Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Allan Kardec

Você está em: Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862 > Janeiro


Janeiro

Ensaio de interpretação da doutrina dos anjos decaídos

A questão das origens tem sempre o condão de despertar a curiosidade e, sob tal ponto de vista, aquilo que se refere ao homem a desperta tanto mais quanto é impossível a toda criatura sensata aceitar ao pé da letra o relato bíblico, bem como deixar de nele ver uma dessas alegorias de que é pródigo o estilo oriental. Aliás, a Ciência vem fornecer-lhe a prova ao demonstrar, pelos meios menos contestáveis, a impossibilidade material da formação do globo em seis dias de vinte e quatro horas. Ante a evidência dos fatos escritos em caracteres irrefutáveis nas camadas geológicas, teve a Igreja que submeter-se à opinião dos sábios e concordar com eles que os seis dias da criação representam períodos de uma extensão indeterminada, como ela fez outrora, em relação ao movimento da Terra. Se, pois, é o texto bíblico suscetível de interpretação sob esse ponto capital, também poderá sê-lo em relação a outros pontos, notadamente sobre a época do aparecimento do homem na Terra, sobre a sua origem e sobre o sentido que deve ser emprestado à qualificação de anjos decaídos.

Como o princípio das coisas está nos segredos de Deus, que não no-lo revela senão à medida que o julga adequado, ficamos reduzidos a conjeturas. Muitos sistemas foram imaginados para resolver essa questão, e até hoje nenhum satisfez completamente à razão. Nós também vamos tentar levantar uma ponta do véu. Seremos mais felizes que nossos antecessores? Não o sabemos. Só o futuro decidirá. A teoria que apresentamos é, pois, uma opinião pessoal, entretanto parece-nos em concordância com a razão e com a lógica. É isso o que aos nossos olhos lhe dá um certo grau de probabilidade.

Para começar, constatamos ser impossível descobrir qualquer parcela da verdade, a não ser com o auxílio da teoria espírita. Ela já resolveu uma porção de problemas até agora insolúveis, e é com a ajuda das balizas que ela nos oferece que tentaremos remontar ao curso dos tempos. O sentido literal de certas passagens dos livros sagrados, contraditado pela Ciência, repelido pela razão, produziu muito mais incrédulos do que se pensa, dada a obstinação aplicada em fazer daquilo um artigo de fé. Se uma interpretação racional fizer com que seja aceita, evidentemente reaproximará da Igreja os que dela se afastaram.

Antes de prosseguir, é essencial nos entendamos a respeito dos vocábulos. Quantas querelas não deveram a sua eternização senão à ambiguidade de certas expressões, que cada um tomava no sentido de suas ideias pessoais! Isto ficou demonstrado em O Livro dos Espíritos, a propósito do vocábulo alma. Dizendo claramente em que acepção a tomávamos, cortamos cerce qualquer controvérsia. O vocábulo anjo está no mesmo caso: empregam-no indiferentemente, no bom e no mau sentido, dizendo: “os anjos bons e os maus, o anjo da luz e o anjo das trevas”, donde se segue que, na acepção geral, ele apenas significa Espírito. Evidentemente é nesse último sentido que deve ser entendido, ao se falar de anjos decaídos e de anjos rebeldes. Conforme a Doutrina Espírita, nisto concorde com muitos teólogos, os anjos não são seres de criação privilegiada, isentos de trabalho imposto aos outros, por um favor especial, mas Espíritos chegados à perfeição por esforços e méritos próprios. Se os anjos fossem seres criados perfeitos, sendo a revolta contra Deus um sinal de inferioridade, aqueles que se revoltaram não poderiam ser anjos. Também nos diz a Doutrina que os Espíritos progridem, mas não retrogradam, porque jamais perdem as qualidades adquiridas. Ora, a rebelião por parte de seres perfeitos seria uma retrogradação, porquanto ela só se concebe partindo de seres ainda atrasados.

Para evitar qualquer equívoco, conviria reservar a expressão anjos para os Espíritos puros e chamar os demais apenas Espíritos bons ou maus. Mas, como o uso consagrou essa expressão em relação aos anjos decaídos, nós dizemos que a tomamos na sua acepção geral. Ver-se-á que nesse sentido a ideia de queda e de rebelião é perfeitamente admissível.

