relegados ao seio da selvageria, a mãe pátria não é um paraíso perdido por sua culpa e por sua rebelião contra a lei? Nessa terra longínqua não são anjos decaídos? A linguagem do chefe não é a que Deus dirigiu aos Espíritos exilados na Terra? “Desobedecestes às minhas leis. Por isto vos expulsei do país onde poderíeis viver felizes e em paz. Aqui sereis condenados ao trabalho. Mas podereis, por vossa conduta, merecer o perdão e reconquistar a pátria que perdestes por vossa culpa ─ o Céu.”
À primeira vista, a ideia da queda parece em contradição com o princípio de que os Espíritos não podem retrogradar. E necessário, porém, considerar que não se trata de um retorno ao estado primitivo. Posto que numa posição inferior, nada perde o Espírito daquilo que adquiriu. Seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, seja qual for o meio em que se ache colocado. Ele está na situação de um homem do mundo, condenado às galés por seus crimes. Certamente é um decaído, do ponto de vista social, mas não se torna mais estúpido nem mais ignorante.
Iremos supor que esses homens mandados à Nova Caledônia irão se transformar subitamente em modelos de virtude? Que irão de repente abjurar todos os erros do passado? Fora necessário não conhecer a Humanidade para admiti-lo. Pela mesma razão, os Espíritos que serão expulsos da Terra, uma vez instalados nos mundos de exílio, não se despojarão subitamente do orgulho e dos baixos instintos.
Durante muito tempo conservarão as tendências de sua origem, um resto do velho fermento. O mesmo deve ter acontecido aos Espíritos da raça adâmica, exilados na Terra. Ora, não está aí o pecado original? A mancha que trazem ao nascer é a da raça de Espíritos culpados e punidos a que pertencem, mancha que podem apagar pelo arrependimento, pela expiação e pela renovação de sua personalidade moral. Considerado como responsabilidade por uma falta cometida por outrem, o pecado original é uma insensatez e a negação da justiça de Deus. Ao contrário, considerado como consequência e remanescente de imperfeição inicial do indivíduo, não só a razão o admite, mas se considera de plena justiça a responsabilidade dela decorrente.
Essa interpretação dá uma razão de ser absolutamente natural ao dogma da imaculada conceição, do qual tanto zombou o ceticismo. Esse dogma estabeleceu que a mãe de Cristo não era manchada pelo pecado original. Como pode ser isso? Muito simples: Deus enviou um Espírito puro, que não pertencia à raça culpada e exilada, para se encarnar na Terra e desempenhar a sua augusta missão, do mesmo modo que, de tempos em tempos, envia Espíritos superiores que se encarnam a fim de darem um impulso no progresso, acelerando-o. Na Terra tais Espíritos são como o venerável pastor que vai moralizar os condenados em suas prisões e lhes mostrar o caminho da salvação.
Por certo algumas pessoas acharão essa interpretação pouco ortodoxa. Algumas, até, a taxarão de herética. Mas não é certo que muitos não veem no relato da Gênesis, na história da maçã e na costela de Adão uma simples imagem? Que não podendo ligar um sentido preciso à doutrina dos anjos decaídos, dos anjos rebeldes e do paraíso perdido, consideram tudo isso simples fábulas? Se uma interpretação lógica os leva a ver uma verdade disfarçada sob a alegoria, não é melhor que a negação absoluta?
Admitamos que essa interpretação não seja, sob todos os pontos de vista, conforme a mais rigorosa ortodoxia, no sentido vulgar do termo: perguntamos se será preferível não acreditar absolutamente em coisa alguma do que acreditar nalguma coisa. Se a crença no texto literal afasta de Deus, e se a crença por força da interpretação dele aproxima, esta não vale mais que aquela? Não vimos, pois, destruir o princípio, podá-lo pela base, como fizeram alguns filósofos. Procuramos descobrir-lhe o sentido oculto e vimos, ao contrário, consolidá-lo e dar-lhe uma base racional. Como quer que seja, não se poderá negar a essa interpretação um caráter grandioso que, na verdade, falta ao texto literal. Essa teoria abarca, ao mesmo tempo, a universalidade dos mundos, o infinito no passado e no futuro; dá a todos a sua razão de ser pelo encadeamento de todas as coisas, pela solidariedade que estabelece entre todas as partes do Universo. Não é ela mais conforme à ideia que fazemos da majestade e da bondade de Deus, do que aquela que circunscreve a Humanidade a um ponto no espaço e a um instante na eternidade?
[1] Mt. 24:34; Mc. 13:30; Lc. 21:32. Nota do Tradutor.
Publicidades das comunicações espíritas
Dando essas comunicações, os Espíritos visam à instrução geral, à propagação dos princípios da doutrina, e tal objetivo não seria atingido se, conforme dissemos, elas ficassem escondidas nas pastas dos que as recebem. É, pois, útil espalhá-las pela via da publicidade. Disso resultará outra importante vantagem: a de provar a concordância do ensino espontâneo dado pelos Espíritos sobre todos os pontos fundamentais e de neutralizar a influência dos sistemas errados, provando o seu isolamento.
Trata-se, pois, de examinar o modo de publicidade que pode melhor alcançar esse objetivo, e por isso há dois pontos a serem levados em cota: o meio que oferece mais chances de extensão da publicidade, e as condições mais adequadas a produzir no leitor uma impressão favorável, quer pela judiciosa escolha dos assuntos, quer pela disposição material. Por não levarem em consideração certos detalhes, talvez simplesmente formais, as melhores obras são, por vezes, natimortas. Esta constatação é resultado da experiência. Certos editores têm, a esse respeito, um tato que lhes revela o hábito do gosto do público, o que lhes permite avaliar de relance e imediatamente as chances de sucesso de uma publicação, sem levar em conta o mérito intrínseco.
O desenvolvimento que tomam as comunicações espíritas colocam-nos na impossibilidade material de inserir todas na Revista. Para abarcar o quadro inteiro, fora necessário dar-lhe uma extensão tal que deixaria o preço fora do alcance de muita gente. Há, pois, necessidade de encontrar um meio de fornecê-la nas melhores condições para todos. Examinemos, de saída, os pró e os contra dos vários sistemas que poderiam ser empregados.
1º ─ Publicações periódicas locais. Estas apresentam dois inconvenientes. O primeiro, o de serem quase sempre restritas à localidade; o segundo, é que uma publicação periódica, devendo ser alimentada e distribuída em datas fixas, necessita de um material burocrático e de gastos regulares, que devem ser cobertos de qualquer modo, sob pena de interrupção. Se os jornais locais que se dirigem ao grande público por vezes têm dificuldade de sobreviver, com mais forte razão uma publicação dirigida a um público restrito, pois seria ilusório contar com muitos assinantes de fora, principalmente se tais publicações se fossem multiplicando.
2º ─ Publicações locais não periódicas. Uma sociedade, um grupo, os grupos de uma mesma cidade poderiam, como fizeram em Metz, reunir suas comunicações em brochuras independentes umas das outras e publicá-las em datas indeterminadas. Esse modo é incomparavelmente preferível ao precedente, sob o ponto de vista financeiro, porque não se assume compromissos e a gente é livre de parar quando quiser. Mas há sempre o inconveniente da restrição da publicidade. Para espalhar tais brochuras fora do círculo local, haveria necessidade de gastos com anúncios, ante os quais muitas vezes a gente recua, ou seria necessária uma livraria central, com numerosos correspondentes que de tal se encarregassem, mas aqui surge outra dificuldade. Os livreiros em geral não têm boa vontade para com as obras que eles próprios não editam; além disso, não querem ocupar os seus correspondentes com publicações para eles sem importância e de consumo incerto, por vezes feitas em más condições de venda pelo formato e pelo preço e que, além de descontentar os correspondentes, obrigá-los-ia a despesas de devolução. São considerações que a maioria dos autores, que desconhecem o ofício de livreiro, não compreendem, sem falar dos que, achando suas obras excelentes, admiram-se que nenhum editor se esforce por agenciá-las. Os próprios autores que mandam imprimir suas obras a suas expensas deveriam lembrar-se que, sejam quais forem as vantagens que ofereçam aos livreiros, a obra terá que aguardar os clientes se, em termos do ofício, não estiver em condições negociáveis.
Pedimos desculpa aos nossos leitores por entrar em detalhes tão materiais a propósito dessas coisas espirituais, mas é precisamente no interesse da propagação das boas coisas que queremos nos premunir contra as ilusões da inexperiência.
3º ─ Publicações individuais dos médiuns. ─ Todas as reflexões acima se aplicam, naturalmente, às publicações isoladas que certos médiuns poderiam fazer das comunicações que recebem. Mas, além da maior parte deles não poderem fazêlo, elas têm outro inconveniente: é que, em geral, têm um cunho de uniformidade que as torna monótonas, e diminuiria tanto mais o seu consumo quanto mais se multiplicassem. Só seriam atraentes se, tratando de um determinado assunto, formassem um todo e apresentassem um conjunto, quer fossem obra de um só Espírito quer de vários.
Essas considerações não são absolutas e certamente haverá exceções. Há, porém, que convir que repousam sobre um fundo de verdade. Aliás, aquilo que dizemos não visa impor nossas ideias, que cada um considerará ou não. Apenas, como a gente publica na esperança de um resultado, sentimo-nos na obrigação de expor as causas de decepções.
Os inconvenientes que acabamos de assinalar se nos afiguram completamente contornados pela publicação central e coletiva que os Srs. Didier & Cia. vão empreender sob o título de Bibliothèque du monde invisible[1]. Compreenderá uma série de volumes de grande formato in-18, sete folhas de impressão ou cerca de 250 páginas, ao preço uniforme de dois francos. Cada volume terá seu número de ordem, mas será vendido separadamente, de sorte que os interessados terão liberdade de adquirir os que lhes convierem, sem a obrigação de pagar pelos que lhes não interessam. Essa coleção, que não tem limites fixos, oferecerá meios de publicar, nas melhores condições possíveis, os trabalhos mediúnicos obtidos nos diversos centros, com a vantagem de uma publicidade muito ampla, por meio dos correspondentes. O que essa casa não faria por meio de brochuras isoladas, ela fará por meio de uma coleção que pode adquirir grande importância.
O nome de Biblioteca do mundo invisível é o título geral da coleção. Cada volume, porém, terá um título especial para designar o assunto e a procedência e beneficiará o autor, sem que este tenha que se imiscuir no produto das obras que lhe são estranhas. É uma publicação coletiva, mas sem solidariedade entre os produtores, e na qual cada um entra por sua conta e se sujeita às chances do mérito de sua obra, mas se aproveitando da publicidade comum.
Nessa coleção os editores não se propõem publicar tudo quanto lhes seja enviado. Ao contrário, reservam-se expressamente o direito de uma escolha rigorosa. Os volumes publicados à custa dos respectivos autores poderão entrar na coleção, se forem aceitos e estiverem nas condições de formato e preço.
Pessoalmente não temos vínculo com conjunto dessa publicação e com sua administração, que nada tem de comum com a Revista Espírita, nem com as nossas obras especiais sobre a matéria. Damos-lhe a nossa aprovação e o nosso apoio moral porque a julgamos útil e por ser a melhor via aberta aos médiuns, grupos e sociedades para suas publicações. Nela colaboraremos como os outros, por nossa conta, só assumindo responsabilidade pelo que levar o nosso nome.
Além das obras especiais que pudermos fornecer a essa coleção, dar-lhe-emos, sob o título especial de Portefeuille spirite[2], alguns volumes compostos de comunicações escolhidas, quer entre as que são obtidas em nossas reuniões de Paris, quer entre as que nos são remetidas por médiuns e grupos franceses e estrangeiros que se correspondem conosco e não querem fazer publicações pessoais. Oriundas de fontes diferentes, essas comunicações terão o atrativo da variedade. A elas juntaremos, conforme as circunstâncias, as observações necessárias à sua compreensão e desenvolvimento. A ordem, a classificação e todas as disposições materiais serão objeto de atenção especial.
Não visando lucro pessoal de tais publicações, nossa intenção é aplicar os direitos que nos couberem pelos cuidados a elas dados, em favor da distribuição gratuita de nossas obras sobre o Espiritismo às pessoas que não as puderem adquirir, ou qualquer outro emprego julgado útil à propagação da doutrina, conforme as condições que forem fixadas ulteriormente.
Tal plano parece corresponder a todas as necessidades e não duvidamos que seja acolhido com entusiasmo por todos os sinceros amigos da doutrina.
[1] Biblioteca do mundo invisível.
[2] Pasta espírita.
Controle do ensino espírita
Se por vezes os sistemas são produto dos cérebros humanos, sabe-se que, a tal respeito, certos Espíritos não ficam para trás. Na verdade alguns se veem que arquitetam ideias absurdas com maravilhosa habilidade, encadeiam-nas com muita arte e constroem um todo mais engenhoso do que sólido, mas que poderia falsear a opinião de pessoas que não se dão ao trabalho de aprofundar-se, ou que são incapazes de fazê-lo pela insuficiência de conhecimentos. Sem dúvida as ideias falsas acabam caindo ante a experiência e a lógica inflexível. Mas antes disso podem produzir a incerteza.
Também é sabido que, conforme sua elevação, os Espíritos podem ter um modo de ver mais ou menos justo sobre determinados assuntos; que as assinaturas das comunicações nem sempre são garantia de autenticidade e que os Espíritos orgulhosos procuram por vezes pregar utopias ao abrigo de nomes respeitáveis, com que se enfeitam. É, sem a menor dúvida, uma das principais dificuldades da ciência prática, contra a qual muitos se chocaram.
Em caso de divergência, o melhor critério é a conformidade dos ensinos por diferentes Espíritos e transmitidos por médiuns diferentes e estranhos uns aos outros. Quando o mesmo princípio for proclamado ou condenado pela maioria, é preciso nos rendermos à evidência. Se há um meio de chegar à verdade é, certamente, pela concordância, tanto quanto pela racionalidade das comunicações, ajudadas pelos meios de que dispomos de constatar a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos. Desde que a opinião deixa de ser individual para se tornar coletiva, adquire um grau maior de autenticidade, porque não pode considerar-se como resultado de uma influência pessoal ou local. Os que ainda se acham em dúvida terão uma base para fixar as suas ideias, porque será irracional pensar que aquele que em seu ponto de vista está só, ou quase só, tenha razão contra todos.
O que acima de tudo contribuiu para o crédito da doutrina de O Livro dos Espíritos foi precisamente que sendo produto de um trabalho semelhante, tem um eco em toda parte. Como o dissemos, nem é obra de um Espírito único, que poderia ser sistemático, nem de um médium único, que poderia ser enganado. É, ao contrário, um ensino coletivo, dado por uma grande diversidade de Espíritos e de médiuns, e cujos princípios que encerra são confirmados mais ou menos por toda parte. Dizemos mais ou menos, visto que, como acima ficou explicado, há Espíritos que procuram fazer prevalecer suas ideias pessoais. É, pois, útil submeter as ideias divergentes ao controle que propomos. Se a doutrina ou quaisquer pontos doutrinários que professamos fossem reconhecidos como errados, num julgamento unânime, submeter-nos-íamos sem murmuração, sentindo-nos felizes por terem outros encontrado a verdade. Se, entretanto, ao contrário, elas forem confirmadas, hão de permitir creiamos estar com a verdade.
A Sociedade Espírita de Paris, compreendendo toda a importância de semelhante trabalho e tendo, em primeiro lugar, que esclarecê-lo por si mesma, e depois provar que de modo algum pretende erigir-se em árbitro absoluto das doutrinas que professa, submeterá aos diversos grupos que com ela se correspondem as questões que julgar mais úteis à propagação da verdade. Essas questões serão submetidas, conforme as circunstâncias, por correspondência particular ou por intermédio da Revista Espírita.
Compreende-se que para ela, e em razão da maneira séria pela qual encara o Espiritismo, a autoridade das comunicações depende das condições em que se realizam as reuniões, o caráter dos membros e o objetivo que se tenha em mira. Provindo de grupos formados sobre as bases indicadas em nosso artigo sobre a organização do Espiritismo, as comunicações terão tanto mais peso aos seus olhos quanto melhores forem as condições desses grupos.
Submetemos aos nossos correspondentes as questões que se seguem, enquanto aguardam as que remeteremos posteriormente.
Questões e problemas propostos aos vários grupos espíritas
1º - Formação da TerraSegundo um outro sistema, preconizado nos últimos tempos, conforme a revelação de um Espírito, a Terra teria sido formada da incrustação de quatro satélites de um antigo planeta desaparecido. Tal junção teria sido resultante da vontade própria da alma desses planetas. Um quinto satélite, a Lua, ter-se-ia recusado, em virtude de seu livre-arbítrio, a uma tal associação. Os vazios deixados entre eles pela ausência da Lua teriam formado as cavidades que foram enchidas pelos mares. Cada um desses planetas teria trazido consigo seres cataleptizados: homens, animais e plantas, que lhe eram peculiares. Saindo de sua letargia, depois de operada a junção e restabelecido o equilíbrio, esses seres teriam povoado o globo atual. Tal seria a origem das raças-mães do homem da Terra: a raça negra na África, a amarela na Ásia, a vermelha na América e a branca na Europa.
Qual desses dois sistemas pode ser considerado como expressão da verdade?
A respeito desse assunto, bem como dos outros, solicita-se uma solução explícita e raciocinada.
2º - Alma da Terra
“Deus criou o homem, a mulher e todos os mais belos e melhores seres. Mas concedeu a todas as almas de astros o poder de criar seres de ordem inferior, a fim de completar o seu mobiliário, já pela combinação do seu próprio fluido prolífico, conhecido em nosso globo sob o nome de aurora boreal, já pela combinação desse fluido com o de outros astros. Ora, a alma do globo terrestre que, como as almas humanas, goza do livre-arbítrio, isto é, da faculdade de escolher o caminho do bem ou do mal, deixou-se arrastar por este último. Daí as criações imperfeitas e más, tais como os animais ferozes e venenosos, e os vegetais que produzem venenos. Mas a Humanidade fará desaparecer esses seres nocivos quando, ao se pôr em acordo com a alma da Terra para marchar pelo caminho do bem, ocupar-se, de maneira mais inteligente, da gestão do globo terrestre, sobre o qual será criado um mobiliário mais perfeito.”
O que há de verdadeiro nessa proposição? O que se deve entender por alma da Terra?
3º - Sede da alma humana
“A alma é de natureza luminosa divina. Tem a forma do ser humano que ela anima. Reside num espaço situado na substância cerebral mediana, que reúne os dois lóbulos do cérebro por sua base. No homem harmonioso e na unidade, a alma, diamante resplandecente, é adornada por uma branca coroa luminosa. É a coroa da harmonia.”
O que há de verdadeiro nessa proposição?
4º - Sede das almas
“Enquanto habitam as regiões planetárias, os Espíritos são obrigados a reencarnar-se para progredirem. Desde que chegam às regiões solares, não mais necessitam da reencarnação e progridem indo habitar sóis de ordem superior, de onde passam às regiões celestes. A Via Láctea, cuja luz é tão suave, é a morada dos anjos ou Espíritos superiores.”
Isto é verdade?
5º - Manifestações dos Espíritos
O Espírito que ditou essa comunicação diz naturalmente que ele próprio é Deus. Nesse pressuposto, formulou uma extensa doutrina filosófica, social e religiosa.
O que pensar de tal sistema, de suas consequências e da natureza do Espírito que o ensina?
6º - Anjos rebeldes, anjos decaídos, paraíso perdido
O que pensar da teoria a respeito disso, no artigo acima, escrito pelo Sr. Allan Kardec?
Do sobrenatural - Pelo Sr. Guizot (2º artigo—Vide o nº de dezembro de 1861)
O Sr. Guizot acredita no sobrenatural. Sobre esse, como sobre muitos outros pontos de vista, importa nos entendamos quanto às palavras. Em sua acepção própria, sobrenatural significa o que está acima da Natureza, fora das leis da Natureza. O sobrenatural, propriamente dito, não está submetido a leis; é uma exceção, uma derrogação das leis que regem a Criação. Numa palavra, é sinônimo de milagre.
No sentido próprio, esses dois vocábulos passaram à linguagem figurada, servindo para designar tudo quanto seja extraordinário, surpreendente, insólito. De uma coisa que causa admiração, diz-se que é miraculosa, como se diz de uma grande extensão, que é incomensurável; de um grande número, que é incalculável ou de uma longa duração, que é eterna, muito embora, a rigor, possam ser medidas, calculadas e previsto um termo à última. Pela mesma razão qualifica-se de sobrenatural aquilo que à primeira vista parece sair dos limites do possível. O vulgo é sempre levado a tomar o vocábulo ao pé da letra naquilo que não compreende. Se por tal se entende tudo quanto se afaste das causas conhecidas, está bem; mas então o vocábulo não tem mais sentido preciso, porque aquilo que era sobrenatural ontem já não o é hoje. Quantas coisas, outrora como tal consideradas, não fez a Ciência entrarem no domínio das leis naturais!
Apesar dos progressos que temos feito, podemos vangloriar-nos de conhecer todos os segredos de Deus? Já nos disse a Natureza a última palavra sobre todas as coisas? Não temos desmentidos diários a essa orgulhosa pretensão? Se, pois, aquilo que ontem era sobrenatural hoje não o é, podemos logicamente inferir que o sobrenatural de hoje deixará de sê-lo amanhã. Para nós, tomamos o vocábulo sobrenatural no seu mais absoluto sentido próprio, isto é, para designar todo fenômeno contrário às leis da Natureza. O caráter do fato natural ou miraculoso é de ser excepcional. Desde que se repete, é porque está submetido a uma lei, conhecida ou não, e entra na ordem geral.
Se restringirmos a Natureza ao mundo material visível, é evidente que as coisas do mundo invisível serão sobrenaturais. Mas estando, também, o mundo invisível submetido a leis, parece-nos mais lógico definir a Natureza como o conjunto das obras da Criação, regidas pelas leis imutáveis da Divindade. Se, como o demonstra o Espiritismo, o mundo invisível é uma de suas forças, um dos poderes reagentes sobre a matéria, ele representa um papel importante em a Natureza. Por essa razão os fenômenos espíritas para nós nem são sobrenaturais, nem maravilhosos ou miraculosos. Daí se nota que longe de ampliar o círculo do maravilhoso, o Espiritismo tende a restringi-lo e fazê-lo desaparecer.
Dissemos que o Sr. Guizot acredita no sobrenatural, mas no sentido miraculoso, o que de modo algum implica na crença nos Espíritos e suas manifestações. Ora, desde que, para nós, os fenômenos espíritas nada têm de anormal, não se segue que, em determinados casos, Deus não venha derrogar as suas leis, de vez que é Todo Poderoso. Tê-lo-ia feito? Não é aqui o lugar de examinar o problema. Para tanto, fora necessário discutir, não o princípio, mas cada fato isoladamente. Ora, colocando-nos no ponto de vista do Sr. Guizot, isto é, da realidade dos fatos miraculosos, vamos tentar combater a consequência que daí ele tira, isto é, que a religião não é possível sem o sobrenatural e, ao contrário, provar que de seu sistema decorre o aniquilamento da religião.
O Sr. Guizot parte do princípio de que todas as religiões se fundam no sobrenatural. Isso é certo se entendermos como tal aquilo que se não compreende. Se, porém, remontarmos ao estado dos conhecimentos humanos na época da fundação de cada religião conhecida, veremos quão limitado era o saber humano em Astronomia, em Física, em Química, em Geologia, em Fisiologia, etc.
Se, nos tempos modernos, um bom número de fenômenos já perfeitamente conhecidos e explicados passam por maravilhosos, com mais forte razão assim deveria ser em tempos remotos. Acrescentemos que a linguagem figurada, simbólica e alegórica, em uso entre todos os povos do Oriente, naturalmente se prestava às ficções, cujo verdadeiro sentido a ignorância não era capaz de descobrir.
Acrescentemos, ainda, que os fundadores das religiões, homens superiores à craveira comum, conhecendo muito mais, tiveram que impressionar as massas, cercando-se de um prestígio sobre-humano, enquanto certos ambiciosos puderam explorar a credulidade. Vede Numa, Maomé e tantos outros! Direis que são impostores. Seja.
Tomemos as religiões saídas da lei mosaica. Todas adotam a criação segundo o Gênesis. Ora, haverá realmente algo de mais sobrenatural do que essa formação da Terra, tirada do nada, surgida do caos, povoada por todos os seres vivos, homens, animais e plantas, todos formados e adultos, e isto em seis vezes vinte e quatro horas, como se por um golpe de varinha mágica? Não é a derrogação formal das leis que regem a matéria e a progressão dos seres? Certamente que Deus podia fazê-lo. Mas ele o fez? Ainda há bem poucos anos isto era afirmado como artigo de fé, e eis que a Ciência repõe o fato magno da origem do mundo na ordem dos fatos naturais, provando que tudo se realizou segundo as leis eternas. A religião sofreu por não ter mais como base um fato maravilhoso por excelência? Incontestavelmente muito teria sofrido no seu crédito se se tivesse obstinado em negar a evidência, ao passo que ganhou entrando na ordem comum.
Um fato muito menos importante, apesar das perseguições a que deu origem, é o de Josué parando o Sol para prolongar o dia em duas horas. Não importa se foi o Sol ou a Terra que parou. O fato não deixa de ser sobrenatural. É uma derrogação de uma lei capital, a da força que arrasta os mundos.
Pensaram em sair da dificuldade reconhecendo que é a Terra que gira, mas não haviam levado em conta a maçã de Newton, a mecânica celeste de Laplace e a lei da gravitação. Se o movimento da Terra for suspenso, não por duas horas, mas por alguns minutos, cessará a força centrífuga e a Terra precipitar-se-á sobre o Sol. O equilíbrio das águas na sua superfície é mantido pela continuidade do movimento. Cessando este, tudo se esboroa. Ora, a história do mundo não menciona o menor cataclismo nessa época. Não contestamos que Deus tenha podido favorecer a Josué, prolongando a claridade do dia. Por que meio? Ignoramo-lo. Poderia ter sido uma aurora boreal, um meteoro ou qualquer outro fenômeno que não tivesse alterado a ordem das coisas. Mas, inquestionavelmente, não foi aquele que, durante séculos, foi tomado como artigo de fé. É muito natural que outrora acreditassem, mas hoje isso é impossível, a menos que se renegue a Ciência.
Dirão que a religião se apoia sobre muitos outros fatos que nem são explicados, nem explicáveis. Não explicados, sim; inexplicáveis, é outra questão. Sabemos que descobertas e que conhecimentos estão reservados ao futuro? Já não vemos, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, reproduzirem-se os êxtases, as visões, as aparições, a visão à distância, as curas instantâneas, os transportes, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, outrora considerados maravilhosos e hoje demonstrados como pertinentes à ordem das coisas naturais, conforme a lei constitutiva dos seres?
Os livros sagrados estão cheios de fatos qualificados de sobrenaturais. Como, porém, os encontramos análogos e até mais maravilhosos em todas as religiões pagãs da antiguidade, se a verdade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, não saberíamos qual delas seria a verdadeira.
Como prova do sobrenatural, cita o Sr. Guizot a formação do primeiro homem, que foi criado adulto porque, diz ele, sozinho e na infância não teria podido alimentar-se, mas se Deus fez uma exceção criando-o adulto, não teria podido fazer outra, dando ao menino os meios de viver, e isto sem se afastar da ordem estabelecida? Sendo os animais anteriores ao homem, não era possível, em relação ao primeiro menino, realizar a fábula de Rômulo e Remo?
Dizemos o primeiro menino quando deveríamos dizer os primeiros meninos, pois a questão de um tronco único para a espécie humana é controvertida. Com efeito, as leis da antropologia demonstram a impossibilidade material que a posteridade de um só homem tivesse podido, em alguns séculos, povoar toda a Terra e se transformar em raças negras, amarelas e vermelhas, pois está bem demonstrado que essas diferenças são devidas à constituição orgânica, e não ao clima.
O Sr. Guizot sustenta uma tese perigosa ao afirmar que nenhuma religião é possível sem o sobrenatural. Se ele assenta as verdades do Cristianismo sobre a base única do maravilhoso, dá-lhe um apoio frágil, cujas pedras se desagregam a cada dia. Damos-lhe uma base mais sólida: as leis imutáveis de Deus. Esta base desafia o tempo e a Ciência, porque os tempos e a Ciência virão sancioná-la.
A tese do Sr. Guizot conduz, pois, à conclusão que, num tempo dado, não haverá mais religião possível, nem mesmo a cristã, se se demonstrar que é natural aquilo que é tomado como sobrenatural. Foi isso que quis ele provar? Não. Mas é a consequência de seu argumento, e para ela marchamos a passos largos, porque, por mais que se faça, por mais que se amontoem raciocínios, não se chegará a manter a crença de que um fato é sobrenatural quando ficou provado que não é.
A tal respeito somos muito menos céticos que o Sr. Guizot, e dizemos que Deus não é menos digno de nossa admiração, do nosso reconhecimento e do nosso respeito por não haver derrogado as suas leis, grandes principalmente por sua imutabilidade; que não há necessidade do sobrenatural para lhe render o culto que lhe é devido e, consequentemente, para ter uma religião que encontrará tanto menos incrédulos quanto mais é, em todos os pontos, sancionada pela razão.
Em nossa opinião, nada tem o Cristianismo a perder com essa sanção, mas apenas a lucrar. Se algo o prejudicou, na opinião de muitos, foi precisamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural. Fazei com que os homens vejam a grandeza e o poder de Deus em todas as suas obras; mostrai-lhe a sabedoria e a admirável previdência, desde a germinação da plantinha até o mecanismo do Universo, e as maravilhas serão abundantes. Substitua-se em seu espírito a ideia de um Deus ciumento, colérico, vingativo e implacável, pela de um Deus soberanamente justo, bom e misericordioso, que não condena a suplícios eternos e sem esperança, por faltas temporárias. Que desde a infância ele seja alimentado por essas ideias que crescerão com a razão, e fareis muito mais crentes, firmes e sinceros, do que se forem embalados por alegorias, que são impostas ao pé da letra e que, mais tarde, repelidas por ele, conduzi-lo-ão a duvidar de tudo e a tudo negar. Se quereis manter a religião pela via única da ilusão do maravilhoso, só haverá um meio: manter os homens na ignorância. Vede se isso é possível. Por muita insistência em mostrar a ação de Deus apenas nos prodígios, nas exceções, a gente deixa de mostrá-la nas maravilhas que calcamos aos nossos pés.
Certamente objetarão com o nascimento do Cristo, que não poderia ser explicado pelas leis naturais e que é uma das provas mais brilhantes de seu caráter divino. Não é aqui o lugar de examinar esse assunto. Entretanto, ainda uma vez, não contestamos a Deus o poder de derrogar as suas leis. O que contestamos é a necessidade absoluta de tal derrogação, para o estabelecimento de uma religião qualquer.
Dirão que o Magnetismo e o Espiritismo, reproduzindo os fenômenos tidos por miraculosos, são contrários à religião atual, porque tendem a tirar desses fatos o seu caráter sobrenatural. Mas, que fazer, se os fatos são verdadeiros? Não os impedirão, desde que não constituem privilégio de um homem, mas se repetem no mundo inteiro. Outro tanto poder-se-ia dizer da Física, da Química, da Astronomia, da Geologia, da Meteorologia, de todas as ciências, enfim. A tal respeito diremos que o ceticismo de muita gente não tem outra fonte senão a impossibilidade, para eles, de tais fatos excepcionais. Negando a base sobre que se apoiam, negam tudo o mais. Prove-se-lhes a possibilidade e a realidade de tais fatos, reproduzindo-os aos seus olhos, e serão forçados a acreditar.
─ Isso é tirar ao Cristo o seu caráter divino!
─ Então preferis que eles não creiam em nada a acreditarem em alguma coisa? Haverá apenas esse meio de provar a divindade da missão do Cristo? Seu caráter não se destaca cem vezes melhor da sublimidade de sua doutrina e do exemplo que ele deu de suas virtudes? Se não se vê esse caráter senão nos atos materiais que praticou, outros não os fizeram semelhantes, para não falar senão de seu contemporâneo Apolônio de Tiana? Por que, então, o Cristo o superou? É porque fez um milagre muito maior do que transformar água em vinho; alimentar quatro mil homens com cinco pães; curar epilépticos; dar vista aos cegos e fazer andarem os paralíticos. Esse milagre é o de ter mudado a face do mundo; é a revolução feita pela simples palavra de um homem saído de um estábulo, durante três anos de pregações, sem nada haver escrito, ajudado apenas por alguns obscuros pescadores ignorantes. Eis o verdadeiro prodígio, no qual é preciso ser cego para não ver a mão de Deus. Penetrai os homens dessa verdade, eis a melhor maneira de convertê-los em sólidos crentes.
Poesias de além-túmulo
Queríamos versos deberanger (Sociedade espírita do México, 20 de Abril de 1858)Deixai, porém, repousar essa musa risonha.
Outrora ela cantou em árias muito frívolas, mas seu coração era bom.
Se eu pude flagelar a raça capuchinha, com isso os franceses deram boas risadas.
Tento mais uma canção (Sociedade espírita do México)
Adormeci e minha nova amiga embalou minha partida em sons maviosos.
Bibliografia
O Espiritismo na sua expressão mais simples, ou a Doutrina dos Espíritos popularizadaO objetivo dessa publicação é dar, num quadro muito sucinto, o histórico do Espiritismo, e uma ideia suficiente da Doutrina dos Espíritos, para que se lhe possa compreender o objetivo moral e filosófico. Pela clareza e pela simplicidade do estilo, procuramos pô-la ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os verdadeiros espíritas para ajudar na sua propagação.
Revelações de Além-Túmulo
Um volume grande in-18, 2,25 francos. Livraria Ledoyen; Galerie d’Orléans, 31, Palais Royal.
A obra é uma coleção de comunicações obtidas pela Sra. Dozon, médium, membro da Sociedade Espírita de Paris, durante e após grave e dolorosa enfermidade que, como ela mesma diz, teria abatido sua coragem, não fossem a sua fé no Espiritismo e a evidente assistência dos amigos e guias espirituais que a sustentaram nos momentos mais difíceis. Assim, a maioria das comunicações são marcadas pelo cunho das circunstâncias em que foram dadas. Seu objetivo evidente era levantar o moral abatido, o que foi alcançado plenamente. Seu caráter é essencialmente religioso. Elas respiram a mais pura, suave e consoladora moral. Algumas são de notável elevação de ideias. É de lamentar-se apenas a rapidez com que o volume foi impresso, o que não permitiu fazer todas as desejáveis correções materiais.
Se a Biblioteca do Mundo Invisível, que anunciamos, estivesse em vias de publicação, essa obra teria podido aí encontrar uma honrosa posição.
Testamento em favor do Espiritismo
Junto a esta o meu testamento hológrafo, em envelope lacrado em cera verde, com menção sobre esse envelope lacrado do que deverá ser feito após a minha morte. Desde o momento em que conheci e compreendi o Espiritismo, seu objetivo, sua finalidade última, tive a ideia e tomei a resolução de fazer o meu testamento.
Tinha deixado para minha volta do campo, neste inverno, esta obra de minhas últimas vontades.
No lazer e na solidão do campo foi possível recolher-me e, à luz desse divino facho do Espiritismo, aproveitei todos os ensinamentos que recebi, sob todos os pontos de vista, dos Espíritos do Senhor, para me guiar no cumprimento desta obra da maneira mais útil aos meus irmãos da Terra, quer sentados em meu lar, quer perto ou longe de mim, conhecidos ou desconhecidos, amigos ou inimigos, e da maneira mais agradável a Deus.
Lembrei-me desse respeitável Sr. Jobard, de Bruxelas, cuja morte súbita o senhor nos anunciou, e do que ele escrevia na sua linguagem profunda e, ao mesmo tempo, faceta e espirituosa, relativamente a uma herança de vinte milhões, dos quais se dizia espoliado: que essa soma colossal teria sido uma alavanca poderosa para ativar de um século a nova era que se inicia. O dinheiro, que frequentemente e do ponto de vista terreno, tem sido chamado o nervo da guerra, é, com efeito, um instrumento temibilíssimo, poderoso para o bem e para o mal aqui na Terra, e eu disse de mim para mim: “Posso e devo consagrar, para ajudar essa nova era, uma notável porção de meu modesto patrimônio que adquiri, para a realização de minhas provas, com o suor de meu rosto, à custa de minha saúde, através da pobreza, da fadiga, do estudo e do trabalho, e por trinta anos de vida militante de advogado, um dos mais ocupados nas audiências e no escritório.
Reli a carta que, depois de sua viagem a Roma, Lamennais escreveu a 1º de novembro de 1832 à condessa Senfft, na qual, com a expressão de suas decepções após tantos esforços e lutas consagradas à procura da verdade, encontravam-se estas palavras, senão proféticas, ao menos inspiradas, anunciando essa era nova.
(Seguem-se várias citações que deixamos de reproduzir por falta de espaço).
O envelope contém o seguinte aviso:
“Neste envelope, lacrado com cera verde, está meu testamento hológrafo. O envelope só deve ser aberto e o selo quebrado após a minha morte, em sessão geral da Sociedade Espírita de Paris. Nessa sessão, pelo presidente dessa Sociedade que estiver em exercício na época de minha morte, será feita a inteira leitura de meu testamento. O dito envelope será aberto e o dito selo será rompido pelo presidente. O presente envelope selado, contendo meu testamento, e que vai ser entregue ao Sr. Allan Kardec, presidente atual da dita Sociedade, será depositado por ele nos arquivos dessa Sociedade. Um original desse mesmo testamento será encontrado, na época de minha morte, depositado no gabinete da Sra. xxx; um outro original será, na mesma época, encontrado em minha casa. O depósito com o Sr. Allan Kardec é mencionado nos outros originais.”
Tendo sido comunicada à Sociedade Espírita de Paris em sua sessão de 20 de novembro de 1861, o presidente, Sr. Allan Kardec foi encarregado de agradecer, em nome da Sociedade, as generosas intenções do testamentário em favor do Espiritismo, e de felicitá-lo pela maneira como ele compreende a sua finalidade e o seu alcance.
Conquanto o autor da carta não haja recomendado silenciar o seu nome, caso se quisesse publicá-lo, compreende-se que, em tais circunstâncias e num ato dessa natureza, a mais absoluta reserva é obrigação rigorosa.
Carta ao Sr. Dr. Morhéry, A propósito da Srta. Godu
Se tivéssemos publicado sem exame todas as maravilhas que nos foram relatadas mais ou menos de boa-fé, nossa revista talvez se tivesse tornado mais divertida, mas devemos conservar-lhe o caráter sério que sempre teve.
Quanto à nova e prodigiosa faculdade que se teria revelado na senhorinha Godu, francamente achamos que a de médium curador era mais preciosa e mais útil à Humanidade, e mesmo à propagação do Espiritismo. Contudo, nada negamos, e aos que pensam que com tal notícia logo teríamos tomado a estrada de ferro para nos certificarmos, responderemos que, se a coisa é verdadeira, não deixará de ser constatada oficialmente. Então será o momento de falar, e não teremos nenhuma reserva em ser o primeiro a proclamá-la.
Eis um resumo da resposta que demos ao Sr. Morhéry:
“...É certo que não publiquei todos os relatórios que me enviastes sobre as curas operadas pela senhorinha Godu, mas disse o bastante para chamar a atenção para ela. Falar constantemente do caso fora dar a impressão de estar a serviço de interesses particulares. Aconselhava a prudência esperar que o futuro confirmasse o passado.
Quanto aos fenômenos que relatais na última carta, são tão estranhos que não me aventurarei a publicá-los senão quando tiver a sua confirmação de maneira irrefutável. Quanto mais anormal um fato, mais circunspecção ele exige. Não vos surpreendereis de que eu use muita, em tais circunstâncias. É este, também, o conselho do Comitê da Sociedade, ao qual submeti a vossa carta. Por unanimidade foi decidido aguardar o desenvolvimento, antes de falar do caso. Até agora tal fato é tão contrário a todas as leis naturais, e mesmo a todas as leis conhecidas do Espiritismo, que o primeiro sentimento que provoca, mesmo entre os espíritas, é de incredulidade. Falar dele antecipadamente e antes de poder apoiar-se em provas autênticas seria excitar inutilmente a veia dos trocistas.”
NOTA: Adiamos para o próximo número a publicação de diversas evocações e dissertações espíritas de subido interesse.
ALLAN KARDEC
Fevereiro
Cumprimentos de ano novoAproveitamos a circunstância para transmitir, a seu pedido, alguns conselhos gerais. A Sociedade Espírita de Paris, fundada por nós, julgando que podia ser útil a todo o mundo, não só nos sugeriu que a publicássemos na Revista, como também votou a sua impressão separada para ser distribuída a todos os seus sócios.
Todos aqueles que tiveram a gentileza de nos escrever participaram dos sentimentos de reciprocidade que aí exprimimos e que se dirigem, sem exceção, a todos os espíritas franceses e estrangeiros, que nos honram com o título de seu chefe e de seu guia na nova via que se lhes abre.
Não nos dirigimos apenas aos que nos escreveram, pela passagem do ano-novo, mas a todos os que, a cada momento, nos dão tocantes provas de seu reconhecimento pela felicidade e pelas consolações que encontram na doutrina e que nos relatam as suas penas e os seus esforços para ajudar a sua propagação. A todos, enfim, aos quais nossos trabalhos servem para algo na marcha progressiva do Espiritismo.
Resposta à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses
A mensagem coletiva que tivestes a bondade de me enviar pela passagem do ano-novo causou-me viva satisfação, provando que conservastes de mim uma boa recordação. Mas o que me deu maior prazer, em vosso ato espontâneo, foi o de encontrar, entre as numerosas assinaturas, representação de quase todos os grupos, pois é um sinal da harmonia reinante entre eles. Sinto-me feliz por terdes compreendido o objetivo desta organização, cujos resultados já podeis apreciar, pois agora vos deve ser evidente que uma sociedade única teria sido quase impossível.
Agradeço-vos, meus bons amigos, os votos que me formulais. Eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são os que Deus escuta. Ficai satisfeitos porque ele os escuta diariamente, dando-me a alegria inaudita no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e prosperar, em meus dias, com rapidez maravilhosa. Encaro como um grande favor do Céu o ser testemunha do bem que ela já faz. Essa certeza, da qual diariamente recebo os mais tocantes testemunhos, me paga com usura todas as penas e fadigas. Só uma graça peço a Deus, a de me dar a força física necessária para ir até o fim de minha tarefa, que está longe de ser concluída.
Mas, haja o que houver, terei sempre a consolação da certeza de que a semente das ideias novas, agora espalhada por toda a parte, é imperecível. Mais feliz que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, a mim me é dado ver os primeiros frutos. Se algo lamento, é que a exiguidade de meus recursos pessoais não me permita pôr em execução os planos que tracei para seu mais rápido desenvolvimento. Se, porém, em sua sabedoria, Deus o quis de outro modo, legarei esse plano aos meus sucessores que, sem dúvida, serão mais felizes.
Malgrado a penúria de recursos materiais, o movimento de opinião que se opera ultrapassou toda expectativa. Crede, meus irmãos, que vosso exemplo não deixou de ter influência nisso.
Recebei nossas felicitações pela maneira pela qual sabeis compreender e praticar a doutrina. Sei quão grandes são as provas que muitos de vós tendes de suportar. Só Deus lhes conhece o termo aqui na Terra. Mas, também, quanta força contra a adversidade nos dá a fé no futuro! Oh! Lamentai os que acreditam no nada após a morte, pois para eles o mal presente não tem compensação. O incrédulo infeliz é como o doente que não espera a cura. Ao contrário, o espírita é como aquele que, doente hoje, sabe que amanhã estará curado.
Pedis que continue com os meus conselhos. Eu os dou de boa vontade aos que os pedem e creem que deles necessitam. Mas só a esses. Aos que julgam saber muito e que dispensam as lições da experiência, nada tenho a dizer, a não ser que desejo não tenham um dia de lamentar-se por terem confiado demais nas próprias forças. Tal pretensão, aliás, acusa um sentimento de orgulho, contrário ao verdadeiro espírito do Espiritismo. Ora, pecando pela base, aqueles provam, só por isto, que se afastam da verdade. Não sois desse número, meus amigos, por isso aproveito a circunstância para vos dirigir algumas palavras que vos provarão que, de perto ou de longe, sou todo vosso.
No ponto em que hoje as coisas se acham e considerando-se a marcha do Espiritismo por meio dos obstáculos semeados em sua rota, pode-se dizer que as principais dificuldades foram vencidas. Ele tomou o seu lugar e assentou-se em bases que de agora em diante desafiam os esforços dos adversários.
Pergunta-se como pode ter adversários uma doutrina que nos torna felizes e melhores. Isto é muito natural. Em seu início, o estabelecimento das melhores coisas sempre fere interesses. Não tem sido assim com todas as invenções e descobertas, que revolucionam a Indústria? Não tiveram inimigos encarniçados aquelas que hoje são consideradas como benefícios e das quais não nos poderíamos privar? Toda lei que reprime abusos não tem contra si os que vivem do abuso? Como queríeis que uma doutrina que conduz ao reino da caridade efetiva não fosse combatida por quantos vivem no egoísmo? E sabeis como estes são numerosos na Terra! No princípio esperavam matá-lo pela zombaria. Hoje veem que tal arma é impotente e que, sob o fogo cerrado dos sarcasmos ele continuou sua rota sem tropeços. Não penseis que eles se confessarão vencidos. Não, o interesse material é mais tenaz. Reconhecendo que é uma potência que agora deve ser levada em conta, vão desfechar ataques mais sérios, mas que servirão para melhor provar a fraqueza deles. Uns o atacarão abertamente, em palavras e atos, e persegui-lo-ão até na pessoa de seus adeptos, tentando desencorajá-los à força de intrigas, enquanto outros subrepticiamente, por vias indiretas, procurarão miná-lo surdamente. Ficai avisados: a luta não terminou. Estou prevenindo que eles vão tentar um supremo esforço. Não temais, entretanto, pois o penhor do sucesso está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas: Fora da caridade não há salvação. Hasteai-a bem alto, porque ela é a cabeça de Medusa para os egoístas.
A tática ora em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha, e tende certeza de que quem quer que procure, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não pode ter boas intenções. Eis por que vos advirto para que tenhais a maior circunspeção na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranquilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos.
A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, isto não é possível se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de sentimentos malévolos. Se houver fraternidade, não haverá sentimentos malévolos, mas não pode haver fraternidade com egoístas, ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos que se chocam e se ferem por tudo; com ambiciosos que se desiludem quando não têm a supremacia; com egoístas que só pensam em si mesmos, a cizânia não tardará a ser introduzida. Daí, vem a dissolução. É o que queriam nossos inimigos e é o que tentarão fazer.
Se um grupo quiser estar em condições de ordem, de tranquilidade, de estabilidade, é preciso que nele reine um sentimento fraterno. Todo grupo ou sociedade que se formar sem ter por base a caridade efetiva não terá vitalidade, enquanto os que se formarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma família que, não podendo viver todos sobre o mesmo teto, moram em lugares diversos. Entre eles, a rivalidade seria uma insensatez, pois ela não poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porque a caridade não pode ser entendida de duas maneiras. Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita pela prática da caridade em pensamentos, palavras e atos, e dizei a vós mesmos que aquele que em sua alma nutre sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja e de ciúme mente para si mesmo se deseja compreender e praticar o Espiritismo.
O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como matam os povos e as sociedades em geral. Lede a história e vereis que os povos sucumbem sob o amplexo desses dois mortais inimigos da felicidade humana. Quando se apoiarem nas bases da caridade, serão indissolúveis, porque estarão em paz entre si e consigo mesmos, cada um respeitando os bens e os direitos dos vizinhos. Essa será a nova era predita, da qual o Espiritismo é o precursor, e para a qual todo espírita deve trabalhar, cada um na sua esfera de atividade. É uma tarefa que lhes incumbe, e da qual serão recompensados conforme a maneira pela qual a tenham realizado, pois Deus saberá distinguir os que no Espiritismo só procuraram a sua satisfação pessoal daqueles que ao mesmo tempo trabalharam pela felicidade de seus irmãos.
Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças.
Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e a questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.
Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar. Eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras. Deixai a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que buscarem arrastar-vos por uma via perigosa.
Visando desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vá destruir a religião. Sabeis exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que apenas acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, agora vai com recolhimento.
Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo seria mais poderoso. Dizê-lo seria uma inabilidade, pois seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortifica os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões. Ele é de todas, e não é de nenhuma em particular. Por isso não diz a ninguém que a troque. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção do que o fato. Ide, pois, cada um ao templo do vosso culto, e assim provai que vos caluniam, quando vos taxam de impiedade.
Na impossibilidade material em que me acho de manter relações com todos os grupos, pedi a um de vossos confrades que me representasse mais especialmente em Lyon, como o fiz alhures: é o Sr. Villon, cujo zelo e devotamento são do vosso conhecimento, tanto quanto a pureza de seus sentimentos. Além disso, sua posição independente lhe dá mais folga para a tarefa de que se quer encarregar. É tarefa dura, mas ele não recuará. O grupo por ele formado em sua casa o foi sob os meus auspícios e conforme as minhas instruções, quando de minha última viagem. Ali encontrareis excelentes conselhos e salutares exemplos. É com viva satisfação que verei todos os que me honram com sua confiança a ele se ligarem, como a um centro comum. Se alguns quiserem fazer um grupo à parte, não os olheis com prevenção. Se vos atirarem pedras, nem as recolhais, nem as devolvais. Entre eles e vós, Deus será o juiz dos sentimentos de cada um. Que aqueles que se julgam os únicos certos o provem por maior caridade e maior abnegação de amor-próprio, porque a verdade não estaria ao lado dos que desconhecem o primeiro preceito da doutrina. Se estiverdes em dúvida, fazei sempre o bem. Os erros do espírito pesam menos na balança de Deus que os erros do coração.
Repetirei o que tenho dito noutras ocasiões: Em caso de divergência de opiniões, o meio fácil de sair da dúvida é ver qual a que reúne a maioria, pois há nas massas um bom-senso inato, que não engana. O erro só seduz alguns espíritos enriquecidos pelo amor próprio e por um falso julgamento, mas a verdade sempre acaba vencendo. Tende certeza, portanto, que o erro deserta das fileiras que se esclarecem e que há uma obstinação irracional em crer que um só tenha razão contra todos. Se os princípios que eu professo só tivessem ecos isolados, e se tivessem sido repelidos pela opinião geral, eu seria o primeiro a reconhecer que me havia enganado. Mas vendo crescer incessantemente o número dos aderentes em todas as camadas da Sociedade e em todos os países do mundo, devo acreditar na solidez das bases sobre as quais repousam. Eis por que vos digo com toda a segurança para que marcheis com passo firme na via que vos é traçada.
Dizei aos antagonistas que se eles querem que os sigais, que vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais inteligível, que melhor satisfaça à razão e que, ao mesmo tempo, seja uma garantia melhor para a ordem social. Pela vossa união, frustrai os cálculos dos que vos queiram dividir. Provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a doutrina nos torna mais moderados, mais brandos, mais pacientes, mais indulgentes, o que será a melhor resposta aos detratores, ao mesmo tempo que a vista dos resultados benéficos é o melhor meio de propaganda.
Eis, meus amigos, os conselhos que vos dou e aos quais junto os meus votos para o ano que começa. Não sei que provas Deus nos destina para este ano, mas sei que, sejam quais forem, as suportareis com firmeza e resignação, pois sabeis que para vós, como para o soldado, a recompensa é proporcional à coragem.
Quanto ao Espiritismo, pelo qual vos interessais mais que por vós mesmos, e cujo progresso, pela minha posição, posso julgar melhor que ninguém, sinto-me feliz em dizer-vos que o ano se inicia sob os mais favoráveis auspícios, e que ele verá, sem dúvida nenhuma, o número dos adeptos crescer numa proporção imprevisível. Mais alguns anos como estes que se passaram, e o Espiritismo terá a seu favor três quartas partes da população.
Deixai que vos cite um fato entre milhares.
Num departamento vizinho de Paris, há uma cidadezinha onde o Espiritismo penetrou apenas há seis meses. Em poucas semanas tomou um desenvolvimento considerável. Uma oposição formidável logo foi organizada contra os seus partidários, ameaçando até os seus interesses particulares. Eles enfrentaram tudo com uma coragem e um desinteresse dignos dos maiores elogios. Entregaram-se à Providência e a Providência não lhes faltou. Essa cidade conta com uma população operária numerosa, em cujo meio as ideias espíritas, graças à oposição levantada, aumenta dia a dia. Ora, um fato digno de nota é que as mulheres e as moças esperaram sua gratificação de ano-novo para comprarem as obras necessárias à sua instrução e só para essa cidade um livreiro teve que remetê-las às centenas.
Não é prodigioso ver simples operárias reservarem suas economias para comprar livros de moral e de filosofia em vez de romances e bugigangas? Homens preferindo essa leitura às alegrias ruidosas e embrutecedoras dos cabarés? Ah! É que aqueles homens e aquelas mulheres, que sofrem como vós, agora compreendem que não é aqui que se realiza a seu destino. Abrem-se as cortinas, e eles entreveem os esplêndidos horizontes do futuro. Essa cidadezinha é Chauny, no departamento do Aisne. Novos filhos da grande família, eles vos saúdam, irmãos de Lyon, como seus irmãos maiores, e desde já formam um dos elos da cadeia espiritual que une Paris, Lyon, Metz, Sens, Bordeaux e outras, e que em breve ligarão todas as cidades do mundo num sentimento de mútua confraternidade, porque em toda parte o Espiritismo lançou sementes fecundas e seus filhos se dão as mãos por cima das barreiras dos preconceitos de seitas, castas e nacionalidades.
Vosso dedicado irmão e amigo
ALLAN KARDEC
O Espiritismo é provado por milagres?
“Todos os que de Deus receberam a missão de ensinar a verdade aos homens têm provado sua missão por meio de milagres. Por quais milagres o senhor prova a verdade de seu ensino?”
Não é a primeira vez que nos dirigem tal pergunta, a nós ou a outros espíritas. Parece que lhe ligam grande importância e que de sua solução depende a sentença que deve condenar ou absolver o Espiritismo. No caso, força é concordar que a nossa posição é crítica, pois estamos como um pobre diabo sem um vintém e a quem intimam: “A bolsa ou a vida”. Assim, confessamos humildemente que não temos o mais insignificante milagre para oferecer. Mais ainda, o Espiritismo não se apoia em nenhum fato miraculoso. Seus adeptos não fizeram, nem têm a pretensão de fazer qualquer milagre; não se julgam bastante dignos para que, à sua voz, Deus mude a ordem eterna das coisas. O Espiritismo constata um fato material: o da manifestação das almas ou Espíritos.
Tal fato é ou não é real? Eis a questão. Ora, nesse fato, se admitido como verdadeiro, nada há de miraculoso. Como as manifestações desse gênero ─ tais como as visões, as aparições e outras ─ ocorreram em todos os tempos, como bem o atestam os historiadores sacros e profanos e os livros de todas as religiões, aquelas de outrora passaram como sobrenaturais. Hoje, porém, que se lhes conhece a causa, que se sabe serem produzidas em virtude de certas leis, sabe-se, também, que lhes falta o caráter essencial dos fatos miraculosos ─ o da exceção à lei comum.
Observadas em nossos dias com mais cuidado que na antiguidade; observadas, sobretudo, sem prevenções e com o auxílio de investigações tão minuciosas quanto as que são feitas nos estudos científicos, tais manifestações têm como consequência provar, de modo irrefutável, a existência de um princípio inteligente fora da matéria; a sua sobrevivência ao corpo; a sua individualidade após a morte; a sua imortalidade; o seu futuro feliz ou infeliz, por conseguinte, a base de todas as religiões.
Se a verdade só fosse provada por milagres, poderíamos perguntar por que os padres do Egito, que estavam em erro, reproduziam perante o Faraó os milagres feitos por Moisés? Por que Apolônio de Tiana, que era pagão, curava pelo toque, dava a vista aos cegos, a palavra aos mudos, predizia o futuro e via o que se passava a distância? O próprio Cristo não disse: “Haverá falsos profetas que farão prodígios”?
Um dos nossos amigos, depois de uma prece fervorosa ao seu Espírito protetor, foi curado quase que instantaneamente de uma moléstia muito grave e muito antiga, que havia resistido a todos os remédios. Para ele o fato foi realmente miraculoso. Mas, como crê nos Espíritos, um padre a quem contou o fato lhe disse que o diabotambém pode fazer milagres. “Nesse caso, ─ retrucou o amigo ─ se foi o diabo que me curou, a ele devo agradecer.”
Assim, os prodígios e os milagres não são o privilégio exclusivo da verdade, de vez que o próprio diabo os faz. Como, então, distinguir os bons dos maus? Todas as religiões idólatras ─ sem excetuar a de Maomé ─ apoiam-se em fatos sobrenaturais. Isso prova uma coisa: que os fundadores dessas religiões conheciam segredos naturais, ignorados pelo vulgo.
Aos olhos dos selvagens da América, Cristóvão Colombo não passava por um ser sobre-humano, por haver predito um eclipse? Não podia ter-se inculcado um enviado de Deus? Para provar o seu poder, necessitaria Deus desfazer o que fez? Fazer rodar para a direita aquilo que gira para a esquerda?
Provando o movimento da Terra pelas leis da Natureza, Galileu não estava mais certo do que aqueles que pretendiam que, por uma derrogação dessas mesmas leis, tinha sido necessário parar o Sol? Entretanto, sabemos o que lhe custou, a ele e a tantos outros, por haver demonstrado um erro. Dizemos que Deus é maior pela imutabilidade de suas leis do que as derrogando, e que se lhe aprouve fazê-lo em determinadas circunstâncias, isto não é o único sinal da verdade. Remetemos o leitor ao que dissemos a tal respeito em nosso artigo de janeiro, a propósito do sobrenatural.
Voltemos às provas da verdade do Espiritismo.
Há duas coisas no Espiritismo: o fato da existência dos Espíritos e de suas manifestações, e a doutrina daí decorrente. O primeiro ponto não pode ser posto em dúvida senão pelos que não viram ou não quiseram ver. Quanto ao segundo, a questão é de saber se esta doutrina é justa ou falsa. É uma questão de apreciação.
Se os Espíritos só se manifestassem por meio de ruídos, movimentos e, numa palavra, por efeitos físicos, isso não provaria grande coisa, pois não saberíamos se são bons ou maus. O que, sobretudo, é característico nesse fenômeno; o que é de natureza a convencer os incrédulos, é o poder de reconhecer parentes e amigos entre os Espíritos. Mas, como podem os Espíritos atestar a sua presença, a sua individualidade e permitir o julgamento de suas qualidades, senão falando? Sabe-se que a escrita pelos médiuns é um dos meios que eles empregam. Desde que têm um meio de exprimir suas ideias, podem dizer o que quiserem. Conforme o seu adiantamento, dirão coisas mais ou menos boas, justas e profundas. Ao deixar a Terra, não abdicaram do livre-arbítrio. Como todos os seres pensantes, eles têm suas opiniões, e como entre os homens, os mais adiantados dão ensinamentos de alta moralidade e conselhos impregnados de profunda sabedoria. São esses ensinamentos e esses conselhos que, recolhidos e ordenados, constituem a Doutrina Espírita, ou dos Espíritos.
Considerai esta doutrina, se assim o quiserdes, não como uma revelação divina, mas como uma opinião pessoal deste ou daquele Espírito, e a questão será a de saber se é boa ou má, justa ou falsa, racional ou ilógica. A quem procurar para isto? O julgamento de um indivíduo, ou mesmo de alguns indivíduos? Não, porque dominados pelos preconceitos, por ideias preestabelecidas ou por seus interesses pessoais, eles podem enganar-se. O único e verdadeiro juiz é o público, porque aí não há interesse de camarilha, e porque nas massas há um bom-senso inato, que se não equivoca. Diz a lógica sadia que a adoção de uma ideia ou de um princípio pela opinião geral é prova de que repousa sobre um fundo de verdade.
Os espíritas não dizem: “Eis uma doutrina saída da boca do próprio Deus, revelada a um só homem por meios prodigiosos e que deve ser imposta ao gênero humano”. Ao contrário, dizem: “Eis uma doutrina que não é nossa, e cujo mérito não reivindicamos. Adotamo-la porque a consideramos racional”. Atribuí a sua origem a quem quiserdes: a Deus, aos Espíritos, aos homens. Examinai-a. Se vos convier, adotai-a. Caso contrário, ponde-a de lado.” Não se pode ser menos absoluto.
O Espiritismo não vem usurpar a religião. Ele não se impõe. Não vem forçar as consciências, quer dos católicos, quer dos protestantes ou dos judeus. Apresenta-se e diz: “Adotai-me, se me achais bom”. É culpa dos espíritas se o acham bom? Se nele recebemos consolações que nos tornam felizes, que dissipam os terrores do futuro, acalmam as angústias da dúvida e dão coragem para o presente? Ele não se dirige àqueles a quem bastam as crenças católica ou outras, mas àqueles aos quais elas não satisfazem completamente ou que delas desertaram. Em vez de não crer mais em nada, ele os leva a crer em algo e a crer com fervor.
O Espiritismo não quer constituir-se num grupo à parte. Pelos meios que lhe são próprios, ele reconduz os que se afastam. Se os repelirdes, eles serão forçados a ficar de fora. Dizei, com alma e consciência, se para eles seria preferível serem ateus.
Perguntam em que milagre nos apoiamos para julgarmos boa a Doutrina Espírita. Julgamo-la boa não só porque é a nossa opinião, mas a de milhões que pensam como nós; porque ela leva a crer aqueles que não criam; porque torna boas, criaturas que eram más; porque dá coragem nas misérias da vida. Milagre é a rapidez de sua propagação, inédita nos fastos das doutrinas filosóficas; é ter feito em poucos anos a volta ao mundo e se haver implantado em todos os países e em todas as camadas da Sociedade; é ter progredido malgrado tudo quanto foi feito para barrá-lo; é derrubar as barreiras que lhe opõe e encontrar um aumento das forças nessas mesmas barreiras. É isso a característica de uma utopia?
Uma ideia falsa pode encontrar alguns partidários, mas terá apenas uma existência efêmera e circunscrita: perderá terreno, em vez de conquistá-lo, ao passo que o Espiritismo ganha, em vez de perder. Quando o vemos germinar em toda parte, acolhido como um benefício da Providência, é porque lá está o dedo da Providência. Eis o verdadeiro milagre ─ e o julgamos suficiente para assegurar o seu futuro. Direis que aos vossos olhos não há um caráter providencial, mas diabólico. Tendes liberdade de escolha. E por que ele marcha, isso é o essencial. Apenas diremos que se uma coisa se estabelecesse universalmente pelo poder do diabo, a despeito dos esforços dos que dizem agir em nome de Deus, isso poderia levar certas pessoas a crerem que o demônio é mais poderoso que a Providência.
Pedis milagres. Eis um que nos envia um dos nossos correspondentes na Argélia:
“O Sr. P..., antigo oficial, era um dos mais duros incrédulos. Tinha o fanatismo da irreligião e, antes de Proudhon, dizia: “Deus é o mal;” ou, por outras palavras, não admitia nenhum deus. Só reconhecia o nada. Quando o vi chegar à procura do vosso Livro dos Espíritos, pensei que ele fosse coroar a sua leitura com qualquer elucubração satírica, como costumava fazer contra os padres e até mesmo contra o Cristo. Parecia-me impossível pudesse ser curado um ateísmo tão inveterado. Ah! Entretanto o Livro dos Espíritos fez esse milagre. Se conhecêsseis aquele homem como eu conheço, ficaríeis orgulhoso de vossa obra e olharíeis a coisa como o vosso maior sucesso. Aqui todos se admiram. Contudo, quando se é iniciado na palavra da verdade, não há de que se surpreender, naturalmente, após a reflexão.”
Acrescentemos, pois não faz mal, que o nosso correspondente é um jornalista que, também ele, professava opiniões pouco espiritualistas e ainda menos espíritas. Teriam ido pegá-lo à força para lhe impor a crença em Deus e em sua alma? Não, não é provável. Fascinaram-no com alguns fenômenos prodigiosos? Também não, pois ele nada viu como manifestações. Apenas leu, compreendeu, encontrou raciocínios lógicos e acreditou. Direis que essa e tantas outras conversões seriam obra do diabo? Se assim é, o diabo tem uma política original de fornecer armas contra si próprio e é muito inábil deixando escapar os que estavam em suas garras.
Por que não fizestes esse milagre? Seríeis, então, menos fortes que o diabo para fazer crer em Deus?
Outro questionamento, se me permitis:
─ Enquanto era ateu e blasfemador, aquele senhor estava danado para a eternidade?
─ Sem dúvida alguma.
─ Agora que, em vossa opinião, pelo diabo foi convertido a Deus, ainda é danado? Suponhamos que crendo em Deus, em sua alma, na vida futura feliz ou infeliz, e que, em virtude dessa crença, se torne melhor do que era e não adote inteiramente ao pé da letra a interpretação de todos os dogmas, e que até repila alguns, ainda é danado? Se disserdes “sim”, a crença em Deus para nada lhe serve. Se disserdes “não”, em que se torna a máxima Fora da igreja não há salvação? Diz o Espiritismo: Fora da caridade não há salvação. Credes que aquele senhor vacila entre as duas? Queimado por uma, apesar de tudo, e salvo conforme a outra, a escolha não parece oferecer dúvidas.
Como todas as ideias novas, estas contrariam certas pessoas, certos hábitos, e mesmo certos interesses, assim como as estradas de ferro contrariaram os donos de diligências e os que tinham medo; como uma revolução contraria certas opiniões; como a imprensa contrariou os escribas; como o Cristianismo contrariou os sacerdotes pagãos. Mas, que fazer quando, a nosso bom grado ou a nosso malgrado uma coisa se estabelece, por sua própria força e é aceita pela generalidade? É necessário tomar partido e dizer, como Maomé, que o que é deve ser. Que fareis se o Espiritismo se tornar uma crença universal? Repelireis todos os que o admitirem?
─ Isto não acontecerá; isso não pode ser, ─ direis vós.
─ Mas, uma vez mais, se isto é, o que fareis?
Pode-se deter esse surto? Para tanto, seria preciso deter não um homem, mas os Espíritos; impedi-los de falar; queimar não um livro, mas as ideias; impedir que os médiuns escrevam e se multipliquem.
Um dos nossos correspondentes de uma cidade do Departamento do Tarn nos escreveu:
“Nosso cura faz a propaganda por nós; troveja do púlpito contra o Espiritismo, que não passa de obra do demônio, segundo ele. Quase que me apontou como o sumossacerdote da Doutrina em nossa cidade, o que agradeço-lhe do fundo do coração. Fornece-me, ainda, ocasião de tratar do assunto com aqueles que ainda não tinham tido notícia e que me abordam para saber o que é. Hoje abundam os médiuns entre nós.”
O resultado é o mesmo por toda parte onde quiseram gritar contra. Hoje a ideia espírita está lançada; é acolhida porque agrada; vai do palácio à cabana e pode julgar-se o efeito das tentativas futuras pelas que têm sido feitas para sufocá-lo.
Em resumo, para estabelecer-se, o Espiritismo não reivindica a ação de nenhum milagre; nada quer mudar na ordem das coisas; procurou e encontrou a causa de certos fenômenos erradamente considerados sobrenaturais; em vez de apoiar-se no sobrenatural, o repudia por conta própria; dirige-se ao coração e à razão. A lógica lhe abriu o caminho. A lógica o levará a bom termo.
Isto vai por conta da resposta que devemos à brochura do Sr. Cura Marouzeau.
Deixemos agora que falem os Espíritos.
Apresentada a questão acima, eis algumas das respostas obtidas através de vários médiuns:
“Venho falar-vos da realidade da Doutrina Espírita e colocá-la em oposição aos milagres cuja ausência parece servir de arma aos seus detratores. Os milagres, necessários nos primeiros tempos da Humanidade, para chocar os Espíritos que importava submeter; os milagres, quase todos explicados hoje, graças às descobertas da Física e de outras ciências, agora se tornaram inúteis e, direi mesmo, perigosos, porque suas manifestações só despertarão a incredulidade ou a zombaria.
“Enfim chegou o reinado da inteligência, embora ainda não esteja na sua expressão triunfante, mas nas suas tendências. Que quereis? Ver de novo as baquetas transformadas em serpentes, os enfermos se erguerem e os pães se multiplicarem? Não, não vereis isso. Mas vereis os incrédulos se enternecerem e dobrarem ante o altar os seus joelhos enferrujados. Esse milagre equivale ao da água a brotar do rochedo. Vereis o homem desolado, vergado ao peso da desgraça, desfazer-se da pistola carregada e exclamar: ‘Meu Deus, sede louvado, porque vossa vontade eleva as minhas provas ao nível do amor que vos devo’. Enfim, por toda a parte, vós que explicais os fatos com os textos e o espírito com a letra, vereis a luminosa verdade estabelecer-se sobre as ruínas dos vossos mistérios carcomidos.”
LÁZARO (Médium: Sra. Costel)
“O Cristo veio, pois, falar ao coração da Humanidade. Mas, sabeis, o próprio Cristo disse que tinha vindo em carne no meio do paganismo e prometeu vir no meio do Cristianismo. Há no indivíduo a educação do coração, como há a da inteligência. O mesmo se dá com a Humanidade. O Cristo é, pois, o grande educador. Sua ressurreição é o símbolo de sua fusão espiritual em todos, e essa fusão, essa expansão dele mesmo, apenas começais a sentir. O Cristo não vem mais fazer milagres. Ele vem falar ao coração diretamente, em vez de falar aos sentidos. Passava adiante daqueles que pediam um milagre no Céu e, poucos passos adiante, improvisava o seu magnífico sermão da montanha. Ora pois, aos que ainda pedem milagres, o Cristo responde por todos os Espíritos sábios e esclarecidos: “Credes mais nos vossos olhos, nos vossos ouvidos, nas vossas mãos do que no vosso coração? Minhas chagas atualmente estão fechadas; o Cordeiro foi sacrificado; a carne foi massacrada; o materialismo viu; agora é a vez do Espírito. Deixo os falsos profetas; não me apresento aos poderosos da Terra, como Simão, o Mago, mas vou àqueles que realmente têm sede; àqueles que realmente têm fome; àqueles que sofrem no coração e não àqueles que não são espiritualistas senão como verdadeiros e puros materialistas.”
LAMENNAIS (Médium: Sr. A. Didier)
“À Sociedade tal qual se acha preparada para os acontecimentos, o que falta senão tudo quanto choca a razão e a esclarece? É possível que em certas épocas Deus tenha querido comunicar-se por inteligências superiores, como a de Moisés e outras. Desses grandes homens datam as grandes épocas, mas o espírito dos povos progrediu depois. As grandes figuras dos predestinados enviados por Deus lembravam uma lenda miraculosa. Depois, um fato, por vezes simples em si mesmo, se torna maravilhoso ante a multidão impressionável e preparada para emoções que só a Natureza oferece a seus filhos ignorantes.
“Mas hoje, necessitais de milagres?
“Tudo está transformado em vosso derredor. A Ciência, a Filosofia, a indústria desenvolveram tudo quanto vos cerca. E pensais que nós, os Espíritos, não tenhamos participado dessas modificações profundas?
“Estudando e comentando, aprendeis e meditais melhor. Os milagres não são mais do vosso tempo, e deveis elevar-vos acima dos preconceitos que vos ficaram na memória, como tradições. Nós vos daremos a verdade e sempre nosso concurso. Nós vos esclarecemos, a fim de vos tornardes melhores e fortes. Crede e amai, e o milagre pedido produzir-se-á em vós. Conhecendo e compreendendo melhor o objetivo desta vida, sereis transformados sem fenômenos físicos.
“Procurais apalpar, tocar a verdade e ela vos cerca e vos penetra. Sede, pois, confiantes em vossas próprias forças e o Deus de bondade que vos dava o espírito tornará formidável a vossa força. Por ele afastareis as nuvens que turvam a vossa inteligência e compreendereis que o Espírito é todo imortalidade e todo poder. Postos em relação com esta lei de Deus chamada progresso, não mais procurareis no prestígio dos grandes nomes, que são como mitos da Antiguidade, uma resposta e um escolho contra o Espiritismo, que é a revelação verdadeira, a fé, a ciência nova que consola e fortalece.”
BALUZE (Médium: Sr. Leymarie)
“O maior dos milagres vai operar-se em breve. Sacerdotes do Catolicismo, escutai. Vós quereis milagres e ei-los que se operam... A cruz do Cristo se esfarelava aos golpes do materialismo, da indiferença e do egoísmo; ei-la que se reergue bela, resplandecente, sustentada pelo Espiritismo! Dizei-me: não é o maior dos milagres uma cruz que se reergue, ladeada pela Esperança e pela Caridade?
“─ Em verdade, sacerdotes da Igreja, crede e vede. Os milagres vos rodeiam!... Como chamareis essa volta comum à crença casta e pura do Evangelho, pela qual todas as filosofias ligar-se-ão ao Espiritismo? O Espiritismo será a glória e o facho que iluminará o Universo. Oh! Então o milagre será manifesto e deslumbrante, pois aqui em baixo haverá uma só e mesma família.
“Quereis milagres! Vede essa pobre mulher sofredora e sem pão. Como treme na sua mansarda! O hálito com que quer aquecer os filhinhos que morrem de fome é mais frio e glacial que o vento que penetra em seu abrigo miserável. Por que tanta calma e tanta serenidade em seu rosto, diante de tanta miséria? Ah! É que ela viu brilhar uma estrela acima de sua cabeça; a luz celeste espalha-se no seu reduto; ela não chora mais; ela espera! Ela não amaldiçoa, apenas pede a Deus que lhe dê coragem para suportar a prova!... E eis que as portas da mansarda se abrem e a Caridade vem aí depositar aquilo que pode espalhar a sua mão benfeitora!...
“Que doutrina dará mais sentimento e ânimo ao coração? O Cristianismo plantou o estandarte da igualdade na Terra e o Espiritismo arvora o da fraternidade!... Eis o milagre mais celeste e mais divino que poderia acontecer!... Sacerdotes, cujas mãos por vezes estão manchadas pelo sacrilégio, não peçais milagres físicos, pois as vossas frontes poderão quebrar-se na pedra que pisais para subir ao altar!...
“Não, o Espiritismo não se prende a fenômenos físicos; não se apoia em milagres que falam aos olhos, mas ele dá a fé ao coração. Dizei-me, não estará ainda aí o maior milagre?...”
SANTO AGOSTINHO Médium: Sr. Véry
Nota: Evidentemente isso só se aplica aos padres que mancharam o santuário, como Verger e outros.
O vento - Fábula espírita
A reencarnação na América
Não repetiremos aqui as explicações que nos foram dadas e que publicamos a respeito. Limitar-nos-emos a lembrar que nisto os Espíritos mostraram a sua prudência habitual. Eles quiseram que o Espiritismo surgisse num país de liberdade absoluta quanto à emissão de opiniões. O ponto essencial era a adoção do princípio, e para isso não quiseram ser perturbados em coisa alguma.
O mesmo não se dava com todas as consequências, sobretudo com a reencarnação, que se teria chocado com os preconceitos de escravidão e de cor. A ideia de que um negro poderia tornar-se um branco; de que um branco poderia ter sido um negro; de que um senhor poderia ter sido escravo parecia de tal modo monstruosa que era suficiente para que o todo fosse rejeitado. Assim, os Espíritos preferiram sacrificar momentaneamente o acessório ao principal e sempre nos disseram que, mais tarde, seria estabelecida a unanimidade sobre este, como sobre outros pontos. Com efeito, é o que começa a se dar. Várias pessoas daquele país nos disseram que essa doutrina lá encontra atualmente numerosos partidários; que certos Espíritos, depois de tê-la dado a pressentir, vêm confirmá-la.
Eis o que, a respeito, nos escreve de Montreal, Canadá, o Sr. Fleury Lacroix, natural dos Estados Unidos:
“...A questão da reencarnação, da qual fostes o primeiro promotor visível, aqui nos tomou de surpresa. Hoje, porém, estamos reconciliados com ela, com essa filha do vosso pensamento. Tudo se tornou compreensível por essa nova claridade e agora vemos o nosso futuro bem mais dilatado, na eterna caminhada. Entretanto isso nos parecia absurdo, como dizíamos no começo. Hoje negamos, amanhã acreditamos ─ eis a Humanidade. Felizes os que querem saber, porque a luz se faz para eles; infelizes dos outros, porque permanecem nas trevas.”
Assim, foi a lógica, a força do raciocínio, que os levou a essa doutrina, porque nela encontraram a única chave que podia resolver problemas até então insolúveis.
Contudo, o nosso honrado correspondente engana-se quanto a um fato importante, ao atribuir-nos a iniciativa dessa doutrina, que chama de filha do nosso pensamento. É uma honra que não nos cabe, pois a reencarnação foi ensinada pelos Espíritos a outros, que não a nós, antes da publicação de O Livro dos Espíritos.
Além disso, o princípio foi claramente exposto em várias outras obras anteriores, não somente nas nossas, mas à época do aparecimento das mesas girantes, entre outras em Céu e Terra de Jean Reynaud e no encantador livrinho do Sr. Louis Jourdan, intitulado Preces de Ludovico, publicado em 1849, sem contar que esse princípio era professado pelos Druidas, aos quais, certamente, nós não ensinamos *. Quando ele nos foi revelado, ficamos surpresos, e o acolhemos com hesitação e desconfiança. Nós até mesmo o combatemos, durante algum tempo, até que a evidência nos foi demonstrada. Assim, nós ACEITAMOS esse dogma e não o INVENTAMOS, o que é muito diferente.
Isso responde à objeção de um dos nossos assinantes, o Sr. Salgues, de Angers, que é um dos antagonistas confessos da reencarnação e que pretende que os Espíritos e os médiuns que a ensinam sofram a nossa influência, de vez que os que se comunicam com ele dizem o contrário. Aliás, o Sr. Salgues alega contra a reencarnação objeções especiais, das quais um dia desses faremos objeto de um exame particular. Enquanto esperamos, constatamos um fato: o número de seus partidários cresce sem cessar, ao passo que o dos oponentes diminui. Se tal resultado é devido a nossa influência, atribuem-nos uma muito grande, pois se estende da Europa à América, à Ásia, à África e até à Oceania. Se a opinião contrária é verdadeira, como é que não prepondera? Seria o erro mais poderoso que a verdade?
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Novos Médiuns americanos em Paris
Por muita gente o Sr. Squire apenas era designado como médium americano, um charlatão que há alguns anos percorria cidades e feiras para fazer representações, e que se anunciava como médium americano, posto fosse perfeitamente francês. Eis que nos chegam dois novos, que de médiuns só têm o nome, e dos quais não teríamos falado, porque sua arte é estranha ao nosso assunto, se sua chegada, anunciada com estardalhaço, não tivesse causado uma certa sensação, pela natureza de suas pretensões. Para edificação de nossos leitores e não sermos taxados de parcialidade, transcrevemos textualmente o seu prospecto, de que Paris acaba de ser inundada.
“Divertimentos dos salões parisienses. ─ Novidade, nada mais que novidade!!! ─ Saraus para as famílias e reuniões privadas dadas pelos Médiuns Americanos, Sr. C. Eddwards Girroodd, de Kingstown, (lago Ontário), Alto Canadá, e senhora Júlia Girroodd, apelidada pela imprensa inglesa e americana a Graciosa Sensitiva.
“Um álbum de mais de 200 páginas, cada uma das quais é uma carta de felicitações assinada pelos maiores nomes da França, tanto da nobreza como da magistratura, do exército e da literatura, quanto por dezesseis arcebispos e bispos da França, e por um grande número de eclesiásticos de alta distinção, se acha à disposição das pessoas que, querendo dar um sarau, desejem previamente assegurarse do bom-gosto, da riqueza e da novidade de suas experiências.
“O Sr. e a Sra. Girroodd, os únicos da França a fazerem experiências, passaram apenas três meses em Paris e realizaram quarenta e duas sessões nos primeiros salões da Capital e nas Tulherias, 12 de maio de 1861, bem como em casa de vários membros da Família Imperial.
“Colocaram imediatamente suas experiências muito acima de tudo que até hoje tinha sido visto como Divertimentos de Saraus.
“Sua prestidigitação, ao contrário do costume dos senhores físicos, não exige o menor preparativo ou arranjo particular, e os artistas operam facilmente no meio de um círculo de espectadores atentos, sem temer um só minuto verem destruída a ilusão.
“As mágicas não passam de fraquíssima parte de seus variados talentos. O Mundo dos Espíritos obedece às suas vozes: Visões ─ Êxtase ─ Fascinação ─ Magnetismo ─ Electro-Biologia ─ Espíritos Batedores ─ Espiritismo, etc., etc., tudo quanto a ciência e o charlatanismo inventaram, que embasbaca os crédulos de nossos dias, até lhes dar uma fé robusta em tudo quanto não passa de charlatanice, onde a gente é comparsa sem o saber. Numa palavra, o Sr. e Sra. Girroodd, depois de se terem mostrado como feiticeiros ─ mas feiticeiros de alta classe ─ sábios como Merlin, o Encantador, demonstrarão, se necessário, os segredos de sua ciência.
“A fé cristã só terá a ganhar vendo claramente que tudo quanto ela não ensinou não passa de brilhante charlatanismo.
“Para as pequenas reuniões ou saraus para crianças, o Sr. Girroodd contratou, para todo o inverno, os mais hábeis físicos da Capital e um ventríloquo cognominado O Homem das Bonecas Falantes, que darão sessões a preços reduzidos.”
Esse senhor e essa senhora, como se vê, não têm nada menos que a pretensão de matar o Espiritismo, e se arvoram em defensores da fé cristã, sem dúvida muito surpreendida por encontrar a prestidigitação ao seu serviço. Isso, porém, pode aumentar uma certa clientela.
Eles se dizem médiuns e não têm o cuidado de omitir o título de americanos, passaporte indispensável, como os nomes terminados em i para os músicos, e isso para provar que não existem médiuns, visto que ─ dizem eles ─ podem reproduzir, com ajuda da habilidade, da mecânica e de meios que lhes são particulares, tudo quanto fazem os médiuns.
Isto prova uma coisa: é que tudo pode ser imitado. A ilusão é uma questão de habilidade. Mas, porque uma coisa pode ser imitada, deduz-se que ela não exista? Para enganar, a prestidigitação imitou a lucidez sonambúlica. Deve concluir-se daí que não haja sonâmbulos? Fizeram cópias de Rafael que foram tomadas como originais. Porventura Rafael não existiu? O Sr. Robert-Houdin muda a água em vinho; de um chapéu não preparado faz saírem milhares de objetos, que enchem uma caixa grande. Isso prejulga o milagre das bodas de Caná e a multiplicação dos pães? Entretanto, ele faz ainda melhor do que transformar água em vinho, porque de uma só garrafa faz sair meia dúzia de deliciosos licores diversos.
Todas as manifestações físicas se prestam maravilhosamente à imitação, e são essas que os charlatões exploram. Eles superam em muito os Espíritos, principalmente no caso de transportes, pois que os produzem à vontade e à hora que quiserem, coisa que não conseguem nem os Espíritos nem os melhores médiuns.
Aliás, é preciso fazer justiça àquele cavalheiro e àquela senhora, pois de modo algum eles procuram enganar o público. Eles não se fazem passar pelo que não são. Apresentam-se francamente como hábeis imitadores, no que são mais respeitáveis que aqueles que falsamente se dizem médiuns, e são, mesmo, muito mais respeitáveis que os verdadeiros médiuns que para produzirem mais efeitos e vencerem os concorrentes, juntam o truque à realidade. É certo que por vezes a franqueza é de boa política, pois já está muito gasta a apresentação como prestidigitadores vulgares, mas querer provar, pela escamoteação, que os médiuns são escamoteadores é um toque de novidade que os curiosos pagarão regiamente.
Como dissemos, sua habilidade nada prejulga contra a realidade dos fenômenos. Longe de prejudicá-los, será de grande utilidade. Para começar, será uma trombeta a mais, chamando a atenção e levando a pensar no Espiritismo as pessoas que dele não tinham ouvido falar. Como em toda crítica, quererão ver o pró e o contra. Ora, o resultado da comparação é indiscutível. Utilidade ainda maior é a de prevenir contra a possibilidade de fraudes e subterfúgios dos falsos médiuns. Provando a possibilidade de imitação, aqueles se arriscam a arruinar o seu crédito. Se a sua habilidade pudesse ser nociva, seria à confiança que neles depositam, talvez um pouco levianamente, e aos prodígios que tão facilmente obtêm certos médiuns do outro lado do Atlântico, pois não está dito que o Sr. e Sra. Girroodd tenham o privilégio de seus segredos. Se um dia nos for dado assistir a uma de suas sessões, teremos prazer em relatá-la, para instrução de nossos leitores.
Quando dizemos que tudo pode ser imitado, devemos excetuar as condições realmente normais em que se podem produzir as manifestações espíritas, donde poder dizer-se que todo fenômeno que se afasta dessas condições deve ser tomado como suspeito. Ora, para julgar devidamente uma coisa, é necessário tê-la estudado. As próprias manifestações inteligentes não estão a salvo da charlatanice. Existem aquelas que, por sua natureza e pelas circunstâncias em que se realizam, desafiam a mais consumada habilidade de imitação, como, por exemplo, a evocação de pessoas mortas, revelando, na verdade, particularidades de sua existência, desconhecidas do médium e dos assistentes e, melhor ainda, essas dissertações de muitas páginas, escritas de um jato, sem rasuras, com rapidez, eloquência, correção, profundidade, sabedoria e sublimidade de ideias, sobre assuntos dados, fora do conhecimento e da capacidade do médium e que este nem compreende.
Para executar tais esforços fora necessário um gênio universal. Ora, os gênios universais são raros e, aliás, não dão espetáculos. É, entretanto, o que se vê todos os dias, não por um indivíduo privilegiado, mas por milhares de indivíduos de todas as idades, sexos, condição social, grau de instrução e cuja honorabilidade e desinteresse absoluto são a melhor garantia de sinceridade, pois o charlatanismo não dá nada de graça.
Se o Sr. e Sra. Girroodd quisessem aceitar uma disputa, seria nesse terreno que os chamaríamos, deixando-lhes de boa vontade as manifestações físicas.
NOTA: Pessoa que se diz bem informada assegura-nos que Eddwards Giroodd deve traduzir-se por Edouard Girod e Kingstown, lago Ontário, Alto Canadá, por Saint-Flour, CantaI (França).
Subscrição em favor dos operários lioneses
Uma carta de Lyon, dirigida ao Sr. Allan Kardec, informa que um espírita anônimo acaba de enviar, diretamente e para tal fim, a soma de 500 francos. Que esse generoso benfeitor, cujo incógnito respeitaremos, receba aqui o agradecimento de todos os membros da Sociedade.
Um Espírito que se dá a conhecer sob o nome característico e gracioso de Cárita, e cuja missão parece ser a de provocar a beneficência em auxílio da desgraça, ditou, a respeito, a epístola que se segue, que nos foi enviada de Lyon. Como nós, os leitores certamente a colocarão no número das mais belas produções de além-túmulo. Possa ela despertar a simpatia de todos os espíritas por seus irmãos sofredores! Todas as comunicações de Cárita são marcadas pelo mesmo cunho de bondade e de simplicidade. Evocada na Sociedade de Paris, disse ter sido Santa Irene, Imperatriz.
Aos espíritas parisienses que mandaram 500 francos para os pobres de Lyon, obrigada!
“Obrigada a vós, cujo coração generoso soube compreender nosso apelo, e que viestes em auxílio aos irmãos infelizes. Obrigada! pois a vossa oferta vai cicatrizar muitas feridas e aliviar muitas dores. Obrigada! pois soubestes adivinhar que esse fruto de ouro que enviastes momentaneamente apaziguará a fome e aquecerá lareiras apagadas há muito tempo.
“Obrigada! sobretudo porque soubestes disfarçar a boa ação sob a capa do anonimato. Mas se ocultastes o generoso pensamento de serdes úteis aos vossos semelhantes, como a violeta que se oculta sob a folhagem, há um juiz, um senhor para o qual vossos corações não têm segredos e que sabe de onde partiu esse orvalho beneficente que veio refrescar mais de uma fronte abrasada, e afastar a miséria tão temida pelas mães de família.
“Deus, que tudo vê, conhece o segredo do anônimo e encarregar-se-á de recompensar os que tiveram a inspiração de socorrer as pobres vítimas de circunstâncias independentes de sua vontade. Deus, meus amigos, gosta desse incenso de vossos corações que, sabendo sentir a dor alheia, também sabe como se pratica a caridade. Ele aprecia, sobretudo, esse devotamento e essa abnegação que se encolhe ante um agradecimento pomposo, preferindo abrigar a sua modéstia sob simples iniciais. Mas ele ligou a todas as bênçãos que o vosso socorro vai atrair, o nome do benfeitor porque, como todos sabeis, esses transportes de alegria experimentados pelos corações socorridos sobem para Deus, e como ele vê que esses eflúvios, partidos da gratidão, são o resultado dos vossos benefícios, anota no grande livro do Espírito generoso que os fez nascer, a recompensa que lhe cabe.
“Se vos fosse dado ouvir estas suaves emoções, estas tímidas notas de simpatia que deixam escapar esses infelizes à vista da pequena moeda, maná celeste que cai em seu pobre tugúrio; se vos fosse dado ouvir os gritos infantis do pequenino ser que não compreende que o pão está assegurado por alguns dias, seríeis muito felizes e diríeis: ‘A caridade é suave e merece ser praticada’. É que, como podeis ver, pouca coisa é necessária para transformar lágrimas em alegria, sobretudo em casa do trabalhador que não está habituado a visitas frequentes da felicidade. Se essa pobre formiga que recolhe migalha a migalha o pão cotidiano encontrar em seu caminho um pão inteiro no momento em que perdia a esperança de dar à família o pão diário, então essa fortuna lhe parece tão incompreensível que, não encontrando expressões para a sua felicidade, deixa escapar algumas palavras soltas, às quais se seguem lágrimas de ternura.
“Socorrei, pois, os pobres, meus amigos, esses operários que não têm como última esperança senão a morte no hospital ou a mendicidade numa esquina.
“Socorrei-os tanto quanto puderdes, para que, quando Deus vos reunir, seguindo a extensa avenida que leva ao grande portal, em cujo frontispício estão gravadas as palavras Amor e Caridade, Deus, reunindo os benfeitores e os beneficiados vos diga a todos: ‘Soubestes dar. Fostes felizes em receber. Vamos, entrai! Que a caridade que vos guiou vos introduza no mundo radioso que reservo aos que têm como divisa: ‘Amai-vos uns aos outros.’”
OBSERVAÇÃO: A quem farão acreditar que foi o demônio quem ditou tais palavras? Em todo o caso, se for o demônio quem impele à caridade, nada se perde em fazê-la.
Ensinos e dissertações espíritas
A féSou grande e forte. Aquele que me possui não teme o ferro nem o fogo, pois ele é à prova de todos os sofrimentos físicos e morais. Irradio sobre vós com um facho cujos jatos brilhantes se refletem no fundo dos vossos corações e vos comunico a força e a vida. Entre vós, dizem que transporto montanhas, mas eu vos digo: venho erguer o mundo, porque o Espiritismo é a alavanca que me deve ajudar. Uni-vos a mim. Eu venho convidar-vos. Eu sou a Fé.
Eu sou a Fé! Moro com a Esperança, a Caridade e o Amor no mundo dos Espíritos Puros. Muitas vezes deixei as regiões etéreas e vim à Terra para vos regenerar, dando-vos a vida do Espírito. Mas, fora os mártires dos primeiros tempos do Cristianismo e alguns fervorosos sacrifícios, de tempos em tempos, ao progresso da Ciência, das letras, da indústria e da liberdade, não encontrei entre os homens senão indiferença e frieza, e tristemente retomei o meu voo para o Céu. Julgais-me em vosso meio, mas vos enganais, porque a Fé sem obras é um simulacro de Fé. A verdadeira Fé é vida e ação.
Antes da revelação do Espiritismo, a vida era estéril; era uma árvore ressequida pelos raios e que nenhum fruto produzia. Reconhecem-me por meus atos: eu ilumino as inteligências; aqueço e fortaleço os corações; afasto para bem longe as influências enganadoras e vos conduzo para Deus pela perfeição do espírito e do coração. Vinde colocar-vos sob minha bandeira. Eu sou poderosa e forte. Eu sou a Fé.
Sou a Fé, e o meu reino começa entre os homens, reino pacífico que os tornará felizes no presente e na eternidade. A aurora do meu aparecimento entre vós é pura e serena; seu sol será resplendente e seu ocaso virá docemente embalar a Humanidade nos braços de eternas felicidades. Espiritismo! Derrama sobre os homens o teu batismo regenerador. Eu lhes faço um apelo supremo. Eu sou a Fé.
GEORGES, bispo de Périgueux
A esperança
Sou eu que canto através do rouxinol e que solto aos ecos das florestas essas notas lamentosas e cadenciadas que vos fazem sonhar com o Céu. Sou eu que inspiro à andorinha o desejo de aquecer os seus amores ao abrigo de vossas moradas; que brinco na brisa ligeira que acaricia os vossos cabelos; que espalho aos vossos pés o suave perfume das flores dos vossos canteiros, e quase não pensais nesta amiga tão devotada! Não a repilais: é a Esperança!
Tomo todas as formas para me aproximar de vós: Sou a estrela que brilha no azul; o quente raio de sol que vos vivifica; embalo as vossas noites com sonhos ridentes; expulso para longe as negras preocupações e os pensamentos sombrios; guio vossos passos para o caminho da virtude; acompanho-vos nas visitas aos pobres, aos aflitos, aos moribundos, e vos inspiro palavras afetuosas e consoladoras. Não me repilais. Eu sou a Esperança.
Eu sou a Esperança! Sou eu que, no inverno, faço crescer na casca dos carvalhos o musgo espesso com que os passarinhos fazem seus ninhos; sou eu que, na primavera, coroo a macieira e a amendoeira de flores rosa e brancas e as espalho sobre a Terra como um tapete celeste, que faz aspirar a mundos felizes. Estou convosco principalmente quando sois pobres e sofredores, e minha voz ressoa incessantemente aos vossos ouvidos. Não me repilais. Eu sou a Esperança.
Não me repilais, porque o anjo do desespero me faz uma guerra encarniçada e se esgota em vãos esforços para junto de vós tomar o meu lugar. Nem sempre sou a mais forte, e quando ele consegue me afastar, vos envolve com suas asas fúnebres; desvia os vossos pensamentos de Deus e vos conduz ao suicídio. Uni-vos a mim para afastar sua funesta influência, e deixai-vos embalar docemente em meus braços, porque eu sou a Esperança.
FELÍCIA, filha da médium.
A caridade
Segui-me. Conheço todos os infortúnios, todas as dores, todos os sofrimentos, todas as aflições que assediam a Humanidade. Sou a mãe dos órfãos, a filha dos velhos, a protetora e suporte das viúvas. Curo as chagas infectas; trato de todos os doentes; visto, alimento e abrigo os que nada têm; subo aos mais humildes tugúrios e às mais miseráveis mansardas; bato à porta dos ricos e poderosos porque onde quer que exista uma criatura humana, há, sob a máscara da felicidade, dores amargas e cruciantes. Oh! Como é grande minha tarefa! Não poderei cumpri-la se não vierdes em meu auxílio. Vinde a mim! Eu sou a Caridade.
Não tenho preferência por ninguém. Jamais digo aos que de mim necessitam: “Tenho os meus pobres; procurai alhures.” Oh! falsa caridade, quanto mal fazes! Amigos, nós nos devemos a todos. Crede-me. Não recuseis assistência a ninguém. Socorrei-vos uns aos outros com bastante desinteresse para não exigirdes reconhecimento da parte dos que tiverdes socorrido. A paz do coração e daconsciência é a suave recompensa de minhas obras. Eu sou a verdadeira Caridade.
Ninguém sabe na Terra o número e a natureza de meus benefícios.
Só a falsa caridade fere e humilha aqueles a quem beneficia. Evitai esse funesto desvio. As ações desse gênero não têm mérito perante Deus e atraem a sua cólera. Só ele deve saber e conhecer os generosos impulsos de vossos corações, quando vos tornais os dispensadores de seus benefícios. Guardai-vos, pois, amigos, de dar publicidade à prática da assistência mútua. Não mais lhe deis o nome de esmola. Crede em mim. Eu sou a Caridade.
Tenho tantos infortúnios a aliviar que por vezes tenho os seios e as mãos vazios. Venho dizer-vos que espero em vós. O Espiritismo tem como divisa Amor e Caridade, e todos os verdadeiros espíritas quererão, no futuro, conformar-se a esse sublime preceito ensinado pelo Cristo há dezoito séculos. Segui-me, pois, irmãos, e eu vos conduzirei ao Reino de Deus, nosso pai. Eu sou a Caridade.
ADOLFO, bispo de Argel.
As instruções dadas por nossos guias sobre as três comunicações acima
Felizes por ver Espíritos tão elevados vos dando, com frequência, conselhos que vos devem guiar em vossos trabalhos espirituais, não é menor nossa suave e pura alegria, quando vimos ajudar-vos na tarefa do vosso apostolado espírita.
Podeis, pois, atribuir ao Espírito de Georges a comunicação sobre a Fé; sobre a Esperança, a Felícia: aí encontrareis o estilo poético que tinha em vida; e a da Caridade ao senhor Dupuch, bispo de Argel, que na Terra foi um de seus fervorosos apóstolos.
Ainda teremos que tratar da caridade sob outro ponto de vista. Fá-lo-emos dentro de alguns dias.
VOSSOS GUIAS
Esquecimento das injúrias (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sra. Costel)
Diariamente os homens imploram a Deus o perdão, que desce sobre eles como benéfico orvalho, mas seus corações esquecem essa palavra sem cessar repetida na prece. Em verdade vos digo: o fel interno corrompe a alma. É a pedra enorme que a fixa ao solo e retarda a sua elevação. Quando fordes censurados, entrai em vós mesmos; examinai vosso pecado interior, aquele que o mundo ignora; medi a sua profundidade e curai a vossa vaidade, pelo conhecimento de vossa miséria. Se, mais grave, a ofensa atingir o coração, lamentai o infeliz que a cometeu, como lamentaríeis o ferido cuja chaga aberta verte sangue. A piedade é devida àquele que aniquila seu ser futuro.
No Jardim das Oliveiras, Jesus conheceu a dor humana, mas ignorou sempre a aspereza do orgulho e a pequenez da vaidade. Ele encarnou-se para mostrar aos homens o tipo da beleza moral que lhes devia servir de modelo. Não vos afasteis dela jamais. Modelai as vossas almas como a cera mole e fazei que a vossa argila transformada se transforme num mármore imperecível que Deus, o grande escultor, possa assinar.
LÁZARO
Sobre os instintos (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sra. Costel)
Primitivamente destinado a desenvolver no homem animal o cuidado de sua conservação e de seu bem-estar, o instinto é a única origem do mal, porque, persistindo mais violento e mais áspero em certas naturezas, ele as impele a se apoderarem do que desejam ou a concentrar o que possuem.
O instinto a que os animais obedecem cegamente, e que é a sua própria virtude, deve ser incessantemente combatido pelo homem que quer elevar-se e substituir o grosseiro utensílio da necessidade pelas armas finamente cinzeladas da inteligência.
Pensas, porém, que nem sempre o instinto é mau e que, por vezes, a Humanidade lhe deve sublimes inspirações, como, por exemplo, na maternidade e em certos atos de dedicação, nos quais com presteza e segurança substitui a reflexão. Minha filha, tua objeção é precisamente a causa do erro em que caem os homens prontos a desconhecerem a verdade sempre absoluta nas suas consequências.
Sejam quais forem os bons resultados de uma causa má, os exemplos jamais devem levar a concluir contra as premissas estabelecidas pela razão. O instinto é mau, porque é puramente humano e a Humanidade não deve pensar senão em despojar-se, em deixar a carne para elevar-se ao Espírito. Se o mal caminha paralelamente ao bem, é que o seu princípio muitas vezes tem resultados opostos a si mesmo, que o fazem desconhecido do homem leviano e arrastado pela sensação.
Nada de verdadeiramente bom pode emanar do instinto. Um impulso sublime não é devotamento, assim como uma inspiração isolada não é gênio. O verdadeiro progresso da Humanidade é a sua luta e o seu triunfo contra a essência mesma de seu ser. Jesus foi enviado à Terra para o provar humanamente. Ele pôs a descoberto a verdade, bela fonte escondida nas areias da ignorância. Não perturbeis mais a limpidez da linfa divina pelos compostos do erro. E, crede, os homens que não são bons e devotados senão instintivamente, são maus, porque sofrem uma cega dominação que de repente pode precipitá-los no abismo.
LÁZARO
Meditações filosóficas e religiosas - Ditadas pelo Espírito de Lamennais (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sra. A Didier)
A cruzFilantropos, não inventeis a filantropia, pois só existe a caridade. Filósofos, não inventeis uma sabedoria, pois só existe uma. Deístas, não inventeis um Deus, porque só existe um. Poetas, não perturbeis o coração do homem.
Filantropos, quereis quebrar as cadeias materiais que mantêm cativa a Humanidade; filósofos, elevais panteões; poetas, idealizais o fanatismo. Para trás! Sois deste mundo, e o Cristo disse: “Meu reino não é deste mundo.”
Oh! Sois demasiadamente deste mundo de lama para compreenderdes essas sublimes palavras. E se algum juiz suficientemente poderoso vos pudesse perguntar:
─ Sois filhos de Deus? ─ vossa vontade morreria no fundo da garganta e não poderíeis responder como o Cristo em face da Humanidade:
─ Vós o dissestes.
─ Vós todos sois deuses ─ disse o Cristo, quando a língua de fogo desce sobre as vossas cabeças e penetra os vossos corações; vós todos sois deuses, quando percorreis a Terra em nome da Caridade, mas sois filhos do mundo quando contemplais os sofrimentos atuais da Humanidade e não pensais em seu futuro divino.
Homem! Que aquela palavra seja lida por teu coração e não por teus olhos de carne. O Cristo não erigiu um panteão. Ele ergueu uma cruz!
Bem aventurados os pobres de Espíritos
Contudo, como dizia Gérard de Nerval ultimamente[1], a inteligência desconhecida na Terra terá um grande mérito perante Deus. Com efeito, o homem de inteligência poderosa, lutando contra todas as circunstâncias infelizes que vêm assaltá-lo, deve regozijar-se com estas palavras: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”. Isso não se deve entender unicamente na ordem material, mas também nas manifestações do Espírito e nas obras da inteligência humana. As qualidades de coração são meritórias, porque as circunstâncias que as podem impedir são muito pequenas, muito raras e muito fúteis. A caridade deve brilhar por toda parte, apesar de tudo e para todos, como brilha o Sol para todo o mundo. O homem pode impedir a inteligência do seu próximo de se manifestar, mas nada pode sobre o coração. As lutas contra a adversidade, as angústias da dor, podem paralisar os impulsos do gênio, mas não podem parar os da caridade.
[1] Alusão a uma comunicação de Gérard de Nerval.
A escravidão
Tocamos aqui uma das questões mais graves e terríveis que agitam a alma humana e a lançam na incerteza. Está o negro à altura dos povos da Europa e a prudência humana, ou antes, a justiça humana deve mostrar-lhe a emancipação como o meio mais seguro de chegar ao progresso da civilização? Nessa questão os filantropos mostram o Evangelho e dizem: “Jesus falou de escravos?” Não, mas Jesus falou da resignação e disse estas sublimes palavras: “Meu reino não é deste mundo”.
John Brown, quando eu contemplo teu cadáver na forca, sinto-me tomado de profunda piedade e de admiração entusiasta, mas a razão, essa brutal razão que incessantemente nos arrasta ao porquê, nos leva a nos perguntarmos a nós mesmos: “Que teríeis feito após a vitória?”.
ALLAN KARDEC
Março
Aos nossos correspondentesSenhores,
Conheceis o provérbio: “Ninguém é obrigado a fazer mais do que pode”. É escudado nesse princípio que venho reclamar junto a vós. Há seis meses, com a melhor vontade do mundo, é-me impossível pôr em dia a minha correspondência, que se acumula além de todas as previsões. Estou, assim, na situação de um devedor que procura um arranjo com os credores, sob pena de me declarar falido. À medida que são pagas algumas dívidas, chegam novas e mais numerosas obrigações, posto o atrasado cresça em vez de diminuir e, no momento, já me encontre ante um passivo de mais de duzentas cartas. Ora, sendo a média diária de dez, não vejo meio de me liberar, se me não concederdes um sursis ilimitado.
Longe de mim lamentar-me pelo número de cartas que recebo, pois isto é uma prova irrecusável da extensão da doutrina e em sua maioria exprimem sentimentos que me sensibilizam profundamente e constituem um arquivo de preço inestimável. Aliás, muitas encerram ensinamentos que jamais ficarão perdidos e que, mais cedo ou mais tarde, serão utilizados conforme as circunstâncias, pois são imediatamente classificados por assunto.
Só a correspondência absorveria e ultrapassaria todo o meu tempo, entretanto ela apenas constituiu a quarta parte de minhas obrigações para com a tarefa que empreendi e cujo desenvolvimento eu estava longe de prever no início de minha carreira espírita. Assim, várias publicações importantes se acham paradas por falta de tempo para nelas trabalhar e dos meus guias espirituais acabo de receber um convite premente para me ocupar das causas urgentes sem demora, deixando de lado tudo o mais. Forçoso me é, pois, a menos que falhe na realização da obra tão felizmente iniciada, operar uma espécie de liquidação epistolar do passado e limi tar-me, para o futuro, às respostas estritamente necessárias e pedir, coletivamente, aos meus distintos correspondentes, aceitem a expressão de minha viva e sincera gratidão pelos testemunhos de simpatia que me dão.
Entre as cartas que me são dirigidas, muitas encenam pedidos de evocação ou de controle de evocações feitas alhures. Muitas vezes pedem informações sobre aptidão para a mediunidade, ou sobre coisas de interesse material. Eu lembraria o que já disse alhures sobre a dificuldade, e mesmo sobre os inconvenientes dessas espécies de evocações feitas na ausência das pessoas interessadas, únicas aptas a verificar a sua exatidão e fazer as perguntas necessárias, ao que se deve ajuntar que os Espíritos se comunicam mais facilmente e com mais benevolência aos seus afeiçoados do que a estranhos que lhes são indiferentes. Por isso, de lado toda consideração relativa às minhas ocupações, não posso atender aos pedidos dessa natureza senão em circunstâncias muito excepcionais e, em todo o caso, jamais no que concerne a interesses materiais. Muitas vezes seriam evitadas muitas perguntas se os interessados tivessem lido atentamente as instruções a respeito em O Livro dos Médiuns, capítulo 26.
Por outro lado, as evocações pessoais não podem ser feitas nas sessões da Sociedade senão quando ofereçam assunto de estudo instrutivo e de interesse geral. Fora disso só se podem fazer em sessões especiais. Ora, para satisfazer a todos os pedidos não bastaria uma sessão diária de duas horas. Além do mais, há que considerar que todos os médiuns, sem exceção, que nos dão o seu concurso, o fazem por mera gentileza e não admitem outras condições, e como eles têm as suas próprias obrigações, nem sempre estão disponíveis, por maior que seja a boa vontade. Compreendo todo o interesse que cada um liga às questões que lhe dizem respeito e sentir-me-ia feliz se pudesse responder a todos. Mas se levar em conta que minha posição me põe em contato com milhares de pessoas, compreender-se-á minha impossibilidade de fazê-lo.
É preciso imaginar que certas evocações não exigem menos de cinco ou seis horas de trabalho, tanto para fazê-las quanto para transcrevê-las e passar a limpo, e que todas as que me foram pedidas formariam um volume como O Livro dos Espíritos. Aliás, os médiuns se multiplicam diariamente e é raro não encontrar um na família ou entre os conhecidos ─ quando não se é em pessoa ─ o que é sempre preferível para as coisas íntimas. É uma questão de experimentar em boas condições, das quais a primeira é a de se compenetrar bem, antes de qualquer tentativa, das instruções sobre a prática do Espiritismo, se se quiserem evitar as decepções.
À medida que a doutrina cresce, minhas relações se multiplicam e aumentam os deveres de minha posição, o que me obriga a negligenciar um pouco os detalhes em favor dos interesses gerais, porque o tempo e as forças do homem têm um limite e eu confesso que as minhas, de algum tempo para cá, me vão faltando e não posso ter o repouso que por vezes me seria tanto mais necessário quanto sou só para dar conta de tudo.
Rogo-vos, senhores, aceiteis a renovada confirmação de meu afetuoso devotamento.
ALLAN KARDEC
Os Espíritos e o brasão
Dizem que ela tenderia a romper os laços da família, multiplicando-os, pois aquele que concentrasse sua afeição sobre o pai deveria reparti-la por tantos pais quantas as reencarnações. Como, então, uma vez no mundo dos Espíritos, se reconhecer no meio dessa progenitura? Por outro lado, em que se torna a filiação dos antepassados, se aquele que se julga descendente em linha reta de Hugo Capeto ou de Godofredo de Bulhões viveu várias vezes? Se, depois de ter sido um grão senhor, pode tornar-se um plebeu? Eis, assim, toda uma linhagem derrubada!
Para começar responderemos que de duas uma: ou isso é ou não é. Se for, todas as recriminações pessoais não impedirão que seja, porque, para regular a ordem das coisas, Deus não pede conselho a este ou àquele, do contrário cada um quereria que o mundo fosse regido à sua vontade. Quanto à multiplicidade dos laços de família, diremos que certos pais não têm senão um filho, enquanto outros têm dez, doze e mais. Já se pensou em acusar Deus de obrigá-los a dividir a afeição em tantas partes? E esses filhos, que por sua vez têm filhos, tudo isso não forma uma família numerosa da qual avô ou bisavô se vangloria, em vez de lamentar-se? Vós, que fazeis vossa genealogia remontar a cinco ou seis séculos, uma vez no mundo dos Espíritos, não devereis partilhar a vossa afeição entre todos os vossos ascendentes? Se vos atribuís uma dúzia de avós, então tereis o duplo ou o triplo, eis tudo! Mas tendes uma ideia muito mesquinha dos vossos sentimentos afetuosos, pois temeis que não bastem para querer a várias pessoas. Tranquilizai-vos, porém. Vou provar que com a reencarnação vossa afeição será menos dividida do que se não existisse. Com efeito, suponhamos que na vossa genealogia contásseis cinquenta avós, tanto ascendentes diretos quanto colaterais, o que é pouco, se remontardes às cruzadas. Pela reencarnação pode ser que alguns dentre eles voltem várias vezes, e que assim, em lugar de cinquenta Espíritos que contais na Terra, só encontreis a metade no outro mundo.
Passemos à questão de filiação. Com o vosso sistema chegais a um resultado diferente daquele que esperais. Se não houver preexistência, anterioridade da alma, a alma ainda não viveu. Nesse estado de coisas, não tem nenhuma relação com nenhum dos vossos antepassados. Suponhamos que descendais em linha reta de Carlos Magno. O que é que há de comum entre vós e ele? O que foi que vos transmitiu intelectual e moralmente? Nada, absolutamente nada. Por que vos apegais a ele? Por uma série de corpos que apodreceram todos, destruídos e dispersados? Não há nisso por que vos sentirdes orgulhosos. Com a preexistência da alma, ao contrário, podeis ter tido com os vossos antepassados relações reais, sérias e mais lisonjeiras para o amor-próprio. Portanto, sem a reencarnação existe apenas um parentesco corporal, pela transmissão de moléculas orgânicas da mesma natureza que a dos cavalos puro-sangue. Com a reencarnação há um parentesco espiritual. Qual dos dois é melhor?
Certamente objetareis que com a reencarnação um Espírito estranho pode infiltrar-se na vossa linhagem e que, em vez de nela contar apenas gentis-homens, pode-se aí encontrar um sapateiro. É perfeitamente certo, mas isso não quer dizer nada. São Pedro era um pobre pescador. Ele não seria de uma casa suficientemente digna que nos fizesse corar por tê-lo em nossa família?
Depois, entre seus antepassados de nomes brilhantes, tiveram todos uma conduta edificante, a nosso ver a única coisa de que, até certo ponto, nos poderíamos honrar, posto o seu mérito nada tenha com o nosso? Que se perscrute a vida particular desses paladinos, desses grandes barões que roubavam sem escrúpulos os transeuntes e que, em nossos dias, seriam simplesmente arrastados à barra do tribunal por seus grandes feitos; de certos grão senhores para quem a vida de um vilão não valia uma peça de caça, pois faziam enforcar um homem por causa de um coelho. Tudo isso eram pecadilhos que não manchavam brasões. Mas fazer um casamento desigual; introduzir na família um sangue plebeu era um crime imperdoável. Ora, por mais que se faça, quando soar a hora da partida ─ e soa para os grandes como para os pequenos ─ terão que deixar na Terra as roupas bordadas e os pergaminhos de nada servirão diante do juiz supremo, que pronuncia esta sentença terrível: Aquele que se exaltar será humilhado!
Se bastasse descender de qualquer grande homem para ter seu lugar marcado previamente no Céu, a gente o compraria barato, pois custaria apenas o mérito alheio. A reencarnação dá uma nobreza mais meritória ─ a única aceita por Deus ─ a de haver pessoalmente animado uma série de homens de bem. Feliz aquele que puder depor aos pés do Eterno o tributo dos serviços feitos à Humanidade em cada uma de suas existências, porque a soma de seus méritos será proporcional ao número de suas existências. Mas àquele que apenas puder prevalecer-se da ilustração de seus antepassados, perguntará Deus: “Por que vós mesmo não vos ilustrastes?”.
Um outro sistema poderia, aparentemente, conciliar as exigências do amorpróprio com o princípio da não reencarnação. É aquele pelo qual o pai não transmitiria ao filho apenas o corpo, mas também uma porção da alma, de modo que, se descendêsseis de Carlos Magno, vossa alma poderia ter seu tronco na dele. Muito bem. Vejamos, porém, a que consequência chegamos. Em virtude de tal sistema, a alma de Carlos Magno teria o seu tronco na de seu pai e, assim, elo por elo, chegaríamos a Adão. Se a alma de Adão é o tronco de todas as almas do gênero humano, as quais transmitem aos sucessores uma porção de si própria, as almas atuais seriam um produto de fracionamento tal que ultrapassaria todas as subdivisões homeopáticas. Disso resultaria que a alma do pai comum deveria ser mais completa e mais inteira que a dos descendentes. Resultaria, ainda, que Deus teria criado apenas uma alma, que se subdividiria ao infinito e assim cada um de nós não seria uma criação direta de Deus.
Aliás, tal sistema deixaria imenso problema a ser resolvido: o das aptidões especiais. Se o pai transmitisse a seu filho os atributos de sua alma, necessariamente transmitiria suas virtudes e seus vícios, seus talentos e sua inépcia, como lhe transmite certas enfermidades congênitas. Como, então, explicar por que homens virtuosos ou de gênio têm filhos maus ou cretinos e vice-versa? Por que uma linhagem seria misturada de bons e de maus? Dizei, ao contrário, que cada alma é individual; que tem existência própria e independente; que progride em virtude de seu livre-arbítrio, por uma série de existências corporais, em cada uma das quais adquire algo de bom e deixa algo de mau, até que tenha atingido a perfeição, e tudo se explica, tudo se acomoda à razão, à justiça de Deus, mesmo em proveito do amor-próprio.
O Sr. Salgues, de Antuérpia, de quem falamos no número passado, não é partidário da reencarnação. Depois do aparecimento de O Livro dos Espíritos ele escreveu-nos uma longa carta, na qual combatia essa doutrina com argumentos baseados na sua incompatibilidade com os laços de família. Nessa carta, datada de 18 de setembro de 1857, dá-nos a sua genealogia, que remonta aos carolíngios e pergunta em que se torna essa gloriosa filiação, com a mistura de Espíritos pela reencarnação. Dela extraímos a seguinte passagem:
“Mas para que serviriam os quadros genealógicos? Tenho o meu completo, regular: de um lado, desde os antepassados de Carlos Magno, e do outro, desde a filha do emir Muza, um dos descendentes abassidas de Maomé, décima geração por seu casamento com Garcia, príncipe de Navarra, pai, com ela, de Garcia Ximenes, rei de Navarra; e, enfim, essa genealogia continuou, por meio de alianças, por soberanos de quase todas as cortes da Europa, até a época de Afonso VI, rei de Castela, depois nas casas de Comminges, de Lascaris Vintimille, de Montmorency, de Turenne e finalmente dos condes e senhores Pelhasse de Salgues, no Languedoc.
“Tudo isto se pode verificar na Arte de verificar as datas, nos Beneditinos de Saint-Maur, no Dicionário da nobreza da França, no Armorial, no Padre Anselmo, Noreri, etc. Mas se não nos ligamos aos nossos pais senão pela matéria carnal que recebeu o nosso Espírito, não há em toda parte lacunas e soluções de continuidade? É um caminho traçado na areia, que se perde em milhares de direções.
Então, que nos seja permitido crer que se o Espírito não se transmite, a alma é para o homem o que o aroma é para a flor. Ora, Swedenborg não diz nos Arcanos que nada se perde na Natureza, e que o aroma das flores reproduz novas flores em outras regiões, que não aquela de onde saiu? É, pois, pela alma, que não é Espírito, que talvez existisse uma cadeia semiespiritual das gerações. Se tivesse contentado ao meu Espírito saltar oito ou dez gerações de vez em quando, onde poderia reconhecer meus antepassados?”
Como se vê, o Sr. Salgues não se apega senão à procedência do corpo. Como, porém, conciliar as relações de Espírito a Espírito com a não preexistência da alma? Se houvesse entre eles, na filiação, relações necessárias, como o descendente de tantos soberanos seria hoje um simples proprietário anjuvino? Aos olhos do mundo não é uma regressão? Não pomos em dúvida a autenticidade de sua genealogia, e o felicitamos por ela, desde que isso lhe dá prazer, mas diremos que o prezamos mais por suas virtudes pessoais do que pelas dos antepassados.
A autoridade de Swedenborg é muito contestável, quando atribui ao aroma a reprodução das flores. Esse óleo essencial, volátil, que lhe dá o aroma, jamais teve a faculdade reprodutora, que reside unicamente no pólen. Falta, portanto, justeza à comparação, pois se a alma apenas influencia, com seu perfume, a alma que a sucede, não a cria. Contudo, deveria transmitir-lhe suas próprias qualidades e, em tal hipótese, não vemos por que o descendente de Carlos Magno não teria enchido o mundo com o brilho de suas ações, enquanto que Napoleão se apoiaria sobre uma alma vulgar. Diga-se, no entanto, que Napoleão descende de Carlos Magno, ou melhor, que ele foi Carlos Magno, que veio no século dezenove continuar a obra começada no oitavo, e a gente compreenderá. Mas, com o princípio da unicidade da existência, nada liga Carlos Magno aos seus descendentes, a não ser esse aroma, transmitido pouco a pouco sobre almas não criadas. Então, como explicar por que, entre seus descendentes, houve tantos homens nulos e indignos, e por que Napoleão é um gênio muito maior do que seus obscuros antepassados?
Faça-se o que se fizer, sem a reencarnação, a gente se bate, a cada passo, contra dificuldades insolúveis, que só a preexistência da alma resolve de maneira ao mesmo tempo simples, lógica e completa, porque dá a razão de tudo.
Outra questão. Um fato conhecido é que as famílias se abastardam e degeneram quando as alianças não saem da linha direta. Dá-se nas raças humanas o mesmo que nas raças animais. Por que, então, a necessidade de cruzamentos? Em que se torna, então, a unidade do tronco? Não há aí uma mistura de Espíritos, uma intrusão de Espíritos estranhos à família?
Um dia abordaremos este grave problema, com todos os desenvolvimentos que o assunto comporta.
Palestras de além-túmulo
Sr. JobardDitado espontâneo (Sociedade espírita de paris, 8 de novembro de 1861 - Médium: Sra. Costel)
Para começar, quero contar minhas impressões no momento da separação de minha alma. Senti um abalo estranho e de repente lembrei-me de meu nascimento, de minha juventude, de minha idade madura. Toda a minha vida avivou-se claramente em minha memória. Experimentava um piedoso desejo de encontrar-me nas regiões reveladas por nossa querida crença. Depois todo esse tumulto se acalmou. Eu estava livre e meu corpo jazia inerte.
Ah! meus caros amigos, que emoção desvencilhar-se do peso do corpo! Que encantamento abarcar o espaço! Não creiais, porém, que de repente me tenha tornado um eleito do Senhor. Não. Estou entre os Espíritos que, tendo aprendido pouco, muito devem ainda aprender. Não demorei a me lembrar de vós, meus irmãos no exílio e, vo-lo asseguro, toda a minha simpatia, todos os meus votos vos envolveram. Tive logo o poder de me comunicar e tê-lo-ia feito por esta médium que receia ser enganada. Mas que ela sossegue, porque nós a amamos.
Quereis saber quais os Espíritos que me receberam? Quais as minhas impressões? Meus amigos foram todos os que nós evocamos; todos os irmãos que participaram dos nossos trabalhos. Vi o esplendor, mas não posso descrevê-lo. Apliquei-me em distinguir o que era verdadeiro nas comunicações, pronto a corrigir todas as asserções errôneas; enfim, pronto para ser o cavaleiro da verdade no outro mundo, como fui no vosso. Assim, falaremos muito, e isto não passa de um preâmbulo para mostrar à cara médium meu desejo de ser evocado por ela e a vós minha boa vontade em vir responder às perguntas que me ireis dirigir.
Jobard
Palestra
Subscrição para um monumento ao Sr. Jobard
Interrogado sobre o que pensava, o Sr. Jobard respondeu:
“Certamente. Mas eu refleti: Quereis saber se gosto de estátuas? Para começar, dai o vosso dinheiro aos infelizes, e se por acaso nos bolsos dos vossos coletes tiverem ficado algumas moedas de 5 francos, mandai erigir uma estátua. Isso sempre dará para um artista viver.”
Em consequência, a Sociedade receberá os donativos que para tanto lhe forem feitos e depositará as quantias na caixa do jornal La Proprieté Industrielle, rue Bergère, 21, onde foi aberta a subscrição.
Carrère — Verificação de identidade
Repetiremos o que dissemos alhures, que a identidade dos Espíritos que viveram em eras remotas, e que vêm trazer-nos ensinamentos, é quase impossível de verificar e que aos nomes se deve ligar apenas uma importância relativa. Aquilo que eles dizem é bom ou mau, racional ou lógico, digno ou indigno do nome que subscreve? Eis toda a questão. Já não é o mesmo com os Espíritos contemporâneos, cujo caráter e hábitos nos são conhecidos e que podem provar a sua identidade por particularidades e detalhes que raramente se conseguem quando solicitados e que é preciso saber esperar. Tal é o fato contado nesta carta:
“Bordeaux, 25 de janeiro de 1862.
“Meu caro senhor Kardec,
“Sabeis que temos o hábito de vos submeter todos os nossos trabalhos, aceitando inteiramente as vossas luzes e a vossa experiência para apreciá-los. Assim, quando para nós se trata de casos de chocante identidade, limitamo-nos a vo-los expor em todos os detalhes.
“O Sr. Guipon, chefe da contabilidade da Companhia de Estradas de Ferro do Sul, membro do grupo dirigente da Sociedade Espírita de Bordeaux, escreve-me, em data de 14 do corrente, a carta que se segue:
Meu caro senhor Sab ,
Permita lhe dirija o pedido de, em sessão, evocar o Espírito de Carrère, subchefe de turma da estação de Bordeaux, morto no comando de uma manobra a 18 de dezembro último. Junto, em envelope separado, os detalhes dos fatos que desejo sejam constatados e que, penso, seriam para nós sério assunto de estudo e de instrução. Ficaria muito agradecido se o envelope só fosse aberto após a evocação.
L.Guipon
A 18 do mesmo mês, em uma reunião de cerca de dez pessoas distintas de nossa cidade, fizemos a evocação pedida.
“Quando da morte de Carrère, sub-chefe de turma em Bordeaux, morto a 18 de dezembro último, o Sr. Beautey, chefe da estação P. V., mandou transportar o corpo para a estação de passageiros e mandou que um homem da turma fosse à sua casa, pedir à Sra. Beautey um Cristo para colocar sobre o cadáver. Essa senhora respondeu que o Cristo estava quebrado e, assim, não o podia emprestar.
“A 10 de janeiro corrente, a Sra. Beautey confessou a seu marido que o Cristo que ela recusara não estava quebrado, mas não tinha querido emprestá-lo para não experimentar as emoções consequentes a um acidente semelhante, ocorrido mais ou menos nas mesmas condições. Em seguida ela acrescentou que jamais recusará qualquer coisa a um morto, e assim se justificou: ─ Durante toda a noite da morte daquele homem, ele ficou visível para mim; durante muito tempo eu o vi, colocado em volta do Cristo, depois ao seu lado.
“A Sra. Beautey, que nunca tinha visto nem ouvido falar daquele homem, o descreveu tão exatamente ao seu marido que este o reconheceu como se tivesse estado presente. Aliás, não é a primeira vez que, em vigília, a Sra. Beautey vê Espíritos. Entretanto, um fato marcante é que o Espírito de Carrère impressionou-a fortemente, o que não lhe acontecia ao ver outros Espíritos.”
(ass.) Guipon
Mais abaixo se acha a seguinte menção:
“Esta narração é perfeitamente exata.
“Assinado: Beautey, chefe de estação.
“Julguei dever relatar o caso de identidade que acabo de expor, aliás raro e que certamente ocorreu com a permissão de Deus, que se serve de todos os meios para ferir a incredulidade e a indiferença.
“Se julgardes útil publicar o interessante episódio, encontrareis adiante as assinaturas das pessoas presentes à sessão. Elas pedem que vos diga que os seus nomes podem ser publicados, pois conservar o incógnito nessa circunstância seria um erro. Os nomes próprios que figuram nos minuciosos detalhes da evocação de Carrère também podem ser publicados.
“Vosso servo dedicado,
A. SABÒ”
“Atestamos que os detalhes relatados na presente carta são inteiramente verdadeiros e não hesitamos em confirmá-los com a nossa assinatura.
“A. Sab , chefe da Contabilidade da Cia. de Estradas de Ferro
do Sul, Rua Berennes, 13;
“Ch. Collignon, Capitalista, Rua Sauce, 12;
“Emilie Collignon, capitalista;
“L’Angle, empregado das contribuições indiretas, Rua Pélegrin, 28;
“Viúva Cazemajoux;
“Guipon, inspetor da contabilidade e da receita das Estradas de Ferro do Sul, Estrada de Bègles, 119;
“Ulrichs, negociante, Rua des Chartrons, 17;
“Chain, negociante;
“Jouanni, empregado do Sr. Arman, construtor de navios, Rua Capenteyre, 26;
“Gourgues, negociante, Estrada de Saint-Genès, 64;
“Belly, mecânico, Rua Lafurterie, 39;
“Hubert, capitão do 88º. de linha;
“Puginier, lº tenente do mesmo regimento.”
Como de costume, os incrédulos levarão o caso à conta de imaginação. Dirão, por exemplo, que a Sra. Beautey tinha o espírito chocado pela recusa e que o remorso a fez supor que via Carrère. Convenhamos que é possível. Mas os negadores, que não primam por analisar antes de julgar, não examinam se alguma circunstância foge à sua teoria. Como explicarão a descrição que ela fez de um homem que nunca viu? “É um acaso”, dirão.
─ Quanto à evocação, também direis que o médium apenas traduziu o seu pensamento, ou o dos assistentes, desde que as circunstâncias eram ignoradas? Também foi o acaso?
─ Não. Mas entre os assistentes estava o Sr. Guipon, autor da carta lacrada e conhecedor do fato. Ora, seu pensamento pôde ser transmitido ao médium, pela corrente de fluidos, visto que os médiuns estão sempre em estado de superexcitação febril, alimentada e provocada pela concentração dos assistentes e de sua própria vontade. Ora, nesse estado anormal, que não passa de um estado biológico, segundo o Sr. Figuier, há emanações que escapam do cérebro e dão percepções excepcionais, provenientes da expansão dos fluidos, que estabelecem relações entre as pessoas presentes e mesmo ausentes. Vedes, pois, por essa explicação tão clara quanto lógica, que não há necessidade de recorrer à intervenção dos supostos Espíritos, que só existem em vossa imaginação.
─ Tal raciocínio, confessamo-lo humildemente, ultrapassa a nossa inteligência.
A vós perguntamos: Vós mesmos o compreendeis bem?
Ensinos e dissertações espíritas
A reencarnaçãoÉ verdade que nos livros sagrados se encontram estas palavras: “Depois da morte o homem será recompensado por suas obras”. Mas não se presta atenção a uma infinidade de citações que vos dizem ser absolutamente impossível que o homem atual seja punido pelas faltas e pelos crimes dos que viveram antes do Cristo.
Não posso deter-me em tantos exemplos e demonstrações dadas pelos que acreditam na reencarnação. Vós mesmos podeis fornecê-los. Os bons Espíritos vos ajudarão, e será um trabalho agradável. Podeis acrescentar isso aos ditados que vos dei e vos darei ainda, se Deus o permitir.
Estais convencidos do amor de Deus para com as criaturas. Ele só deseja a felicidade de seus filhos. Ora, o único meio que eles têm de um dia atingir essa suprema felicidade está inteiramente nas encarnações sucessivas.
Já vos disse que o que Kardec escreveu sobre os anjos decaídos é a maior verdade. Os Espíritos que povoam o vosso globo, na maioria, sempre o habitaram. Se são os mesmos que retornam há tantos séculos, é que pouquíssimos mereceram a recompensa prometida por Deus.
O Cristo disse: “Esta raça será destruída e em breve esta profecia será cumprida”. Se se acredita num Deus de amor e de justiça, como admitir-se que os homens que vivem atualmente, e mesmo os que viveram há dezoito séculos, possam ser culpados pela morte do Cristo sem se admitir a reencarnação? Sim, o sentimento de amor a Deus; o das penas e recompensas futuras; a ideia da reencarnação são inatos no homem, desde séculos. Vede todos os historiadores, vede os escritos dos sábios da antiguidade e vos convencereis de que essa doutrina em todos os tempos foi admitida por todos os homens que compreendiam a justiça de Deus. Agora compreendeis o que é a nossa Terra e como é chegado o momento em que serão realizadas as profecias do Cristo.
Lamento que encontreis tão poucas pessoas que pensam como vós. Vossos compatriotas só pensam na grandeza e no dinheiro, em criarem um nome. Repelem tudo quanto possa travar as paixões más. Que isso, porém, não vos tire a coragem. Trabalhai pela vossa felicidade, e para o bem daqueles que talvez renunciem aos seus erros. Perseverai na vossa obra; pensai sempre em Deus e no Cristo, e a beatitude celeste será a vossa recompensa.
Se se quiser examinar o problema sem preconceitos, refletir sobre a existência do homem nas várias condições da Sociedade, e coordenar essa existência com o amor, a sabedoria e a justiça de Deus, toda a dúvida concernente à reencarnação desaparecerá. Com efeito, como conciliar essa justiça e esse amor com uma existência única, na qual todos nascem em posições diferentes; onde um é rico e grande, ao passo que o outro é pobre e miserável; em que um goza de saúde, ao passo que outro é afligido por doenças de toda a sorte? Aqui se encontram o prazer e a alegria; mais longe a tristeza e a dor; nuns a inteligência é bem desenvolvida, noutros, apenas se alça acima dos brutos. É possível crer que um Deus todo amor tenha feito nascer criaturas condenadas por toda a vida ao idiotismo e à demência? Que tenha permitido que crianças na primavera da vida fossem arrebatadas à ternura de seus pais?
Ouso mesmo perguntar se se poderia atribuir a Deus o amor, a sabedoria e a justiça à vista desses povos mergulhados na ignorância e na barbárie, comparados às nações civilizadas, onde reinam as leis, a ordem, onde se cultivam as artes e as ciências?
Não basta dizer: “Em sua sabedoria, Deus assim estabeleceu todas as coisas”. Não, a sabedoria de Deus, que antes de tudo é amor, deve tornar-se clara para o entendimento do homem. O dogma da reencarnação tudo esclarece. Esse dogma, dado pelo próprio Deus, não se pode opor aos preceitos das Santas Escrituras. Longe disso, ele explica os princípios dos quais emanam para o homem o melhoramento moral e a perfeição. Esse futuro, revelado pelo Cristo, está de acordo com os atributos infinitos de Deus. Disse o Cristo: “Os homens todos não são apenas filhos de Deus: são também irmãos e irmãs da mesma família”. Ora, essas expressões devem ser bem compreendidas.
Um bom pai terreno dará a alguns filhos aquilo que recusa aos outros? Lançará um no abismo da miséria enquanto cumula o outro de riquezas, honrarias e dignidades? Acrescentai ainda que, sendo infinito o amor de Deus, não poderia ser comparado ao do homem por seus filhos. Tendo as diferentes posições do homem uma causa, e tendo essa causa por princípio o amor, a sabedoria, a bondade e a justiça de Deus, elas não podem encontrar sua razão de ser senão na doutrina da reencarnação.
Deus criou todos os Espíritos iguais, simples, inocentes, sem vícios e sem virtudes, mas com o livre-arbítrio de regular suas ações conforme um instinto, que se chama consciência, e que lhes dá o poder de distinguir o bem e o mal. Cada Espírito está destinado a atingir a mais alta perfeição, em seguimento a Deus e ao Cristo. Para atingi-la, deve adquirir todos os conhecimentos pelo estudo de todas as ciências; iniciar-se em todas as verdades; depurar-se pela prática de todas as virtudes. Ora, como essas qualidades superiores não se podem obter em uma vida única, todos devem percorrer várias existências, a fim de adquirirem os diversos graus de saber.
A vida humana é a escola da perfeição espiritual e uma série de provas. Por isso é que o Espirito deve conhecer todas as condições sociais e, em cada uma delas, aplicar-se em cumprir a vontade divina. O poder e a riqueza, como a pobreza e a humildade, são provas; dores, idiotismo, demência, etc. são punições pelo mal cometido em vida anterior.
Do mesmo modo que pelo livre-arbítrio o indivíduo pode realizar as provas a que está submetido, também pode falir. No primeiro caso, a recompensa não se fará esperar: consiste numa progressão na perfeição espiritual. No segundo caso, recebe a punição, isto é, deve reparar em nova vida o tempo perdido na vida precedente, da qual não soube tirar vantagem para si próprio.
Antes da encarnação, os Espíritos planam nas esferas celestes: os bons gozando a felicidade, os maus entregando-se ao arrependimento, vítimas da dor de serem abandonados por Deus. Mas, conservando a lembrança do passado, o Espírito se recorda de suas infrações à lei de Deus e Deus lhe permite, em nova existência, escolher suas provas e sua condição, o que explica por que muitas vezes encontramos nas classes inferiores da Sociedade sentimentos elevados e entendimento desenvolvido, ao passo que nas classes superiores por vezes encontramos inclinações ignóbeis e Espíritos muito brutos.
Pode-se falar de injustiça quando o homem que empregou mal a sua vida pode reparar suas faltas numa outra existência, e chegar ao seu destino? A injustiça não estaria na condenação imediata e sem retorno possível? A Bíblia fala dos castigos eternos, mas isso não se deveria realmente estender para uma vida única, tão triste e tão curta, para este instante, para este piscar de olhos em relação à eternidade. Deus quer dar a felicidade eterna como recompensa do bem, mas é preciso merecê-la e uma vida única, de curta duração, não basta para alcançá-la.
O amor de Deus é de toda a eternidade. Para esclarecer os homens, enviou sábios, profetas, o Salvador Jesus Cristo. Não é uma prova de seu infinito amor? Como, porém, receberam os homens esse amor? Melhoraram?
O Cristo disse: “Muitas coisas teria ainda a dizer-vos, mas não podereis compreendê-las devido à vossa imperfeição”. Se tomarmos as Sagradas Escrituras no verdadeiro sentido intelectual, aí encontraremos muitas citações que parecem indicar que o Espírito deve percorrer várias vidas antes de chegar ao fim. Também não se encontram nas obras dos filósofos antigos as mesmas ideias sobre a reencarnação dos Espíritos?
O mundo progrediu bastante no aspecto material, nas ciências, nas instituições sociais, mas do ponto de vista moral ainda está muito atrasado. Os homens desconhecem a lei de Deus e não escutam mais a voz do Cristo, eis por que, em sua bondade, Deus lhes dá, como último recurso, para chegar a conhecer os princípios da felicidade eterna, a comunicação direta com os Espíritos e o ensino do princípio da reencarnação, palavras cheias de consolação e que brilham nas trevas dos dogmas de tantas religiões diferentes.
À obra! E que a busca se realize com amor e confiança. Lede sem preconceitos; refleti sobre tudo quanto Deus, desde a criação do mundo, dignou-se fazer pelo gênero humano e sereis confirmados na fé que a reencarnação é uma verdade santa e divina.
O realismo e o idealismo em pintura (Sociedade espírita de paris. Médium: Sr. A. Didier)
I
A chamada pintura histórica de vossas escolas não está em correspondência com as exigências do século. Ouso dizer que há mais futuro para um artista em suas pesquisas individuais sobre a arte e sobre a história do que nessa via onde dizem que comecei a pôr o pé.
Só uma coisa poderá salvar a arte de vossa época. É um novo impulso e uma nova escola que, aliando os dois princípios que dizem tão contrários ─ o realismo e o idealismo ─ leve os moços a compreender que se os mestres assim são chamados, é porque viviam com a Natureza, e sua imaginação poderosa inventava onde era preciso inventar, mas obedecia onde era necessário obedecer.
Para muitas pessoas desconhecedoras da ciência da arte, muitas vezes as disposições substituem o saber e a observação. Assim, em vossa época veem-se por todos os lados homens de uma imaginação muito interessante, é certo, mesmo artistas, mas não pintores. Estes não serão contados na história senão comodesenhistas muito engenhosos. A rapidez no trabalho, a pronta realização do pensamento adquirem-se pouco a pouco pelo estudo e pela prática e, conquanto se possua essa imensa faculdade de pintar depressa, é necessário lutar ainda, lutar sempre. Em vosso século materialista, a arte, não o digo sob todos os pontos, felizmente materializa-se ao lado dos esforços realmente surpreendentes dos homens célebres da pintura moderna. Por que essa tendência? É o que indicarei na próxima comunicação.
Quase toda a minha vida se passou em Roma. Quando eu contemplava as obras dos mestres, esforçava-me por captar em meu espírito a ligação íntima, as relações e a harmonia do mais elevado idealismo e do mais real realismo. Raramente vi uma obra-prima que não reunisse esses dois grandes princípios. Nelas eu via o ideal e o sentimento da expressão, ao lado de uma verdade tão brutal que eu dizia para mim mesmo: é bem a obra do espírito humano; é bem a obra pensada e depois realizada; lá estão alma e corpo: é a vida inteirinha. Via que os mestres moles nas ideias e na compreensão o eram em suas formas, em suas cores, em seus efeitos. A expressão de suas cabeças era incerta e a de seus movimentos, banal e sem grandeza. É necessária uma longa iniciação em a Natureza para bem compreender os seus segredos, os seus caprichos e sua sublimidade. Não é pintor que quer. Além do trabalho de observação, que é imenso, é preciso lutar no cérebro e na prática contínua da arte. Em um momento dado, é necessário trazer para a obra que se quer produzir, os instintos e os sentimentos das coisas adquiridas e das coisas pensadas, numa palavra, sempre esses dois grandes princípios: corpo e alma.
NICOLAS POUSSIN[1]
Nota do Tradutor.
Os obreiros do Senhor (Cherbourg, fevereiro de 1861 - Médium: Sr. Robim)
Deus faz, neste momento, o censo de seus servos fiéis, e marcou com o dedo os que têm apenas a aparência de dedicação, para que estes não usurpem o salário dos servos dedicados, porque aos que não recuaram diante da sua tarefa, ele vai confiar os postos mais difíceis na grande obra da regeneração pelo Espiritismo, e estas palavras cumprir-se-ão: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros no Reino dos Céus!”
O Espírito de Verdade
Instrução moral
Do alto das esferas celestes que percorro, meu olhar mergulha com satisfação em vossas reuniões e é com vivo interesse que acompanho as vossas santas instruções. Mas, ao mesmo tempo em que minh’alma se regozija por um lado, por outro experimenta um amargo sofrimento, quando penetra em vossos corações e aí ainda vê tanto apego às coisas terrenas. Para a maioria, o santuário de nossas lições é para vós uma sala de espetáculo e esperais sempre que de nossa parte surjam coisas maravilhosas. Não estamos encarregados de vos apresentar milagres, mas de trabalhar os vossos corações, abrindo grandes leiras para nelas lançar a mancheias as sementes divinas. Empenhamo-nos incessantemente em torná-la fecunda, porque sabemos que suas raízes devem atravessar a Terra de um a outro polo e cobrir-lhe a superfície. Os frutos que daí saírem serão tão belos, tão agradáveis e tão grandes que subirão até os céus.
Feliz aquele que tiver sabido colhê-los para se fartar, porque os Espíritos bemaventurados virão ao seu encontro, cingirão a sua fronte com a auréola dos escolhidos e o farão subir os degraus do trono majestoso do Eterno, e lhe dirão que participe da felicidade incomparável, dos prazeres e das delícias sem fim das falanges celestes.
Infeliz aquele a quem foi dado ver a luz e escutar a palavra de
Deus e que tiver fechado os olhos e tapado os ouvidos, porque o espírito das trevas o envolverá com suas asas lúgubres e o transportará para o seu negro império, para fazê-lo expiar, durante séculos, por tormentos sem conta, sua desobediência ao Senhor. É o momento de aplicar a sentença de morte do profeta Oséias: Coedam eos secundum auditionem coetus eorum. (Eu os farei morrer conforme o que tiverem ouvido). Que estas poucas palavras não sejam uma fumaça a evolar-se nos ares, mas que elas captem vossa atenção para que as mediteis e nelas reflitais seriamente. Apressai-vos em aproveitar os poucos instantes que vos restam para consagrá-los a Deus. Um dia viremos perguntar-vos o que fizestes dos nossos ensinos e como pusestes em prática a doutrina sagrada do Espiritismo.
A vós, pois, espíritas de Paris, que muito podeis por vossa posição pessoal e por vossa influência moral, a vós, digo, a glória e a honra de dar o exemplo sublime das virtudes cristãs. Não espereis que a infelicidade venha bater à vossa porta. Marchai à frente dos vossos irmãos sofredores; dai ao pobre o óbolo do dia; enxugai as lágrimas da viúva e do órfão com palavras doces e consoladoras. Levantai o ânimo abatido desse velho curvado ao peso dos anos e sob o jugo de suas iniquidades, fazendo brilhar em sua alma as asas douradas da esperança numa vida futura melhor. Por toda parte, à vossa passagem, prodigalizai o amor e a consolação. Elevando, assim, as vossas boas obras à altura dos vossos pensamentos, merecereis dignamente o título glorioso e brilhante que mentalmente vos conferem os Espíritos do país e do estrangeiro, cujos olhos estão fixados sobre vós e que, tocados de admiração à vista das ondas de luz que escapam de vossas reuniões, vos chamarão de Sol da França.
LACORDAIRE
A vinha do Senhor (Sociedade espírita de Paris. Médium: Sr. E. Vézy)
Semeai, semeai, e um dia colhereis com abundância. Vede o belo Sol no Oriente, como se ergue radioso e deslumbrante! Vem aquecer-vos e fazer crescerem os frutos da vinha. Vamos, filhos! As vindimas serão esplêndidas e cada um de vós virá beber a taça do vinho sagrado da regeneração. É o vinho do Senhor que será servido no banquete da fraternidade universal! Aí todas as nações serão reunidas em uma só e mesma família e cantarão louvores a um mesmo Deus. Armai-vos, pois, de arados e cutelos, vós que quereis viver eternamente. Amarrai as cepas, para que não caiam e se mantenham eretas, e suas pontas subirão ao Céu. Umas terão cem côvados, e os Espíritos dos mundos etéreos virão espremer os bagos e refrescar-se; o suco será de tal modo poderoso que dará força e coragem aos fracos. Será o leite a alimentar as crianças.
Eis a vindima que se vai fazer, e já se faz. Preparam-se os vasos que devem conter o sagrado licor. Aproximai os lábios, vós que quereis provar, porque esse licor vos embriagará de celeste ebriez e vereis Deus em vossos sonhos, enquanto esperais que a realidade suceda ao sonho.
Filhos! Essa vinha esplêndida que deve erguer-se para Deus é o Espiritismo. Adeptos fervorosos, é necessário mostrá-la pujante e forte e vós, crianças, é necessário que ajudeis os fortes a mantê-la e propagá-la. Cortai os brotos e plantaios em outro campo. Eles produzirão novas vinhas e outros brotos em todos os países do mundo.
Sim, digo eu, enfim todo o mundo beberá do suco da vinha e bebereis no reino do Cristo, com o Pai celeste! Sede, pois, fortes e dispostos e não vivais vida austera. Deus não pede que vivais em austeridades e privações; não pede que vos cubrais com o cilício; quer que vivais apenas conforme a caridade e o coração. Ele não quer mortificações que destroem o corpo. Ele quer que cada um se aqueça ao seu Sol, e se fez uns raios mais frios que outros, foi para dar a compreender a todos quanto é forte e poderoso. Não, não vos cubrais de cilício; não sevicieis a vossa carne aos golpes da disciplina. Para trabalhar na vinha é necessário ser robusto e poderoso. O homem deve ter o vigor que Deus lhe deu. Ele não criou a Humanidade para transformá-la em raça bastarda e esquálida; ele a fez com a manifestação de sua glória e de seu poder.
Vós que quereis viver a verdadeira vida, estais nas vias do Senhor quando tiverdes dado o pão aos infelizes, o óbolo aos sofredores e a vossa prece a Deus. Então, quando a morte vos fechar as pálpebras, o anjo do Senhor proclamará os vossos benefícios e vossa alma, transportada nas asas brancas da caridade, subirá para Deus tão bela e pura quanto o lírio que se abre pela manhã a um sol primaveril.
Orai, amai e fazei a caridade, meus irmãos. A vinha é grande. O campo do Senhor é grande. Vinde, vinde, que Deus e o Cristo vos chamam e eu vos abençoo.
SANTO AGOSTINHO
Caridade para com os criminosos - Problema moral
A resposta que se segue foi obtida na Sociedade Espírita de Paris, a 7 de fevereiro de 1862, pelo médium Sr. A. Didier:
Eis uma questão muito grave que se pode apresentar naturalmente ao Espírito. Responderei de acordo com o meu adiantamento moral, pois que se trata de saber se deve-se expor a vida, mesmo por um malfeitor.
A dedicação é cega. A gente socorre um inimigo pessoal, logo, deve socorrer um inimigo da Sociedade, isto é, um malfeitor. Credes, então, que é só à morte que a gente subtrai aquele infeliz? Talvez seja à sua vida passada inteirinha.
Pensai nisto: Nesses rápidos instantes que lhe subtraem os últimos minutos da vida, o homem perdido revê sua vida passada, ou antes, ela se ergue à sua frente. Talvez a morte chegue muito cedo para ele, e a reencarnação talvez seja terrível. Atirai-vos, pois, homens esclarecidos pela Ciência Espírita! Atirai-vos, arrancai-o de sua danação e talvez então aquele homem, que talvez morresse blasfemando contra vós, se lance em vossos braços. Contudo, não pergunteis se o fará ou não: lançaivos, porque salvando-o obedecereis a essa voz do coração que vos diz: “Tu podes salvá-lo; salva-o!”.
LAMENNAIS
Escrevem-nos que, em conseqüência de uma conversa a respeito do assassino Dumollard, o Espírito da Sra. Elisabeth de França, que já havia dado várias mensagens, apresentou-se espontaneamente e ditou o seguinte:
“A verdadeira caridade é um dos mais sublimes ensinos dados por Deus ao mundo. Deve existir entre os verdadeiros discípulos de sua doutrina uma fraternidade completa. Vós deveis amar os infelizes, os criminosos, como criaturas de Deus, às quais o perdão e a misericórdia serão concedidos se se arrependerem, como a vós mesmos, pelas falhas que cometerdes contra a sua lei. Pensai que sois mais repreensíveis e mais culpados que aqueles a quem recusais o perdão e a comiseração, pois muitas vezes eles não conhecem Deus como o conheceis e lhes será pedido menos do que a vós. Não julgueis. Oh! Não julgueis, minhas caras amigas, porque o julgamento que fizerdes vos será aplicado ainda mais severa-mente e necessitais de indulgência para os pecados que incessantemente cometeis. Não sabeis que há muitas ações que são crimes ante os olhos do Deus de pureza e que o mundo nem considera faltas leves? A verdadeira caridade não consiste apenas na esmola que dais, nem mesmo mas palavras de consolo com que a acompanhais; não é somente isso que Deus exige. A caridade sublime ensinada por Jesus Cristo também consiste na benevolência concedida sempre e em todas as coisas ao vosso próximo. Ainda podeis exercer essa virtude sublime para com muitas criaturas que apenas dão esmolas e que as palavras amorosas e consoladoras as encorajarão e conduzirão ao Senhor. Os tempos se aproximam — digo-o ainda —nos quais remará a grande fraternidade neste globo. A lei do Cristo é a que regerá os homens: só ela será o freio e a esperança, e conduzirá as almas ás moradas da bem-aventurança. Amai-vos, pois, como filhos de um mesmo pai; não façais diferença entre os outros infelizes, porque Deus quer que todos sejam iguais. Assim, a ninguém desprezeis. Deus permite que grandes criminosos estejam em vosso meio, a fim de que vos sirvam de ensino. Em breve, quando os homens forem conduzidos às verdadeiras leis de Deus, não haverá mais necessidade desses ensinos e todos os Espíritos impuros e revoltados serão espalhados por mundos inferiores, em harmonia com as suas inclinações.
A esses, de quem vos falo, deveis o auxílio das vossas preces: é a verdadeira caridade, Não se deve dizer de um criminoso: E um rníserável; deve pagar na Terra; a morte que lhe infligem é muito suave para um ser de sua espécie”. Não: não é assim que deveis orar. Olhai o vosso modelo Jesus. Que dizia ao ver o malfeitor ao seu lado? Ele o lamentava; considerava-o um doente muito infeliz: estendia-lhe a mão. Na realidade tal não podeis fazer; mas ao menos podeis orar por esse infeliz; assistir o seu Espírito nos momentos que ainda deve passar na Terra. O arrependimento pode tocar o seu coração se orardes com fé. Ele é vosso próximo, tanto quanto o melhor dos homens; sua alma transviada e revoltada foi criada, como a vossa, â imagem de Deus perfeito. Assim, orai por ele. Não o julgueis — pois não o deveis. Só Deus o julgará.
ELISABETH DE FRANÇA
Abril
Frenologia espiritualista e espíritaEntretanto a Humanidade, tanto quanto o interesse social, requer um exame mais acurado. É o que tentaremos fazer. Mas como uma conclusão dessa importância num ou noutro sentido, não pode ser alcançada levianamente, e deve apoiar-se em raciocínio sério, pedimos permissão para desenvolver algumas considerações preliminares, que nos servirão para mostrar, mais uma vez, que o Espiritismo é a única chave possível de uma porção de problemas insolúveis com o auxílio dos dados atuais da Ciência.
A frenologia nos servirá de ponto de partida. Exporemos sumariamente as suas bases fundamentais, para melhor compreensão do assunto.
Como se sabe, a frenologia apoia-se no princípio que o cérebro é o órgão do pensamento, como o coração é o da circulação, o estômago o da digestão, o fígado o da secreção da bile. Este ponto é admitido por todos, porque ninguém pode atribuir o pensamento a outra parte do corpo. Cada um sente que pensa pela cabeça e não pelo braço ou pela perna. Além disso, sente-se instintivamente que a sede do pensamento está na fronte: é aí, e não no occipital, que se leva a mão, para indicar que acaba de brotar uma ideia. Para todo o mundo o desenvolvimento da parte frontal leva a presumir mais inteligência do que quando ela é baixa e deprimida. Por outro lado, as experiências anatômicas e fisiológicas demonstraram claramente o papel especial de certas partes do cérebro nas funções vitais, e a diferença dos fenômenos produzidos pela lesão de tal ou qual parte. A esse respeito, as pesquisas científicas não deixam dúvida. As do Sr. Flourens, principalmente, provaram à evidência a especialidade das funções do cerebelo.
Assim, é admitido como princípio que cada parte do cérebro tem a sua função. Além disto, é reconhecido que os cordões nervosos que, originado-se do cérebro, se ramificam em todas as partes do corpo, como os filamentos de uma raiz, são afetados de maneira diferente, conforme a sua destinação. É assim que o nervo óptico, que alcança o olho e se espalha na retina, é afetado pela luz e pelas cores e transmite essas sensações ao cérebro numa porção especial; que o nervo auditivo é afetado pelos sons e os nervos olfativos pelos odores. Se um desses nervos perder a sensibilidade por uma causa qualquer, não haverá mais a sensação: fica-se cego, surdo ou privado do olfato. Esses nervos têm, pois, funções distintas e não podem de modo algum se substituir, embora o mais atento exame não mostre a mais ligeira diferença na sua contextura.
Partindo de tais princípios, a frenologia vai mais longe: localiza todas as faculdades morais e intelectuais, a cada uma das quais determina um lugar especial no cérebro. É assim que ela afeta um órgão com instinto de destruição que, levado ao excesso, se torna crueldade e ferocidade; um outro com a firmeza, cujo excesso, sem a contrapartida do julgamento, produz a teimosia; um outro ao amor pela progenitura; outros à memória das localidades, à dos números, à das formas, ao sentimento poético, à harmonia dos sons, das cores, etc.
Não é aqui o lugar para fazer a descrição anatômica do cérebro. Apenas diremos que se fizermos uma secção longitudinal na massa, reconheceremos que da base partem feixes fibrosos que vão espalhar-se na superfície, apresentando mais ou menos o aspecto de um cogumelo cortado verticalmente. Cada feixe corresponde a uma das circunvoluções na superfície externa, de onde se segue que o desenvolvimento da circunvolução corresponde ao desenvolvimento do feixe fibroso. Segundo a frenologia, sendo cada feixe a sede de uma sensação ou de uma faculdade, conclui ela que a energia da sensação ou da faculdade é proporcional ao desenvolvimento do órgão.
No feto, a caixa óssea do crânio ainda não está formada. A princípio ela é apenas uma película, uma membrana muito flexível, que se modela, consequentemente, nas partes salientes do cérebro e lhes conserva a impressão, à medida que se endurece, pelo depósito de fosfato de cálcio, que é a base dos ossos. Das saliências do crânio a frenologia conclui o volume do órgão, e do volume do órgão conclui o desenvolvimento da faculdade.
Tal é, em poucas palavras, o princípio da ciência frenológica.
Conquanto o nosso objetivo não seja desenvolvê-la aqui, ainda algumas palavras são necessárias quanto ao modo de apreciação. Cometer-se-ia grave erro se se pensasse em poder deduzir o caráter absoluto de uma pessoa pela simples inspeção das saliências do crânio. As faculdades se contrabalançam reciprocamente, se equilibram, se corroboram ou se atenuam umas em relação às outras, de tal sorte que, para julgar um indivíduo, é necessário levar em conta o grau de influência de cada uma, em razão do seu desenvolvimento, depois fazer entrar na balança o temperamento, o meio, os hábitos e a educação.
Suponhamos um homem com o órgão da destruição muito pronunciado, com atrofia dos órgãos das faculdades morais e afetivas. Ele será abjetamente feroz. Mas se à destruição aliar a benevolência, a afeição, as faculdades intelectuais, a destruição será neutralizada e terá o efeito de lhe dar mais energia, e ele poderá ser um homem muito digno, ao passo que o observador superficial que o julgar pela inspeção apenas do primeiro órgão, o tomará por um assassino. Compreendem-se, assim, todas as modificações do caráter, que podem resultar do concurso das outras faculdades, como a astúcia, a circunspecção, a autoestima, a coragem, etc. A só sensação da cor fará o colorista, mas não fará o pintor; a da forma, só, não fará o desenhista; as duas reunidas apenas farão um bom copista, se não houver, ao mesmo tempo, o sentimento da idealidade ou da poesia, e as faculdades reflexivas e comparativas.
Isto basta para mostrar que as observações frenológicas práticas apresentam grande dificuldade e repousam sobre considerações filosóficas, que não estão ao alcance de todos.
Estabelecidas essas preliminares, vejamos a coisa de outro ponto de vista.
De início, dois sistemas radicalmente antagônicos dividiram os frenologistas em materialistas e espiritualistas. Não admitindo nada fora da matéria, dizem os primeiros que o pensamento é um produto da substância cerebral; que o cérebro secreta o pensamento, como as glândulas salivares secretam a saliva, como o fígado secreta a bile. Ora, como a quantidade de secreção é geralmente proporcional ao volume e à qualidade do órgão secretor, eles dizem que a quantidade de pensamentos é proporcional ao volume e à qualidade do cérebro; que cada parte deste, secretando uma ordem particular de pensamentos, os diversos sentimentos e as diversas aptidões estão na razão direta do órgão que os produz.
Não refutaremos essa monstruosa doutrina, que faz do homem uma máquina, sem responsabilidade por seus atos maus e sem mérito pelas boas qualidades, e que apenas deve o seu gênio e as suas virtudes ao acaso de sua organização. ** Com semelhante sistema, toda punição é injusta e todos os crimes são justificados.
Ao contrário, os espiritualistas dizem que os órgãos não são a causa das faculdades, mas os instrumentos das manifestações das faculdades; que o pensamento é um atributo da alma e não do cérebro; que, possuindo por si mesma aptidões diversas, a predominância desta ou daquela faculdade impele o desenvolvimento do órgão correspondente, como o exercício de um braço determina o desenvolvimento dos músculos desse braço. Daí se segue que o desenvolvimento de um órgão é efeito e não causa. Assim, um homem não é poeta porque tenha o órgão da poesia. Ele tem o órgão da poesia porque é poeta, o que é muito diferente.
Mas aqui se apresenta outra dificuldade, ante a qual forçosamente esbarram os frenologistas: se for espiritualista, dirá que o poeta tem o órgão da poesia porque é poeta, mas não nos diz por que ele é poeta; porque o é, em vez de seu irmão, embora educado nas mesmas condições? E assim em relação a todas as outras aptidões.
Só o Espiritismo pode dar a explicação.
Com efeito, se a alma fosse criada ao mesmo tempo que o corpo, a do sábio do Instituto seria tão nova quanto a do selvagem. Então, por que há na Terra selvagens e membros do Instituto? Direis que depende do meio em que vivem. Seja, mas então, por que homens nascidos nos meios mais ingratos e mais refratários se tornam gênios, enquanto que meninos que bebem a Ciência com o leite materno são imbecis?
Os fatos não provam sobejamente que há homens instintivamente bons ou maus, inteligentes ou estúpidos? É, pois, necessário haja um germe na alma. De onde vem ele? Pode-se dizer razoavelmente que Deus os fez de todos os tipos, uns chegando sem esforço e outros nem mesmo com um trabalho sistemático? Haveria nisso justiça e bondade? Evidentemente não. Uma única solução é possível: a preexistência da alma; sua anterioridade ao nascimento do corpo; o desenvolvimento adquirido conforme o tempo vivido e as várias migrações percorridas. Unindo-se ao corpo, a alma traz, pois, o que adquiriu, em boas ou más qualidades. Daí as predisposições instintivas, de onde poder-se dizer com certeza que aquele que nasceu poeta já cultivou a poesia; o que nasceu músico já cultivou a música e o que nasceu facínora já foi mais facínora. Tal é a fonte das faculdades inatas que produzem, nos órgãos afetados à sua manifestação, um trabalho interior, molecular, que determina o seu desenvolvimento.
Isto nos conduz ao exame da importante questão da inferioridade de certas raças e da sua perfectibilidade.
Para começar, estabelecemos como princípio que todas as faculdades, todas as paixões, todos os sentimentos, todas as aptidões estão na natureza; são necessárias à harmonia geral, porque Deus nada faz de inútil; o mal resulta do abuso, bem como da falta de contrapeso e equilíbrio entre as diversas faculdades. Como as faculdades não se desenvolvem simultaneamente, disso resulta que só lentamente se estabelece o equilíbrio; que essa falta de equilíbrio produz os homens imperfeitos, nos quais o mal domina momentaneamente.
Tomemos para exemplo o instinto de destruição. Ele é necessário, porque na Natureza há necessidade de que tudo seja destruído para se renovar. Por isso todas as espécies vivas são, ao mesmo tempo, agentes destruidores e reprodutores. Mas o instinto de destruição isolado é um instinto cego e brutal. Ele domina entre os povos primitivos, entre os selvagens cuja alma ainda não adquiriu faculdades reflexivas próprias a regular a destruição na justa medida.
Em uma única existência poderá o selvagem adquirir essas faculdades que lhe faltam? Seja qual for a educação que lhe derdes desde o berço, dele fareis um São Vicente de Paulo, um cientista, um orador, um artista? Não, porque é materialmente impossível. Contudo esse selvagem tem uma alma. Qual a sorte dessa alma depois da morte? É punida pelos atos bárbaros que ninguém reprimiu? É colocada em igualdade com o homem de bem? Um não é mais racional que o outro. É, então, condenada a ficar eternamente em um estado misto, que nem é felicidade nem desgraça? Isso não seria justo, porque se ela não é mais perfeita, não depende de si.
Não se pode sair desse dilema senão admitindo a possibilidade de progresso. Ora, como pode progredir senão tendo novas existências? Dir-se-á que poderá progredir como Espírito, sem voltar à Terra. Mas, então, por que nós, civilizados e esclarecidos, nascemos na Europa e não na Oceania? Em corpos brancos em vez de corpos negros? Por que um ponto de partida tão diferente, se só se progride como Espírito? Por que Deus nos livrou da longa rota percorrida pelos selvagens?
Nossas almas seriam de natureza diversa das suas? Por que tentar torná-los cristãos? Se os tornais cristãos é que os olhais como vossos iguais perante Deus. E se é vosso igual perante Deus, por que Deus vos concede privilégios?
Por mais que façais não chegareis a nenhuma solução, a não ser admitindo para nós um progresso anterior e para os selvagens um progresso ulterior.
Se a alma do selvagem deve progredir ulteriormente, é que nos alcançará. Se progredimos anteriormente, é que nós fomos selvagens, pois se for diverso o ponto de partida, não haverá mais justiça, e se Deus não for justo, não será Deus.
Temos, assim, forçosamente, duas existências extremas: a do selvagem e a do supercivilizado, mas não haverá meio-termo entre esses dois extremos? Segui a escala dos povos e vereis que há uma cadeia ininterrupta, sem solução de continuidade. Ainda uma vez, todos esses problemas são insolúveis sem a pluralidade de existências. Dizei que os neozelandeses renascerão num povo um pouco menos bárbaro, e assim por diante até a civilização, e tudo se explica; que se, em vez de seguir os degraus da escada, ele os transpuser de um salto e chegar, sem transição, até nós, dará um hediondo espetáculo de um Dumollard, que para nós é um monstro e que nada apresentaria de anormal entre as tribos da África central, de onde talvez tenha saído.
Assim é que, se nos fecharmos em uma existência única, tudo é obscuridade, tudo é problema sem saída, ao passo que com a reencarnação tudo é claridade, tudo tem solução.
Voltemos à frenologia. Ela admite órgãos especiais para cada faculdade, e pensamos que esteja certa. Mas vamos mais longe. Vimos que cada órgão cerebral é formado de um feixe de fibras. Pensamos que cada fibra corresponda a uma nuança da faculdade. É verdade que isto não passa de uma hipótese, mas que poderá abrir caminho a novas observações. O nervo auditivo recebe os sons e os transmite ao cérebro, mas se o nervo é homogêneo, como percebe sons tão variados? É, pois, lícito admitir que cada fibra nervosa seja afetada por um som diferente, com o qual, de certo modo, vibra em uníssono, como as cordas de uma harpa. Todos os tons estão na Natureza. Imaginemos uma centena deles, desde os mais agudos até os mais graves. O homem que possuísse cem fibras correspondentes perceberia todos; outro que só possuísse a metade, só acusaria a metade dos sons, deixando de registrar osoutros, dos quais nem teria consciência. Dá-se o mesmo com as cordas vocais, para exprimir os sons; com as fibras ópticas para perceber as diversas cores; com as olfativas para registrar todos os odores. O mesmo raciocínio pode aplicar-se aos órgãos de todos os gêneros de percepções e de manifestações.
Todos os corpos animados encerram, incontestavelmente, o princípio de todos os órgãos, embora, em certos indivíduos, alguns se achem em estado de tal modo rudimentar que não são suscetíveis de desenvolvimento e que são como se não existissem. Assim, nesses indivíduos, não pode haver percepções nem manifestações correspondentes a esses órgãos. Numa palavra, em relação a essas faculdades, eles são como os cegos para a luz e os surdos para a música.
O exame frenológico dos povos pouco inteligentes constata a predominância das faculdades instintivas e a atrofia dos órgãos da inteligência. Aquilo que é excepcional nos povos adiantados é a regra em certas raças. Por quê? Será uma injusta preferência? Não, é sabedoria, pois a natureza é sempre previdente; nada faz de inútil. Ora, seria inútil dar um instrumento completo a quem não tenha meios para dele se servir. Os Espíritos selvagens são ainda crianças, se assim se pode dizer. Neles muitas faculdades ainda estão latentes. Que faria o Espírito de um hotentote no corpo de um Arago? Seria como alguém que nada sabe de música diante de um piano excelente. Por uma razão inversa, que faria o Espírito de Arago no corpo de um hotentote? Seria como um Liszt diante de um piano contendo apenas algumas cordas estragadas das quais o seu talento não conseguiria jamais tirar sons harmoniosos. Arago, entre os selvagens, com todo o seu gênio, seria tão inteligente quanto o pode ser um selvagem, e nada mais. Ele jamais seria, numa pele negra, membro do Instituto. Seu Espírito faria o desenvolvimento dos órgãos? Dos órgãos fracos, sim; dos rudimentares, não. ***
Assim, a Natureza apropriou os corpos ao grau de adiantamento dos Espíritos que neles devem encarnar-se. Por isso os corpos das raças primitivas possuem menos cordas vibrantes que as raças mais adiantadas.
Há, pois, no homem, dois seres bem distintos: o Espírito, ser pensante, e o corpo, instrumento das manifestações do pensamento, mais ou menos completo, rico em cordas, conforme as necessidades.
Chegamos agora à perfectibilidade das raças. Por assim dizer, essa questão é resolvida pela precedente: apenas temos que deduzir algumas consequências. Elas são perfectíveis pelo Espírito que se desenvolve através de suas várias migrações, em cada uma das quais adquire, pouco a pouco, as faculdades que lhe faltam. Mas, à medida que suas faculdades se ampliam, necessita de um instrumento adequado, como uma criança que cresce precisa de roupas maiores. Ora, sendo os corpos constituídos insuficientes, por seu estado primitivo, necessitam encarnar-se em melhores condições, e assim por diante, conforme o progresso.
As raças são perfectíveis pelo corpo, mas é somente pelo cruzamento com raças mais aperfeiçoadas, que trazem novos elementos que, por assim dizer, aí se enxertam os germes de novos órgãos. Esse cruzamento se faz pelas migrações, pelas guerras e pelas conquistas. Sob esse ponto de vista, as raças são como as famílias que se abastardam quando não recebem sangue novo. Então não se pode dizer que haja raça primitiva pura porque, sem o cruzamento, essa raça será sempre a mesma, pois seu estado de inferioridade depende de sua natureza. Ela degenerará, em vez de progredir, o que determina o seu desaparecimento, ao cabo de certo tempo.
Diz-se a respeito dos negros escravos: “São seres tão brutos, tão pouco inteligentes, que seria vão esforço querer instruí-los. São uma raça inferior, incorrigível, profundamente incapaz.” A teoria que acabamos de apresentar permite encará-los sob outro prisma. Na questão do aperfeiçoamento das raças é sempre necessário levar em consideração dois elementos constitutivos do homem: o elemento espiritual e o corporal. É preciso conhecer ambos, e só o Espiritismo nos pode esclarecer quanto à natureza do elemento espiritual, o mais importante, por ser o que pensa e o que sobrevive, ao passo que o corporal se destrói.
Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos. Como Espíritos, são inquestionavelmente uma raça inferior, isto é, primitiva. São verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já representa um progresso que levarão para outra existência, e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório de melhores condições. Trabalhando por sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que por seu futuro e, por pouco que se consiga, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente que facilita novos progressos.
No mesmo envoltório, isto é, com os mesmos instrumentos de manifestação do pensamento, as raças só em estreitos limites são perfectíveis, pelas razões que acabamos de desenvolver. Por isso a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá os níveis das raças caucásicas, mas como Espíritos é outra coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de tempo e de melhores instrumentos. Eis por que as raças selvagens, mesmo em contato com as raças civilizadas, ficam sempre selvagens. Entretanto, à medida que as raças civilizadas se desenvolvem, as selvagens diminuem, até o desaparecimento completo, como desapareceram as raças dos caraíbas, dos guanches e outras. Os corpos desapareceram, mas em que se transformaram os Espíritos? Alguns talvez se achem entre nós.
Dissemos e o repetimos: o Espiritismo rasga novos horizontes a todas as ciências. Quando os cientistas considerarem o elemento espiritual nos fenômenos da Natureza, ficarão surpresos de ver que as dificuldades contra as quais esbarravam a cada passo, desapareceram como que por encanto.
Mas é provável que, para muitos, seja necessário renovar o hábito. Quando voltarem, terão tido tempo de refletir e trarão novas ideias. Acharão as coisas muito mudadas aqui na Terra. As ideias espíritas, que hoje repelem, terão germinado por toda parte e serão a base de todas as instituições sociais. Eles próprios serão educados e alimentados nessa crença que ao seu gênio abrirá novo campo para o progresso da Ciência. Enquanto esperam, enquanto aqui ainda se encontram, que eles procurem a solução deste problema: Por que a autoridade de seu saber e suas negações não tolhem, ao menos por um instante, a marcha cada dia mais rápida das ideias novas?
* Vide Revista Espírita de julho de 1860: Frenologia e Fisiognomonia.
Consequências da doutrina da reencarnação sobre a propagação do Espiritismo
É o que tentaremos demonstrar.
Nenhuma criatura que reflita deixará de se preocupar com o seu futuro após a morte, o que bem vale a pena. Quem é que não liga mais importância à sua situação na Terra durante alguns anos do que durante uns poucos dias? Mais ainda: durante a primeira parte da vida a gente trabalha, extenua-se de fadiga e se impõe toda sorte de restrições para, na outra metade, garantir-se um pouco de repouso e de bem-estar.
Se temos tantos cuidados por alguns anos indefinidos, não é racional tê-los ainda mais pela vida de além-túmulo, cujo duração é ilimitada? Por que motivo a maioria trabalha mais pelo presente fugidio do que pelo futuro sem fim? É que a gente acredita na realidade do presente e duvida do futuro. Ora, a gente só duvida daquilo que não compreende. Compreenda-se o futuro, e tudo cessará.
Aos próprios olhos daqueles que no estado das crenças vulgares estão melhor convencidos da vida futura, esta se apresenta de maneira tão vaga, que nem sempre basta a fé para fixar as ideias, pois aquela tem mais as características de uma hipótese do que as de uma realidade.
O Espiritismo vem destruir essa incerteza, pelo testemunho dos que viveram e por provas de certo modo materiais.