Não conhecemos e talvez jamais venhamos a conhecer o ponto de partida da alma humana. Tudo quanto sabemos é que os Espíritos são criados simples e ignorantes; que progridem intelectual e moralmente; que em virtude do livrearbítrio, uns tomaram o bom caminho, outros um caminho errado; que uma vez posto o pé no atoleiro, se afunda cada vez mais; que depois de uma sequência ilimitada de existências corpóreas, realizadas na Terra e em outros mundos, depuram-se e chegam à perfeição que os aproxima de Deus.

Um ponto de difícil compreensão é a formação dos primeiros seres vivos na Terra, cada um em sua espécie, desde a planta até o homem. A teoria a esse respeito exarada em O Livro dos Espíritos se nos afigura a mais racional, embora só incompletamente e de modo hipotético ela resolva esse problema, que reputamos insolúvel, tanto para nós quanto para a maioria dos Espíritos aos quais não é dado penetrar o mistério das origens. Se os interrogamos a tal respeito, os mais sábios dizem ignorá-lo; outros, menos modestos, tomam a iniciativa e a postura de reveladores e ditam sistemas, produto de suas ideias pessoais, apresentando-os como a verdade absoluta. É contra a mania dos sistemas de certos Espíritos, em relação ao princípio das coisas, que nos devemos pôr em guarda. O que, aos nossos olhos, prova a sabedoria dos que ditaram O Livro dos Espíritos é a reserva que souberam guardar sobre questões dessa natureza. Em nossa opinião, não é prova de sabedoria resolver essas questões de maneira absoluta, como fizeram alguns, sem se inquietarem com impossibilidades materiais resultantes dos dados fornecidos pela Ciência e pela observação. Aquilo que dizemos acerca do aparecimento dos primeiros homens na Terra diz respeito à formação dos corpos, porque, uma vez formado o corpo, é mais fácil conceber que o Espírito venha tomar posse dele. Dados os corpos, o que nos propomos examinar aqui é o estado dos Espíritos que os animaram, a fim de chegar, se possível, a definir de modo mais racional do que se tem feito até agora, a doutrina da queda dos anjos e do paraíso perdido.

Se não admitirmos a pluralidade das existências corpóreas, temos que admitir que a alma é criada ao mesmo tempo que se forma o corpo, porque, uma de duas: ou a alma que anima o corpo ao nascer já viveu, ou não viveu ainda. Entre essas duas hipóteses não há meio-termo. Ora, da segunda hipótese ─ de que a alma não tenha vivido ─ decorre uma porção de problemas insolúveis, tais como a diversidade de aptidões e de instintos, incompatíveis com a justiça de Deus; a sorte das crianças que morrem em tenra idade; a dos cretinos, dos idiotas, etc., ao passo que tudo se explica naturalmente, se se admitir que a alma já viveu e que, ao encarnar-se em novo corpo, traz o que havia adquirido anteriormente. Assim é que as Sociedades progridem gradativamente; sem isto, como explicar a diferença existente entre o presente estado social e o dos tempos de barbárie? Se as almas fossem criadas ao mesmo tempo que os corpos, as que hoje nascem seriam absolutamente novas e tão primitivas quanto as que viviam há milhares de anos. Acrescente-se que entre elas não haveria qualquer conexão, nenhuma relação necessária; seriam completamente independentes umas das outras. Por que, então, as almas de hoje seriam melhor aquinhoadas por Deus que as criadas anteriormente? Por que então compreendem melhor? Por que têm instintos mais apurados e costumes mais suaves? Por que têm a intuição de certas coisas sem as haverem aprendido? Desafiamos à solução desse impasse, a menos que se admita que Deus tenha criado almas de diversas qualidades, conforme os tempos e os lugares, proposição essa inconciliável com a ideia de uma soberana justiça. Dizei, ao contrário, que as almas de hoje já viveram em épocas remotas; que foram bárbaras como o seu século, mas que progrediram; que para cada nova existência trazem as aquisições das existências anteriores e que, consequentemente, as almas dos tempos civilizados não foram criadas mais perfeitas, mas que se aperfeiçoaram por si mesmas com o tempo, e tereis, assim, a única explicação plausível para a causa do progresso social.

Estas considerações, tiradas da teoria da reencarnação, são essenciais para a compreensão de um fato de que falaremos a seguir.

Embora possam os Espíritos encarnar-se em diferentes mundos, parece que, em geral, realizam um certo número de migrações no mesmo globo e no mesmo meio, a fim de melhor aproveitarem a experiência adquirida; não saem desse meio senão para um pior, por punição, ou para um melhor, como recompensa. Disso resulta que, durante um certo período, a população do globo é, com pequenas variações, composta dos mesmos Espíritos, que aí reaparecem em diversas épocas, até atingirem um grau de depuração que lhes permita a transferência para mundos mais adiantados.