Toda religião repousa necessariamente sobre a vida futura e todos os dogmas convergem forçosamente para esse fim único. É visando atingir esse fim que eles são praticados, e a fé nos dogmas está na razão direta da eficácia que se lhes atribui para alcançá-lo.
A teoria da vida futura é, pois, a pedra angular de toda doutrina religiosa. Se essa teoria pecar pela base; se abrir brecha a sérias objeções; se ela se contradiz; se for demonstrada a impossibilidade de certas partes, tudo se esboroa. Para começar surge a dúvida. A esta sucede a negação absoluta e os dogmas são arrastados no naufrágio da fé.
Pensaram escapar do perigo proscrevendo o exame e considerando uma virtude a fé cega. Mas pretender impor a fé cega neste século é desconhecer a época em que vivemos. A gente reflete, queira ou não queira; a gente examina, pela força das coisas; a gente quer saber como e por quê. O desenvolvimento das indústrias e das ciências exatas ensina a olhar o terreno onde se põe os pés. É por isso que a gente sonda aquele por onde se diz que caminharemos depois da morte. Se não o reconhecermos sólido, isto é, lógico e racional, dele não nos ocuparemos. Por mais que façam, não conseguirão neutralizar essa tendência, que é inerente ao desenvolvimento intelectual e moral da Humanidade. Segundo uns, é um bem.
Segundo outros, um mal. Seja qual for a maneira de encarar, temos que nos acomodar, queiramos ou não, pois a coisa não pode ser de outro modo.
A necessidade de se dar conta e de compreender vai das coisas materiais às coisas morais. Certamente a vida futura não é uma coisa palpável como uma estrada de ferro e uma máquina a vapor, mas pode ser compreendida pelo raciocínio. Se o raciocínio pelo qual a gente procura demonstrá-la não satisfizer à razão, a gente abandona premissas e conclusões. Interroguem-se aqueles que negam a vida futura e todos dirão que foram conduzidos à incredulidade pelo próprio quadro que lhes era apresentado, com seu cortejo de diabos, de labaredas e de sofrimentos sem fim.
Todas as questões morais, psicológicas e metafísicas se ligam de maneira mais ou menos direta à questão do futuro. Disso resulta que essa última questão de certo modo depende da racionalidade de todas as doutrinas filosóficas e religiosas. Por sua vez, o Espiritismo vem, não como uma religião, mas como doutrina filosófica, trazer a sua teoria, apoiada no fato das manifestações. Ele não se impõe; não exige confiança cega; mete-se entre as criaturas e diz: “Examinai, comparai e julgai. Se achardes algo melhor do que isto que vos dou, tomai-o.” Ele não diz: “Venho derrocar as bases da religião e substituí-la por um culto novo.” Diz: “Dirijo-me não aos que creem e que se acham satisfeitos com suas crenças, mas aos que abandonam as vossas fileiras pela incredulidade e que não os soubestes ou não pudestes reter. Venho dar-lhes, sobre as verdades que repelem, uma interpretação que satisfaça à sua razão e que os leve a aceitá-la. O número dos que tiro do atoleiro da incredulidade é a prova de que o consigo”.
Escutai-os, e todos vos dirão: “Se me tivessem ensinado essas coisas desta maneira em minha infância, eu jamais teria duvidado. Agora creio porque compreendo”.
Deveis repeli-los porque aceitam o espírito e não a letra; o princípio e não a forma? Tendes toda liberdade. Se para vossa consciência isto constitui um dever, ninguém pensará em violentá-la. Mas eu não diria que isso é um erro menor. Digo mais: É uma imprudência.
Como dissemos, a vida futura é o objetivo essencial de toda doutrina moral. Sem a vida futura a moral não tem base. A vitória do Espiritismo está precisamente na sua maneira de apresentar o futuro. Além das provas que ele nos dá, o quadro que ele pinta é tão claro, tão simples, tão lógico, tão conforme à justiça e à bondade de Deus, que involuntariamente a gente diz: “Sim, é assim mesmo que a coisa deve ser; assim eu a tinha imaginado; e se não tinha acreditado é porque me tinham ensinado de outro modo”.
Mas, o que é que dá tal poder à teoria do futuro? O que é que lhe consigna tantas simpatias? Nós dizemos que é a sua lógica inflexível, que resolve todas as dificuldades até agora insolúveis, e isso ela o deve ao princípio da pluralidade das existências. Com efeito, tirai esse princípio e imediatamente surgirão milhares de problemas, cada qual mais insolúvel que o outro.
A cada passo a gente se choca com inúmeras objeções. Essas objeções não eram levantadas outrora, porque ninguém pensava nelas. Mas hoje, que a criança se fez adulto, ele quer ir ao fundo das coisas; quer ver claro o caminho por onde o conduzem; sonda e calcula o valor dos argumentos que lhe apresentam, e se estes não lhe satisfazem à razão, se o deixam no vazio e na incerteza, rejeita-os e espera coisa melhor.
A pluralidade das existências é uma chave que abre novos horizontes; que dá uma razão de ser a inúmeras coisas incompreendidas; que explica o não explicado. Ela concilia todos os acontecimentos da vida com a justiça e a bondade de Deus. Por isso os que haviam chegado a duvidar dessa justiça e a dessa bondade, agora reconhecem o dedo da Providência onde o tinham ignorado.
Sem a reencarnação, com efeito, a que atribuir as ideias inatas? Como justificar a idiotia, o cretinismo, a selvageria, ao lado do gênio e da civilização? A profunda miséria de uns ao lado da felicidade de outros? As mortes prematuras e tantas outras coisas?
Do ponto de vista religioso, certos dogmas, tais como o pecado original, a queda dos anjos, a eternidade das penas, a ressurreição da carne, etc., encontram nesse princípio uma interpretação racional que leva à aceitação do seu espírito, mesmo por aqueles que repeliam a letra.
Em resumo, o homem atual quer compreender. O princípio da reencarnação ilumina o que estava obscuro. Por isso dizemos que esse princípio é uma das causas que dão favorável acolhida ao Espiritismo.
Dir-se-á que a reencarnação não é necessária para crer nos Espíritos e em sua manifestação. Prova disso é que há crentes que não a admitem. É verdade. Também não dizemos que se não possa, sem isso, ser bons espíritas. Não somos daqueles que atiram pedras nos que não pensam como nós. Apenas dizemos que eles não abordaram todos os problemas suscitados pelo sistema unitário, sem o que teriam reconhecido a impossibilidade de lhes dar uma solução.
A ideia da pluralidade das existências a princípio foi acolhida com espanto, com desconfiança. Depois, pouco a pouco, familiarizaram-se com ela, à medida que reconheciam a impossibilidade de, sem ela, saírem das inúmeras dificuldades levantadas pela psicologia e pela vida futura.
Há uma coisa certa. Este sistema ganha terreno diariamente, enquanto o outro o perde. Hoje, na França, os adversários da reencarnação ─ falamos dos que estudaram a Ciência Espírita ─ são em número imperceptível, em comparação com os seus partidários. Mesmo na América, onde eles são mais numerosos, pelas causas que explicamos no número anterior, tal princípio começa a popularizar-se. Daí se pode concluir que não está longe o dia em que, sob esse ponto, não haverá qualquer dissidência.
Epidemia demoníaca na Sabóia
A respeito recebemos do capitão B..., membro da Sociedade Espírita de Paris, atualmente em Annecy, a carta adiante transcrita:
“Annecy, 7 de março de 1862.
“Sr. Presidente,
“Querendo ser útil à Sociedade, tenho a honra de remeter-lhe uma brochura, enviada por um de meus amigos, o Dr. Caille, encarregado pelo ministro de acompanhar o inquérito feito pelo Sr. Constant, inspetor das casas de alienados, sobre os casos muito numerosos de demonomania observados na comuna de Morzine, departamento de Thonon, na Alta Saboia.
“Ainda hoje essa infeliz população se acha sob a influência da obsessão, a despeito dos exorcismos, dos tratamentos médicos, das medidas tomadas pelas autoridades e do internamento nos hospitais do departamento. Os casos diminuíram um pouco, mas não cessaram e o mal existe, por assim dizer, em estado latente.
“Com o objetivo de exorcizar esses infelizes, na maioria crianças, o cura mandou trazê-los à igreja, conduzidos por homens vigorosos. Apenas pronunciou as primeiras palavras latinas, produziu-se uma cena terrificante: gritos, saltos furiosos, convulsões, etc., a tal ponto que mandaram chamar a polícia e uma companhia de infantaria para restabelecer a ordem.
“Não me foi possível obter todas as informações que desejava mandar-vos hoje, mas os fatos me parecem bastante sérios e dignos de vosso exame.
“O alienista Dr. Arthaud, de Lyon, fez um relatório para a sociedade
médica desta cidade, que foi publicado pela Gazette Médicale de Lyon e que o senhor poderá obter através do seu correspondente.
“No hospital desta cidade temos duas senhoras de Morzine, em tratamento.
“O Dr. Caille concluiu por uma afecção nervosa epidêmica rebelde a toda espécie de tratamento e de exorcismo. Só o isolamento produziu bons resultados.
“Todos os infelizes obcecados, em suas crises, pronunciam palavras sujas; dão saltos prodigiosos por cima das mesas; trepam em árvores; sobem nos telhados e às vezes profetizam.
“Se fatos idênticos ocorreram nos séculos dezesseis e dezessete nos conventos e nos campos, não é menos certo que no nosso século dezenove eles oferecem a todos os espíritas um assunto de estudo do ponto de vista da obsessão epidêmica, generalizando-se e persistindo durante anos, pois o primeiro caso observado foi há cinco anos.
“Terei a honra de vos enviar todos os documentos e informações que puder obter.
“Receba, etc.
“B...”
As duas comunicações que se seguem foram dadas sobre o assunto, na Sociedade de Paris, por nossos Espíritos habituais:
“Não são médicos, mas magnetizadores, espiritualistas ou espíritas que deveriam ser mandados para dissipar a legião de Espíritos malévolos extraviados no vosso planeta. Digo extraviados porque eles estão apenas de passagem. Entretanto, por muito tempo a infeliz população, manchada ao seu impuro contato, sofrerá, moral e fisicamente.
“Onde o remédio? perguntais. Surgirá do mal, porque os homens, apavorados com essas manifestações, acolherão com entusiasmo o benéfico contato dos bons Espíritos que os sucederão, como a aurora sucede à noite. Essa pobre população, alheia a qualquer trabalho intelectual, não teria conhecido as comunicações inteligentes dos Espíritos, e nem mesmo as teria percebido. A iniciação e os males causados por essa turba impura abrem olhos fechados e as desordens, os atos de demência, são apenas o prelúdio da iniciação, porque todos devem participar da grande luz espírita.
“Não vos lamenteis por essa maneira cruel de proceder. Tudo tem um fim e os sofrimentos devem fecundar, assim como as tempestades que destroem a colheita de uma região enquanto fertilizam outras.
“GEORGES” (Médium: Sra. Costel)
“Esse fato anormal é mais característico do que pensais. Em verdade, ao observador atento revela uma situação análoga à que se manifestou nos últimos anos do paganismo. Ninguém ignora que quando o Cristo, nosso bem-amado mestre, encarnou-se na Judeia, sob a personalidade do carpinteiro Jesus, aquela região havia sido invadida por legiões de maus Espíritos que, pela possessão, como hoje, se apoderavam das classes sociais mais ignorantes; dos Espíritos encarnados mais fracos e menos adiantados, numa palavra, dos indivíduos que guardavam os rebanhos ou que se dedicavam aos trabalhos do campo.
“Não percebeis uma grande analogia na reprodução desses fenômenos idênticos de possessão? Ah! Nisto existe um ensinamento muito profundo! Disto deveis concluir que cada vez mais se aproximam os tempos preditos e que o Filho do Homem em breve virá expulsar de novo a turba de Espíritos impuros que se abateram sobre a Terra e reavivar a fé cristã, dando a sua alta e divina sanção às consoladoras revelações e aos regeneradores ensinamentos do Espiritismo.
“Voltando aos casos atuais de demonomania, é preciso lembrar que os cientistas e os médicos do século de Augusto trataram, conforme os processos hipocráticos, os infelizes possessos da Palestina e que toda a sua ciência fracassou ante esse poder desconhecido.
“Ora! Ainda hoje todos os vossos inspetores de epidemias; todos os vossos mais notáveis alienistas, sábios doutores em materialismo puro, fracassam do mesmo modo ante essa doença exclusivamente moral; diante dessa epidemia exclusivamente espiritual.
“Mas, que importa! Meus amigos, vós que fostes tocados pela graça nova, sabeis quanto esses males passageiros são curáveis pelos que têm fé. Esperai, pois. Esperai com confiança a vinda daquele que já resgatou a Humanidade. A hora se aproxima. O Espírito precursor já está encarnado. Em breve, pois, se efetivará o desenvolvimento completo desta doutrina que tomou por divisa: Fora da Caridade não há salvação!
“ERASTO” (Médium: Sr. d’Ambel)
Está demonstrado pela experiência que os Espíritos perversos não só agem sobre o pensamento, mas também sobre o corpo, com o qual se identificam e do qual se servem como se lhes pertencesse. Eles provocam atos ridículos, gritos, movimentos desordenados com toda a aparência da loucura ou da monomania.
A explicação disso encontra-se em O Livro dos Médiuns, no capítulo “Da obsessão”. Num próximo artigo citaremos alguns fatos que o demonstram de modo incontestável.
Com efeito, é uma espécie de loucura, de vez que se pode dar esse nome a todo estado anormal em que o espírito não age livremente. Nesse ponto de vista, a embriaguez é uma verdadeira loucura acidental.
É necessário, pois, distinguir a loucura patológica da loucura obsessiva. A primeira é produzida por uma desordem nos órgãos da manifestação do pensamento. Notemos que nesse estado de coisas não é o Espírito que é louco, porque ele conserva a plenitude de suas faculdades, como o demonstra a observação. Contudo, estando desorganizado o instrumento de que se serve para manifestar-se, o pensamento, ou melhor, a expressão do pensamento é incoerente.
Na loucura obsessiva não há lesão orgânica. É o próprio Espírito que se acha afetado pela subjugação de um Espírito estranho que o domina e comanda. No primeiro caso é preciso tentar curar o órgão doente; no segundo, basta livrar o Espírito doente do hóspede importuno, a fim de restituir-lhe a liberdade.
Casos semelhantes são muito frequentes e comumente consideram loucura o que não passa de obsessão, para a qual deveriam empregar-se meios morais e não duchas. Pelo tratamento físico, e sobretudo pelo contato com os verdadeiros alienados, muitas vezes tem sido determinada uma loucura real onde esta não existia.
O Espiritismo, que abre novos horizontes a todas as ciências, vem esclarecer também a questão muito obscura das doenças mentais, assinalando uma causa que até agora não era levada em conta, uma causa real, evidente, provada pela experiência e cuja verdade mais tarde será reconhecida. Mas como convencer a admitirem tal causa aqueles que estão sempre dispostos a mandar para o hospício quem quer que tenha a fraqueza de acreditar que temos alma? Como convencê-los de que a alma representa um papel nas funções vitais, e que ela sobrevive ao corpo e pode atuar sobre os vivos?
Graças a Deus as ideias espíritas, para o bem da Humanidade, fazem maior progresso entre os médicos do que era dado esperar, e tudo leva a crer que em futuro não muito remoto a Medicina sairá, enfim, da rotina materialista.
Averiguados os casos isolados de obsessão física ou de subjugação, compreende-se que tal qual uma nuvem de gafanhotos, um bando de maus Espíritos pode cair sobre certo número de criaturas, delas apoderar-se e produzir uma espécie de epidemia moral.
A ignorância, a fraqueza das faculdades e a falta de cultura intelectual naturalmente lhes oferece maiores facilidades, por isso eles atuam de preferência sobre certas classes, embora as pessoas inteligentes e instruídas nem sempre estejam isentas.
Como diz Erasto, foi provavelmente uma epidemia que ocorreu ao tempo do Cristo, da qual frequentemente fala no Evangelho. Mas por que só a sua palavra bastava para expulsar os chamados demônios? Isso prova que o mal não podia ser curado senão por uma influência moral. Ora, quem poderá negar a influência moral do Cristo? Contudo, dirão, empregaram o exorcismo, que é um remédio moral, e nada foi obtido. Se nada produziu é que o remédio é ineficaz, e outro deve ser encontrado, evidentemente. Estudai o Espiritismo e compreendereis a razão. Só o Espiritismo, assinalando a verdadeira causa do mal, pode dar os meios de combater os flagelos de tal natureza.
Mas quando aconselhamos a estudá-lo, entendemos um estudo sério e não com a esperança de encontrar nele uma receita banal, para uso do primeiro que aparecer.
O que acontece na Saboia, chamando a atenção, possivelmente apressará o momento em que será reconhecida a parcela de ação do mundo invisível nos fenômenos da Natureza. Uma vez entrando nesse caminho, a Ciência possuirá a chave de muitos mistérios e verá cair a mais formidável barreira que detém o progresso: o materialismo, que restringe o círculo da observação, em vez de ampliálo.
Respostas à questão dos anjos decaídos
(BORDEAUX - MÉDIUM: SRA. CAZEMAJOUX)
Meus amigos, a teoria contida no resumo que acabais de ler é a mais lógica e mais racional. A sã razão não pode admitir a criação de Espíritos puros e perfeitos revoltando-se contra Deus e procurando igualá-lo em poder e grandeza.
Antes de atingir a perfeição, ignorante e fraco, o Espírito, entregue ao seu livre arbítrio, muitas vezes atira-se à corrupção e mergulha com prazer num oceano de iniquidades. Mas o que sobretudo causa a sua perda, é o orgulho. Ele nega Deus e atribui ao acaso a sua existência, as maravilhas da criação e a harmonia universal. Então, infeliz dele! É um anjo decaído. Em vez de avançar para mundos felizes, é até exilado do planeta que habita, indo expiar em mundos inferiores a sua incessante revolta contra Deus.
Irmãos, guardai-vos de imitá-los. Eles são os anjos perversos. Fazei todo esforço para não lhes aumentar o número. Que o facho da fé espírita vos esclareça quanto aos vossos deveres presentes e aos vossos interesses futuros, a fim de que possais um dia evitar a sorte dos Espíritos rebeldes e subir a escala espiritual que leva à perfeição.
Vossos Guias Espirituais.
Vosso Guia Espiritual
R. ─ Que ela é perfeitamente racional e que nós mesmos não a teríamos explicado melhor.
ARAGO
Um Espírito amigo sincero do médium e do diretor da Revista Espírita.
(LYON ─ MÉDIUM: SRA. BOUILLANT) Nós acreditávamos outrora que os anjos, depois de haverem morado no mais radioso dos mundos, se tinham revoltado contra Deus e merecido a expulsão do Éden, que Deus lhes havia dado para morada. Tínhamos cantado a sua queda e a sua fraqueza e, acreditando nessa fábula do Paraíso Perdido, o tínhamos ornado com todas as flores da retórica que conhecíamos. Era para nós um tema que oferecia um encanto especial. Esse primeiro homem e essa primeira mulher expulsos de seu oásis, condenados a viver na Terra e presas de todos os males que assediam a Humanidade, eram para o autor uma grande fonte para desenvolver as suas ideias, e o assunto se prestava sobretudo e perfeitamente às nossas ideias melancólicas.
Como os outros, havíamos acreditado no erro e havíamos juntado a nossa palavra a todas as demais que tinham sido proferidas. Mas agora que a nossa existência no espaço nos permitiu julgar as coisas do seu verdadeiro ponto de vista; agora que podemos compreender quanto era absurdo admitir que o Espírito, chegado ao seu mais alto grau de pureza, pudesse retrogradar de repente, revoltar-se contra o seu criador e com ele entrar em luta; agora que podemos julgar por quantos cadinhos o licor deve ser filtrado para se depurar, a ponto de se tornar essência e quintessência, estamos em estado de vos dizer o que são os anjos decaídos e o que deveis crer do Paraíso Perdido.
Em sua imutável lei do progresso, quer Deus que os homens avancem, avancem incessantemente, de século em século, em épocas por ele determinadas. Quando a maioria dos seres que habitam a Terra se torna muito superior à parte terrestre que ocupa, então Deus ordena uma migração de Espíritos, e os que realizaram sua missão com consciência vão habitar regiões que lhes são designadas, mas o Espírito recalcitrante ou preguiçoso, que vem manchar o quadro, é obrigado a ficar na retaguarda. Nessa depuração, ele é repelido, como fazem os químicos com as substâncias que não foram filtradas. Então o Espírito se acha em contato com outros que são inferiores e sofre realmente o constrangimento que lhe é imposto.
Ele se lembra intuitivamente da felicidade de que desfrutava e se acha em meio a seus iguais como flor exótica que tivesse sido de chofre transplantada para um terreno inculto. Tal Espírito se revolta ao compreender a sua superioridade e procura dominar os que o cercam. Essa revolta, essa luta contra si próprio, se transforma em luta contra o Criador que lhe deu vida, e que ele desconhece. Se seus pensamentos se puderem desenvolver, ele derramará o que extravasa do seu coração em recriminações amargas, como o condenado na sua prisão, e sofrerá cruelmente até que tenha expiado a preguiça e o egoísmo que o impediram de acompanhar os seus irmãos.
Eis, meus amigos, quem são os anjos decaídos e por que todos lamentam a perda de seu paraíso.
Procurai, pois, por vossa vez, apressar-vos para que não sejais abandonados quando soar o toque do retorno. Lembrai-vos de tudo o que deveis a vós mesmos. Dizei que vós sois vós e que tendes o vosso livre-arbítrio.
Essa personalidade do Espírito vos explica por que o filho de um cientista por vezes é um idiota e por que a inteligência não se pode transformar em morgadio. Um grande homem bem poderá dar à sua progênie o gabarito de sua figura, mas jamais lhe transmitirá o seu gênio. Podeis estar certos de que todos os gênios que vieram desenvolver os seus talentos entre vós eram filhos de suas próprias obras, porque, como disse um grande sábio: “É que as mães dos Patay, dos Letronne e do grande Arago criaram esses grandes homens muito inocentemente”. Não, meu amigo, a mãe que dá à luz um talento ilustre nada influi no Espírito que anima o seu filho. Esse Espírito já era muito adiantado quando veio reencarnar-se no cadinho da depuração.
Subi, pois, os degraus da escada, degraus luminosos e brilhantes como sóis, pois que Deus os ilumina com sua luz esplêndida, e lembrai-vos de que agora que conheceis o caminho, seríeis muito culpados se vos tornásseis anjos decaídos. Aliás, penso que ninguém ousaria lamentar-vos e cantar novamente para vós o Paraíso Perdido.
MILTON
Não creiais que o autor desse artigo haja escrito sem assistência, como ele próprio imaginou. Ele acreditou emitir as suas próprias opiniões, razão pela qual ficou desconfiado, ao passo que na realidade ele apenas deu forma às ideias que lhe eram inspiradas.
Sim, ele está certo quando diz que os anjos rebeldes ainda estão na Terra, e que são os materialistas e os ímpios, os que ousam negar o poder de Deus. Não está aí o cúmulo do orgulho? Vós todos que credes em Deus e lhe cantais louvores, vos indignais com tal audácia da criatura, e tendes razão. Sondai, entretanto, a vossa consciência e vede se a cada instante não vos revoltais contra ele, esquecendo as suas santas leis.
Praticais a humildade, vós que acreditais na superioridade do vosso mérito; vós que vos orgulhais pelos dons que haveis recebido; vós que encarais com ciúme e inveja a posição superior do vosso vizinho, os favores que lhe cabem e a autoridade que lhe é concedida?
Praticais a caridade, vós que denegris o vosso irmão; que derramais sobre ele maledicência e calúnia; que em vez de lançar um véu sobre os seus defeitos sentis prazer em exibi-los em público, para humilhá-lo?
Vós, que credes em Deus, sobretudo vós, espíritas, que assim agis, em verdade vos digo que sois mais culpados que o ateu e o materialista, porque tendes a luz e não vedes.
Sim, também sois anjos rebeldes, porque não obedeceis à lei de Deus. No grande dia Deus vos perguntará: Que fizestes dos meus ensinos?
PAULO, Espírito Protetor
Palestras familiares de além-túmulo
Girard DecodembergDe La Bruyère (Sociedade de Bordeaux. Médium: Sra. Cazemajoux)
Poesias Espíritas
Crede nos Espíritos do SenhorCrede em nós; nós somos a centelha,
Raio brilhante vindo do seio de Deus,
Que projetamos sobre as almas novas,
Que no berço choram o céu azul.
Crede em nós; nossa chama leve,
Espírito errante pelos túmulos amigos,
Venceu o obstáculo, passou a barreira
Entre nós posta pelo Eterno.
Crede em nós.
As trevas e as mentiras
Se dispersam quando, suaves e risonhas,
Vimos do Céu deitar em vossos sonhos
O néctar, o mel e a ambrosia.
Crede em nós. Erramos no espaço
Para vos guiar. Crede em nós,
Que vos amamos...
Cada hora que passa,
Ó exilados, mais nos aproxima.
ELISA MERCOEUR
As Vozes do Céu
As vozes do Céu suspiram na brisa,
Gemem no ar, murmuram nas ondas;
Nas florestas e nos montes cinzentos
Ecoam os seus suspiros.
As vozes do Céu murmuram sob as folhas,
Nos prados, nos bosques e nos campos.
Junto à fonte onde chora contrito
O poeta de tímidas rimas.
As vozes do Céu cantam nos arvoredos,
No loiro trigo, nos jardins em flor,
No risonho azul das nuvens
Na riqueza das cores do arco-íris.
As vozes do Céu choram no silêncio.
Silêncio!
Elas falam ao coração.
E os Espíritos, cujo reino começa,
Vos levam ao vosso criador.
ELISA MERCOEUR
Dissertações Espíritas
Os Mártires do Espiritismo“Os mártires selaram com sangue a verdade do Cristianismo. Onde estão os mártires do Espiritismo?”
Tendes mesmo muito interesse em ver os espíritas sobre a fogueira ou lançados às feras! Isto leva a supor que não vos faltaria vontade, caso isso ainda fosse possível. Quereis à fina força pôr o Espiritismo no nível de uma religião! Notai, porém, que ele jamais pretendeu isso; que jamais se arvorou em rival do Cristianismo, do qual se declara filho; que ele combate os seus mais cruéis inimigos: o ateísmo e o materialismo.
Afirmamos, uma vez mais, que ele é uma filosofia que repousa sobre as bases fundamentais de toda religião e sobre a moral do Cristo. Se renegasse o Cristianismo, ele se desmentiria, suicidar-se-ia. São os seus inimigos que o mostram como uma nova seita; que lhe deram sacerdotes e alto clero. Estes gritarão tantas e tantas vezes que é uma religião, que a gente poderia acabar acreditando.
É necessário existir uma religião para haver seus mártires? A Ciência, as Artes, o gênio, o trabalho, em todos os tempos não tiveram os seus mártires, assim como todas as ideias novas?
Não ajudam a fazer mártires os que apontam os espíritas como condenados, como párias a cujo contato se deve fugir; que açulam contra eles a população ignorante e que chegam até a lhes roubar os recursos do trabalho, esperando vencêlos pela fome, na falta de bons argumentos?
Bela vitória, se triunfassem, mas a semente está lançada e germina em toda a parte. Se é cortada num lugar, brota em cem outros.
Tentai então ceifar toda a Terra, mas deixai que falem os Espíritos que se encarregaram de responder à pergunta.
Pedistes milagres. Hoje pedis mártires. Já existem os mártires do Espiritismo. Entrai nas casas e os vereis.
Pedis perseguidos. Abri o coração desses fervorosos adeptos da ideia nova que lutam contra os preconceitos, com o mundo, e frequentemente até com a família! Como seus corações sangram e se dilatam, quando seus braços se estendem para abraçar um pai, uma mãe, um irmão ou uma esposa e não recebem a paga do carinho e dos transportes, mas sarcasmos, desdém e desprezo.
Os mártires do Espiritismo são os que a cada passo escutam estas palavras insultuosas: louco, insensato, visionário!... e durante muito tempo terão que suportar essas afrontas da incredulidade e outros sofrimentos ainda mais amargos.
Entretanto, a sua recompensa será bela, porque se o Cristo mandou preparar um lugar soberbo aos mártires do Cristianismo, o que prepara aos mártires do Espiritismo será ainda mais brilhante. Os mártires da infância do Cristianismo marchavam para o suplício, corajosos e resignados, porque não contavam sofrer senão dias, horas ou o segundo do martírio, aspirando a morte como única barreira para viver a vida celeste.
Os mártires do Espiritismo não devem nem mesmo aspirar a morte. Devem sofrer tanto tempo quanto praza a Deus deixá-los na Terra e não ousam julgar-se dignos dos puros gozos celestes logo que deixem a vida. Oram e esperam, murmurando baixinho palavras de paz, de amor e de perdão aos que os torturam, esperando novas encarnações nas quais poderão resgatar passadas faltas.
O Espiritismo elevar-se-á como um templo soberbo. A princípio os degraus serão difíceis de subir. Mas, transpostos os primeiros degraus, bons Espíritos ajudarão a vencer os outros até o lugar simples e reto que conduz a Deus.
Ide, ide, filhos, pregar o Espiritismo!
Pedem mártires. Vós sois os primeiros que o Senhor marcou, pois sois apontados a dedo e sois tratados como loucos e insensatos, por causa da verdade! Eu vos digo, entretanto, que em breve chegará a hora da luz e então não mais haverá perseguidores nem perseguidos. Sereis todos irmãos e o mesmo banquete reunirá opressores e oprimidos!
SANTO AGOSTINHO (Médium: Sr. E. Vézy)
Nesse estado de rebaixamento moral, as palavras do Cristo teriam sido impotentes e desprezadas pela multidão, se não tivessem sido gritadas pelas suas chagas e tornadas sensíveis pela carne palpitante dos mártires. Para ser cumprida, a misteriosa lei das semelhanças, exigia que o sangue derramado pela ideia resgatasse o sangue derramado pela brutalidade.
Hoje os homens pacíficos ignoram as torturas físicas. Só o seu ser intelectual sofre, porque se debate, comprimido pelas tradições do passado, enquanto aspira novos horizontes.
Quem poderá pintar as angústias da geração presente, suas dúvidas pungentes, suas incertezas, seus ardores impotentes e sua extrema lassitude?
Inquietos pressentimentos de mundos superiores, dores ignoradas pela antiguidade material, que só sofria quando não gozava; dores que são a tortura moderna e que transformarão em mártires aqueles que, inspirados pela revelação espírita, crerão e não serão acreditados; falarão e serão censurados; marcharão e serão repelidos.
Não percais a coragem. Vossos próprios inimigos vos preparam uma recompensa tanto mais bela quanto mais espinhos houverem eles semeado em vosso caminho.
LÁZARO (Médium: Sra. Costel)
Outros tempos, outros costumes, diz um sábio provérbio. O vocábulo costumes é aqui muito elástico, como vedes e, conforme a sua etimologia latina, significa hábitos, maneira de viver. Ora, em nosso século, nossa maneira de ser não é de cobrir-se com cilício, de ir às catacumbas nem de dissimular suas preces aos procônsules e aos magistrados da cidade de Paris.
O Espiritismo, pois, não verá erguer-se o machado e as fogueiras devorarem os seus adeptos. A gente se bate a golpes de ideias, a golpes de livros, a golpes de comentários, a golpes de ecletismo e a golpes de teologia, mas a São Bartolomeu não se repetirá.
Certamente poderá haver algumas vítimas nas nações atrasadas, mas nos centros civilizados só a ideia será combatida e ridicularizada.
Assim, pois, não mais os machados, o feixe de varas, o óleo fervente, mas ficai atentos com o espírito voltairiano mal compreendido. Ele é o carrasco. É preciso preveni-lo, mas não desafiá-lo. Ele ri, em vez de ameaçar; lança o ridículo em vez da blasfêmia e seus suplícios são as torturas do espírito que sucumbe ao abraço do sarcasmo moderno.
Mas, sem desagradar aos pequenos Voltaires de nossa época, a juventude compreenderá facilmente estas três palavras mágicas: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Quanto aos sectários, estes são mais temíveis porque são sempre os mesmos, malgrado o tempo, malgrado tudo. Eles por vezes podem fazer o mal, mas são coxos, mascarados, velhos e rabugentos. Ora, vós que passais pela fonte de Juventa e cuja alma reverdece e remoça, não os temais, porque o seu fanatismo os perderá.
LAMENNAIS (Médium: Sr. A. Didier)
Ataques à ideia nova
Seja como for, há um fato digno de nota: é que outrora desdenhavam ocupar-se com os que moviam mesas e cadeiras, ao passo que hoje muito se ocupam com esses inovadores, cujas ideias e teorias se elevaram à altura de uma doutrina. Ah! É que essa doutrina, essa revelação abre brecha em todas as antigas doutrinas, em todas as velhas filosofias, insuficientes para satisfazerem as necessidades da razão humana. Assim, sacerdotes, cientistas, jornalistas descem à arena empunhando a pena, para repelir a ideia nova: o progresso. Mas que importa! Não é uma prova irrefragável da propagação dos nossos ensinamentos? Ora! Não se discute, não se combate senão as ideias realmente sérias e suficientemente bem difundidas para não serem tratadas como utopias, como quimeras brotadas de cérebros doentes. Aliás, melhor que ninguém, podeis ver bem a rapidez com que o Espiritismo recruta adeptos diariamente, e isso até nas fileiras esclarecidas do exército, entre oficiais de todas as armas. Não vos inquieteis, pois, com todos esses infelizes que uivam à toa, pois já não sabem onde estão. Eles estão desconcertados. Suas certezas, suas probabilidades se desvanecem ao facho do Espiritismo, porque, no fundo de suas consciências, sentem que apenas nós estamos com a verdade. Digo nós, porque hoje, Espíritos e encarnados, só temos um objetivo: a destruição das ideias materialistas e a regeneração da fé em Deus, a que tudo devemos.
ERASTO (Médium: Sr. d’Ambel)
Perseguição
A carne foi flagelada. É preciso flagelar o Espírito. Ora, em verdade vos digo, quando isso acontecer, estareis prestes a entoardes em uníssono o cântico de ação de graças, e estaremos em vésperas de ouvir um só e mesmo grito sobre a Terra. Mas, eu vo-lo digo, antes da idade de ouro e do reinado do espírito, são necessários grandes sofrimentos, lágrimas e ranger de dentes.
As perseguições já começaram. Espíritas! Sede firmes e mantende-vos de pé. Estais marcados pela unção do Senhor. Sereis chamados de insensatos, de loucos, de visionários. Não mais ferverão o óleo nem erguerão cadafalsos e fogueiras, mas o fogo que usarão para vos levar à renúncia às vossas crenças será mais intenso e ainda mais vivo.
Espíritas! Despojai-vos, portanto, do homem velho, pois é ao homem velho que farão sofrer. Que vossas novas túnicas sejam brancas. Cingi as vossas frontes com coroas e preparai-vos para entrar na liça. Sereis amaldiçoados. Deixai que vossos irmãos vos digam racca; em contrapartida, orai por eles e afastai de suas cabeças o castigo que o Cristo disse estar reservado aos que dissessem racca aos seus irmãos!
Preparai-vos para as perseguições pelo estudo, pela prece, pela caridade. Os servos serão expulsos das casas de seus patrões e tratados como loucos, mas à porta da casa encontrarão o Samaritano e, embora pobres e nus, ainda partilharão com ele as suas vestes e o último pedaço de pão. Ante tal espetáculo, os patrões perguntarão: “Mas, quem são essas criaturas que expulsamos de nossa casa? Só têm um pedaço de pão para esta noite e o dão! Só têm uma capa e a dividem com um estranho!”
Então suas portas serão reabertas, pois vós é que sois os servidores do Mestre. Mas dessa vez eles vos acolherão e vos abraçarão. Pedir-vos-ão que os abençoeis e lhes ensineis a amar. Não mais vos chamarão de servos ou escravos, mas vos dirão: “Meu irmão, vem assentar-te à minha mesa. Há uma só e mesma família na Terra, como há um só e mesmo Pai no Céu”.
Ide, ide meus irmãos! Pregai, e sobretudo sede unidos. O Céu vos está preparado.
SANTO AGOSTINHO (Médium: Sr. E. Vézy)
Bibliografia
------------ O segundo volume das Révélations d’outre-tombe[1], pela Sra. H. Dozon, se acha no prelo.
------------ Novamente chamamos a atenção dos leitores para a interessante brochura da senhorita Clémence Guérin, intitulada: Essai biographique sur Andrew Jackson Davis[2], um dos principais escritores espiritualistas dos Estados Unidos. ─ Livraria Ledoyen, Preço l franco.
[1] Revelação de Além-Túmulo. Nota do Tradutor.
[2] Esboço biográfico de Andrew Jackson Davis. Nota do Tradutor.
Maio
Exéquias do Sr. Sanson (membro da sociedade espírita de Paris)“Caro e respeitável Presidente,
“Em caso de surpresa pela desagregação de minha alma e de meu corpo, tenho a honra de vos lembrar um pedido feito há cerca de um ano: o de evocar o meu Espírito o mais imediatamente possível e tantas vezes quanto julgardes conveniente, para que, membro muito inútil de nossa Sociedade durante a minha presença na Terra, para algo lhe possa servir no além-túmulo, dando-lhe os meios de estudar fase por fase, nessas evocações, as diversas circunstâncias que se seguem ao que o vulgo chama morte, mas que, para nós, espíritas, não passa de uma transformação, sob as vistas impenetráveis de Deus, mas sempre útil ao fim que se propõe.
“Além desta autorização e pedido de me dar a honra dessa espécie de autópsia espiritual, que meu insignificante avanço como Espírito talvez torne estéril, caso em que a vossa sabedoria vos levará ao não dar continuidade às experiências além de um certo número, ouso pedir-vos, pessoalmente, bem como a todos os meus colegas, que supliquem ao Todo-Poderoso permita que os bons Espíritos me assistam com seus benevolentes conselhos, em particular a São Luís, nosso presidente espiritual, com o fito de guiar-me na escolha e no momento de uma reencarnação, porque desde já isto me preocupa muito. Tremo de me enganar quanto às minhas forças espirituais e de pedir a Deus, cedo demais e muito presunçosamente, um estado corporal no qual não pudesse justificar a bondade divina, o que, em vez de servir ao meu adiantamento, prolongaria a minha demora na Terra ou alhures caso eu falisse.
“Contudo, tendo toda a confiança na mansuetude e na indulgente equidade de nosso Criador e seu divino filho, e, enfim, esperando com humildade e resignação sofrer a expiação de minhas faltas, salvo aquelas que a misericórdia do Eterno me perdoar, repito, minha grande preocupação é o medo pungente de enganar-me na escolha de uma reencarnação, se nisso não for ajudado e guiado pelos Espíritos santos e benevolentes que pudessem julgar-me indigno de sua intervenção, caso fossem solicitados apenas por mim, mas cuja comiseração pode ser despertada, desde que, pela caridade cristã, fossem invocados por todos vós, em meu favor. Assim, tomo a liberdade de me recomendar a vós, caro Presidente, e a todos os meus honrados colegas da Sociedade Espírita de Paris...”
Nisso tínhamos um duplo objetivo: o de satisfazer à sua última vontade e o de observar, uma vez mais, a situação da alma num momento tão próximo da morte, e isto em um homem eminentemente inteligente e esclarecido, profundamente imbuído das verdades espíritas. Queríamos constatar a influência de tais crenças sobre o estado do Espírito, a fim de colher as suas primeiras impressões.
Como se verá, nossa espera não foi vã. Cada um achará, assim como nós, um elevado ensino na descrição que ele faz do instante da transição. Acrescentemos, entretanto, que nem todos os Espíritos seriam aptos a descrever esse fenômeno com tanta lucidez quanto ele. O Sr. Sanson viu a sua própria morte o seu próprio renascimento, circunstância pouco comum devida à elevação de seu Espírito.
- J. SANSON
Durante a cerimônia no cemitério ele ditou o seguinte:
NOTA: Depois da cerimônia, alguns membros da Sociedade se reuniram e receberam espontaneamente a comunicação que se segue, e que estavam longe de esperar.
“Chamo-me Bernardo e vivi em 96 em Passy, então uma aldeia. Eu era um pobre-diabo. Eu ensinava, e só Deus sabe os dissabores que tive de suportar. Que aborrecimento prolongado! Anos inteiros de preocupações e sofrimentos! E eu amaldiçoei Deus, o diabo, os homens em geral e as mulheres em particular. Entre estas nenhuma me veio dizer: “Coragem, paciência!” Foi preciso viver só, sempre só, e a maldade me tornou mau. Desde então erro pelos lugares onde vivi, onde morri.
“Eu vos ouvi hoje. Vossas preces me tocaram profundamente. Acompanhastes um bom e digno Espírito e tudo quanto dissestes e fizestes me comoveu. Eu estava em numerosa companhia e, em comum, oramos por vós todos, pelo futuro de vossas santas crenças. Orai por nós, que necessitamos de socorro. O Espírito de Sanson, que nos acompanhava, prometeu que pensaríeis em nós. Desejo reencarcerar-me, a fim de que minha prova seja útil e conveniente ao meu futuro no mundo dos Espíritos. Adeus, meus amigos. Digo assim porque amais os que sofrem. Para vós: bons pensamentos, futuro feliz.”
Como este episódio se liga à evocação do Sr. Sanson, pareceu-nos dever mencioná-lo, porque encerra eminente assunto de instrução. Cremos cumprir um dever recomendando esse Espírito às preces de todos os verdadeiros espíritas. Elas poderão fortificá-lo nas boas resoluções.
A conversa com o Sr. Sanson teve continuidade na sessão da Sociedade, na primeira sexta-feira depois de 25 de abril e deve ser prosseguida. Aproveitamos a sua boa vontade e as suas luzes para obter novos esclarecimentos, tão precisos quanto possível, sobre o mundo invisível, comparado com o visível, e principalmente sobre a transição de um a outro, o que interessa a toda a gente, de vez que, sem exceção, todos passam por isso. O Sr. Sanson para tanto se pôs a nossa disposição, com sua benevolência habitual. Aliás, como se viu, era seu desejo expresso antes de morrer.
Suas respostas formam um conjunto muito instrutivo e de um interesse tanto maior porque emanam de uma testemunha ocular, que acaba de analisar as suas próprias sensações, e que se exprime ao mesmo tempo com elegância, com profundidade e com clareza. No próximo número publicaremos o conjunto.
Um fato importante, que deve ser destacado, é que o médium que serviu de intermediário no dia do enterro e nos dias seguintes, o Sr. Leymarie, jamais tinha visto o Sr. Sanson e não conhecia o seu caráter nem os seus hábitos. Ele não sabia se Sanson tinha filhos e menos ainda se eles partilhavam ou não de suas ideias sobre o Espiritismo. É, pois, de modo inteiramente espontâneo que a isso se refere, e que o caráter do Sr. Sanson se revelou pelo seu lápis, sem que sua imaginação tivesse podido influenciar, fosse no que fosse.
Fato não menos curioso, e que prova que as comunicações não são reflexo do pensamento, é a de Bernardo, em que nenhum dos assistentes poderia pensar, porque, desde que o médium tomou do lápis, pensava-se que provavelmente seria um dos seus Espíritos habituais, Baluze ou Sonnet. Seria o caso de perguntar: do pensamento de quem aquela comunicação poderia ser um reflexo?
Srs. e colegas da Sociedade Espírita de Paris.
É a primeira vez que trazemos um colega à sua última morada. Este a quem vimos dizer adeus vós conhecestes e soubeste apreciar as suas eminentes qualidades. Lembrando-as aqui apenas diria o que todos sabeis: coração eminentemente reto, de uma lealdade a toda a prova, sua via foi a de um homem de bem em toda a extensão do vocábulo. Penso que ninguém o contestará. Essas qualidades ainda eram postas em destaque por uma grande bondade e uma extrema benevolência. Haverá necessidade de ter praticado ações brilhantes e de deixar um nome à posteridade? Isso não lhe daria um lugar melhor no mundo onde se acha agora. Se, pois, sobre o seu túmulo não vamos lançar uma coroa de louros, todos quantos o conheceram aqui depositam, na sinceridade de seus espíritos, aquelas coroas mais preciosas da estima e da afeição.
Sabeis, senhores, que o Sr. Sanson era dotado de uma inteligência pouco comum e de uma grande justeza de apreciação, ainda mais desenvolvida por uma instrução variada e profunda. De uma simplicidade patriarcal nos seus modos de vida, encontrava em seu próprio íntimo os elementos de uma atividade intelectual que aplicava em pesquisas, em invenções, certamente muito engenhosas, mas que, infelizmente, não lhe trouxeram resultados. Era um desses homens que jamais se aborrecem, porque sempre estão pensando em algo de sério. Conquanto sua posição o tivesse privado daquilo que faz a doçura da vida, seu bom humor jamais se alterava. Creio não exagerar dizendo que era o tipo do verdadeiro filósofo: não do filósofo cínico, mas daquele que está sempre contente com o que tem, sem se atormentar nunca pelo que não tem.
Esses sentimentos sem dúvida constituíam o fundo do seu caráter, mas, nos últimos anos, foram singularmente fortificados por suas crenças Espíritas. Estas o ajudaram a suportar longos e cruéis padecimentos com uma paciência e uma resignação muito cristã, Não há um só dentre nós que o tendo visto em seu leito de dor, não se tenha edificado com a sua calma e a sua inalterável serenidade. Desde muito tempo ele previa o seu fim; mas longe de se apavorar, o esperava como a hora da libertação. Ah! E que a fé espírita dá, nesses momentos supremos, uma força da qual só se dá conta quem a possui. E o Sr. Sanson a possuía em grau supremo.
Que é, então, a fé espírita? Talvez perguntem alguns dos que me escutam.
A fé espírita consiste na convicção íntima de que temos uma alma; que esta alma, ou Espírito, o que é a mesma coisa, sobrevive ao corpo; é feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal que fez em vida. Dirão que isso é sabido por todos. Sim, exceto pelos que crêem que tudo se acaba quando morremos, e estes são mais numerosos do que se pensa neste século. Assim, na opinião destes últimos, os despojos mortais que temos sob os nossos olhos, e que em alguns dias estarão reduzidos a pó, serão tudo quanto resta daquele de quem nos despedimos. Assim, o que é que homenageamos? A um cadáver, Porque de sua inteligência, de seu pensamento, das qualidades que o tomavam amado, nada restará, tudo será aniquilado. O mesmo se dará, quando morrermos.
Essa idéia do nada que nos esperaria não tem algo de pungente e glacial?
Quem, em presença deste túmulo aberto, não sente um calafrio percorrer as veias, ao pensar que amanhã, talvez, o mesmo lhe acontecerá e que, depois de umas pás de terra lançadas sobre o seu corpo, tudo estará terminado para sempre, que não mais pensará, não sentirá, não amará?
Mas ao lado dos que negam, há o número maior dos que duvidam, por não terem uma certeza positiva; e para esses a dúvida é uma tortura.
Vós todos que acreditais firmemente que o Sr. Sanson tinha uma alma, que pensais em que se tenha ela tornado? Onde está? O que faz? Ah! Exclamareis, se nós pudéssemos saber! Jamais a dúvida teria entrado em nosso coração. Porque, sondai bem o fundo dos vossos pensamentos e convencei-vos de que a mais de um entre vós já aconteceu dizer, no foro íntimo, falando da vida futura: “E se assim não fosse?” E o dizeis porque não a compreendíeis; porque dela fazíeis uma idéia que não podia aliar-se à razão.
Ora! O Espiritismo precisamente vem compreendê-la, por assim dizer fazer tocá-la com o dedo e vê-la, tomando-a tão palpável, tão evidente que não mais é possível negá-la do que negar a luz.
Então em que se tornou a alma do nosso amigo? Está aqui, ao nosso lado, escutando-nos, e penetrando o nosso pensamento, julgando o sentimento que anima a cada um nesta cerimônia. Esta alma não é o que vulgarmente pensam: uma chama, uma centelha, algo vago e indefinido. Não a vereis,de acordo com idéias supersticiosas, correr à noite pela terra como um fogo fátuo. Não: ela tem uma forma, um corpo como em vida; mas um corpo fluídico, vaporoso, invisível aos nossos sentidos grosseiros e que, entretanto, em certos casos, torna-se visível. Durante a vida tinha um segundo envoltório, pesado, material, destrutível. Quando esse envoltório se gasta e não mais pode funcionar, cai, como a casca de um fruto maduro, e a alma o deixa como se deixasse velha roupa de trabalho. E esse envoltório da alma do Sr. Sanson, é essa velha roupa que o fazia sofrer, que se acha ao fundo da cova: é tudo o que há dele. Mas conservou o envoltório etéreo, indestrutível, radioso, que nem está sujeito às doenças nem às enfermidades. E assim que está entre nós. Mas não penseis que esteja só: aqui há milhares no mesmo caso, assistindo à nossa despedida e felicitando o recém-chegado por se ter libertado das misérias da Terra. De sorte que, se neste momento o véu que no-los encobre pudesse ser levantado, veríamos uma multidão em redor de nós, se acotovelando e nesse número veríamos o Sr. Sanson, não mais impotente e deitado no leito de sofrimento, mas alerta, lépido, locomovendo-se sem esforço com a rapidez do pensamento, sem esbarrar em qualquer obstáculo.
Essas almas ou Espíritos constituem o mundo invisível, em cujo meio vivemos sem o perceber. De sorte que os parentes e os amigos que perdemos estão mais perto de nós depois da morte do que se em vida tivessem ido para um pais distante.
É a existência desse mundo invisível que o Espírito põe em evidência, pelas relações que com ele é possível estabelecer e porque ai encontramos os nossos conhecidos. Então já não é uma vaga esperança: é uma prova patente. Ora, a prova do mundo invisível é a prova da vida futura. Adquirida essa certeza as idéias mudam completamente, porque a importância da vida terrena diminui à medida que cresce a da vida porvindoura.
Essa a fé no mundo invisível que possuía o Sr. Sanson, Ele o via e o compreendia tão bem que a morte lhe era apenas um pórtico a transpor, a fim de passar de uma vida dolorosa e de miséria para uma vida bem-aventurada.
A serenidade de seus últimos instantes era, pois, ao mesmo tempo, o resultado de sua confiança absoluta na vida futura, que já entrevia, e uma consciência irreprochável, que lhe dizia nada dever. Essa fé tinha sido adquirida no Espiritismo. Porque — necessário é dizê-lo — antes da época em que conheceu essa ciência consoladora, não era materialista, mas era cético. Suas dúvidas, porém, cessaram ante a evidência dos fatos que testemunham e desde então tudo mudou. Colocando-se em pensamento fora da vida material, não mais a via senão como um dia infeliz entre um número infinito de dias felizes. E, longe de se lamentar da amargura da vida, abençoava os sofrimentos como provas que deveriam acelerar o seu progresso.
Caro Sr. Sanson, sois testemunha da sinceridade da pena de todos nós que vos conhecemos e cuja afeição sobrevive. Em nome de todos os meus colegas presentes e ausentes, em nome de todos os vossos parentes e amigos, eu vos digo adeus, mas não um eterno adeus, pois isso seria uma blasfêmia contra a Providência e uma negação da vida futura. Nós, espíritas, menos que quaisquer outros, não devemos pronunciar essa palavra.
Até à vista, pois, caro Sr. Sanson. Que possais gozar no mundo onde vos encontrais agora a felicidade que mereceis e vir estender-nos a mão quando nos chegar a vez de nele entrar.
Permiti-me, senhores, uma curta prece junto a esta cova que se fecha.
Deus Todo-Poderoso, que vossa misericórdia se estenda sobre a alma do Sr. Sanson, que acabais de chamar. Possam ser-lhe contadas as provas que sofreu na Terra, e as nossas preces abrandar e encurtar as penas que terá de sofrer como Espírito.
Bons Espíritos que viestes recebê-la, e sobretudo vós, seu anjo da guarda, assisti-a, para ajudá-la a despojar-se da matéria; dai-lhe a luz e a consciência de si própria, a fim de a tirar da perturbaçãoque acompanha a passagem da vida corpórea à espiritual. Inspirai-a lhe o arrependimento das faltas cometidas e que lhe seja permitidoo desejo de as reparar, a fim de apressar o seu progresso para a vida eterna bem-aventurada.
Alma do Sr. Sanson que acabais de entrar no mundo dos Espíritos, aqui estais entre nós; vedes e nos escutais, pois entre nósapenas se acha o corpo perecível, que acabais de deixar e que em breve será pó.
Este corpo, instrumento de tantas dores, ainda lá está, ao vosso lado. Vós o vedes como o prisioneiro vê as cadeias de que acaba de se libertar. Deixaste o grosseiro invólucro sujeito às vicissitudes e à morte e apenas guardastes o invólucro etéreo, imperecível e inatingível pelos sofrimentos. Se já não viveis pelo corpo, viveis a vida do Espírito, que é isenta das misérias que afligem a humanidade.
Não mais tendes o véu que encobre aos nossos olhos os esplendores da vida futura; d’agora em diante podeis contemplar as novas maravilhas, enquanto ainda estamos mergulhados nas trevas. Ides percorrer o espaço e visitar os mundos livremente, enquanto nos arrastamos na Terra, retidos pelo corpo à vossa frente e, em, presença de tanta grandeza, compreendereis a vaidade de nossos desejos terrenos, de nossas ambições mundanas, de nossas alegrias fúteis, que os homens transformam em delicias.
Entre os homens a morte não passa de curta separação material. Do lugar do exílio, onde nos retém a vontade de Deus, bem como os nossos deveres, nós vos seguimos em pensamento até onde nos for permitido, assim como vos unistes aos que vos precederam. Se não pudermos vos atingir, podereis vir a nós. Vinde, pois, entre aqueles que vos amam e que amastes. Sustentai-os nas provas da vida; velai pelos que vos são caros; protegei-os conforme o vosso poder e abrandai os seus pesares pelo pensamento de que agora estais mais feliz e pela consoladora certeza de estardes um dia reunido em um mundo melhor.
Que vos seja possível, para a felicidade futura, ficar inacessível aos ressentimentos terrenos! Perdoai aos que cometeram faltas para convosco, como eles vos perdoam as que poderíeis ter cometido para com eles. Amém.
Palestras familiares de além-túmulo
O capitão NivracA lº. de fevereiro ele passeava com um de seus camaradas, atacando esse assunto, como de costume, quando, passando em frente a uma vitrine de livraria, viram a brochura O Espiritismo na sua expressão mais simples.
Boa inspiração diz o Sr. Blou.
Comprou-a, o que certamente não teria feito se eu estivesse presente.
Desse dia em diante o capitão Nivrac leu O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e alguns números da Revista Espírita.
Seu espírito e seu coração foram tocados. Longe de atacar, ele vinha fazer-me perguntas, e entre os oficiais tornou-se um zeloso propagandista do Espiritismo, a tal ponto que durante oito dias a doutrina nova foi o assunto de todas as conversas.
Ele desejava muito assistir a uma sessão, quando a morte veio surpreendê-lo sem nenhuma causa aparente de doença. A 11 de fevereiro, terça-feira, estando no banho, às quatro horas, expirava nos braços do médico. “Não estará aí o dedo de Deus”, pergunta o capitão Blou, “permitindo que o meu amigo abrisse os olhos à luz antes de sua morte?”
l. Evocação. ─ Compreendo por que desejais falar-me. Sinto-me feliz com esta evocação e feliz venho a vós, porque é um amigo que me pede e nada podia ser-me mais agradável.
Uma paixão de além-túmulo
“Maximilien V..., rapazinho de doze anos, morava com os pais na Rua des Cordiers e estava empregado como aprendiz de tapeceiro. Ele tinha o hábito de ler romances seriados. Todos os momentos que podia subtrair ao trabalho dedicava-os à leitura, que lhe superexcitava a imaginação e lhe inspirava ideias acima de sua idade. Foi assim que ele imaginou sentir uma paixão por uma criatura que tinha ocasião de ver algumas vezes e que estava longe de pensar que tivesse inspirado tal sentimento. Desesperançoso de ver a realização dos sonhos produzidos pelas leituras, resolveu matar-se. Ontem, o porteiro da casa onde ele estagiava encontrou-o sem vida num quartinho no terceiro andar, onde trabalhava sozinho. Enforcara-se em uma corda que afixara numa viga, com um enorme prego.”
As circunstâncias dessa morte, em uma idade tão precoce, deram a pensar que a evocação desse menino poderia fornecer assunto para um ensino útil. Foi feita na sessão da Sociedade a 24 de janeiro último, pelo médium Sr. E. Vézy.
No caso, há um difícil problema de moral, quiçá impossível de resolver pelos argumentos da filosofia ordinária, e ainda menos pela filosofia materialista. Pensam que tudo está explicado dizendo que é uma criança precoce. Mas isto nada explica. É absolutamente como se se dissesse que é dia porque o sol saiu. De onde vem a precocidade? Por que certas crianças ultrapassam a idade normal para o desenvolvimento das paixões e da inteligência? Eis uma das dificuldades contra as quais esbarram todas as filosofias, porque suas soluções deixam sempre uma questão não resolvida e a gente sempre pode indagar por quê. Admita-se a existência da alma e o desenvolvimento anterior, e tudo se explica da maneira mais natural. Com esse princípio, remontais à causa e à fonte de tudo.
(Ao guia espiritual do médium): ─ Poderia dizer-nos se podemos evocar o Espírito do menino a que acabamos de nos referir? ─ Sim. Conduzi-lo-ei, porque ele está sofrendo. Que a sua aparição em vosso meio sirva de exemplo e seja uma lição.
Causas da incredulidade
Li com muita desconfiança, direi mesmo com o sentimento de incredulidade, vossas primeiras publicações sobre o Espiritismo. Mais tarde as reli com enorme atenção, bem como as vossas outras publicações, à medida que apareciam.
Devo dizer sem preâmbulo que eu pertencia à escola materialista, porque de todas as seitas filosóficas ou religiosas era a mais tolerante e a única que não tomava armas para a defesa de um Deus que disse pela boca do Mestre: “Os homens provarão ser meus discípulos amando-se uns aos outros”. Depois, porque a maioria dos guias que tem a Sociedade para inculcar nos espíritos jovens as ideias de moral e de religião, pareciam mais determinados a lançar o pavor nas almas do que ensinar-lhes a bem se conduzirem e a esperar uma recompensa aos seus sacrifícios e uma compensação às suas aflições.
Assim, os materialistas de todas as épocas, e principalmente os filósofos do século passado, a maioria dos quais ilustram as Artes e as Ciências, aumentaram o número de seus prosélitos, à medida que a instrução emancipava as criaturas. Preferiu-se o nada aos suplícios eternos.
É natural que o infeliz compare. Se a comparação lhe for desvantajosa, ele duvidará de tudo. Com efeito, quando vemos o vício na opulência e a virtude na miséria, se não termos uma doutrina raciocinada e provada pelos fatos, o desespero apodera-se da alma, perguntamos o que é que se ganha em ser virtuoso, e atribuímos os escrúpulos da consciência aos preconceitos e aos erros de uma primeira educação.
Ignorando qual o uso que fareis desta carta, mas vos deixando, no caso, inteira liberdade, penso que não será inútil dar a conhecer as causas que operaram a minha conversão.
Eu tinha ouvido falar vagamente do magnetismo. Uns o consideravam coisa séria e real, outros o tratavam de tolice. Assim, não me detive no assunto.
Mais tarde ouvi falar por toda parte das mesas falantes e girantes, mas todos tratavam desse assunto com a mesma linguagem que usavam para o magnetismo, o que fez que também não me interessasse.
Contudo, uma circunstância inteiramente imprevista pôs à minha disposição o Traité de magnétisme et de somnambulisme[1] do Sr. Aubin Gauthier. Li essa obra com uma disposição de espírito continuamente rebelde ao seu conteúdo, tanto o que aí é explicado me parecia extraordinário e impossível. Chegado, porém, àquela página em que aquele homem honesto diz: “Não queremos que acreditem em nossa palavra. Experimentem, de acordo com os princípios que indicamos, e se constatarem que o que adiantamos é certo, tudo quanto pedimos é que ajam com boa-fé e que concordem”.
Essa linguagem de uma certeza racionada, só possível no homem prático, paralisou toda a minha efervescência, submeteu meu espírito à reflexão e o determinou a fazer as experiências. Inicialmente operei com um adolescente da minha família, de cerca de dezesseis anos, e tive resultados que ultrapassaram as esperanças. Será difícil dizer da perturbação que se operou em mim. Eu desconfiava de mim mesmo e me perguntava se não era vítima daquele menino que, havendo adivinhado as minhas intenções, fazia macaquices e simulações para me intrigar.
Para me certificar, tomei certas precauções indicadas e arranjei um magnetizador. Então tive certeza de que realmente o menino se achava sob influência magnética. Esse primeiro ensaio me deu tanta coragem que me entreguei a essa ciência, cujos fenômenos todos tive ocasião de observar, ao mesmo tempo que pude constatar a existência do agente invisível que os produzia.
Qual é esse agente? Quem o dirige? Qual a sua essência? Por que não é visível? São perguntas às quais não posso responder, mas que me levaram a ler o que foi escrito pró e contra as mesas falantes, porque, dizia eu de mim para mim, se um agente invisível podia produzir os efeitos de que eu era testemunha, outro agente, ou talvez o mesmo, poderia certamente produzir outros, de onde concluí que a coisa era possível. Hoje creio, embora nada tenha visto ainda.
Todas essas coisas, por seus efeitos, são tão surpreendentes quanto o Espiritismo, que os críticos aliás combateram muito fracamente e de maneira a não abalar qualquer convicção.
Mas, o que caracteriza diversamente dos efeitos materiais, são os efeitos morais. Para mim é evidente que todo homem que se ocupa disso honestamente, se for bom, tornar-se-á melhor; se for mau, forçosamente modificará o seu caráter.
Outrora a esperança não passava de uma corda em que se penduravam os infelizes. Com o Espiritismo, a esperança é um consolo, os sofrimentos uma expiação e o Espírito, em vez de se rebelar contra os decretos da Providência, suporta pacientemente suas misérias, não maldiz a Deus nem aos homens e marcha sempre para a perfeição. Se eu tivesse sido alimentado por essas ideias, certamente não teria passado pela escola do materialismo, de onde me sinto feliz por ter saído.
Vedes, senhor, que por mais rudes que tenham sido os combates em que me empenhei, minha conversão se operou, e vós sois um daqueles que para ela mais contribuíram. Registrai-a em vossas fichas, porque não será uma das menores. De agora em diante, contai-me no número dos vossos adeptos.
GAUZY
Antigo Oficial Rue Saint-Louis, 23, Batignolles - Paris
[1] Tratado de magnetismo e de sonambulismo. Damos no texto o nome das obras no original sempre que as mesmas não foram traduzidas para a nossa língua. Nota do Tradutor.
Resposta de uma senhora a um padre sobre o Espiritismo
“Senhora,
“Lamento que ontem não tivesse podido trocar ideias em particular sobre certas práticas religiosas contrárias ao ensino da santa Igreja. Falou-se muito disso em vossa família e mesmo num círculo. Eu me sentiria feliz, senhora, de saber que só tendes desprezo por essas superstições diabólicas e que estais sempre sinceramente ligada aos dogmas invariáveis da religião católica.
“Tenho a honra, etc.
X...”
“Estando minha mãe muito doente para responder pessoalmente a vossa bondosa carta de 8 do corrente, apresso-me em fazê-lo por ela e de sua parte, a fim de tranquilizar a vossa solicitude quanto aos perigos que ela e sua família podem correr.
“Caro senhor, em minha casa não se faz nenhuma prática religiosa que possa inquietar os mais fervorosos católicos, a menos que o respeito e a fé pelos mortos, a fé na imortalidade da alma, uma confiança ilimitada no amor e na bondade de Deus e uma observância tão rígida quanto o permite a natureza humana das santas doutrinas do Cristo sejam práticas reprováveis pela santa Igreja Católica.
“Quanto ao que possam dizer de minha família, mesmo em um círculo, estou tranquila. Nem lá nem alhures jamais dirão que algum de nós tenha feito coisas das quais tenha que corar ou esconder-se, e eu não coro nem me oculto por admitir o desenvolvimento e a clareza que as manifestações espíritas espalham, para mim e para muitos outros, sobre aquilo que havia de obscuro do ponto de vista de minha inteligência, em tudo quanto parecia sair das leis da Natureza.
A essas superstições diabólicas eu devo a crença sincera, com reconhecimento, em todos os milagres que a Igreja nos dá como artigo de fé e que, até o presente, eu conservava como símbolos, ou antes, confesso-o, como fantasias. Devo-lhes uma quietude de alma que até agora não tinha obtido, por maiores que tivessem sido meus esforços. Devo-lhes a fé, a fé sem limites, sem reflexão, sem comentários, a fé, enfim, tal qual ordena a Igreja aos seus filhos, tal qual o Senhor deve exigir das criaturas, tal qual o divino Salvador pregou pela palavra e pelo exemplo.
“Tranquilizai-vos, pois, caríssimo senhor! O Bom Pastor reuniu em seu redor as ovelhas indiferentes, que o seguiam maquinalmente e por hábito, e que agora o seguem e o seguirão sempre com amor e reconhecimento. O divino Mestre perdoou a São Tomé por não haver acreditado antes de ver. Então! Ainda hoje ele vem fazer que os incrédulos toquem o seu lado e as suas mãos e é com um amor sem nome que os que duvidavam se aproximam para beijar os seus pés sangrentos e agradecer a esse pai bom e misericordioso por permitir que essas verdades imutáveis se tornem palpáveis, a fim de fortalecer os fracos e esclarecer os cegos que se recusavam até a ver a luz que brilha há tantos séculos.
“Permiti, agora, reabilitar a minha mãe aos olhos da santa Igreja. De toda a minha família, meu marido e eu somos os únicos que temos a felicidade de seguir essa via que cada um tem liberdade de julgar do seu ponto de vista. Apresso-me, pois, em vos tranquilizar a tal respeito.
“Quanto a mim, pessoalmente, encontrei muita força e consolo na certeza palpável de que aqueles que nós amamos e que choramos estão sempre perto de nós, pregando o amor de Deus acima de tudo, o amor ao próximo, a caridade sob todas assuas faces, a abnegação, o esquecimento das injúrias, o bem pelo mal (o que, parece, não se afasta dos dogmas da Igreja).
Aconteça o que acontecer aqui em baixo, apego-me àquilo que sei, ao que vi, pedindo a Deus que envie as suas consolações àqueles que, como eu, não ousavam refletir nos mistérios da religião, com receio de que essa pobre razão humana, que não quer admitir senão aquilo que compreende, destruísse as crenças que o hábito me dava um ar de possuir.
“Agradeço, pois, ao Senhor, cuja bondade e poder incontestáveis permitem aos anjos e aos santos agora se tornarem visíveis, para salvarem os homens da dúvida e da negação, o que tinha sido permitido ao demônio fazer para desviá-los do bom caminho, desde a criação do mundo.
“Tudo é possível a Deus, mesmo os milagres. Hoje eu o reconheço com felicidade e confiança.
“Aceitai, caro senhor vigário, meus sinceros agradecimentos pelo interesse que nos testemunhastes e crede que faço votos ardentes para ver entrar em todos os corações a fé e o amor que hoje tenho a felicidade de possuir.
“Recebei, etc.
“ÉMILIE COLLIGNON”
OBSERVAÇÃO: Dispensamo-nos de comentar essa carta, deixando a cada um a tarefa de apreciála. Apenas diremos que conhecemos um grande número delas, no mesmo sentido.
A passagem que se segue, de uma delas, pode resumi-las, se não quanto aos termos, ao menos quanto ao sentido:
“Posto nascida e batizada na religião Católica Apostólica Romana há trinta anos, isto é, desde a primeira comunhão, eu tinha esquecido minhas preces e o caminho da igreja. Numa palavra, não acreditava em nada senão na realidade da vida presente. Por uma graça do Céu, veio, enfim, o Espiritismo abrir-me os olhos. Hoje os fatos me falaram. Não só creio em Deus e na alma, mas na vida futura, feliz ou infeliz; creio num Deus justo e bom, que pune os maus atos e não as crenças erradas.
“Como um mudo que recupera a palavra, recordei-me de minhas preces e oro, não mais com os lábios e sem compreender, mas de coração, com inteligência, fé e amor. Ainda há pouco tempo eu admitia praticar um ato de fraqueza se me aproximasse dos sacramentos da Igreja. Hoje acredito praticar um ato de humildade agradável a Deus em recebê-los. Vós me repelis mesmo do tribunal da penitência.
Antes de mais nada impondes uma retratação formal de minhas crenças espíritas. Quereis que renuncie a conversar com o filho querido que perdi e que me veio dizer palavras tão doces e consoladoras. Quereis que eu declare que essa criança, que reconheci como se estivesse viva em minha frente, é o demônio. Não! Uma mãe não se engana tão grosseiramente.
“Mas, senhor vigário, são as próprias palavras dessa criança que, tendo-me convencido da vida futura, me reconduzem à igreja! Como quereis que eu creia que é o demônio? Se isso tivesse que ser a última palavra da Igreja, a gente perguntará o que acontecerá quando todo o mundo for espírita?
“Estigmatizastes-me do alto da cátedra; apontastes-me com o dedo; levantastes contra mim uma turba fanática; fizestes retirar de uma pobre mulher que compartilha de minhas crenças o trabalho que lhe permitia viver, dizendo que ela teria auxílio se deixasse de me ver, esperando vencê-la pela fome. Francamente, senhor vigário, Jesus Cristo teria feito isso?
“Dizeis agir conforme a vossa consciência. Não temeis que eu cometa uma violência, mas achais bom que eu aja conforme a minha.
“Repelis-me da Igreja. Não tentarei lá voltar à força, porque em toda parte a prece é agradável a Deus.
“Deixai-me apenas historiar as causas que, de há muito, dela me haviam afastado; que fizeram a princípio nascer em mim a dúvida e desta a negação de tudo.
Se agora sou maldita, como pretendeis, vereis a quem cabe a responsabilidade...”
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OBSERVAÇÃO: As reflexões que brotam de semelhantes coisas resumem-se em duas palavras: Fatal imprudência! Fatal cegueira!
Passamos os olhos sobre um manuscrito intitulado “Memórias de um incrédulo”. É um curioso relato das causas que conduzem o homem às ideias materialistas e dos meios pelos quais ele pode ser reconduzido à fé. Ainda não sabemos se o autor irá publicá-lo.
O padeiro desumano
“Uma pobre viúva, mãe de três filhos, entra numa padaria e pede insistentemente que lhe vendam um pão fiado. O padeiro se recusa. A viúva reduz o pedido a meio pão e, por fim, a uma libra de pão, apenas para seus filhos famintos. O padeiro recusa ainda, deixa o lugar e vai para o fundo da padaria. Crendo não ser vista, a mulher toma um pão e sai. Mas o roubo, imediatamente descoberto, é denunciado à polícia.
“Um agente vai à casa da viúva e a surpreende cortando o pão em pedaços para os filhos. Ela não nega o roubo, mas se desculpa com a necessidade. Embora censurando a dureza do padeiro, o agente insiste para que ela o acompanhe até o comissário.
“A viúva pede apenas alguns instantes para trocar de roupa. Entra no quarto, mas demora bastante até que o agente, perdendo a paciência, resolve abrir a porta. A infeliz estava estirada no chão, coberta de sangue. Com a mesma faca com que cortava o pão para os filhos, tinha posto fim a seus dias.”
Tendo sido lida a notícia na sessão da Sociedade de 14 de fevereiro de 1862, foi proposta a evocação dessa infeliz, quando ela mesma veio manifestar-se espontaneamente, na comunicação que segue.
Acontece muitas vezes que assim se revelam Espíritos de quem falamos. É fora de dúvida que são atraídos pelo pensamento, o que é uma espécie de evocação tácita. Eles sabem que a gente se ocupa deles e vêm. Então se comunicam, se o momento é propício ou se acham um médium que lhes convém. De acordo com isso, compreende-se que não há necessidade de ser um médium, e nem mesmo de ser espírita, para atrair os Espíritos com os quais a gente se ocupa.
“Deus foi bom para a pobre alucinada e venho agradecer-vos a simpatia que tivestes a bondade de me testemunhar. Ah! Diante da miséria e da fome de meus pobres filhinhos, esqueci-me e fali. Então eu disse a mim mesma: Se és impotente para alimentar teus filhos e o padeiro recusa o pão aos que não podem pagar; se não tens dinheiro nem trabalho, morre! Se não estiveres mais com eles, alguém virá em seu auxílio.
“Com efeito, hoje a caridade pública adotou esses pobres órfãos. Deus me perdoou, porque viu a razão vacilar no meu atroz desespero. Fui a vítima inocente de uma Sociedade má, muito mal regulada. Ah! Agradecei a Deus por vos ter feito nascer neste belo país da França, onde a caridade vai descobrir e aliviar todas as misérias.
“Orai por mim, a fim de que possa em breve reparar a falta que cometi, não por covardia, mas por amor materno. Como os vossos Espíritos protetores são bons! Eles me consolam, me fortalecem, me encorajam dizendo que o meu sacrifício não foi desagradável ao grande Espírito que, sob os olhos e a mão de Deus, preside os destinos da Humanidade.”
A POBRE MARY (Médium: Sr. d’Ambel)
“Essa infeliz mulher é uma das vítimas do vosso mundo, de vossas leis, de vossa sociedade. Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: essa infeliz matou-se não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. E que onde a justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a justiça divina constata o fundo do coração e o estado de consciência. Seria desejável que em certas naturezas privilegiadas fosse desenvolvido um dom que seria muito útil, não para os tribunais, mas para o adiantamento de algumas pessoas: esse dom é uma espécie de sonambulismo do pensamento que descobre muitas vezes as coisas ocultas, mas que o homem habituado à corrente da vida negligencia e atenua por sua falta de fé. E certo que um médium desse gênero, examinando essa pobre mulher, teria dito: “Essa mulher é abençoada por Deus porque é infeliz e esse homem é amaldiçoado porque recusou o pão”. Ó Deus, quando, pois, todos os teus dons serão reconhecidos e postos em prática? Aos olhos de tua justiça, o que recusou o pão será punido, porque Cristo disse: “Aquele que dá pão a seu próximo, a mim o dá”.
LAMENNAIS (Médium: Sr. A. Didier)
Dissertações espíritas
Aos membros da sociedade de Paris que partem para a RússiaVossa pátria é chamada a tornar-se grande e forte, não só pela Literatura, pela Ciência, pelo gênio e pelo número, mas ainda por seu amor e seu devotamento ao criador de todas as coisas.
Que a vossa caridade se torne, pois, larga e poderosa. Não receeis espalhar a mancheias em vosso derredor. Sabei que a caridade não se faz somente com a esmola, mas também com o coração!... O coração, eis a grande fonte do bem, a fonte dos eflúvios que se devem espargir e aquecer a vida dos que sofrem em redor de vós!...
Ide e pregai o Evangelho, novos apóstolos do Cristo.
Deus vos situou no alto, a fim de que todos vos possam ver e que vossas palavras sejam bem compreendidas.
Mas é sempre olhando o Céu e a Terra, isto é, Deus e a Humanidade, que atingireis o grande objetivo que vos propondes atingir e para o que nós vos ajudamos.
O campo é vasto. Ide, pois, e semeai, para que em breve possamos fazer a colheita.
Podeis anunciar por toda parte que em breve chegará o grande reino, reino de felicidade e satisfação para todos os que quiseram crer e amar, pois dele participarão.
Recebei, pois, antes de partir, o último conselho que vos damos sob este belo céu que todos amam, sob o céu da França! Recebei o último adeus dos amigos que continuarão a vos ajudar no duro caminho que lá ides percorrer. Entretanto, nossas mãos invisíveis vo-lo tornarão mais fácil, e se souberdes aí ter perseverança, vontade, coragem, vereis caírem os obstáculos à vossa frente.
Quando ouvirem de vossa boca estas palavras: “Todos os homens são irmãos e devem apoiar-se reciprocamente para marchar”, quanta admiração e quantas exclamações! Sorrirão ao verem que professais tal doutrina, e dirão baixinho: “Eles, os grandes, dizem coisas bonitas, mas não são marcos que indicam os caminhos que não percorrem?”
Mostrai. Mostrai-lhes então que o espírita, esse novo apóstolo do Cristo, não está no meio da estrada para indicar a direção, mas toma do machado e do cutelo e se atira às mais sombrias florestas para rasgar o caminho e desviar os espinhos dos passos dos que os seguem.
Sim, os novos discípulos do Cristo devem ser vigorosos; devem marchar com o passo firme e de mãos ativas. Não há barreiras à sua frente. Todas devem cair aos seus esforços e aos seus golpes. As densas florestas, as lianas e as sarças quebrar-se-ão para deixar que vejam um pedaço do céu!
Então aí estará o consolo e a felicidade.
Que recompensa a vossa! Os Espíritos bem-aventurados exclamarão: “Bravo! Bravo!”. Filhos, em breve sereis dos nossos e em breve vos chamaremos nossos irmãos, porque a tarefa que vos impusestes voluntariamente, soubestes desempenhála. Deus tem grandes recompensas para os que trabalham no seu campo. Ele dá a colheita a todos os que contribuem para a grande obra!
Ide, pois, em paz. Ide, que vos abençoamos. Que essa bênção vos dê a felicidade e vos encha de coragem. Não esqueçais nenhum dos vossos irmãos da grande sociedade da França. Todos fazem votos por vós e por vossa pátria, que o Espiritismo tornará poderosa e forte. Ide. Os bons Espíritos vos assistem!
SANTO AGOSTINHO
Relações amigas entre vivos e mortos
R. ─ Porque sois materiais e nós não mais o somos. Vou fazer uma comparação que, como todas as comparações, não será absolutamente exata, mas será o bastante para o que quero dizer.
Suponho que experimentes por uma mulher uma dessas paixões que só os romancistas imaginam entre vós e que considerais exageradas, enquanto que para nós parecem diferir pouco das que conhecemos pelo espaço infinito.
Continuo supondo. Depois de ter tido, por algum tempo, a felicidade inefável de falar diariamente com essa mulher e de contemplá-la à vontade, uma circunstância qualquer faz com que não mais possas vê-la e que te deves contentar apenas em ouvi-la. Crês que teu amor resistiria sem nenhum arrefecimento a uma situação desse gênero, prolongada indefinidamente? Confessa que ele sofreria qualquer modificação, ou aquilo que nós chamaríamos uma diminuição.
Vamos mais longe. Não só não podes mais ver essa bela amiga, mas não podes nem mesmo ouvi-la, porque ela foi sequestrada. Não deixam que te aproximes. Prolonga essa situação por alguns anos e verás o que acontece.
Agora, mais um passo. A mulher que amas está morta. Ela está, desde muito, enterrada nas trevas da sepultura. Nova mudança em ti. Não quero dizer que a paixão morreu com o seu objeto, mas sustento que pelo menos transformou-se. É de tal modo que se, por um favor do Céu, a mulher que tanto lamentas e por quem sempre choras viesse apresentar-se à tua frente, não na odiosa realidade de um esqueleto que repousa no cemitério, mas com a forma que tu amavas e adoravas até o êxtase, tens certeza de que o primeiro efeito da aparição imprevista não seria um sentimento de profundo terror?
Como vês, meu amigo, é que as paixões, as afeições vivas não são possíveis em toda a sua extensão senão entre criaturas da mesma natureza, entre mundanos e mundanos, entre Espíritos e Espíritos. Com isso não quero dizer que toda a afeição deva apagar-se com a morte. Quero dizer que ela muda de natureza e toma um outro caráter. Numa palavra, quero dizer que em vossa Terra conservais uma boa lembrança daqueles a quem amastes, mas que a matéria, em cujo meio viveis, não vos permite compreender nem praticar outra coisa senão amores materiais, e que um tal gênero de amor, naturalmente impossível entre vós e nós, vos torna tão canhestros e frios nas vossas relações conosco. Se queres convencer-te, relê algumas conversas espíritas entre parentes, amigos e conhecidos. Tu as julgarás de uma frieza que gelaria os habitantes dos pólos.
Não é por nossa vontade, nem nos entristecemos por isso, desde que sejamos suficientemente elevados na hierarquia dos Espíritos para o notar e compreender. Mas, naturalmente, isso não deixa de ter algumas influências sobre a maneira de ser para convosco.
Lembras-te da história de Hanifa que, podendo entrar em comunicação com a sua filha querida, que ela tanto chorara, faz-lhe esta primeira pergunta: “Há um tesouro oculto nesta casa?” Que bela mistificação recebeu! Essa não foi roubada.
Meu amigo! Penso ter dito o bastante para que bem sintas a causa do mal-estar que necessariamente existe entre vós e nós. Eu poderia ter dito mais. Poderia ter dito, por exemplo, que vemos todas as vossas imperfeições e impurezas do corpo e da alma e que, do vosso lado, tendes a consciência de que o vemos. Confessa que é embaraçoso para ambos os lados. Coloca dois amantes apaixonadíssimos nessa caixa de vidro onde tudo aparece, tanto no moral como no físico, e imagina o que acontecerá.
Quanto a nós, animados por um sentimento de caridade que não podeis compreender, somos, em relação a vós, como a boa mãe a quem as enfermidades e as sujeiras do filho chorão, que lhe tira o sono, não fazem esquecer, nem por um instante, os sublimes instintos da maternidade. Nós vos vemos fracos, feios e maus, contudo, nós vos amamos, porque tratamos de vos melhorar. Entretanto, vós não nos fazeis justiça, temendo-nos mais do que nos amando.
DÉSIRÉ LÉGLISE
(Poeta argelino falecido em 1851)
As duas lágrimas
Durante muito tempo, todos os Espíritos guias dos homens tinham tentado desviá-lo do caminho que trilhava, mas, cansados de lutar, haviam abandonado esse infeliz a si mesmo, quase temerosos de seu contato.
No entanto, tudo tem um fim. Mais cedo ou mais tarde o crime se descobre e a justiça repressiva dos homens impõe ao culpado a pena de talião. Dessa vez não foi cabeça por cabeça. Foi cabeça por cem. Ontem esse Espírito, depois ter ficado meio século na Terra, ia voltar ao espaço para ser julgado pelo Supremo Juiz, que pesa as faltas muito mais inexoravelmente do que o faríeis vós mesmos.
Em vão os Espíritos guardiães tinham voltado com a condenação e tentado introduzir o arrependimento nessa alma rebelde. Em vão dele tinham aproximado os Espíritos de toda a família. Cada um desejaria arrancar-lhe um suspiro de pesar, ou ao menos um sinal. Aproximava-se o momento fatal e nada emocionava essa alma de bronze e, por assim dizer, bestial.
Entretanto um único pesar, antes de deixar a vida, poderia ter dulcificado os sofrimentos do infeliz, condenado pelos homens a perder a vida, e por Deus aos incessantes remorsos, a horrível tortura semelhante ao abutre a roer o coração que se restaura sem cessar.
Enquanto os Espíritos trabalhavam sem descanso para nele fazer renascer ao menos o pensamento de arrependimento, um outro Espírito, Espírito encantador, dotado de uma sensibilidade e de uma ternura sublimes, voava em redor de uma cabeça muito querida, cabeça ainda viva, e lhe dizia: “Pensa nesse infeliz que vai morrer e fala-me dele”.
Quando a caridade é simpática; quando dois Espíritos se entendem como se fossem apenas um, o pensamento como que se carrega de eletricidade. Logo em seguida o Espírito encarnado disse a esse mensageiro do amor: “Meu filho, procura inspirar um pouco de remorso a esse miserável que vai morrer. Vai e consola-o”.
Pensando nisso, ao compreender tudo o que esse infeliz criminoso ia ter de suportar em sofrimentos para sua expiação, uma lágrima furtiva escapou-se dos olhos daquele que só, nessa hora matinal, levantava-se pensando naquele ser impuro que dentro de instantes deveria prestar contas.
O suave mensageiro recolheu essa lágrima benfazeja na concha da mão minúscula e, em voo rápido, a levou ao tabernáculo onde se guardam essas relíquias, e assim fez a sua prece.
─ Senhor, um ímpio vai morrer. Vós o condenastes, mas dissestes: “Eu perdoo quando há remorso e concedo indulgência quando há arrependimento”. Eis uma lágrima de verdadeira caridade, que extravasou do coração para os olhos do ser que mais amo na Terra. Eu vos trago esta lágrima. É o resgate do sofrimento. Dai-me o poder de enternecer o coração de rocha do Espírito que vai expiar os seus crimes.
─ Vai, respondeu-lhe o Mestre. Vai, meu filho. Essa lágrima bendita pode pagar muitos resgates.
A suave criança partiu e chegou junto do criminoso no momento do suplício. O que ela lhe disse só Deus o sabe; o que se passou naquele ser transviado ninguém compreendeu, mas, abrindo os olhos à luz, ele viu desdobrar-se à sua frente um passado horroroso. Ele, a quem o instrumento fatal não abalava, a quem a condenação à morte tinha feito sorrir, ergueu os olhos e uma grossa lágrima causticante como o chumbo fundido caiu de seus olhos.
A essa prova muda que lhe testemunhava que sua prece tinha sido ouvida, o anjo da caridade estendeu sobre o infeliz as suas brancas asas, recolheu aquela lágrima e parecia dizer: “Infeliz! Sofrerás menos. Eu levo a tua redenção!”
Que contraste pode inspirar a caridade do Criador! O mais impuro dos seres, nos últimos degraus da escada, e o anjo mais casto prestes a entrar no mundo dos eleitos, a um sinal vem estender a sua proteção visível sobre esse pária da Sociedade.
Do alto de seu poderoso tribunal, Deus abençoava essa cena tocante e nós todos dizíamos, rodeando a criança: “Vai receber a tua recompensa.”
A suave mensageira subiu aos Céus, com a lágrima escaldante nas mãos e pôde dizer:
─ Senhor, ele chorou. Eis aqui a prova!
─ Está bem, respondeu o Senhor. Conservai essa primeira gota de orvalho do coração endurecido. Que essa lágrima fecunda vá regar esse Espírito ressequido pelo mal. Mas guardai sobretudo a primeira lágrima que essa criança me trouxe, e que essa gota d’água se torne diamante puro, porque ela é a pérola sem mancha da verdadeira caridade. Contai esse exemplo aos povos e dizei-lhes, solidários uns com os outros: “Olhai e vede! Eis aqui uma lágrima de amor pela Humanidade, e uma lágrima de remorso obtida pela prece. Estas duas lágrimas serão as pedras mais preciosas do vasto escrínio da caridade”.
CÁRITA
Os dois Voltaires
Pobres cérebros demasiado estreitos para conterem tantas maravilhas! Humanos, calai-vos e humilhai-vos ante o poder supremo! Admirai e contemplai! É o que podeis fazer. Como quereis aprofundar Deus e o seu grande trabalho? Apesar de todos os seus recursos, a vossa razão não se quebra diante do átomo e do grão de areia que ela não pode definir?
Eu empreguei a minha vida a procurar e conhecer Deus e seu princípio. Minha razão se enfraqueceu e eu cheguei ao ponto não de negar Deus, mas a sua glória, o seu poder e a sua grandeza. Eu o explicava desenvolvendo-se no tempo. Uma intuição celeste me dizia que rejeitasse tal erro, mas eu não escutava e me fiz apóstolo de uma doutrina mentirosa... Sabeis por quê? Porque, no tumulto e na confusão de meus pensamentos, num entrechoque incessante, eu só via uma coisa: meu nome gravado no frontão do templo da memória das nações! Eu só via a glória que me prometia essa juventude universal que me cercava e parecia saborear com suave delícia a essência da doutrina que eu lhe ensinava.
Entretanto, empurrado não sei por qual remorso de minha consciência, quis parar, mas era tarde. Como toda utopia, todo sistema que abraçamos nos arrasta. A princípio segue a torrente, depois nos arrasta e nos quebra, tão rápida e violenta é por vezes a sua queda.
Crede-me, vós que aqui estais à procura da verdade, encontrá-la-eis quando tiverdes tirado de vosso coração o amor às lantejoulas, que um tolo amor-próprio e um tolo orgulho fazem brilhar aos vossos olhos.
Na nova via por onde marchais, não temais combater o erro e desafiá-lo, quando se erguer à vossa frente. Não é uma monstruosidade preconizarmos uma mentira, contra a qual ninguém ousa defender-se, pelo fato de saber-se que fizemos discípulos que ultrapassaram as nossas crenças?
Vedes, meus amigos, que o Voltaire de hoje não é mais aquele do século dezoito. Eu sou mais cristão, porque aqui venho fazer-vos esquecer a minha glória e vos lembrar o que eu fui na juventude e o que eu amava em minha infância.
Oh! Como eu gostava de me perder no mundo dos pensamentos! Minha imaginação ardente e viva percorria os vales da Ásia em busca daquele que chamais Redentor... Eu gostava de percorrer os caminhos que ele tinha percorrido. E como me parecia grande e sublime esse Cristo em meio à multidão! Eu acreditava ouvir a sua voz poderosa, instruindo os povos da Galileia, das bordas do Tiberíades e da Judeia!...
Mais tarde, nas minhas noites de insônia, quantas vezes me ergui para abrir uma velha Bíblia e reler suas páginas santas! Então minha fronte se inclinava diante da cruz, esse sinal eterno da redenção, que une a Terra ao Céu, a criatura ao Criador!... Quantas vezes admirei esse poder de Deus, subdividindo-se, por assim dizer, e cuja centelha se encarna para fazer-se tão pequena, vindo entregar a alma no Calvário, em expiação!...vítima augusta cuja divindade eu negava, e que, entretanto, me fez dizer:
Teu Deus que tu traíste,
Teu Deus que tu blasfemas; Para ti, para o Universo, Morreu nesses lugares!
Sofro, mas expio a resistência que opunha a Deus. Eu tinha a missão de instruir e esclarecer. A princípio o fiz, mas o meu facho se extinguiu nas minhas mãos, na hora marcada para a luz.
Felizes filhos do século dezenove e do século vinte, a vós é que é dado ver luzir o facho da verdade. Fazei que vossos olhos vejam bem a sua luz, porque para vós ela terá radiações celestes, e sua claridade será divina!
VOLTAIRE
Filhos, deixei que em meu lugar falasse um dos vossos grandes filósofos, principal arquiteto do erro. Quis que ele viesse dizer-vos onde está a luz. Que vos parece? Todos virão repetir-vos: “Não há sabedoria sem amor nem caridade”. Dizei-me, que doutrina será mais suave para ensinar que o Espiritismo? Nunca seria demasiado repetir-vos que o amor e a caridade são as duas virtudes supremas que unem, como diz Voltaire, a criatura ao Criador. Oh! Que mistério e que laço sublime! Ínfimo verme da Terra, que pode tornar-se tão poderoso que a sua glória atingirá o trono do Eterno!...
SANTO AGOSTINHO
Junho
Sociedade parisiense de estudos espíritas - Discurso do Sr. Allan Kardec - Na abertura do ano social, a 1º de Abril de 1862A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas começou seu quinto ano a 10 de abril de 1862 e, temos que convir, jamais o fez sob melhores auspícios. O fato não tem importância apenas do nosso ponto de vista pessoal, mas é característico, sobretudo do ponto de vista da doutrina em geral, porque prova, de modo evidente, a intervenção dos nossos guias espirituais.
Seria supérfluo lembrar a origem modesta da Sociedade, bem como as circunstâncias, de certa forma providenciais, de sua constituição, circunstâncias para as quais um Espírito eminente, então no poder, e que depois voltou ao mundo dos Espíritos, nos disse ter ele próprio contribuído poderosamente.
Vós vos lembrais, senhores, que a Sociedade teve as suas vicissitudes. Havia em seu seio elementos de dissolução, vindos da época em que se recrutava gente muito facilmente, e sua existência chegou, em certo momento, a estar comprometida. Naquele momento eu duvidei de sua utilidade real, não como simples reunião, mas como Sociedade constituída. Fatigado por essas perplexidades, eu estava resolvido a retirar-me. Esperava que, uma vez livre dos entraves semeados em meu caminho, trabalharia melhor na grande obra empreendida. Fui dissuadido de fazê-lo por numerosas comunicações espontâneas que me foram dadas de vários pontos. Entre outras há uma, cuja substância me parece útil vos dar a conhecer, porque os acontecimentos justificaram as previsões. Ela está assim concebida:
“A Sociedade, formada por nós com o teu concurso, é necessária. Queremos que subsista e subsistirá, malgrado a má vontade de alguns, como tu o reconhecerás mais tarde. Quando existe um mal, não se cura sem crise. Assim é do pequeno ao grande; no indivíduo, como nas sociedades; nas sociedades como nos povos; nos povos como o será na Humanidade.
Nossa Sociedade, dizemos, é necessária. Quando deixar de ser, sob a forma atual, transformar-se-á como todas as coisas. Quanto a ti, não podes, não deves retirar-te. Contudo, não pretendemos acorrentar o teu livre-arbítrio. Apenas dizemos que a tua retirada seria um erro que lamentarias um dia, porque entravaria os nossos desígnios.”
Desde então, dois anos se passaram e, como vedes, a Sociedade felizmente saiu daquela crise passageira, cujas peripécias todas me foram assinaladas, e das quais um dos resultados foi dar-nos uma lição de experiência que aproveitamos e que provocou medidas pelas quais nos felicitamos.
Desembaraçada das preocupações inerentes ao seu estado anterior, a Sociedade pôde prosseguir os seus estudos sem entraves. Também os seus progressos foram rápidos e ela cresceu a olhos vistos, não direi numericamente, posto seja mais numerosa do que nunca, mas em importância. Oitenta e sete membros participando das cotizações anuais figuraram na lista do ano findo, sem contar os sócios honorários e correspondentes. Ter-lhe-ia sido fácil dobrar, e mesmo triplicar esse número, se ela visasse receita. Bastava cercar as admissões de menos dificuldades. Ora, longe de diminuir tais dificuldades, ela as aumentou, porque, sendo uma sociedade de estudos, não quis afastar-se dos princípios de sua instituição e porque jamais fez questão de interesses materiais. Não procurando entesourar, era-lhe indiferente ser um pouco mais ou um pouco menos numerosa. Sua preponderância nada tem a ver com o número de sócios. Ela está nas ideias que estuda, elabora e divulga. Ela não faz propaganda ativa; não tem agentes nem emissários; não pede a ninguém que venha a ela e, o que pode parecer extraordinário, é a essa reserva que deve a sua influência.
Vejamos, a respeito disto, qual é o seu raciocínio: Se as ideias espíritas fossem falsas, nada lhes permitiria lançar raízes, porque toda ideia falsa só tem existência passageira. Se são verdadeiras, firmar-se-ão a despeito de tudo, pela convicção, e o pior meio de propagá-las seria o de impô-las, porque toda ideia imposta é suspeita e trai a sua fraqueza. As ideias verdadeiras devem ser aceitas pela razão e pelo bom senso. Onde elas não germinam, é porque não chegou o seu tempo. É preciso esperar e limitar-se a lançar a semente ao vento, porque, mais cedo ou mais tarde, algumas cairão em terreno menos árido.
O número de membros da Sociedade é, assim, uma questão muito secundária, porque hoje, menos que nunca, ela não poderia pretender absorver todos os adeptos.
Seu objetivo, por estudos conscienciosos, feitos sem preconceitos e sem partido, é o de elucidar as várias partes da Ciência Espírita; buscar as causas dos fenômenos e recolher todas as observações de natureza a esclarecer o problema tão importante e tão palpitante de interesse do estado do mundo invisível, de sua ação sobre o mundo visível e das inumeráveis consequências daí decorrentes para a Humanidade.
Por sua posição e pela multiplicidade de suas relações, ela se acha nas mais favoráveis condições para observar bem e bastante. Seu fim é, pois, essencialmente moral e filosófico, mas o que, acima de tudo, deu crédito aos seus trabalhos é a calma e a gravidade que a eles se aplica. É que aí tudo é discutido friamente, sem paixão, como devem fazê-lo as pessoas que de boa-fé procuram esclarecer-se. É porque sabem que ela só se ocupa de coisas sérias; é, enfim, a impressão que os numerosos estrangeiros, por vezes vindos de terras distantes para assisti-los, levaram da ordem e da dignidade de suas sessões.
Assim, a linha que ela seguiu dá os seus frutos. Os princípios que ela professa, baseados em observações conscienciosas, hoje servem de regra à imensa maioria dos espíritas. Vistes caírem, seguidamente, diante da experiência, a maioria dos sistemas nascidos no começo, e são pouquíssimos os que conservam raros partidários. Isto é incontestável. Quais as ideias que crescem e quais as que declinam? É uma questão de fato.
A doutrina da reencarnação foi o mais controvertido dos princípios, e seus adversários nada pouparam para derrubá-la, nem mesmo as injúrias e grosserias, esse argumento supremo daqueles a quem faltam boas razões. Nem por isso ela deixou de fazer o seu caminho, porque se apoia numa lógica inflexível; porque sem essa alavanca chocamo-nos com dificuldades intransponíveis e porque, enfim, nada se achou de mais racional para substituí-la.
Há, entretanto, um sistema que, mais do que nunca, se espalha agora: o sistema diabólico. Na impossibilidade de negar as manifestações, pretende um partido provar que elas são obra exclusiva do diabo. O encarniçamento com que ataca, prova que ele não está muito convencido de suas razões. Os espíritas, de sua parte, não se comovem absolutamente com essa manifestação de forças, que eles deixam que se gastem. Neste momento ele abre fogo em toda a linha: discursos, pequenas brochuras, grossos volumes, artigos de jornais. É um ataque geral para demonstrar o quê? Que os fatos que em nossa opinião testemunham o poder e a bondade de Deus, ao contrário testemunham o poder do diabo, donde resulta que podendo apenas o diabo manifestar-se, ele é mais poderoso do que Deus. Atribuir ao diabo tudo quanto é bom nas comunicações é retirar de Deus o bem para homenagear o diabo. Nós nos julgamos mais respeitosos para com a Divindade. Aliás, como eu já disse, os espíritas pouco se inquietam com esse brado de armas, que terá o efeito de destruir um pouco mais cedo o prestígio de Satã.
Sem o emprego de meios materiais, e embora restrita numericamente, por sua própria vontade, a Sociedade de Paris não deixou de fazer uma propaganda considerável, pela força do exemplo. Prova disto é o número incalculável de grupos espíritas que se formam pelos mesmos processos, isto é, de acordo com os princípios que ela professa; é o número de Sociedades regulares que se organizam e querem colocar-se sob o seu patrocínio. Há grupos em várias cidades da França e do estrangeiro, na Argélia, na Itália, na Áustria, no México, etc. O que fizemos para isso? Fomos à sua procura? Solicitamos? Mandamos emissários ou agentes? Absolutamente. Nossos agentes são as obras.
As ideias espíritas espalham-se numa localidade. A princípio aí encontram um pequeno eco, depois, aos poucos, ganham terreno. Os adeptos sentem necessidade de se reunirem, menos para fazer experiências do que para conversar sobre um assunto que lhes interessa. Daí os milhares de grupos particulares, que podem ser chamados familiares. Destes alguns adquirem maior importância numérica; pedemnos conselhos e assim insensivelmente se forma essa rede, que possui balizas em todos os pontos do globo.
Cabe aqui, senhores, uma observação importante sobre a natureza das relações entre a Sociedade de Paris e as reuniões ou sociedades fundadas sob os seus auspícios, e que seria erro considerar como sucursais. A Sociedade de Paris não tem sobre elas outra autoridade senão a da experiência, mas, como eu disse em outra ocasião, não se imiscui em seus negócios. Seu papel limita-se a conselhos oficiais, quando solicitados. O laço que as une é, pois, puramente moral, baseado na simpatia e na similitude das ideias. Não há qualquer afiliação, qualquer solidariedade material. A única palavra de ordem é a que deve ligar todos os homens: caridade e amor ao próximo, palavra de ordem pacífica e que não levanta suspeitas.
A maior parte dos membros da Sociedade reside em Paris. Entretanto, alguns moram no interior ou no estrangeiro e, posto só compareçam excepcionalmente, alguns jamais vieram a Paris desde a sua fundação, mas têm a honra de ser sócios.
Além dos membros propriamente ditos, ela tem correspondentes, mas seus relatórios, puramente científicos, apenas objetivam mantê-la ao corrente do Movimento Espírita nas diversas localidades e me fornecem documentos para a história do estabelecimento do Espiritismo, material que venho recolhendo.
Entre os adeptos, há os que se distinguem pelo seu zelo, sua abnegação, seu devotamento à causa do Espiritismo; que pagam pessoalmente, não em palavras, mas em atos. A Sociedade sente-se feliz por lhes dar um testemunho de especial simpatia, conferindo-lhe o título de membros honorários.
De dois anos para cá, portanto, a Sociedade cresceu em crédito e importância. Mas, por outro lado, os seus progressos são assinalados pela natureza das comunicações que recebe dos Espíritos. Com efeito, desde algum tempo essas comunicações adquiriram proporções e desenvolvimento que superam sobremaneira nossa expectativa. Já não são, como outrora, pequenos fragmentos de moral banal, mas dissertações, nas quais as mais altas questões de filosofia são tratadas com uma amplitude e uma profundidade que as convertem em verdadeiros discursos. Foi o que observaram, em sua maioria, os leitores da Revista.
Sinto-me feliz em assinalar um outro progresso, no que concerne aos médiuns. Jamais, em nenhuma outra época, vimos tantos participando dos nossos trabalhos, pois chegamos a ter quatorze comunicações na mesma sessão. Contudo, mais precioso do que a quantidade é a qualidade, a julgar pela importância das instruções que nos são dadas.
Nem todos apreciam a mediunidade do mesmo ponto de vista. Uns a avaliam pelo efeito. Para estes, os médiuns velozes são os mais notáveis e os melhores. Nós, que antes de tudo buscamos a instrução, damos mais valor àquilo que satisfaz ao pensamento do que ao que apenas regala os olhos. Assim, preferimos um médium útil, com o qual aprendemos alguma coisa, a um outro admirável, com quem nada aprendemos. Sob esse ponto de vista não temos que nos lastimar e devemos agradecer aos Espíritos por terem cumprido a promessa que fizeram, de não nos deixarem desprovidos. Querendo ampliar o seu círculo de ensino, deviam também multiplicar os instrumentos.
Há, porém, um ponto ainda mais importante, sem o qual tal ensino não teria produzido frutos, ou pouco teria produzido. Sabemos que os Espíritos estão longe de possuir a soberana ciência e que podem enganar-se; que frequentemente emitem suas próprias ideias, justas ou falsas; que os Espíritos superiores querem que o nosso julgamento se exercite em discernir o verdadeiro do falso, aquilo que é racionaldaquilo que é ilógico. É por isso que nada aceitamos de olhos fechados.
Assim, não haveria ensino proveitoso sem discussão. Mas, como discutir comunicações com médiuns que não suportam a menor controvérsia; que se melindram com uma observação crítica, com uma simples observação, e acham mau que não se aplaudam as coisas que recebem, mesmo aquelas inçadas de grosseiras heresias científicas? Essa pretensão estaria deslocada se o que escrevem fosse produto de sua inteligência; é ridícula desde que eles não são mais que instrumentos passivos, pois se assemelham a um ator que ficaria ofuscado se nós achássemos maus os versos que ele deve declamar. Não podendo seu próprio espírito sentir-se ofendido por uma crítica que não o atinge, então é o Espírito comunicante que se magoa e transmite ao médium a sua impressão. Por esse simples fato, o Espírito trai a sua influência, porque quer impor as suas ideias pela fé cega e não pelo raciocínio ou, o que dá no mesmo, porque só ele quer raciocinar. Disso resulta que o médium que se acha em tais disposições está sob o império de um Espírito que merece pouca confiança, pois mostra mais orgulho do que sabedoria. Assim, sabemos que os Espíritos dessa categoria geralmente afastam seus médiuns dos centros onde não são aceitos sem reservas.
Esse capricho, em médiuns assim atingidos, é um grande obstáculo ao estudo. Se só buscássemos o efeito, isso seria sem importância, mas como buscamos a instrução, não podemos deixar de discutir, mesmo com o risco de desagradar os médiuns. Assim, outrora alguns se retiraram, como sabeis, por esse motivo, embora não confessado, e porque não tinham podido impor-se perante a Sociedade como médiuns exclusivos e intérpretes infalíveis das potências celestes. Aos seus olhos, os obsedados são aqueles que não se inclinam diante de suas comunicações. Alguns levam a sua susceptibilidade ao ponto de ofender-se com a prioridade dada à leitura das comunicações recebidas por outros médiuns. Por que uma comunicação é preferida à sua? Compreende-se o mal-estar imposto por tal situação. Felizmente, no interesse da Ciência Espírita, nem todos são assim, e apresso-me em aproveitar a ocasião para, em nome da Sociedade, dirigir agradecimentos àqueles que hoje nos prestam seu concurso com tanto zelo quanto devotamento, sem calcular esforço nem tempo e que, não tomando partido por suas comunicações, são os primeiros a participar da controvérsia que podem suscitar.
Em resumo, senhores, só nos podemos felicitar pelo estado da Sociedade, do ponto de vista moral. Não há quem não tenha observado uma notável diferença no espírito dominante, em relação ao que era no princípio, cuja impressão cada um sente instintivamente, em muitos casos traduzida em fatos positivos. E incontestável que aí reina menos mal-estar e constrangimento, enquanto se faz sentir um sentimento de mútua benevolência. Parece que os Espíritos perturbadores, vendo a sua impotência para semear a desconfiança, tomaram a sábia decisão de afastar-se.
Também só podemos aplaudir a feliz ideia de vários membros de organizar reuniões particulares em seus lares. Elas têm a vantagem de estabelecer relações mais íntimas. Além disso, são locais de encontro para uma porção de pessoas que não podem vir à Sociedade, onde podem ter uma primeira iniciação; onde podem fazer bom número de observações que depois convergem para o centro comum. Enfim, são canteiros para a formação de médiuns.
Agradeço muito sinceramente às pessoas que me honraram, oferecendo a sua direção, o que me era materialmente impossível. Lamento mesmo muito não poder aí estar tanto quanto era meu desejo.
Conheceis minha opinião em relação aos grupos particulares. Assim, faço votos por sua multiplicação na Sociedade ou fora dela, em Paris ou alhures, porque são os agentes mais ativos de propaganda.
Do ponto de vista material, o nosso tesoureiro vos deu conta da situação da Sociedade. Nosso orçamento, bem o sabeis, senhores, é muito simples. O essencial é que haja equilíbrio entre o ativo e o passivo, de vez que não procuramos capitalizar.
Peçamos, pois, aos bons Espíritos que nos assistem e, em particular, ao nosso presidente espiritual, São Luís, que continuem oferecendo-nos sua benevolente proteção, concedida tão visivelmente até hoje, e da qual mais e mais nos esforçaremos para nos tornarmos dignos.
Resta-me, senhores, dar-vos a conhecer uma coisa importante. Quero falar do emprego dos dez mil francos que me foram enviados há cerca de dois anos, por um assinante da Revista Espírita, e que quis manter-se incógnito. Era um donativo a ser empregado no interesse do Espiritismo. Certamente vos lembrais que me foram entregues pessoalmente, sem formalidades e sem documentos, e sem que eu devesse prestar quaisquer contas.
Ao comunicar à Sociedade essa feliz circunstância, declarei, na sessão de 17 de fevereiro de 1860, que não pretendia prevalecer-me da prova de confiança e que, para minha satisfação pessoal, desejava que aquele fundo fosse empregado sob controle, e acrescentei: “Essa soma formará o primeiro fundo de uma caixa especial, sob o nome de Caixa do Espiritismo e que nada em comum terá com os meus negócios pessoais. Será posteriormente aumentada com as somas que lhe vierem de outras fontes e exclusivamente destinada às necessidades da doutrina e ao desenvolvimento das ideias espíritas. Um de meus primeiros cuidados será suprir a falta de material da Sociedade, para a regularidade de seus trabalhos, e a criação de uma biblioteca especial. Pedi a vários colegas que aceitassem o controle dessa caixa e que, em datas que posteriormente serão determinadas, verificassem o útil emprego do fundo”.
Essa comissão, hoje parcialmente dispersa pelas circunstâncias, será completada quando for necessário, e todos os documentos lhe serão entregues. Enquanto se espera e, em vista da absoluta liberdade que me foi concedida, julguei conveniente aplicar essa soma no desenvolvimento da Sociedade, e a vós senhores, julgo dever prestar contas da situação, tanto para desobrigar-me pessoalmente, quanto para vosso esclarecimento. Insisto para que bem se compreenda a impossibilidade material de usar esse fundo em despesas cuja urgência dia a dia mais se acentuam, em vista da extensão dos trabalhos que reclama o Espiritismo.
Como sabeis, senhores, a Sociedade sentia vivamente os inconvenientes de não ter um local adequado para as sessões e onde seus arquivos pudessem estar à mão. Para trabalhos como o nosso, é preciso, de certo modo, um local para isso consagrado, onde nada possa perturbar o recolhimento. Todos deploravam a necessidade em que nos encontrávamos de nos reunirmos num estabelecimento público pouco harmonizado com a seriedade de nossos estudos. Assim, julguei que fazia coisa útil lhe dando os meios de ter um lugar mais conveniente, com o auxílio dos fundos que eu tinha recebido.
Por outro lado, considerando-se que o progresso do Espiritismo traz à minha casa um número crescente de visitantes franceses e estrangeiros, que pode ser calculado em mil e duzentos a mil e quinhentos por ano, era preferível recebê-los na sede da Sociedade, a fim de concentrar aí todos os negócios e todos os documentos concernentes ao Espiritismo.
Quanto ao que me concerne, acrescentarei que entregando-me inteiramente à doutrina, de certo modo, e para evitar perda de tempo, tornava-se necessário que tivesse meu domicílio aí, ou ao menos na vizinhança. Para mim, pessoalmente, isto não seria necessário, pois tenho em casa uma peça que nada me custa, mais agradável, sob todos os pontos de vista, e onde permaneço tanto quanto me permitem as minhas obrigações. Um segundo apartamento teria sido uma despesa inútil e onerosa.
Assim, sem o Espiritismo, eu estaria tranquilamente em casa, na avenida Ségur, e não aqui, obrigado a trabalhar da manhã à noite e muitas vezes da noite à manhã, sem mesmo repousar um pouco, o que às vezes me é muito necessário, pois sabeis que sou sozinho para uma tarefa cuja extensão dificilmente imaginam, e que necessariamente aumenta com o desenvolvimento da doutrina.
Este apartamento reúne as vantagens desejáveis por suas disposições internas e sua situação central. Nada tendo de suntuoso, é muito adequado. Entretanto, sendo os recursos da Sociedade insuficientes para o aluguel, tive que completá-lo com os fundos da doação. Sem isto a Sociedade teria que continuar na situação precária, mesquinha e incômoda em que se achava. Graças a esse suplemento, foi possível dar aos seus trabalhos desenvolvimentos que todos sabem vantajosos e proveitosos para a doutrina. É, pois, o emprego passado e a destinação futura dos fundos da doação que julgo dever comunicar-vos.
O aluguel do apartamento custa 2.500 francos anuais e, com os acessórios, 2.530 francos. As contribuições são de 198 francos, totalizando 2.728. A Sociedade paga, de sua parte, 1.200 francos. Resta uma diferença de 1.528. O contrato foi feito por três, seis ou nove anos, e começou a 1º de abril de 1860. Calculando para seis anos a 1.528 francos, temos 9.168 francos, ao que temos que adicionar a compra de móveis e as despesas de instalação, de 900 francos; para gorjetas e despesas diversas, 80 francos, totalizando 10.148 francos, sem os imprevistos, a pagar com o capital de 10.000 francos.
No fim do contrato, isto é, daqui a quatro anos, haverá um excedente nas despesas. Vedes, senhores, que não há possibilidade de desviar a menor soma, se quisermos chegar ao fim. Que fazer, então? Aquilo que Deus quiser, que quiserem os bons Espíritos, os quais me disseram que não me inquietasse.
Observe-se que se a soma dos gastos com material e instalação é de apenas 900 francos, é que aí foi empregada uma parcela rigorosamente necessária do capital. Se tivéssemos que adquirir todo o mobiliário que aqui se acha, considerando-se apenas as peças de recepção, haveria necessidade de três ou quatro vezes mais, e então a Sociedade, em vez de seis anos de aluguel, teria apenas três. É, pois, o meu mobiliário pessoal que constitui a maior parte e que, devido ao uso, terá recebido um grande desgaste.
Em resumo, a soma de 10.000 francos, que alguns julgavam inesgotável, se acha quase inteiramente absorvida pelo aluguel, que era importante, antes de mais nada, garantir por algum tempo, sem que tivesse sido possível direcionar qualquer parcela para outros fins, principalmente para a compra de obras antigas e modernas, francesas e estrangeiras, necessárias à formação de uma grande biblioteca espírita, como era projeto meu. Só isso não teria custado menos de 3.000 a 4.000 francos.
Disso resulta que todas as despesas além do aluguel, como viagens e uma porção de gastos necessários para o Espiritismo, e que não ficam por menos de 2.000 francos anuais, estão pessoalmente a meu cargo, e essa soma não deixa de pesar num orçamento restrito, que se mantém à custa de ordem, economia e até de privações.
Não creiais, senhores, que eu queira conquistar méritos. Assim fazendo, sei que sirvo a uma causa junto à qual a vida material nada é, e pela qual estou pronto a sacrificar a minha. Talvez um dia eu tenha imitadores. Aliás, estou bem recompensado pelos resultados que obtive. Se uma coisa lamento, é a exiguidade dos meus recursos, que não me permitem fazer mais, pois com suficientes meios de execução bem empregados, com ordem e em coisas realmente úteis, avançaríamos meio século no estabelecimento definitivo da doutrina.
Palestras familiares de além túmulo
SR. SANSON - 2ª PalestraSr. Sanson
Menino Jesus entre os doutores (Ultimo quadro de Ingres)
“O menino Jesus encontrado por seus pais pregando no Templo, entre os doutores. (São Lucas, Natividade).
“Este é o assunto de um quadro inspirado a um dos nossos maiores artistas. Nessa obra do homem se mostra mais que o gênio. Aí se vê brilhar essa luz que Deus dá às almas para esclarecê-las e conduzi-las às regiões celestes.
“Sim, a religião iluminou o artista. Esse clarão foi visível? O trabalhador viu o raio partindo do céu e descendo sobre si? Sob os seus pincéis, teria ele visto divinizar-se a cabeça do Menino-Deus? Ter-se-ia ajoelhado diante dessa criação de inspiração divina e exclamado, como o santo velho Simeão: ‘Senhor, deixareis morrer em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra, porque meus olhos viram o Salvador que nos dais agora, e que destinais a ser exposto aos olhos de todos os povos?’
“Sim, o artista pode-se dizer servo do Senhor, pois acaba de executar uma ordem de sua suprema vontade. Deus quis que no tempo em que reina o ceticismo, a multidão parasse diante dessa figura do Salvador! Mais de um coração afastar-se-á levando uma lembrança que o conduzirá aos pés da cruz onde essa Divina Criança deu a vida pela Humanidade, por nós, turba inconsciente.
“Contemplando o quadro de Ingres, a vista se afasta a custo para voltar a essa figura de Jesus, onde há um misto de divindade, de infância e algo da flor; a esse panejamento, a essa túnica de cores claras, jovens, delicadas, lembrando o suave colorido que se balança nas hastes perfumadas.
“Tudo merece ser admirado na obra-prima de Ingres, mas a alma gosta mais de aí contemplar dois tipos adoráveis: Jesus e sua divina Mãe. Ainda uma vez a gente experimenta a necessidade de saudá-la pelas palavras angélicas: ‘Eu vos saúdo, Maria, cheia de graça!’ A gente apenas ousa levantar o olhar artístico para essa nobre figura divinizada, tabernáculo de um Deus, esposa de um homem, virgem pela pureza, mulher predestinada às alegrias do paraíso e às agonias da Terra, entretanto, Ingres compreendeu tudo isso, e a gente não passará diante da Mãe de Jesus sem lhe dizer: ‘Maria, dulcíssima virgem, em nome de vosso filho, rogai por nós!’
“Vós o examinareis um dia. Eu vi as primeiras pinceladas sobre essa tela bendita. Vi surgirem, uma a uma, as figuras, as poses dos doutores; vi o anjo protetor de Ingres, inspirando-o, fazer cair os pergaminhos das mãos de um desses doutores, porque aí, meu Deus, está toda uma revelação! Essa voz de criança destruirá, também, uma a uma, as leis que não são suas.
“Não desejo aqui fazer arte como ex-artista. Sou um Espírito, e a mim somente a arte religiosa me toca. Assim, vi nesses graciosos ornamentos da cepa da vinha a alegoria da vinha de Deus, onde todos os humanos devem saciar-se e, de mim para mim, disse com profunda alegria que Ingres acabara de fazer amadurecer um de seus belos cachos.
“Sim, mestre! Teu Jesus vai falar também diante dos doutores que negam a sua lei, diante dos que a combatem. Mas quando eles se encontrarem sós com a lembrança da Criança divina, ah! Mais de um rasgará o rolo do pergaminho sobre o qual a mão de Jesus escreverá: ‘Erro!’
“Vede, pois, como todos os trabalhadores se reúnem! Uns vêm voluntariamente, por caminhos conhecidos; outros vêm trazidos pela mão de Deus, que vai buscá-los em seus lugares e lhes mostra aonde devem ir; outros ainda, chegam sem saber onde se acham, atraídos pelo encanto que lhes faz semear flores de vida para erguer o altar sobre o qual o menino Jesus ainda hoje vem para muitos, mas que, sob roupagens de cores safirinas, ou sob a túnica do crucificado, é sempre o mesmo, o único Deus.
“DAVID, pintor”
Essa revelação espontânea é tanto mais notável quanto a descrição dada pelo Espírito é de uma exatidão perfeita. Tudo lá está: a cepa da vinha, os pergaminhos caídos ao chão, etc. O quadro está agora exposto na sala do Boulevard dos Italianos, onde fomos vê-lo e, como todo mundo, ficamos em admiração ante essa página sublime, uma das mais belas, sem dúvida, da pintura moderna.
Do ponto de vista da execução, ela é digna do grande artista que, parece-nos, nada fez de superior, a despeito de seus oitenta e três anos. Mas o que a torna uma obra-prima excepcional, é o sentimento que aí domina, a expressão, o pensamento que brota de todas essas figuras, sobre as quais a gente lê a surpresa, a estupefação, a empolgação, a dúvida, a necessidade de negar, a irritação por se ver vencido por uma criança. Tudo isso é tão verdadeiro, tão natural, que a gente se põe a colocar palavras em cada boca.
Quanto à criança, é de uma perfeição que deixa muito para trás tudo quanto foi feito até aqui sobre o mesmo assunto. Não é um orador que fala à sua audiência. Ele nem mesmo olha para ela. Nele a gente adivinha o órgão de uma voz celeste.
Em toda essa concepção, sem dúvida há o gênio, mas há, incontestavelmente, a inspiração. O próprio Sr. Ingres disse que não tinha composto esse quadro em condições ordinárias. Disse tê-lo começado pela arquitetura, o que não é seu costume. Em seguida as personagens vinham, por assim dizer, fixar-se por si mesmas sob o seu pincel, sem premeditação de sua parte. Temos motivos para pensar que esse trabalho se liga a coisas cuja chave teremos mais tarde, mas sobre as quais devemos ainda guardar silêncio, como sobre muitas outras.
SOBRE O QUADRO DO SR. INGRES
(SOCIEDADE ESPÍRITA DE PARIS, 2 DE MAIO DE 1862) (MÉDIUM: SR. A. DIDIER)
Nós, os Espíritos, aplaudimos as obras espiritualistas, tanto quanto censuramos a glorificação dos sentimentos materialistas e de mau gosto. É uma virtude sentir a beleza moral e a beleza física a esse ponto. É o indício certo de sentimentos harmoniosos no coração e na alma. Quando o sentimento do belo se desenvolve a esse ponto, é raro que o sentimento moral também não se desenvolva.
É um grande exemplo o desse velho de oitenta anos, que numa Sociedade corrompida representa a vitória do Espiritismo, com o gênio sempre moço e sempre puro da fé.
LAMENNAIS
Assim se escreve a história
Conforme tais ditos, nós possuímos milhões. Em nossa casa tudo brilha e nós só pisamos nos mais belos tapetes d’Aubusson. Conheceram-nos pobre em Lyon, mas hoje temos carruagem de quatro cavalos e vivemos em Paris com status de príncipe.
Toda essa fortuna nos vem da Inglaterra, desde quando passamos a nos ocupar do Espiritismo. Pagamos regiamente os nossos agentes do interior. Vendemos por alto preço os manuscritos de nossas obras, sobre as quais ainda mantemos direitos autorais, o que não nos impede de vendê-los a preços exorbitantes, etc.
Eis a resposta que demos à pessoa que nos envia tais detalhes:
“Meu caro senhor, ri muito dos milhões com que tão generosamente me gratifica o Sr. Padre V..., tanto mais quanto estava longe de suspeitar de tanta fortuna. O relatório feito à Sociedade de Paris, antes da recepção de vossa carta, e que vai aqui publicado, infelizmente vem reduzir essa ilusão a uma realidade muito menos dourada.
Aliás, não é a única inexatidão desse relato fantástico. Para começar, jamais morei em Lyon, portanto, não vejo como lá me tivessem conhecido pobre. Quanto à minha equipagem de quatro cavalos, sinto dizer que se reduz aos sendeiros de um fiacre que tomo apenas cinco ou seis vezes por ano, por economia.
É verdade que antes das estradas de ferro fiz muitas viagens em diligências. Certamente fizeram confusão. Mas esqueço que então ainda não se tratava de Espiritismo e que é ao Espiritismo que eu devo, conforme aquele reverendo, a minha imensa fortuna.
Onde, então, pescaram tudo isso, senão no arsenal da calúnia? Isto seria tanto mais verossímil se se pensasse na natureza da população em cujo meio propagam tais rumores. É de convir que se torna necessário ser curto de boas razões para se reduzir a tão ridículos expedientes a fim de desacreditar o Espiritismo.
O Sr. vigário não se dá conta de que seu discurso vai de encontro ao seu objetivo, pois dizer que o Espiritismo me enriquece a tal ponto é confessar que se acha imensamente espalhado, e se ele se espalha é porque agrada. Assim, aquilo que ele queria aplicar contra o homem, volta-se em benefício da doutrina.
Depois disso, façam alguém acreditar que seja uma utopia uma doutrina que em alguns anos dá milhões ao seu propagador! Tal resultado seria um verdadeiro milagre, pois não há exemplo de uma ideia filosófica que jamais tenha sido fonte de dinheiro. Geralmente, com as invenções, come-se o pouco que se tem, e ver-se-á que é mais ou menos o meu caso, se souberem quanto me custa a obra a que me dediquei e à qual sacrifico, além disso, meu tempo, minhas vigílias, meu repouso e minha saúde. Mas eu tenho por princípio ser reservado com aquilo que faço e não gritar de cima dos telhados.
Para ser imparcial, o Sr. vigário deveria ter feito um paralelo com as quantias que as comunidades e os conventos subtraem dos fiéis. O Espiritismo, a seu turno, mede sua influência pelo bem que faz, pelo número de aflitos que consola, e não pelo dinheiro que ajunta.
Com um status principesco, é claro que se precisa de uma mesa elegante. Que diria o Sr. vigário se visse minhas mais suntuosas refeições nas quais recebo os amigos? Achá-las-ia muito magras, ao lado das frugais refeições de certos dignitários da Igreja que as desdenhariam como seu mais austero jejum.
Já que ele ignora, eu lhe direi, para lhe poupar o trabalho das comparações, que o Espiritismo não é nem pode ser um meio de enriquecimento; que ele repudia toda especulação de que pudesse ser objeto; que ele ensina a fazer pouco caso dos bens temporais, a contentar-se com o necessário e não procurar alegrias supérfluas, que não são o caminho do Céu; que se todos os homens fossem espíritas não teriam inveja, nem ciúmes, nem se despojariam uns aos outros; não diriam mal do próximo e não o caluniariam, porque ele ensina esta máxima do Cristo: Não façais a outrem o que não quereis que vos façam. É para pô-la em prática que não escrevo todas as letras do nome do Sr. padre V...
O Espiritismo também ensina que a fortuna é um depósito de que se há de prestar contas, e que o rico será julgado conforme o emprego que dela tiver feito.
Se eu possuísse a que me atribuem, e sobretudo se a devesse ao Espiritismo, seria perjuro aos princípios se a empregasse na satisfação do orgulho e na fruição de prazeres mundanos, em vez de colocá-la a serviço da causa cuja defesa abracei.
Mas, perguntarão, e as vossas obras? Não vendestes caro os manuscritos? Um instante! Isto é invasão de domínio privado, onde não reconheço a ninguém o direito de imiscuir-se. Sempre honrarei os meus negócios, não importa a que preço de sacrifícios e de privações. Nada devo a quem quer que seja, enquanto muitos me devem, sem o que teria mais do que o dobro do que possuo, o que fez com o que em vez de subir os degraus da fortuna, eu desci. Assim, não tenho que dar conta de meus negócios a ninguém, é bom que se diga. Entretanto, para contentar um pouco os curiosos que não têm nada melhor a fazer do que imiscuir-se em negócios que não são de sua conta, direi que se tivesse vendido meus manuscritos, nada teria feito além de usar do direito que tem todo trabalhador de vender o produto de seu trabalho. Mas não vendi nenhum. Alguns até dei, pura e simplesmente, no interesse da causa, e que são vendidos como queiram vendê-los, sem que a mim se destine um tostão.
São vendidos por preço alto apenas manuscritos de obras conhecidas, cujo lucro é garantido por antecipação, mas em parte alguma encontram-se editores tão complacentes que paguem a peso de ouro por obras de lucro hipotético. Nesses casos, eles nem mesmo querem correr o risco da impressão. Ora, sob este ponto de vista, uma obra filosófica tem cem vezes menos valor que certos romances encabeçados por certos nomes.
Para dar uma ideia de meus grandes lucros, direi que a primeira edição de O livro dos Espíritos, que fiz por minha conta e risco, porque não houve editor que dela quisesse encarregar-se, feitas as contas, depois de esgotada a edição, vendidos alguns exemplares e doados outros, rendeu-me cerca de quinhentos francos, o que posso comprovar através de documentos. Não sei que tipo de carruagem poderia ser comprada com isso.
Na impossibilidade em que me encontrei, não possuindo ainda os milhões em questão, de enfrentar os gastos de todas as minhas publicações, e sobretudo de me ocupar com as suas vendas, cedi por algum tempo o direito de publicação, mediante um direito do autor, calculado em uns poucos centavos por volume vendido, de sorte que fiquei totalmente alheio aos detalhes das vendas e das transações que os intermediários possam fazer com as remessas feitas pelos editores aos seus correspondentes, transações de cuja responsabilidade eu declino, obrigado, no que me concerne, a abrir conta nos editores, a um determinado preço por exemplar que retiro, vendo ou dou de presente.
Quanto ao lucro que pode vir da venda de minhas obras, não tenho que dar contas de seu montante, nem do emprego que lhe faço. Certamente assiste-me o direito de gastá-lo como entender. Entretanto, ninguém sabe se tal produto tem uma destinação determinada, da qual não pode ser desviado. É o que saberão mais tarde, porque, se um dia alguém tiver a fantasia de escrever a minha história com os dados acima fornecidos, os fatos deverão ser considerados em sua integridade. Por isto deixarei memórias circunstanciadas sobre todas as minhas relações e todos os meus negócios, sobretudo no que concerne ao Espiritismo, a fim de poupar aos cronistas futuros os equívocos em que muitas vezes caem, ouvindo diz que diz que de criaturas estúrdias, de más línguas e de gente interessada em alterar a verdade, às quais eu deixo o prazer de deblaterar à vontade, para que mais tarde se torne mais evidente a sua má-fé.
Por mim pessoalmente muito pouco me inquietaria se meu nome não estivesse de agora em diante ligado intimamente à história do Espiritismo. Em consequência das minhas relações, naturalmente possuo a respeito os mais numerosos e autênticos documentos que existem. Pude acompanhar a doutrina em todo o seu desenvolvimento e observar-lhe todas as peripécias, bem como lhe prever as consequências.
Para todo homem que estuda esse movimento, a última evidência é que o Espiritismo marcará uma fase da Humanidade. É, pois, necessário que mais tarde se saiba que vicissitudes ele teve de atravessar; que obstáculos encontrou; quais os inimigos que procuraram inutilizá-lo e de que armas se serviram para combatê-lo.
Também importa saber por que meios pôde triunfar, e quais foram as pessoas que por seu zelo, seu devotamento e sua abnegação, contribuíram eficazmente para a sua propagação, pessoas cujos nomes e atos merecem ser assinalados para o reconhecimento da posteridade, e que impus-me o dever de inscrever nas minhas fichas.
Compreende-se que essa história não pode surgir logo, pois o Espiritismo apenas acaba de nascer e as fases mais interessantes de seu estabelecimento ainda não se completaram. Aliás, poderia acontecer que entre os Saulos do Espiritismo de hoje, mais tarde surjam os São Paulos. Esperamos não ter que registrar os Judas.
Tais são, meu caro senhor, as reflexões sugeridas pelos rumores que me chegaram. Se eu as refutei, não o fiz pelos espíritas de vossa cidade, que sabem o que fazer a meu respeito e que puderam julgar-me quando os visitei, se em mim havia gostos e atitudes de grão-senhor. Faço-o, pois, em atenção aos que me não conhecem e que poderiam ser induzidos em erro, por essa maneira mais que leviana de escrever a história. Se o Sr. Padre V... quer apenas dizer a verdade, estou pronto a fornecer-lhe verbalmente todas as explicações necessárias ao seu esclarecimento.
Todo vosso,
ALLAN KARDEC
Sociedade espírita de Viena
Sr. Allan Kardec,
A Sociedade Espírita de Viena encarrega-me de vos comunicar que acaba de nomear-vos seu presidente de honra, e vos pede aceiteis esse título como sinal da alta e respeitosa estima que vos dedica. Desnecessário acrescentar, senhor, que servindo aqui de instrumento, apenas obedeço a um impulso de meu coração que vos é inteiramente dedicado.
Permiti-me, senhor, sem abusar de vosso precioso tempo, acrescentar algumas palavras relativas à nossa Sociedade. Ela acaba de entrar em seu terceiro ano, e posto restrito seja ainda o seu número de associados, posso ter a satisfação de dizer que, no círculo privado em que ainda se acha, pratica proporcionalmente muito bem. Tenho esperança que ao chegar o momento de expandi-la, ela produzirá frutos mais abundantes. É o meu mais vivo desejo.
No ano passado, por ocasião do primeiro aniversário, nosso Espírito protetor me dizia em seu profundo e majestoso laconismo: “Semeaste a boa semente. Eu te abençoo”.
Este ano ele me disse: “Para o ano que vai começar, eis a máxima: Com Deus e para Deus”. No ano passado, foi uma recompensa para o que passou. Este ano, é um encorajamento para o futuro. Assim preparei-me este ano para empregar meios mais diretos para atuar sobre a opinião pública. Para começar, a tradução da vossa excelente brochura não terá deixado de preparar o terreno. Em seguida, pensei na publicação de um jornal em alemão, como meio mais seguro de apressar os resultados.
Não me faltará material, sobretudo se permitirdes por vezes recorrer aos tesouros encerrados na vossa Revista onde sempre, bem entendido, tomarei como dever sagrado indicar a fonte das passagens e artigos que tiver traduzido.
Enfim, para coroar a obra, desejo pôr ao alcance dos alemães o vosso precioso e indispensável O Livro dos Espíritos. Assim, pois, senhor, sem temer importunarvos, pois estou persuadido que todo pensamento do bem corresponde ao vosso próprio pensamento, venho pedir-vos, se ninguém ainda obteve o favor, que me permitais traduzi-lo em língua alemã.
Acabo de vos expor, senhor, os projetos que medito, para, entre nós, dar um impulso maior à propagação do Espiritismo. Ousarei dirigir-me à vossa benévola experiência, para receber alguns salutares conselhos que, tende certeza, senhor, terão grande peso na decisão que eu tomar.
Recebei, senhor, etc.
C. DELHEZ
SOCIEDADE ESPÍRITA, DITA DA CARIDADE, DE VIENA - ÁUSTRIA(SESSÃO DE ANIVERSÁRIO, 18 DE MAIO DE 1862)
Viena, 19 de maio de 1862.
O Presidente,
Entre as que se organizaram ultimamente devemos citar a Sociedade Africana de Estudos Espíritas, de Constantina, que resolveu colocar-se sob o nosso patrocínio e o da Sociedade de Paris, e que já conta com quarenta membros. Teremos ocasião de voltar a falar sobre este assunto com mais detalhes.
À vista desse movimento geral e do incessante crescimento da opinião pública, os adversários do Espiritismo compreenderão, enfim, que todo esforço para detê-lo será inútil, e que o que melhor há para fazer é aceitá-lo, considerando-o, de agora em diante, como um fato consumado. A arma do ridículo esgotou-se em vãos esforços, pois ela é impotente.
A doutrina do diabo, que buscam restaurar neste momento, com uma espécie de encarniçamento, será mais feliz? A resposta está, por completo, no efeito que produz: Ela provoca risos. Para dar resultado fora preciso que dela estivessem convictos os que a propagam. Ora, podemos afirmar com segurança que entre eles muitos não acreditam nisso mais do que nós. É um último golpe cujo resultado será apressar a propagação das ideias novas, a princípio porque as torna conhecidas, despertando a curiosidade, depois porque prova a escassez de argumentos realmente sérios.
Príncipio vital das sociedades espíritas
Senhor,
Na Revista de abril de 1862, vejo uma comunicação assinada por Gérard de Codemberg, na qual há a seguinte passagem:
“Não vos preocupeis com os irmãos que se afastam de vossas crenças. Ao contrário, fazei de modo que não se misturem no rebanho dos verdadeiros crentes, pois são ovelhas sarnentas, e vos deveis guardar contra o contágio”.
A respeito das ovelhas sarnentas, achei tal maneira de ver pouco cristã, ainda menos espírita e completamente fora dessa caridade para com todos que pregam os espíritas. Não ter preocupação com os irmãos que se afastam e guardar-se contra o seu contágio não é o meio de reconquistá-los. Parece-me que, até o presente, nossos bons guias espirituais têm mostrado mais mansuetude. Esse Gérard de Codemberg será um bom Espírito? Se é ele, eu o duvido.
Perdoai-me essa espécie de controle que acabo de fazer, mas há um objetivo sério. Uma de minhas amigas, espírita noviça, acaba de percorrer aquele fascículo e parou nessas poucas linhas, não encontrando a caridade que até agora observou nas comunicações. A respeito, consultei o meu guia, e eis o que ele me respondeu: “Não, minha filha, um Espírito elevado não se serve de tais expressões. Deixai aos Espíritos encarnados a aspereza da linguagem e reconhecei sempre o valor das comunicações pelo valor das palavras e sobretudo pelo valor dos pensamentos. (Segue-se uma comunicação de um Espírito que se supõe ter tomado o lugar de Gérard de Codemberg).
Onde está a verdade? Somente vós podeis sabê-lo.
Recebei, etc.
E. COLLINGNON
Resposta:
Em Gérard de Codemberg nada prova que seja um Espírito muito avançado. A obra que ele publicou, sob o império de evidente obsessão e com o que ele mesmo concorda, o demonstra de sobra.
Por pouco evoluído que fosse, um Espírito não poderia enganar-se a tal ponto quanto ao valor das revelações que obteve em vida, como médium, nem aceitar como sublimes, coisas evidentemente absurdas. Segue-se que seja um mau Espírito? Certamente não. Sua conduta durante a vida e sua linguagem após a morte são prova disso.
Ele está na categoria numerosa dos Espíritos inteligentes, bons, mas não suficientemente elevados para dominarem os Espíritos obsessores que dele abusaram, pois não soube reconhecê-los. Isto no que concerne ao Espírito.
A questão não é saber se é mais ou menos adiantado, mas se o conselho que dá é bom ou mau. Ora, mantenho que não há reunião espírita séria sem homogeneidade. Por toda a parte onde houver divergência de opinião, há a tendência a fazer prevalecer a própria; o desejo de impor suas ideias ou sua vontade, daí as discussões, as dissensões, depois a dissolução. Isto é inevitável e acontece em todas as sociedades, seja qual for o objetivo, onde cada um quer trilhar caminhos diferentes.
O que é necessário nas outras reuniões ainda mais o é nas reuniões espíritas sérias, nas quais a primeira condição é a calma e o recolhimento impossíveis com discussões que provocam perda de tempo em coisas inúteis. É então que os bons Espíritos vão deixando o campo livre aos Espíritos perturbadores. Eis por que os pequenos grupos são preferíveis: a homogeneidade de princípios, de gostos, de caráter e de hábitos, condição essencial da boa harmonia, aí é bem mais fácil de obter que nas grandes assembleias.
O que Gérard de Codemberg chama ovelhas sarnentas não são as pessoas que de boa-fé procuram esclarecer-se quanto às dificuldades da Ciência ou sobre aquilo que não compreendem, por uma discussão pacífica, moderada e comedida, mas as que vêm com ideia preconcebida de oposição sistemática, que a torto e a direito levantam discussões inoportunas, de natureza a perturbarem os trabalhos. Quando o Espírito diz que é preciso afastá-las tem razão, porque a existência da reunião depende disso. Ele também tem razão ao dizer que não há motivo de preocupação, porque a sua opinião pessoal, se falsa, não impedirá que prevaleça a verdade. O sentido dessa expressão é que não deve causar inquietação a sua oposição.
Em segundo lugar, se aquele que tem uma diferente maneira de ver a considera melhor que a dos outros; se ela o satisfaz; se nela se obstina, por que contrariá-lo? O Espiritismo não deve impor-se. Deve ser aceito livremente e de boa vontade. Não quer nenhuma conversão por constrangimento. Aliás, a experiência aí está para provar que não é insistindo que lhe farão mudar de opinião.
Com aquele que de boa-fé procura a luz, é preciso ser todo devotamento; nada se deve poupar: é zelo bem empregado e frutuoso. Com aquele que não a quer ou que pensa tê-la, é perder tempo e semear sobre pedras.
A expressão nenhuma preocupação pode, então, ser entendida no sentido de que não se deve atormentá-lo nem violentar as suas convicções. Agir assim não é faltar à caridade. Esperam trazê-lo a ideias mais sãs? Que o façam em particular, pela persuasão, vá, mas se deve ser uma causa de perturbação para a reunião, conservá-lo não seria dar-lhe provas de caridade, pois que isso de nada lhe adiantaria, ao passo que seria uma falta para com os outros.
O Espírito de Gérard de Codemberg emite claramente, e talvez um pouco cruamente a sua opinião, sem preocupações oratórias, sem dúvida contando com o bom-senso daqueles a quem se dirige para mitigá-la na aplicação, observando o que prescrevem ao mesmo tempo a urbanidade e as conveniências. Mas, salvo a forma da linguagem, o fundo do pensamento é idêntico ao que se acha na comunicação referida a seguir, sob o título O Espiritismo Filosófico, recebida pela mesma pessoa que levantou a questão.
Aí lê-se o seguinte:
“Examinai bem em vosso redor se não há falsos irmãos, curiosos, incrédulos. Se os encontrardes, rogai-lhes com doçura, com caridade, que se retirem. Se resistirem, contentai-vos em orar com fervor para que o Senhor os esclareça e, de outra vez, não os admitais em vossos trabalhos. Não recebais em vosso meio senão os homens simples, que querem buscar a verdade e o progresso”.
Isto é, em outros termos, desembaraçar-se polidamente dos que vos entravam.
Nas reuniões livres, onde se é livre de receber quem se quer, isso é mais fácil que nas sociedades constituídas, onde os sócios são ligados e têm direito a voz e voto. Assim, não deveriam ser tomadas precauções em excesso se não se quisesse ser contrariado.
O sistema dos associados livres adotado pela Sociedade de Paris é o mais próprio a prevenir os inconvenientes, pois só admite os candidatos a título provisório e sem voz ativa nos negócios da Sociedade, durante um período que permite se observe o seu zelo, sua dedicação e seu espírito conciliador.
O essencial é formar um núcleo de fundadores titulares, unidos por uma perfeita comunhão de vistas, de opiniões e de sentimentos e estabelecer regras precisas às quais forçosamente deverão submeter-se aqueles que mais tarde quiserem a ele integrar-se.
A respeito recomendamos os regulamentos da Sociedade de Paris e as instruções que demos a tal respeito. Nosso mais caro desejo é o de vermos reinarem a união e a harmonia entre os grupos e sociedades que se formam de todos os lados. É por isso que consideramos sempre um dever ajudar com conselhos de nossa experiência os que julgarem um dever aproveitá-los.
No momento limitamo-nos a dizer que sem homogeneidade não há união simpática entre os sócios, nem relações afetuosas; sem união não há estabilidade; sem estabilidade não há calma; sem calma, não há trabalho sério, de onde concluímos que a homogeneidade é o princípio vital de toda sociedade ou reunião espírita. É o que disseram com razão Gérard de Codemberg e Bernardin.
Quanto ao Espírito que foi tomado como substituto do primeiro, sua comunicação tem todos os caracteres de uma comunicação apócrifa.
Ensinos e dissertações espíritas
Para começar expliquemo-nos quanto ao exato sentido do vocábulo filosofia. A Filosofia não é a negação das leis estabelecidas da Divindade, da religião. Longe disto. A Filosofia é a busca do que é sábio; do que é o mais exatamente razoável. E o que pode ser mais sábio, mais razoável que o amor e o reconhecimento que se deve ao Criador e, consequentemente, o culto, seja qual for, que pode servir para lhe provar esse reconhecimento e esse amor? A religião, e tudo quanto a isto vos pode levar, é pois, uma filosofia, porque é uma sabedoria do homem que a isso se submete com alegria e docilidade. Isto posto, vejamos o que podeis tirar do Espiritismo, posto em prática seriamente.
Qual o fim para onde tendem todos os homens, em qualquer posição que se achem? O melhoramento de sua posição presente. Ora, para atingir esse objetivo, correm para todos os lados, extraviam-se na maior parte, porque, enceguecidos pelo orgulho e arrastados pela ambição, não veem a rota única que pode conduzir a esse melhoramento. Eles a buscam na satisfação de seu orgulho, de seus instintos brutais, de sua ambição, ao passo que não podem achá-la senão no amor e na submissão devidos ao Criador.
O Espiritismo vem, pois, dizer aos homens: Deixai esses caminhos tenebrosos, cheios de precipícios, cercados de espinhos e urzes e entrai no caminho que leva à felicidade que sonhais. Sede prudentes para serdes felizes. Compreendei, meus amigos, que para os homens, os bens da Terra não passam de emboscadas que devem ser evitadas. São os escolhos de que eles devem afastar-se. Eis por que o Senhor permitiu que se vos deixasse enfim ver a luz desse farol que vos conduzirá ao porto.
As dores e os males que sofreis com impaciência e revolta são o ferro em brasa que o cirurgião aplica sobre a ferida aberta, para que a gangrena não tome todo o corpo.
Vosso corpo, meus amigos, o que é para um espírita? O que ele deve salvar? O que ele deve preservar do contágio? O que ele deve cicatrizar por todos os meios possíveis, senão a chaga que rói o Espírito; a enfermidade que o entrava e o impede de lançar-se radioso para o seu Criador?
Voltai sempre os olhos para este pensamento filosófico, isto é, cheio de sabedoria: Somos uma essência criada pura, mas decaída. Pertencemos a uma pátria onde tudo é pureza. Culpados, fomos exilados por algum tempo, mas só por algum tempo. Empreguemos, pois, todas as forças, todas as nossas energias em diminuir o tempo do exílio. Esforcemo-nos por todos os meios que o Senhor pôs à nossa disposição, para reconquistar essa pátria perdida e abreviar o tempo de ausência. (Ver número de janeiro de 1862: Doutrina dos anjos decaídos).
Compreendei que vossa sorte futura está em vossas mãos; que a duração das vossas provas depende inteiramente de vós; que o mártir tem sempre direito à palma, e que para ser mártir não se trata de ser, como os primeiros cristãos, pasto das feras. Sede mártires de vós mesmos. Quebrai, destruí em vós próprios todos os instintos carnais que se revoltam contra o Espírito. Estudai com cuidado as vossas inclinações, os vossos gostos, as vossas ideias. Desconfiai de tudo quanto a vossa consciência reprova. Por mais baixo que ela vos fale, ─ porque pode, às vezes, ser repelida, ─ por mais baixo que ela vos fale, essa voz do vosso protetor vos dirá que eviteis aquilo que vos pode prejudicar.
Em todas as épocas a voz do vosso anjo de guarda vos falou, mas quantos ficaram surdos! Hoje, meus amigos, o Espiritismo vem explicar-vos a causa dessa voz íntima. Ele vem falar-vos positivamente, mostrar-vos, fazer-vos tocar com o dedo aquilo que podeis esperar se a escutardes docilmente; aquilo que deveis temer se a rejeitardes.
Eis, meus amigos, para o homem em geral, o lado filosófico: ensinar-vos a buscardes a vossa própria salvação.
Meus filhos, não procureis, como fazem os ignorantes, distrações materiais, satisfação à curiosidade. Não vades, sob o menor pretexto, chamar a vós, Espíritos dos quais não tendes a menor necessidade. Contentai-vos com vos entregardes sempre aos cuidados e ao amor de vossos guias espirituais. Eles jamais vos faltarão.
Quando, reunidos num objetivo comum, o melhoramento de vossa Humanidade, elevardes o coração ao Senhor, que seja para lhe pedir suas bênçãos e a assistência dos bons Espíritos, aos quais vos confiou.
Examinai bem em redor de vós se não há falsos irmãos, curiosos, incrédulos. Se os encontrardes, rogai-lhes com doçura, com caridade, que se retirem. Se resistirem, contentai-vos em orar com fervor para que o Senhor os esclareça e, de outra vez, não os admitais em vossos trabalhos. Não recebais em vosso meio senão os homens simples, que querem buscar a verdade e o progresso.
Quando estiverdes certos de vossos irmãos que se acham reunidos em presença do Senhor, chamai os vossos guias e pedi-lhes instruções. Eles vo-las darão sempre, na medida das vossas necessidades e da vossa compreensão. Mas não busqueis satisfazer à curiosidade da maioria, dos que pedem evocações. Eles quase sempre saem menos convencidos e mais inclinados à zombaria.
Que aqueles que desejam evocar os parentes e amigos, não o façam jamais senão com um objetivo de utilidade e de caridade. É um ato sério, muito sério, chamar os Espíritos que erram em redor de vós. Se não trouxerdes a fé e o recolhimento necessários, os Espíritos maus tomarão o lugar daqueles que esperais; enganar-vos-ão, vos farão cair em erros profundos e vos arrastarão por vezes a quedas terríveis!
Não esqueçais, pois, meus amigos, que o Espiritismo, sob o ponto de vista religioso, é apenas a confirmação do Cristianismo, porque o Cristianismo entra inteirinho nestas palavras: Amar ao Senhor sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo.
Sob o ponto de vista filosófico, é a linha de conduta reta e sábia que vos deve conduzir à felicidade que todos ambicionais, e essa linha vos é traçada partindo de um ponto seguro, demonstrado: a imortalidade da alma, para chegar a outro ponto que ninguém pode negar: Deus!
Eis, meus amigos, o que vos tenho a dizer por hoje. Em breve continuaremos as nossas conversas íntimas.
BERNARDIN
Um Espírita apócrifo na Rússia
Julho
O ponto de vistaÉ um efeito de óptica, mas que também se aplica às coisas morais. Um dia inteiro de sofrimento vos parecerá uma eternidade, e à medida que se aproxima o fim da jornada, vos admirais por vos terdes desesperado por tão pouco.
As aflições da infância também têm sua importância relativa. Para a criança elas são tão amargas quanto as da idade madura. Por que, então, nos parecem tão fúteis? Porque não estamos mais mergulhados na infância, ao passo que a criança está inteiramente nela e não vê além do seu pequeno círculo de atividade. Ela as vê do interior. Nós, do exterior.
Suponhamos um ser colocado, em relação a nós, na posição em que estamos em relação à criança. Ele julgará as nossas preocupações do mesmo ponto de vista, e as achará pueris.
Um carreteiro é insultado por outro carreteiro. Eles discutem e brigam. Se um grão-senhor for injuriado por um carreteiro, não se julgará ofendido e não lutará com ele. Por quê? Porque se coloca fora da sua esfera. Julga-se de tal modo superior que a ofensa não o atinge. Mas, se ele descer ao nível do adversário, colocar-se-á por pensamento no mesmo meio e bater-se-á.
O Espiritismo nos mostra uma aplicação desse princípio muito mais importante em suas consequências. Ele nos mostra a vida na Terra pelo que ela é, colocando-nos no ponto de vista da vida futura. Pelas provas materiais que nos fornece; pela intuição clara, precisa e lógica que nos dá; pelos exemplos que põe sob nossos olhos, para lá nos transporta pelo pensamento. A gente a vê e a compreende, não mais com essa noção vaga, incerta, problemática que nos desenhavam do futuro, e que, involuntariamente, deixava dúvidas. Para o espírita, é uma certeza adquirida, uma realidade.
Ele faz ainda mais: Mostra-nos a vida da alma, o ser essencial, porque é o ser pensante, remontando a uma época desconhecida, no passado, e se estendendo indefinidamente pelo futuro, de tal sorte que a vida terrena, mesmo de um século, não passa de um ponto nesse longo percurso. Se a vida inteira é tão pouca coisa comparada com a vida da alma, o que serão, então, os incidentes da vida?
Entretanto, o homem, colocado no centro desta vida, preocupa-se como se ela fosse durar para sempre. Para ele tudo assume proporções colossais, pois a menor pedra que o fere afigura-se-lhe um rochedo; uma decepção o desespera; um revés o abate; uma palavra o enfurece. Com a visão limitada ao presente, àquilo que o afeta imediatamente, ele exagera a importância dos menores acidentes: um negócio que falha lhe tira o apetite; uma questão de precedência é um negócio de Estado; uma injustiça o põe fora de si. Triunfar é a meta de todos os seus esforços, o objetivo de todas as suas combinações.
O que é triunfar, para a maioria? Será criar, por meios honestos, uma existência tranquila, se eles não têm de que viver? Será a nobre emulação de adquirir talento e desenvolver a inteligência? Será o desejo de deixar depois de si um nome honrado e realizar trabalhos úteis para a Humanidade? Não. Triunfar é suplantar seu vizinho, é eclipsá-lo, é afastá-lo ou mesmo derrubá-lo para tomar-lhe o lugar.
Para tão belo triunfo, que talvez a morte não permita aproveitar por vinte e quatro horas, quantas preocupações! Quantas tribulações! Quanto talento por vezes despendido e que poderia ter sido mais bem empregado! Depois, quanta raiva, quanta insônia se não triunfar! Que pungente inveja causa o sucesso de um rival! Então, culpa-se a má estrela, a sorte, a chance fatal, ao passo que a má estrela as mais das vezes é a inabilidade e a incapacidade.
Na verdade, dir-se-ia que o homem assume a tarefa de tornar penosos, na medida de suas possibilidades, os poucos instantes que deve passar na Terra e dos quais não é senhor, pois jamais tem certeza do dia seguinte.
Como tudo isso muda de aspecto quando, pelo pensamento, sai o homem do vale estreito da vida terrena e se eleva na radiosa, esplêndida, incomensurável vida de além-túmulo! Como então deplora os tormentos que prazerosamente criou para si mesmo! Como então lhe parecem mesquinhas e pueris as ambições, a inveja, as suscetibilidades, as vãs satisfações do orgulho! É como, na idade madura, considerar as brincadeiras infantis. É como, do topo da montanha, olhar os homens no vale.
Partindo desse ponto de vista, tornar-se-á voluntariamente joguete de uma ilusão? Não. Ao contrário, estará na realidade, na posse da verdade. Para ele, a ilusão é ver as coisas do ponto de vista terreno.
Com efeito, não há ninguém na Terra que não ligue mais importância àquilo que para ele deve durar muito tempo, do que àquilo que deve durar um dia; que não prefira uma felicidade duradoura a uma efêmera. A gente pouco se inquieta com um aborrecimento passageiro. Acima de tudo, o que interessa é a situação normal.
Se, pois, elevarmos o pensamento de maneira a abarcar a vida da alma, chegaremos forçosamente a ver, como consequência, que a vida terrena é uma estação passageira; que a vida espiritual é a vida real, porque indefinida; que é ilusão tomar a parte pelo todo, isto é, a vida do corpo, apenas transitória, pela vida definitiva.
O homem que apenas considera as coisas do ponto de vista terreno é como aquele que, estando dentro de casa, nem pode julgar da forma, nem da importância da construção. Ele julga sob falsas aparências, porque não vê tudo, ao passo que aquele que a vê de fora julga direito, porque só ele pode avaliar o conjunto.
Dir-se-á que para ver as coisas dessa maneira é necessária uma inteligência fora do comum, um espírito filosófico que não se encontra nas massas, de onde necessário seria concluir que com raras exceções a Humanidade arrastar-se-á sempre no terra a terra. É um erro. Para identificar-se com a vida futura não é preciso uma inteligência excepcional, nem grandes esforços de imaginação, pois cada um traz consigo a intuição e o desejo. Mas a maneira pela qual geralmente a apresentam é muito pouco sedutora, porque oferece como alternativas as chamas eternas ou a contemplação perpétua, o que leva muitos a preferirem o nada. Daí a incredulidade absoluta de uns e a dúvida no maior número.
O que faltou até agora foi a prova irrefutável da vida futura, e essa prova vem dá-la o Espiritismo, não mais por uma vaga teoria, mas por fatos patentes. Mais ainda, ele a mostra tal qual a razão mais severa pode aceitar, porque tudo explica, tudo justifica, resolvendo todas as dificuldades. Porque é claro e lógico, está ao alcance de todos. É por isto que o Espiritismo reconduz à crença tanta gente que a havia perdido.
Diariamente demonstra a experiência quantos simples operários e camponeses sem instrução compreendem sem esforço esse raciocínio. Eles colocam-se tanto mais à vontade nesse novo ponto de vista, quanto mais nele acham, como todas as criaturas infelizes, uma imensa consolação, a única compensação possível em sua existência penosa e laboriosa.
Se se generalizasse essa maneira de encarar as coisas terrenas, não teria ela como consequência destruir a ambição, estimulante dos grandes empreendimentos, dos mais úteis trabalhos, mesmo das obras de gênio?
Se a Humanidade inteira sonhasse apenas com a vida futura, tudo não periclitaria neste mundo? O que fazem os monges nos conventos, senão ocupar-se exclusivamente do Céu? Ora, o que seria da Terra se todos se fizessem monges? Tal estado de coisas seria desastroso e os inconvenientes maiores do que se supõe, porque os homens com isso perderiam na Terra mas nada ganhariam no Céu.
Entretanto, os resultados do princípio que expomos são completamente outros para quem quer que não o compreenda pela metade, conforme vamos explicar.
A vida corpórea é necessária ao Espírito, ou à alma, o que é a mesma coisa, para que possa realizar neste mundo material as funções que lhe são designadas pela Providência. É uma das engrenagens da harmonia universal. A atividade que é forçado a desenvolver nas funções que exerce sem suspeitar, crendo agir por si mesmo, ajuda no desenvolvimento de sua inteligência e lhe facilita o adiantamento.
Sendo a felicidade do Espírito na vida espiritual proporcional ao seu progresso e ao bem que pôde fazer como homem, disso resulta que quanto maior importância adquire a vida espiritual aos olhos do homem, mais ele sente a necessidade de fazer o que for necessário para garantir o melhor lugar possível.
A experiência dos que viveram vem provar que uma vida terrena inútil ou mal empregada não tem proveito para o futuro, e que aqueles que não buscam aqui senão as satisfações materiais pagam muito caro por elas, quer por sofrimentos no mundo dos Espíritos, quer pela obrigação em que se acham de recomeçar sua tarefa em condições mais penosas que as do passado. Este é o caso de muitos daqueles que sofrem na Terra.
Assim, considerando as coisas deste mundo do ponto de vista extracorpóreo, longe de ser estimulado à despreocupação e à ociosidade, o homem compreende melhor a necessidade do trabalho.
Partindo do ponto de vista terreno, essa necessidade é uma injustiça aos seus olhos quando ele se compara aos que podem viver sem nada fazerem. Ele os inveja e deles tem ciúmes.
Partindo do ponto de vista espiritual, essa necessidade tem sua razão de ser, sua utilidade, e ele a aceita sem murmurar, pois compreende que sem o trabalho ficará indefinidamente na inferioridade e privado da felicidade suprema a que aspira e que não poderá alcançar se não se desenvolver intelectual e moralmente.
Sob este ponto de vista, parece que muitos monges compreendem mal o objetivo da vida terrena, e ainda menos as condições da vida futura. Pelo rigoroso isolamento, privam-se dos meios de se tornarem úteis aos seus semelhantes. Muitos dos que hoje se acham no mundo dos Espíritos confessam-nos que se enganaram redondamente e que sofrem as consequências de seu erro.
Este ponto de vista tem para o homem outra enorme consequência imediata. É a de lhe tornar mais suportáveis as tribulações da vida. É muito natural, e ninguém o proíbe de buscar o bem-estar e de passar o mais agradavelmente possível a sua existência na Terra. Mas sabendo que aqui está apenas momentaneamente e que um futuro melhor o aguarda, pouco se atormenta com as decepções que experimenta.
Vendo as coisas do alto, ele recebe os reveses com menor amargor; fica indiferente às embrulhadas de que é vítima por parte dos ciumentos e dos invejosos; reduz a seu justo valor os objetos de sua ambição e coloca-se acima das pequenas suscetibilidades do amor-próprio.
Liberto das preocupações criadas pelo homem que não sai da esfera estreita, pela perspectiva grandiosa que se desdobra aos seus olhos, é, ao contrário, mais livre para se entregar a um trabalho proveitoso para si próprio e para os outros. Os vexames, as diatribes, as maldades de seus inimigos não lhe são mais que nuvens imperceptíveis num imenso horizonte. Não se inquieta por elas mais do que pelas moscas que zumbem aos ouvidos, pois sabe que em breve estará livre disso.
Assim, todas as pequenas misérias que lhe suscitam, deslizam por ele como a água sobre o mármore. Colocado no ponto de vista terreno, irritar-se-ia e talvez se vingasse. Do ponto de vista extraterreno, ele as despreza como os salpicos de lama de um caminhante inadvertido. São os espinhos lançados no caminho e pelos quais passa, mesmo sem se dar ao trabalho de afastá-los, para não moderar a marcha para um objetivo mais sério que se propõe atingir.
Longe de malquerer seus inimigos, ele lhes agradece por lhe fornecerem oportunidades para exercitar a paciência e a moderação em proveito de seu progresso futuro, ao passo que perderia os seus frutos se descesse a represálias. Lamenta essas pessoas por tanto trabalho inútil, e diz para si mesmo que são eles que caminham sobre espinhos, por causa das preocupações que têm de fazer o mal.
Tal é o resultado da diferença do ponto de vista sob o qual se encara a vida: um nos dá fadiga e ansiedade, o outro, calma e serenidade.
Espíritas que experimentais decepções, deixai por um instante a Terra, em pensamento. Subi às regiões do infinito e mirai-as do alto, e vereis o que são elas.
Por vezes dizem: “Vós que sois infelizes, olhai para baixo e não para cima, e vereis criaturas ainda mais infelizes”. Isto é verdade, mas muitos dizem que o mal alheio não os cura. Muitas vezes o remédio só se encontra na comparação, e apenas nela se encontra para aqueles que têm dificuldade de olhar para cima sem dizerem:
“Por que têm esses o que não tenho?”
Ao contrário, se se colocassem no ponto de vista de que falamos, ao qual em breve seremos forçados, ficariam naturalmente muito acima daqueles aos quais poderiam invejar, porque vistos da lá, os maiores pareceriam muito pequenos.
Lembramo-nos de ter assistido, há uns quarenta anos, no Odeon, a uma peça em um ato intitulada Os Efêmeros, não nos lembramos de que autor. Mas, embora ainda jovem, tivemos uma forte impressão. A cena se passava no país dos efêmeros, cujos habitantes vivem apenas vinte e quatro horas. No espaço de vinte e quatro horas, vimo-los passarem do berço à adolescência, à mocidade, à idade madura, à velhice, à decrepitude e à morte. Nesse intervalo realizaram todos os atos da vida: batismo, casamento, negócios civis e governamentais, etc., mas, como o tempo era curto e as horas contadas, era preciso ter pressa. Tudo se fez com prodigiosa rapidez, o que não os impediu de fazerem intrigas e de sofrerem muito para satisfazerem as ambições e suplantar os outros.
Como se vê, a peça encerrava um conteúdo profundamente filosófico e involuntariamente o espectador, que num instante via desenrolar-se uma existência bem cheia em todas as suas fases, raciocinava: Que gente boba! Fazer tanto mal para uma vida tão curta! O que é que lhes resta dessa balbúrdia de uma ambição de algumas horas? Não seria melhor viver em paz?”
Eis aí um perfeito quadro da vida humana, vista do alto. Entretanto, a peça não durou muito mais que seus heróis, pois não foi compreendida. Se o autor ainda vivesse, o que ignoramos, talvez hoje fosse espírita.
Estatística de suicídios
“Na Comédie sociale ou dix-neuvième siècle[1], o novo livro que o Sr. B. Gastineau acaba de publicar na Casa Dentu, encontramos esta curiosa estatística de suicídios:
“Calculou-se que desde o começo do século o número de suicídios na França não se eleva a menos de 300.000, e tal estimativa talvez esteja aquém da verdade, pois a estatística não fornece resultados completos senão a partir de 1836. De 1836 a 1852, isto é, num período de dezessete anos, houve 52.126 suicídios, ou seja, em média 3.066 por ano. Em 1858 contaram-se 3.903 suicídios, dos quais 853 mulheres e 3.050 homens; enfim, segundo a última estatística que vimos no correr do ano de 1859, 3.899 pessoas se mataram, a saber 3.057 homens e 842 mulheres.
“Constatando que o número de suicídios aumenta de ano para ano, o Sr. Gastineau deplora em termos eloquentes a triste monomania que parece haver-se apoderado da espécie humana.”
Eis uma rápida oração fúnebre pelos infelizes suicidas. Entretanto a questão nos parece muito séria e merece um exame atento. Do ponto de vista em que se acham as coisas, o suicídio já não é um fato isolado e acidental. Ele pode, a justo título, ser considerado como um mal social, uma verdadeira calamidade. Ora, um mal que regularmente arrebata de três a quatro mil pessoas anualmente em um país, e que segue uma progressão ascendente, não é devido a uma causa fortuita. Ele deve ter uma causa radical, absolutamente como quando se vê um grande número de pessoas morrerem do mesmo mal, o que deve chamar a atenção da ciência e a solicitude das autoridades. Em semelhante caso limitam-se a verificar o gênero de morte e o modo empregado para consumá-la, enquanto é negligenciado o elemento essencial, o único que poderia nos pôr a caminho do remédio: o motivo determinante de cada suicídio. Assim chegar-se-ia a constatar a causa predominante. Mas, salvo circunstâncias muito bem caracterizadas, acham mais simples e mais cômodo atribuí-los à classe dos monômanos e dos maníacos.
Incontestavelmente há suicídios por monomania, realizados fora do domínio da razão, como, por exemplo, os que ocorrem na loucura, nas febres altas, na embriaguez. Nestes a causa é puramente fisiológica. Mas, ao lado desses está a categoria muito mais numerosa dos suicídios voluntários, executados com premeditação e pleno conhecimento de causa.
Certas pessoas creem que o suicida jamais está no domínio de suas faculdades mentais. É um erro de que partilhávamos outrora, mas que caiu ante uma observação mais atenta. Com efeito, é muito natural pensar que o instinto de conservação esteja em a Natureza; que a destruição voluntária seja contra a Natureza, e que por isso muitas vezes se veja o instinto triunfar no último instante sobre a vontade de morrer, de onde se concluiu que, para realizar esse ato, é preciso ter perdido a cabeça.
Sem dúvida muitos suicidas são nesse momento tomados por uma espécie de vertigem e sucumbem a um primeiro momento de exaltação. Se o instinto de conservação os empolga no último instante, como que despertam e se agarram àvida, mas é muito evidente, também, que muitos se matam a sangue frio e com reflexão. A prova disto está nas preocupações calculadas que tomam; na ordem raciocinada que preside seu ato, o que não é uma característica de loucura.
Faremos notar, de passagem, um traço característico do suicida: é que os atos dessa natureza realizados em lugares completamente isolados e desabitados são excessivamente raros. O homem perdido no deserto ou no mar morrerá de privações, mas não se suicidará, mesmo quando não tenha esperança de socorro. No entanto, aquele que voluntariamente quer deixar a vida aproveita o momento em que está só para não ser obstado em seu desígnio, mas o faz de preferência nos centros populosos, onde seu corpo ao menos tem a chance de ser encontrado. Este pulará do alto de um monumento no centro da cidade, mas não do alto de um precipício, onde não ficaria traço de sua passagem; aquele enforcar-se-á no Bosque de Bolonha, mas não o faria numa floresta onde ninguém passa. O suicida não quer ser impedido, mas deseja que se saiba, mais cedo ou mais tarde, que se suicidou. Afigura-se-lhe que essa lembrança dos homens o liga ao mundo que quis deixar, tanto é certo que a ideia do nada absoluto tem algo de mais apavorante que a própria morte. Eis um curioso exemplo em apoio a teoria:
Por volta de 1815, um inglês rico foi visitar a famosa queda do Reno. Ficou de tal maneira impressionado, que voltou à Inglaterra, pôs ordem nos seus negócios e voltou, meses depois, para precipitar-se na voragem. É incontestavelmente um ato de originalidade, mas duvidamos muito que ele se tivesse atirado na catarata do Niágara, sem que ninguém tivesse vindo a saber. Uma singularidade de caráter causou o ato, mas o pensamento de que iriam falar dele determinou a escolha do lugar e o momento. Se o seu corpo não tivesse que ser encontrado, ao menos sua memória não se apagaria.
Em falta de uma estatística oficial que desse a proporção exata dos diversos motivos de suicídio, não resta dúvida que os casos mais numerosos são determinados pelos reveses da fortuna, as decepções, os pesares de várias naturezas. Nesse caso, o suicídio não é um ato de loucura, mas de desespero.
Ao lado desses motivos, que poderiam ser chamados sérios, uns há que são evidentemente fúteis, sem falar do indefinível desgosto da vida, em meio aos prazeres, como o que acabamos de citar. O que é certo é que todos os que se suicidam só chegam a esse extremo, com ou sem razão, porque não estão contentes.
Sem dúvida a ninguém é dado remediar essa causa primeira, mas o que é preciso deplorar é a facilidade com a qual os homens cedem, há algum tempo, a esse arrastamento fatal. É isto, sobretudo, o que deve chamar a atenção e que, a nosso ver, é perfeitamente remediável.
Muitas vezes pergunta-se se há covardia ou coragem no suicídio. Incontestavelmente há covardia ante as provas da vida, mas há coragem em enfrentar as dores e as angústias da morte. Esses dois pontos, parece, encerram todo o problema do suicídio.
Por mais pungentes que sejam as crises da morte, o homem as afronta, as suporta, se excitado pelo exemplo. É o caso do conscrito que sozinho recuaria diante do fogo, ao passo que fica eletrizado vendo os outros marcharem sem medo. Dá-se o mesmo com o suicida. A visão dos que se libertam por esse meio dos aborrecimentos e dos desgostos da vida leva a crer que esse momento passa rapidamente. Aqueles que tivessem sido retidos pelo medo do sofrimento dizem que se tantas pessoas assim o fazem, também podem fazer o mesmo; que é melhor sofrer por alguns instantes do que durante anos. É somente sob esse aspecto que o suicídio é contagiante.
O contágio não está nos fluidos, nem nas atrações, mas no exemplo, que familiariza com a ideia da morte e com o emprego dos meios para levá-la a efeito. Isto é tão certo que quando se dá um suicídio de uma certa maneira, não é raro sucederem-se outros do mesmo gênero. A história da famosa guarita onde se enforcaram quatorze soldados, num curto período, não tinha outra causa. O meio lá estava, à vista. Parecia cômodo, e desde que tivessem a veleidade de acabar com a vida, aproveitavam-no. A simples visão poderia fazer brotar a ideia. Tendo sido contado o caso a Napoleão, este mandou queimar a guarita fatal. O meio já não estava à vista. Então o mal cessou.
A publicidade dada aos suicídios produz sobre as massas o efeito da guarita. Ela excita, encoraja, familiariza com a ideia e até a provoca. Sob esse ponto de vista consideramos as descrições do gênero que abundam nos jornais como uma das causas excitantes do suicídio: elas dão a coragem de morrer.
Dá-se o mesmo com esses crimes com a ajuda dos quais se excita a curiosidade pública. Eles produzem, pelo exemplo, um verdadeiro contágio moral. Eles jamais detiveram um criminoso. Pelo contrário, criaram mais de um.
Examinemos agora o suicídio de outro ponto de vista. Dissemos que, sejam quais forem os motivos particulares, eles sempre têm o descontentamento como causa. Ora, aquele que está certo de não ser infeliz senão por um dia e de estar melhor nos dias seguintes facilmente adquire paciência. Só se desespera se não vir um termo para os seus sofrimentos. Que é, pois, a vida humana em relação à eternidade, senão menos que um dia? Mas aquele que não acredita na eternidade; que acredita que tudo nele se acaba com o fim da vida, se estiver oprimido pelo pesar e pelo infortúnio, só vê um termo na morte. Nada mais esperando, acha naturalíssimo e mesmo muito lógico abreviar os sofrimentos pelo suicídio.
A incredulidade, a simples dúvida quanto ao futuro, as ideias materialistas, numa palavra, são os maiores excitantes ao suicídio. Elas dão a covardia moral.
Quando se veem homens de ciência apoiarem-se na autoridade de seu saber para se esforçarem por provar aos seus ouvintes ou leitores que nada devem esperar depois da morte, não é conduzi-los à conclusão de que, caso sejam infelizes, nada têm a fazer de melhor do que se matarem?
O que poderiam eles dizer para demovê-los? Que compensação lhes poderiam oferecer? Que esperança lhes poderiam dar? Nada além do nada. Daí temos que concluir que se o nada é um remédio heróico, a única perspectiva, melhor é cair imediatamente do que mais tarde, e assim sofrer por menos tempo.
A propagação das ideias materialistas é, pois, o veneno que inocula em muitos a ideia do suicídio, e os que se tornam seus apóstolos assumem uma terrível responsabilidade.
Contra isso talvez objetem que nem todos os suicidas são materialistas, de vez que há pessoas que se matam visando ir mais depressa para o Céu e outras para unirem-se mais cedo aos que elas amaram. É verdade, mas é, incontestavelmente, o menor número, coisa de que todos se convenceriam se houvesse uma estatística, feita conscienciosamente, das causas íntimas de todos os suicídios.
Seja como for, se as pessoas que cedem a tal pensamento creem na vida futura, é evidente que têm dela uma ideia falsa e a maneira pela qual a apresentam em geral não é bem apropriada para lhes dar uma ideia mais justa.
O Espiritismo não só vem confirmar a teoria da vida futura, mas a prova pelos fatos mais patentes que se possam apresentar: o testemunho daqueles que nela se acham. Faz mais: ele no-la mostra sob cores tão racionais, tão lógicas, que o raciocínio vem em apoio à fé. Já não sendo admissível a dúvida, muda o aspecto da vida. Sua importância diminui em razão da certeza que se adquire de um futuro mais próspero. Para o crente, a vida se prolonga indefinidamente para além do túmulo. Daí a paciência e a resignação que naturalmente desviam a ideia de suicídio; daí, numa palavra, a coragem moral.