Conforme o ensino dado pelos Espíritos superiores, essas emigrações e imigrações dos Espíritos encarnados na Terra ocorrem de tempos em tempos, individualmente; mas, em certas épocas, realizam-se em massa, por força das grandes revoluções que fazem desaparecerem quantidades inumeráveis deles, sendo substituídos por outros Espíritos que sobre a Terra, ou sobre uma parte da Terra, constituem uma nova geração.

O Cristo disse uma coisa notável que não foi compreendida, como, aliás, muitas outras passagens tomadas ao pé da letra, quando sempre falava por imagens e parábolas. Anunciando os grandes acontecimentos no mundo físico e no mundo moral, disse ele: “Na verdade vos digo que não passará esta geração sem que se cumpram todas estas coisas”[1]. Ora, a geração do tempo do Cristo passou há mais de dezoito séculos, sem que essas coisas tivessem sido cumpridas. Disso devemos concluir ou que o Cristo se enganou, o que é inadmissível, ou que suas palavras tinham um sentido oculto, que foi mal interpretado.

Se, porém, nos reportarmos ao que dizem os Espíritos, não apenas a nós, mas pelos médiuns de todos os países, estaremos próximos da realização dos tempos preditos, de uma época de renovação social, isto é, de uma época dessas grandes emigrações dos Espíritos que habitam a Terra. Que os tendo enviado para cá, a fim de se melhorarem, Deus os deixou aqui o tempo necessário para progredirem. Deulhes a conhecer as suas leis, primeiro por Moisés, depois pelo Cristo; advertiu-os pelos profetas; em suas reencarnações sucessivas eles puderam aproveitar tais ensinamentos; agora os tempos são chegados, e aqueles que não aproveitaram as luzes, os que violaram a lei de Deus e desconheceram o seu poder, irão deixar a Terra onde, de agora em diante, estariam deslocados do meio pelo progresso moral que se realiza e ao qual só trariam entraves, quer como homens, quer como Espíritos. A geração da qual falava o Cristo não poderia ser entendida como a dos homens que viviam em seu tempo, fisicamente falando, mas deveria entender-se como a geração dos Espíritos que na Terra percorreram os diversos períodos de suas reencarnações e que irão deixá-la. Eles serão substituídos por uma nova geração de Espíritos que, moralmente mais adiantados, farão reinar entre si a lei do amor e da caridade ensinada pelo Cristo e cuja felicidade não será perturbada pelo contado dos maus, dos orgulhosos, dos egoístas, dos ambiciosos e dos ímpios.

Segundo o que dizem os Espíritos, parece mesmo que entre as crianças que agora nascem, muitas são reencarnações de Espíritos dessa nova geração. Quanto aos da antiga geração que tiverem méritos, mas que, apesar de tudo, não tiverem atingido um suficiente grau de depuração para chegarem a mundos mais adiantados, poderão continuar a habitar a Terra e aqui passar por mais algumas encarnações. Mas então, em vez de estarem em processo de punição, isto será uma recompensa, pois aqui serão mais felizes e em constante progresso. O tempo em que desaparece uma geração de Espíritos para dar lugar a outra pode ser considerado como o fim do mundo, isto é, do mundo moral.

Em que serão convertidos os Espíritos expulsos da Terra? Os próprios Espíritos nos dizem que eles irão habitar mundos novos, onde encontrarão seres ainda mais atrasados que os daqui, aos quais terão que fazer progredir, transmitindo-lhes o produto dos conhecimentos adquiridos.

O contato do meio bárbaro em que estarão ser-lhes-á uma expiação cruel e uma fonte de incessantes padecimentos físicos e morais, dos quais terão tanto mais consciência quanto maior for o desenvolvimento de sua inteligência. Mas essa expiação será, ao mesmo tempo, uma missão que lhes oferecerá meios de resgatar seu passado, conforme a maneira pela qual a desempenharem. Aí sofrerão uma série de reencarnações, durante um período mais ou menos longo, no fim do qual os que tiverem merecido serão retirados para mundos melhores, talvez para a própria Terra, que será, então, um recanto de felicidade e de paz, enquanto que os da Terra subirão, pouco a pouco, até o estado de anjos ou puros Espíritos.