Sob esse aspecto tem ainda o Espiritismo outro resultado muito positivo, e talvez mais determinante. Bem diz a religião que o suicídio é um pecado mortal, pelo qual se é punido. Mas como? Pelas chamas eternas, nas quais não mais se acredita. O Espiritismo nos mostra os suicidas em pessoa, vindo dar conta de sua posição infeliz, mas com a diferença que as penas variam conforme as circunstâncias agravantes ou atenuantes, o que é mais conforme à justiça divina; que, em vez de serem uniformes, são a natural consequência da causa que provocou a falta, com o que não se pode deixar de aí ver uma soberana justiça distribuída com equidade. Entre os suicidas uns há cujo sofrimento, embora temporário, em vez de eterno, nem por isso é menos terrível e de natureza a dar a refletir a quem quer que se sinta tentado partir daqui antes da ordem de Deus. Assim, tem o espírita vários motivos como contrapeso à ideia do suicídio: a certeza de uma vida futura, na qual sabe que será tanto mais feliz quanto mais infeliz e resignado tiver sido na Terra; a certeza de que, abreviando a vida, chega a um resultado absolutamente oposto ao que esperava; que ele se liberta de um mal para chegar a outro pior, mais longo e mais terrível; que não poderá rever no outro mundo os objetos de suas afeições aos quais queria unir-se. Daí a consequência que o suicídio é contra os seus próprios interesses.
Assim, o número de suicídios obstados pelo Espiritismo é considerável, de onde se pode concluir que quando todo mundo for espírita, não mais haverá suicídios voluntários, o que acontecerá mais cedo do que se pensa.
Comparando, pois, os resultados das doutrinas materialista e espírita, apenas do ponto de vista do suicídio, verifica-se que a lógica de um a ele conduz, ao passo que a lógica do outro dele desvia, o que é confirmado pela experiência.
Perguntarão se por esse meio se destrói a hipocondria, essa causa de tantos suicídios não motivados, desse inseparável desgosto da vida, que nada parece justificar. Essa causa é eminentemente fisiológica, ao passo que as outras são morais. Ora, se o Espiritismo só curasse estas, já seria muito. A primeira é, a bem da verdade, da alçada da ciência, à qual poderíamos abandoná-la, dizendo: nós curamos aquilo que nos diz respeito. Por que não curais vós o que é da vossa competência? Contudo não hesitamos em responder à questão afirmativamente.
Evidentemente, certas afecções orgânicas são alimentadas e mesmo provocadas pelas disposições morais. O desgosto da vida o mais das vezes é fruto da saciedade. O homem que tudo usou, não vendo nada além, está na situação do bêbado que tendo esvaziado a garrafa e nada mais nela encontrando, a quebra.
Os abusos e os excessos de toda sorte conduzem forçosamente a um enfraquecimento e a uma perturbação das funções vitais. Daí uma porção de doenças cuja fonte é desconhecida, que são julgadas causativas, quando são consecutivas. Daí também uma sensação de langor e de falta de coragem.
O que é que falta ao hipocondríaco para combater as suas ideias melancólicas? Um objetivo na vida, um móvel à sua atividade. Que objetivo pode ter se em nada crê?
O espírita faz mais do que acreditar no futuro. Ele sabe, não pelos olhos da fé, mas pelos exemplos que tem diante de si, que a vida futura, à qual não se subtrai, é feliz ou infeliz conforme o emprego que faça da vida corpórea, e que a felicidade é proporcional ao bem que ele fez.
Ora, com a certeza de viver depois da morte, e de viver muito mais tempo do que na Terra, é muito natural que pense em lá ser o mais feliz possível. Tem certeza, por outro lado, que lá será infeliz se não praticar o bem, ou mesmo se, não fazendo o mal, nada faz. Ele compreende a necessidade de uma ocupação, o melhor preservativo contra a hipocondria. Com a certeza do futuro, ele tem um objetivo. Com a dúvida, não o tem. É tomado pelo aborrecimento e acaba com a vida porque nada mais espera.
Permitam-nos uma comparação talvez trivial, mas à qual não falta analogia. Um homem passou uma hora no teatro. Se pensa que a peça acabou, levanta-se e sai. Mas se souber que ainda vão representar coisa melhor e mais longa do que o que viu, ficará, mesmo que no pior lugar. A espera do melhor nele vencerá a fadiga.
As mesmas causas que conduzem ao suicídio também produzem a loucura. O remédio de um é o remédio da outra, conforme o demonstramos. Infelizmente, enquanto a medicina só levar em conta o elemento material, privar-se-á de todas as luzes que lhe traria o elemento espiritual, que representa um papel muito ativo num grande número de afecções.
Além disso, o Espiritismo nos revela a causa primeira do suicídio, e só ele poderia fazê-lo. As tribulações da vida são ao mesmo tempo expiações de faltas cometidas no passado e provas para o futuro. O próprio Espírito as escolhe, com vistas ao seu adiantamento, mas pode acontecer que durante a execução da obra ache a carga muito pesada e recue antes da sua conclusão. É então que ele recorre ao suicídio, o que o retarda em vez de fazê-lo avançar.
Acontece ainda que um Espírito suicidou-se em precedente encarnação e que, como expiação, é-lhe imposto, na seguinte, lutar contra a tendência ao suicídio. Se for vitorioso, progride. Se sucumbir, terá que recomeçar uma vida talvez mais penosa ainda que a precedente, e assim deverá lutar até que haja triunfado, pois toda recompensa na outra vida é fruto de uma vitória, e quem diz vitória, diz luta.
Assim, na certeza que tem o espírita desse estado de coisas, ele haure uma força de perseverança que nenhuma outra filosofia lhe poderia dar.
Hereditariedade moral
“Senhor, eu estudo o Espiritismo cuidadosamente em todos os vossos livros e, malgrado a clareza decorrente, dois pontos importantes não parecem bem explicados aos olhos de certas pessoas. São eles: l.º ─ as faculdades hereditárias; 2º ─ os sonhos.
“Com efeito, como conciliar o sistema da anterioridade da alma com a existência das faculdades hereditárias? Entretanto elas existem, embora não de maneira absoluta. Diariamente elas nos chocam na vida privada. Também vemos, numa ordem mais elevada, os talentos sucedendo aos talentos, a inteligência à inteligência. O filho de Racine foi poeta. Alexandre Dumas teve como filho um autor ilustre. Na arte dramática, vemos a tradição de talentos numa mesma família e na arte da guerra uma raça, como a dos duques de Brunswick, por exemplo, fornecendo uma série de heróis.
“A inépcia, o vício, o próprio crime também conservam sua tradição. Eugène Sue cita famílias onde várias gerações passaram sucessivamente pelo assassínio e pela guilhotina.
“A criação da alma por indivíduo explicaria ainda menos essas dificuldades, bem o compreendo, mas há que confessar que tanto uma doutrina quanto a outra se prestam aos golpes dos materialistas, que não veem em todas as faculdades mais que uma concentração de forças nervosas.
“Quanto aos sonhos, a Doutrina Espírita não concilia bem o sistema das peregrinações da alma durante o sono com a opinião vulgar que o torna simples reflexo das impressões percebidas durante a vigília. Esta última opinião poderia parecer a verdadeira explicação dos sonhos, ao passo que a peregrinação seria apenas um caso excepcional.”
(Seguem-se vários exemplos em apoio).
“Que fique bem entendido, senhor presidente, que não pretendo fazer aqui nenhuma objeção em meu nome pessoal, mas parece-me útil que a Revista Espírita se ocupe dessas questões, ainda que seja para fornecer os meios de responder aos incrédulos. Quanto a mim, sou crente, e busco apenas a minha instrução.”
A questão dos sonhos será examinada posteriormente, em artigo especial. Hoje só nos ocuparemos da hereditariedade moral, deixando que dela tratem os Espíritos, limitando-nos a algumas observações preliminares.
Diga-se o que se disser a respeito, os materialistas não ficarão convencidos, porque se não admitem o princípio, não lhe admitem as consequências. Antes de tudo seria necessário que se tornassem espiritualistas. Ora, não é por aí que se deve começar. Assim, não nos podemos ocupar com suas objeções.
Tomando como ponto de partida a existência de um princípio inteligente fora da matéria, por outras palavras, a existência da alma, a questão é saber se as almas procedem das almas ou se são independentes.
Cremos já haver demonstrado, em nosso artigo sobre Os Espíritos e o Brasão publicado no mês de março último, a impossibilidade da criação de alma por alma. Realmente, se a alma da criança fosse uma parte da do pai, deveria ter sempre as suas qualidades e imperfeições, em virtude do axioma que a parte é da mesma natureza que o todo.
Ora, a experiência todos os dias prova o contrário. É verdade que se citam exemplos de similitudes morais e intelectuais que parecem devidas à hereditariedade, de onde seria necessário concluir que tivesse havido uma transmissão. Mas, então, por que essa transmissão não se dá sempre? Por que vemos, todos os dias, pais essencialmente bons, ter filhos viciosos e vice-versa? Como é impossível fazer da hereditariedade moral uma regra geral, é necessário explicar, com o sistema da recíproca independência das almas, a causa das similitudes. Isso poderia ser no máximo uma dificuldade, mas que não teria como pressuposto a doutrina da anterioridade da alma e da pluralidade das existências, visto que essa doutrina está provada por centenas de fatos concludentes, e contra os quais é impossível levantar objeções sérias.
Deixemos que falem os Espíritos que tiveram a bondade de tratar do assunto.
Eis as duas comunicações que a respeito obtivemos:
É verdade que muitas vezes elas jamais tiveram relações diretas com os meios e com as famílias nas quais se reencarnam. Já vos repetimos muitas vezes que as semelhanças corpóreas são devidas a uma questão material e fisiológica absolutamente independente da ação espiritual e que, quanto às aptidões e gostos semelhantes, estes resultam, não da procriação da alma por outra alma já nascida, mas porque os Espíritos semelhantes se atraem. Daí as famílias de heróis, ou as raças de guerreiros.
Admiti, pois, em princípio, que os bons Espíritos escolham de preferência para sua nova etapa terrena o meio onde o terreno já esteja preparado e a família de Espíritos adiantados, onde têm certeza de encontrar os materiais necessários ao seu progresso futuro. Admiti,
igualmente, que os Espíritos atrasados, ainda propensos aos vícios e aos apetites dos brutos, fujam dos grupos elevados, das famílias moralizadas, e se encarnem, ao contrário, onde esperam encontrar meios para satisfazerem às paixões que ainda os dominam. Assim, pois, em tese geral, as semelhanças espirituais existem porque os semelhantes atraem os semelhantes, ao passo que as semelhanças corpóreas se devem à procriação.
No entanto, é preciso acrescentar o seguinte: Muitas vezes nascem em famílias dignas, em todos os sentidos, do respeito de seus concidadãos, indivíduos viciosos e maus que aí são enviados para servirem de prova àquelas. Por vezes, ainda, eles vêm por vontade própria, na esperança de saírem dos hábitos inveterados onde até então se arrastaram e de se aperfeiçoaram sob a influência desses meios virtuosos e moralizados.
Dá-se o mesmo com Espíritos já adiantados moralmente, e que, a exemplo dessa jovem de Saint-Étienne, de que se falou no ano passado, se reencarnam em famílias obscuras, entre Espíritos atrasados, a fim de mostrar-lhes o caminho do progresso. Não esquecestes, tenho certeza, o anjo das asas brancas em que ela pareceu transfigurar-se aos olhos dos que a tinham amado na Terra, quando estes voltaram por sua vez ao mundo dos Espíritos. (Revista Espírita de junho de 1861 – Conversas familiares de além-túmulo - Sra. Anaïs Gourdon).
ERASTO
O Espírito que se reencarna escolhe o pai cujo exemplo fá-lo-á avançar na via preferida e ele absorve, elevando-os ou enfraquecendo-os, os talentos daquele que lhe deu a vida corpórea. Em ambos os casos, a conjunção simpática existe anteriormente ao nascimento e a seguir é desenvolvida nas relações de família, pela imitação e pelo hábito.
Depois da hereditariedade familiar, meus amigos, quero revelar-vos a origem da discordância que separa os indivíduos de uma mesma raça, repentinamente ilustrada ou desonrada por um de seus membros que se tornou estranho ao meio.
O bruto vicioso que se encarnou num centro educado, e o Espírito luminoso que se reencarna entre gente grosseira, obedecem ambos à misteriosa harmonia que aproxima as partes divididas de um todo e faz a concordância entre o infinitamente pequeno e a suprema grandeza.
O Espírito culpado, apoiado nas virtudes adquiridas de seu procriador terreno, espera por essas fortalecer-se. Se sucumbe ainda na prova, adquire pelo exemplo o conhecimento do bem e volta à erraticidade menos carregado de ignorância e melhor preparado para sustentar uma nova luta.
Os Espíritos adiantados entreveem a glória de Jesus e anseiam por esgotar, depois dele, o cálice da ardente caridade. Também como ele, querem guiar a Humanidade para o objetivo sagrado do progresso e nascem nos baixos níveis sociais, onde se debatem, acorrentados uns aos outros, contra a ignorância e o vício, dos quais são alternativamente vencedores ou mártires.
Se esta resposta não soluciona todas as vossas dúvidas, interrogai-me, meus amigos.
SÃO LUÍS
Poesia Espírita (Sociedade espírita de Bordeaux - Médium Sr. Ricardo)
A CRIANÇA E A VISÃO
Mãezinha, é noite fechada,
E eu sinto o sono vir;
Põe-me no leito cor de rosa
Ou em teus braços vou dormir.
Criança, faz a prece a Deus.
Vamos, filha, de joelhos
Rezemos para teu pai
Lá no Céu!... longe de nós.
Lá em cima, não é, mamãe?
Junto a Deus, pois Deus o quis.
Somente os maus têm sua cólera,
Mas paizinho é seu eleito!
Deus te entende, cara filha!
Teu desejo é escutado!
Peçamos para teu pai
Repouso!... felicidade!
Também por ti peço, ó mãe!
Digo a Deus: ó Poderoso,
Vós que levastes meu pai,
Não me leveis a mamãe!
Obrigado, Gabriela.
Tão jovem, que coração!
Do alto teu pai te guia:
Sua alma vejo em teu rosto.
Como o queria, mamãe,
Pois o papai nos escuta,
Que voltasse da outra vida,
A beijar a sua filhinha!
Pede a Deus esse prodígio
Para nós que aqui sofremos!
A alma do morto embala
O berço de sua filhinha!
Mãezinha, é noite fechada
E eu sinto já o sono vir...
Põe-me no leito cor de rosa!..
Boa noite, mãe!... Vou dormir.
Mas não!... Eu vejo... é papai!
Aqui está junto ao meu leito!
Vem aqui, vem, ó mãezinha!
Ele nos olha e sorri...
Na testa sinto o seu beijo;
Sua mão toca os meus cabelos!
Como tu, fecha-me a boca.
E eis que sobe para o Céu!
Mãezinha, é noite fechada,
Tua filha não vai dormir...
Papai ao leito cor de rosa
Prometeu tornar a vir!
Teu Anjo da Guarda
Duplo suicídio por amor e dever - Estudo moral
“Terça-feira última, dois enterros entraram juntos na Igreja da Boa Nova. Eram acompanhados por um homem que parecia presa de uma dor profunda e por uma multidão considerável, na qual se notava tristeza e recolhimento. Eis um ligeiro relato dos acontecimentos que determinaram a dupla cerimônia fúnebre.
“A senhorita Palmira, modista, residente com os pais, era dotada de um corpo físico encantador, ao qual se juntava um caráter muito amável. Assim, era muito assediada de propostas de casamento. Entre os aspirantes à sua mão, tinha preferido o Sr. B..., que experimentava por ela uma viva paixão. Posto o amasse muito, ela preferiu, entretanto, por respeito filial, ceder à vontade dos pais, de desposar o Sr. D..., cuja posição social lhes parecia mais vantajosa que a do rival. O casamento foi celebrado há quatro anos.
“Os Srs. B... e D... eram amigos íntimos. Mesmo não tendo nenhum interesse comum, eles não deixaram de se ver. O amor recíproco do Sr. B... e de Palmira, agora Sra. D..., não havia morrido, e como se esforçassem por minimizá-lo, ele aumentava em razão da própria violência com que era enfrentado. Para tentar apagálo, B... decidiu casar-se. Esposou uma moça de excelentes qualidades e fez todo possível para amá-la, mas não tardou a perceber que esse meio heróico era inútil para curá-lo. Não obstante, durante quatro anos, nem B... nem a Sra. D... faltaram aos seus deveres. Não se poderia descrever o que eles sofreram porque D..., que amava verdadeiramente o seu amigo, o atraía sempre para sua casa, e quando ele queria fugir, o obrigava a ficar.
“Enfim, há alguns dias, aproximados por uma circunstância fortuita, os dois amantes não resistiram à paixão que os arrastava um ao outro. Apenas cometida a falta, sentiram o mais terrível remorso. A jovem senhora lançou-se aos pés do marido, assim que ele voltou, e disse-lhe em soluços:
“─ Enxote-me! Mate-me! Agora sou indigna de ti!
“Como ele ficasse mudo de espanto e dor, ela lhe contou suas lutas, seus sofrimentos, tudo quanto lhe tinha sido preciso de coragem para não falir mais cedo. Fê-lo compreender que, dominada por um amor ilegítimo, jamais tinha cessado de ter por ele o respeito, a estima e o apego de que ele era digno.
“Em vez de amaldiçoá-la, o marido chorava. B... chegou em meio a essa cena e fez idêntica confissão. D... os ergueu a ambos e lhes disse:
“─ Sois dois corações leais e bons. Só a fatalidade vos tornou culpados. Li no fundo dos vossos pensamentos e vi sinceridade. Por que vos puniria por um arrastamento ao qual não resistiram todas as vossas forças morais? A punição está no pesar que sentis. Prometei-me que vos deixareis de ver e não tereis perdido nem a minha estima, nem a minha afeição.
“Esses dois desventurados amantes apressaram-se em fazer o juramento pedido. A maneira que sua confissão havia sido recebida pelo Sr. D... aumentou-lhes a dor e o remorso. Tendo o acaso lhes proporcionado um encontro não buscado, comunicaram-se reciprocamente o estado de alma e concordaram em que só a morte seria remédio aos males que experimentavam. Resolveram matar-se juntos e fixaram o dia seguinte para consumação do plano, porque o Sr. D... estaria ausente de casa grande parte do dia.
“Depois de feitos os últimos preparativos, escreveram uma longa carta, na qual diziam, em resumo: ‘Nosso amor é mais forte que todas as promessas. Poderíamos, ainda, apesar de tudo, fraquejar, sucumbir. Não conservaremos uma existência culposa. Para nossa expiação, faremos ver que a falta por nós cometida não deve ser atribuída à nossa vontade, mas ao arrebatamento de uma paixão cuja violência estava acima de nossas forças.’
“Essa carta comovedora terminava por um pedido de perdão, e os dois amantes imploravam como graça serem reunidos no túmulo.
“Quando o Sr. D... chegou em casa, ofereceu-se-lhe à vista um estranho e doloroso espetáculo. No meio do espesso vapor que se exalava de um forno portátil cheio de carvão, os dois amantes, deitados e bem vestidos no leito, estavam estreitamente abraçados. Tinham cessado de viver.
“O Sr. D... respeitou a última vontade dos dois amantes. Quis que juntos participassem das preces na igreja e que não ficassem separados no cemitério.”
O Sr. cura de Boa Nova entendeu que deveria desmentir, num artigo em vários jornais, a admissão dos dois corpos em sua igreja, pela oposição das leis canônicas.
Tendo sido lido esse relato, como assunto de estudo moral, na Sociedade Espírita de Paris, dois Espíritos fizeram a seguinte apreciação:
“Eis aí a obra de vossa Sociedade e dos vossos costumes! Mas o progresso será feito. Mais algum tempo e fatos que tais não mais se repetirão. Certas criaturas são como as plantas que se metem numa redoma. Falta-lhes o ar, sufocam e não podem espalhar o seu perfume. Vossas leis e vossos costumes traçaram limites à expansão de certos sentimentos, o que muitas vezes leva duas almas dotadas das mesmas faculdades, dos mesmos instintos simpáticos, a se encontrarem em posições diferentes e que, não podendo unir-se, se arrebentam em tenazes tentativas de se encontrarem.
“Que fizestes do amor? Vós o reduzistes ao peso de um cilindro de metal. Vós o jogastes numa balança. Em vez de ser rei, ele é escravo. De um laço sagrado, vossos costumes fizeram uma corrente de ferro, cujos elos esmagam e matam aqueles que não nasceram para serem acorrentados.
“Ah! Se vossas sociedades marchassem pela via de Deus, vossos corações não se consumiriam em chamas passageiras e vossos legisladores não teriam sido forçados a submeter as vossas paixões ao controle de leis. Mas o tempo marcha e soará a grande hora na qual podereis todos viver a verdadeira vida, a vida do coração. Quando as batidas do coração não mais forem comprimidas pelos cálculos frios dos interesses materiais, não vereis mais esses suicídios horríveis, que de tempos em tempos vêm lançar um desmentido sobre os vossos preconceitos sociais.
SANTO AGOSTINHO
Médium: Sr. Vézy
os castigarão durante migrações seguidas nas quais as suas almas desemparelhadas buscar-se-ão incessantemente e sofrerão o duplo suplício do pressentimento e do desejo. Realizada a expiação, serão para sempre reunidas no seio do eterno amor.
GEORGES
Médium: Sr. Costel
“Eu vos disse da última vez que na vossa próxima sessão poderíeis evocá-los. Eles virão ao apelo de meu médium, mas não se verão. Uma noite profunda os ocultará um do outro por muito tempo.”
SANTO AGOSTINHO
Médium: Sr. Vézy
Ensinamentos e dissertações
União simpática das AlmasR. ─ Eu já te disse: Deus permite aos que se amam sinceramente e que souberam sofrer com resignação para expiar as suas faltas, reunirem-se primeiramente no mundo dos Espíritos, onde progridem juntos, a fim de obterem reencarnações em mundos superiores. Eles podem, pois, se pedirem com fervor, deixar os mundos espíritas na mesma ocasião, reencarnar-se nos mesmos lugares e, por um encadeamento de circunstâncias previamente determinadas, reunir-se pelos laços que mais convierem aos seus corações.
Uns terão pedido para serem pai ou mãe de um Espírito que lhes era simpático e que terão a felicidade de dirigir no bom caminho, cercando-o dos suaves cuidados da família e da amizade. Outros terão pedido a graça de se unirem pelo casamento e de verem decorrer muitos anos de felicidade e de amor. Falo do casamento entendido no sentido da união íntima de dois seres que não querem mais separar-se.
Entretanto, o casamento, tal como é compreendido entre vós, não é conhecido nos mundos superiores. Nesses lugares de felicidade, de liberdade e de alegria, os laços são de flores e de amor. Não penseis que por isso serão menos duráveis. Só os corações falam e guiam nessas uniões tão suaves. Uniões livres e felizes; casamentos de almas perante Deus, eis a lei do amor dos mundos superiores! Os seres privilegiados dessas regiões abençoadas, sentindo-se mais fortemente ligados por semelhantes sentimentos do que o são os homens da Terra, que muitas vezes calcam aos pés os mais sagrados compromissos, não oferecem o pungente espetáculo de uniões perturbadas sem cessar pela influência dos vícios, das paixões inferiores, da inconstância, da inveja, da injustiça, da aversão, de todas essas horríveis inclinações que conduzem ao mal, ao perjúrio e à violação dos juramentos mais solenes. Então! Esses casamentos abençoados por Deus, essas uniões tão suaves, são a recompensa daqueles que tendo-se amado profundamente no sofrimento, pedem ao Senhor justo e bom para continuarem a amar-se em mundos superiores, sem temerem uma próxima e dolorosa separação.
O que é que há nisso que não seja fácil de compreender e admitir? Deus, que ama a todos os seus filhos, não teria podido criar, para aqueles que se tiverem tornado dignos, uma felicidade tão perfeita quanto cruéis tinham sido as provas? O que poderia ele conceder que fosse mais conforme ao sincero desejo de todo coração amoroso? De todas as recompensas prometidas aos homens, algo há semelhante a esse pensamento, a essa esperança, eu poderia dizer a essa certeza de unir-se aos seres adorados por toda a eternidade?
Acredita em mim, filha querida, nossas secretas aspirações, essa necessidade misteriosa mas irresistível de amar, de amar longamente, de amar sempre, só foram colocadas por Deus em nossos corações porque a promessa do futuro nos permite essas doces esperanças. Deus não nos fará experimentar as dores da decepção. Nossos corações querem a felicidade e não pulsam senão pelas afeições puras. A recompensa só poderia ser a perfeita realização de nossos sonhos de amor.
Do mesmo modo que, na condição de pobres Espíritos sofredores destinados à provação, foi-nos preciso pedir e escolher por vezes as mais cruéis expiações, na condição de Espíritos felizes e regenerados escolhemos também, com a nova vida destinada a nos depurar ainda mais, a soma de felicidades concedidas ao Espírito adiantado.
Eis, minha filha bem-amada, um quadro ligeiro das felicidades futuras. Muitas vezes teremos ocasião de voltar a esse assunto agradável. Deves compreender quanto a perspectiva desse futuro me torna feliz e quanto me é doce confiar-te as minhas esperanças!
P. ─ Nós nos reconhecemos nessas novas e felizes existências?
R. ─ Se não nos reconhecêssemos seria completa a felicidade? Sem dúvida seria felicidade, porque nesses mundos privilegiados todos os seres são destinados a serem felizes. Mas seria isso a perfeição da felicidade para os que separados bruscamente na mais bela época da vida, pedem a Deus para se unirem em seu seio? Seria a realização de nossos sonhos e de nossas esperanças? Não. Tu pensas como eu. Se um véu fosse lançado sobre o passado, não haveria a suprema felicidade, a inefável alegria de nos revermos, após as tristezas da ausência e da separação. Não haveria, ou pelo menos ignoraríamos, essa antiguidade de afeição que ainda mais aperta os laços. Assim como em vossa Terra dois amigos de infância gostam de encontrar-se no mundo, na sociedade, e se buscam muito mais do que se suas relações apenas datassem de alguns dias, também os Espíritos que fizeram por merecer o inapreciável favor de se unirem nos mundos superiores são duplamente felizes e reconhecidos a Deus por esse novo encontro, que corresponde aos seus mais caros anseios.
Os mundos colocados acima da Terra na escala da perfeição são cumulados de todos os favores que possam contribuir para a felicidade perfeita dos seres que os habitam. O passado não lhes é oculto, porque a lembrança de seus sofrimentos antigos, de seus erros resgatados à custa de muitos males, e a lembrança, ainda mais viva, de suas afeições sinceras, lhes fazem achar mil vezes mais doce essa nova vida, e os protegem contra faltas a que talvez pudessem ser arrastados por uns restos de fraqueza. Esses mundos são para o homem o paraíso terrestre, destinado a conduzi-los ao paraíso divino.
OBSERVAÇÃO: Enganar-nos-íamos redondamente quanto ao sentido dessa comunicação se nela víssemos uma crítica às leis que regem o casamento e a sanção das uniões efêmeras extra-oficiais. Como leis, as únicas imutáveis são as leis divinas. As leis humanas, no entanto, devendo ser apropriadas aos costumes, aos usos, ao clima, ao grau de civilização, são essencialmente mutáveis, e seria ruim se assim não fosse e se os povos do século dezenove estivessem presos às mesmas regras que regiam os nossos antepassados. Assim, se as leis mudaram deles até nós, como não chegamos à perfeição, elas deverão mudar de nós até os nossos descendentes. No momento em que é feita, toda lei tem sua razão de ser e sua utilidade, mas pode dar-se que sendo boa hoje não o seja amanhã. No estado dos nossos costumes, de nossas exigências sociais, o casamento necessita ser regulado por lei, e a prova que essa lei não é absoluta é que não é a mesma para todos os países civilizados. É, então, permitido pensar que nos mundos superiores, onde não há os mesmos interesses materiais a salvaguardar; onde não existe o mal, isto é, onde os Espíritos maus são excluídos da encarnação; onde, consequentemente, as uniões resultam da simpatia e não do cálculo, as condições devam ser diferentes. Mas aquilo que é bom para eles, poderia ser mau para nós.
Além disso, há que considerar que os Espíritos se desmaterializam à medida que se elevam e se depuram. Só nos planos inferiores a encarnação é material. Para os Espíritos superiores não há mais encarnação material e, consequentemente, não há procriação, pois a procriação é para o corpo e não para o Espírito. Uma afeição pura é, pois, o único objetivo da união, e por isso mesmo, assim como se dá com a amizade na Terra, ela não necessita da sanção dos juízes de paz.
Uma telha
“Que sorte! Um passo a mais e eu teria morrido”. Em geral é o único agradecimento que ele envia a Deus. Entretanto esse mesmo homem, pouco tempo depois, adoece e morre na cama. Por que foi preservado da telha, para morrer alguns dias após, como toda gente? Foi o acaso, dirá o incrédulo, como ele próprio disse: “Que sorte!” Para que, então, lhe serviu escapar ao primeiro acidente, se sucumbiu ao segundo? Em todo o caso, se a sorte o favoreceu, o favor não durou muito.
A essa pergunta o espírita responde que a cada instante escapamos de acidentes que, como se costuma dizer, nos deixam a dois dedos da morte. Não vedes nisso um aviso do Céu, para vos provar que a vida está por um fio; que jamais temos certeza de viver amanhã e que, assim, deveis sempre estar preparados para partir?
Mas, que fazeis quando ides empreender uma longa viagem? Tomais vossas providências; colocais em ordem vossos negócios; muni-vos de provisões e de coisas necessárias para o caminho e desembaraçai-vos de tudo quanto possa atrapalhar e retardar a marcha. Se conheceis a terra para onde ides, se lá tendes amigos e conhecidos, partis sem receio, certos de serdes bem recebidos. Caso contrário, estudais o mapa da região e arranjais cartas de recomendação.
Suponde que sejais obrigados a empreender essa viagem da noite para o dia, e que não tendes tempo de fazer preparativos, ao passo que se estivésseis prevenidos com bastante antecedência, teríeis disposto tudo quanto fosse necessário para vossas conveniências e vosso conforto.
Então! Todos os dias estais expostos a empreender a maior, a mais importante das viagens, a que deveis fazer inevitavelmente, contudo não pensais nisso mais do que se tivésseis de viver perpetuamente na Terra! Em sua bondade, Deus cuida de vós, advertindo-vos por numerosos acidentes, aos quais escapais, e só lhe tendes esta expressão: Que sorte!
Espíritas! Sabeis quais os preparativos a fazer para essa grande viagem, que tem para vós consequências muito mais importantes que todas as que empreendeis aqui na Terra, porque da maneira que ela se realizar depende a vossa felicidade futura.
O mapa que vos dará a conhecer o país onde ides entrar é a iniciação nos mistérios da vida futura. Por ela, o país não será desconhecido para vós.
Vossas provisões são as boas ações que tiverdes realizado e que vos servirão de passaporte e de cartas de recomendação.
Quanto aos amigos que lá encontrareis, vós os conheceis.
É dos maus sentimentos que vos devereis desembaraçar, pois infeliz é aquele a quem a morte surpreende com ódio no coração, como alguém que caísse na água com uma pedra atada ao pescoço e que o arrastaria para o fundo.
Os negócios que deveis pôr em ordem são o perdão àqueles que vos ofenderam; são os erros cometidos para com o próximo e que urge reparar, a fim de conquistardes o perdão, pois os erros são dívidas de que o perdão é a quitação. Apressai-vos, pois, que a hora da partida pode soar de um momento para o outro e não vos dar tempo para reflexão.
Em verdade vos digo que a telha que cai aos vossos pés é o sinal a vos advertir para estardes sempre prontos para a partida ao primeiro sinal, a fim de não serdes tomados de surpresa.
O Espírito de Verdade
César, Clóvis e Carlos Magno
O que é a guerra? A guerra, respondemos de saída, é permitida por Deus, pois que existe, existiu e existirá sempre. É erro, na educação da inteligência, não ver em César senão um conquistador; em Clóvis um bárbaro e em Carlos Magno um déspota cujo sonho insensato era fundar um imenso império. Ah! Meu Deus! como geralmente se diz, os conquistadores são, eles próprios, joguetes de Deus. Como sua audácia, seu gênio os fez chegar ao primeiro posto, viram em torno de si não só homens armados, mas ideais, progresso, civilizações que era necessário lançar sobre as outras nações.
Eles partiram, como César, para levar Roma a Lutécia; como Clóvis, para levar os germes de uma solidariedade monárquica; como Carlos Magno para fazer raiar o facho do Cristianismo para os povos cegos, nas nações já corrompidas pelas heresias dos primeiros tempos da Igreja.
Ora, eis o que aconteceu:
César, o mais egoísta desses três grandes gênios, faz servir a tática militar, a disciplina, a lei, numa palavra, para impô-las às Gálias. Na retaguarda do exército, seguia a ideia imortal e as populações vencidas e indomáveis sofriam o jugo de Roma, é certo, mas se tornavam províncias romanas.
A orgulhosa Marselha teria existido sem Roma? Lugdunum, e tantas outras cidades célebres nos anais, tornaram-se centros imensos, focos de luz para as ciências, as letras e as artes.
César é, pois, um grande propagador, um desses homens universais que se servem do homem para civilizar o homem, um desses homens que sacrificam homens em proveito da ideia.
O sonho de Clóvis foi estabelecer uma monarquia, bases, uma regra para o seu povo. Mas, como a graça do Cristianismo não o iluminava ainda, foi um propagador bárbaro. Devemos encará-lo na sua conversão. De imaginação ativa, febril, belicosa, viu na vitória sobre os visigodos um prêmio da proteção de Deus, e daí por diante, certo de estar sempre com ele, fez-se batizar. Eis que o batismo se propaga nas Gálias e o Cristianismo se expande cada vez mais. É o momento de dizer, com Corneille, que Roma não era mais Roma. Os bárbaros invadiam o mundo romano.
Depois do abalo de todas as civilizações esboçadas pelos romanos, eis que um homem sonha espalhar pelo mundo, não mais os mistérios e o prestígio do Capitólio, mas as crenças formidáveis de Aix-la-Chapelle. Eis um homem que está, ou que julga estar com Deus. Um culto odioso, rival do Cristianismo, ainda ocupa os bárbaros. Carlos Magno cai sobre essa gente, e Witikind, depois de lutas e de vitórias alternadas, submete-se, por fim, humildemente, e recebe o batismo.
Eis aí, por certo, um quadro imenso, onde se desenrolam tantos fatos, tantos golpes da Providência, tantas quedas e tantas vitórias. Mas qual a conclusão? A ideia, universalizando-se, propagando-se mais e mais, não esbarrando nem nos desmembramentos das famílias, nem no desânimo dos povos, e tendo por objetivo, por toda parte, a implantação da cruz do Cristo em todos os pontos da Terra, não é um imenso fato espiritualista?
É necessário, pois, encarar esses três homens como grandes propagadores que, por ambição ou por crença, introduziram a luz no Ocidente, quando o Oriente sucumbia na embriagadora preguiça e na inatividade.
Ora, a Terra não é um mundo em que o progresso se faça rapidamente e por via da persuasão e da mansuetude. Não vos admireis, pois, que muitas vezes seja preciso tomar da espada, em vez da cruz.
LAMENNAIS
R. ─ Ela existirá sempre, no sentido em que sempre haverá lutas. Mas as lutas mudarão de forma. É verdade que o Espiritismo deve espalhar no mundo a paz e a fraternidade. Mas, bem o sabeis, se o bem triunfa, não obstante, sempre haverá luta. Evidentemente o Espiritismo cada vez mais fará compreender a necessidade da paz, mas o mal vela sempre. Ainda será necessário muito tempo, na Terra, lutar pelo bem. Apenas as lutas se irão tornando cada vez mais raras.
César, essa grande figura da Antiguidade, nos representa o gênio da guerra, a lei organizada. As paixões por ele levadas ao extremo abalaram profundamente a sociedade romana. Ela muda de face, e na sua evolução tudo se transforma a seu redor. Os povos sentem mudar a sua antiga constituição. Uma lei implacável, a da força, une o que não devia separar-se, conforme a época em que vivia César.
Sob sua mão triunfante as Gálias se transformam e, após dez anos de combates, constituem uma unidade poderosa. Mas dessa época data a decadência romana. Levada ao excesso, essa potência que fazia tremer o mundo, cometia as faltas do poder extremo.
Tudo quanto cresce além das proporções assinaladas por Deus deve cair também. Esse grande império foi invadido por uma nuvem de povos saídos de regiões então desconhecidas. O renome tinha levado, com as armas de César, as novas ideias aos países do Norte, que se precipitaram sobre ele como sobre uma torrente.
Vede essas tribos bárbaras lançando-se rapaces sobre as províncias onde o sol era melhor, o vinho mais doce, as mulheres mais belas. Elas atravessavam as Gálias, os Alpes, os Pirineus, para ir fundar suas colônias em toda parte e desagregar o grande corpo chamado Império Romano.
Só o gênio de César tinha bastado para levar sua nação ao auge do poder. Dele data a época da renovação, em que todos os povos se confundem, se atritam uns com outros, buscando outras coesões, outros elementos.
Entretanto, durante vários séculos, que ódio entre essa gente! Quantos combates! Quantos crimes! Quanto sangue!
BARBARET
Saudemos essa figura poderosa, essa natureza enérgica que sabe, novo César, reunir num feixe todos os povos dispersos, mudar as ideias e dar uma forma a esse caos. Carlos Magno é a grandeza na guerra, na lei, na política, na moralidade nascente, que devia fundir os povos e lhes dar a intuição da conservação, da unidade, da solidariedade.
Dele datam os grandes princípios que formaram a França. Dele datam nossas leis e nossas ciências aplicadas. Transformador, era ele marcado pela Providência para ser o traço de união entre César e o futuro. Também o chamam o Grande porque, se empregou terríveis meios de execução, foi para dar forma e um pensamento único a essa reunião de povos bárbaros que não podiam obedecer senão a quem era poderoso e forte.
BARBARET
Eu vivia no tempo de Henrique IV. Era entre todos humilde. Perdido nessa Paris onde tão bem se esquece aquele que se esconde e só busca o estudo, eu gostava de ser só, de ler e comentar à minha maneira. Pobre, eu trabalhava, e o labor diário me dava essa alegria inefável que se chama liberdade. Eu copiava livros e fazia essas maravilhosas vinhetas, prodígios de paciência e de saber que me davam apenas o pão e a água em troca de toda a minha paciência. Mas eu estudava, amava a minha pátria e buscava a verdade na Ciência. Ocupava-me de História e para a minha França bem-amada eu desejava a liberdade. Eu desejava a realização de todas as aspirações sonhadas na minha humildade.
Desde então, estou num mundo melhor, e Deus me recompensou de minha abnegação, dando-me essa tranquilidade de espírito, em que todas as obsessões do corpo estão ausentes, e eu sonho pelo meu país, pelo mundo inteiro, pela nossa Terra, pelo amor e pela liberdade.
Venho muitas vezes para vos ver e vos ouvir. Gosto dos vossos trabalhos e deles participo com todo o meu ser. Desejo-vos perfeitos e satisfeitos no futuro. Que sejais felizes, como eu o desejo. Mas não o sereis completamente senão vos despojardes da roupagem velha que desde muito veste o mundo inteiro. Falo do egoísmo. Estudai o passado, a história do vosso país e aprendereis mais com o sofrimento dos vossos irmãos do que com qualquer outra ciência.
Viver é saber, é amar, é auxiliar-se mutuamente. Ide, pois, e fazei segundo o vosso Espírito. Deus vos vê e vos julga.
BARBARET
Aviso
ALLAN KARDEC
Agosto
Conferência do Sr. TrousseauAtacando as ideias novas, ele não quererá deixar um argumento sem réplica. Não quererá que possam acusá-lo de falar de uma coisa que desconhece. Sem dúvida vai tomar os fenômenos um por um, pesquisá-los, analisá-los, comentá-los, explicálos, demoli-los, demonstrando por a mais b que são ilusões.
Ah! Espíritas! Fiquemos firmes! Se o Sr. Trousseau não fosse um sábio ou se não passasse de um pseudossábio, bem que poderia esquecer alguma coisa. Mas um verdadeiro sábio não quererá deixar a tarefa pela metade. Em geral hábil, quererá a vitória completa. Escutemos e tremamos!
Depois de uma tirada contra as pessoas que se deixam levar por anúncios, ele assim se exprime:
“É que, na verdade, as pessoas capazes de julgar seja o que for, não são as mais numerosas. O Sr. de Sartines queria mandar para a cadeia um charlatão que vendia suas drogas na Ponte Nova e fazia bons negócios. Mandou chamá-lo e lhe perguntou:
“─ Maroto, o que você faz para atrair tanta gente e ganhar tanto dinheiro?
“O homem respondeu:
“─ Senhor, quantas pessoas pensais que passam diariamente pela Ponte Nova?
“─ Não sei.
“─ Vou dizer-vos: cerca de dez mil. Entre elas, quantas pensais que são espertas?
“─ Oh! Oh! Talvez cem, disse o Sr. Sartines.
“─ É muito, mas vo-las deixo e fico com as outras nove mil e novecentas para mim.
“O charlatão era muito modesto e o Sr. Sartines muito severo para com a população de Paris. Sem a menor dúvida, mais de cem pessoas inteligentes atravessavam a Ponte Nova, e os mais inteligentes talvez parassem diante dos cavaletes do charlatão com tanta confiança quanto a multidão, porque, senhores, direi que as classes elevadas sofrem a influência do charlatanismo.
“Entre as nossas sociedades científicas citarei o Instituto. Citarei a seção da Academia de Ciências que encerra, com certeza, a elite dos cientistas do nosso país. Desses sábios, há uns vinte que procuram charlatães.”
Prova evidente da grande confiança que eles têm no saber de seus confrades, pois que a estes preferem os charlatães.
“São pessoas de grande mérito, é certo, entretanto, pelo fato de serem matemáticos, químicos ou naturalistas eminentes, eles concluem que são muito bons médicos, e então se julgam perfeitamente capazes de julgar as coisas que ignoram completamente.”
Se isso constitui prova de seu saber, não constitui prova de sua modéstia nem de sua opinião. Foram feitas muitas sátiras contra os sábios do Instituto. Não conheço nenhuma mais mordaz. É provável, pois, que juntando o exemplo ao preceito, o professor só fale do que sabe.
“Nós, que somos apenas um médico, por vezes temos essa modéstia, porquanto, se nos apresentam grandes teoremas de Matemática ou de Mecânica, confessamos que não sabemos e declinamos da competência. Mas os verdadeiros sábios jamais declinam de sua competência em coisa alguma, sobretudo no que se refere à Medicina.”
Já que os médicos declinam de sua competência naquilo que não sabem, temos uma garantia de que o Sr. Trousseau não tratará, sobretudo numa lição pública, de questões ligadas à Psicologia, desde que não seja profundamente versado nessas matérias. Esses conhecimentos lhe fornecerão, sem dúvida, argumentos irresistíveis em apoio de seu argumento.
“É triste dizer que os empíricos sempre tiveram muito acesso às criaturas inteligentes. Tive a extrema honra de ser amigo íntimo do ilustre Béranger. “Em 1848 tinha ele uma pequena oftalmia, para a qual o Sr. Bretonneau lhe havia aconselhado um colírio. A oftalmia foi curada. Mas como Béranger lia e trabalhava muito, e como fosse um pouco dartroso, a oftalmia reapareceu. Então ele se dirigiu a um sacerdote polonês que curava moléstias de olhos com um remédio secreto. Nessa época eu era, na faculdade, presidente do júri encarregado do exame de oficiais da saúde. Como o sacerdote polonês tinha contas a ajustar com a polícia, porque tinha inutilizado alguns olhos, quis regularizar-se. Com esse objetivo foi procurar Béranger e lhe perguntar se, por sua influência, poderia conseguir que fosse reconhecido como oficial de saúde, a fim de estar em condições de tratar dos olhos e à vontade vazar os olhos dos clientes.”
Se Béranger tinha sido curado pelo Sr. Bretonneau, por que motivo iria dirigirse a um outro? É natural ter mais confiança naquele que nos curou e que tem mais experiência do nosso temperamento do que um estranho.
Na verdade, o diploma é um salvo-conduto que não só permite aos oficiais de saúde arrancar os olhos dos clientes, mas aos médicos a matá-los sem remorso e sem responsabilidade. É certamente por isso que os seus sábios confrades, como confessa o Sr. Trousseau, são tão arrastados a se dirigirem aos empíricos e charlatães.
“Béranger procurou-me e me disse:
“─ Meu amigo, prestai-me um grande obséquio. Tratai de fazer aprovarem esse pobre diabo. Ele só se ocupa de moléstia dos olhos e, posto o exame para oficiais de saúde abranja todos os ramos da arte de curar, sede indulgente e manso. É um refugiado, e depois, ele me curou, eis a melhor razão.
“Eu lhe respondi:
“─ Mandai-me o vosso homem.
“O sacerdote polonês veio à minha casa.
“─ Vós me fostes recomendado, disse-lhe eu, por um homem a quem particularmente devo obrigações. É o mais caro de meus amigos. Além disso, é Béranger, o que é mais importante. Dois de meus colegas, com quem falei, e eu, estamos decididos a fazer o que for possível; apenas os exames são públicos, e será bom tapar um pouco os ouvidos, mas isto é o de menos. Vejamos. Serei generoso. Tomarei o exame de anatomia, e não vos será difícil saber tanta anatomia quanto eu.
Eu interrogarei sobre o olho.
“Nosso homem pareceu desconcertado. Continuei:
“─ Sabeis o que é o olho?
“─ Muito bem.
“─ Sabeis o que é a pálpebra?
“─ Sim.
“─ Tendes ideia do que é uma córnea?
“Ele hesitou.
“─ A pupila?
“─ Ah! Senhor, a pupila, essa eu conheço bem.
“─ Sabeis o que é o cristalino, o humor vítreo, a retina?
“─ Não, senhor. Para que me serviria isso? Só me ocupo de doença de olhos.
“Digo-lhe:
“─ Isso serve para alguma coisa, e vos garanto que quase seria necessário suspeitar da existência de um cristalino, principalmente se quiserdes, como por vezes o fazeis, segundo me parece, operar cataratas.
“─ Eu não opero.
“─ Mas se vos desse na telha extrair uma...
“Não houve saída. O infeliz queria exercer a arte de oculista sem a menor noção de anatomia do olho.”
É realmente difícil mostrar-se menos exigente para dar a esse infeliz o direito de legalmente vazar os olhos do próximo. Contudo parece que ele não operava ─ embora a fantasia pudesse arrastá-lo a isso ─ e que apenas estava de posse de um remédio para curar as oftalmias, e cuja aplicação absolutamente empírica, não requer conhecimentos especiais, pois isso não é bem o que se chama a arte do oculista.
A nosso ver, o mais importante era assegurar-se de que o remédio nada continha de ofensivo. Ele tinha curado o Sr. Béranger, e isto era um indício favorável. No interesse da Humanidade poderia ser útil permitir seu uso.
Aquele homem poderia ter os conhecimentos de anatomia exigidos para obter seu diploma, o que não tornaria bom o remédio, caso fosse mau. Entretanto, graças ao diploma, teria podido receitá-lo com segurança, por mais perigoso que fosse.
Jesus Cristo, que curava os cegos, os surdos, os mudos e os paralíticos, provavelmente não sabia mais de anatomia do que aquele, e o Sr. Trousseau incontestavelmente ter-lhe-ia recusado o direito de fazer milagres. Quantas multas teria ele que pagar hoje se não pudesse curar sem diploma!
Nada disso tem relação com os Espíritos, mas são as premissas do argumento com os quais ele vai esmagar os seus partidários.
“Procurei Béranger e lhe contei a história. Béranger exclamou:
“─ Coitado!...”
É provável que dissesse, de si para consigo: Entretanto me curou! Longe de fazermos a apologia dos charlatães e dos vendedores de panaceias, queremos apenas dizer que pode haver remédios eficazes, fora das fórmulas do códex; que os selvagens que têm segredos infalíveis nas picadas de cobras, não conhecem a teoria da circulação do sangue nem a diferença entre sangue venoso e sangue arterial. Queríamos saber se o Sr. Trousseau, picado por uma cascavel ou por uma coral recusaria os socorros daqueles, apenas porque não têm diploma.
Num próximo artigo falaremos especialmente das diversas categorias de médiuns curadores, que parecem multiplicar-se de uns tempos para cá.
“Eu lhe disse:
“─ Meu caro Béranger, sou vosso médico há oito anos. Hoje vou cobrar os meus honorários.
“─ E quais são eles?
“─ Ides fazer uma canção dedicada a mim, mas eu vou dar o estribilho.
“─ Ah! Bem! E o estribilho?
“─ Ah! Como a gente sabida é boba!
“Ficou acertado entre nós que ele não mais me falaria do seu sacerdote polonês. Não é triste ver um homem como Béranger, a quem eu contava tais coisas, não compreender que o seu protegido podia fazer muito mal e era absolutamente incapaz de fazer fosse o que fosse de útil pelas mais simples doença dos olhos?”
Parece que Béranger não estava muito convencido da infalibilidade dos doutores diplomados e podia repetir o estribilho:
Ah! Como a gente sabida é boba.
“Como vedes, senhores, as pessoas inteligentes são as que caem primeiro. Lembrai-vos do que se passava no fim do século passado. ─ Um empírico alemão emprega a eletricidade, ainda mal conhecida naquela época. Ele submete algumas mulheres vaporosas à ação do fluido, e acontecem pequenos acidentes nervosos, que ele atribui a um fluido emanado de si próprio. Então ele estabelece uma teoria bizarra, na época chamada Mesmerismo. Ele vem e se instala na Praça Vendôme, no centro da grande Paris. Aí as pessoas mais ricas, as pessoas da mais alta aristocracia da capital, vêm reunir-se em torno da varinha de Mesmer. Eu não saberia dizer quantas curas foram atribuídas a Mesmer, que aliás é o inventor e o importador, entre nós, dessa maravilha que se chama sonambulismo, isto é, de uma das mais vergonhosas chagas do empirismo.
“Com efeito, que dizer do sonambulismo? Moças histéricas, geralmente perdidas, juntam-se a qualquer charlatão famélico e simulando o êxtase, a catalepsia, o sono, e ei-los, com a mais truanesca segurança, exibindo mais inépcias do que se poderia imaginar, inépcias bem pagas, bem aceitas, acreditadas com uma fé mais robusta que os conselhos do clínico mais esclarecido.”
De que serve serem inteligentes, se são os que caem primeiro? Que é preciso para não se deixar cair? Ser sábio?
─ Não.
─ Ser membro do Instituto?
─ Não, pois um bom número deles tem a fraqueza de preferir os charlatães aos seus confrades. É o Sr. Trousseau que no-lo diz.
─ Ser médico?
─ Também não, pois um bom número deles se dá ao absurdo do magnetismo.
─ Que é, então, necessário para ter bom senso?
─ Ser o Sr. Trousseau.
Sem dúvida o Sr. Trousseau tem direito a externar a sua opinião; de crer ou não no sonambulismo, mas não é transpor os limites da educação tratar todas as sonâmbulas de moças perdidas unidas a charlatães?
É inevitável que nisso, como em tudo, haja abusos, do que não está isenta a medicina oficial. Sem dúvida há simulacros de sonambulismo, mas pelo fato de haver falsos devotos, pode-se dizer que não haja verdadeira devoção?
O Sr. Trousseau ignora que entre os sonâmbulos profissionais há senhoras casadas muito respeitáveis; que o número das que não se põem em evidência é muito maior; que as há nas famílias mais honradas e mais altamente colocadas; que muitos médicos, devidamente diplomados, de um saber incontestável, são hoje campeões declarados do magnetismo, que empregam com sucesso numa porção de casos rebeldes à medicina comum.
Não tentamos fazer o Sr. Trousseau mudar de opinião, provando a existência do magnetismo e do sonambulismo, pois talvez fosse tempo perdido. Aliás isso nos desviaria do nosso escopo. Diremos, porém, que se o ataque e o sarcasmo são armas pouco dignas da Ciência, é ainda mais indigno que ela arraste na lama uma ciência hoje espalhada no mundo inteiro, reconhecida e praticada pelos mais eminentes homens, e atirar sobre os que a professam os insultos mais grosseiros que se possam encontrar no vocabulário da injúria. Só podemos lamentar por ouvirmos expressões tão triviais, feitas para inspirar desgosto, descendo das cátedras do ensino.
Vós vos admirais que inépcias, como vos apraz chamá-las, sejam acreditadas com uma fé mais robusta que os conselhos de clínico mais esclarecido. A razão disso está na inumerável quantidade de erros cometidos pelos clínicos mais esclarecidos, dos quais citaremos apenas dois exemplos.
Uma senhora do nosso conhecimento tinha um filho de quatro a cinco anos, com um tumor no joelho, em consequência de uma queda. O mal tornara-se tão grave que ela julgou que deveria consultar uma celebridade da Medicina, que declarou ser a amputação indispensável e urgente, para salvar a vida da criança. A mãe era sonâmbula. Não podendo decidir o caso da operação de sucesso duvidoso, resolveu tratá-lo ela própria. Ao cabo de um mês a cura era completa. Um ano depois o menino estava forte e sadio. Ela foi ver o médico e lhe disse: “Eis o menino que, em vossa opinião, deveria morrer se a perna não fosse cortada.” ─ Que quereis? respondeu ele, a Natureza tem recursos imprevistos!
O outro caso é pessoal. Há doze anos fiquei quase cego, a ponto de quase não poder ler nem escrever e não reconhecer as pessoas a quem dava a mão. Consultei as notabilidades da Ciência, entre outras o doutor L..., professor de clínica para as moléstias dos olhos. Depois de um exame muito atento e consciencioso, ele declarou que eu sofria de uma amaurose, e que devia resignar-me.
Fui ver uma sonâmbula, que me disse que não era amaurose, mas uma apoplexia nos olhos, que podia degenerar em amaurose se não fosse cuidada adequadamente. Declarou responder pela cura. Em quinze dias, disse ela, experimentareis uma ligeira melhora; em um mês começareis a ver e em dois ou três meses nada mais tereis. Tudo se passou como ela tinha previsto e hoje minha visão está completamente restabelecida.
O Sr. Trousseau continua:
“Ainda em nossos dias tendes um americano que evoca os Espíritos, fazendo falar Sócrates, Voltaire, Rousseau, Jesus Cristo e quem se queira! Em que lugares? Nas espeluncas de alguns bêbados?”
A escolha de expressões do professor é realmente notável.
“Não, ele os faz falar nos palácios, no senado, nos mais aristocráticos salões de Paris. E há gente decente que diz: ‘Mas eu vi; recebi um toque de mão invisível; a mesa foi até o teto!’ Eles vo-lo dizem e repetem. E durante sete ou oito meses os Espíritos batedores deslumbraram os homens, espantaram as mulheres e lhes deram ataques de nervos. Essa estupidez que não tem nome; essa estupidez que o homem mais grosseiro teria vergonha de aceitar, foi aceita por gente esclarecida, mais ainda, por gente das classes altas de Paris.”
O Sr. Trousseau poderia acrescentar: e do mundo inteiro. Parece que ele ignora que essa estupidez sem nome não durou sete ou oito meses, mas dura ainda e se propaga cada vez mais por toda parte; que a evocação dos Espíritos não é privilégio de um americano, mas de milhares de pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e de todos os países.
Até o presente, em boa lógica, a adesão das massas e principalmente das pessoas esclarecidas tinha sido considerada como de certo valor. Parece, porém, que não vale nada, e que a única opinião sensata é a do Sr. Trousseau e dos que pensam como ele.
Quanto aos outros, seja qual for a sua posição social, a sua instrução, morem em palácios e ocupem no Estado as primeiras posições, estão abaixo do homem mais grosseiro, porque o homem mais grosseiro teria vergonha de aceitar suas ideias.
Quando uma opinião se acha tão espalhada quanto a do Espiritismo; quando, em vez de diminuir, progride rapidamente e prodigiosamente, quando é aceita pela elite da Sociedade, se ela é falsa e perigosa, é necessário opor-lhe um dique; é preciso combatê-la com provas contrárias.
Ora! Parece que o Sr. Trousseau só dispõe deste argumento: Ah! Como as pessoas sabidas são tolas!
Necrologia
Morte do Bispo de BarcelonaO aparato exibido em tal circunstância era de molde a aguçar a curiosidade pela atração do fruto proibido, e principalmente pela importância dada à coisa, porque cada um teria dito, lá com os seus botões, que não se faz assim com uma ninharia ou com um sonho vão.
Muito naturalmente, o pensamento recuou alguns séculos e deve ter-se lembrado que nesse mesmo país não só queimaram livros, mas criaturas. Que poderiam, pois, conter tais livros que merecessem a solenidade da fogueira? Foi o que quiseram saber.
Na Espanha, o resultado foi o mesmo que em toda parte onde o Espiritismo foi atacado. Sem os ataques trocistas ou sérios de que foi objeto, contaria dez vezes menos partidários do que tem. Quanto mais violenta e insistente foi a crítica, tanto mais ele tomou relevo e se desenvolveu. Os ataques anódinos passam em branco, ao passo que o brilho do raio desperta os mais entorpecidos, que querem ver o que se passa. É tudo quanto pedimos, antecipadamente seguros do resultado do exame. Isso é um fato positivo, pois toda vez que, numa localidade, o anátema desce sobre ele do alto da cátedra, temos certeza de ver aumentar o número dos assinantes, ou de vê-los aparecerem, se não os houvesse antes.
A Espanha não podia escapar a essa consequência. Assim, não há um espírita que não se tenha alegrado ao saber do auto-de-fé de Barcelona, pouco depois seguido pelo de Alicante, e mais de um adversário deplorou um ato com o qual a Religião nada tinha a ganhar. Diariamente temos a prova irrecusável da marcha progressiva do Espiritismo nas classes mais esclarecidas daquele país, onde conta com zelosos e fervorosos adeptos.
Um dos nossos correspondentes na Espanha, anunciando a morte do bispo de Barcelona, nos sugeriu a sua evocação. Dispúnhamo-nos a fazê-lo e, assim, tínhamos preparado algumas perguntas, quando ele se manifestou espontaneamente a um dos nossos médiuns, respondendo por antecipação a todas as perguntas que lhe queríamos fazer, antes que as mesmas fossem enunciadas. Sua comunicação, de caráter absolutamente imprevisto, continha, entre outras, a seguinte passagem:
“...Auxiliado por vosso chefe espiritual, pude vir ensinar-vos com o meu exemplo e vos dizer: Não repilais nenhuma das ideias anunciadas porque um dia, um dia que durará e pesará como um século, essas ideias amontoadas gritarão como a voz do anjo: Caim, que fizeste de teu irmão? Que fizeste de nosso poder, que deveria consolar e elevar a Humanidade? O homem que voluntariamente vive cego e surdo de espírito, como outros o são do corpo, sofrerá, expiará e renascerá para recomeçar o labor intelectual que a sua preguiça e o seu orgulho levaram a evitar. Essa voz terrível me disse: Queimaste as ideias e as ideias te queimarão!...
“Orai por mim. Orai, porque é agradável a Deus a prece que lhe é dirigida pelo perseguido em favor do perseguidor.
“Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente.”
Esse contraste entre as palavras do Espírito e as do homem nada tem de surpreendente. Todos os dias vemos gente que após a morte pensa diversamente do que pensava em vida, uma vez caída a venda das ilusões, o que é uma prova incontestável de superioridade. Os Espíritos inferiores e vulgares são os únicos que persistem no erro e nos preconceitos da vida terrena.
Quando vivo, o bispo de Barcelona via o Espiritismo através de um prisma particular, que lhe desnaturava as cores ou, melhor dizendo, ele não o conhecia. Agora o vê sob sua verdadeira luz e lhe sonda a profundidade. Caído o véu, já não é para ele uma opinião, uma teoria efêmera que se pode sepultar nas cinzas. É um fato. É a revelação de uma lei da Natureza, lei irresistível como a força da gravitação, lei que deve, pela força das coisas, ser aceita por todos, como tudo quanto é natural. Eis o que ele compreende agora, e o que o constrangeu a dizer que “as ideias que quis queimar o queimarão”, ou, em outras palavras, prevalecerão sobre os preconceitos que o levaram a condená-las.
Não podemos desejar que assim seja, pelo tríplice motivo de que o verdadeiro espírita a ninguém deseja isso; não conserva rancor; esquece as ofensas e, a exemplo do Cristo, perdoa aos inimigos. Em segundo lugar porque, longe de nos prejudicar, ele nos serviu. Enfim, porque ele reclama de nós a prece do perseguido pelo perseguidor, como a mais agradável a Deus, pensamento todo caridade, digno da humildade cristã revelada pelas suas últimas palavras: “Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente”. Bela imagem das dignidades terrenas deixadas à borda da sepultura, para se apresentar a Deus tais quais elas são, sem os atavios impostos aos homens.
Espíritas, perdoemos-lhe o mal que nos quis fazer, como quereríamos que as nossas ofensas nos fossem perdoadas, e roguemos por ele no aniversário do auto de fé de 9 de outubro de 1861.
[1] Vide, para detalhes, a Revista Espírita de novembro e dezembro de 1861.
Morte da Sra. Home
“O famoso Sr. Dunglas Home passou por Paris nestes dias. Pouca gente o viu. Ele acaba de perder sua esposa, irmã da Condessa Kouchelew-Bezborodko. Por mais cruel que fosse, disse ele que essa perda lhe é menos sensível do que para outro homem, não porque a amasse menos, mas porque a morte não o separa daquela que aqui tinha o seu nome na Terra. Eles se veem e conversam tão à vontade como quando habitavam juntos o mesmo planeta.
“O Sr. Home é católico romano, e sua esposa, antes de soltar o último alento, querendo unir-se ao marido numa última comunhão espiritual, abjurou a religião grega em presença do bispo de Périgueux. Isso se passou no Castelo de Laroche, residência do Conde Kouchelew.”
O folhetim ─ pois é num folhetim, ao lado do Pré-Catalan, que se encontra essa nota ─ é assinado Nemo, um dos críticos que não poupou zombarias aos espíritas e às suas pretensões de conversar com os mortos. Senhor, não é engraçado acreditar que aqueles a quem amamos não estejam perdidos para sempre e que os veremos? Não é mesmo ridículo e muito tolo e supersticioso acreditar que estejam ao nosso lado, que nos vejam e nos escutem, se não os vemos, e que possam comunicar-se conosco? O Sr. Home e sua esposa se veem e conversam tão à vontade como se estivessem juntos. Que absurdo! E dizer que em pleno século dezenove, o século das luzes, haja criaturas tão crédulas que acreditem em semelhantes tolices, dignas dos contos de Perrault!
Perguntem a razão disso ao Sr. Trousseau. O nada, falai-me disso! Isso é que é lógico! A gente tem mais liberdade de fazer na vida aquilo que se quer. Ao menos não se teme o futuro. Sim, mas onde a compensação para o infeliz? ─ Nemo, singular pseudônimo para a circunstância!
NOTA: Falamos da sociedade que se formou em Constantina, sob o título de Sociedade Africana de Estados Espíritas, sob os auspícios da Sociedade de Paris. Transcrevemos a seguir a comunicação por ela obtida para a sua instalação:
“Posto os trabalhos até hoje feitos por vossa sociedade não estejam isentos de crítica, não nos queremos deter sobre essas considerações, à vista da boa vontade que vos anima. Levamos mais em conta a intenção que os fatos.
“Antes de mais nada penetrai-vos da grandeza da tarefa que empreendestes e fazei quanto possível para chegardes a bom termo. Só assim podereis esperar ser assistidos pelos Espíritos superiores.
“Entremos na matéria e vejamos se não cometestes algumas faltas. Para começar cometestes o grande equívoco de vos servirdes de todos os vossos médiuns para as comunicações particulares. Que é a evocação geral senão o apelo aos bons Espíritos para se comunicarem convosco? Então, que fazeis? Em vez de esperar, após a evocação geral e de dar aos bons Espíritos tempo para se comunicarem por este ou aquele médium, conforme as simpatias que possam existir, passais imediatamente às evocações particulares. Sabei que esse não é um bom meio de obter comunicações espontâneas, como estas são recebidas em outras sociedades. Assim, esperai um pouco e recolhereis as comunicações gerais, que sempre vos ensinarão algumas verdades necessárias. Em seguida podeis passar às evocações particulares. Mas então, para cada uma não vos sirvais senão de um só médium. Não sabeis que só os Espíritos superiores estão em condições de se manifestarem por vários médiuns? Não façais senão um só médium servir a cada evocação particular; e se tiverdes dúvidas quanto à verdade das respostas obtidas, então, num outro dia, fazei nova evocação, empregando outro médium.
“Estais apenas no começo da ciência espírita e ainda não podeis colher todos os frutos que ela dá aos adeptos experimentados. Mas não desanimeis: ser-vos-ão levados em conta os esforços para vos melhorardes e para proteger a verdade imutável de Deus. Avante, pois, meus amigos; e que o ridículo que encontrais mais uma vez no caminho não vos desvie da linha da crença espírita.
JACQUES”
Os espíritas de Constantina nos pediram solicitássemos de Santo Agostinho o seu patrocínio espiritual para a sua sociedade. Ele nos deu a respeito esta comunicação:
(SOCIEDADE DE PARIS, 29 DE JUNHO DE 1862-MÉDIUM: SR. E. VÉZY)
Dirigindo-se, para começar, aos membros da Sociedade de Paris, diz ele:
“Bem andaram os nossos filhos da Nova França ligando-se a vós; fizeram bem em não se separarem do tronco. Ficai sempre unidos e os bons Espíritos estarão convosco.” Continua dirigindo-se aos de Constantina.
Amigos, sinto-me feliz por me haverdes escolhido para vosso guia espiritual. Ligado à Terra por uma grande missão que deve regenerá-la, estou satisfeito por poder encorajar mais especialmente um grupo de Pensadores que se ocupam com a grande idéia e por presidir aos seus trabalhos. Ponde, pois, o meu nome à frente dos vossos, e os Espíritos da minha ordem virão afastar os maus Espíritos que sempre rondam à porta das assembléias onde se discutem as leis da moral e do progresso. Que a fraternidade e a concórdia permaneçam em vosso meio. Lembrai-vos de que todos os homens são irmãos e que o grande objetivo do Espiritismo é reuni-los um dia no mesmo lar e de fazer que se sentem à mesa do Pai Comum: Deus.
Como é bela essa missão! Assim, com que alegria vimos a vós para vos dar a conhecer os desígnios divinos! Para vos revelar as maravilhas do além-túmulo! Mas vós, que já sois iniciados nessas sublimes verdades, espalhai a semente em vosso derredor e a recompensa será bela. Gozareis, na Terra, as suas primícias. Que alegria! Marchai sempre na via do ensino, do amor e da caridade!
Pronunciai meu nome com confiança nas horas de temor e de dúvida: logo os vossos corações serão aliviados da amargura e do fel que podem conter. Não esqueçais que estarei em todos os pontos da Terra onde tiverdes de levar o apostolado evangélico. Eu vos encerrarei a todos em minh’alma, para um dia vos depositar numa alma mais vasta e mais forte. Estarei sempre convosco, como aqui estou; minha voz terá para vós a doçura que reconheceis, porque nem gosto dos gritos, nem dos sons agudos. Incessantemente ouvir-me-eis repetir: amai-vos, amai-vos! Poupai-me de me armar do açoite com que se deve ferir o mau. Posto isso por vezes seja necessário, não sejais nunca desse número. Tempo virá em que a humanidade marchará dócil à voz do bom pastor. Sois vós, filhos, que deveis ajudar-nos nessa regeneração e que deveis ouvir soar a primeira hora. Porque eis o rebanho que se reúne e o pastor que chega.
OBSERVAÇÃO: O Espírito alude a uma revelação de subida importância, feita pela primeira vez num grupo espírita de pequena cidade africana, nos confins do deserto, por um médium completamente iletrado. Essa revelação, que nos foi transmitida imediatamente, chegou simultaneamente de diversas paragens da França e do estrangeiro. Desde então numerosos documentos muito característicos e mais minuciosos vieram lhe dar uma espécie de consagração. Dar-lhe-emos publicidade em tempo oportuno.
Trabalhai, pois, e tende coragem. Nas vossas reuniões discutifriamente, sem arroubos; pedi o nosso conselho, a nossa opinião, afim de não cairdes em erro, em heresia. Sobretudo nem formuleisartigos de fé, nem dogmas. Lembrai-vos que a religião de Deus é areligião do coração; que ela tem por base apenas um princípio: acaridade; por desenvolvimento: o amor à humanidade.
Jamais corteis o galho da árvore. Esta é mais verde com todos os seus ramos e estes morrem quando separados do tronco que lhes deu origem. Lembrai-vos que o Cristo compreendeu que a sua igreja se assentasse sobre a própria pedra, a fim de ser sólida, do mesmo modo que ordena não tenha o Espiritismo senão uma raiz, para que esta tenha mais força de penetração em toda a superfície do solo, por mais árida e ressecada que seja.
Um Espírito encarnado foi escolhido para vos dirigir, para vos conduzir. Submetei-vos com respeito, não às suas leis, pois ele não dá ordens, mas aos seus desejos. Por essa submissão provareis aos vossos inimigos que tendes o necessário espírito de disciplina para fazerdes parte da nova cruzada contra o erro e a superstição; o necessário espírito de amor e de obediência para marchardes contra a barbárie. Envolvei-vos na bandeira da civilização moderna: o Espiritismo sob um só chefe e derrubareis essas idéias esquisitas de frontes cornudas e de grandes caudas que devem ser destruídas.
Esse chefe, cujo nome não direi, bem o conheceis. Está na frente: marcha sem temor às dentadas venenosas das serpentes e répteis da inveja e do ciúme que o cercam; ficará de pé, porque ungimos o seu corpo, para que seja sempre sólido e robusto. Segui-o, então. Mas em vossa marcha as tempestades cairão sobre as vossas cabeças e alguns de vós não encontrarão refúgio nem abrigo. Que esses se resignem com coragem, como os mártires cristãos e pensem que a grande obra pela qual tiverem sofrido é a vida, é o despertar das nações adormecidas e que por isso serão largamente compensados um dia, no remo do Pai.
SANTO AGOSTINHO
O trecho que se segue foi extraído de uma carta recente que nos mandou o presidente da Sociedade de Constantina:
“Estamos preocupados todos os residentes europeus e mesmo os indígenas. Em redor de nós formaram-se vários grupos e por toda a parte se ocupam do Espiritismo. Pelo menos a criação de nossa Sociedade terá tido como resultado chamar a atenção para essa ciência nova. Contudo não deixamos de experimentar algum embaraço, mas somos sustentados pelos Espíritos que nos exortam à paciência e dizem que são provas das quais a Sociedade sairá vitoriosa e de certo modo fortalecida. Também temos a oposição externa: o clero de um lado e do outro a gente da mesquita, afirmando em altas vozes que nos encontramos sob a inspiração de Satã e que nossas comunicações vêm do inferno. Temos ainda contra nós os vivedores, entregues ao sensualismo, despreocupados com a própria alma. Materialistas ou céticos que repelem tudo o que se refere a essa outra vida, cuja existência não querem admitir. Fecham os olhos e os ouvidos, chamam-nos de charlatães e procuram abafar-nos pela troça e pelo ridículo. Mas prosseguimos por entre todos os espinhos: não nos faltam os médiuns, os quais surgem diariamente e muito interessantes. Temos comunicações de diversa natureza, e incidentes imprevistos para convencer os mais rebeldes, como uma resposta em italiano por uma pessoa que ignora essa língua; respostas a perguntas sobre a formação do globo terráqueo, por uma senhora médium que não estudou geologia; um outro grupo recebeu mensagens poéticas cheias de encanto.”
OBSERVAÇÃO: Como se vê os sacerdotes muçulmanos também meteram o diabo no jogo. E de notar que os padres de todos os cultos lhe dão tal poder que a gente não sabe qual a parte que reservam a Deus, nem como se deve entender a Sua Onipotência. Se esta é absoluta, o diabo não agirá sem a sua vontade; se é parcial, Deus não é Deus. Felizmente a gente tem mais fé na Sua bondade infinita do que na Sua vingança infinita e o diabo ficou muito desacreditado depois que o levaram para o palco a representar desde a comédia até a ópera. Assim, seu nome quase não produz mais efeito sobre as criaturas do que as imagens horrorosas que os chineses colocavam nas muralhas, a fim de espantar os bárbaros europeus. O progresso incessante do Espiritismo prova que tal meio é ineficaz. Será bom procurar outro.
Carta do Sr. Jean Reynaud ao Journal Débats
“Ao Sr. Diretor-Gerente.
Neuilly, 2 de julho de 1862.
“Senhor,
“Permiti-me responder a duas acusações consideráveis, que me faz, no vosso jornal de hoje, o Sr. Franck, que me toma por partidário do panteísmo e da metempsicose. Não só repilo tais erros com abundância de coração: as pessoas que me honraram com a leitura de meu livro Terre et Ciel puderam ver que são contrárias a todos os sentimentos expressos no livro.
“Quanto ao panteísmo limito-me a dizer que o princípio da personalidade de Deus é o ponto de partida de todas as minhas idéias e que, sem me inquietar com o que pensam os judeus, estou com os Cristãos que o dogma da Trindade resume toda a teologia sobre o assunto. Assim, à página 226 do citado livro, enuncio que a criação procede da Trindade inteira; melhor ainda, cito textualmente a tese de Santo Agostinho, sob cuja autoridade me coloco, e acrescento: “Se, afastando-me da Idade Média, no que concerne a ancianidade do mundo, corresse o risco de resvalar no abismo dos que confundem Deus e o Universo num caráter comum de eternidade, eu estacaria. Mas pode ter a menor inquietação a respeito?”
“Quanto à segunda acusação, sem me inquietar se penso ou não com o Sr. Salvador, direi apenas que se se entende por metempsicose, no sentido vulgar, a doutrina que expõe o homem, após a morte, a passar pelo corpo de animais, eu a repilo, como filha do panteísmo, como repilo o próprio panteísmo. Creio que o nosso destino futuro se baseia essencialmente na permanência de nossa personalidade. o sentimento dessa personalidade pode eclipsar-se momentaneamente, mas nunca se perde e sua plena posse é o primeiro caráter da vida bem-aventurada a que todos os homens, no curso mais ou menos longo das provas, são chamados continuamente. A personalidade do homem decorre, muito naturalmente, da de Deus. A página 258 daquele livro pergunta-se: “Como não teria Deus criado à Sua imagem o que quis criar na plenitude de seu amor?” E ainda sobre o ponto refiro-me a Santo Agostinho, cujas palavras cito textualmente: “Desde, pois, que fomos criados à imagem do nosso Criador, contemplemos em nós essa imagem e, como a criança perdida do Evangelho, voltemos a Ele, depois de nos termos d’Ele afastado por nossos pecados.”
“Se o livro Terre et Ciel se afasta das idéias aceitas pela Igreja, não é pelas teses substanciais, como quer fazer crer o Sr. Franck, mas apenas, se assim se pode dizer, numa questão de tempo. Ensina-se que a duração da criação é proporcional à sua extensão, de modo que a imensidade rema igualmente nos dois sentidos. E éensinado, também, que a nossa vida atual, em vez de representar a totalidade das provas pelas quais nos capacitamos para participar da plenitude da vida bem-aventurosa, é apenas um termo da série, mais ou menos longa, de existências análogas. Eis, senhor, o que pôde dar a crítica do Sr. Franck, que me pareceu tanto mais temível quanto é bem conhecida a perfeita lealdade de seu caráter.
“Recebei, senhor, etc.
JEAN REYNAUD!”
Vê-se que nem fomos o único, nem o primeiro a proclamar a doutrina da pluralidade das existências, isto é, a reencarnação. A obra Terre et Ciel, do Sr. Jean Reynaud, apareceu antes de O Livro dos Espíritos. Pode-se ver o mesmo principio, exposto em termos explícitos num brilhante opúsculo do Sr. Louis Jourdan, intitulado Les Priêres de Ludovic, cuja primeira edição é de 1849, da Librairie-Nouvelle, Boulevard des Italiens, E que a idéia da reencarnação não é nova: é tão velha quanto o mundo e encontrada em autores antigos e modernos. Aos que alegam ser ela contrária aos dogmas da Igreja, respondemos que uma de duas: ou existe a reencarnação, ou não existe. Não há alternativa. Se existe, é uma lei da natureza. Ora, se um dogma é contrário a uma lei da natureza, é preciso saber com quem está a razão. Quando a Igreja anatematizou e excomungou como culpados de heresia os que acreditavam no movimento da Terra, não impediu que a Terra girasse e que todo o mundo hoje creia nisso. Dar-se-á o mesmo com a reencarnação. Não é, pois, questão de opinião, mas questão de fato. Se o fato existe, tudo quanto poderá dizer-se ou fazer-se não impedirá a sua existência e, mais cedo ou mais tarde, os recalcitrantes aceitá-lo-ão. Deus não indaga de suas conveniências para regular a ordem das coisas e o futuro provará, mais cedo ou mais tarde, quem tem razão.
Pandus e Kurus
“Num livro que trata de obras em sânscrito, encontrei numa passagem do poema Mahabárata uma exposição das crenças daqueles tempos remotos. Grande foi a minha admiração ao encontrar aí a reencarnação, doutrina que então parece ter sido bem compreendida. Eis o fato que permite ao deus Krishna explicar ao chefe dos Pandus a teoria dos brâmanes.
“Tendo rebentado a guerra civil entre os descendentes de Pandu, legítimos herdeiros do trono, e os descendentes de Kuru, que eram usurpadores, vêm os Pandus à frente de um exército comandado pelo herói Arjuna, atacar os usurpadores. A batalha foi longa e a vitória era ainda incerta.
“Um armistício permitiu que os dois exércitos tivessem tempo de recuperar as forças. De repente soaram as trombetas e os dois grupos se movimentam para o combate. Cavalos brancos puxam o carro de Arjuna, junto ao qual se mantém o deus Krishna. De repente o herói para no meio do terreno que separa os contendores e os abarca com o olhar. “Irmãos contra irmãos, diz ele para si mesmo; parentes contra parentes, prestes a se estrangularem sobre os cadáveres de seus irmãos!’ “Uma profunda melancolia e uma dor súbita apodera-se dele e ele exclama:
“─ Krishna! Eis os nossos parentes armados, de pé, prestes a se estrangularem. Vê! Meus membros tremem, meu rosto empalidece, meu sangue gela; um frio de morte circula-me nas veias e meus cabelos se eriçam de horror. Meu arco fiel cai-me da mão, incapaz de sustê-lo; vacilo; nem posso avançar nem recuar, e minh’alma, tomada pela dor, parece querer abandonar-me. Deus de cabelos louros, ah! dize-me, terei felicidade quando tiver assassinado todos os meus? Que representarão a vitória, o poder e a vida, quando aqueles para os quais quero obter e conservar tiveremmorrido no combate? Ó conquistador celeste, quando o mundo tríplice fosse o preço de sua morte, eu não os quereria estrangular por este globo miserável. Não, não o quero, ainda que se preparem para matar-me impiedosamente.”
“─ Esses cuja morte choras, ─ respondeu o deus, ─ não merecem que os chores; quer vivam, quer morram, o sábio não tem lágrimas para a vida nem para a morte. O tempo em que eu não existia, em que tu não existias, em que esses guerreiros não existiam, jamais existiu, e jamais virá a hora da nossa morte. Metida em nossos corpos, a alma atravessa a juventude, a idade madura, a decrepitude, e passando a novos corpos, ela recomeça o seu curso. Indestrutível e eterno, um deus distende com suas mãos o Universo onde estamos. Quem aniquilará a alma que ele criou? Quem destruirá a obra do Indestrutível? Envoltório frágil, o corpo se altera, corrompe-se e morre, mas a alma, a alma eterna que a gente não pode conceber, essa jamais perece. Ao combate, Arjuna! Lança os teus corcéis na peleja. A alma não morre. Tu não destróis a alma; ela não será morta; ela jamais nasce; ela jamais morre. Ela nada sabe do presente, do passado e do futuro. É antiga, eterna, sempre virgem, sempre jovem, imutável, inalterável. Que significa cair no combate, estrangular os inimigos senão deixar uma vestimenta ou tirar a vestimenta de outrem? Vai! Não temas! Despe sem escrúpulos uma veste usada; vê sem terror os teus inimigos e os teus irmãos deixando os corpos perecíveis e suas almas revestindo formas novas. A alma é uma coisa que o gládio não penetra, o fogo não consome, as águas não deterioram e o vento sul não resseca. Para de gemer.”
O planeta Vênus
Como na aurora, em que as formas se revestem indecisas e envoltas no vapor da manhã, a perfeição da alma, quase completa, tem os desconhecimentos e os desejos da infância feliz. A própria Natureza reveste a graça da felicidade velada. Suas formas moles e arredondadas não têm a violência e a agressividade dos sítios terrenos; o mar, profundo e calmo, ignora as tempestades; as árvores jamais se curvam sob a pressão da tempestade e o inverno não as despoja de sua verdura; nada é ruidoso; tudo sorri, tudo é suave. Os costumes, marcados de quietude e ternura, não necessitam de repressão para se manterem puros e fortes.
A forma política reveste a expressão da família. Cada tribo ou aglomeração de indivíduos tem seu chefe, eleito por faixa de idade. A velhice aí é o apogeu da dignidade humana, porque se aproxima do fim desejado. Isenta de doenças e feiúra, é calma e radiante como bela tarde de outono.
A indústria terrena, aplicada à inquieta busca do bem-estar material, é simplificada e quase desaparece nas regiões superiores, onde não tem razão de ser. As artes sublimes a substituem e adquirem um desenvolvimento e uma perfeição que os vossos sentidos grosseiros não podem imaginar.
A vestimenta é uniforme. Grandes túnicas brancas envolvem o corpo com suas pregas harmoniosas, mas não o desnaturam. Tudo é fácil a esses que só desejam a Deus e que, despojados de interesses grosseiros, vivem com simplicidade e são quase luminosos.
GEORGES
PERGUNTAS SOBRE O DITADO PRECEDENTE
SOCIEDADE DE PARIS, 27 DE JUNHO DE 1862 MÉDIUM: SR. COSTEL
Carta ao jornal de Saint-Jean-D'Angely
“Ao Sr. Pierre de L..., redator acidental do jornal Le Mellois.
“Numa carta dirigida ao Mellois, de 8 de junho último, lançais um desafio ao que chamais a pequena igreja de Saint-Jean-d’Angély. Chocado por ter sido repelido pelo Sr. Borreau, que não vos quis receber, voltai-vos contra seu colega em Espiritismo, a fim de interrogá-lo. Sem ser o médium notável que indicais, tomo a liberdade de vos apresentar algumas observações.
“Qual teria sido o vosso objetivo ao lançar um desafio, primeiro
ao Sr. Borreau e depois aos espíritas de Saint-Jean-d’Angély, para que evocassem a alma de Jacques Bujault? Uma brincadeira para pôr fim à guerra civil e intestina que parece querer ensanguentar os campos férteis do Poitou? Se assim é, penso que deveis compreender que a dignidade das pessoas sérias e conscienciosas que acreditam firmemente nos princípios estabelecidos sobre os fenômenos cuja certeza reconheceram, lhes impõe não se associem ao vosso jogo.
“Certamente, como os cépticos, tendes liberdade de rir dessas teorias. Vós sabeis, senhor, que na França riem de tudo. Contudo, por melhor que fosse a vossa brincadeira, ela não é nova e, entre outros, certo cronista do jornal ao qual dirijo esta, já a tinha usado em seu começo.
“Se a questão foi levantada com seriedade, permiti vos diga que não tomastes um bom caminho para atingir o objetivo. Não seriam as pilhérias contidas no vosso primeiro artigo que iriam convencer o Sr. Borreau de vossa sinceridade. Ele tinha o direito de duvidar e de não vos dar ocasião para uma discussão sobre a evocação do prior que conheceis. Também não são as vossas sátiras sobre a inutilidade do Espiritismo e sobre as dissidências que dividem os seus adeptos que irão convencer o Sr. C... de vossa boa-fé ao reclamar as suas luzes. Se, pois, tendes verdadeira intenção de resolver tal problema, o melhor meio, o mais simples e o mais conveniente, em minha opinião, é virdes ao cenáculo e aí, despojado de qualquer ideia preconcebida, fazendo tábula rasa de todas as prevenções anteriores, examinar friamente os fenômenos que se operarem em vossa presença e os submeterdes ao critério da certeza. Se uma ou duas vezes suspeitardes ser vítima de alucinação, repeti as vossas experiências. Como o Cristo a Tomé, o Espiritismo vos dirá: “Vide pedes, vide manus, “Noli esse incredulus.
“E se tais experiências conduzem sempre ao mesmo resultado, conforme todas as regras da lógica, devereis ter confiança no testemunho dos vossos sentidos, a não ser que estejais reduzido ao pirronismo, o que estou longe de crer.
“Se, ao contrário, como admiti pouco acima, vossos artigos não passavam de um jogo para divertir a disputa regional suscitada pelo voto desastrado da Sociedade de Agricultura de Niort, continuai vossas piadas divertidas, assaltos brilhantes admirados por nós, espectadores desinteressados. Permitireis apenas que os espíritas conservem a sua fé. Com efeito, nem sempre a troça tem razão. O aforismo: O ridículo mata não tem exatidão perfeita, e poder-se-ia dizer dessa arma tão cruel, principalmente entre nós, o que foi dito a um personagem da comédia:
“Todos aqueles que matais passam muito bem.”
“A gente riu de todas as grandes coisas e tratou-as como loucura, o que não as impediu de se realizarem. Riram-se da existência de outro continente, e a América foi descoberta; riram-se do vapor e estamos no século das estradas de ferro; riram-se dos piróscafos[1] e de Fulton, seu inventor, e agora eles singram mares e rios; riramse ─ inclinai-vos, senhor, ─ riram-se do Cristo, e sua sublime loucura, a loucura da cruz, conquistou e submeteu o Universo.