Isto é muito demorado, dirão alguns. Não seria melhor ir de uma vez da Terra para o Céu? Sem dúvida, mas com tal sistema tendes a alternativa de ir, também em massa, da Terra para o Inferno, por toda a eternidade. Ora, haveis de concordar que, sendo aqui em baixo muito rara a soma de virtudes necessárias para ir diretamente da Terra para o Céu, poucos homens poderiam ter certeza de possuí-las. Disso resulta que há mais probabilidades de irem para o Inferno do que para o Paraíso. Não vale mais a pena fazer uma caminhada mais longa, mas com a certeza de atingir o objetivo? No estado atual da Terra ninguém se preocupa de a ela voltar, mas nada a isto obriga, porque depende de cada um progredir de tal modo, enquanto aqui se encontra, que possa merecer uma promoção. Nenhum prisioneiro, saindo do cárcere, pensa em voltar para ele, e o meio é muito simples. Basta não cair em nova falta. Também o soldado acharia muito cômodo tornar-se marechal rapidamente, entretanto, é preciso que faça essa conquista.

Remontemos ao curso dos tempos, e do presente, como ponto conhecido, procuremos deduzir o desconhecido, ao menos por analogia, embora sem a certeza de uma demonstração matemática.

A questão de Adão, como tronco único da espécie humana na Terra, é muito controvertida, como se sabe, porque as leis da Antropologia lhe demonstram a impossibilidade, sem falar dos documentos autênticos da história chinesa, que provam que a população do globo remonta a uma época muito anterior à que a cronologia bíblica assinala para Adão. Então a história de Adão é um conto da carochinha? Não é provável. É uma figura que, como todas as alegorias, deve encerrar uma grande verdade, cuja chave só será dada pelo Espiritismo. A questão principal, a nosso ver, não é saber se o personagem Adão existiu realmente, nem em que época viveu, mas se a raça humana, designada como sua posteridade, é uma raça decaída. A solução desta questão não é vazia de conteúdo moral, porque, esclarecendo-nos quanto ao nosso passado, pode orientar a nossa conduta para o futuro.

Notemos, de saída, que a ideia de queda aplicada ao homem é uma insensatez, quando separada da reencarnação, do mesmo modo que a responsabilidade que carregássemos pela falta de nosso primeiro pai. Se a alma de cada homem é criada ao nascer, é que não existia antes. Assim, não terá qualquer relação, direta ou indireta, com a que cometeu a primeira falta. Então surge a pergunta: como pode ela ser responsável por isso? A dúvida sobre tal ponto conduz naturalmente à dúvida e mesmo à incredulidade sobre muitos outros, pois se falso é o ponto de partida, falsas devem ser, também, as consequências. Tal o raciocínio de muita gente. Ora! Tal raciocínio cairá se considerarmos o espírito, e não a letra do texto bíblico, e se nos reportarmos aos princípios da Doutrina Espírita, destinados, conforme foi dito, a reanimar a fé que se extingue.

Notemos, ainda, que a ideia dos anjos rebeldes, dos anjos decaídos, do paraíso perdido, se acha em quase todas as religiões e no estado de tradição entre quase todos os povos. Ela deve, pois, assentar-se numa verdade. Para compreender o verdadeiro sentido que deve ser ligado à qualificação de anjos rebeldes, não é necessário supor uma luta real entre Deus e os anjos ou Espíritos, de vez que o vocábulo anjo é aqui tomado numa acepção geral. Admitindo-se que os homens sejam Espíritos encarnados, que são os materialistas e os ateus senão anjos ou Espíritos em revolta contra a Divindade, pois que negam a sua existência e nem reconhecem o seu poder nem as suas leis? Não é por orgulho que pretendem que tudo aquilo de que são capazes vem deles próprios e não de Deus? Não é o cúmulo da rebelião pregar o nada depois da morte? Não são muito culpados os que se servem da inteligência, de que se vangloriam, para arrastar os seus semelhantes para o precipício da incredulidade? Até certo ponto não praticam um ato de revolta aqueles que, sem negar a Divindade, desconhecem os verdadeiros atributos de sua essência? Os que se cobrem com a máscara da piedade para o cometimento de ações más? Aqueles cuja fé no futuro não os desliga dos bens deste mundo? Os que em nome de um Deus de paz violentam a primeira de suas leis: a lei da caridade? Os que semeiam a perturbação e o ódio pela calúnia e pela maledicência? Enfim, aqueles cuja vida voluntariamente inútil se escoa na inatividade, sem proveito para si próprios nem para os seus semelhantes? A todos serão pedidas contas, não só do mal que tiverem feito, mas do bem que tiverem deixado de fazer. Ora! Todos esses Espíritos que empregaram tão mal as suas encarnações, uma vez expulsos da Terra e enviados a mundos inferiores, entre populações ainda na infância da barbárie, que serão senão anjos decaídos, remetidos à expiação? Não será para eles a Terra que deixam um paraíso perdido, em comparação com o meio ingrato onde ficarão relegados durante milhares de séculos, até o dia em que tiverem merecido a libertação?