“Assim, se no momento o Espiritismo está exposto aos epigramas dos filhos de Voltaire, ele toma o seu partido e segue o seu caminho. O futuro o julgará. Se este sistema está baseado na Verdade, nem piadas nem paixões prevalecerão contra ele; se não passa de um erro, erro muito generoso ─ força é confessar ─ em nosso século de materialismo, ele irá encontrar no nada as mil e uma aberrações do espírito que, sob nomes diversos e esquisitos, desviaram a Humanidade.
“Recebei, senhor, a expressão de minha sincera cortesia.
“Um Adepto”
O Espiritismo cresce incessantemente, como uma vaga que sobe, que circunscreve a ilhota, antes grande, e que alguns dias mais estará reduzida a um ponto. Que farão os negadores quando se virem sobre esse ilhéu, cada vez mais reduzido pelo oceano das idéias novas? Vemos crescer a vaga que nos arrasta. Eis por que não nos inquietamos. Um dia, porém, os que estiverem na ilhota, apavorados pelo isolamento, estenderão os braços e nos pedirão socorro.
[1] Pyroscaphe: Nome forjado por Jouffroy d'Abbans para designar o primeiro barco a vapor.
Castigo de um avarento
Dias depois, a moça, aliás boa médium escrevente, tomou do lápis e escreveu a comunicação seguinte, na qual Riquier pôs seu nome e endereço exato. Não sabendo tal endereço, a Sra. F... foi verificá-lo e ficou muito surpreendida, pois a indicação estava correta.
Eis a comunicação, que é um novo exemplo das penas reservadas aos Espíritos culpados. Como ele se manifestou espontaneamente e expressou o desejo de falar à Sra. F..., foi-lhe feita esta pergunta:
─ Que quereis de nós?
─ O meu dinheiro, que aqueles miseráveis tomaram todo, para repartirem entre si. Dilapidaram meu patrimônio, como se não fosse meu. Venderam minhas fazendas, minhas casas, para dividir tudo. Fazei-me justiça, porque eles não me escutam e não quero assistir a tais infâmias. Dizem que eu era usurário e guardam o meu dinheiro! Por que não mo querem entregar, se acham que foi mal adquirido?
─ Mas vós estais morto, pobre homem. Já não precisais de dinheiro. Pedi a Deus uma nova existência pobre, a fim de expiardes a avareza desta.
─ Não. Eu não poderia viver na pobreza. Necessito do meu dinheiro para viver.
Aliás não preciso de outra vida, pois estou vivo agora.
A pergunta que se segue foi feita com o fito de trazê-lo à realidade. ─ Sofreis?
─ Oh! Sim. Sofro piores torturas que a moléstia mais cruel, porque é minh’alma que suporta essas torturas. Tenho sempre presente em meu pensamento a iniquidade de minha vida, que para muitos foi motivo de escândalo. Bem sei que sou um miserável, indigno de piedade, mas sofro tanto que necessito me ajudem a sair deste estado miserável.
─ Oraremos por vós.
─ Obrigado. Rogai para que eu esqueça minhas riquezas terrenas, sem o que jamais poderia arrepender-me. Adeus e obrigado.
FRANÇOIS RIQUIER
Valor da prece
“Vós não me esquecestes e jamais o vosso Espírito teve para mim um sentimento de perdão. É verdade que vos causei muito mal, mas há muito tempo sou castigada. Não parei de sofrer. Vejo-vos cumprindo os vossos deveres com tanta coragem para prover às necessidades de vossa família, e a inveja não cessou de me devorar o coração.
“Vossa... (Aqui paramos para perguntar quem era esse ser. O Espírito acrescentou: ‘Não me interrompais. Darei o nome quando terminar’)
“Vossa resignação, que acompanhei, foi um dos meus maiores sofrimentos. Tende um pouco de piedade de mim, se realmente sois discípula do Cristo. Eu estava muito só na Terra, embora entre os meus, e a inveja foi o meu maior defeito.
“Foi por inveja que dominei vosso marido. Parecia que retomáveis o domínio sobre ele, quando vos conheci, e me coloquei entre vós. Perdoai-me e tende coragem. Deus terá piedade de vós, por sua vez.
“Minha irmã, que oprimi durante minha vida, foi a única a orar por mim, mas são as vossas preces que me faltam. As outras não trazem para mim o selo do perdão.
“Adeus. Perdoai.
ANGÈLE ROUGET”
O próprio Espírito o explica, quando diz: “As preces dos outros não trazem para mim o selo do perdão”.
Com efeito, sendo aquela senhora a principal ofendida e tendo sofrido mais pela conduta da outra, envolvia o perdão em suas preces, o que deveria tocar ainda mais o Espírito culpado. Orando, sua irmã, por assim dizer, apenas cumpria um dever. Por outro lado, aí havia um ato de caridade. A ofendida tinha mais direito e mais mérito para pedir graça; seu perdão, pois, deveria tranquilizar mais o Espírito.
Ora, sabe-se que o principal efeito da prece é agir sobre o moral do Espírito, tanto para acalmá-lo quanto para conduzi-lo ao bem. Trazendo-o ao bem, ela apressa a clemência do Juiz Supremo, que sempre perdoa o pecador arrependido.
Imperfeita como é, em face da justiça divina, a justiça humana com frequência nos oferece exemplos semelhantes. Se um homem for levado ao tribunal, por ofensas a alguém, ninguém o defenderá melhor e lhe conseguirá a absolvição com mais facilidade do que o próprio ofendido, vindo generosamente retirar a queixa.
Tendo sido lida a comunicação acima na Sociedade Parisiense, provocou a seguinte pergunta de um dos sócios:
“Continuamente os Espíritos pedem preces aos mortais. Será que os bons Espíritos não oram pelos sofredores? E, nesse caso, por que as dos homens são mais eficazes?”
A resposta que se segue foi dada na mesma sessão, por Santo Agostinho, através do médium Sr. E. Vézy:
Orai sempre, meus filhos. Eu já vos disse que a prece é um orvalho benéfico que deve tornar menos árida a terra ressequida. Venho repetir mais uma vez e acrescentar algumas palavras em resposta à vossa pergunta.
Perguntais por que os Espíritos sofredores preferem pedir preces a vós do que a nós. As preces dos mortais são mais eficazes que as dos bons Espíritos?
─ Quem vos disse que nossas preces não tinham a virtude de espargir consolação e dar força aos Espíritos fracos que não podem ir a Deus senão com esforço e muitas vezes sem coragem? Se imploram as vossas preces, é porque elas têm o mérito das emanações terrenas, que sobem voluntariamente a Deus. Essas eles sempre apreciam, por virem da vossa caridade e do vosso amor.
Para vós, orar é abnegação; para nós, um dever. O encarnado que ora pelo próximo cumpre a nobre tarefa de puros Espíritos; sem possuir a coragem e a força destes, realiza as suas maravilhas. É peculiar à nossa vida consolar o Espírito que pena e sofre, mas uma de vossas preces é o colar que tirais do pescoço para dar ao indigente; é o pão que retirais de vossa mesa para dá-lo ao que tem fome, por isso vossas preces são agradáveis ao que as escuta. Um pai não atende sempre à prece do filho pródigo? Não chama sempre os servos para matar o vitelo gordo pela volta do filho culpado? Como não faria ainda mais por aquele que de joelhos lhe vem dizer: “Ó meu Pai, sou muito culpado; não vos peço graça, mas perdoai a meu irmão arrependido, mais fraco e menos culpado que eu!” Oh! É então que o Pai se enternece; é então que arranca do peito tudo quanto este encerra em dons e em amor. Ele diz: “Estavas cheio de iniquidades; te disseste criminoso, mas compreendendo a enormidade de tuas faltas. Não me pediste graça para ti; aceitas o sofrimento de meus castigos e, a despeito de tuas torturas, tua voz tem força bastante para pedir por teu irmão!” Então! O Pai não quer ser menos caridoso que o filho e perdoa a ambos, a um e ao outro estende as mãos, para que possam marchar em linha reta no caminho que leva à sua glória.
Meus filhos, eis por que os Espíritos sofredores, que vagam em torno de vós, imploram as vossas preces. Nós devemos orar. Vós podeis orar.
Prece do coração, tu és a alma das almas, se assim me posso exprimir, quintessência sublime que sobe, sempre casta, bela e radiosa, para a alma mais vasta de Deus!
SANTO AGOSTINHO
Dissertações espíritas a conquista do futuro (Grupo de Sainte - Gemme - Tam. Médium: Sr. C.)
A conquista do futuroUni-vos, consultai-vos e voai à conquista do futuro.
HIPPOLYTE FORTOUL
A pentecoste (Grupo de Sainte-gemme - Tam. Médium: Sr. C.)
Mas que aquela pouca importância relativa que deveis ligar às coisas terrenas não vos impeça de considerar os vossos deveres materiais como muito sérios. Aos olhos de Deus cometeríeis grave falta se não vos entregásseis conscientemente aos vossos deveres cotidianos. Nada se deve desprezar do que saiu das mãos do Criador. Deveis, em certa medida, desfrutar os bens materiais que vos foram concedidos. Vosso dever é não guardá-los exclusivamente para vós, mas fazer deles partilharem os irmãos aos quais eles foram recusados. Uma consciência pura, uma caridade e uma humildade sem limites, eis a melhor das preces para chamar a si o Espírito Santo. É o verdadeiro Veni Creator, não que este cantado nas igrejas não seja uma prece que será exalçada, sempre que feita de bom coração, mas, como já vos foi dito tantas vezes, o fundo é tudo, a forma quase nada.
Então pelos atos pedi que o Espírito Santo venha visitar-vos e derramar em vossa alma essa força que dá a fé para superar as misérias da existência terrena e para estender a mão àqueles dos vossos irmãos a quem a fraqueza de espírito impede de ver a luz, sem a qual só marchareis tateantes, com o risco de vos chocardes com todos os obstáculos semeados no caminho. A verdadeira felicidade, pela qual todos suspirais, lá se acha. Cada um a tem sob a mão. Basta querer para alcançá-la.
Tomai hoje resoluções firmes e boas, e o Espírito de Deus não vos faltará, tende certeza. Amai ao vosso próximo como a vós mesmos, por amor a Deus, e tereis dignamente solenizado o dia em que o Espírito Santo veio visitar os apóstolos do Cristianismo.
HIPPOLYTE FORTOUL
O perdão (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sr. A. Didier)
O homem vicioso, mesquinho e fraco, não perdoa. O homem habituado às lutas pessoais, às reflexões justas e sãs, perdoa facilmente.
LAMENNAIS
A vingança (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sr. de B. M.)
Resisti, filhos da Terra, a esse culposo arrastamento, e tende certeza de que se alguém mereceu vossa cólera, não será no auge do rancor que encontrareis a calma de consciência. Ponde nas mãos do Todo Poderoso o cuidado de se pronunciar quanto aos vossos direitos e à justiça de vossa causa. Na vingança existe algo de ímpio e de degradante para o Espírito.
Não, a vingança não é compatível com a perfeição. Enquanto uma alma conservar tal sentimento, ficará nos porões do mundo dos Espíritos. Mas a vossa não será o eterno joguete dessa paixão infeliz. Posso garantir que a abolição da falsa noção do inferno eterno, ou antes, da danação eterna, que tem servido como pretexto ou pelo menos como escusa para atos de vingança, será a aurora de uma nova era de tolerância e mansuetude que não tardará a estender-se até as regiões privadas da vida moral.
Poderia o homem condenar a vingança se lhe apresentaram Deus como um ser ciumento e vingativo que pessoalmente promove a aplicação de torturas eternas? Cessai, pois, ó homens, de insultar a Divindade emprestando-lhe vossas paixões ignóbeis. Então sereis, ó habitantes da Terra, um povo abençoado por Deus.
Vós que me escutais, procedei de modo que, liberta a vossa alma do vergonhoso motivo para atos contrários à caridade, mereçais serdes admitidos no recinto sagrado cujas portas só a caridade pode abrir.
PIERRE ANGE
Espírito Protetor
Bibliografia
Essa é a primeira de uma série de brochuras a serem publicadas em épocas indeterminadas. Contém uma seleção de mensagens recebidas no grupo de Brotteaux, dirigido pelo Sr. Déjoud, chefe de ateliê. Todas essas comunicações, em tudo concordes com a doutrina de O Livro dos Espíritos, respiram a mais sã moral e têm o cunho inconteste de Espíritos bons e benevolentes.
O estilo é simples, familiar e perfeitamente adaptado ao meio onde foram dadas e não comportam ideias abstratas. Antes de tudo, os bons Espíritos querem instruir, por isso põem-se à altura do auditório e pouco se preocupam em satisfazer aos que nas mensagens apreciam a pompa do estilo, sem lhes aproveitarem as lições.
O essencial, para eles, é que a instrução seja boa e penetre o coração. Pensamos que, sob tal ponto, a coleção atinge plenamente o seu objetivo.
Sentimo-nos felizes em aproveitar esta ocasião para felicitar o Sr. Déjoud, chefe desse grupo, um dos mais numerosos de Lyon, por seu zelo e perseverança na propagação do Espiritismo entre seus irmãos, os trabalhadores.
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O terceiro volume das Revelações de Além-Túmulo, da Sra. Dozan, aparecerá em breve.
ALLAN KARDEC
Setembro
Inauguração de um grupo espírita em BordeauxA maneira pela qual a séria questão do Espiritismo nele é encarada prova quanto agora são compreendidos o seu objetivo e o seu verdadeiro alcance social. Sentimo-nos feliz em dizer que tal sentimento é hoje geral, porque em toda parte a curiosidade é substituída pelo desejo de instrução e de melhora. Foi o que constatamos nas visitas a várias cidades de província.
Vimo-los consagrar-se a comunicações instrutivas e apreciarem seu valor, os médiuns que as recebem. É um fato característico na história do estabelecimento do Espiritismo. Desconhecemos o grupo ao qual nos referimos, mas julgamos suas tendências pelo discurso inaugural. O orador não teria tido essa linguagem ante um auditório leviano e superficial, reunido para se distrair. São as reuniões sérias que dão uma ideia séria do Espiritismo, por isso nunca seria demais encorajar a sua multiplicação.
Senhoras e Senhores.
Pedindo recebais os meus agradecimentos pela benevolente acolhida ao meu convite, permiti-me que vos dirija algumas palavras sobre o motivo de nossa reunião. Em falta de talento, espero encontreis a convicção de um homem profundamente dedicado ao progresso da Humanidade.
Muitas vezes o viajor intrépido, aspirando atingir o pico da montanha, encontra o estreito caminho obstruído por uma rocha; outras vezes, também, no curso das idades, a Humanidade que tende a aproximar-se de Deus, encontra o seu obstáculo: seu rochedo é o materialismo. Ela estaciona por algum tempo, talvez séculos, mas a força invencível a que obedece, agindo na proporção da resistência, triunfa do obstáculo e a Humanidade, sempre solicitada a marchar avante, retoma a caminhada com impulso maior.
Assim, senhores, não nos admiremos quando se manifesta uma dessas grandes ideias que melhor denunciam a origem celeste do homem; quando se produz um desses fatos prodigiosos que vêm perturbar os cálculos restritos e as observações limitadas da ciência materialista. Não nos espantemos, e sobretudo não nos deixemos desencorajar pelas resistências que se opõem a tudo quanto pode servir para demonstrar que o homem não é apenas um pouco de barro, cujos elementos, após a morte, voltarão à Terra.
Antes constatemos, e o constatemos com alegria, nós, os adeptos do Espiritismo, nós, os filhos do século dezenove, filhos de um século que foi a manifestação mais completa, por assim dizer a encarnação do ceticismo e de suas desencorajadoras consequências; constatemos que a Humanidade está em marcha!
Vede o progresso que aqui faz o Espiritismo, nesta cidade grande, bela e inteligente. Vede como por toda parte a dúvida se apaga às claridades da ciência nova.
Contemos, senhores, e confessemos com sinceridade, quantos de nós ainda ontem com um sorriso de incredulidade nos lábios, estamos hoje com o pé na estrada e o coração resolvido a não recuar. Isto é compreensível, pois estamos na corrente e ela nos arrasta.
Que é, então, essa doutrina, senhores? Aonde nos conduz?
Despertar a coragem do homem, ampará-lo nos desfalecimentos, fortificá-lo contra as vicissitudes da vida, reanimar a sua fé, provar-lhe a imortalidade da alma, não só por demonstração, mas pelos fatos, eis a doutrina e aonde ela conduz!
Que outra doutrina produzirá sobre o moral e sobre o intelecto melhores resultados? Será a negação de uma vida futura que lhe poderão opor como preferível, no interesse da Humanidade inteira e para a perfeição moral e intelectual de cada um individualmente?
Tomando por princípio as palavras seguintes, que resumem todo o materialismo: “Tudo acaba quando se abre um túmulo”, que é o que se consegue produzir senão o nada?
Experimento uma penosa sensação, uma espécie de pudor por haver feito um paralelo entre esses dois extremos. A esperança de encontrar num mundo melhor os nossos entes queridos cuja alma abriu as asas, e o horror invencível que experimentamos, que o próprio ateu experimenta ao pensar que tudo estaria aniquilado com o último sopro da parte material do nosso ser, bastariam para afastar toda ideia de comparação. Contudo, senhores, se todas as consolações encerradas no Espiritismo não passassem de crença; se fossem apenas um sistema puramente especulativo, uma engenhosa ficção, como objetam os apóstolos do materialismo, para submeterem certas inteligências fracas a umas tantas regras chamadas arbitrariamente virtude, e desse modo retê-las fora dos sedutores apetites da matéria, compensação que num dia de piedade o autor dessa ordem fatal, que a uns dá tudo e à maioria reserva o sofrimento, teria concedido o sofrimento essa maioria para distrair-se.
Essas engenhosas combinações, senhores, estabelecidas como consequência de um princípio sem base e simples fruto da imaginação não seriam, para as inteligências fortes, para o homem que sabe fazer uso da razão, um tormento a mais, acrescentado aos tormentos da fatalidade a que ele não poderia subtrair-se?
Sem dúvida a demonstração é uma coisa admirável. Ela prova, antes de mais nada, a razão humana e a alma, essa abstração da matéria. Mas até hoje seu ponto de partida único foi a expressão de Descartes: “Penso, logo existo.” Hoje o Espiritismo veio dar uma força imensa ao princípio da imortalidade da alma, apoiado em fatos tangíveis e irrefutáveis.
O que precede explica por que e como aqui estamos reunidos. Mas, senhores, deixai-me ainda comunicar-vos uma impressão que sempre senti, um desejo constantemente renovado, cada vez que me encontrei em presença de uma Sociedade que tem por objetivo o aperfeiçoamento moral do homem. Eu gostaria de ter participado do primeiro grupo, das primeiras comunicações de alma para alma dos fundadores; gostaria de ter presidido ao desenvolvimento do germe da ideia que, como o grão tornado gigante, mais tarde produziu frutos abundantes.
Ora, senhores! Hoje que tenho a felicidade de vos reunir para propor a formação de um novo grupo espírita, minha ideia tem plena aceitação e vos peço que, como eu, conserveis no coração e na memória a data de 20 de março.
Agora, senhores, é tempo de passar à prática, que talvez eu tenha retardado. Sem transição, para reparar a perda de tempo tão largamente dedicado a desabafos, abordarei o objetivo de nossa reunião, pedindo que vos previnais contra uma objeção que naturalmente se manifestará em vosso espírito, como se manifestou no meu, quanto à indispensável necessidade de médiuns, quando se quer formar um grupo espírita.
Aí está, senhores, a aparência de uma dificuldade, mas não uma dificuldade. Inicialmente, a ausência de médiuns em nossas sessões não as tornará estéreis, crede-o. Eis uma ideia que vos apresento, pedindo o vosso conselho. Procederemos assim:
A primeira parte de cada sessão seria dedicada à leitura de O livro dos Espíritos e de O livro dos médiuns. A segunda seria consagrada à formação de médiuns, entre nós e, acreditai, senhores, se seguirmos os conselhos e os ensinos dados nessas obras de nosso venerado chefe, Sr. Allan Kardec, a faculdade mediúnica não tardará a se desenvolver na maior parte de nós. Então os nossos trabalhos receberão sua mais larga e suave recompensa, porque Deus, o grande criador de todas as coisas, o juiz infalível, não se enganará quanto ao bom uso que queremos fazer da preciosa faculdade mediúnica. Ele não deixará, pois, de nos dar a mais bela recompensa que possamos ambicionar, a de permitir que um de nós, ao menos, obtenha tal faculdade no mesmo grau que vários médiuns sérios que temos, nesta noite, a felicidade de contar entre nós.
Nossos queridos irmãos Gourgues e Sab , que tenho a honra de vos apresentar, assistindo a nossa sessão inaugural, quiseram dar-lhe o mais alto grau de solenidade. Que eles nos deem a esperança, que lhes suplicamos, e que com a frequência que lhes for possível, nos venham visitar. Sua presença fortalecerá a nossa fé e avivará o ardor daqueles dentre nós que ante o insucesso das primeiras tentativas mediúnicas poderiam cair no desânimo.
Sobretudo, senhores, não tomemos um caminho errado. Demo-nos perfeita conta de nossa empresa e de seu objetivo. Seria vítima de lamentável engano quem fosse tentado a fazer parte do grupo que vamos formar, apenas levado pela esperança de encontrar distrações fúteis e fora da boa moral pregada pelos bons Espíritos.
“O fim essencial do Espiritismo”, disse nosso venerado chefe, “é o melhoramento das criaturas. Nele só se deve procurar aquilo que possa ajudar o progresso moral e intelectual. Não se deve perder de vista que a crença no Espiritismo só é proveitosa àquele de quem se possa dizer: Ele hoje é melhor que ontem”.
Não esqueçamos que o nosso pobre planeta é um purgatório, onde expiamos, por nossa existência atual, as faltas cometidas nas precedentes. Isso prova, senhores, que nenhum de nós pode-se dizer perfeito, pois enquanto tivermos faltas a expiar, reencarnaremos. Nossa presença na Terra atesta, portanto, a nossa imperfeição.
O Espiritismo fincou as balizas da rota que conduz a Deus. Marchemos sem perdê-las vista. A linha traçada pelos bons Espíritos, geômetras da Divindade, está ladeada de precipícios. As urzes e os espinhos são as suas margens. Não temamos os arranhões. Que são tais feridas, comparadas à felicidade eterna, que acolherá o viajor que chegou ao termo da viagem?
Esse termo, senhores, esse objetivo há muito tempo é objeto de minhas meditações. Abarcando o meu passado com um olhar, e voltando-me para reconhecer o espinheiro que me havia ferido, o obstáculo que me tinha feito tropeçar, não pude deixar de fazer o que faz todo homem, ao menos uma vez na vida: o balanço, por assim dizer, das alegrias e dos desgostos, dos bons momentos de coragem e das horas de desânimo. E, com a mente tranquila e a alma livre, isto é, dobrada sobre si mesma, desprendida da matéria, eu disse a mim mesmo: A existência humana é apenas um sonho, mas um sonho horroroso, que começa quando a alma ou Espírito encarnado da criança se ilumina aos primeiros lampejos da inteligência, para terminar no aniquilamento da morte. A morte! Essa palavra pavorosa para tantas pessoas, na verdade é apenas o despertar desse sono horrível, a benfeitora compassiva que nos liberta do pesadelo insuportável que nos acompanhou passo a passo, desde nosso nascimento.
Falo em geral, mas não de maneira absoluta. A vida do homem de bem não tem mais esses mesmos caracteres. Aquilo que ele fez de bom, de grande, de útil, ilumina com puras claridades o sonho de sua existência. Para ele, a passagem da vida à morte é feita sem transição dolorosa. Ele nada deixa em sua retaguarda que pudesse comprometer o futuro de sua nova existência espiritual, recompensa de suas boas obras.
Mas, ao contrário, para os cegos voluntários que tiverem constantemente fechados os olhos para melhor negarem a existência de Deus; que se tiverem recusado à contemplação do sublime espetáculo de suas obras divinas, provas e manifestações de sua bondade, de sua justiça e de seu poder, para esses direi que terão um terrível despertar, cheio de amargos lamentos, sobretudo por haverem desconhecido os benéficos conselhos de seus irmãos espíritas. O sofrimento moral que terão de suportar durará até que um arrependimento sincero mova a piedade de Deus, que lhes concederá a graça de nova encarnação.
Muita gente ainda vê nas comunicações espíritas uma obra do demônio. Contudo o seu número diminui dia a dia. Esse feliz decréscimo é evidentemente devido à curiosidade de visitar os grupos espíritas e de ler O livro dos Espíritos, porque, no número dos curiosos encontram-se pessoas que se convencem, principalmente as que leem aquele livro.
Não acrediteis, senhores, que atraireis muitos adeptos à nossa doutrina fazendoos primeiramente assistirem às nossas sessões. Não. Tenho a íntima convicção de que uma criatura completamente estranha à doutrina não se convencerá pelo que vir em nossos trabalhos. Terá antes vontade de rir dos fenômenos, em vez de levá-los a sério.
Quanto a mim, senhores, creio ter feito muito mais pela doutrina levando alguém a ler O Livro dos Espíritos do que levando-o a uma das nossas sessões. Quando tenho certeza de que a leitura foi feita e de que deu os frutos que não pode deixar de dar, oh! então levo com satisfação aquela pessoa a um grupo espírita. Tenho certeza de que nesse momento ela se dará conta de tudo o que vir e compreenderá, e que aquele que possivelmente riria antes daquela leitura, sentirá efeitos diametralmente opostos. Não quero dizer que chorará.
A melhor maneira de terminar é com uma citação retirada de O livro dos Espíritos. Ela convencerá, mais que minhas pobres palavras, aqueles que ainda duvidam do fundo de verdade sobre o qual repousam as crenças espíritas:
“Os que dizem que as crenças espíritas ameaçam invadir o mundo proclamam, por isso mesmo, a sua força, porque uma ideia destituída de base e de lógica não se tornaria universal. Se, pois, o Espiritismo se estabelece em toda parte, se recruta principalmente nas camadas esclarecidas, como todos reconhecem, é porque tem um fundo de verdade. Contra essa tendência serão vãos os esforços dos detratores. O que prova isto é que o próprio ridículo com que tentam cobri-lo, longe de deter a sua marcha, parece dar-lhe vida nova. Tal resultado justifica plenamente o que muitas vezes nos têm dito os Espíritos: ‘Não vos inquieteis com a oposição. Tudo quanto fizerem contra vós reverterá a vosso favor e os vossos maiores adversários servirão à vossa causa, sem o querer. Contra a vontade de Deus não prevalecerá a má vontade dos homens.’”
CONDAT
Carta do Sr. Dombre a um pregador
“Senhor pregador,
“Acompanho com assiduidade vossas instruções dogmáticas de todas as noites. Por deplorável fatalidade, sexta-feira cheguei mais tarde que de costume e soube, ao sair da igreja, que tínheis começado, sob a forma de escaramuça, um ataque contra o Espiritismo. Alegro-me por isso, em nome dos católicos fervorosos. “Se bem me informaram, estas são as questões afloradas:
“1º. ─ O Espiritismo é uma religião nova, do século XIX;
“2º. ─ Incontestavelmente há comunicações com os Espíritos;
“3º. ─ Nas comunicações com os Espíritos, bem constatadas, bem reconhecidas, vós vos encarregais de provar, depois de longos e sérios estudos que fizestes do Espiritismo, que os Espíritos que se comunicam não são outra coisa além do demônio;
“4º. ─ Finalmente, seria perigoso, do ponto de vista da salvação da alma, tratar do Espiritismo antes que a Igreja se pronuncie a respeito.
“Aprecio muito esse quarto item, mas se se reconhece, de antemão, que é o demônio, a Igreja nada mais tem a fazer.[1]
“Eis quatro questões importantes que desejo ver resolvidas para de um só golpe confundir os espíritas e os católicos de nome, que nem creem no demônio nem nas penas eternas, mas admitem um Deus e a imortalidade da alma, bem como os materialistas, que em nada creem.
“À primeira questão ─ O Espiritismo é uma religião? ─ os espíritas respondem: Não, o Espiritismo não é uma religião e não pretende sê-lo. O Espiritismo se baseia na existência de um mundo invisível, formado por seres incorpóreos, que povoam o espaço e que são apenas as almas dos que viveram na Terra e em outros globos. Esses seres, que nos rodeiam incessantemente, exercem sobre os homens, malgrado seu, uma grande influência. Eles representam um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. O Espiritismo está na Natureza e pode dizer-se que, numa certa ordem de coisas, é uma força, como, sob outro ponto de vista, o é a eletricidade, o é a gravitação. O Espiritismo desvenda-nos o mundo invisível, e isto não é novidade, pois o menciona a história de todos os povos. O Espiritismo repousa sobre princípios gerais, independentes de qualquer questão dogmática. Tem consequências morais, é certo, no sentido do Cristianismo, mas não tem culto, nem templos, nem ministros. Cada um pode fazer de suas opiniões uma religião, mas daí para a constituição de uma nova igreja há muita distância. Assim, o Espiritismo não é uma religião nova. Eis, senhor pregador, o que dizem os espíritas quanto à primeira questão.
“A essa questão riem os falsos católicos e os materialistas. Os primeiros, se estão entre os felizes deste mundo, riem com um sorriso amarelo, pois a doutrina que comporta a pluralidade de existências ou reencarnações lhes fere os prazeres e o orgulho. É horrível pensar numa volta em condições talvez inferiores! Os espíritas lhes dizem: “Eis a justiça, a verdadeira igualdade”. Mas não lhes convém uma tal igualdade. Os materialistas, espíritos fortes e compostos de pretensos sábios, riem gostosamente, porque não acreditam no futuro. A sua sorte e a do cachorrinho que os acompanha são absolutamente as mesmas, e eles preferem isso.
“Acerca da segunda questão: Há comunicação com os Espíritos, os espíritas e nós, católicos fervorosos, estamos de acordo. Os falsos católicos e os materialistas têm o riso da incredulidade.
“À terceira questão: Somente o demônio se comunica, os espíritas riem por sua vez; os materialistas também riem, zombando dos que acreditam nas comunicações e dos que, nelas crendo, as atribuem aos demônios. Os falsos católicos silenciam e parecem dizer: Vocês lá que se entendam.
“À quarta questão: É preciso esperar o pronunciamento da Igreja, dizem os espíritas: ‘Com certeza chegará o dia em que a crença no Espiritismo será tão vulgarizada, tão espalhada que a Igreja, a menos que queira ficar só, será forçada a seguir a corrente. O Espiritismo fundir-se-á então no Catolicismo e o Catolicismo no Espiritismo’. A essa questão o materialista ri ainda e diz: ‘Que me importa!’ O falso católico sente uma espécie de despeito. Como eu disse antes, ele não poderá acomodar-se a essa doutrina. Seu egoísmo e seu orgulho ficam chocados. Ele repele a eventualidade dessa fusão e diz: ‘É impossível. O Espiritismo é pura utopia, que não dará quatro passos no mundo’[2] “Aceitai, etc.
“Um católico fervoroso”
Numa carta dirigida a Bordeaux, sobre o assunto, diz o Sr. Dombre:
“Frei F... procurou saber quem era o espírita e não o católico fervoroso que lhe havia escrito aquela carta. Seus emissários vieram a mim e me disseram:
“─ Frei F... teria necessidade de sete ou oito sermões para responder, mas faltalhe o tempo. Assim, queria saber de quem se trata.
“Minha resposta foi:
“─ Garanto-lhes que o autor da carta dar-se-á a conhecer, caso ele queira responder de cadeira.
“Parece que aqui sabem, por experiência, que quanto mais se fala contra o Espiritismo, mais prosélitos se fazem e que acharam melhor fazer silêncio, pois Frei F... partiu sem voltar ao assunto.
“Certamente direis que há um pouco de temeridade em querer entrar na liça.
Conheço bem a nossa localidade: é necessário barulho.
“Os inimigos sistemáticos ou interessados do Espiritismo apenas querem o mutismo e eu os quero ensurdecer com discussões. Em torno dos incrédulos que discutem há sempre indiferentes ou predispostos a crer, que tiram proveito da luta, relativamente à instrução espírita.
“Talvez me digais:
“─ Mas pensais que saireis honrosamente dessas polêmicas?
“─ Ah! Meu Deus! Quando se é assinante da Revista Espírita e se leu todos os livros da doutrina; quando se está inteiramente imbuído dos argumentos em que ela se apoia e dos que são dados pelos Espíritos, a gente sai como Minerva, armado dos pés à cabeça e nada se teme.”
OBSERVAÇÃO: Eles dizem:
Credes na reencarnação, mas a pluralidade das existências é contrária aos dogmas, que admitem apenas uma. Por isso mesmo estais fora da Igreja.
A isso repetiremos o que temos dito centenas de vezes:
─ Outrora expulsastes da Igreja, anatematizando, excomungando, condenando como heréticos os que acreditavam no movimento da Terra.
Eles responderão:
─ Isso foi num tempo de ignorância.
─ Seja. Mas se a Igreja é infalível, deveria sê-lo outrora como hoje, e sua infalibilidade não pode ser submetida às flutuações da Ciência mundana. Mas ultimamente, e apenas há um quarto de século, neste século de luzes, não tem ela condenado as descobertas científicas relativas à formação do globo? Que aconteceu agora? E que teria acontecido se ela persistisse em repelir de seu seio todos os que acreditam nessas coisas? Não haveria mais católicos, nem mesmo o Papa. Por que, então, teve a Igreja que ceder? É porque o movimento dos astros e a sua formação repousam em leis da Natureza e porque contra essas leis não há opinião que se sustente.
Quanto à reencarnação, de duas, uma: ou ela existe, ou não existe. Não há meio termo. Se existe, é porque está nas leis da Natureza. Se um dogma diz o contrário, trata-se de saber se a razão está com o dogma ou com a Natureza, que é obra de Deus.
A reencarnação, pois, não é uma opinião, um sistema, como uma opinião política ou social, que podemos admitir ou impugnar. É um fato ou não é. Se é um fato, por mais que contrarie o gosto de todo o mundo, nada do que digam o impedirá de ser um fato.
Por conta própria cremos firmemente que a reencarnação, longe de ser contrária aos dogmas, dá uma explicação lógica das vidas sucessivas, que as torna aceitáveis pela maioria dos que as repeliam, porque as não compreendiam. Temos a prova no grande número de pessoas trazidas às crenças religiosas pelo Espiritismo.
Mas admitamos essa incompatibilidade, se quiserem. Então apresentaremos a questão frontalmente:
─ Quando for reconhecida a pluralidade das existências ─ o que não tardará muito ─ como uma lei natural; quando todo o mundo reconhecer essa lei como a única compatível com a justiça de Deus, e como a única a explicar o que sem ela será inexplicável, o que fareis?
─ Fareis o que fizestes com o movimento da Terra e os seis dias da Criação, e não será difícil conciliar o dogma com essa lei.
A.K.
[1] Se a Igreja ainda não se pronunciou, a questão do demônio não passa de opinião individual, sem sanção legal, e isso é tão certo que nem todos os eclesiásticos a compartilham. Conhecemos muitos nesse caso. Até mais ampla informação, a dúvida é permitida, e desde já pode-se ver que a doutrina do demônio tem pouco império sobre as massas. Se a Igreja a proclamasse oficialmente, seria de temer que de tal julgamento decorresse o que decorreu da declaração de heresia e da condenação outrora pronunciada contra o movimento da Terra, do mesmo modo que, em nossos dias, com os anátemas contra a Ciência, a propósito dos seis períodos da Criação. Cremos que seria mais sábio e mais prudente que o clero não se apressasse em liquidar a questão, afirmando uma coisa que atualmente provoca mais riso e incredulidade do que medo e na qual ─ podemos atestar ─ muitos padres não creem mais do que nós, por ser ilógica. Expor-se a receber um desmentido do futuro e depois confessar o erro, é prejudicar à autoridade moral da Igreja, que proclama a infalibilidade de seus julgamentos. Melhor seria abster-se. Aliás, digam o que disserem do Espiritismo, a experiência aí está para provar que sua marcha é irresistível. É uma ideia que se implanta por toda parte com rapidez espantosa, porque satisfaz, ao mesmo tempo, à razão e ao coração. Para detê-lo fora preciso opor-lhe uma doutrina que satisfizesse melhor, e certamente não será a do demônio e das penas eternas.
A. K.
[2] Há falsos católicos, verdadeiros católicos e materialistas que usam essa linguagem. Que o tivessem dito há alguns anos, poder-se-ia conceber. Mas nos últimos quatro ou cinco anos ele deu tantos passos e os dá todos os dias, que em breve terá atingido o seu objetivo. Procure-se na História uma doutrina que tenha avançado tanto em tão pouco tempo. Em presença desse resultado inaudito de uma propagação contra a qual vêm quebrar-se todos os raios e todas as troças; que cresce na razão da violência dos ataques, é, na verdade, muita ingenuidade dizer que o Espiritismo é simples fogo de palha. Se assim é, por que tanta cólera? Deixem que ele se apague por si mesmo. Nós que ocupamos os primeiros postos para vê-lo marchar, que lhe acompanhamos todas as peripécias, vemos a sua conclusão. Então é a nossa vez de rir.
A. K.
O Espiritismo numa distribuição de Premios
“Senhoras,
“Peço permissão para algumas reflexões sobre um discurso pronunciado na distribuição de prêmios do vosso pensionato. Minha condição de pai de família, e sobretudo de pai de uma de vossas alunas, dá-me direito a esta apreciação.
“O autor do discurso, estranho ao vosso estabelecimento e, segundo me disseram, professor do Colégio C..., permitiu-se longos motejos, não sei bem a propósito de que, sobre a Ciência Espírita e os médiuns. Eu compreenderia se ele emitisse a sua opinião sobre a matéria em qualquer outra circunstância, mas perante um auditório como aquele em que falava, em presença de gente moça confiada aos vossos cuidados, permiti vos diga, a questão estava deslocada e o tema era mal escolhido para buscar sucesso.
“Entre outras coisas, disse aquele senhor que ‘as pessoas que se ocupam de experiências das mesas e outros fenômenos ditos espíritas, ou de ordem psicológica são jograis, tolas ou estúpidas’.
“Encontro-me, senhoras, entre os que se ocupam do assunto e não o oculto. Ademais, tenho certeza de não ter sido o único em vossa reunião.
“Não tenho a pretensão de ser sábio, como o vosso orador, e assim, do seu ponto de vista, talvez eu seja um estúpido. Contudo, a expressão é bastante grosseira quando a gente se dirige a pessoas que não conhece e quando se generaliza o pensamento, mas com certeza minha posição e meu caráter me põem ao abrigo do epíteto de jogral.
“Aquele senhor parece ignorar que essa estupidez conta hoje milhões de adeptos no mundo inteiro e que os supostos jograis se acham até nas mais altas camadas da Sociedade, sem o que teria ele refletido que suas palavras poderiam dirigir-se a mais de uma de suas ouvintes. Se ele provou, por essa tirada intempestiva, uma falta de tato e de elegância, também provou que falava de uma coisa que jamais estudou.
“Quanto a mim, senhoras, há quatro anos estudo, observo, e o resultado de minhas observações convenceu-me, como a tantos outros, que, em certas circunstâncias, o nosso mundo material pode entrar em relações com o mundo espiritual. As provas do fato eu as tenho tido aos milhares, por toda parte, em todos os países que visitei, e sabeis que as tenho tido, e muitas, em minha família, com minha esposa, que é médium sem ser jogral, com parentes e amigos que como eu procuravam a verdade.
“Não penseis, senhoras, que eu tenha acreditado à primeira vista e sem exame. Como disse, estudei e observei conscienciosamente, friamente, com calma e sem ideia preconcebida, e só depois de maduras reflexões tive a felicidade de me convencer da realidade de tais coisas. Digo felicidade porque, confessarei, o ensino religioso que havia recebido não fora suficiente para esclarecer a minha razão e eu me havia tornado céptico. Agora, graças ao Espiritismo, às provas patentes que ele fornece, já não o sou, porque pude assegurar-me da imortalidade da alma e de suas consequências. Se aí está o que aquele senhor chama uma estupidez, ao menos deveria abster-se de dizê-lo em presença de vossas alunas, que bem poderão, e mais cedo do que pensais, dar-se conta dos fenômenos cujo véu lhes levantaram. Para tanto, bastará que entrem no mundo. A nova ciência aí faz grandes e rápidos progressos, eu vo-lo garanto.
“Então, não é de temer que elas façam esta reflexão: Se nos induziram em erro sobre essas matérias; se nos quiseram ocultar a verdade, não nos poderão ter enganado sobre outros pontos? Na dúvida, a mais elementar prudência recomenda a abstenção.
“Em todo o caso, nem era o lugar, nem o momento de abordar semelhante assunto.
“Senhoras, julguei meu dever comunicar-vos as minhas impressões.
“Peço-vos as acolhais com a vossa bondade habitual.
“Aceitai, etc.
Faria esse senhor uma surtida semelhante contra os protestantes ou os judeus, chamando-os de heréticos e danados, ou contra tal ou qual opinião política? Não, porque há poucos colégios onde não haja alunos cujos pais professem diferentes opiniões políticas ou religiosas, e ele temeria ferir a estes últimos. Então! Que ele fique sabendo que hoje, especialmente na França, há a mesma quantidade de espíritas que de judeus e protestantes, e que dentro em pouco haverá tantos quantos há de católicos.
Aliás, ali, como em toda parte, o resultado será contrário à intenção. Eis uma porção de moças, naturalmente curiosas, muitas das quais jamais ouviram falar de tais coisas, e que quererão conhecê-las na primeira ocasião. Elas experimentarão a mediunidade e, infalivelmente, algumas triunfarão; falarão às suas companheiras, e assim por diante.
Proibis se ocupem de tais coisas; as amedrontais com a ideia do diabo; será uma razão a mais para que o façam às escondidas, pois quererão saber o que lhes dirá o diabo. Elas não ouvem falar diariamente dos bons diabos, dos diabos cor de rosa? Ora, aí está o perigo porque, inexperientes e sem um orientador prudente e esclarecido, poderão achar-se sob influências perniciosas, das quais não saberiam livrar-se. Daí podem resultar inconvenientes muito mais graves porque, à vista da proibição feita e por medo dos castigos, nada ousarão dizer.
Proibis que escrevam? Nem sempre é fácil. As professoras do internato sabem disso. Mas, o que fareis com aquelas que se tornarem médiuns videntes e auditivas? Podereis tapar-lhes os olhos e os ouvidos? Eis, senhor orador, o que pode produzir o vosso discurso imprudente, com o qual certamente ficastes muito satisfeito.
O resultado é absolutamente outro nos filhos educados pelos pais nessas ideias. Para começar, eles nada têm a esconder, sendo assim preservados contra os perigos da inexperiência. Depois, cedo isso lhes dá uma piedade raciocinada, que a idade fortifica. Tornam-se mais dóceis, mais submissos, mais respeitadores. A certeza da presença dos pais mortos, que os veem incessantemente, com os quais podem entreter-se e dos quais recebem sábios conselhos, é-lhes um freio poderoso, pelo medo salutar que aqueles inspiram.
Quando a geração for educada nas crenças espíritas, ver-se-á outra juventude, mais estudiosa e menos turbulenta. Isso já pode ser avaliado pelo efeito que tais ideias produzem nos jovens que delas se compenetram.
Perseguições
“Quando virem a impotência da arma do ridículo, experimentarão a da perseguição. Não mais haverá martírios sangrentos, mas muitos irão sofrer nos seus interesses e nas suas afeições. Procurarão desunir as famílias, reduzir os adeptos pela fome, dar-lhes alfinetadas, por vezes piores que a morte. Mas aí encontrarão ainda almas sólidas e fervorosas que saberão enfrentar as misérias do mundo, na esperança do futuro melhor que as espera. Lembrai-vos das palavras do divino Salvador: ‘Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados’. Tende certeza, entretanto, que a era da perseguição, na qual em breve entrareis, terá curta duração e os vossos inimigos colherão apenas vergonha, porque as armas que empregarem contra vós voltar-se-ão contra eles”.
Começou a era predita. De várias direções assinalam-vos atos que a gente lamenta sejam praticados pelos ministros de um Deus de paz e de caridade. Não falaremos das violências feitas à consciência, expulsando da igreja aqueles que a ela conduz o Espiritismo. Tendo tido tal meio resultados mais ou menos negativos, buscaram outros mais eficazes.
Poderíamos citar as localidades onde criaturas que vivem de seu trabalho foram ameaçadas de verem cortados os seus recursos; outras onde os adeptos foram marcados pela animadversão pública, perseguidos pelos moleques de rua; outras onde expulsam das escolas as crianças cujos pais se ocupam do Espiritismo; uma outra onde um pobre professor foi demitido e reduzido à miséria, porque tinha em casa O livro dos Espíritos. Deste recebemos tocante prece em versos, cheia dos mais nobres sentimentos e da mais sincera piedade. Acrescentemos que espírita benfeitor estendeu-lhe a mão; acrescentemos, ainda, em tais circunstâncias, que ele foi vítima de infame traição, por parte de um homem no qual havia confiado e que parecia entusiasmado por aquele livro.
Numa pequena cidade onde o Espiritismo conta com bom número de adeptos, um missionário disse do púlpito, na última quaresma: “Confio que no auditório só se encontrem bons fiéis, e que não haja nem judeus, nem protestantes, nem espíritas”. Parece que confiava muito pouco em sua palavra, para converter os que tivessem vindo ouvi-lo com o fito de se esclarecerem.
Numa comuna perto de Bordeaux quiseram impedir se reunissem mais de cinco espíritas, sob o pretexto de que isso era proibido por lei. Mas uma autoridade superior reconduziu a autoridade local à legalidade. Desse pequeno vexame resultou que hoje três quartos dessa comuna são espíritas.
No departamento de Tarn-et-Garonne, os espíritas de várias localidades quiseram reunir-se e foram acusados de conspiração contra o governo. Essa ridícula acusação caiu logo, como tinha de ser, e provocou o riso.
Em compensação, contaram-nos que um magistrado disse: “Prouvera a Deus que todo mundo fosse espírita! Nossos tribunais teriam menos que fazer e a ordem pública nada teria a temer.” Ele enunciou assim uma grande e profunda verdade, pois já se começa a perceber a influência moralizadora que o Espiritismo exerce sobre as massas.
Não é um resultado maravilhoso ver homens, sob a influência dessa crença, renunciarem ao alcoolismo, aos hábitos do deboche, aos excessos degradantes e ao suicídio? Homens violentos tornarem-se comportados, suaves, pacíficos e bons pais de família? Homens que blasfemavam o nome de Deus, orando com fervor e piedosamente aproximando-se dos altares? É a tais homens que expulsais da igreja! Ah! Rogai a Deus para que, se ainda estão reservados dias de provação à Humanidade, haja muitos espíritas, porque estes aprenderam a perdoar aos inimigos e consideram como primeiro dever do cristão estender-lhes a mão no momento do perigo, em vez de lhes pisar no pescoço.
Um livreiro da Charente escreve-nos o seguinte:
“Não temi proclamar abertamente minhas opiniões espíritas. Pus de lado as mesquinharias mundanas, sem me preocupar se o que fazia viria prejudicar o meu negócio. Contudo, estava longe de esperar o que me aconteceu. Se o mal se tivesse limitado a piadas, pouco seria. Mas, ah! Graças aos que pouco entendem a Religião, tornei-me a ovelha negra do rebanho, a peste do distrito. Sou apontado como o precursor do anticristo. Usaram de toda influência ─ inclusive a calúnia ─ para me derrubar, tirar-me a freguesia, numa palavra, arruinar-me. Ah! Os Espíritos nos falam de perseguições, de mártires do Espiritismo. Não me orgulho com isso, mas, sem dúvida, estou entre as vítimas. É verdade que minha família sofre com isso, mas tenho o consolo de uma esposa que partilha de minhas ideias espíritas. Não tardará que meus filhos estejam em idade de compreender essa bela doutrina. Pretendo esclarecê-los em nossa bela crença. Que Deus me conserve a possibilidade ─ por mais que façam para ma tirar ─ de instruí-los e prepará-los para por sua vez lutarem, se isto for preciso.
“Os fatos relatados em vossa Revista do mês de maio têm uma chocante analogia com o que me aconteceu. Como o autor da carta, fui repelido impiedosamente do confessionário. Antes de tudo o vigário queria fazer-me renunciar às ideias espíritas. De sua imprudência resulta que jamais me verá nas cerimônias religiosas. Se ajo mal, deixo a responsabilidade ao seu autor.”
As passagens que se seguem são extraídas de uma carta que nos vem de uma aldeia dos Vosges. Conquanto estejamos autorizados a declinar o nome do autor e a localidade, não o faremos por uma questão compreensível, mas temos a carta em mãos e a usaremos quando reputarmos necessário. É idêntico a todos os casos citados e que, conforme sua maior ou menor importância, mais tarde figurarão na história do estabelecimento do Espiritismo.
“Não sou muito versado em literatura para tratar dignamente do assunto que pretendo. Não obstante, tentarei fazer-me compreender, desde que perdoeis a imperfeição do meu estilo e da minha redação, porque há vários meses ardo de desejo de me corresponder convosco, pois meu filho me enviou os preciosos livros que contêm as instruções da Doutrina Espírita e dos médiuns.
“Quando eu voltava do campo, ao cair da noite, avistei os livros que o carteiro trouxera. Apressei-me em jantar e deitar-me, com uma vela à cabeceira, pensando em ler até que o sono viesse fechar-me os olhos, mas li a noite inteira com tal avidez que não tive vontade de dormir.”
Segue a enumeração das causas que o haviam levado à absoluta incredulidade religiosa e que omitimos por uma questão de respeito.
“Todas estas considerações repassavam diariamente por meu espírito; o desgosto apoderara-se de mim; eu havia caído num estado de ceticismo duríssimo; depois, em minha triste solidão, de aborrecimento e desespero, julgando-me inútil à Sociedade, estava decidido a pôr termo a meus dias tão infelizes, pelo suicídio.
“Ah! Senhor! Não sei se alguém jamais poderá fazer uma ideia do efeito que produziu sobre mim a leitura de O Livro dos Espíritos.
“Renasceu a confiança; o amor de Deus tomou-me o coração e eu sentia como que um bálsamo divino em todo o meu ser. Ah! dizia eu, em toda a vida busquei a verdade e a justiça de Deus e só encontrei abusos e mentiras, e agora, em meus dias de velhice, tenho a felicidade de encontrar essa verdade tão desejada. Que mudança em minha situação que, de tão triste, tornou-se tão suave! Agora me acho continuamente em presença de Deus e de seus Espíritos bem-aventurados, meu criador, protetores, amigos fiéis.
“Creio que as mais belas expressões poéticas seriam insuficientes para pintar uma tão agradável situação. Quando meu peito fraco o permite, distraio-me cantando hinos e cânticos que, ao que parece, lhes são mais agradáveis. Enfim, sou feliz, graças ao Espiritismo. Ultimamente escrevi a meu filho, que me mandara aqueles livros, com o que me tornara mais feliz do que se tivesse posto em minhas mãos a mais brilhante fortuna.”
Segue-se um minucioso relato de ensaios de mediunidade, feitos na aldeia, entre adeptos, com os resultados obtidos. Entre aqueles apareceram vários médiuns, um dos quais parece admirável. Chamaram pais e amigos, que lhes deram incontestáveis provas de identidade e Espíritos Superiores que lhes deram conselhos excelentes.
“Todas essas evocações foram levadas ao cura por criaturas alcoviteiras, que em grande parte as desnaturaram. A 18 de maio último, ensinando o catecismo aos seus alunos para a primeira comunhão, o cura vomitou milhares de injúrias contra a casa C... (um dos principais adeptos) e contra mim. Depois, disse ao filho de C...: ‘Não te quero, mas em dois anos serás bastante forte para ganhar a vida. Aconselhote que deixes os teus pais, que não são capazes de te dar bons exemplos’. Que belo catecismo! Na mesma tarde, subiu ao púlpito de propósito, para repetir o sermão feito aos seus alunos pouco antes, dizendo com muita volubilidade que não reconhecíamos o inferno e não temíamos dedicar-nos ao roubo e à rapinagem para nos enriquecermos à custa alheia; que nos dávamos a sortilégios e superstições da Idade Média e mil outras invectivas.
“A propósito escrevi uma carta ao procurador imperial de M..., mas antes de enviá-la quis consultar o Espírito de São Vicente de Paulo na primeira reunião. Esse bom Espírito fez o médium escrever o seguinte: ‘Lembrai-vos destas palavras do Cristo: ‘Perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem’’. Depois disso, queimei a minha carta.
“O ruído desta doutrina espalha-se por todas as aldeias vizinhas.
“Muitos me pediram e encomendaram livros, que não me restam. Todos os que compreendem um pouco a leitura querem conhecer e passam de mão em mão.
“Depois de haver lido O livro dos Espíritos e O livro dos médiuns, meu primeiro cuidado foi ver se eu podia ser médium. Nada tendo obtido durante oito dias, comuniquei a meu filho a falta de êxito. Como ele morava perto de um magnetizador, este propôs que me escrevesse uma carta, que ele magnetizaria, e com isso eu poderia com certeza fazer a evocação de minha esposa. O pobre magnetizador não imaginava que me fornecia chicote para açoitá-lo.
“Com isso tornei-me médium auditivo. Pus-me novamente em posição de escrever e imediatamente disseram-me ao ouvido: ‘Procuram ludibriar teu filho’. Durante três dias, com uma força crescente, esse aviso me vinha ao ouvido e desviava a atenção que eu devia prestar ao que fazia. Escrevi ao meu filho sobre o caso, advertindo-o para que desconfiasse daquele homem. Na volta do correio escreveu-me, censurando as dúvidas que eu levantara contra aquele homem, que lhe merecia toda confiança. Poucos dias depois mandou-me nova carta, com linguagem diferente, dizendo que havia expulso o infeliz intrujão que, com aparência de honestidade, servia-se de sua suposta qualidade para melhor enganar as vítimas. Expulsando-o, mostrou-lhe a minha carta que de uma distância de cem léguas o havia pintado tão bem.”
OBSERVAÇÃO: Esta carta dispensa comentários. Vê-se que o sermão do senhor cura produziu efeito no meio dos aldeões, como alhures. Se, em tal circunstância, foi o diabo que tomou o nome de São Vicente de Paulo, o senhor cura lhe deve ser grato.
Não temos razão para dizer que os próprios adversários fazem a propaganda e, sem o querer, servem à nossa causa? Digamos, entretanto, que fatos como esse constituem exceções. Pelo menos preferimos assim pensar. Conhecemos muitos padres honestos, que deploram essas coisas, como impolíticas e imprudentes.
Se nos apontam alguns atos deploráveis, também nos assinalam muitos de um caráter verdadeiramente ético. Um sacerdote dizia a um seu penitente que o consultava sobre o Espiritismo:
“Nada acontece sem a permissão de Deus. Portanto, essas coisas só acontecem por sua vontade”.
Um moribundo mandou chamar um padre e lhe disse:
─ Senhor padre! Há cinquenta anos eu não frequentava as igrejas e havia esquecido Deus. Foi o Espiritismo que me reconduziu a ele e por isso vos mandei chamar antes de morrer. Dar-me-eis a absolvição?
─ Meu filho, ─ respondeu o padre, ─ os desígnios de Deus são impenetráveis. Dai-lhe graças por vos haver enviado essa tábua de salvação. Morrei em paz. Poderíamos citar cem casos semelhantes.
Um capitão da marinha mercante do Havre, nosso conhecido pessoal, é excelente espírita e bom médium. Havia iniciado ao Espiritismo vários homens de sua equipagem e só tinha motivos para se felicitar pela ordem, disciplina e bom comportamento. Tinha a bordo seu irmão de dezoito anos e um piloto de dezenove, ambos bons médiuns, animados de fé viva e que recebiam com fervor e reconhecimento os sábios conselhos dos Espíritos protetores. Uma noite, porém, discutiram. Das palavras foram a vias de fato. Assim, acertaram lugar e hora para se baterem a bordo, na manhã seguinte. Tomada a decisão, separaram-se. À noite sentiram vontade de escrever e, cada qual de seu lado, recebeu dos guias invisíveis uma séria admoestação sobre a futilidade de sua discussão e conselhos sobre a felicidade da amizade, com um convite à reconciliação, sem preconceitos. Movidos pelo mesmo sentimento, os dois jovens deixaram simultaneamente seu lugar, e vieram chorando lançar-se nos braços um do outro. Desde então nenhuma nuvem turvou a sua mútua compreensão.
O próprio capitão nos fez o relato. Vimos o seu caderno de comunicações espíritas, bem como os dos dois jovens, onde lemos aquela de que acabamos de falar.
O fato seguinte ocorreu ao mesmo capitão, numa de suas travessias. Temos o prazer de transcrevê-lo, posto que alheio ao nosso assunto.
Foi em alto mar, com o melhor tempo do mundo, quando ele recebeu a seguinte comunicação: “Toma todas as precauções, porque amanhã, às duas horas, cairá uma borrasca e teu navio correrá grande perigo.”
Como nada deixava prever o mau tempo, o capitão logo pensou numa mistificação. Contudo, para não ter motivos para censurar-se, ao acaso tomou algumas medidas. Não teve de que se arrepender, pois exatamente na hora predita desencadeou-se violenta tempestade e durante três dias o navio enfrentou os maiores perigos que já lhe ocorreram. Graças, porém, às precauções tomadas, safou-se sem acidentes.
O fato da reconciliação sugeriu-nos as seguintes reflexões.
Um dos resultados do Espiritismo bem compreendido ─ e insistimos na expressão bem compreendido ─ é o desenvolvimento do sentimento de caridade. Mas, como se sabe, a própria caridade tem um conceito muito elástico, que vai desde a simples esmola até o amor aos inimigos, que é a sublimação da caridade. Pode-se dizer que ela resume todos os nobres impulsos da alma para com o próximo. O verdadeiro espírita, como o verdadeiro cristão, pode ter inimigos. Não os teve o Cristo? Mas ele não é o inimigo de ninguém, pois está sempre apto a perdoar e a pagar o mal com o bem.
Se dois verdadeiros espíritas tiverem tido outrora motivos para recíproca animosidade, sua reconciliação será fácil, porque o ofendido esquece a ofensa e o ofensor reconhece a sua sem-razão. Desde então não mais querelas entre eles, porque serão reciprocamente indulgentes e farão mútuas concessões. Nenhum deles procurará impor ao outro um perdão humilhante, que irrita e fere mais do que acalma.
Se, em tais condições, dois indivíduos podem viver em boa harmonia, pode dar-se o mesmo com um grande número de indivíduos, que então serão tão felizes quanto é possível sê-lo na Terra, porque a maior parte de nossas atribulações surge do contato com os maus. Suponde, então, uma nação inteira imbuída de tais princípios. Não seria ela a mais feliz do mundo?
Aquilo que é, quando muito, possível para os indivíduos, dirão uns, é utopia para as massas, a menos que se dê um milagre. Ora! Tal milagre, o Espiritismo já fez muitas vezes, em pequena escala, nas famílias desunidas, onde restabeleceu a paz e a concórdia. O futuro provará que pode fazê-lo em larga escala.
Resposta ao convite dos espíritas de Lyon e de Bordeaux
Apresso-me em vos dizer quanto sou sensível ao novo testemunho de simpatia que me acabais de dar, com o amável e grato convite para visitar-vos também este ano. Aceito-o com prazer, porque para mim é sempre uma felicidade encontrar-me em vosso meio.
Amigos, minha alegria é grande ao ver a família crescer a olhos vistos. É a mais eloquente resposta que se pode dar aos tolos e ignóbeis ataques contra o Espiritismo. Parece que tal crescimento lhes aumenta o furor, porque, hoje mesmo, recebi uma carta de Lyon, anunciando a remessa de um jornal dessa cidade, La France littéraire, no qual a doutrina em geral, e minhas obras em particular, são agredidas de maneira tão desagradável que me consultam se devem responder pela imprensa ou pelos tribunais. Digo que a resposta deve ser o desprezo.
Se a doutrina não fizesse progressos, se minhas obras fossem natimortas, ninguém se inquietaria e nada diriam. São os nossos sucessos que exasperam os inimigos. Deixemo-los, pois, derramar a sua raiva impotente, que mostra como sentem próxima a sua derrota. Eles não são tão tolos para se agarrarem a um aborto. Quanto mais ignóbeis forem os seus ataques, menos estes devem ser temidos, porque são desprezados pelas criaturas honestas e provam que eles não têm boas razões a opor, pois só sabem dizer injúrias.
Continuai, pois, meus amigos, a grande obra de regeneração iniciada sob tão felizes auspícios, e em breve colhereis os frutos da perseverança. Provai, sobretudo por vossa união e pela prática do bem, que o Espiritismo é a dádiva da paz e da concórdia entre os homens, e fazei que vendo-vos se possa dizer que seria desejável que todos fossem espíritas.
Meus amigos, sinto-me feliz por ver tantos grupos unidos no mesmo sentimento, marchando de comum acordo para o nobre objetivo a que nos propomos. Sendo tal objetivo exatamente o mesmo para todos, não poderia haver divisões. Uma mesma bandeira vos deve guiar e nela está inscrito: Fora da caridade não há salvação. Ficai certos de que em torno dela é que a Humanidade inteira sentirá necessidade de se unir, quando se cansar das lutas engendradas pelo orgulho, pela inveja e pela cupidez. Essa máxima, verdadeira âncora de salvação, pois será o repouso após a fadiga, o Espiritismo terá a glória de havê-la proclamado por primeiro. Inscrevei-a em todos os locais de reunião e em vossas casas. Que ela seja, de agora em diante, a palavra de união entre todos os homens que sinceramente querem o bem, sem segundas intenções pessoais. Mas fazei melhor ainda: Gravai-a em vossos corações, e desde já desfrutareis a calma e a serenidade que aí acharão as gerações futuras, quando ela será a base das relações sociais. Vós sois os pioneiros. Deveis dar o exemplo, a fim de encorajar os outros a vos seguirem.
Não esqueçais que a tática dos vossos inimigos encarnados e desencarnados é dividir-vos. Provai-lhes que perdem seu tempo na tentativa de suscitar, entre os grupos, sentimentos de inveja e rivalidades, que seriam uma apostasia da verdadeira doutrina espírita cristã.
As 500 assinaturas que subscrevem o convite que tivestes a bondade de me enviar representam uma manifestação contra essa tentativa, e há muitas outras que terei o prazer de aí ver. Aos meus olhos é mais que simples fórmula. É um compromisso de marchar pelo caminho que nos traçam os bons Espíritos. Eu as conservarei preciosamente, porque um dia constituirão os gloriosos arquivos do Espiritismo.
Ainda uma palavra, meus amigos. Indo ver-vos, uma coisa desejo: é que não haja banquete, e isto por vários motivos. Não quero que minha visita seja ocasião para despesas que poderiam impedir a presença de alguns e privar-me do prazer de ver todos reunidos. Os tempos estão duros. Não devemos fazer despesas inúteis. O dinheiro que isso custaria seria melhor empregado em auxílio aos que mais tarde necessitarão. Eu vos digo com toda a sinceridade que o pensamento de que aquilo que faríeis por mim em tal circunstância poderia ser uma causa de privação para muitos, me tiraria o prazer da reunião.
Não vou a Lyon para exibição nem para receber homenagens, mas para me entender convosco, consolar os aflitos, encorajar os fracos e ajudar-vos com os meus conselhos, tanto quanto estiver em minhas possibilidades. O que de mais agradável me podeis oferecer é o espetáculo de uma união boa, franca e sólida. Crede que os termos tão afetuosos do vosso convite valem para mim mais que todos os banquetes do mundo, ainda que oferecidos num palácio. Que me restaria de um banquete? Nada, ao passo que vosso convite fica como preciosa lembrança e uma prova de vossa afeição.
Até breve, meus amigos.
Se Deus quiser, terei o prazer de vos apertar as mãos cordialmente.
A.K.
Alguns quiseram dar à minha visita o nome de visita pastoral. Não desejo que tenha outro caráter. Crede que me sinto mais honrado com um franco e cordial acolhimento de forma muito simples do que com uma recepção cerimoniosa, que nem convém ao meu caráter e hábitos, nem aos meus princípios.
Se entre eles não reinasse união, não seria um banquete que a produziria. Ao contrário. Se ela existe, pode manifestar-se de outra forma que não seja por uma festa, em que haverá lugar para o amor-próprio, mas que não tocaria um verdadeiro espírita, nem por uma despesa inútil, que seria mais bem empregada em aliviar infortúnios. Cotizai-vos, pois, em minha intenção, se o quiserdes, e permiti que eu contribua com o meu óbolo. Mas, em vez de comer o dinheiro, que ele sirva para alimentar aqueles a quem falta o necessário. Então será uma festa do coração e não do estômago. Mais vale ser abençoado pelos infelizes que pelos cozinheiros.
A sinceridade da união traduz-se por atos e, mais ainda, por atos íntimos do que por demonstrações aparatosas. Que eu veja por toda parte reinar a paz e a concórdia na grande família. Que cada um ponha de lado as vãs suscetibilidades e as rivalidades pueris, filhas do orgulho. Que todos tenham como objetivo único o triunfo e a propagação da doutrina, e que para isso concorram com zelo, perseverança e abnegação de todo interesse e de toda vaidade pessoal. Eis o que para mim será uma verdadeira festa; o que me cumulará de prazer e me permitirá trazer da segunda visita a Bordeaux a mais suave e agradável lembrança.
Peço-vos comuniqueis minhas intenções aos nossos irmãos espíritas e crer-me, etc.
A.K.
Achamo-nos no dever de publicar estas duas respostas, para que não se equivoquem quanto aos sentimentos que nos guiam nas visitas que fazemos aos centros espíritas. Aproveitamos a oportunidade para agradecer aos de outras cidades que nos fizeram idêntico convite. Lamentamos que o tempo não nos permita ir a toda parte. Fá-lo-emos sucessivamente.
No instante de expedi-las, um convite dos mais gentis e atenciosos nos é feito em nome dos membros da Sociedade Espírita de Viena - Áustria. Lamentamos muito a absoluta impossibilidade de irmos até lá este ano.
Poesias espíritas
Peregrinação da alma[1] Por uma falha tipográfica, o original foi publicado sem a quinta estrofe. O Sr. Allan Kardec a incluiu no número de novembro, com uma pequena nota explicativa. Pondo aquela estrofe no devido lugar, pareceu-nos necessário este aviso e desnecessária a nota final do mês de novembro. O Tradutor.
O anjo da guarda (Sociedade espírita Africana - Médium: Srta. O...)
OBSERVAÇÃO: Estes versos e mais outros, de certa extensão, não menos notáveis, sob o título A Criança e o Ateu, que publicaremos no próximo número, foram publicados no Echo de Sétif da Argélia, a 31 de julho de 1862, precedidas da seguinte nota:
“Um dos nossos assinantes enviou-nos as duas poesias que se seguem recebidas por um médium de Constantina, nos primeiros dias deste mês. Embora não os considerando isentos de crítica, do ponto de vista das regras de versificação, nós os publicamos porque explicam, pelo menos em parte, a Doutrina Espírita, que tende a se espalhar por toda a superfície do globo.”
Esse médium parece ter a especialidade da poesia. Ele já recebeu grande número de versos, que escreve com incrível facilidade, sem nenhuma rasura, posto desconheça as regras da métrica. Vimos um membro da Sociedade de Constantina, em presença do qual foram escritos.
Dissertações espíritas
Estudos uranográficos (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sr. Flammarion)Há tempos vos foi anunciado, aqui e alhures, por vários Espíritos e diversos médiuns, que vos seriam feitas revelações sobre o sistema dos mundos. Fui chamado a contribuir para tal predição, na ordem de meu destino.
Antes de abrir o que poderia chamar os nossos estudos uranográficos, importa fixar bem o primeiro princípio, a fim de que o edifício, assentado em bases sólidas, tenha condições de durabilidade.
Esse primeiro princípio, essa primeira causa, é o grande e soberano poder que deu vida aos mundos e aos seres; este preâmbulo a toda meditação séria é Deus. Ante esse nome venerado tudo se inclina e a harpa etérea dos Céus faz vibrar as suas cordas de ouro.
Oh! vós, filhos da Terra, vós que há tanto tempo balbuciais esse grande nome sem compreendê-lo, quantas teorias aventurosas foram escritas desde o começo das idades nos anais da filosofia humana! Quantas interpretações erradas da consciência universal vieram à luz através de crenças caducas dos povos antigos! E, hoje ainda, que a era cristã em seu esplendor raiou sobre o mundo, que ideia se faz do primeiro dos seres, do ser por excelência, daquele que é?
Não vimos, nos últimos tempos, o panteísmo orgulhoso elevar-se soberbo até aquele que julgou certo qualificar de ser absorvente, de grande todo, de cujo seio tudo saiu e no qual tudo deve entrar e se confundir um dia, sem distinção de individualidades?
Não vimos o ateísmo grosseiro instalar vergonhosamente o ceticismo negativista e corruptor de todo progresso intelectual, a despeito do que tenham dito os sofistas seus defensores?
Seria interminável mencionar escrupulosamente todos os erros que foram aceitos a respeito do princípio primordial e eterno, e a reflexão é bastante para vos mostrar que o homem terreno errará sempre que pretender explicar esse problema insolúvel para muitos Espíritos desencarnados.
Cabe-nos dizer-vos implicitamente que deveis, ou melhor, que nós devemos inclinar-nos humildemente ante o Grande Ser. Cabe-nos dizer-vos, filhos, que se de nós depende nos elevarmos até a ideia do Ser Infinito, isso nos deve bastar e interditar a todos a orgulhosa pretensão de manter os olhos abertos diante do Sol, sem ficarmos logo enceguecidos pelo deslumbrante esplendor de Deus na sua eterna glória.
Guardai bem isto, porque é o prelúdio de nossos estudos: Crede em Deus, criador e organizador das esferas; amai a Deus, criador e protetor das almas, e poderemos penetrar juntos, humildemente e ao mesmo tempo estudiosamente, no santuário onde ele semeou os dons de seu infinito poder.
GALILEU
Ouvi antes a definição do naturalista moderno. Ele diz que “A Natureza é o trono exterior do poder divino”. A tal definição juntarei esta, que resume todas as ideias dos observadores: “A Natureza é o poder efetivo do Criador”. Notemos a dupla explicação do mesmo vocábulo que, por uma maravilhosa combinação da linguagem, representa duas coisas à primeira vista tão diversas. Com efeito, a Natureza, no primeiro sentido, representa o efeito, cuja causa é expressa no segundo. Uma paisagem do horizonte sem fim; de árvores exuberantes sob as quais sentimos a vida subir com a seiva; de um prado esmaltado de flores perfumosas e coroado pelo sol, a isso se chama Natureza.
Agora, se se quiser designar a força que orienta os astros no espaço ou que faz germinar o grão de trigo? É ainda a Natureza.
Que a constatação dessas várias expressões seja para vós uma fonte de profundas reflexões; que ela sirva para ensinar-vos que se nos servimos do mesmo vocábulo para significar o efeito e a causa, é que realmente causa e efeito são uma só e a mesma coisa.
O astro atrai o astro, no espaço, segundo leis inerentes à constituição do Universo, e é atraído com força idêntica à que nele reside. Eis a causa e o efeito.
O raio solar perfuma a flor e a abelha aí vai buscar o mel. Aqui, o perfume ainda é efeito e causa.
Onde quer que na Terra ponhais os olhos, podereis constatar essa dupla natureza.
Concluamos daí que se a Natureza é, como a denominei, a força efetiva de Deus, ela é, ao mesmo tempo, o trono desse mesmo poder; ela é ao mesmo tempo ativa e passiva, efeito e causa, matéria e força imaterial; ela é a lei que cria, a lei que governa, a lei que embeleza; ela é o ser e a imagem; ela é a manifestação do poder criador, infinitamente bela, infinitamente admirável, infinitamente digna da vontade da qual é a mensageira.
GALILEU
Várias definições lhe têm sido dadas, sendo esta a principal: A extensão que separa dois corpos. Daí certos sofistas deduziram que onde não houver corpos não haverá espaço.
É sobre isso que se basearam os teólogos para estabelecer que o espaço é necessariamente finito, alegando que os corpos, em número finito, não poderiam formar uma série infinita, e que onde não houvesse corpos, também não haveria espaço.
Também definiram o espaço como o lugar onde se movem os mundos, o vazio onde age a matéria, etc. Deixemos nos tratados onde elas repousam, todas essas definições que nada definem.
O espaço é uma dessas palavras que representam uma ideia primitiva e axiomática, evidente por si mesma, e que as várias definições dadas nada mais fazem que obscurecer. Todos sabemos o que é o espaço, e desejo apenas estabelecer a sua infinitude, para que estudos ulteriores não encontrem barreiras opostas à investigação de nosso ponto de vista.
Ora, digo que o espaço é infinito porque é impossível opor-lhe qualquer limite e porque, a despeito da dificuldade de conceber o infinito, é-nos mais fácil viajar eternamente no espaço, em pensamento, do que parar num ponto qualquer, depois do qual não houvesse mais extensão a percorrer.
Para imaginar, tanto quanto possível em faculdades, a infinitude do espaço, suponhamos que, partindo da Terra, perdida em meio ao infinito, para um ponto qualquer do Universo, com a prodigiosa velocidade da faísca elétrica, que transpõe milhares de léguas por segundo, apenas tivéssemos deixado este globo e percorrido milhões de léguas, encontrar-nos-emos num ponto de onde a Terra apenas nos aparece como pálida estrela. Um instante após, seguindo sempre na mesma direção, chegamos a estrelas longínquas, que apenas distinguimos de nossa estação terrestre. De lá, não só a Terra estará inteiramente fora de nossas vistas, nas profundezas do céu, mas ainda o vosso próprio Sol, no seu esplendor, estará eclipsado pela distância que dele nos separa. Animados ainda pela mesma velocidade do relâmpago, transpomos sistemas de mundos à medida que avançamos no espaço, ilhas de luz etérea, vias estelíferas, paragens suntuosas onde Deus semeou mundos com a mesma profusão com que semeou plantas nos prados terrestres.
Ora, faz apenas alguns minutos que estamos viajando e já centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da Terra; milhões de mundos passaram aos nossos olhos e, contudo, escutai:
Na realidade não avançamos um passo no Universo.
Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de séculos, milhões de períodos cem vezes seculares, e incessantemente com a mesma velocidade do relâmpago, não teremos avançado nada! E isso de qualquer lado para o qual marchemos, para qualquer lado para o qual nos dirijamos, partindo deste grão invisível que deixamos, e que se chama Terra.
Eis o que é o espaço.
Férias da sociedade espírita de Paris
Se cada um de vós deixa a mesa do mestre, não é apenas para exercício ou repouso, mas ainda para servir, onde quer que estiverdes, à grande causa humanitária, sob cuja bandeira viestes procurar abrigo.
Bem compreendeis que para o espírita fervoroso não há horas designadas para o estudo. Toda a sua vida não é mais que uma hora, e ainda demasiado curta para o trabalho a que se dedica: o desenvolvimento intelectual das raças humanas!...
Os galhos não se destacam do tronco porque deste se afastam. Ao contrário, dão lugar a novos impulsos que os unem e os solidarizam.
Aproveitai estas férias que vão espalhar-vos, para vos tornardes ainda mais fervorosos, a exemplo dos apóstolos do Cristo. Saí deste cenáculo, fortes e corajosos. Que vossa fé e as vossas boas obras reúnam em torno de vós milhares de crentes, que abençoarão a luz que espalhareis em vosso redor.
Coragem! Coragem! No dia do encontro, quando a auriflama do Espiritismo vos chamar ao combate e se desdobrar sobre vossas cabeças, que cada um tenha em volta de si os adeptos que houver formado sob sua bandeira, e os bons Espíritos dirão o seu número e o levarão a Deus!
Não durmais, pois, espíritas, à hora da sesta. Velai e orai! Eu já vos disse, e outras vozes vo-lo repetirão: Soa o relógio dos séculos e uma vibração retine. Ela chama os que se acham na noite, e infelizes serão os que não a quiserem escutar!
Ó espíritas! Ide, despertai os adormecidos e dizei-lhes que vão ser surpreendidos pelas vagas do mar que sobe em rugidos surdos e terríveis. Ide dizerlhes que escolham um lugar mais iluminado e mais sólido, porque eis que os astros declinam e a Natureza inteira se move, treme e se agita!...
Mas, após as trevas, eis a luz, e aqueles que não tiverem querido ver e ouvir imigrarão naquela hora para mundos inferiores, a fim de expiar e esperar longamente, mui longamente, os novos astros que devem elevar-se e esclarecê-los. E o tempo lhes parecerá a eternidade, pois não lobrigarão o término de suas penas, até o dia em que começarem a crer e compreender.
Espíritas, não mais vos chamarei crianças, mas homens, homens valentes e corajosos! Soldados da nova fé, combatei valentemente. Armai o braço com a lança da caridade e cobri o corpo com o escudo do amor. Entrai na liça! Alerta! Alerta! Calcai aos pés o erro e a mentira e estendei a mão aos que vos perguntarem: “Onde está a luz?”
Dizei-lhes que os que marcham guiados pela estrela do Espiritismo não são pusilânimes; que se não deslumbrem com miragens e não aceitem como leis senão aquilo que ordena a razão fria e sã; que a caridade é a sua divisa e que não se despojem por seus irmãos senão em nome da solidariedade universal e nunca para ganharem um paraíso, que sabem muito bem que não podem possuir senão quando tiverem expiado o bastante!... Que conheçam Deus e que, antes de tudo, saibam que ele é imutável em sua justiça, e que, consequentemente, não pode perdoar uma vida de faltas acumuladas, por um segundo de arrependimento, como não pode punir uma hora de sacrilégio, por uma eternidade de suplício!...
Sim, espíritas, contai os anos de arrependimento pelo número das estrelas, mas sabei que a idade de ouro virá para aquele que tiver sabido contá-las!...
Ide, pois, trabalhadores e soldados, e que cada um volte com a pedra ou o seixo que deve auxiliar na construção do novo edifício. Eu vos digo, em verdade, que desta vez não mais tereis que temer a confusão, mesmo querendo elevar ao Céu a torre que o coroará. Ao contrário, Deus estenderá a sua mão no vosso caminho, a fim de vos abrigar das tempestades.
Eis a segunda hora do dia. Eis os servidores que vêm de novo, da parte do Mestre, procurar trabalhadores. Vós que estais desocupados, vinde, e não espereis a última hora!...
SANTO AGOSTINHO
Aos centros espíritas que devemos visitar
Temos notado que, ao fazer tal proposta durante as reuniões, geralmente não sabem o que perguntar e muitos se calam por timidez ou por dificuldade de formular o seu pensamento. A fim de evitar esse duplo inconveniente, pedimos que previamente preparem as perguntas por escrito e nos remetam a lista antes da reunião. Assim poderemos classificá-las metodicamente, eliminar repetições e responder de modo mais satisfatório para todos, refutando, ao mesmo tempo, as objeções à doutrina.
Ignoro completamente a inscrição de que me fala em sua carta de 2 de agosto, datada de Guingamp, por uma razão muito simples. É que eu jamais estive na Bretanha. E acrescento que jamais ouvi falar desse Manè, Thécel, Pares de outro gênero, como o chamais. Se ele pôde produzir sobre o senhor uma impressão benéfica, agradeça ao seu autor desconhecido. Em todo o caso, terei prazer em recebê-lo quando vier a Paris, onde, entretanto, só estarei de volta nos primeiros dias de outubro. Será um prazer dar-lhe verbalmente todas as explicações que desejar.
ALLAN KARDEC
Ao Sr. E. K.
Outubro
Apolônio de TianaNão há datas precisas sobre a vida de Apolônio. Conforme alguns cálculos, ele teria nascido dois ou três anos antes de Jesus Cristo e morrido aos noventa e seis anos, pelos fins do primeiro século. Nasceu em Tiana, cidade grega da Capadócia, na Ásia Menor. Cedo demonstrou ter grande memória, uma inteligência notável, e mostrou grande aplicação ao estudo. De todas as filosofias que estudou, adotou a de Pitágoras, cujos preceitos seguiu rigorosamente até a morte.
Seu pai, um dos mais ricos cidadãos de Tiana, deixou uma fortuna considerável, que ele repartiu com os parentes, ficando apenas com uma pequena parte porque, dizia, o sábio deve saber contentar-se com pouco.
Viajou muito para se instruir. Percorreu a Assíria, a Cítia, a Índia, onde visitou os brâmanes, o Egito, a Grécia, a Itália e a Espanha, por toda parte ensinando a sabedoria. Era amado em toda parte, pela suavidade de seu caráter e honrado por suas virtudes, recrutando numerosos discípulos que lhe acompanhavam os passos a fim de ouvi-lo, alguns dos quais o acompanharam em suas viagens. Um deles, entretanto, Eufrates, invejoso de sua superioridade e de seu crédito, tornou-se seu detrator e mortal inimigo e não cessou de contra ele espalhar calúnias, visando perdê-lo, mas apenas conseguiu aviltar-se.
Apolônio jamais se abalou, e longe de lhe guardar ressentimentos, lamentava-o por sua fraqueza e procurou sempre retribuir-lhe o mal com o bem. Ao contrário, Damis, jovem assírio que ele conheceu em Nínive, a ele se ligou com uma fidelidade a toda a prova. Foi-lhe companheiro assíduo nas viagens, e como depositário de sua filosofia, deixou sobre ele a maior parte das informações que possuímos.
O nome de Apolônio de Tiana se confunde com o de todos os personagens lendários que a imaginação humana vestiu de atributos maravilhosos. Seja qual for o exagero dos fatos a ele atribuídos, é evidente que, ao lado das fábulas, encontra-se um fundo de verdades mais ou menos adulteradas.
Ninguém poderia, com segurança, pôr em dúvida a existência de Apolônio de Tiana. O que é igualmente certo é que ele deve ter feito coisas admiráveis, sem o que ninguém falaria delas. Para que a imperatriz Júlia Domna, esposa de Sétimo Severo, tivesse pedido a Filostrato que escrevesse a sua vida, fora necessário que ele tivesse dado o que falar, pois não é provável que ela tivesse encomendado um romance sobre um homem imaginário ou obscuro.
Que Filostrato tivesse amplificado os fatos, ou que estes lhe tivessem chegado amplificados, é provável e mesmo certo, pelo menos em relação a alguns deles, que estão fora de cogitação. Mas o que não é menos certo é que colheu os dados fundamentais em histórias quase contemporâneas e que deviam ter suficiente notoriedade para merecerem a atenção da imperatriz. Às vezes a dificuldade está em fazer a distinção entre a fábula e a verdade. Neste caso há criaturas que acham mais simples negar tudo.
As personagens dessa natureza são apreciadas muito diversamente. Cada um as julga conforme suas opiniões, suas crenças, e até conforme os seus interesses. Mais do que qualquer outro, Apolônio de Tiana devia alimentar controvérsias, pela época em que viveu e pela natureza de suas faculdades. Atribuíam-lhe, entre outras coisas, o dom de curar, a presciência, a visão a distância, o poder de ler o pensamento, de expulsar os demônios, de transportar-se instantaneamente de um a outro lugar, etc.
Poucos filósofos gozaram em vida de maior popularidade. Seu prestígio ainda era aumentado por sua austeridade de hábitos, mansuetude, simplicidade, desinteresse, caráter benevolente e reputação de sabedoria. O paganismo soltava, então, os seus últimos lampejos, e se debatia contra a invasão do Cristianismo nascente, que quis transformá-lo num deus. Misturando ideias cristãs a ideias pagãs, alguns o tomaram por um santo, e os menos fanáticos nele apenas viram um filósofo. Essa é a opinião mais razoável e o único título que ele aceitou, pois não se considerava filho de Júpiter, como alguns pretendiam que fosse.
Posto que contemporâneo do Cristo, parece que dele não ouviu falar, porque, em sua vida, não fez qualquer alusão ao que se passava na Judeia.
Entre os cristãos que posteriormente o julgaram, uns o declararam louco e impostor; outros, não podendo negar os fatos, pretenderam que operasse prodígios pela assistência do demônio, sem pensar que isso implicava no reconhecimento desses mesmos prodígios e fazia de Satã o rival de Deus, pela dificuldade de distinguir entre os prodígios divinos e os diabólicos. São estas as duas opiniões que prevaleceram na Igreja.
O autor dessa tradução ficou em sábia neutralidade. Não esposou qualquer versão e, a fim de permitir que cada um as apreciasse, indicou com muito escrúpulo todas as fontes que se podem consultar, deixando a cada um a liberdade de, pela comparação dos argumentos pró e contra, tirar a consequência que julgar melhor, limitando-se a dar uma tradução fiel e conscienciosa.
Os fenômenos espíritas, magnéticos e sonambúlicos hoje lançam uma luz nova sobre os fatos atribuídos a esse personagem, demonstrando a possibilidade de certos efeitos até hoje relegados ao domínio fantástico do maravilhoso, e permitindo separar o possível do impossível.
Para começar, o que é o maravilhoso? Responde o ceticismo: É tudo aquilo que, estando fora das leis naturais, é impossível. Depois acrescenta: Se as histórias antigas abundam em fatos desse gênero, é devido ao amor do homem ao maravilhoso. Mas de onde vem esse amor? É o que ele não diz e é o que tentaremos explicar. Isso não será inútil aos nossos interesses.
Aquilo que o homem chama de maravilhoso o transporta pelo pensamento para além dos limites do conhecido e é a inspiração íntima por uma melhor ordem de coisas que o leva a procurar avidamente o que a pode ligá-lo a isso e disso lhe dar uma ideia. Tal aspiração lhe vem da intuição que ele tem, de que essa ordem de coisas deve existir. Não a encontrando na Terra, busca-a na esfera do desconhecido.