Se remontamos, agora, à origem da raça atual, simbolizada na pessoa de Adão, encontramos todos os caracteres de uma geração de Espíritos expulsos de outro mundo e exilados, por causas semelhantes, na Terra já povoada, mas por homens primitivos, mergulhados na ignorância e na barbárie, e que eles tinham por missão fazê-los progredir, trazendo para o seu meio as luzes de uma inteligência já desenvolvida. Não é, realmente, o papel até aqui desempenhado pela raça adâmica? Relegando-a para esta terra de trabalho e de sofrimento, não teria Deus razão para dizer: “Tu extrairás o teu pão com o suor de teu rosto?” Se ela mereceu tal castigo por causas semelhantes às que vemos hoje, não será justo dizer que se perdeu por orgulho? Na sua mansuetude não lhe poderia prometer que lhe enviaria um salvador, isto é, aquele que deveria iluminar o caminho a seguir para alcançar a felicidade dos eleitos? Esse salvador foi enviado na pessoa do Cristo, que ensinou a lei do amor e da caridade, como a verdadeira âncora de salvação.

Aqui se apresenta uma consideração importante. A missão do Cristo é facilmente compreendida admitindo-se que se trata dos mesmos Espíritos, que viveram antes e depois de sua vinda, e que assim puderam tirar proveito de seus ensinamentos, ou do mérito de seu sacrifício; mas já é mais difícil de compreender, sem a reencarnação, a utilidade desse mesmo sacrifício em prol de Espíritos criados posteriormente à sua vinda e que, assim, Deus teria criado manchados por faltas daqueles com os quais não tinham qualquer relação.

Essa raça de Espíritos parece ter completado o seu tempo na Terra. Dentre eles, alguns aproveitaram o seu tempo e progrediram, e por isso mereceram recompensa; outros, por sua obstinação em fechar os olhos à luz, esgotaram a mansuetude do Criador e mereceram castigo. Assim cumprir-se-á a palavra do Cristo: “Os bons ficarão à minha direita e os maus à minha esquerda”.

Um fato parece apoiar a teoria que atribui uma preexistência aos primeiros habitantes dessa raça na Terra: É que Adão, tido como o tronco, é representado com um desenvolvimento intelectual imediato muito superior ao das raças selvagens atuais; que os seus primeiros descendentes em pouco tempo mostraram aptidão para trabalhos de arte muito adiantados. Ora, o que sabemos do estado dos Espíritos em sua origem indica o que teria sido Adão, do ponto de vista intelectual, se sua alma tivesse sido criada ao mesmo tempo que o seu corpo. Admitindo que, por exceção, Deus lhe tivesse dado uma alma já mais perfeita, restaria explicar por que os selvagens da Nova-Holanda, por exemplo, se saem do mesmo tronco, são infinitamente mais atrasados que o pai comum. Ao contrário, tudo prova, pelo físico e pelo moral, que pertencem a outra raça de Espíritos, mais próximos de sua origem, e que ainda necessitam de um grande número de migrações corpóreas antes de atingirem os graus menos avançados da raça adâmica. A nova raça que vai surgir, fazendo reinar por toda parte a lei do Cristo, que é a lei de justiça, de amor e de caridade, apressará o seu adiantamento. Os que escreveram a história da Antropologia terrestre apegaram-se sobretudo aos caracteres físicos; o elemento espiritual foi quase sempre negligenciado e é invariavelmente negado pelos escritores que nada admitem fora da matéria. Quando este for levado em conta no estudo das ciências, lançará uma luz nova sobre uma porção de problemas ainda obscuros, porque o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, que desempenha um papel preponderante nos fenômenos físicos, tanto quanto nos fenômenos morais.

Vejamos, resumidamente, um exemplo de chocante analogia com o que se passa, em escala maior, no mundo dos Espíritos, e que nos ajudará a compreendê-lo.

A 24 de maio de 1861 a fragata Iphigénie desembarcou na Nova Caledônia uma companhia disciplinar composta de 291 homens. O comandante da colônia baixou, à sua chegada, a seguinte ordem do dia:

“Ao desembarcar nesta terra distante, já compreendestes o papel que vos está reservado.

“A exemplo de nossos bravos marinheiros, que servem aos vossos olhos, vós nos ajudareis a levar com brilho, para o meio das tribos selvagens da Nova Caledônia, o facho da civilização. Pergunto-vos: não é uma bela e nobre missão? Vós a desempenhareis dignamente.

“Escutai a voz e os conselhos dos vossos chefes. Eu estou à testa deles. Que as minhas palavras sejam bem entendidas.

“A escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos suboficiais e cabos é uma garantia segura de todos os esforços que serão tentados para fazer de vós excelentes soldados; direi mais, para vos elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados, se assim o quiserdes.

“Vossa disciplina é severa e deve sê-lo. Posta em nossas mãos, sabei-o, será firme e inflexível, mas também justa e paternal, saberá distinguir o erro do vício e da degradação...”

Temos aqui homens que, por seu mau comportamento, foram expulsos de um país civilizado e, como castigo, enviados para um meio bárbaro. Que lhes disse o chefe? “Infringistes as leis do vosso país; fostes causa de desordem e de escândalo e de lá fostes expulsos. Mandam-vos para cá. Mas podeis resgatar o vosso passado; pelo trabalho podeis conquistar aqui uma posição honrosa e vos tornardes cidadãos honestos. Tendes aqui uma bela missão a cumprir, a de trazer a civilização a estas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos distinguir os que se conduzirem bem.”

Para aqueles homens relegados ao seio da selvageria, a mãe pátria não é um paraíso perdido por sua culpa e por sua rebelião contra a lei? Nessa terra longínqua não são anjos decaídos? A linguagem do chefe não é a que Deus dirigiu aos Espíritos exilados na Terra? “Desobedecestes às minhas leis. Por isto vos expulsei do país onde poderíeis viver felizes e em paz. Aqui sereis condenados ao trabalho. Mas podereis, por vossa conduta, merecer o perdão e reconquistar a pátria que perdestes por vossa culpa ─ o Céu.”

À primeira vista, a ideia da queda parece em contradição com o princípio de que os Espíritos não podem retrogradar. E necessário, porém, considerar que não se trata de um retorno ao estado primitivo. Posto que numa posição inferior, nada perde o Espírito daquilo que adquiriu. Seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, seja qual for o meio em que se ache colocado. Ele está na situação de um homem do mundo, condenado às galés por seus crimes. Certamente é um decaído, do ponto de vista social, mas não se torna mais estúpido nem mais ignorante.

Iremos supor que esses homens mandados à Nova Caledônia irão se transformar subitamente em modelos de virtude? Que irão de repente abjurar todos os erros do passado? Fora necessário não conhecer a Humanidade para admiti-lo. Pela mesma razão, os Espíritos que serão expulsos da Terra, uma vez instalados nos mundos de exílio, não se despojarão subitamente do orgulho e dos baixos instintos.

Durante muito tempo conservarão as tendências de sua origem, um resto do velho fermento. O mesmo deve ter acontecido aos Espíritos da raça adâmica, exilados na Terra. Ora, não está aí o pecado original? A mancha que trazem ao nascer é a da raça de Espíritos culpados e punidos a que pertencem, mancha que podem apagar pelo arrependimento, pela expiação e pela renovação de sua personalidade moral. Considerado como responsabilidade por uma falta cometida por outrem, o pecado original é uma insensatez e a negação da justiça de Deus. Ao contrário, considerado como consequência e remanescente de imperfeição inicial do indivíduo, não só a razão o admite, mas se considera de plena justiça a responsabilidade dela decorrente.

Essa interpretação dá uma razão de ser absolutamente natural ao dogma da imaculada conceição, do qual tanto zombou o ceticismo. Esse dogma estabeleceu que a mãe de Cristo não era manchada pelo pecado original. Como pode ser isso? Muito simples: Deus enviou um Espírito puro, que não pertencia à raça culpada e exilada, para se encarnar na Terra e desempenhar a sua augusta missão, do mesmo modo que, de tempos em tempos, envia Espíritos superiores que se encarnam a fim de darem um impulso no progresso, acelerando-o. Na Terra tais Espíritos são como o venerável pastor que vai moralizar os condenados em suas prisões e lhes mostrar o caminho da salvação.