Mas não será essa mesma aspiração um indício providencial de que algo existe além da vida corpórea? Ela só é dada ao homem porque os animais, que nada esperam, não buscam o maravilhoso. Intuitivamente o homem compreende que há, fora do mundo visível, uma força da qual faz uma ideia mais ou menos justa, conforme seu desenvolvimento intelectual, e muito naturalmente vê a ação direta dessa força nos fenômenos todos que ele não compreende.
Assim, uma porção de fatos que outrora passavam por maravilhosos, e que hoje são perfeitamente explicados, entraram no domínio das leis naturais. Disso resultou que todos os homens que possuíam faculdades e conhecimentos superiores ao vulgo passaram a ser considerados detentores de uma porção dessa força invisível, ou de possuírem domínio sobre ela. Chamaram-nos de magos ou feiticeiros.
A opinião da Igreja fez prevalecer a ideia de que tal força não poderia provir senão do Espírito do Mal, quando exercida fora de seu seio. Nos tempos da barbárie e da ignorância, ela queimava os supostos magos e feiticeiros. O progresso da Ciência os repôs na Humanidade.
Perguntam os incrédulos: “Onde se encontra o maior número de histórias maravilhosas?” Não é na Antiguidade, entre os povos selvagens, nas classes menos esclarecidas? Isto não prova que elas são um produto da superstição, filha da ignorância? Da ignorância, é incontestável, e por uma razão simples. Os Antigos, que sabiam menos do que nós, não eram menos chocados pelos fenômenos. Conhecendo menos as verdadeiras causas, buscavam causas sobrenaturais para as coisas mais naturais. Com a ajuda da imaginação e secundados pelo medo, por um lado, e, por outro lado, animados pelo gênio poético, teciam contos fantásticos, ampliados pelo gosto da alegoria peculiar aos povos do Oriente. Roubando o fogo do céu, que devia consumi-lo, Prometeu devia passar como um ser sobre-humano, punido por sua temeridade, por ter tripudiado sobre os direitos de Júpiter. Franklin, o moderno Prometeu, é para nós simplesmente um sábio. Montgolfier, elevando-se nos ares, nos tempos mitológicos teria sido tomado por Ícaro. Que teria sido o Sr. Poitevin, elevando-se num cavalo?
Tendo feito uma série de fatos entrarem na ordem natural, a Ciência reduziu muito os fatos maravilhosos. Mas explicou tudo? Conhece ela todas as leis que regem os mundos? Nada mais tem ela a ensinar? Cada dia dá um desmentido a tão orgulhosa pretensão. Não tendo ainda desvendado todos os segredos de Deus, daí resulta que muitos fatos antigos ainda não se acham explicados. Ora, admitindo como possível apenas aquilo que ela compreende, julga mais simples chamá-los de sobrenaturais, fantásticos, isto é, inadmissíveis pela razão. A seus olhos, todos os homens que supostamente os produziram são mitos ou impostores e, ante tal sentença, Apolônio de Tiana não encontraria graça. Ei-lo, assim, condenado pela Igreja, que admite os fatos, como um sequaz de Satã, e pelos cientistas, que os não admitem, como um hábil charlatão.
A lei da gravitação universal abriu uma via nova à Ciência e deu conta de uma porção de fenômenos sobre os quais se haviam erigido teorias absurdas. A lei das afinidades moleculares veio permitir um novo avanço. A descoberta do mundo microscópico lhe abriu novos horizontes. Por sua vez, a eletricidade lhe veio revelar uma nova força insuspeitada. A cada uma dessas descobertas, ela viu serem resolvidas muitas dificuldades, muitos problemas, muitos mistérios incompreendidos ou falsamente interpretados.
Mas quanta coisa ainda resta a esclarecer! Não será possível admitir a descoberta de uma nova lei, de uma nova força que venha lançar a luz sobre pontos ainda obscuros?
Pois bem! É uma nova força que o Espiritismo vem revelar, e essa força é a ação do mundo invisível sobre o visível. Mostrando nessa ação uma lei natural, ele recua mais ainda os limites do maravilhoso e do sobrenatural, porque explica uma porção de coisas que pareciam inexplicáveis, assim como aconteceu com outras, que pareciam inexplicáveis antes da descoberta da eletricidade.
Limita-se o Espiritismo a admitir o mundo invisível como hipótese e meio de explicação? Não, pois seria explicar o desconhecido pelo desconhecido. Ele prova sua existência por fatos patentes, irrefutáveis, como o microscópio provou a existência do mundo dos infinitamente pequenos. Tendo sido demonstrado, portanto, que o mundo invisível nos envolve e que esse mundo é essencialmente inteligente, pois se compõe das almas dos homens que viveram, concebe-se facilmente que possa representar um papel ativo no mundo visível e produza fenômenos de uma ordem particular. São os fenômenos que, não podendo explicar pelas leis conhecidas, a Ciência chama de maravilhosos.
Sendo tais fenômenos uma lei da Natureza, devem ter-se produzido em todos os tempos. Ora, como repousavam na ação de uma força fora da Humanidade, e como todas as religiões têm por princípio a homenagem prestada a essa força, eles serviram de base a todas as religiões. Eis por que os relatos antigos, bem como todas as teogonias, formigam de alusões e alegorias concernentes às relações do mundo invisível com o mundo visível, e que são ininteligíveis se não forem conhecidas tais relações. Querer explicá-los sem isso é querer explicar os fenômenos elétricos sem a eletricidade.
Essa lei é uma chave que abrirá a maior parte dos santuários misteriosos da Antiguidade. Uma vez reconhecida, os historiadores, os arqueólogos, os filósofos verão desenrolar-se um horizonte completamente novo, e a luz brilhará sobre os mais obscuros pontos.
Se essa lei ainda encontra opositores, tem isso de comum com tudo o que é novo. Isso se deve, ainda, ao espírito materialista que domina a nossa época e, em segundo lugar, porque em geral se faz do mundo invisível uma ideia tão falsa, que a incredulidade é uma consequência.
O Espiritismo não só demonstra a sua existência, mas o apresenta sob um aspecto tão lógico que não há lugar para a dúvida de quem quer que se dê ao trabalho de estudá-lo conscienciosamente.
Não pedimos aos cientistas que acreditem, mas como o Espiritismo é uma filosofia que ocupa largo espaço no mundo, mesmo que se tratasse de um sonho, ele merece um exame, pelo menos para se tomar conhecimento do que ele diz. Só uma coisa lhes pedimos: estudá-lo, mas estudá-lo a fundo, para lhe não atribuir aquilo que ele não diz. Depois, então, creiam ou não creiam, que experimentem, ajudados por essa alavanca tomada como simples hipótese, resolver os milhares de problemas históricos, arqueológicos, antropológicos, teológicos, sociológicos, morais, sociais, etc., ante os quais eles têm fracassado, e verão o seu resultado. Pedir-lhes fé seria exigir muito.
Voltemos a Apolônio. Incontestavelmente os Antigos conheciam o magnetismo. Prova disso encontramos em certas pinturas egípcias. Eles conheciam igualmente o sonambulismo e a segunda vista, porque são fenômenos psicológicos naturais; conheciam as várias categorias de Espíritos, que consideravam deuses, bem como suas relações com os homens. Os médiuns curadores, videntes, falantes, auditivos, inspirados, etc., deviam existir entre eles como em nossos dias, como se veem numerosos exemplos entre os árabes. Com o auxílio de tais dados e do conhecimento das propriedades do perispírito, envoltório corporal fluídico dos Espíritos, podemos perfeitamente nos dar conta de vários fatos atribuídos a Apolônio de Tiana, sem recorrer à magia, à feitiçaria, ou à impostura.
Dizemos de vários fatos, porque alguns há cuja impossibilidade o próprio Espiritismo demonstra. É por isso que ele serve para distinguir a verdade do erro. Deixamos aos que tiverem feito um estudo sério e completo dessa ciência o cuidado de fazer a distinção entre o possível e o impossível, o que lhes será fácil.
Encaremos agora Apolônio de outro ponto de vista. Ao lado do médium, que naquele tempo fazia dele um ser quase sobrenatural, nele havia o filósofo, o sábio. Sua filosofia trescalava a suavidade de seus hábitos, de seu caráter e de sua simplicidade em tudo. Pode-se julgá-lo por algumas de suas máximas.
Tendo censurado os lacedomônios degenerados e efeminados, os quais aproveitaram os seus conselhos, escreveu aos éforos:
“Apolônio aos éforos, saúde!
“Os verdadeiros homens não devem cometer faltas, mas só os homens de coração, se as cometem, sabem reconhecê-lo”.
Tendo os lacedomônios recebido do imperador uma carta de censura, vacilavam entre conjurar a sua cólera ou responder com arrogância. Consultaram Apolônio quanto à forma de responder. Ele veio à assembleia e lhes disse apenas estas palavras: “Se Palamédio inventou a escrita, não foi apenas para que se pudesse escrever, mas para que se soubesse quando não se deve escrever.” Interrogando Apolônio, perguntou-lhe o cônsul romano Telesino:
─ Quando vos aproximais do altar, qual a vossa prece?
─ Peço aos deuses que reine a justiça; que as leis sejam respeitadas; que os sábios sejam pobres; que os outros enriqueçam, mas por meios honestos.
─ Quê! Pedindo tantas coisas pensais em ser exaltado?
─ Sem dúvida, porque peço tudo isso numa só palavra, e aproximando-me do altar, digo: “Ó deuses! Dai-me o que me é devido.” Se eu estiver no número dos justos, obterei mais do que pedi. Do contrário, os deuses por-me-ão no número dos maus, punir-me-ão e não poderei fazer censuras aos deuses se, não sendo bom, for castigado.
Conversando com Apolônio sobre a maneira de governar, quando fosse imperador, disse-lhe Vespasiano:
─ Vendo o império aviltado pelos tiranos que vos acabo de citar, quis ouvir o vosso conselho sobre a maneira de erguê-lo na estima dos homens.
─ Um dia, ─ disse Apolônio ─ um dos mais hábeis flautistas mandou seus alunos aos maus tocadores de flauta para lhes ensinar como não se devia tocar. Sabeis agora, Vespasiano, como não se deve reinar. Vossos predecessores vo-lo ensinaram. Reflitamos agora sobre a maneira de bem reinar.
Estando preso em Roma, ao tempo de Domiciano, ele fez uma preleção aos prisioneiros, lembrando-lhes a coragem e a resignação, e lhes disse:
─ Todos os que aqui estamos, achamo-nos presos durante o período a que chamamos vida. Nossa alma, ligada a este corpo perecível, sofre numerosos males, e é escrava de todas as necessidades da condição humana.
Quando estava na prisão, respondendo a um emissário de Domiciano que o induzia a acusar Nerva a fim de obter sua própria liberdade, ele disse:
─ Meu amigo, se fui posto a ferros por haver dito a verdade a Domiciano, o que me acontecerá por ter mentido? O imperador crê que é a franqueza que merece os ferros, mas eu creio que é a mentira.
Numa carta a Eufrates:
─ Perguntei aos ricos se não tinham preocupações.
─ Como não as teríamos? ─ responderam eles.
─ E de onde vêm as vossas preocupações? ─ De nossas riquezas.
─ Eufrates, eu te lamento, pois acabas de enriquecer.
Ao mesmo: “Os homens mais sábios são os mais breves em seus discursos. Se os tagarelas sofressem o que fazem sofrer os outros, não falariam tanto.”
Outra a Críton: “Disse Pitágoras que a Medicina é a mais divina das artes. Se a Medicina é a mais divina das artes, é necessário que o médico se ocupe da alma ao mesmo tempo que do corpo. Como um ser poderia ser são, quando a parte mais importante está doente?”
Outra aos platônicos: “Se oferecem dinheiro a Apolônio e são aparentemente estimáveis, ele não terá dificuldade em aceitar, por pouco que precise. Mas ele jamais aceitará paga pelo que ensina, por mais que necessite.”
Outra a Valério: “Ninguém morre, a não ser aparentemente, como ninguém nasce, a não ser em aparência. Com efeito, a passagem da essência à substância, eis o que se chama nascer. Ao contrário, o que se chama morrer é a passagem da substância à essência”.
Aos sacrificadores de Olímpia: “Os deuses não necessitam de sacrifícios. Que fazer, então, para lhes ser agradável? Se me não engano, é preciso procurar adquirir a divina sabedoria e, tanto quanto possível, prestar serviços aos que o merecem. Eis o de que gostam os deuses. Os próprios ímpios podem fazer sacrifícios”.
Aos efésios do templo de Diana: “Conservastes todos os ritos dos sacrifícios, todo o fausto da realeza. Como banqueteadores e convivas alegres, sois imbatíveis, mas quantas censuras não vos podem ser feitas como vizinhos da deusa noite e dia? Não é de vosso meio que saem todos os trapaceiros, os desordeiros, os mercadores de escravos, todos os homens ímpios e injustos? O templo é um valhacouto de ladrões”.
Aos que se julgam sábios: “Dizei-vos meus discípulos? Então acrescentai que ficais sempre em casa, e que jamais ides às termas; que não matais animais; que não comeis carne; que estais livres de todas as paixões: da inveja, da malignidade, do ódio, da calúnia, do ressentimento; que, enfim, estais no rol dos homens livres. Não fazei como os que, em discursos mentirosos, fazem crer que vivem de um modo, quando vivem de modo totalmente oposto”.
Ao seu irmão Hestieu: “Em toda parte sou olhado como um homem divino; nalguns lugares até me tomam por um deus. Ao contrário, em minha pátria, até agora sou um desconhecido. É de admirar?
Vós mesmos, meus irmãos, bem vejo que ainda não estais convencidos de que eu seja superior a muitos homens pela palavra e pelos hábitos. E como os meus concidadãos e os meus parentes se enganam a meu respeito? Ah! Esse erro me é doloroso. Sei que é belo considerar toda a Terra como sua pátria e todos os homens como seus irmãos e amigos, pois que todos descendem de Deus e são de uma mesma natureza; porque todos têm, igualmente, as mesmas paixões; pois que todos são igualmente homens, quer nascidos gregos, quer bárbaros”.
Estando em Catânia, na Sicília, numa instrução dada aos discípulos, falando do Etna, ele disse: “Escutando-os, sob esta montanha geme encadeado algum gigante, Tifeu ou Enceládio que, em sua longa agonia, vomita todo esse fogo. Concordo que tenham existido gigantes, porque, em diversas paragens, túmulos abertos nos deixam entrever esqueletos que indicam homens de estatura extraordinária, mas não poderia admitir que tivessem entrado em luta contra os deuses. No máximo teriam ultrajado seus templos e suas estátuas. Mas que tenham escalado o Céu e dali expulsado os deuses, é insensato dizer e acreditar. Outra fábula, que parece menos irreverente para com os deuses, e da qual não devemos fazer caso, é que Vulcano trabalhe na forja, nas profundezas do Etna e que aí, incessantemente, faça retinir a bigorna. Em diversos pontos da Terra há outros vulcões e ninguém se lembra de dizer que haja outros tantos gigantes e Vulcanos”.
Certos leitores teriam achado mais interessante que tivéssemos citado os prodígios de Apolônio, comentando-os e os explicando. Mas quisemos, antes de tudo, nele mostrar o filósofo e o sábio, em vez do taumaturgo. Pode-se aceitar ou rejeitar tudo quanto se queira dos fatos maravilhosos a ele atribuídos, mas parece difícil que um homem que diz tais coisas, que professa e pratica tais princípios, seja um saltimbanco, um trapaceiro, um possesso do demônio.
Quanto a prodígios, citaremos apenas um, que prova suficientemente uma das faculdades de que era dotado.
Depois de minuciosa descrição do assassinato de Domiciano, acrescenta Filostrato:
“Enquanto tais fatos se passavam em Roma, Apolônio os via em Éfeso.
“Domiciano foi atacado por Clemente, cerca de meio-dia. No mesmo dia, no mesmo momento, Apolônio dissertava nos jardins, junto aos xistos. De repente baixou um pouco a voz, como se tomado de súbito pavor. Continuou a falar, mas a linguagem não tinha a força ordinária, como quando se fala pensando noutra coisa. Depois calou-se, como quem perde o fio do discurso, lançou para o chão um olhar de espanto, deu três ou quatro passos à frente e exclamou: “Fere o tirano! Fere!” Dir-se-ia que visse não a imagem do fato num espelho, mas o próprio fato em toda a sua realidade.
“Os efésios ─ pois Éfeso em peso ouvia o discurso de Apolônio ─ foram tomados de espanto. Apolônio parou, como um homem que busca ver o desfecho de um acontecimento duvidoso. Enfim exclamou: ‘Tende bom ânimo, efésios. O tirano foi morto hoje. Que digo, hoje? Por Minerva! Acaba de ser morto agora mesmo, quando me interrompi’.
“Os Efésios pensaram que Apolônio houvesse perdido o juízo. Desejavam vivamente que ele tivesse dito a verdade, mas temiam que algum perigo adviesse de tal discurso. ‘Não me admiro’, disse Apolônio, ‘que ainda não me acreditem. A própria Roma inteira ainda não o sabe. Mas eis que o saberá. A notícia se espalha e milhares de cidadãos acreditam. Isto faz pular de alegria o dobro desses homens, e o quádruplo, e o povo inteiro. A notícia chegará até aqui. Podeis adiar, até saberdes do fato, o sacrifício que deveis oferecer aos deuses nesta ocasião. Quanto a mim, vou lhes render graças pelo que vi’.
“Os Efésios permaneceram incrédulos. Em breve, porém, mensageiros trouxeram a boa nova e testemunharam em favor da ciência de Apolônio, porque o assassinato do tirano; o dia em que foi consumado, ao meio-dia; o autor do assassinato que havia encorajado Apolônio, todos estes detalhes eram idênticos aos que os deuses lhe tinham mostrado no dia do seu discurso aos Efésios.”
Naquela época nada mais era preciso para fazê-lo passar por um homem divino. Em nossos dias os cientistas tratá-lo-iam como visionário. Para nós, era dotado da segunda vista, cuja explicação é dada pelo Espiritismo. (Veja-se a teoria do sonambulismo e da dupla vista em O Livro dos Espíritos, nº. 455).
Sua morte apresentou outro prodígio. Uma tarde, tendo entrado no templo de Dictynia, em Linde, na ilha de Creta, a despeito dos cães ferozes que lhe guardavam a entrada e que, em vez de ladrar à sua entrada, vieram acariciá-lo, ele foi barrado pelos guardas do templo, como mago, e acorrentado. Durante a noite ele desapareceu à vista dos guardas, sem deixar traços e sem que lhe encontrassem o corpo. Dizem que então foram ouvidas vozes de moças que cantavam: “Deixai a Terra. Ide para o Céu. Ide!” como para encorajá-lo a elevar-se da Terra para as regiões superiores.
Assim termina Filostrato a descrição da vida de Apolônio:
“Mesmo depois de seu desaparecimento, Apolônio sustentou a imortalidade da alma e ensinou que é correto aquilo que se diz a respeito.
“Havia então em Tiana um certo número de jovens amantes da Filosofia. A maior parte de suas discussões eram acerca da alma. Um deles não podia admitir que ela fosse imortal. Dizia ele:
“─ Eis que há dez meses rogo a Apolônio me revele a verdade sobre a imortalidade da alma, mas ele está tão morto que minhas preces são vãs. Ele não me apareceu, nem mesmo para provar que é imortal.
“Cinco dias depois ele falou do mesmo assunto com os companheiros, depois adormeceu no próprio local da discussão. De repente pulou, como se num acesso de demência. Estava meio adormecido e banhado de suor.
“─ Eu te acredito, gritou ele.
“Os camaradas perguntaram-lhe o que tinha. Respondeu ele:
“─ Vocês não veem o sábio Apolônio? Ele está em nosso meio, escuta a nossa discussão e recita melodiosos cantos sobre a alma.
“─ Onde está ele? ─ perguntaram os outros ─ pois não o vemos, e isso é uma felicidade que preferiríamos a todos os bens da Terra.
“─ Parece que veio só para mim. Ele quer ensinar-me aquilo que eu me recusava a crer. Escutai, pois, escutai os cantos divinos que me faz ouvir: ‘A alma é imortal; não é vossa, mas da Providência. Quando o corpo está esgotado, semelhante a um corredor veloz que transpõe a barreira, a alma se atira e se precipita nos espaços etéreos, tomada de desprezo pela rude e triste escravidão que sofreu. Mas, de que vos importam essas coisas? Conhecê-las-eis quando não mais viverdes. Enquanto entre os vivos, por que tentar penetrar esses mistérios?’
“Tal é o oráculo tão claro, dado por Apolônio sobre o destino da alma. Quis ele que conhecendo a nossa natureza marchássemos com o coração alegre para o fim que nos destinam as Parcas.”
A aparição de Apolônio após a sua morte é tratada como alucinação pela maioria dos comentadores, cristãos e outros, que pretendiam que o jovem tivera a imaginação ferida pelo próprio desejo de vê-lo, o que o levou a pensar tê-lo visto. Entretanto, em todos os tempos, a Igreja admitiu essa espécie de aparição. Ela cita vários exemplos que reconhece como autênticos.
O Espiritismo vem explicar o fenômeno, baseado nas propriedades do perispírito, envoltório fluídico do Espírito que, por uma como que condensação, toma aspecto visível e, como é sabido, pode tornar-se tangível. Sem o conhecimento da lei constitutiva dos Espíritos, esse fenômeno é maravilhoso. Conhecida essa lei, o maravilhoso desaparece e dá lugar a um fenômeno natural.
(Vide em O Livro dos Médiuns a teoria das manifestações visuais, Cap. VI). Admitindo que o jovem tivesse sido joguete de uma ilusão, restaria aos negadores explicarem as palavras que ele atribui a Apolônio, palavras sublimes e opostas às ideias que ele sustentava momentos antes.
O que é que faltava a Apolônio para ser um cristão? Muito pouco, como se vê. Não é agradável a Deus que estabeleçamos um paralelo entre ele e o Cristo. O que prova a incontestável superioridade deste é a divindade de sua missão, é a revolução produzida no mundo inteiro pela doutrina que ele, obscuro, e seus apóstolos, tão obscuros quanto ele, pregaram, enquanto que a de Apolônio morreu com ele.
Seria impiedade apresentá-lo como um rival do Cristo! Mas, se prestarmos atenção a respeito do que disse sobre o culto pagão, ver-se-á que condena as formas supersticiosas e lhes dá terrível golpe, substituindo-as por ideias mais sãs.
Se ele tivesse falado assim no tempo de Sócrates, teria pago com a vida, como este último, aquilo que teriam chamado sua impiedade. Mas, na época em que ele viveu, as crenças pagãs já haviam feito época e ele foi ouvido. Por sua moral preparou os pagãos, em cujo meio viveu, para receberem com menos dificuldade as ideias cristãs, para as quais ele serviu de transição. Julgamo-nos, pois, certos, dizendo que ele serviu de traço de união entre o paganismo e o Cristianismo. Sob tal aspecto, talvez tivesse sido essa a sua missão. Ele podia ser escutado pelos pagãos e não o foi pelos Judeus.
[1] Apolônio de Tiana, sua vida, suas viagens e seus prodígios. Por Filostrato. Nova tradução do texto grego, pelo Sr. Chassang, mestre de conferências na Escola Normal. Um volume in-12 de 500 páginas. Preço, 3,50 francos. Casa Didier Cia., editores. Quai des Augustins, 35, Paris.
“Temos em mão um artigo encantador, sob o título de Conversas Espíritas. o autor, Sr. Cazenove de Pradines, antigo presidente da Sociedade de Agricultura, Ciências e Artes de Agen, recentemente encarregou o Sr. Magen do prazer e do trabalho de o ler em nossa Academia. Inútil dizer o interesse com que a comunicação foi recebida.
“O Sr. Cazenove assim resume as doutrinas da nova seita, tirando-as de O Livro dos Espíritos:
“1º — Os Espíritos de uma ordem elevada geralmente têm curta passagem na Terra.
“2º —Os Espíritos vulgares aqui estão de certo modo sedentários e constituem a massa da população ambiente do mundo invisível. Conservaram mais ou menos os mesmos gostos e inclinações que tinham no invólucro corpóreo. Não podendo satisfazer suas paixões, aproveitam-se dos que a elas se entregam e as excitam.
“3º — Só os Espíritos inferiores podem lamentar as alegrias que se afinam com a impureza de sua natureza.
“4º —Os Espíritos não podem degenerar; podem ficar estacionários, mas não regridem.
“5º —Todos os Espíritos tornar-se-ão perfeitos.
“6º — Os Espíritos imperfeitos procuram apoderar-se e do minar os homens; sentem-se felizes por fazê-los falir.
“7º — Os Espíritos são atraídos na razão de sua simpatia pela natureza moral do meio que os evoca. Os inferiores por vezes tomam nomes venerados, a fim de melhor induzir em erro.
“De acordo com esses dados, o Sr. Cazenove, com a finura e a sagacidade do talento que o caracterizam, compôs duas palestras, nas quais toca os dois extremos do corpo social. Através de um suposto médium, de um lado evoca Espíritos inferiores, personificados na figura de célebre espadachim, por exemplo de Cartouche, e os admite a um colóquio singular, que demonstra a perversidade de semelhante doutrina. Por outro lado, são Espíritos de ordem elevada que entram em relação com os homens da atualidade. O contraste, sem dúvida, é picante e ninguém deu com mais fidelidade, tacto e felicidade, tudo quanto o epicurismo, resumido no Espírito de Horácio e de Lucrécio, encerra de sumário, deplorável e falaz.
“Lamentamos muito não poder dar por inteiro aos nossos leitores o trabalho do Sr. Cazenove. Estamos certos de que aplaudiriam não só a forma impecável e perfeitamente acadêmica do escrito, mas, também, o alto pensamento moral que o domina, pois condena sem tibieza um sistema cheio de seduções e de verdadeiros perigos.
J. SERRET”
Resposta do Sr. Dombre
Fui o primeiro a apreciar as observações finas e delicadas feitas pelo Sr. de Cazenove de Pradines no domínio da Doutrina Espírita. O escrito, sob o título de Conversas Espíritas, que esteve em minhas mãos e do qual se faz menção no vosso apreciado jornal de domingo, 25 de maio, é realmente de uma graça encantadora e não desmente o caráter de sagacidade do talento do autor. É uma flor cujas cores e brilho admiro e cuja delicadeza evito alterar, no momento, pelo contato da menor palavra de crítica indiscreta. Mas o vosso entusiasmo por esses diálogos picantes, mais espirituosos que ofensivos à doutrina, vos levaram a enunciar erros tais que é dever de todo bom espírita lembrar-vos, e principalmente meu.
Para começar, devo dizer que as citações escolhidas aqui e ali em O Livro dos Espíritos são grupadas com arte, a fim de apresentar a doutrina sob aspecto desfavorável, mas todo homem prudente e de boa-fé quererá ler aquele livro por inteiro e meditar.
1º. ─ Falais de doutrinas da nova seita. Permiti vos diga que o Espiritismo nem é uma religião nem uma seita. O Espiritismo é um ensino dado aos homens pelos Espíritos que povoam o espaço e que são apenas as almas dos que viveram. Malgrado nosso, sofremos a sua influência a todo instante. Eles são uma força da Natureza, como a eletricidade é outra, sob diverso ponto de vista. Sua existência e sua presença são constatadas por fatos evidentes e palpáveis.
2º. ─ Dizeis: “A perversidade de semelhante doutrina”. Cuidado! O Espiritismo não é senão o Cristianismo na sua pureza; não tem outra divisa em sua bandeira senão esta: “Amor e Caridade”. Isso, então, é perversidade?
3º. ─ Finalmente, falais de um sistema cheio de seduções e verdadeiros perigos. Sim, está cheio de seduções, de atrativos, porque é belo, grande, justo, consolador e, sob todos os pontos de vista, digno da perfeição de Deus. Onde os seus perigos? Em vão os procuram na prática do Espiritismo, mas aí só encontram consolação e melhoramento moral. Perguntai em Paris, em Lyon, em Bordeaux, em Metz, etc., qual o efeito produzido sobre as massas por essa nova crença. Sobretudo Lyon vos dirá em que fonte os operários sem trabalho encontraram tanta resignação e força para suportarem privações de toda espécie.
Ignoro se as livrarias de Agen estão providas de livros como O que é o Espiritismo?, O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, mas, sinceramente, desejo que o vosso pequeno relatório desperte a atenção dos indiferentes, faça-os procurar essas obras e constituírem um núcleo espírita na capital do nosso departamento. Destinada a regenerar o mundo, esta doutrina marcha a passos de gigante. Agen seria uma das últimas cidades onde o Espiritismo adquiriria direito de cidadania? Considero o vosso pequeno artigo como uma pedra que trazeis ao edifício e, uma vez mais, admiro os meios que Deus utiliza para atingir os seus fins.
Vossa imparcialidade e vosso desejo de, pela discussão, chegar à verdade, me são uma garantia de que admitireis esta carta nas colunas de vosso jornal, como resposta ao vosso artigo de 25 de maio.
Atenciosamente,
DOMBRE (de Marmande)
“O Sr. Dombre nos escreve de Marmande, a respeito de nossas reflexões sobre O Livro dos Espíritos e os diálogos pelo mesmo sugeridos ao honrado Sr. de Cazenove de Pradines. Esse novo ensino, como prefere chamar o Sr. Dombre, não tem aos nossos olhos o mesmo valor e o mesmo prestígio que parece exercer sobre o nosso espirituoso correspondente.”
(Por diversas vezes o Sr. Dombre mandou àquele jornal colaboração em prosa e verso).
“Respeitamos as convicções dos nossos contraditores, mesmo quando repousam em princípios errados, mas consideramos um dever, malgrado a defesa leal e sincera tentada pelo Sr. Dombre, manter a expressão de um sentimento sobre um sistema completamente fora da verdade.
“Consequentemente, a Abeille Agénaise não se poderia dar à propagação de ideias essencialmente perigosas, e o Sr. Dombre compreenderá o pesar que sentimos por não nos associarmos à manifestação de seus desejos.
“J. SERRET”
A. K.
Membros honorários da sociedade de Paris
O Sr. Dombre, de Marmande, que desde quando iniciou no Espiritismo não cessou de ser abertamente seu propagandista e defensor, merecia essa distinção. Anunciando-lhe a sua nominação, nós lhe havíamos pedido licença para publicar sua carta ao Padre F... (Ver artigos do mês anterior). Sua resposta merece citação, pois mostra de que maneira certos adeptos compreendem o seu papel:
“Marmande, 10 de agosto de 1862.
“Sr. Allan Kardec,
“Aceito, reconhecido, o título de membro honorário da Sociedade Espírita de Paris. Para corresponder a uma tal distinção, que representa um compromisso, e ao testemunho de simpatia de parte dos membros dessa Sociedade que houveram por bem conferir-me o título, farei sempre e por toda parte esforços para ajudar, na medida de meus meios, na propagação de uma doutrina que me faz feliz aqui na Terra e que fará, também, em tempo mais remoto, a daqueles que querem ainda conservar sobre os olhos a venda da incredulidade.
“Não vejo qualquer obstáculo ou inconveniente na publicação de minha resposta ao diretor do Abeille Agénaise e de minha carta ao Padre F... Minha carta a este último foi assinada: Um católico. Penso que nenhum dos leitores da Revista irá pensar que o autor tenha querido esconder-se no anonimato, pois o temor do julgamento dos homens não tem ascendência sobre mim. Rio dos que riem, porque estou com a verdade. Todo bom espírita deve, pelo exemplo, dar energia aos adeptos tímidos e lhes ensinar a manter alto e firme o estandarte de sua crença.
“Queira, senhor, apresentar meus sinceros agradecimentos à honrada
Sociedade, da qual me felicito por fazer parte e aceitar, etc.
“DOMBRE, proprietário”
Nada obstante, notamos em todas as posições sociais, entre os funcionários públicos, oficiais de todas as patentes, médicos, etc., muita gente que há apenas um ano não se teriam declarado espíritas e que hoje sentem-se honrados ao fazê-lo. Essa coragem de opinião, que enfrenta a troça, tem como primeira consequência encorajar os tímidos; depois, mostrar que o número dos adeptos é maior do que se supunha; finalmente, impor silêncio aos galhofeiros, surpreendidos ao ouvir, por todos os lados, a palavra Espiritismo pronunciada por pessoas que a gente encara duas vezes antes de fazer troça. Assim, observa-se que os brincalhões, de algum tempo para cá, baixaram a voz. Mais alguns anos como os que decorreram e seu papel estará findo, porque, por todos os lados ver-se-ão vencidos pela opinião.
O Sr. Dombre não só tem a coragem da opinião. Ele tem a da ação. Ele ocupa resolutamente o espaço e enfrenta os seus adversários, provocando-os à discussão, e eis que um jornalista se recusa, revelando a sua fraqueza, e um pregador, ao qual é feito o melhor oferecimento de uma ocasião para fazer valer os seus argumentos e dar uma cajadada na doutrina, vai saindo com a desculpa de que não tem tempo para responder. Não é uma deserção da batalha? Se ele estivesse seguro de si, e se a religião estivesse em jogo, por que não permanecer para vencer o adversário? Em casos tais, abandonar a partida é perdê-la. Um pregador tem uma vantagem imensa sobre um advogado. É que ele fala sem contraditor. Ele pode dizer o que quiser, e ninguém o refuta. Ao que parece, tal é a maneira pela qual os adversários do Espiritismo entendem a controvérsia.
No momento, o Sr. Dombre não foi o único a se manter sereno. Bordeaux, Lyon e muitas outras cidades menos importantes, até mesmo numerosas aldeias nos ofereceram muitos exemplos, que se multiplicam diariamente. Por todaparte onde os adeptos mostraram firmeza e energia, os antagonistas moderaram os seus impulsos.
Até agora essa coragem de opinião e de ação é muito mais encontrada nas classes médias e obscuras que nas elevadas, mas, se um homem popular, justamente estimado e honrado, influente por seus talentos, posição ou classe, abraça a causa do Espiritismo e ergue a sua bandeira abertamente, ousariam taxar de louco aquele cujo talento e gênio foram exaltados? Sua voz não imporá silêncio aos clamores da incredulidade? Então! Esse homem surgirá, vo-lo garanto. À sua voz os dissidentes se unirão, cedendo à influência de sua autoridade moral. Ele também terá sua missão providencial, como a de todos aqueles que ajudam o avanço da Humanidade; missão geral como tantas outras particulares e locais. Estas últimas, embora mais modestas, não deixam de ter um valor relativo, porque preparam os caminhos. É então que o Espiritismo entrará de velas pandas nos costumes e os modificará profundamente, porque em tudo as ideias serão diferentes. Nós semeamos e ele colherá, ou melhor, eles colherão, porque muitos outros seguirão o seu exemplo.
Espíritas, semeai, semeai muito, para que a colheita seja mais abundante e mais fácil. O passado vos garante o futuro!
O que deve ser a história do Espiritismo
Tendo o Espiritismo que marcar presença nos fastos da Humanidade, será interessante para as gerações futuras saber por que meios ter-se-á ele estabelecido. Será, pois, a história das peripécias que tiverem assinalado os seus primeiros passos; das lutas que tiver enfrentado; dos entraves que lhe terão oposto; de sua marcha progressiva no mundo inteiro.
O verdadeiro mérito é modesto e não busca impor-se. É preciso que a Humanidade conheça os nomes dos primeiros pioneiros da obra, daqueles cuja abnegação e devotamento merecerão ser inscritos em seus anais; das cidades que marcharam na vanguarda; dos que sofreram pela causa, a fim de que sejam abençoados; dos que fizeram sofrer, a fim de que orem por eles, para que sejam perdoados. Numa palavra, de seus amigos dedicados e de seus inimigos confessos ou ocultos.
É preciso que a intriga e a ambição não usurpem o lugar que lhes não pertence, nem um reconhecimento e uma honra que não lhes são devidos. Se há Judas, é preciso que eles sejam desmascarados.
Uma parte, que não será a menos interessante, será a das revelações que sucessivamente anunciaram todas as fases dessa era nova e os acontecimentos de toda ordem que as acompanharam.
Aos que acharem a tarefa presunçosa, diremos que não teremos outro mérito senão o de possuir, por nossa posição excepcional, documentos que não estão em poder de ninguém, e que estão ao abrigo de quaisquer eventualidades. Considerando-se que o Espiritismo está sendo chamado, incontestavelmente, a desempenhar um grande papel na História, é importante que esse papel não seja desnaturado, e que seja mostrada a história autêntica, em oposição às histórias apócrifas que o interesse pessoal poderia fabricar.
Quando aparecerá ela? Não será tão cedo, e talvez não em nossa vida, pois não se destina a satisfazer à curiosidade do momento. Se dela falamos por antecipação, é para que ninguém se equivoque quanto ao seu objetivo e seja anotada a nossa intenção. Aliás, o Espiritismo está em seu começo, e muitas outras coisas acontecerão até lá. Então, é preciso esperar que cada um tenha tomado o seu lugar, certo ou errado.
Arsène Gautier - Uma lembrança de um Espírito
Um marujo da marinha de guerra, chamado Arsène Gautier, voltou a Cherbourg há quinze ou dezesseis anos, muito doente, em consequência de febres adquiridas na costa da África. Ele veio à casa de um de meus genros, que sabia ser amigo de seu irmão, capitão da marinha mercante que em poucos dias devia chegar a esse porto. Recebemo-lo bem, e como estivesse doente, minha filha J..., então com quatorze ou quinze anos, pediu-me que o convidasse para se aquecer à nossa lareira e tomar um remédio que lhe não seria dado em seu albergue, enquanto esperava a chegada do irmão.
Minha filha teve para com ele cuidados piedosos. Ele morreu ao chegar à sua casa, e depois ninguém mais pensou no caso. Seu próprio nome, escrito ao topo da comunicação espontânea que recebemos a 8 de março último, por intermédio de minha filha J..., hoje médium, não suscitou sua lembrança. Só o reconhecemos pelos detalhes em que ele entrou. Era um homem de inteligência muito limitada e sua vida tinha sido muito penosa. Privado da afeição dos seus, a tudo se havia resignado. Eis a sua comunicação:
“Arsène Gautier. Vós me esquecestes há muito tempo, minha amiga, e eu não vos perdi de vista desde que deixei a Terra, porque sois a única pessoa, o único Espírito simpático que encontrei nessa terra de dor. Eu vos amei com todas as minhas forças, quando não passáveis de uma criança e não tínheis por mim senão um sentimento de piedade, devido à terrível moléstia que me devia levar.
Eu sou feliz. Essa era a primeira existência que Deus me havia dado. É porque meu Espírito era novo e não conhecia qualquer outro Espírito que me liguei muito a vós. Estou feliz e prestes a voltar à Terra para caminhar na direção do Senhor. Tenho a esperança no coração. O caminho, tão difícil para uns, parece-me largo e fácil. Um bom começo, como minha passada existência, é um grande encorajamento! Deus me ajudará. Orareis por mim, para que minha prova tão próxima me seja tão proveitosa quanto a outra. Não sou adiantado, ah! mas chegarei.”
Não tínhamos a menor ideia do Espírito que dera tal comunicação e nos perguntávamos uma à outra quem poderia ser.
O Espírito respondeu:
“Sou irmão de um ex-capitão de Nantes, que era amigo de um parente vosso.” (Isso nos deu uma pista e o Espírito continuou): “Obrigado por vos lembrardes de mim. Só lamento uma coisa, ao entrever minha próxima prova: É ser separado de vós por algum tempo. Adeus. Amo-vos muito.
OBSERVAÇÃO: Lida na Sociedade de Paris tal comunicação, perguntamos a um dos nossos guias espirituais se era possível que, como ele dizia, fosse aquela sua primeira encarnação. Eis a resposta:
“Sua primeira encarnação na Terra, é possível, mas como Espírito, não. Em suas primeiras encarnações, os Espíritos são quase inconscientes e esse, posto que pouco adiantado, está longe de sua origem. Ele é um desses Espíritos bons, que seguiram o caminho do bem. Seu progresso será rápido, pois apenas terá que se despojar de sua ignorância e não terá que lutar contra as tendências más, como aqueles que tomaram o caminho do mal.”
Pode um Espírito recuar ante a prova?
“Um dia minha filha recebeu a seguinte comunicação espontânea de um Espírito, que começou assinando Euphrosine Bretel. Como o nome não lembrasse ninguém, perguntamos: ─ Quem és? ─ Sou um pobre Espírito sofredor. Necessito de preces. Dirijo-me a ti porque me conheceste quando eu não era mais que uma criança.
“Rebuscamos a memória e admiti lembrar-me que tal nome de família era o de uma criança de nove a dez anos, que se achava no mesmo internato que minha filha e que adoecera pouco depois da chegada desta. Seu pai veio buscá-la de carro, e as meninas guardaram a lembrança daquela doente, toda embrulhada e gemente. Ela morreu em casa. Em desespero, a mãe a seguiu pouco depois. O pai ficou cego de tanto chorar e morreu no mesmo ano. Desde que admitimos haver reconhecido o nome, o Espírito escreveu: ‘Sou eu. Minha última existência deveria ser uma prova terrível, mas recuei covardemente e desde então sofro sempre. Eu te peço que rogues a Deus para que me conceda a graça de uma nova prova. Submeter-me-ei a ela, por mais dura que seja. Sou tão infeliz! Amo a meu pai e a minha mãe e eles me têm horror. Eles fogem de mim e meu castigo é o de buscá-los incessantemente, para me ver repelida. Vim a ti porque minha lembrança não se apagou inteiramente de tua memória, e dos que podem orar por mim, és a única que conhece o Espiritismo. Adeus! Não me esqueças. Em breve nos veremos.’
“Minha filha então lhe perguntou gracejando: ‘Então vou morrer logo?’ A isso o Espírito respondeu: ‘O tempo, que é longo para vós, não tem medida para nós’.
“Verificamos depois que o prenome e o nome de família estavam perfeitamente corretos.
“Agora me pergunto se é possível a um Espírito encarnado recuar ante uma prova começada.”
A essa pergunta respondemos:
Sim, os Espíritos recuam com frequência ante as provas escolhidas e que eles não têm coragem de suportar, e até de enfrentá-las quando chegado o momento. É a causa da maior parte dos suicídios. Eles recuam também quando se desesperam e murmuram, e assim perdem os benefícios da prova.
Eis por que o Espiritismo, dando a conhecer a causa, o objetivo e as consequências das atribulações da vida, dá, ao mesmo tempo, tantas consolações e tanta coragem, e desvia o pensamento de abreviar os dias. Qual a filosofia que produziu tais resultados sobre os homens?
Resposta a uma pergunta mental
“Um de nossos amigos, dos menos crentes, mas com enorme desejo de se esclarecer, perguntou-nos um dia se poderia evocar um Espírito sem o nomear, e se este poderia responder a perguntas mentais, sem que o médium lhes tivesse o menor conhecimento. Respondendo que era possível se o Espírito quisesse, o que nem sempre acontece. Em seguida obteve a seguinte resposta:
“Não posso dizer o que me pedis, porque Deus não o permite.
Contudo posso dizer-vos que sofro: é uma dor geral em todos os membros, o que vos deve surpreender, desde que com a morte o corpo apodrece na Terra; mas nos temos um outro corpo espiritual que não morre. Isso nos faz sofrer tanto quanto se tivéssemos nosso corpo corporal. Sofro, mas espero não sofrer sempre. Como épreciso satisfazer à justiça de Deus, é necessário nos resignarmos nesta vida ou na outra. Eu não me privei bastante na Terra, o que me obriga a reparar o tempo perdido. Não me imiteis, pois vos prepararíeis séculos de tormentos. A eternidade é uma coisa séria e infelizmente nela não se pensa tanto quanto seria preciso. Como élamentável que nos esqueçamos de um assunto tão importante quanto a salvação! Pensai nisso!
Vosso antigo cura,
“Era mesmo o cura que o nosso amigo queria evocar. E estas eram as três perguntas que queria fazer:
“Que pensar da divindade de Jesus Cristo?
“A alma é imortal?
“Que meios empregar para expiar as faltas e evitar o castigo?
“Pelo estilo reconhecemos perfeitamente o nosso cura; a expressão corpo corporal, sobretudo, mostra que é o Espírito de um bom cura provinciano, cuja educação deixou algo a desejar.”
OBSERVAÇÃO: As respostas a perguntas mentais são muito comuns e tanto mais interessantes quanto são para o incrédulo de boa-fé uma das provas mais concludentes da intervenção de uma inteligência oculta. Como, porém, a maioria dos fenômenos espíritas, raramente são obtidas à vontade; ao passo que ocorrem espontaneamente a cada passo. No caso acima, o Espírito prestou-se de boa vontade, o que é muito raro, porque, como é sabido, os Espíritos não gostam de perguntas de curiosidade e de prova. Concordam quando há utilidade e muitas vezes não as julgam como nós. Como não se submetem ao capricho dos homens, é, necessário esperar os fenômenos da sua boa vontade ou da sua possibilidade de os produzir. E necessário, por assim dizer, apreendê-los de passagem e não os provocar. Para tanto são precisas paciência e perseverança; e é por isto que os Espíritos reconhecem os observadores sérios e realmente desejosos de instrução, Eles se preocupam muito pouco com as pessoas superficiais, que pensam que basta perguntar para serem atendidas imediatamente.
Poesias espíritas
A criança e o ateu (Sociedade espírita africana - Médium: Srta. O...)A abóbora e a sensitiva (Fábula)
Qual é o teu regime, ó pobre Sensitiva?
Perguntava uma abóbora à delicada flor,
Para ficar assim, tão lânguida, tão magra?
Digo-te com pesar,
A sensibilidade te perde; tu te estiolas;
Morrerás antes da estação;
Se o sol se oculta no horizonte
Vemos se fecharem teus frágeis folíolos:
Um funesto tremor
Percorre a haste ao leve sopro da brisa:
O menor contato põe-te em crise;
Tua vida não é mais que tormento.
E por que tanto mal e tanta solicitude?
Segue o meu exemplo de doce quietude.
Aquilo que em redor de mim se passa
Não me causa a mais leve emoção;
Sustentar-me é minha única ocupação.
Aliás, que importa ao meu temperamento
O mistério do céu? ─ A luz do dia claro,
A escuridão, calor, frio, umidade
Pra tudo é igual
É certo que de minha forma rotunda,
O observador satírico e perverso
Diz: “A abóbora vegeta!”
Mas o dito não me fere.
Rindo eu rolo em leito bem nutrido,
Ansiosa de assentar, no solo que penetro
Minha barriga e meu tamanho.
Nossos gostos diferem, diz a pequena flor.
Não queres consagrar cuidados e a vida
Senão ao bem-estar material.
Mas eu faço melhor, como vês,
Mesmo abreviando a existência
Dedico-me ao prazer
Do sentimento e da inteligência
E terei sempre vivido o bastante.
DOMBRE (de Marmande)
Dissertações espíritas
O Espiritismo e o Espírito maligno (Grupo de Sainte-Gemme - Médium: Sr. C...)É dever do homem prosternar-se e adorar continuamente aquele que lhe deu os meios de se melhorar como Espírito, e assim atingir a suprema felicidade, que é o objetivo final para o qual deve tender.
Se há profissões que, quase exclusivamente intelectuais, dão ao homem os meios de elevar o nível da inteligência, um perigo, um grande perigo se acha ao lado dessa vantagem. Prova a história de todos os tempos o que é tal perigo e quantos males pode engendrar.
Sois dotados de uma inteligência superior. A tal respeito mais que os vossos irmãos estais próximos da Divindade, e chegais a negar essa própria Divindade ou a imaginá-la exatamente o contrário do que é. Nunca seria demais repetir nem se cansar de dizer: O orgulho é o mais encarniçado inimigo do gênero humano. Tivésseis mil bocas e todas deveriam repeti-lo incessantemente.
Deus vos criou a todos simples e ignorantes[1]. Tratai de avançar em passo tão seguro quanto possível. Isto depende de vós, pois jamais Deus recusa a graça ao que lhe pede de boa-fé.
Todos os estados podem igualmente vos conduzir ao objetivo desejado, se vos conduzirdes conforme o caminho da justiça e se não dobrardes a vossa consciência à vontade dos caprichos. Nada obstante, há estados nos quais é mais difícil progredir que em outros. Assim, Deus levará em conta aqueles que, tendo aceito como prova uma posição ambígua, tiverem percorrido sem tropeços tal via escorregadia ou, pelo menos, tiverem feito todos os esforços humanamente possíveis para se erguerem.
É aí que se faz necessária uma fé sincera, uma força pouco comum para resistir ao arrastamento para fora da linha de justiça, mas é também aí que se pode fazer um bem imenso aos irmãos infelizes. Ah! Existe um grande mérito naquele que toca o lodaçal, sem que suas vestes e ele próprio se enlameiem. É necessário que uma chama muito pura brilhe em si. Mas, também, que recompensa não lhe é reservada ao deixar a vida terrena![2]
Que aqueles que se acham em semelhantes posições meditem bem estas palavras; que se penetrem bem do espírito que as mesmas encerram, e neles operarse-á uma revolução benéfica que fará com que os suaves impulsos do coração substituam as pressões do egoísmo.
Quem transformará esses homens em homens novos, como indaga o Evangelho? E para realizar esse grande milagre, o que se faz necessário?
É preciso que eles queiram reportar seu pensamento àquilo a que estão destinados a ser depois da morte.
Eles estão todos convencidos de que o amanhã pode não existir, mas, aterrorizados pelo quadro sombrio e desolador das penas eternas, nas quais, por intuição, se recusam a acreditar, abandonam-se à corrente atual da vida; deixam-se arrastar por essa cupidez febril que os leva a acumular sempre, por todos os meios, lícitos ou não; arruínam sem piedade um pobre pai de família e prodigalizam ao vício somas que bastariam para uma cidade viver alguns dias.
Eles desviam os olhos do momento fatal. Ah! Se pudessem encará-lo de frente e com sangue frio, como mudariam de conduta! Como veríamos apressados em devolver ao legítimo dono esse pedaço de pão negro que tiveram a crueldade de roubar para aumentarem, ao preço de uma injustiça, uma fortuna feita de injustiças acumuladas!
O que é preciso para isso? É preciso que brilhe a luz espírita. É preciso se pudesse dizer, como um grande general dizia de uma grande nação: O Espiritismo é como o Sol. Cega quem não o vê! Os homens que se dizem e que se julgam cristãos e que repelem o Espiritismo são perfeitos cegos.
Qual a missão da doutrina, semeada atualmente no mundo pela mão onipotente do Criador? É a de conduzir os incrédulos à fé, os desesperados à esperança, os egoístas à caridade. Eles se dizem cristãos e anatematizam a doutrina de Jesus
Cristo. É verdade que dizem que é o Espírito Maligno que, para melhor se disfarçar, vem pregar tal doutrina neste mundo. Cegos infelizes! Pobres doentes! Que Deus, em sua bondade inesgotável, se digne fazer cessar a vossa cegueira e pôr um termo aos males que vos obsidiam!
Quem vos disse que era o Espírito do Mal? Quem? Vós nada sabeis acerca disto. Pedistes a Deus que vos esclarecesse sobre este assunto? Não, ou, se o fizestes, foi com uma ideia preconcebida. O Espírito do Mal! Sabeis quem vos disse que era o Espírito do Mal? Foi o orgulho, foi o próprio Espírito do Mal que ─ coisa revoltante! ─ vos leva a condenar o Espírito de Deus, representado pelos bons Espíritos que são enviados para regenerar o mundo!
Ao menos examinai a coisa e, conforme a regra estabelecida, condenai ou absolvei. Ah! Se ao menos quisésseis lançar um golpe de vista sobre os resultados inevitáveis que o triunfo do Espiritismo deve determinar! Se quisésseis ver os homens se considerando como irmãos, convencidos todos de que, de um momento para o outro, Deus lhes pedirá contas da maneira pela qual desempenharam a missão que lhes havia sido confiada! Se quisésseis ver em toda parte a caridade substituindo o egoísmo e o trabalho tomando o lugar da preguiça, pois sabeis que o homem nasceu para o trabalho. Deus fez do trabalho uma obrigação a que o homem não pode subtrair-se sem infringir as leis divinas.
Se quisésseis ver de um lado esses infelizes que dizem: Danados neste mundo e no outro, sejamos criminosos e gozemos, e do outro lado esses homens de ferro, esses açambarcadores da fortuna de todos, que dizem: A alma é uma palavra. Deus não existe. Se nada resta de nós após a morte, gozemos a vida. O mundo é composto de exploradores e de explorados. Prefiro estar com os primeiros a estar com os últimos. Depois de mim, o dilúvio. Se lançásseis o olhar sobre esses dois homens que personificam a pilhagem, a pilhagem da boa companhia e a que conduz à prisão; se os vísseis transformados pela crença na imortalidade que lhes deu o Espiritismo, ousaríeis dizer que foi pelo Espírito do Mal?
Vejo o desdém em vossos lábios e vos escuto: Nós é que pregamos a imortalidade e temos crédito por isso. Terão sempre mais confiança em nós do que nesses sonhadores ocos que, se não são trapaceiros, sonharam que os mortos saíam de seus túmulos para se comunicarem com eles. A isso sempre a mesma resposta: Examinai, e se, convencidos de boa-fé, o que não faltará se fordes sinceros, em vez de maldizer, bendireis, o que deve estar muito mais nas vossas atribuições, conforme a lei de Deus.
A lei de Deus! Em vossa opinião, sois os únicos depositários dela e vos admirais que outros tomem uma iniciativa que, segundo pensais, vos pertence exclusivamente. Ora! Escutai o que os Espíritos enviados por Deus têm a vos dizer:
“Vós que levais a sério o vosso ministério, sereis abençoados, porque tereis realizado todas as obras, não só determinadas, mas aconselhadas pelo divino Mestre. E vós que considerastes o sacerdócio como um objetivo humano, não sereis malditos, embora maldizendo os outros, mas Deus vos reserva uma punição mais justa. Dia virá em que sereis obrigados a vos explicardes publicamente sobre os fenômenos espíritas, e esse dia não está longe. Então vos encontrareis na necessidade de julgar, porque vos erigistes em tribunal. Julgar a quem? O próprio Deus, pois nada acontece sem sua permissão.
“Vede onde vos conduziu o Espírito do Mal, isto é, o orgulho! Em vez de vos inclinardes e orar, resistis contra a vontade do único que tem o direito de dizer: Eu quero. Vós, no entanto, dizeis que o demônio é que o diz: Eu quero!
“E agora, se persistirdes em não crer senão nas manifestações dos maus Espíritos, lembrai-vos das palavras do Mestre, que foi acusado de expulsar os demônios em nome de Belzebu: “Todo reino dividido contra si próprio será destruído.”
[1] Essa preposição, relativa ao estado primitivo das almas, pela primeira vez formulada em O Livro dos Espíritos, é hoje repetida por toda parte nas comunicações. Ela tem, assim, a sua consagração, tanto nessa concordância quanto na lógica, porque nenhum outro princípio responderia melhor à justiça de Deus. Dando a todos os homens o mesmo ponto de partida, deu a todos a mesma tarefa a desempenhar para atingir o fim. Ninguém é privilegiado pela Natureza. Como, porém, todos têm o livre-arbítrio, uns progridem mais rapidamente que outros. Tal princípio da justiça é inconciliável com a doutrina que admite a criação da alma ao mesmo tempo que o corpo. Ele comporta em si mesmo a pluralidade das existências, porque se a alma é anterior ao corpo, é que ela já viveu.
[2] Admiram-se de que Espíritos possam escolher uma reencarnação num desses meios onde se acham em contato incessante com a corrupção. Entre os que se acham em tais posições ínfimas da Sociedade, uns as escolheram por gosto, e para poderem satisfazer inclinações ignóbeis; outros, por missão e dever, a fim de tentarem tirar os seus irmãos do atoleiro e para terem mais mérito lutando, eles próprios, contra os arrastamentos perniciosos. Sua recompensa será proporcional às dificuldades vencidas. É o mesmo caso, entre nós, do operário que é pago em proporção ao perigo a que se expõe no exercício da profissão.
O corvo e a raposa (Sociedade espírita de Paris, 8 de agosto de 1862 - Médium: Sr. Leymarie)
De onde vem isso? A causa desse problema é quase sempre múltipla. A primeira, sem contestação, é o orgulho que os cega quanto à infalibilidade de seu próprio mérito, que julgam superior ao dos demais. Assim, sem dificuldade o tomam como modelo do senso comum. A segunda é devida a uma falta de senso, que lhes não permite vejam o lado certo e o errado das coisas, mas nisto ainda está o orgulho, que oblitera o julgamento, porque, sem orgulho, desconfiariam de si mesmos e se aconselhariam com os que têm mais experiência.
Acreditai, ainda, que os maus Espíritos não estão alheios ao caso. Eles gostam de mistificar e de fazer armadilhas. Quem nelas cairá mais facilmente do que os orgulhosos que são adulados? O orgulho é para eles a falta de couraça de uns, assim como a cupidez é de outros. Eles sabem habilmente disso tirar partido, mas não deixam de dirigir-se aos que, do ponto de vista moral, são mais fortes.
Quereis subtrair-vos à influência dos maus Espíritos? Subi, subi tão alto em virtude que eles não vos possam atingir, e então, vós é que sereis temidos por eles. Mas, se vos deixardes arrastar pela ponta da corda, eles subirão nela para vos forçar a descida; chamar-vos-ão com voz melosa, elogiarão vossa plumagem, e, a exemplo do corvo, deixareis cair o queijo.
SONNET
Estilo de boas comunicações (Sociedade espírita de Paris, 8 de agosto de 1862 - Médium: Sr. Leymarie)
A exemplo de seu Mestre, os discípulos do Cristo haviam adquirido esse profundo saber de bem falar, com sobriedade e concisão, e seu discurso, como o do Mestre, era marcado por essa delicadeza, por essa profundeza que em nossos dias, numa época em que tudo mente ao nosso redor, ainda fazem as grandes vozes do Cristo e dos apóstolos, modelos inimitáveis de concisão e de precisão.
Mas a verdade desceu do alto. Como os apóstolos dos primeiros dias da era cristã, os Espíritos superiores vêm ensinar e dirigir.
O livro dos Espíritos é toda uma revolução, porque é conciso e sóbrio: poucas palavras, muita coisa; nada de flores de retórica; nada de imagens, mas apenas pensamentos grandes e fortes, que consolam e fortalecem. É por isso que ele agrada, e agrada porque é facilmente compreendido. Eis o cunho da superioridade dos Espíritos que o ditaram.
Por que há tantas comunicações vindas de Espíritos que se dizem superiores, refertas de insensatez, de frases inchadas e floridas; uma página para nada dizer? Tende certeza de que não são Espíritos superiores, mas pseudossábios, que julgam produzir efeito, substituindo por palavras o vazio das ideias; a profundeza do pensamento pela obscuridade. Eles não podem seduzir senão os cérebros ocos como os seus, que tomam o ouropel pelo ouro puro e julgam a beleza da mulher pelo brilho dos vestidos.
Desconfiai, pois, dos Espíritos verbosos, de linguagem empolada e confusa que exige tratos à bola para compreender. Reconhecei a verdadeira superioridade pelo estilo conciso, claro e inteligível sem esforço de imaginação. Não meçais a importância das comunicações por sua extensão, mas pela soma de ideias que encerram em pequeno espaço. Para ter o tipo da superioridade real, contai as palavras e as ideias ─ refiro-me às ideias justas, sadias e lógicas ─ e a comparação vos dará a exata medida.
BARBARET
(Espírito familiar)
A Razão e o sobrenatural (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sra. Didier)
A palavra sobrenatural, na ciência nova que estudais, é palavra convencional. Ela existe para nada exprimir. Com efeito, o que essa palavra significa? Fora da Natureza; além do que é conhecido por nós.
Não há nada mais insensato e absurdo do que aplicá-la a tudo quanto está fora de nós. Para o homem que pensa, a palavra sobrenatural não é definitiva. Ela é vaga; ela faz pressentir.
É bem conhecida a frase banal do incrédulo por ignorância: “É sobrenatural. Ora, a razão, etc. etc.” Que é a razão? Ah! Quando a Natureza, alargando-se e agindo dominadora, nos mostra tesouros desconhecidos, a razão, neste sentido, se torna irracional e absurda, pois persiste, a despeito dos fatos. Ora, se há um fato, é que a Natureza o permite. A Natureza tem para nós manifestações sublimes, certamente, mas muito restritas, se entrarmos no domínio do desconhecido. Ah! Quereis escavar a Natureza; conhecer a causa das coisas, causa rerum, e julgais desnecessário pôr de lado vossa razão banal? Estais brincando, senhores. Que é a razão humana senão a maneira de pensar do vosso mundo? Correis de planeta a planeta e pensais que a razão vos deve acompanhar? Não, senhores. A única razão que deveis ter em meio a todos esses fenômenos é o sangue frio e a observação a partir desse ponto de vista, e não do ponto de vista da incredulidade.
Ultimamente abordamos questões muito sérias, como vos lembrais, mas, no meio do que dizíamos, não concluímos que todo mal vem dos homens. Depois de muitas lutas e discussões, também chegam os bons pensamentos, uma nova fé e esperanças novas. O Espiritismo, como eu vos disse ultimamente, é a luz que deve iluminar, de agora em diante, toda inteligência votada ao progresso.
A prece será o único dogma e a única prática do Espiritismo, isto é, a harmonia e a simplicidade. A arte será nova, porque fecundada pelas ideias novas. Pensai que toda obra inspirada por uma ideia filosófico-religiosa é sempre manifestação poderosa e sã, e o Cristo será sempre a Humanidade, mas não a Humanidade sofredora: será a Humanidade triunfante.
LAMENNAIS
ALLAN KARDEC
Novembro
Viagem espírita em 1862O relato dessa viagem, que compreende principalmente as instruções por nós dadas nos vários grupos, é muito extenso para ser publicado na Revista, pois absorveria quase dois números. Editaremos uma separata, do mesmo formato da Revista, a fim de ser a ela ser anexada, caso seja necessário[1].
Em nosso percurso fomos visitar os possessos de Morzine, na Saboia, e ali também recolhemos importantes observações, muito instrutivas, sobre as causas e o modo da obsessão em todos os graus, corroboradas por casos idênticos e isolados vistos em outras localidades e sobre os meios de combate. Isso será objeto de um artigo especial e extenso que pretendíamos publicar neste número, mas, como o tempo não nos permitiu terminá-lo, adiamo-lo para o próximo número. Aliás ele só terá a ganhar, porque feito com menos precipitação. Além disso, vários fatos recentes vieram esclarecer o assunto, abrindo um horizonte novo à patologia.
O artigo responderá a todos os pedidos de esclarecimentos que frequentemente nos fazem em casos análogos.
Parece-nos indicado aproveitar esta circunstância para retificar uma opinião que se nos afigurou muito generalizada.
Várias pessoas, principalmente na província, tinham pensado que o custo dessas viagens corria por conta da Sociedade de Paris. Tivemos que explicar esse erro, sempre que se apresentou. Aos que pudessem ainda pensar assim, lembramos o que foi dito em outra ocasião (número de junho de 1862), que a Sociedade se limita a cobrir as despesas correntes e não possui reservas. Para que pudesse acumular recursos, ela teria que visar a quantidade. É o que ela não faz, nem quer fazer, pois seu objetivo não é a especulação, e a quantidade não agrega importância aos seus trabalhos. Sua influência reside na moral e no caráter de suas reuniões, que dá aos estranhos a ideia de uma assembleia grave e séria. É esse o seu mais poderoso meio de propaganda. Assim, não poderia ela prover semelhante despesa.
Os gastos de viagem, bem como todos os que são necessários para custeio de nossas relações no Espiritismo, são cobertos por nossos recursos pessoais e nossas economias, acrescidos do produto de nossas obras, sem o que ser-nos-ia impossível enfrentar todos os encargos consequentes da obra que empreendemos. Digo isso sem vaidade, mas unicamente em homenagem à verdade e para esclarecimento dos que imaginam que entesouramos.
[1] Brochura grande in-8º, formato e tipo da Revista. Preço: 1 franco. Porte franco para toda a França. (No prelo).
Aos nossos correspondentes
Temos esperança de que chegará o tempo em que poderemos ter uma colaboração permanente e assídua, a fim de que tudo possa marchar bem. Os Espíritos no-lo prometem. Enquanto esperamos, não há alternativa: é preciso retardar a correspondência, ou os outros trabalhos que aumentam, à medida que cresce a doutrina.
Os mistérios da torre de São Miguel, em Bordeaux
Entre essas múmias, uma em particular chama a atenção. É a de um homem cujas contrações do corpo, do rosto e dos braços, levados à boca, não deixam dúvida quanto ao gênero de morte. É evidente que ele foi enterrado vivo e morreu nas convulsões de terrível agonia.
Um novo jornal de Bordeaux publica um romance-folhetim, sob o título de Mistérios da torre de São Miguel. Só conhecemos a obra de nome e pelos cartazes pregados nos muros da cidade, representando o subterrâneo da torre. Assim, não sabemos com que espírito foi concebido, nem a fonte onde o autor coligiu os fatos que descreve. O que vamos relatar, ao menos tem o mérito de não ser fruto da imaginação humana, pois vem diretamente do além-túmulo, o que talvez faça rir o autor em questão.
Como quer que seja, cremos que o relato não é um episódio dos menos chocantes dos dramas passados naquele lugar. Será lido pelos espíritas com tanto mais interesse quanto encerra um profundo ensinamento.
É a história do homem enterrado vivo e de duas outras pessoas ligadas ao caso, obtida numa série de evocações feitas na Sociedade Espírita de Saint-Jean d’Angély, em agosto último, e que nos contaram quando por lá passamos.
No que concerne à autenticidade dos fatos, falaremos na observação que fecha este artigo
(SAINT-JEAN D’ANGÉLY, 9 DE AGOSTO DE 1862) (MÉDIUM: SR. DEL..., PELA TIPTOLOGIA)
2. Evocação. (O Espírito manifesta a sua presença).
3. ─ Poderíeis dizer o vosso nome, quando animáveis o corpo de que falamos? ─ Guillaume Remone.
4. ─ Vossa morte foi uma expiação ou uma prova escolhida a fim de progredir? ─ Meu Deus! Por que, na tua bondade, seguir a tua sagrada justiça? Sabeis que a expiação é sempre obrigatória, e que quem cometeu um crime não a evita. Eu estava nesse caso, e é tudo o que tenho a dizer. Após muito sofrimento, cheguei a reconhecer meus erros e experimento o arrependimento necessário para me achar em graça ante o Eterno.
5. ─ Podeis dizer qual o vosso crime? ─ Eu havia assassinado minha mulher em seu leito.
(10 DE AGOSTO ─ MÉDIUM: SRA. GUÉRIN, PELA PSICOGRAFIA)
6. ─ Quando, antes da reencarnação, escolhestes o gênero de provas, sabíeis que seríeis enterrado vivo? ─ Não. Apenas sabia que devia cometer um crime odioso, que encheria minha vida de remorsos causticantes e que essa vida terminaria em dores atrozes. Em breve reencarnarei. Deus teve piedade da minha dor e do meu arrependimento. OBSERVAÇÃO: A frase “sabia que devia cometer um crime” é explicada nas perguntas 30 e 31.
7. ─ A justiça perseguiu alguém por ocasião da morte de vossa esposa? ─ Não. Acreditaram numa morte súbita. Eu a tinha sufocado.
8. ─ Que motivo vos levou a esse ato criminoso? ─ O ciúme.
9. ─ Foi por engano que vos enterraram vivo? ─ Sim.
10. ─ Tendes lembrança dos instantes da morte? ─ É algo de horrível, impossível de descrever. Imaginai estar numa cova, com dez pés de terra em cima, querer respirar e faltar o ar, querer gritar: “Estou vivo!” e sentir a voz abafada; ver-se morrer e não poder pedir socorro; sentir-se cheio de vida e riscado do rol dos vivos; ter sede e não poder saciá-la; sentir as dores da fome e não poder pará-la; numa palavra, morrer numa raiva de danado.
11. ─ Naquele momento supremo pensastes que aquele era o começo de vossa punição? ─ Nada pensei. Morri enraivecido, batendo nas paredes do caixão e querendo sair e viver a todo custo. OBSERVAÇÃO: Esta resposta é lógica e se justifica pelas contorções nas quais se observa, examinando-se o cadáver, em que condições o indivíduo deve ter morrido.
12. ─ Ao se desprender, vosso Espírito viu o corpo de Guillaume Remone? ─ Logo depois da morte eu me via ainda na Terra.
13. ─ Quanto tempo ficastes nesse estado, isto é, com o Espírito ligado ao corpo, mas não o animando? ─ Aproximadamente quinze a dezoito dias.
14. ─ Logo que deixastes vosso corpo, em que lugar vos vistes? ─ Vi-me cercado por uma porção de Espíritos, como eu cheios de dor, não ousando levantar para Deus seus corações ainda ligados à Terra e desesperançados de receber o perdão.
OBSERVAÇÃO: Ligado ao próprio corpo e sofrendo ainda as torturas dos últimos instantes, pois se achava entre Espíritos sofredores, sem esperança de perdão, não é o inferno com o choro e ranger de dentes? Será necessário construir um forno com chamas e tridentes? Como é sabido, a crença na perpetuidade dos sofrimentos é um dos castigos infligidos aos Espíritos culpados. Tal estado dura enquanto os Espíritos não se arrependem, e duraria para sempre se nunca se arrependessem, pois Deus só perdoa o pecador arrependido. Desde que o arrependimento lhe entre no coração, um raio de esperança deixar-lhe-á entrever a possibilidade de um termo aos seus males. Mas não basta o simples arrependimento. Deus quer a expiação e a reparação, e é pelas reencarnações sucessivas que Deus dá aos Espíritos imperfeitos a possibilidade de melhora. Na erraticidade eles tomam resoluções que tentam executar na vida corpórea. É assim que, a cada existência, deixando algumas impurezas, gradativamente se aperfeiçoam e dão um passo à frente para a felicidade eterna. Jamais lhes é fechada a porta da felicidade, que atingem num tempo mais ou menos longo, conforme a vontade e o trabalho que fizerem sobre si mesmos para merecêla. Não se pode admitir a onipotência de Deus sem a presciência. Assim sendo, pergunta-se por que Deus, ao criar uma alma, sabendo que deveria falir sem poder erguer-se, tirou-a do nada para votá-la a tormentos eternos? Ele quis, então, criar almas infelizes? Tal proposição é inconciliável com a ideia de bondade infinita, que é um de seus atributos essenciais. De duas uma: ou ele sabia, ou não sabia. Se não sabia, não é onipotente. Se sabia, não é justo nem bom. Ora, tirar uma parcela do infinito de seus atributos é negar a Divindade. Ao contrário, tudo se concilia com a possibilidade de deixar o Espírito reparar suas faltas. Deus sabia que, em virtude de seu livre-arbítrio, o Espírito faliria, mas também sabia que se ergueria. Ele sabia que, tomando o mau caminho, retardaria sua chegada à meta, mas que, mais cedo ou mais tarde, chegaria. É para fazê-lo chegar mais depressa que Deus multiplica os avisos sobre o caminho. Se ele não os escuta, é mais culpado, e merece o prolongamento das provas. Qual a mais racional das duas doutrinas?
A. K.
(11 DE AGOSTO)
15. ─ Nossas perguntas vos seriam desagradáveis? ─ Isso me lembra pungentes recordações, mas agora que entrei em graça, pelo arrependimento, sinto-me feliz por dar minha vida como exemplo, a fim de premunir os irmãos contra as paixões que poderiam arrastá-los, como a mim.
Remédio dado pelos espíritos
O remédio de que se trata foi dado nas circunstâncias seguintes, à senhorita Ermance Dufaux[1], a qual nos remeteu a fórmula, autorizando a sua publicação, em favor dos que dela pudessem necessitar. Um de seus parentes, falecido há muito tempo, tinha trazido da América a receita de um unguento ou pomada, de maravilhosa eficácia para toda sorte de chagas ou feridas. Com sua morte, perdeu-se a receita, que não tinha sido dada a ninguém.
A senhorita Dufaux estava afetada de um mal na perna, muito grave e muito antigo, e que havia resistido a todo tratamento. Cansada do emprego inútil de tantos remédios, um dia perguntou a seu Espírito protetor se para ela não haveria cura possível.
─ Sim, ─ respondeu ele. ─ Serve-te da pomada de teu tio.
─ Mas vós sabeis que a receita se perdeu.
─ Eu vou te dar ─ disse o Espírito. Depois ditou o seguinte:
“Açafrão - 20 centigramas
“Cominho - 4 gramas
“Cera amarela - 31 a 32 gramas
“Óleo de amêndoas doces - uma colher
“Derreter a cera e depois juntar o óleo de amêndoas doces; juntar o açafrão e o cominho num saquinho de pano fino e ferver durante dez minutos em fogo brando. Espalhar a pomada num pedaço de pano e cobrir com ele a parte doente. Renovar diariamente o tratamento.
“Antes da aplicação do unguento é preciso lavar a ferida com água de malva ou outra loção refrescante”
Tendo seguido a prescrição, em pouco tempo a perna da senhorita Dufaux estava cicatrizada, a pele restaurada e, desde então, não sobreveio qualquer acidente.
Também sua lavadeira foi, felizmente, curada de mal idêntico.
Um operário se havia ferido com um fragmento de foice, que penetrou profundamente na ferida, produzindo inchação e supuração. Falavam em amputarlhe a perna. Com o emprego daquela pomada, a inchação desapareceu, parou a supuração e o pedaço de ferro saiu da ferida. Em oito dias aquele homem recuperouse e pôde voltar ao trabalho.
Aplicada sobre furúnculos, abscessos, panarícios, ela faz supurar em pouco tempo e cicatrizar. Atua tirando da chaga os princípios mórbidos, saneando-a e provocando, se for o caso, a saída de corpos estranhos, como esquírolas de ossos, de madeira, etc.
Parece que é também eficaz para os dartrosos, e em geral para todas as afecções da pele.
Sua composição, como se vê, é muito simples, fácil e, em todo caso, inofensiva. Pode-se, pois, experimentar sem receio.
[1] Médium que escreveu a história de Joana d’Arc
Poesias Espíritas (Bordeaux - Médium: Sra. E. Collignon) - Meu testamento
Quero deixar iguais
Fábulas e poesias diversas
Por um espírito batedorO monólogo do burrico (Fábula)
O médium e o Dr. Imbroglio
A prancheta anda só: é patente, tangível. ─ Bobagem! Vou provar, escrevendo um in-fólio Que isso é batota! Isso é impossível.
Faremos uma observação sobre a qualificação dada ao Espírito que ditou as poesias a que nos referimos acima.
Com razão, os Espíritos sérios repelem o qualificativo de batedores, pois esse título convém apenas àqueles que poderiam ser chamados batedores profissionais, Espíritos levianos ou malévolos que se servem de pancadas para divertir ou atormentar, e que não se preocupam com as coisas sérias. Mas a tiptologia é, como qualquer outro, um meio para comunicações inteligentes e dela se servem os Espíritos mais adiantados, em falta de outro meio, posto prefiram a escrita, porque responde melhor à rapidez do pensamento. É certo dizer que nesse caso não são eles que batem. Eles se limitam a transmitir, deixando a execução material a Espíritos subalternos, como um estatuário deixa ao prático o trabalho de talhar o mármore.
Senhor,
Sou sensível à vossa carta. Aceito com satisfação o título que me confere a Sociedade Espírita de Bordeaux. Aceito-o como recompensa por meus fracos trabalhos, por minha profunda convicção e ─ por que não dizê-lo? ─ pelas amarguras passadas.
Ainda hoje a nova fé é muito mal compreendida. Os cientistas se insurgem; os ignorantes os acompanham; o clero grita que é o demônio, e alguns convictos guardam silêncio. Neste século de materialismo, de apetites grosseiros, de guerras fratricidas, de apego cego e imoderado aos reinos deste mundo, Deus intervém: os mortos falam, nos encorajam, nos arrastam. Por isso cada um de nós deve, sem medo, inscrever seu nome na bandeira da causa santa.
Somos sempre os soldados do Cristo. Proclamamos a grandeza, a imortalidade da alma, os laços palpáveis que ligam os vivos aos mortos; pregamos o amor e a caridade. Que temos a temer dos homens? Ser fraco é ser culpado. Eis por que, senhor, na medida de minhas forças, aceitei a tarefa que Deus e minha consciência me impõem. Ainda uma vez, obrigado por me haverdes admitido entre vós. Sede meu intérprete junto a todos os irmãos de Bordeaux e recebei a certeza dos meus mais afetuosos sentimentos.
Vice-Presidente do Tribunal Civil
Dissertações e ensinos espíritas
O duelo (Bordeaux, 21 de novembro de 1861 - Médium: Sr. Guipon)Isto posto, é necessário saibais, de uma vez por todas, que o estado de missão, progressão ou punição deve, sob pena de recomeçar a prova, chegar ao termo fixado pelos desígnios da suprema justiça.
Adiantar por si mesmo, ou por provocação, o instante fixado por Deus para a entrada no mundo dos Espíritos é, pois, enorme crime.
O duelo é ainda um crime maior, porque não só é um suicídio, mas, além disso, um assassinato premeditado.
Na verdade, pensais que o provocado e o provocador não se suicidem moralmente ao se exporem voluntariamente aos golpes mortais do adversário? Credes que não sejam ambos assassinos, no momento em que procuram mutuamente tirar a vida por eles escolhida ou imposta por Deus como expiação ou como prova?
Sim, eu te digo, meu amigo, duas vezes criminosos aos olhos de Deus são os duelistas; duas vezes terrível será a punição, porque nenhuma escusa será admitida, porque por eles tudo foi calculado friamente e premeditado.
Leio em teu coração, meu filho, porque também foste um pobre transviado, e eis minha resposta.
Para não sucumbir a essa terrível tentação só necessitais de humildade, sinceridade e caridade para com vosso irmão em Deus. Por outro lado, só sucumbis pelo orgulho e pela ostentação.
2º. ─ CONSEQUÊNCIAS ESPIRITUAIS
Aquele que, por caridade para com o próximo, lhe houver provado seu amor fraterno, na outra vida terá a santa proteção e o concurso poderoso da gloriosa mãe do Cristo, pois ela ama e abençoa os que cumprem os mandamentos de Deus; os que seguem e praticam os ensinos de seu Filho.
Aquele que, a despeito dos ultrajes, tiver respeitado a existência de seu irmão e a sua própria, ao entrar no mundo etéreo, encontrará milhões de legiões de bons e puros Espíritos que virão, não honrá-lo por sua ação, mas provar-lhe, por seu devotamento em facilitar-lhe os primeiros passos na nova existência, a simpatia que soube atrair, e os verdadeiros amigos que fez entre eles, seus irmãos.
Todos juntos elevarão a Deus sinceras ações de graça por sua misericórdia, que permitiu ao seu irmão resistir à tentação.
Aquele, digo eu, que houver resistido a essas tristes tentações, pode esperar, não a mudança dos desígnios de Deus, que são imutáveis, mas contar com a benevolência sincera e afetuosa do Espírito de Verdade, o Filho de Deus, o qual de maneira incomparável inundará sua alma com a felicidade de compreender o Espírito de justiça perfeita e de bondade infinita e, consequentemente, salvaguardálo de qualquer outra cilada semelhante.
Ao contrário, aqueles que, provocados ou provocadores, tiverem sucumbido, podem estar certos de que experimentarão as maiores torturas morais, pela contínua presença do cadáver de sua vítima e do seu próprio. Durante séculos serão roídos pelo remorso, por haverem desobedecido tão gravemente às leis celestes, e serão perseguidos, até o dia da expiação, pelo espectro horrível da dupla visão de seus cadáveres ensanguentados.
Felizes ainda se eles próprios aliviarem os sofrimentos por um arrependimento sincero e profundo que lhes abra os olhos da alma, porque então, ao menos poderão entrever um fim às suas penas, compreenderão Deus e lhe pedirão forças para não mais provocarem sua justiça terrível.
Eles sempre compreendem tais vocábulos? Não são eles o resumo das intenções do Cristo? Por que, então, lhes truncar o sentido? Por que, então, regredir à barbárie?
Infelizmente, na sua generalidade, os homens ainda se acham sob a influência do orgulho e da ostentação. Para se escusarem aos próprios olhos, fazem soar bem alto os vocábulos dever, honra e coragem e não se dão conta de que eles significam: execução dos mandamentos de Deus, sabedoria, caridade e amor. Com essas palavras, entretanto, estrangulam seus irmãos; com elas se suicidam; com elas se perdem.
Como estão cegos! Julgam-se fortes por terem arrastado um infeliz mais fraco do que eles. Estão cegos quando creem que a aprovação de sua conduta por outros cegos como eles próprios lhes acarretará a consideração humana! A própria Sociedade onde vivem os reprova e em breve os amaldiçoará, pois o reino da fraternidade se aproxima. Enquanto isso, deles fogem os homens sensatos, como fogem das feras.
Examinemos alguns casos e veremos se o raciocínio justifica sua interpretação das palavras dever, honra e coragem.
Um homem tem o coração varado de dor e a alma cheia de amargura, porque surpreendeu provas irrecusáveis da má conduta da esposa. Provoca um dos sedutores dessa pobre e infeliz criatura. Tal provocação seria resultado de seus deveres, de sua honra, de sua coragem? Não, porque sua honra não lhe será devolvida. Sua honra pessoal não foi nem pode ter sido atingida. Isto será vingança.
Melhor ainda. Para provar que sua pretensa honra não está em jogo, é que muitas vezes sua infelicidade é mesmo ignorada e ficaria ignorada se não fosse tornada pública por mil vozes provocadas pelo escândalo ocasionado por sua vingança.
Enfim, se sua infelicidade fosse conhecida, ele seria sinceramente lamentado por todos os homens sensatos, resultando numerosas provas de verdadeira simpatia, e ele teria contra si apenas o riso dos corações malévolos e endurecidos, mas desprezíveis.
Num caso como no outro, sua honra não seria devolvida nem retirada.
Só o orgulho é, pois, o guia de quase todos os duelistas, e não a honra.
Credes que por uma palavra; pela falsa interpretação de uma frase; pelo roçar insensível e involuntário de um braço ao passar; enfim, por um sim ou por um não, e até mesmo, eventualmente, por um olhar que lhe não era dirigido, seja o duelista levado por um sentimento de honra a exigir uma pretensa reparação pelo assassinato e pelo suicídio? Oh! Não duvideis. O orgulho e a certeza de sua força são seus únicos móveis, por vezes auxiliados pela ostentação, pois ele quer exibir-se, dar prova de coragem, de saber e às vezes de generosidade.
Ostentação!!!
Ostentação, repito, porque seus conhecimentos em questões de duelo são os únicos verdadeiros; sua coragem e sua generosidade são mentiras.
Quereis pô-lo em prova real, a esse espadachim corajoso? Ponde-o diante de um rival de reputação infernal, superior à sua, no entanto possivelmente de um saber inferior ao seu, e ele empalidecerá e tudo fará para evitar o combate. Ponde-o diante de um muito mais fraco e ignorante dessa ciência duplamente mortal, e vê-lo-eis impiedoso, altivo e arrogante, mesmo quando constrangido a ter piedade.
─ Isso é coragem?
A generosidade! Oh! Falemos dela. Será generoso o homem
que, confiante em sua força, depois de haver provocado a fraqueza, a esta concede a continuação de uma vida humilhada e levada ao ridículo?
Será generoso aquele que, para alcançar uma coisa desejada e ambicionada, provoca seu fraco possuidor para obtê-la, a seguir, como recompensa de sua generosidade?
Será generoso aquele que, usando seus talentos criminosos, poupa a vida de seres fracos que injuriou?
Será, ainda, generoso quando dá semelhante prova de generosidade ao marido ou irmão a quem indignamente ultrajou, e que ele expõe, agora pelo desespero, a um segundo suicídio?
Oh! Meus amigos! Crede todos que o duelo é uma terrível e horrorosa invenção dos Espíritos maus e perversos, invenção digna do estado de barbárie que aflige ao máximo o nosso pai, o Deus tão bom.
Cabe a vós, espíritas, combater e destruir tão triste hábito, esse crime digno dos anjos das trevas.
Cabe a vós, espíritas, dar o nobre exemplo da renúncia, a despeito de tudo, a esse funesto mal.
Cabe a vós, espíritas sinceros, fazer compreendida a sublimidade das palavras dever, honra e coragem, e Deus falará por vossas vozes.
Cabe a vós, enfim, a felicidade de semear entre vossos irmãos os germens tão preciosos e por nós ignorados em nossa existência terrena, os do Espiritismo.
Teu pai, ANTÔNIO
Fundamentos da ordem social (Lyon, 16 de setembro de 1862 - Médium: Sr. Émile V...)
O Espiritismo é o progresso moral; é a elevação do Espírito na via conducente a Deus. O progresso é a fraternidade em seu nascedouro, porque a fraternidade completa, tal qual pode o Espírito imaginá-la, é a perfeição.
A fraternidade pura é um perfume do alto, uma emanação do infinito, um átomo da inteligência celeste; é a base de todas as instituições morais e o único meio de elevar a uma condição social que possa subsistir e produzir os efeitos dignos da grande causa pela qual combateis.
Sede irmãos, portanto, se quiserdes que o germe lançado entre vós se desenvolva e se torne a árvore que buscais. A união é a força soberana que baixa à Terra, e a fraternidade é a simpatia da união, é a poesia, o encanto, o ideal no positivo.
Precisais ser unidos para serdes fortes e ser fortes para fundardes uma instituição que não repouse senão sobre a verdade, tornada tão tocante e tão admirável, tão simples e tão sublime. As forças divididas aniquilam-se. Reunidas, são cada vez mais fortes.
E se se considerar o progresso de cada criatura, se se refletir no amor e na caridade que brota de cada coração, a diferença será muito maior. Sob o sublime influxo desse sopro inefável, os laços de família se apertam, mas os laços sociais, tão vagamente definidos, se esboçam, se aproximam e acabam formando um único feixe de todos esses pensamentos, de todos esses desejos, de todos esses objetivos de natureza diversa.