Por certo algumas pessoas acharão essa interpretação pouco ortodoxa. Algumas, até, a taxarão de herética. Mas não é certo que muitos não veem no relato da Gênesis, na história da maçã e na costela de Adão uma simples imagem? Que não podendo ligar um sentido preciso à doutrina dos anjos decaídos, dos anjos rebeldes e do paraíso perdido, consideram tudo isso simples fábulas? Se uma interpretação lógica os leva a ver uma verdade disfarçada sob a alegoria, não é melhor que a negação absoluta?

Admitamos que essa interpretação não seja, sob todos os pontos de vista, conforme a mais rigorosa ortodoxia, no sentido vulgar do termo: perguntamos se será preferível não acreditar absolutamente em coisa alguma do que acreditar nalguma coisa. Se a crença no texto literal afasta de Deus, e se a crença por força da interpretação dele aproxima, esta não vale mais que aquela? Não vimos, pois, destruir o princípio, podá-lo pela base, como fizeram alguns filósofos. Procuramos descobrir-lhe o sentido oculto e vimos, ao contrário, consolidá-lo e dar-lhe uma base racional. Como quer que seja, não se poderá negar a essa interpretação um caráter grandioso que, na verdade, falta ao texto literal. Essa teoria abarca, ao mesmo tempo, a universalidade dos mundos, o infinito no passado e no futuro; dá a todos a sua razão de ser pelo encadeamento de todas as coisas, pela solidariedade que estabelece entre todas as partes do Universo. Não é ela mais conforme à ideia que fazemos da majestade e da bondade de Deus, do que aquela que circunscreve a Humanidade a um ponto no espaço e a um instante na eternidade?



[1] Mt. 24:34; Mc. 13:30; Lc. 21:32. Nota do Tradutor.



Publicidades das comunicações espíritas

A questão da publicidade das comunicações espíritas é o complemento da organização geral de que tratamos no número anterior. À medida que se alarga o círculo dos espíritas, multiplicam-se os médiuns, e com eles o número das comunicações. De algum tempo para cá essas comunicações têm tido um desenvolvimento notável em relação ao estilo, aos pensamentos e à amplitude dos assuntos tratados. Elas cresceram com a própria ciência e os Espíritos calibram a altura de seu ensino pelo desenvolvimento das ideias. Isso tanto se dá nas províncias e no estrangeiro quanto em Paris, como o provam os numerosos exemplos que nos enviam, alguns dos quais têm sido publicados na Revista.

Dando essas comunicações, os Espíritos visam à instrução geral, à propagação dos princípios da doutrina, e tal objetivo não seria atingido se, conforme dissemos, elas ficassem escondidas nas pastas dos que as recebem. É, pois, útil espalhá-las pela via da publicidade. Disso resultará outra importante vantagem: a de provar a concordância do ensino espontâneo dado pelos Espíritos sobre todos os pontos fundamentais e de neutralizar a influência dos sistemas errados, provando o seu isolamento.

Trata-se, pois, de examinar o modo de publicidade que pode melhor alcançar esse objetivo, e por isso há dois pontos a serem levados em cota: o meio que oferece mais chances de extensão da publicidade, e as condições mais adequadas a produzir no leitor uma impressão favorável, quer pela judiciosa escolha dos assuntos, quer pela disposição material. Por não levarem em consideração certos detalhes, talvez simplesmente formais, as melhores obras são, por vezes, natimortas. Esta constatação é resultado da experiência. Certos editores têm, a esse respeito, um tato que lhes revela o hábito do gosto do público, o que lhes permite avaliar de relance e imediatamente as chances de sucesso de uma publicação, sem levar em conta o mérito intrínseco.

O desenvolvimento que tomam as comunicações espíritas colocam-nos na impossibilidade material de inserir todas na Revista. Para abarcar o quadro inteiro, fora necessário dar-lhe uma extensão tal que deixaria o preço fora do alcance de muita gente. Há, pois, necessidade de encontrar um meio de fornecê-la nas melhores condições para todos. Examinemos, de saída, os pró e os contra dos vários sistemas que poderiam ser empregados.