O que é que vedes sem a fraternidade? O egoísmo e a ambição. Cada um tem o seu objetivo; cada um o persegue por seu lado; cada um marcha a seu modo, e todos são fatalmente arrastados para o abismo onde mergulham, há séculos, todos os esforços humanos. Com a união há um só objetivo, pois há um só pensamento, um só desejo, um só coração.
Uni-vos, pois, meus amigos, é o que incessantemente vos repete a voz de nosso mundo. Uni-vos e chegareis mais depressa ao vosso objetivo.
É sobretudo nessa reunião inteiramente simpática que deveis tomar a resolução irrevogável de serdes unidos por um pensamento comum a todos os espíritas da Terra, para oferecerdes a homenagem do vosso reconhecimento àquele que vos abriu o caminho do bem supremo; àquele que trouxe a felicidade às vossas cabeças, a alegria aos vossos corações e a fé aos vossos Espíritos.
Vosso reconhecimento é sua recompensa atual. Não lho recuseis, portanto, e fazendo a oferta a uma só voz, dareis o primeiro exemplo de verdadeira fraternidade.
LÉON DE MURIANE, Espírito Protetor
Aqui jazem 18 séculos de luzes (Lyon, 16 de setembro de 1862 - Médium: Sr. Émile V...)
Do ponto de vista da Arte, seus quadros certamente não são perfeitos, posto em certas exposições sejam vistos muitos que não valem mais. Falta-lhes acabamento e delicadeza, e os tons são duros e muito acentuados. Mas, quando se pensa nas condições em que são feitos, não são menos notáveis. Quem sabe se, com exercícios, não adquirirá ele a habilidade que lhe falta e não se tornará um verdadeiro pintor, como aquele operário de Bordeaux que sabendo apenas assinar o nome, escreve como médium e acabou tendo uma linda letra para uso pessoal, sem outro mestre além dos Espíritos?
Quando vimos o Sr. Émile, ele estava concluindo um quadro alegórico, onde se vê um féretro, sobre o qual estava escrito: Aqui jaz 18 séculos de luzes. Permitimonos criticar tal inscrição do ponto de vista gramatical, e, em primeiro lugar, não compreendemos o sentido dessa alegoria colocando dezoito séculos de luzes num caixão, visto que, dizíamos nós, graças sobretudo ao Cristianismo, a Humanidade está hoje mais esclarecida do que naquela época. Isto aconteceu na sessão do dia 16, na qual ele recebeu a comunicação acima. O Espírito respondeu às nossas observações, acrescentando o seguinte:
“Aqui jaz é posto intencionalmente. O sujeito não é expresso pelo número 18, representando séculos: é um total de séculos, uma ideia coletiva, como se houvesse um lapso de tempo de 18 séculos.
Podereis dizer aos vossos gramáticos que não confundam uma ideia coletiva com uma ideia de separação. Eles próprios não dizem da multidão, que pode ser composta de incalculável número de pessoas, que ELA PODE mover-se? É o bastante sobre o assunto. Assim deve ser, porque essa é a ideia.
“Agora, falemos da alegoria. Dezoito séculos de luzes num caixão! Essa ideia representa todos os esforços feitos pela verdade durante esse tempo, esforços que foram sempre destruídos pelo espírito de partido, pelo egoísmo. Dezoito séculos de luzes em pleno dia, seriam dezoito séculos de felicidade para a Humanidade, dezoito séculos que apenas começam a germinar na Terra e que teriam tido seu desenvolvimento. O Cristo trouxe a verdade à Terra e a colocou ao alcance de todos. O que aconteceu com ela? As paixões terrestres dela se apoderaram e ela foi metida num caixão, de onde acaba de tirá-la o Espiritismo. Eis a alegoria.”
LÉON DE MURIANE
Papel da sociedade de Paris (Sociedade de Paris, 24 de outubro de 1862 - Médium: Sr. Leymarie)
Quando me achava em vosso meio, por vezes me perguntava por que essa grande cidade, ponto de encontro do mundo inteiro, não possuía uma reunião espírita numerosa, mas tão numerosa quanto os mais vastos anfiteatros pudessem conter.
Por vezes cheguei a pensar que os espíritas parisienses entregavam-se demais aos prazeres. Até pensei que a fé espírita para muitos era um prazer de amador, uma distração entre as muitas que Paris oferece continuamente.
Mas, longe de vós e contudo tão perto, vejo e compreendo melhor. Paris está assentada à margem de Sena, mas Paris está em toda a parte, e todos os dias essa cabeça poderosa revolve o mundo inteiro.
Como ela, a Sociedade central faz jorrar seu pensamento no Universo. Sua força não está no círculo onde se realizam suas sessões, mas em todos os países onde são seguidas as suas dissertações, em toda a parte onde ela faz lei, à vista de seus ensinos inteligentes. É um sol cujos raios benfazejos repercutem ao infinito.
Por isso mesmo, a Sociedade não pode ser um grupo comum. Seus pontos de vista são predestinados, e seu apostolado é maior. Não pode ela restringir-se a um pequeno espaço. O mundo lhe é necessário, por ser ela de natureza invasora. De fato, ela conquista, pacificamente, hoje cidades, amanhã reinos, mais tarde o mundo inteiro.
Quando um estrangeiro vos faz uma visita de cortesia, recebei-o dignamente e afetuosamente, para que leve uma grande ideia do Espiritismo, essa poderosa arma da civilização, que deve aplainar todos os caminhos, vencer todas as resistências e até todas as dúvidas. Dai largamente, para que cada um receba esse alimento do Espírito que tudo transforma em sua passagem misteriosa, porque a crença nova é forte como Deus, grande como ele, caridosa como tudo quanto emana do poder superior, que fere para consolar, dando à Humanidade em trabalho a prece e a dor por antecipação.
Bendita sejas, Sociedade que amo, tu que dás sempre com benevolência, tu que realizas uma tarefa árdua sem olhar as pedras que barram a passagem. Muito mereceste de Deus. Não serás e não poderás ser um centro ordinário, mas, ao contrário ─ repito-o ─ a fonte benfazeja onde o sofrimento virá sempre encontrar o bálsamo reparador.
SANSON
(Antigo Membro da Sociedade de Paris)
Origem da linguagem (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sr. D'Ambel)
Que Deus Todo-Poderoso, tão benevolente para com os espíritas, me conceda a lucidez necessária para afastar de minha dissertação toda confusão, toda obscuridade e sobretudo todo erro.
Entro na matéria dizendo-vos que admitamos, inicialmente, como princípio, esta eterna verdade: O Criador deu a todos os seres da mesma raça um modo especial, mas seguro, para se entenderem reciprocamente. Não obstante, esse modo de comunicação, essa linguagem, era tanto mais restrita quanto mais inferiores eram as espécies. É em virtude dessa verdade, dessa lei, que os selvagens e os povos pouco civilizados possuem línguas tão pobres que uma porção de termos usados nas regiões favorecidas pela civilização lá não encontram vocábulos correspondentes, e é em obediência a essa mesma lei que as nações que progridem criam novas expressões para novas descobertas e novas necessidades.
Como eu disse alhures, a Humanidade já atravessou três grandes períodos: a fase bárbara, a fase hebraica e pagã e a fase cristã. A esta última sucederá o grande período espírita, cujos alicerces lançamos entre vós.
Examinemos, pois, a primeira fase e o começo da segunda, e aqui só posso repetir o que eu já disse. A primeira fase humana, que poderemos chamar préhebraica ou bárbara, arrastou-se por muito tempo e lentamente em todos os horrores e convulsões de uma barbárie terrível. Aí o homem é peludo como um animal selvagem e, como as feras, abriga-se em cavernas e nos bosques. Vive de carne crua e se repasta de seu semelhante, como de uma excelente caça. É o mais absoluto reino da antropofagia. Não há sociedade nem família! Alguns grupos dispersos aqui e ali, vivem na mais completa promiscuidade, sempre prontos a se entredevorarem. Tal é o quadro desse período cruel. Nenhum culto, nenhuma tradição, nenhuma ideia religiosa. Apenas as necessidades animais a satisfazer, eis tudo!
Prisioneira de uma matéria estupidificante, a alma fica morna e latente em sua prisão carnal. Ela nada pode contra os muros grosseiros que a encerram, e sua inteligência mal pode mover-se nos compartimentos de um cérebro estreito.
O olho é manso, a pálpebra pesada, o lábio grosso, o crânio achatado, e alguns sons guturais bastam como linguagem.
Nada prenuncia que desse animal bruto sairá o pai das raças hebraicas e pagãs. Contudo, com o tempo, eles sentem a necessidade de se defenderem contra os outros carnívoros, como o leão e o tigre, cujas presas terríveis e garras afiadas facilmente dominavam o homem isolado. Assim realiza-se o primeiro progresso social. Não obstante, o reinado da matéria e da força bruta se manteve durante toda essa fase cruel.
No homem dessa época, não procureis sentimentos nem razão nem linguagem propriamente dita. Ele obedece apenas à sua sensação grosseira, e só tem como objetivo comer, beber e dormir. Nada além disso. Pode-se dizer que o homem inteligente ainda está em germe, mas que não existe ainda.
Contudo, é preciso constatar que entre as raças brutais já aparecem alguns seres superiores, Espíritos encarnados com a tarefa de conduzir a Humanidade ao seu destino e apressar o surgimento das eras hebraica e pagã.
Devo acrescentar que, além desses Espíritos encarnados, o globo terrestre era visitado por esses ministros de Deus cuja memória foi conservada pela tradição sob os nomes de anjos e arcanjos, que quase diariamente se punham em contato com os seres superiores, Espíritos encarnados de que acabo de falar. A missão de alguns desses anjos continuou durante a maior parte da fase humanitária. Devo acrescentar que o rápido quadro que acabo de fazer, dos primeiros tempos da Humanidade, vos ensina um pouco a que leis rigorosas são submetidos os Espíritos que se comprometem a viver em planetas de formação recente.
A linguagem propriamente dita, como a vida social, não começa a ter um caráter certo senão a partir da era hebraica e da pagã, durante a qual o Espírito encarnado, sempre sujeito à matéria, começa a se revoltar e a quebrar alguns elos de sua pesada cadeia. A alma se agita em sua prisão carnal e por esforços reiterados reage energicamente contra as paredes do cérebro, cuja matéria sensibiliza. Ela melhora e aperfeiçoa, por um trabalho constante, o jugo de suas faculdades, assim desenvolvendo os órgãos físicos. Enfim, o pensamento pode ser lido num olhar límpido e claro. Já estamos longe das frontes achatadas! É que a alma se sente, se reconhece, tem consciência de si mesma e começa a compreender que independe do corpo. Desde então luta ela com ardor para se desvencilhar do amplexo de sua robusta rival. O homem se modifica de pouco em pouco e a inteligência se movimenta mais livremente num cérebro mais desenvolvido. Entretanto, constatamos que nessa época o homem ainda é circunscrito e cercado, como gado, o homem escravo do homem. A escravidão é consagrada pelo Deus dos Hebreus, tanto quanto pelos deuses pagãos, e Jeová, assim como Júpiter Olímpico, pede sangue e vítimas vivas.
Essa segunda fase oferece aspectos curiosos do ponto de vista filosófico. Já tracei um quadro rápido, que meu médium vos transmitirá em futuro próximo.
Como quer que seja, e para voltar ao tema em estudo, tende certeza de que não foi senão na época dos grandes períodos pastorais e patriarcais que a linguagem humana tomou um aspecto regular e adotou formas e sons especiais.
Durante essa época primitiva, em que a Humanidade saía dos cueiros e balbuciava na primeira infância, poucas palavras bastavam aos homens, para os quais ainda não tinha nascido a Ciência, cujas necessidades eram mais restritas, e cujas relações sociais paravam à porta das tendas, à soleira das famílias e, mais tarde, nos confins da tribo. Era a época em que o pai, o pastor, o ancião, o patriarca, numa palavra, dominava como senhor absoluto, com direito de vida e morte.
A língua primitiva foi uniforme. Mas, à medida que crescia o número de pastores, estes, deixando por sua vez a tenda paterna, foram constituir novas famílias em zonas desabitadas e, daí, novas tribos. Então a língua por eles usada se diferenciou gradativamente, de geração em geração, da que era usada na tenda paterna. Assim foram criados os vários idiomas.
Aliás, posto não seja meu propósito dar um curso de linguística, não vos passa despercebido que, nas línguas mais distanciadas, encontrais vocábulos cujo radical pouco variou e cuja significação é quase a mesma. Por outro lado, posto tenhais a pretensão de constituirdes um velho mundo, o mesmo motivo que corrompeu a língua primitiva, reina soberano em vossa França tão orgulhosa de sua civilização. Aí vedes as consonâncias, os termos e a significação variarem, já não direi de província a província, mas de comuna a comuna.
Invoco o testemunho dos que viajaram pela Bretanha, como dos que percorreram a Provença e o Languedoc. É uma variedade de idiomas e de dialetos que espanta a quem os quisesse coligir num dicionário único.
Uma vez que os homens primitivos, ajudados pelos missionários do Eterno, emprestaram a certos sons especiais outras tantas ideias especiais, foi criada a língua falada, e as modificações por ela sofridas mais tarde o foram sempre em razão do progresso humano. Consequentemente, conforme a riqueza da língua, pode-se estabelecer facilmente o grau de civilização atingido pelo povo que a fala.
O que posso acrescentar é que a Humanidade marcha para uma língua única, como consequência forçada de uma afinidade de ideias em Moral, em Política, e sobretudo em Religião.
Tal será a obra da filosofia nova, o Espiritismo, que hoje vos ensinamos.
Respostas
─ O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns ainda não foram traduzidos para o italiano.
Ao Sr. Dumas, de Sétif, Argélia.
─ Recebi o Écho de Sétif e li com atenção os dois notáveis artigos científicos sobre o Espiritismo publicados nesse jornal. Deles falarei em detalhes no próximo número. Sinto-me feliz por ver esse estimável jornal considerar a causa da doutrina e tratá-la de modo sério.
Dezembro
Estudo sobre os possessos de MorzinePara tanto, faz-se mister remontar à fonte do mesmo fenômeno e seguir-lhe a gradação, desde os casos mais simples, e ao mesmo tempo explicar como ele se processa. Daí deduziremos muito melhor o meio de combater o mal. Posto que já tenhamos tratado do assunto no Livro dos Médiuns, no capítulo da obsessão, e em diversos artigos desta Revista, aduziremos algumas considerações novas, que tornarão a coisa mais fácil de entender.
O primeiro ponto acerca do qual é importante compenetrar-se é o da natureza dos Espíritos, do ponto de vista moral. Não sendo os Espíritos senão as almas dos homens, e não sendo bons todos os homens, não é racional admitir-se que o Espírito de um perverso de súbito se transforme. Do contrário seria desnecessário o castigo na vida futura. A experiência confirma essa teoria, ou melhor, a teoria é fruto da experiência. Com efeito, mostram-nos as relações com o mundo invisível, ao lado de Espíritos sublimes de sabedoria e de conhecimento, outros ignóbeis, ainda com todos os vícios e paixões da Humanidade.
Após a morte, a alma de um homem de bem será um bom Espírito, da mesma forma que um bom Espírito, encarnando-se, será um homem de bem. Pela mesma razão, ao morrer, um homem perverso dará um Espírito perverso ao mundo invisível, e um Espírito perverso, encarnando-se, não poderá ser um homem virtuoso, e isso até que o Espírito não se tenha depurado ou experimentado o desejo de se melhorar, porque, a partir do momento em que entrou no caminho do progresso, pouco a pouco ele se despoja de seus maus instintos e gradativamente se eleva na hierarquia dos Espíritos, até atingir a perfeição acessível a todos, pois Deus não pode ter criado seres eternamente votados ao mal e à infelicidade.
Assim, os mundos visível e invisível se penetram alternadamente e incessantemente um no outro, se assim podemos dizer, e alimentam-se mutuamente, ou, melhor dizendo, esses dois mundos na realidade constituem um só, em dois estados diferentes. Essa consideração é muito importante para melhor compreenderse a solidariedade que existe entre eles.
Sendo a Terra um mundo inferior, isto é, pouco adiantado, resulta que a imensa maioria dos Espíritos que a povoam, tanto no estado errante quanto encarnados, deve compor-se de Espíritos imperfeitos, que fazem mais mal que bem. Daí a predominância do mal na Terra. Ora, sendo a Terra, ao mesmo tempo, um mundo de expiação, é o contato do mal que torna os homens infelizes, pois se todos os homens fossem bons, todos seriam felizes. É um estado ainda não alcançado por nosso globo, e é para tal estado que Deus quer conduzi-lo. Todas as tribulações aqui experimentadas pelos homens de bem, quer da parte dos homens, quer da dos Espíritos, são a consequência desse estado de inferioridade. Poder-se-ia dizer que a Terra é a Botany-Bay dos mundos. Aí se encontram a selvageria primitiva e a civilização, a criminalidade e a expiação.
É, pois, necessário imaginar-se o mundo invisível como formando uma população incontável, compacta, por assim dizer, que envolve a Terra e se agita no espaço. É uma espécie de atmosfera moral, da qual os Espíritos encarnados ocupam a parte inferior, onde se agitam como num vaso. Ora, assim como o ar das partes baixas é pesado e malsão, esse ar moral é também malsão, porque corrompido pelas emanações dos Espíritos impuros. Para resistir a isso são necessários temperamentos morais dotados de grande vigor.
Digamos, entre parênteses, que tal estado de coisas é inerente aos mundos inferiores, mas que esses mundos seguem a lei do progresso e, atingindo a idade precisa, Deus os saneia, deles expulsando os Espíritos imperfeitos, que não mais aí se reencarnam e são substituídos por outros mais adiantados, que farão reinar a felicidade, a justiça e a paz. É uma revolução desse gênero que no momento se prepara.
Examinemos, agora, o modo de ação recíproca dos encarnados e desencarnados.
Sabemos que os Espíritos são revestidos de um envoltório vaporoso, que lhes forma um verdadeiro corpo fluídico, ao qual damos o nome de perispírito, e cujos elementos são tirados do fluido universal ou cósmico, princípio de todas as coisas.
Quando o Espírito se une a um corpo, aí vive com seu perispírito, que serve de ligação entre o Espírito, propriamente dito, e a matéria corpórea. Ele é o intermediário das sensações percebidas pelo Espírito. Mas esse perispírito não é confinado no corpo, como numa caixa. Por sua natureza fluídica, ele irradia exteriormente e forma em torno do corpo uma espécie de atmosfera, como o vapor que dele se desprende. Mas o vapor que se desprende de um corpo malsão é igualmente malsão, acre e nauseabundo, o que infecta o ar dos lugares onde se reúnem muitas pessoas perversas. Assim como esse vapor é impregnado das qualidades do corpo, o perispírito é impregnado das qualidades, ou seja, do pensamento do Espírito, e irradia tais qualidades em torno do corpo.
Agora outro parêntese para responder de imediato a uma objeção oposta por alguns à teoria que o Espiritismo dá sobre o estado da alma. Acusam-no de materializar a alma, ao passo que, segundo a religião, a alma é puramente imaterial. Como a maior parte das outras, essa objeção provém de um estudo incompleto e superficial. Jamais o Espiritismo definiu a natureza da alma, que escapa às nossas investigações. Ele não diz que o perispírito constitui a alma. O vocábulo perispírito significa positivamente o contrário, pois especifica um envoltório em torno do espírito.
O que diz a respeito O Livro dos Espíritos? “Há no homem três coisas: a alma, ou espírito, princípio inteligente; o corpo, envoltório material; o perispírito, envoltório fluídico semimaterial, que serve de laço entre o espírito e o Corpo”. Do fato que, com a morte do corpo, a alma conserva o envoltório fluídico, não se pode deduzir que tal envoltório e a alma sejam uma só e mesma coisa, da mesma forma que não são uma só e a mesma coisa o corpo e a roupa ou a alma e o corpo.
A Doutrina Espírita nada tira à imaterialidade da alma. Ela apenas lhe dá dois envoltórios, em vez de um, durante a vida corpórea, e só um após a morte do corpo, o que é, não uma hipótese, mas um resultado da observação, e é com o auxílio desse envoltório que melhor se compreende a sua individualidade e melhor se explica a sua ação sobre a matéria.
Voltemos ao nosso assunto.
O perispírito, por sua natureza fluídica, é essencialmente móvel, elástico, se assim se pode dizer. Como agente direto do Espírito, ele é posto em ação e projeta raios, pela vontade do Espírito. Por esses raios ele serve à transmissão do pensamento, porque, de certa forma, está animado pelo pensamento do Espírito.
Sendo o perispírito o laço que une o Espírito ao corpo, é por seu intermédio que o Espírito transmite aos órgãos, não a vida vegetativa, mas os movimentos que exprimem a sua vontade. É também por seu intermédio que as sensações do corpo são transmitidas ao Espírito. Destruído o corpo sólido pela morte, o Espírito não age mais e não percebe mais senão por seu corpo fluídico, ou perispírito. Por isso age mais facilmente e percebe melhor, considerando-se que o corpo é um entrave. Tudo isso é resultado da observação.
Suponhamos agora duas pessoas próximas uma da outra, cada qual envolvida por sua atmosfera perispiritual, ─ permitam-nos o neologismo. Esses dois fluidos põem-se em contato e se penetram um no outro. Se eles forem de natureza antipática, repelem-se, e os dois indivíduos sentirão uma espécie de mal-estar ao se aproximarem um do outro, sem se darem conta disso. Se, ao contrário, forem movidos por um sentimento bom e benevolente, carregarão consigo um pensamento benevolente que atrai. É por isso que duas pessoas se compreendem e se adivinham sem se falarem. Um certo não sei quê por vezes diz que a pessoa que temos diante de nós deve estar animada por tal ou qual sentimento. Ora, esse não sei quê é a expansão do fluido perispiritual da pessoa em contato com o nosso, espécie de fio elétrico condutor do pensamento. A partir daí compreende-se que os Espíritos, cujo envoltório fluídico é muito mais livre do que no estado de encarnação, não necessitam de sons articulados para se entenderem.
O fluido perispiritual do encarnado é, pois, acionado pelo Espírito. Se, por sua vontade, o Espírito, por assim dizer, dardeja raios sobre outro indivíduo, os raios o penetram. Daí a ação magnética mais ou menos poderosa, conforme a vontade; mais ou menos benfazeja, conforme sejam esses raios de natureza melhor ou pior, mais ou menos vivificante, porque eles podem, por sua ação, penetrar os órgãos e, em certos casos, restabelecer o estado normal. Sabe-se qual é a influência das qualidades morais do magnetizador.
Aquilo que pode fazer um Espírito encarnado, dardejando seu próprio fluido sobre uma pessoa, pode igualmente fazê-lo um desencarnado, porque ele tem o mesmo fluido. Assim, ele pode magnetizar e, de acordo com sua natureza boa ou má, sua ação será benéfica ou malfazeja.
Assim, facilmente nos damos conta da natureza das impressões que recebemos, conforme o meio onde nos encontramos. Se uma reunião for composta de pessoas animadas por maus sentimentos, elas enchem o ar ambiente com fluido impregnado de seus pensamentos. Daí, para as almas boas, um mal-estar moral análogo ao malestar físico causado pelas exalações mefíticas: a alma fica asfixiada. Se, ao contrário, as pessoas tiverem intenções puras, encontramo-nos em sua atmosfera como se num ar vivificante e salubre. Naturalmente, o efeito será o mesmo num ambiente cheio de Espíritos, conforme sejam bons ou maus.
Isso bem compreendido, chegamos sem dificuldade à ação material dos Espíritos errantes sobre os Espíritos encarnados, e daí, à explicação da mediunidade.
Se um Espírito quer agir sobre uma pessoa, dela se aproxima e envolve-a, por assim dizer, com o seu perispírito, como se fosse um manto. Os fluidos se penetram; os dois pensamentos e as duas vontades se confundem, e então o Espírito pode servir-se daquele corpo como se fora o seu próprio; fazê-lo agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, etc. Esses são os médiuns. Se o Espírito for bom, sua ação será suave e benéfica, e ele só provocará boas coisas; se for mau, provocará maldades; se for perverso e maldoso, ele o constrange como numa armadilha; paralisa até mesmo a vontade e a razão, que abafa sob seus fluidos, assim como se apaga o fogo sob um lençol d’água; incita-o a pensar, falar e agir por ele, conduzindo-o, contra sua vontade, a atos extravagantes ou ridículos. Numa palavra, ele magnetiza o indivíduo e o leva a uma espécie de catalepsia moral, transformando-o em instrumento cego de sua vontade. Tal é a causa da obsessão, da fascinação e da subjugação, que se mostram em diversos graus de intensidade.
É ao paroxismo da subjugação que geralmente se dá o nome de possessão. Deve notar-se que, nesse estado, muitas vezes o indivíduo tem consciência do ridículo daquilo que faz, mas é constrangido a fazê-lo, como se um homem mais vigoroso que ele o constrangesse, contra sua vontade, a mover os braços, as pernas, a língua.
Eis um curioso exemplo.
Numa pequena reunião em Bordeaux, em meio a uma evocação, o médium, um jovem de caráter suave e perfeita urbanidade, de repente começa a bater na mesa, levanta-se com olhar ameaçador, mostrando os punhos aos assistentes, proferindo pesadas injúrias e querendo atirar-lhes um tinteiro. A cena, tanto mais chocante quanto inesperada, durou aproximadamente dez minutos, depois do que o moço retomou a calma habitual e desculpou-se do que se havia passado, dizendo que sabia muito bem o que havia dito e feito, mas que não pudera impedir.
Quando tomamos conhecimento do fato, pedimos explicação numa sessão da Sociedade de Paris. Foi-nos respondido que o Espírito que o havia provocado era mais farsista do que mau, e que simplesmente queria divertir-se com o pavor dos assistentes. O que prova a veracidade da explicação é que o fato não se repetiu, e que o médium continuou a receber excelentes comunicações, como antes.
É importante esclarecer o que provavelmente excitou a verve daquele Espírito brincalhão. Um antigo dirigente da orquestra do teatro de Bordeaux, o Sr. Beck, tinha experimentado, durante vários anos antes de morrer, um fenômeno singular. Todas as noites, ao sair do teatro, parecia-lhe que um homem lhe saltava às costas, cavalgando às suas espáduas, até chegar à porta da casa. Aí o suposto indivíduo descia e o Sr. Beck se achava livre.
Nessa reunião, quiseram evocar o Sr. Beck e pedir-lhe uma explicação. Foi então que o Espírito farsista houve por bem substituí-lo e fazer o médium representar uma cena diabólica, pois nele encontrou, sem dúvida, as necessárias disposições fluídicas para secundá-lo.
Aquilo que nesta circunstância não passou de acidental, por vezes toma um caráter de permanência, quando o Espírito é mau, porque para ele o indivíduo se torna verdadeira vítima, à qual ele pode dar a aparência de verdadeira loucura. Dizemos aparência, porque a loucura propriamente dita sempre resulta de uma alteração dos órgãos cerebrais, ao passo que neste caso os órgãos estão tão intactos quanto os do jovem de quem acabamos de falar. Não há, pois, loucura real, mas aparente, contra a qual os remédios da terapêutica são impotentes, como o prova a experiência. Além do mais, eles podem produzir o que não existe. As casas de alienados contam com muitos doentes de tal gênero, para os quais o contato com outros alienados só poderá ser muito prejudicial, porque esse estado denota sempre uma certa fraqueza moral. Ao lado de todas as variedades de loucura patológica, convém, pois, acrescentar a loucura obsessiva, que requer meios especiais. Mas como poderá um médico materialista estabelecer essa diferença, ou mesmo admitila?
Bravo! irão exclamar os nossos adversários. Não se pode demonstrar melhor os perigos do Espiritismo, e nós temos razão em proibi-lo.
Um instante! O que dissemos prova precisamente a sua utilidade.
Credes que os maus Espíritos que pululam entre os seres humanos esperaram ser chamados a fim de exercerem sua influência perniciosa? Como os Espíritos existiram desde o início dos tempos, também desde o início dos tempos representaram o mesmo papel, pois esse papel está em sua natureza. Prova disso está na existência de grande número de pessoas obsedadas, ou possessas, se quiserdes, antes que se cogitasse de Espíritos, ou que, em nossos dias, jamais ouviram falar de Espiritismo e de médiuns. A ação dos Espíritos, bons ou maus, é, pois, espontânea. A dos maus produz uma porção de perturbações na economia moral e mesmo física que, por ignorância da verdadeira causa, são atribuídas a causas errôneas. Os maus Espíritos são inimigos invisíveis, tanto mais perigosos quanto menos se suspeita de sua ação. Pondo-os a descoberto, o Espiritismo vem revelar uma nova causa de certos males da Humanidade. Conhecida a causa, não se buscará mais combater o mal por meios que, sabemos agora, são inúteis, mas procurar-se-ão outros mais eficazes.
Ora, quem levou à descoberta dessa causa? A mediunidade. Foi pela mediunidade que esses inimigos ocultos traíram sua presença. Ela fez para eles o que fez o microscópio para os infinitamente pequenos: revelou todo um mundo.
O Espiritismo não atraiu os maus Espíritos. Ele descobriu-os e forneceu os meios de lhes paralisar a ação e, consequentemente, de afastá-los. Ele não trouxe o mal, pois este sempre existiu. Ao contrário, trouxe o remédio ao mal, mostrando-lhe as causas.
Uma vez reconhecida a ação do mundo invisível, ter-se-á a chave de uma porção de fenômenos incompreendidos e a Ciência, enriquecida com essa nova lei, verá novos horizontes se abrirem à sua frente. Quando lá chegará? Quando não mais professar o materialismo, pois este detém seu avanço e lhe interpõe uma barreira intransponível.
Antes de falar do remédio, expliquemos um fato que embaraça muitos espíritas, sobretudo nos casos de obsessão simples, isto é, naqueles muito frequentes, em que o médium não se pode desvencilhar de um mau Espírito que por ele se manifesta obstinadamente, pela escrita ou pela audição, e naquele, não menos frequente, em que, no meio de uma boa comunicação, vem um Espírito imiscuir-se para dizer coisas más. Pergunta-se, então, se os maus Espíritos são mais poderosos que os bons.
Reportemo-nos ao que dissemos no início, sobre a maneira como age o Espírito, e figuremos um médium envolvido, penetrado pelo fluido perispiritual de um mau Espírito. Para que o fluido de um bom Espírito possa agir sobre o médium, é necessário que ele penetre esse envoltório, e sabe-se que dificilmente a luz penetra um nevoeiro espesso. Conforme o grau da obsessão, o nevoeiro será permanente, tenaz ou intermitente e, consequentemente, mais fácil ou menos fácil de dissipar.
Nosso correspondente em Parma, Sr. Superchi, enviou-nos dois desenhos feitos por um vidente, representando perfeitamente essa situação. Num deles vê-se a mão do médium envolta numa nuvem escura, imagem do fluido perispiritual dos maus Espíritos, atravessada por um raio luminoso que vai clarear a mão. É o bom fluido que a dirige e se opõe à ação do mau. No outro, a mão está na sombra, e a luz está em volta do nevoeiro, que ela não pode penetrar. Aquilo que o desenho limita à mão, deve entender-se em relação ao corpo inteiro do médium.
Resta ainda a questão de saber se o bom Espírito é menos
poderoso que o mau. Não é o bom Espírito que é mais fraco. É o médium que não é bastante forte para livrar-se do manto que sobre si foi lançado; para se desembaraçar dos braços que o apertam, com o que ─ é bom dizer ─ por vezes ele se compraz. Nesse caso, compreende-se que o bom Espírito não possa dominar, pois o outro é preferido.
Admitamos, agora, o desejo de se desembaraçar desse envoltório fluídico de que o seu se acha penetrado, como de uma vestimenta impregnada pela umidade. Não bastará o desejo e nem mesmo a vontade é sempre suficiente. Trata-se de lutar contra um adversário. Ora, quando dois homens lutam corpo a corpo, é o de músculos mais fortes que vencerá o outro. Com um Espírito não se luta corpo a corpo, mas de Espírito a Espírito. É ainda o mais forte que será o vencedor. Aqui, a força está na autoridade que se pode exercer sobre o Espírito e tal autoridade está subordinada à superioridade moral.
A superioridade moral é como o sol, que dissipa o nevoeiro pela força de seus raios. Esforçar-se para ser bom; para tornar-se melhor se já se é bom; purificar-se de suas imperfeições; numa palavra, elevar-se moralmente o mais possível, tal é o meio de adquirir o poder de comandar os Espíritos inferiores, para afastá-los. Do contrário, eles zombarão de vossas injunções. (O Livro dos Médiuns, nº. 252 e 279).
Talvez perguntem por que os Espíritos protetores não lhes forçam a retirada. Sem dúvida o podem, e por vezes o fazem. Mas, permitindo a luta, também deixam o mérito da vitória. Se eles deixam pessoas com algum tipo de mérito se debaterem, é para pôr em prova sua perseverança e fazer com que adquiram mais força no bem. É para elas uma espécie de ginástica moral.
Eis a resposta que demos ao Sr. P..., coronel do estado-maior do exército austríaco, que nos consultava sobre uma afecção que ele atribuía aos maus Espíritos, desculpando-se por nos chamar de amigo, posto só nos conhecesse de nome:
“O Espiritismo é o laço fraterno por excelência, e tendes razão de pensar que os que partilham essa crença, mesmo sem se conhecerem, devam tratar-se como amigos. Agradeço-vos por terdes tido de mim uma boa opinião e me dardes esse título.
“Sinto-me feliz por encontrar em vós um adepto sincero e devotado a esta consoladora doutrina. Mas, pelo próprio fato de ser consoladora, ela deve dar força moral e resignação para suportar as provas da vida que, no mais das vezes, são expiação. Disto a Revista Espírita vos fornece numerosos exemplos.
“No que concerne à moléstia que sofreis, não vejo prova evidente da influência de maus Espíritos que vos obsidiariam. Admitamo-lo, pois, por hipótese. Só haveria uma força moral a opor a outra força moral, e essa não pode vir senão de vós.
“Contra um Espírito é necessário lutar de Espírito a Espírito, e o mais forte vencerá. Em casos semelhantes é preciso esforçar-se por adquirir a maior soma possível de superioridade pela vontade, pela energia e pelas qualidades morais, para ter o direito de lhe dizer: Vade retro! Assim, se estiverdes nesse caso, não será com a espada de coronel que o vencereis, mas com a espada do anjo, isto é, a virtude e a prece.
“A espécie de terror e angústia que experimentais nesses momentos é um sinal de fraqueza, que o Espírito aproveita.
“Dominai o medo, e com a vontade triunfareis. Tomai a iniciativa resolutamente, como o fazeis ante o inimigo, e crede-me vosso muito dedicado e afeiçoado,
“A. K.”
Sem dúvida certas pessoas prefeririam outra receita mais fácil para expulsar os Espíritos: algumas palavras a pronunciar, ou sinais a fazer, por exemplo, o que seria mais cômodo do que corrigir os próprios defeitos. Lamentamos, mas não conhecemos processo mais eficaz para vencer um inimigo do que ser mais forte que ele. Quando estamos doentes, temos que nos resignar a tomar remédios, por mais amargos que sejam. Mas, também, quando se teve a coragem de tomá-los, como a gente se sente bem e como fica forte! Temos que nos persuadir de que, para alcançar tal objetivo, não há palavras sacramentais, nem fórmulas, nem talismãs, nem sinais materiais quaisquer. Os maus Espíritos se riem e, às vezes, gostam de indicar alguns, que dizem infalíveis, para melhor captar a confiança daqueles de quem abusam, porque então esses, confiantes na virtude do processo, entregam-se sem medo.
Antes de esperar dominar o mau Espírito, é preciso dominar-se a si mesmo. De todos os meios para adquirir a força de consegui-lo, o mais eficaz é a vontade secundada pela prece, a prece de coração, entenda-se, e não de palavras, na qual a boca participa mais que o pensamento. É necessário pedir a seu anjo de guarda e aos bons Espíritos que nos assistam na luta. Mas não basta lhes pedir que expulsem o mau Espírito. É necessário lembrar-se da máxima: Ajuda-te, e o Céu te ajudará; e lhes pedir, sobretudo, a força que nos falta para vencer nossas más inclinações, que para nós são piores que os maus Espíritos, pois são essas inclinações que os atraem, como a podridão atrai as aves de rapina. Orar pelo Espírito obsessor é retribuir-lhe o mal com o bem, e mostrar-se melhor que ele, o que já é uma demonstração de superioridade. Com a perseverança, a gente acaba, na maioria dos casos, por conduzi-lo a melhores sentimentos, transformando o obsessor em reconhecido.
Em resumo, a prece fervorosa e os esforços sérios por se melhorar são os únicos meios de afastar os maus Espíritos, que reconhecem seus mestres naqueles que praticam o bem, ao passo que as fórmulas lhes provocam o riso. A cólera e a impaciência os excitam. É preciso cansá-los, mostrando-se mais pacientes do que eles.
Por vezes, entretanto, acontece que a subjugação atinge o ponto de paralisar a vontade do obsedado, e que deste não se pode esperar nenhum concurso valioso. É sobretudo então que a intervenção de terceiros se torna necessária, quer pela prece, quer pela ação magnética. Mas o poder dessa intervenção também depende do ascendente moral que o interventor possa ter sobre os Espíritos, porque, se não valerem mais, sua ação será estéril.
Nesse caso, a ação magnética terá por efeito penetrar o fluido do obsedado por um fluido melhor, e desprender o fluido do Espírito mau. Ao operar, deve o magnetizador ter o duplo objetivo de opor uma força moral a outra força moral e produzir sobre o paciente uma espécie de reação química, para usar uma comparação material, substituindo um fluido por outro fluido. Assim, ele não só opera um desprendimento salutar, mas fortalece os órgãos enfraquecidos por uma longa e por vezes vigorosa dominação.
Aliás, compreende-se que o poder da ação fluídica não só está na razão da força de vontade, mas, sobretudo, da qualidade do fluido introduzido e, conforme dissemos, tal qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se segue que um magnetizador comum, que agisse maquinalmente para magnetizar pura e simplesmente, produziria pouco ou nenhum efeito. É de toda necessidade um magnetizador espírita que atue com conhecimento de causa, com a intenção de produzir, não o sonambulismo ou a cura orgânica, mas os efeitos que acabamos de descrever. Além disso, é evidente que uma ação magnética dirigida nesse sentido não deixa de ser útil nos casos de obsessão ordinária, porque então, se o magnetizador for secundado pela vontade do obsedado, o Espírito será combatido por dois adversários, em vez de um.
É preciso dizer ainda que a gente muitas vezes responsabiliza os Espíritos estranhos por maldades pelas quais eles não são responsáveis.
Certos estados mórbidos e certas aberrações que são atribuídas a uma causa oculta, são, por vezes, devidos exclusivamente ao Espírito do indivíduo. As contrariedades frequentemente concentradas em si próprio, os sofrimentos amorosos, principalmente, têm levado ao cometimento de muitos atos excêntricos, que erradamente são levados à conta de obsessão. Muitas vezes a criatura é seu próprio obsessor.
Acrescentemos, finalmente, que certas obsessões tenazes, sobretudo de pessoas de mérito, por vezes fazem parte das provas a que se acham submetidas. “Por vezes, mesmo, acontece que a obsessão, quando simples, é uma tarefa imposta ao obsedado, que deve trabalhar para melhorar o obsessor, como um pai por um filho vicioso.”
Enviamos o leitor, para mais detalhes, a O Livro dos Médiuns.
Resta-nos falar da obsessão coletiva ou epidêmica e, em particular, da de Morzine. Isso, porém, exige considerações de certa amplitude, para mostrar, pelos fatos, sua similitude com as obsessões individuais. A prova disto encontraremos em nossas próprias observações e nas que são descritas nos relatórios dos médicos.
Além disso, resta-nos examinar o efeito dos meios empregados, e depois, a ação do exorcismo e as condições nas quais ele pode ser eficaz ou nulo.
A extensão dessa segunda parte obriga-nos a transformá-la em tema de um artigo especial, no próximo número.
O Espiritismo em Rochefort
Durante a reunião recebemos outro convite, em termos não menos impositivos, da parte de um alto funcionário e de várias notabilidades da cidade, exprimindo o desejo de uma reunião na noite seguinte, o que determinou novo adiamento de nossa partida. Não teríamos mencionado tais detalhes se não fossem necessários à explicação que nos julgamos obrigados a dar a seguir, em relação a um jornal da localidade.
Nessa última reunião fizemos, ao início da sessão, a seguinte alocução:
“Senhores,
“Posto não tivesse a intenção de passar senão algumas horas em Rochefort, o desejo por vós manifestado para esta reunião me era muito lisonjeiro, sobretudo pela maneira que o convite foi feito, para que dele declinasse.
“Ignoro se todas as pessoas que me honram com sua presença nesta reunião são iniciadas na ciência espírita. Suponho que muitos são ainda noviços na matéria, e poderia, até, encontrar alguns que lhe são hostis.
“Ora, por força da falsa ideia que fazem do Espiritismo aqueles que o desconhecem, ou só o conhecem imperfeitamente, o resultado desta reunião poderia causar algumas decepções àqueles que não encontrassem aquilo que esperavam. Então, devo explicar claramente o meu objetivo, para que não haja mal-entendidos.
“Antes de mais nada, devo informar quanto ao objetivo que me proponho em minhas excursões. Vou unicamente visitar centros espíritas e lhes dar as instruções de que possam necessitar. Entretanto, seria erro pensar que vou pregar a doutrina aos incrédulos.
“O Espiritismo é toda uma ciência que exige estudos sérios, como as outras ciências, e, ainda, numerosas observações. Para desenvolvê-la seria necessário um curso em regra, e um curso de Espiritismo não poderia ser feito em uma ou duas aulas, como não o poderia um curso de Física ou de Astronomia. Para os que ignoram as primeiras noções, sou obrigado a enviá-los à fonte, isto é, ao estudo das obras onde se acham todos os ensinamentos necessários e a resposta à maioria das perguntas que poderiam fazer e que, no mais das vezes, se referem aos princípios mais elementares. É por isso que, em minhas visitas, só me dirijo aos que já sabem, que não necessitam do ABC, mas de ensino complementar.
“Jamais vou fazer o que se chama sessões, nem convocar o público para assistir experiências ou demonstrações e, menos ainda, fazer exibição de Espíritos. Os que esperassem aqui ver coisa semelhante estariam redondamente enganados e devo apressar-me em lhes tirar a ilusão.
“A reunião desta noite é, pois, excepcional e fora de meus hábitos. Pelos motivos acima expostos, não posso ter a pretensão de convencer àqueles que impugnassem as bases dos meus princípios. Só uma coisa desejo: é que, em falta de convicção, compreendam que o Espiritismo é uma coisa séria e digna de atenção, pois atrai a atenção dos homens mais esclarecidos de todos os países.
“Que não o aceitem cegamente e sem exame, é compreensível. Mas seria presunção tomar posição falsa contra uma opinião que conta com seus mais numerosos partidários na elite da Sociedade.
“As pessoas sensatas dizem: Há tantas coisas novas que nos vêm surpreender e que há um século pareceriam absurdas; diariamente assistimos à descoberta de leis novas e à revelação de novas forças da Natureza, que seria ilógico admitir que a Natureza houvesse dito a última palavra. Antes de negar é, então, prudente estudar e observar.
“Para julgar uma coisa é preciso conhecê-la. A crítica só é permissível ao que fala do que sabe. Que seria dito de um homem que, ignorando música, criticasse uma ópera; que ignorando as primeiras noções de literatura, criticasse uma obra literária? Ora! O mesmo se dá com a maioria dos detratores do Espiritismo. Eles julgam com dados incompletos, por vezes até por ouvir dizer. Assim, todas as suas objeções denotam ignorância absoluta da coisa. Só se lhes pode responder: Estudai antes de julgar.
“Como tive a honra de vos dizer, senhores, seria materialmente impossível vos desenvolver todos os princípios da ciência. Quanto a satisfazer à curiosidade de quem quer que seja, há entre vós quem me conheça bastante para saber que jamais representei tal papel. Mas, na impossibilidade de vos expor as coisas em detalhes, talvez seja útil dar-vos a conhecer o fim e as tendências. É o que me proponho fazer. Depois julgareis se o objetivo é sério, e se é permitido censurar.
“Então, peço licença para ler algumas passagens do discurso que pronunciei nas grandes reuniões de Lyon e Bordeaux. Para as pessoas que apenas têm do Espiritismo uma ideia incompleta, sem dúvida a ideia principal fica no estado de hipótese, pois me dirijo a adeptos já instruídos. Esperando, porém, que para vós, as circunstâncias tenham transformado tais hipóteses em verdade, podereis ver as suas consequências, bem como a natureza das instruções que dou, e por aí avaliar o caráter das reuniões a que vou assistir.
“Posso, contudo, dizer do Espiritismo, que nele nada é hipotético. De todos os princípios formulados em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, nenhum é produto de um sistema ou de opinião pessoal. Todos, sem exceção, são fruto da experiência e da observação. Eu não poderia reivindicar um só como produto de minha iniciativa. Aquelas obras contêm o que aprendi e não o que criei. Ora, aquilo que aprendi, outros podem aprender, como eu. Mas como eu, devem trabalhar. Eu apenas lhes poupei o esforço dos primeiros trabalhos e das primeiras pesquisas.”
Depois desse preâmbulo, lemos alguns fragmentos do discurso pronunciado em Lyon e Bordeaux, seguidos de algumas explicações, necessariamente muito sumárias, sobre os princípios fundamentais do Espiritismo, entre outras sobre a natureza dos Espíritos e os meios pelos quais se comunicam, preocupando-nos, sobretudo, em ressaltar a influência moral que resulta das manifestações para a conduta na vida futura, e os efeitos dessa certeza durante a vida presente.
Pelo preâmbulo era impossível estabelecer a situação de modo mais claro e melhor precisar o objetivo a que nos propúnhamos, a fim de evitar qualquer equívoco. Tivemos que tomar tal precaução, pois sabíamos que a audiência estava longe de ser homogênea e inteiramente simpática. Isso naturalmente não satisfez aos que esperavam uma sessão do gênero das do Sr. Home.
Polidamente um dos assistentes declarou que não era bem o que ele esperava. Acreditamo-lo sem esforço porque, em vez de exibir coisas curiosas, vínhamos falar de moral. Ele pediu mesmo com tanta insistência que déssemos provas da existência dos Espíritos, que fomos forçado a dizer-lhe que não os tínhamos no bolso para lhe mostrar. Por pouco não nos disse ele: “Procurai bem!”
Um jornalista que assistia à reunião entendeu dever fazer uma reportagem sob o pseudônimo de Tony, no Spectateur, hebdomadário de teatros, número de 12 de outubro. Ele começa assim:
“Seduzido pelo anúncio de um sarau espírita, apressei-me em ir ouvir um dos hierofantes mais acreditados dessa ciência... assim classificam os adeptos o Espiritismo. O numeroso auditório esperava com certa ansiedade o desenvolvimento das bases dessa ciência... pois há ciência. O Sr. Allan Kardec, autor dos livros dos Espíritos e dos Médiuns, iria iniciar-nos em terríveis segredos! Movido por um sentimento de curiosidade muito compreensível, e que nada tinha de hostil, esperávamos sair da sessão com uma meia convicção, se o professor, homem de inconteste habilidade, se tivesse dado ao trabalho de expor sua doutrina. O Sr. Allan pensou de modo diverso, o que é lamentável. Não lhe pediam que evocasse Espíritos, mas que pelo menos desse explicações claras ou mesmo elementares para facilitar a experimentação dos profanos.”
Esse começo caracteriza bem o pensamento de alguns ouvintes, que se julgavam espectadores. O termo seduzido diz mais que o resto. O que queriam eram explicações claras para facilitar a experimentação dos profanos. Por outras palavras, uma receita para que cada um, ao chegar em casa, pudesse divertir-se evocando Espíritos.
Segue-se uma tirada sobre a base da doutrina: a caridade, e outras máximas que, diz ele, vêm diretamente do Cristianismo e nada ensinam de novo. Se um dia aquele senhor se der ao trabalho de ler, saberá que jamais o Espiritismo pretendeu trazer aos homens outra moral senão a do Cristo, e que não se dirige aos que a PRATICAM na sua pureza. Mas, como há muitos que não creem nem Deus nem na alma ou nos ensinamentos do Cristo, ou, pelo menos, duvidam, e cuja moral se resume no Cada um por si, provando a existência da alma e da vida futura, o Espiritismo vem dar uma sanção prática e uma necessidade a essa moral. Queremos crer que o Sr. Tony dela não precise; que tenha uma fé viva, uma religião sincera, pois toma a defesa do Cristianismo contra o Espiritismo, posto algumas más línguas o acusem de ser um pouco materialista. Queremos crer, dizíamos, que ele pratica a caridade como verdadeiro cristão; que, a exemplo do Cristo, é suave e humilde; que não tem orgulho, nem vaidade, nem ambição; que é bom e indulgente para com todos, mesmo para com os inimigos; numa palavra, que tem todas as virtudes do divino modelo, mas que no mínimo não aborrece os outros.
Continua ele:
“O Espiritismo tem a pretensão de evocar os Espíritos. É verdade que eles não se submetem a caprichos e exigências. Eles podem, se necessário, revestir um corpo reconhecível, inclusive roupas, e só entram em relação com os médiuns sob a condição de serem envoltos numa camada de fluidos da mesma natureza... e porque não de natureza contrária, como na eletricidade? A ciência do Espiritismo não o explica.”
Leia e verá.
“Não sei se os adeptos se retiraram satisfeitos. Mas, sem a menor dúvida, os ignorantes desejosos de instruir-se nada colheram nessa sessão, a não ser que o Espiritismo não se demonstra. É falta do professor, ou o Espiritismo só desvenda os seus arcanos aos fiéis? Não vo-lo diremos... é obvio.”
TONY
CONCLUSÃO: ─ O Espiritismo não se demonstra.
O Sr. Tony deveria ter explicado claramente ─ já que gosta das explicações claras ─ por que ele é demonstrado a milhões de homens que não são tolos nem ignorantes. Que se dê ao trabalho de estudar e saberá se, como diz, está desejoso de instruir-se. Mas, desde que se julgou no dever de fazer um relatório público de uma reunião que nada tinha de pública, como se fora uma reportagem de um espetáculo onde se vai seduzido pelos cartazes, deveria, para ser imparcial, referir-se às palavras que dissemos no início da reunião.
Seja como for, só temos que nos felicitar pela polidez que presidiu à reunião e aproveitamos este ensejo para dirigir ao eminente funcionário, Sr. La Maison, os nossos agradecimentos pela acolhida cheia de benevolência e de cordialidade, e pela iniciativa de pôr sua sala de visitas à nossa disposição. Pareceu-nos útil provar-lhe, como à elite reunida em sua casa, as tendências morais do Espiritismo e a natureza do ensino que damos nos centros que visitamos.
O Sr. Tony ignora se os adeptos ficaram satisfeitos. Em seu ponto de vista, a sessão não deu resultado. Quanto a nós, preferimos ter deixado nalguns assistentes a impressão de um moralista cacete que a de um realizador de espetáculos. Um fato incontestável é que nem todos participaram de sua opinião. Sem falar dos adeptos que lá se encontravam, e dos quais recebemos calorosos testemunhos de simpatia, citaremos dois senhores que, ao fim da sessão, nos perguntaram se as instruções lidas seriam publicadas, acrescentando que faziam do Espiritismo uma ideia inteiramente falsa, mas que agora o viam de outro modo, compreendiam o lado sério e útil e se propunham estudá-lo profundamente. Já estaríamos satisfeito se esse fosse o único resultado. É barato, dirá o Sr. Tony. Seja. Mas ele ignora que dois grãos que frutificam se multiplicam. Aliás, temos certeza que todos os que semeamos nessa circunstância não ficarão perdidos, e que o vento soprado pelo Sr. Tony terá levado alguns para um terreno fértil.
O Sr. Florentin Blanchard, livreiro de Marennes, entendeu que deveria responder ao artigo do Sr. Tony, por uma carta que foi publicada no Tablettes des deux Charentes de 25 de outubro.
Replica o Sr. Tony, assim concluindo:
“O Espiritismo superexcita prejudicialmente os espíritos crédulos; agrava o estado das mulheres dotadas de grande irritabilidade nervosa e as enlouquece ou as mata, se persistirem nas suas aberrações.
“O Espiritismo é uma doença, e como uma doença ele deve ser combatido. Além do mais, entra no quadro das coisas... malsãs estudadas pela higiene pública e a moral.”
Aqui pilhamos o Sr. Tony em flagrante delito de contradição. No primeiro artigo, acima referido, disse que vinha à sessão “movido por um sentimento de curiosidade muito compreensível e que não tinha nada de hostil”. Como compreender que não fosse hostil a uma coisa que diz ser uma doença, uma coisa malsã, etc.?
Mais adiante ele diz que esperava explicações claras ou mesmo elementares para facilitar a experimentação dos profanos. Como podia ele desejar que fossem iniciados, ele e os profanos, à experimentação de uma coisa que, com ele diz, pode enlouquecer e MATAR? Por que veio? Por que não evitou que seus amigos viessem assistir ao ensino de coisa tão perigosa? Por que lamenta não tenha o ensino correspondido à sua expectativa, nem sido tão completo quanto desejava? Porque, em sua opinião, essa coisa é tão perniciosa, em vez de nos censurar por termos sido pouco explícito, ele deveria ter-nos felicitado por isso.
Outra contradição. Se ele veio à reunião para saber o que é, o que quer e o que pode o Espiritismo; se nos censura por não o termos instruído, é que não o conhecia. Ora, se ele não o estudou, como sabe que é tão perigoso? Então, ele o julga sem conhecimento. Assim, na sua autoridade privada, decide que é uma coisa má, malsã e que pode MATAR, logo depois de declarar que não sabe o que ela é. Isso é linguagem de um homem sério?
Há críticas que de tal modo se refutam a si mesmas que basta as assinalar, sendo supérfluo ligar-lhes importância. Em outras circunstâncias, uma alegação como a de matar, poderia ser acusada de calúnia, pois é levantar uma acusação de extrema gravidade contra nós e contra uma classe hoje imensamente numerosa de homens honradíssimos.
Isto não é tudo. O segundo artigo foi seguido de outros, onde ele desenvolve sua tese. Ora, eis o que se lê no Spectateur de 26 de outubro, por ocasião da primeira carta do Sr. Blanchard:
“A redação do Spectateur recebeu de Marennes, sob a assinatura de Florentin Blanchard, uma carta em resposta ao nosso primeiro artigo, de 12, quando este já estava composto. A redação lamenta que a exiguidade de seu formato não lhe permita abrir suas colunas para uma controvérsia sobre o Espiritismo. A pedido expresso do Spectateur, as Tablettes a publicaram in-extenso.
“Abstemo-nos de aqui responder tempestivamente, e decidimos não ceder, como seu autor, às inspirações de um Espírito inconveniente.
TONY”
Depois de uma segunda carta do Sr. Blanchard, desta vez publicada do Spectateur, lê-se:
“Concedemo-vos hospitalidade com prazer, Sr. Florentin Blanchard, mas seria preciso não abusar. Vossa carta de hoje me acusa de não ter estudado o Espiritismo. Como sabeis? Por certo não quereis discutir senão com iluminados e, a esse título, estou fora do páreo. De acordo. Por que não respondeis, senhor, a algumas proposições que terminam minha última carta, em vez de me acusar vagamente? Esta correspondência prolongada e sem interesse haveis de permitir-me que não continue.
“Retomarei proximamente minha série de artigos sobre o Espiritismo, mas só de tempos em tempos, porque as pequenas dimensões do Spectateur não permitem longos estudos sobre esse assunto burlesco.
“Por mais que façais, senhor, não tomaremos os espíritas a sério e não poderemos considerar o Espiritismo como uma ciência.
TONY”
Assim, tudo está claro: O Sr. Tony quer atacar o Espiritismo, arrastá-lo na lama, qualificá-lo de malsão, dizer que mata, sem contudo dizer quantas pessoas matou, mas não quer controvérsia. Seu jornal é bastante grande para os seus ataques, mas muito pequeno para as réplicas. Falar sozinho é mais cômodo. Ele esqueceu que, em razão da natureza e do caráter de seus ataques, a lei poderia obrigá-lo à inserção de uma resposta de dupla extensão, a despeito da exiguidade de seu jornal.
Com referência às particularidades de nossa excursão, quisemos mostrar que não buscamos nem solicitamos aquela reunião e que, consequentemente, não seduzimos ninguém a vir escutar-nos, por isso tivemos o cuidado de dizer com todas as letras, logo de começo, qual a nossa intenção. Os que não gostassem tinham liberdade de se retirar.
Agora nós nos felicitamos pela circunstância fortuita, ou antes, providencial, que nos levou a ficar, pois que provocou uma polêmica que apenas serve à causa do Espiritismo, dando-o a conhecer pelo que ele é: uma coisa moral, e não pelo que não quer ser: um espetáculo para satisfação dos curiosos; e por dar à crítica, mais uma vez, ocasião de mostrar a lógica de seus argumentos.
Agora, Sr. Tony, mais duas palavras, por favor. Para sustentar publicamente coisas como as que escrevestes, é preciso estar bem seguro dos fatos, e deveis ter a coragem de prová-los.
É muito cômodo discutir sozinho, contudo, não pretendo estabelecer convosco qualquer polêmica. Não tenho tempo para isso e, por outro lado, vosso jornal é muito pequeno para comportar a crítica e a refutação. Assim, seja dito sem vos ofender, sua influência não vai muito longe. Ofereço-vos coisa melhor: vinde a Paris, ante a Sociedade que presido, isto é, perante cento e cinquenta pessoas, sustentar e provar o que afirmais. Se tendes certeza de estar com a verdade, nada deveis recear, e eu vos prometo, sob palavra de honra, que, através da Revista Espírita, vossos argumentos e os efeitos por vós produzidos irão da China ao México, passando por todas as capitais da Europa.
Notai, senhor, que vos faço uma bela proposta, porque não é com a esperança de vos converter, ─ coisa que absolutamente não faz parte dos meus propósitos, ─ que vos faço essa proposição, pois ficareis inteiramente à vontade para conservar as vossas convicções. É para oferecer às vossas ideias contra o Espiritismo, ocasião para um grande desenvolvimento.
Para que saibais a quem ireis enfrentar, dir-vos-ei que a Sociedade se compõe de advogados, negociantes, artistas, homens de letras, cientistas, médicos, capitalistas, bons burgueses, oficiais, artesãos, príncipes, etc., tudo isso entremeado de um certo número de senhoras, o que vos garante uma atitude irreprochável quanto à urbanidade; mas todos atingidos até a medula, como os cinco ou seis milhões de adeptos dessa coisa malsã estudada pela higiene pública e a moral, e que ardentemente deveis desejar curar.
É possível o Espiritismo?
Suas deduções são tão lógicas que, a não ser que se negue Deus e a alma, não se pode deixar de dizer: Não pode ser de outro modo. Citaremos apenas alguns argumentos, e sobretudo a conclusão.
Quando Fulton expôs a Napoleão I o seu sistema de aplicação do vapor à navegação, afirmou e prometeu provar que sendo seu sistema verdadeiro em teoria, não o seria menos na prática.
─ Não é possível, vá lá! Mas de graça, ó gênios transcendentes! Dignai-vos de vos lembrardes do dito célebre de um Antigo e, antes de nos ferir com vosso supremo desdém, dignai-vos a escutar-nos.
Tende a bondade de ler estas linhas por inteiro ─ seriamente e atentamente ─ e depois, com a mão na consciência e com a sinceridade nos lábios, ousai, ousai negar a possibilidade, a racionalidade do Espiritismo!
Resumamos.
Filosoficamente, fisiologicamente, religiosamente, o Espiritismo não é irracional nem absurdo.
Então, ele é possível.
O homem age: sobre si mesmo, por seu verbo interior ou sua vontade e por seus sentidos; sobre seus semelhantes, por seu verbo exterior ou sua palavra, e igualmente por seus sentidos.
Por que, então, apenas por seu verbo interior, não se comunicaria com Deus, com o anjo e com os Espíritos, numa palavra, com qualquer outro ser incorpóreo por natureza, ou acidentalmente incorporificado, desprendido dos sentidos?
O Espírito é uma força, uma força que age sobre a matéria, isto é, sobre um ser que consigo nada tem de comum, inerte, ininteligente. Contudo, existem comunicações do Criador com a criação e do anjo com homem, bem como da alma do homem com o corpo do homem e, por ele, com o mundo exterior.
Mas o que é que impediria uma ação, uma comunicação recíproca de Espírito a Espírito? Se o Espírito se comunica com seres de natureza oposta à sua, não seria concebível que não se pudesse comunicar com outros de natureza idêntica.
─ De onde viria o obstáculo? Da distância?
─ Mas entre os Espíritos não há distância. “O ar está cheio deles”, disse São Paulo, para nos dar a compreender que, de certo modo, eles gozam da ubiquidade divina.
─ De uma diferença hierárquica?
─ Mas a hierarquia não entra no caso. Se são Espíritos, sua natureza exige que ajam e se comunicam entre si.
─ De seu repouso momentâneo nos laços do corpo?
─ Mas, salvo, nesse caso, a diferença dos meios de comunicação, ela nem por isso deixa de ocorrer. Meu Espírito se comunica com o vosso e o vosso Espírito, como o meu, habita um corpo. Com mais forte razão comunicar-se-á um Espírito livre ou liberto da matéria, quer se trate de um Espírito de anjo, quer da alma do homem.
Há mais. Longe de qualquer impedimento, tudo, ao contrário, favorece tal comunicação. “Deus é amor” e tudo quanto tem algo de divino participa do amor. Mas o amor vive de comunicações, de comunhões. Deus ama o homem. Então comunica-se com ele: no Éden, pela palavra; no Sinai, pela escrita; no estábulo de Belém e no Calvário, por seu verbo encarnado; no altar, por seu verbo transubstanciado no pão e no vinho eucarísticos.
Tenhamos, pois, como certo, que as comunicações de alma a alma, de Espírito a Espírito são ainda mais possíveis que as de Espírito à matéria.
Agora, qual será o instrumento, o meio de comunicação dos seres entre si?
Entre seres corpóreos, tal comunicação se opera pelo movimento, que é como que o verbo do corpo. Entre os seres puramente espirituais, pelo pensamento ou pela palavra interior, que é como o movimento dos Espíritos. Entre os seres ao mesmo tempo espirituais e corpóreos, por esse mesmo pensamento revestido de um sinal ao mesmo tempo corporal e espiritual, pela palavra exterior. Entre um ser espiritual e corpóreo, de um lado, e do outro um simplesmente espiritual, de ordinário pela palavra interior, manifestando-se exteriormente por um sinal material.
E qual será esse sinal? - Todo objeto material que se move, em dado momento, com movimento antecipadamente convencionado, sob a única influência, direta ou indireta, da vontade ou palavra interior do Espírito com o qual nos queremos comunicar
Recomendamos este artigo ao Sr. Tony, de Rochefort. Eis um de seus confrades que diz tudo ao contrário do que ele diz. Um diz branco, o outro diz preto. Com quem a razão? Há entre ambos uma diferença: um sabe, o outro não sabe. Deixamos ao leitor o encargo de julgar as duas lógicas.
O mesmo jornal publicou vários artigos sobre o mesmo assunto, de outros escritores que, como esse, têm o cunho de uma profunda observação e de um estudo sério. Deles falaremos oportunamente.
Charles Fourier, Louis Jourdain e a reencarnação
“Imagina qual não foi minha surpresa quando, na Doutrina Espírita, da qual não fazia a mínima ideia, reconheci toda a teoria de Fourier sobre a alma, a vida futura, a missão do homem na vida atual e a reencarnação das almas. Julga tu mesmo. Eis, em resumo, a teoria de Fourier:
“O homem está ligado ao planeta. Ele vive sua vida e não a deixa nem mesmo morrendo.
“Ele tem duas existências: a vida atual, que Fourier compara ao sono, e a vida que ele chama de aromal, a outra vida, numa palavra, que é o despertar. Sua alma passa alternativamente de uma vida à outra, e volta periodicamente a se reencarnar na vida atual.
“Na vida atual, a alma não tem o sentimento de suas vidas anteriores, mas o tem na vida aromal e vê todas as existências precedentes.
“As penas na vida aromal são os medos que as almas experimentam de serem condenadas, ao se reencarnarem na vida atual, a animar o corpo de um infeliz. Porque, diz Fourier, veem-se diariamente pessoas vindo pedir caridade à porta dos castelos dos quais foram donas em vida anterior, e acrescenta: “Se os homens estivessem bem convencidos da verdade que exponho ao mundo, todos se esforçariam por trabalhar pela felicidade de todos”.
“Vês, meu caro amigo, por esse curto extrato, quanto se assemelham a doutrina de Fourier e o Espiritismo e que, sendo eu falansteriano, não seria difícil fazer de mim um adepto da Doutrina Espírita.”
É impossível ser mais explícito sobre o capítulo da reencarnação. Não é apenas uma ideia vaga de existências sucessivas através de vários mundos. É neste que o homem renasce para se depurar e expiar.
Tudo aí está: alternância entre a vida espiritual, que ele chama de aromal, e a vida corpórea; esquecimento momentâneo durante esta vida, das existências anteriores, e lembrança do passado durante a primeira; expiação, pelas vicissitudes da vida.
Seu quadro dos infelizes que vêm mendigar à porta dos castelos de que foram donos em existências precedentes, parece calcado nas revelações dos Espíritos.
Por que razão aqueles que tão violentamente atacam hoje a doutrina da reencarnação, nada disseram quando Fourier dela fez uma das pedras angulares de sua teoria? É que, então, ela lhes parecia confinada nos falanstérios, ao passo que hoje percorre o mundo, além de outras razões facilmente compreensíveis, e que não precisamos abordar.
Aliás, ele não foi o único a ter a intuição dessa lei da Natureza. O germe dessa ideia é encontrado numa porção de escritores modernos. O Sr. Louis Jourdan, redator do Siècle, formulou-a de modo inequívoco no seu encantador livrinho Prères de Ludovic, publicado pela primeira vez em 1849, consequentemente antes que se cogitasse do Espiritismo, e é sabido que esse livro não é obra de ficção, mas de convicção.
Entre outras, coisas nele se lê o seguinte:
“Para mim, confesso, creio, mas creio firmemente, creio apaixonadamente, como se cria nas épocas primitivas, que cada
uma e cada um de nós prepara hoje a sua transformação futura, do mesmo modo que nossa existência atual é o produto de existências anteriores.” O livro é inteiramente assentado nessa base.
Agora encaremos a questão de outro ponto de vista, para responder a uma interrogação que a respeito nos foi feita várias vezes.
Algumas pessoas impugnam a doutrina da reencarnação, como contrária aos dogmas da Igreja, e daí concluem que a mesma não existe. O que é que se pode responder?
A resposta é muito simples. A reencarnação não é um sistema que depende dos homens adotá-la ou não, como se faz com um sistema político, econômico ou social. Se existe, é que está em a Natureza; é uma lei inerente à Humanidade, como comer, beber e dormir; uma alternativa da vida da alma, como a vigília e o sono são alternativas da vida do corpo. Se é uma lei da Natureza, não há uma opinião favorável que possa fazê-la prevalecer, nem uma opinião contrária que possa impedi-la de existir.
A Terra não gira em torno do Sol porque a gente acredita que ela gira, mas porque ela obedece a uma lei, e os anátemas que foram lançados contra essa lei não impediram que a Terra girasse. É assim com a reencarnação. Não será a opinião de alguns homens que os impedirá de renascerem, se tiverem que renascer.
Estabelecido que a reencarnação é uma lei da Natureza, suponhamos que ela não possa acomodar-se com um dogma. Trata-se de saber se a razão está com o dogma ou com a lei. Ora, quem é o autor de uma lei da Natureza, senão Deus? No caso, direi que não é a lei que contraria o dogma, mas o dogma que contraria a lei, pois qualquer lei da Natureza é anterior ao dogma, e os homens renasciam antes de ser estabelecido o dogma.
Se houvesse incompatibilidade absoluta entre um dogma e uma lei da Natureza, isso seria prova de que o dogma é obra dos homens, que não conheciam a lei, pois Deus não pode contradizer-se, desfazendo de um lado aquilo que fez do outro. Sustentar essa incompatibilidade é, pois, fazer o processo do dogma. Segue-se que o dogma é falso? Não, mas apenas que é susceptível de uma interpretação, como foi interpretada a Gênese, quando se reconheceu que os seis dias da criação não se acomodavam com a lei da formação do globo. A religião ganhará com isso, pois haverá menos incrédulos.
A questão é saber se existe ou não a lei da reencarnação. Para os espíritas, há milhares de provas contra uma, que é inútil aqui repetir. Direi apenas que o Espiritismo demonstra que a pluralidade de existências não só é possível, mas necessária, indispensável, e ele encontra a sua prova, sem falar da revelação dos Espíritos, numa inumerável multidão de fenômenos de ordem moral, psicológica e antropológica.
Tais fenômenos são efeitos que têm uma causa. Buscando-se a causa, encontramo-la na reencarnação, posta em evidência pela observação daqueles fenômenos, como a presença do Sol, embora oculto pelas nuvens, é posta em evidência pela luz do dia.
Para provar que está errada, ou que essa lei não existe, seria preciso explicar melhor, por outros meios, TUDO o que ela explica, o que ninguém ainda fez.
Antes da descoberta das propriedades da eletricidade, se alguém tivesse anunciado que poderia em cinco minutos corresponder-se a quinhentas léguas, não teriam faltado cientistas que lhe provassem cientificamente, pelas leis da mecânica, que a coisa era materialmente impossível, pois não conheciam outras leis. Para tanto havia necessidade da revelação de uma nova força. Assim com a reencarnação. É uma nova lei, que vem lançar luz sobre uma porção de questões obscuras e que modificará profundamente todas as ideias, quando for reconhecida.
Assim, não é a opinião de alguns homens que prova a existência dessa lei. São os fatos. Se invocamos o seu testemunho, é para demonstrar que ela tinha sido entrevista e suspeitada por outros, antes do Espiritismo, que não é o seu inventor, mas que a desenvolveu e lhe deduziu as consequências.
O Tugúrio e o Salão
Paris, 29 de julho de 1860.
Senhor,
Tomo a liberdade de vos comunicar as reflexões sugeridas por dois fatos por mim observados e que, com boas razões, poderiam ser qualificados de estudos de costumes espíritas. Vereis, por aqui, que os fenômenos morais têm valor para mim. Desde que me entreguei ao estudo do Espiritismo, parece que vejo cem vezes mais coisas que antes. Tal fato, ao qual não teria dado a mínima atenção, leva-me hoje a refletir. Estou ─ poderia dizer ─ ante um espetáculo perpétuo, no qual cada indivíduo tem o seu papel e me oferece um enigma a decifrar. É verdade que uns são tão fáceis, quando se possui a chave do Espiritismo, que se não tem grande mérito. Outros oferecem maior interesse, porque, com o Espiritismo, encontramo-nos como que num país cuja língua desconhecemos. Isso me tornou meditativo e observador, pois agora para mim tudo tem uma causa. Os mil e um fatos que outrora me pareciam produto do acaso e passavam despercebidos, hoje têm sua razão de ser e sua utilidade. Um nada, na ordem moral, atrai minha atenção e me é uma lição. Mas esquecia que é a propósito de uma lição que quero falar.
Sou professor de piano. Há tempos, indo à casa de uma de minhas alunas, de uma família da alta sociedade, entrei na portaria, não me lembro por quê. Uma senhora, com os punhos nos quadris, e que não se desqualificou nem pelo físico nem pelo moral, ocupava um canto. Eu a vi reprovar o comportamento da filha, menina de uns quinze anos, cujas maneiras estavam em chocante contraste com as da mãe.
─ Que fez a senhorita Justina ─ perguntei ─ para assim excitar a vossa cólera?
─ Nem me faleis, senhor, esta sirigaita não se dá conta de seus ares de duquesa! A senhorita não gosta de lavar a louça; acha que isso lhe estraga as mãos, que cheira mal, ela que foi criada com as vacas, na casa da avó. Ela tem medo de sujar as unhas; precisa de perfume para o lenço! Eu te darei perfumes! Eu!...
Então, uma valente bofetada a faz recuar quatro passos.
─ Ah! Vede, meu senhorzinho, é preciso corrigir as crianças quando pequenas. Jamais estraguei as minhas. Todos os meus filhos são bons operários, e é preciso que esta sirigaita perca os ares de grande dama.
Depois de haver dado uns conselhos, de doçura à mãe e de submissão à filha, subi para ter com a minha aluna, sem dar importância à cena de família.
Lá, por singular coincidência, vi a contrapartida. A mãe, mulher da sociedade, de belas maneiras, também repreendia a filha, mas por motivo oposto.
─ Mas tenha modos, Sofia, ─ dizia-lhe ela ─ você tem um verdadeiro aspecto de cozinheira. Não é de admirar. Você tem uma predileção particular pela cozinha, onde se sente melhor que na sala. Garanto que a Justina, a filha da porteira, teria vergonha de você. Dir-se-ia que vocês trocaram de berço.
Eu jamais havia notado essas particularidades. Foi necessária a aproximação das duas cenas para que as notasse. A senhorita Sofia, minha aluna, é uma jovem de dezoito anos, muito bela, mas seus traços têm algo de vulgar; suas maneiras são comuns e sem distinção; sua postura, seus movimentos têm algo de pesado e desajeitado. Eu ignorava sua inclinação pela cozinha. Pus-me, então, a comparar a pequena Justina, de instintos tão aristocráticos, e me perguntei se aí não estaria um exemplo chocante de pendores inatos, porquanto nas duas a educação foi impotente para modificá-los.
Por que uma, educada no seio da opulência e do bom-tom, tem gostos e maneiras vulgares, ao passo que a outra, que desde a infância viveu no meio mais rústico, tem o sentido da distinção e das coisas delicadas, a despeito dos corretivos da mãe para que perca o hábito?
Ó filósofos, que quereis sondar os refolhos do coração humano, explicai esses fenômenos sem as existências anteriores. Para mim, é indubitável que as duas moças têm o instinto daquilo que foram.
Que pensais disto, caro mestre?
Aceitai,
D...
Pensamos que a senhorita Justina, a porteira, bem poderia ser uma variante do que diz Charles Fourier: “Veem-se, todos os dias, pessoas mendigando à porta dos castelos de que foram donas em vidas precedentes.”
Quem sabe se a senhorinha Justina não teria sido a senhora desse palácio, e a senhorinha Sofia, a grande dama, a sua porteira?
Essa ideia é revoltante para certa gente que se não afaz ao pensamento de ter sido menos do que é, ou tornar-se criado de seu criado. Assim, o que se tornam as raças de puro sangue que se teve tanto cuidado de não mesclar?
Consolai-vos. O sangue dos vossos avós pode correr em vossas veias, pois o corpo procede do corpo. Quanto ao Espírito, é outra coisa. Mas que fazer, se assim é? Porque um homem se aborrece com a chuva, não deixará de chover.
Sem dúvida é humilhante pensar que de senhor se possa passar a servo e de rico a mendigo, mas nada é mais fácil do que impedir que assim seja. Basta não ser vão e orgulhoso para não ser rebaixado; ser bom e generoso para não ser reduzido a pedir aquilo que se recusou aos outros. Ser punido por aquilo em que se pecou, não é a mais justa das justiças? Sim, de grande a gente pode tornar-se pequeno, mas quando se foi bom, não se pode voltar a ser mau. Ora, não é melhor ser um proletário honesto que um rico vicioso?
Dissertações espíritas
Todos os santos
I
(PARIS, 1º DE NOVEMBRO DE 1862)
(MÉDIUM: SR. PERCHET, SARGENTO DO 40º DE LINHA, CASERNA DO PRÍNCIPE EUGÊNIO; MEMBRO DA SOCIEDADE DE PARIS)
Aqui nem sempre posso vir a ti, porque muitas vezes estou junto às minhas irmãs, especialmente junto à minha filhinha, que quase não deixo, pois pedi a missão de ficar junto a ela. Não obstante, posso com frequência responder ao teu chamado e será sempre uma felicidade ajudar-te com meus conselhos.
Falemos da festa de hoje. Nesta solenidade cheia de recolhimento, que aproxima o mundo visível do invisível, há felicidade e tristeza.
Felicidade, porque une em piedoso sentimento os membros dispersos da família. Neste dia a criança vem junto ao seu túmulo encontrar sua terna mãe, que molha a pedra sepulcral com suas lágrimas. O anjinho a abençoa e mistura seus votos aos pensamentos que caem, gota a gota, com as lágrimas da mãe querida. Como são doces ao Senhor essas castas preces, temperadas na fé e na saudade! Assim, subam aos pés do Eterno, como o suave perfume das flores e, do alto do Céu, Deus lance um olhar de misericórdia sobre este pequeno recanto da Terra e envie um de seus bons Espíritos para consolar esta alma sofredora e lhe dizer: “Consolai-vos, boa mãe. Vosso filho querido está na mansão dos bem-aventurados, vos ama e vos espera.”
Eu disse: dia de felicidade, e o repito, porque aqueles a quem a religião da saudade aqui leva a orar pelos que se foram, sabem que não é em vão, e que um dia irão rever os seres amados, dos quais se acham momentaneamente separados. Dia de felicidade, porque os Espíritos veem com alegria e ternura aqueles que lhes são caros merecerem, pela confiança em Deus, vir em breve participar da felicidade de que desfrutam.
Nesse dia de Todos os Santos, os mortos que corajosamente sofreram todas as provas impostas em vida, que se despojaram das coisas mundanas e educaram os filhos na fé e na caridade, esses Espíritos, repito, de boa vontade vêm associar-se às preces dos que deixaram, e lhes inspiram a firme vontade de marchar com perseverança pelo caminho do bem. Crianças, pais ou amigos, ajoelhados junto aos túmulos, experimentam íntima satisfação, porque têm consciência que os restos que lá estão, sob a lápide, não passam de uma lembrança do ser que eles encerraram e que agora se acha liberto das misérias terrenas.
Meu caro irmão, esses são os felizes. Até amanhã.
Contudo, em grande número essas almas são aliviadas pelos vivos e pela assistência dos bons Espíritos, principalmente quando se arrependeram das faltas terrenas e fazem esforços por se despojarem de suas imperfeições, causa única de seus sofrimentos. Agora eles compreendem a sabedoria, a bondade, a grandeza de Deus, e pedem o favor de novas provas para satisfazerem à justiça divina, expiar e reparar suas faltas e conquistar um futuro melhor.
Orai, pois, caros amigos, de todo o vosso coração, por esses Espíritos arrependidos que acabam de ser esclarecidos por uma centelha de luz. Até agora eles não haviam acreditado nas delícias eternas porque, em sua punição, o cúmulo do tormento era não poderem esperar. Julgai sua alegria quando se rompeu o véu das trevas e o anjo do Senhor lhes abriu os olhos feridos de cegueira à luz da fé.
Eles são felizes, entretanto, em geral não têm ilusões quanto ao futuro. Muitos dentre eles sabem que devem sofrer terríveis provas. Assim, reclamam insistentemente as preces dos vivos e a assistência dos bons Espíritos, a fim de poderem suportar com resignação a tarefa difícil que lhes será imposta.
Digo-vos, ainda, e nunca seria demasiado repeti-lo para bem vos convencer desta grande verdade: Orai do fundo do coração por todos os Espíritos que sofrem, sem distinção de casta ou seita, porque todos os homens são irmãos e se devem mútuo auxílio.
Espíritas fervorosos, sobretudo vós, que conheceis a situação dos Espíritos sofredores e sabeis apreciar as fases da vida; vós, que conheceis as dificuldades que eles têm a vencer, vinde em seu auxílio. É uma bela caridade orar pelos pobres irmãos desconhecidos, muitas vezes por todos esquecidos, e cujo reconhecimento não sabeis avaliar, quando se veem assistidos. A prece é para eles o que o orvalho é para a terra calcinada pelo calor.
Figurai um desconhecido, caído em qualquer obscuro desvio de um caminho, em noite escura. Seus pés estão feridos pela longa caminhada. Ele sente o aguilhão da fome e uma sede ardente. Aos sofrimentos físicos juntam-se todas as torturas morais. O desespero está a dois passos. Em vão ele solta gritos dilacerantes aos quatro ventos, mas nenhum eco amigo responde ao apelo desesperado.
Então! Imaginai que no instante em que essa infeliz criatura chegou aos extremos do sofrimento, mão compassiva vem pousar suavemente em seu ombro e lhe trazer o socorro que sua situação reclama. Imaginai, antão, se possível, o contentamento desse homem, e tereis uma pálida ideia da felicidade dada pela prece aos Espíritos infelizes, que suportam a angústia da punição e do isolamento. Eles vos serão eternamente agradecidos porque, tende certeza, no mundo dos Espíritos não há ingratos como na vossa Terra.
Eu disse que Todos os Santos é uma solenidade surgida da tristeza, realmente uma grande tristeza, pois também chama a atenção para a classe desses Espíritos que, na existência terrena, se votaram ao materialismo, ao egoísmo; que não quiseram reconhecer outros deuses senão as miseráveis vaidades de seu mundo ínfimo; que não temeram empregar todos os meios ilícitos para aumentar suas riquezas e muitas vezes jogar gente honesta na miséria. Entre esses se acham os que interromperam a existência por uma morte violenta, bem como aqueles que durante sua vida arrastaram-se na lama da impureza.
Meu caro irmão, que horríveis tormentos para todos esses! É exatamente como diz a Escritura: “Haverá choro e ranger de dentes”. Eles serão mergulhados no abismo profundo das trevas. Esses infelizes são vulgarmente chamados os danados e, posto seja mais exato chamá-los os punidos, nem por isso sofrem menos as terríveis torturas que se atribuem aos danados em meio às chamas. Envoltos nas mais espessas trevas de um abismo que lhes parece insondável, posto não seja circunscrito, como vos ensinam, experimentam sofrimentos morais indescritíveis, até abrirem o coração ao arrependimento.
Alguns, por vezes, ficam durante séculos nesse estado, sem poderem prever o fim de seus tormentos, Assim, eles se dizem condenados por toda a eternidade. Essa opinião errônea, durante muito tempo encontrou guarida entre vós. É um erro grave, porque, mais cedo ou mais tarde, esses Espíritos se abrem ao arrependimento e então, Deus, apiedado de suas desgraças, lhes envia um anjo que lhes dirige palavras consoladoras e lhes abre um caminho tanto mais largo quanto mais tiverem para ele sido feitas preces aos pés do Eterno.
Irmão, vês que as preces são sempre úteis aos culpados, e se elas não alteram os desígnios imutáveis de Deus, nem por isso dão menos alívio aos Espíritos sofredores, trazendo-lhes o suave pensamento de ainda se acharem na lembrança de almas piedosas. Assim, o prisioneiro sente o coração pular de alegria quando, através de suas tristes grades, percebe o rosto de algum parente ou amigo que não esqueceu sua desgraça.
Se o Espírito sofredor for muito endurecido, muito material, para que a prece lhe atinja a alma, um Espírito puro a recolhe como um aroma precioso e a deposita nas ânforas celestes, até o dia em que elas puderem servir ao culpado.
Para que a prece dê frutos, não basta balbuciar as palavras, como faz a maioria das criaturas. A única prece agradável ao Senhor é a que parte do coração, a única que é considerada, e que alivia os Espíritos sofredores.
De tua irmã que te ama,
Marguerite
Pergunta (feita na Sociedade):
Resposta (por intermédio do Sr. Perchet):
Sem dúvida, há ingratos no mundo dos Espíritos, e podeis colocar em primeiro plano os obsessores e os malévolos, que fazem esforços por vos inculcar pensamentos perversos; que fazem tudo o que podem para vos inculcar seus pensamentos perversos, a despeito do bem que lhes façais, orando por eles. Sua ingratidão, entretanto, é apenas momentânea, porque a hora do arrependimento soa para eles, mais cedo ou mais tarde. Então seus olhos se abrem à luz e seus corações também se abrem para sempre ao reconhecimento. Na Terra não é assim, e a cada passo encontrareis homens que, malgrado todo o bem que lhes façais, não pagam, até o fim, senão com a mais notória ingratidão.
A passagem que provocou essa observação só é obscura porque lhe falta extensão. Eu só encarava a questão do ponto de vista dos Espíritos abertos ao arrependimento e, por isso mesmo, aptos a colher imediatamente os frutos da prece. Encaminhados, esses Espíritos, à boa via, e não podendo retrogradar, é claro que neles não poderia extinguir-se o reconhecimento.
Para não haver confusão, redigirei assim a frase que suscitou a observação: “Eles vos serão eternamente reconhecidos porque, tende certeza, entre os Espíritos, aqueles a quem tiverdes levado ao bom caminho não poderiam ser ingratos”.
MARGUERITE
Nesta ocasião, perguntaremos ao Sr. Tony, o espirituoso e sobretudo muito lógico jornalista de Rochefort, que acredita que o Espiritismo é um dos males saídos da caixa de Pandora e uma dessas coisas malsãs estudadas pela higiene pública e a moral; nós lhe perguntaremos — íamos dizendo — que e o que há de malsão e de contrário à higiene nessa comunicação e se esses militares perderam a moralidade e a saúde, ao renunciarem aos maus lugares em favor da prece.
Dispensário Magnético
Levando ao conhecimento dos leitores a formação do estabelecimento dirigido pelo Sr. Canelle, que conhecemos pessoalmente e de longa data como magnetizador experimentado, não só espiritualista, mas sinceramente espírita, sentimo-nos feliz ao lhe dar esse testemunho de nossa simpatia.
O tratamento é dirigido por ele e por vários médicos magnetizadores. Sessões especiais são consagradas às magnetizações gratuitas. Para mais amplas informações vejam os prospectos.
Resposta a um senhor de Bordeaux
No artigo publicado no último número sobre Um remédio dado pelos Espíritos, foi omitido que antes da aplicação do ungüento é preciso lavar a ferida com água de malva ou outra loção refrescante.
ALLAN KARDEC