1º ─ Publicações periódicas locais. Estas apresentam dois inconvenientes. O primeiro, o de serem quase sempre restritas à localidade; o segundo, é que uma publicação periódica, devendo ser alimentada e distribuída em datas fixas, necessita de um material burocrático e de gastos regulares, que devem ser cobertos de qualquer modo, sob pena de interrupção. Se os jornais locais que se dirigem ao grande público por vezes têm dificuldade de sobreviver, com mais forte razão uma publicação dirigida a um público restrito, pois seria ilusório contar com muitos assinantes de fora, principalmente se tais publicações se fossem multiplicando.

2º ─ Publicações locais não periódicas. Uma sociedade, um grupo, os grupos de uma mesma cidade poderiam, como fizeram em Metz, reunir suas comunicações em brochuras independentes umas das outras e publicá-las em datas indeterminadas. Esse modo é incomparavelmente preferível ao precedente, sob o ponto de vista financeiro, porque não se assume compromissos e a gente é livre de parar quando quiser. Mas há sempre o inconveniente da restrição da publicidade. Para espalhar tais brochuras fora do círculo local, haveria necessidade de gastos com anúncios, ante os quais muitas vezes a gente recua, ou seria necessária uma livraria central, com numerosos correspondentes que de tal se encarregassem, mas aqui surge outra dificuldade. Os livreiros em geral não têm boa vontade para com as obras que eles próprios não editam; além disso, não querem ocupar os seus correspondentes com publicações para eles sem importância e de consumo incerto, por vezes feitas em más condições de venda pelo formato e pelo preço e que, além de descontentar os correspondentes, obrigá-los-ia a despesas de devolução. São considerações que a maioria dos autores, que desconhecem o ofício de livreiro, não compreendem, sem falar dos que, achando suas obras excelentes, admiram-se que nenhum editor se esforce por agenciá-las. Os próprios autores que mandam imprimir suas obras a suas expensas deveriam lembrar-se que, sejam quais forem as vantagens que ofereçam aos livreiros, a obra terá que aguardar os clientes se, em termos do ofício, não estiver em condições negociáveis.

Pedimos desculpa aos nossos leitores por entrar em detalhes tão materiais a propósito dessas coisas espirituais, mas é precisamente no interesse da propagação das boas coisas que queremos nos premunir contra as ilusões da inexperiência.

3º ─ Publicações individuais dos médiuns. ─ Todas as reflexões acima se aplicam, naturalmente, às publicações isoladas que certos médiuns poderiam fazer das comunicações que recebem. Mas, além da maior parte deles não poderem fazêlo, elas têm outro inconveniente: é que, em geral, têm um cunho de uniformidade que as torna monótonas, e diminuiria tanto mais o seu consumo quanto mais se multiplicassem. Só seriam atraentes se, tratando de um determinado assunto, formassem um todo e apresentassem um conjunto, quer fossem obra de um só Espírito quer de vários.

Essas considerações não são absolutas e certamente haverá exceções. Há, porém, que convir que repousam sobre um fundo de verdade. Aliás, aquilo que dizemos não visa impor nossas ideias, que cada um considerará ou não. Apenas, como a gente publica na esperança de um resultado, sentimo-nos na obrigação de expor as causas de decepções.

Os inconvenientes que acabamos de assinalar se nos afiguram completamente contornados pela publicação central e coletiva que os Srs. Didier & Cia. vão empreender sob o título de Bibliothèque du monde invisible[1]. Compreenderá uma série de volumes de grande formato in-18, sete folhas de impressão ou cerca de 250 páginas, ao preço uniforme de dois francos. Cada volume terá seu número de ordem, mas será vendido separadamente, de sorte que os interessados terão liberdade de adquirir os que lhes convierem, sem a obrigação de pagar pelos que lhes não interessam. Essa coleção, que não tem limites fixos, oferecerá meios de publicar, nas melhores condições possíveis, os trabalhos mediúnicos obtidos nos diversos centros, com a vantagem de uma publicidade muito ampla, por meio dos correspondentes. O que essa casa não faria por meio de brochuras isoladas, ela fará por meio de uma coleção que pode adquirir grande importância.

O nome de Biblioteca do mundo invisível é o título geral da coleção. Cada volume, porém, terá um título especial para designar o assunto e a procedência e beneficiará o autor, sem que este tenha que se imiscuir no produto das obras que lhe são estranhas. É uma publicação coletiva, mas sem solidariedade entre os produtores, e na qual cada um entra por sua conta e se sujeita às chances do mérito de sua obra, mas se aproveitando da publicidade comum.

Nessa coleção os editores não se propõem publicar tudo quanto lhes seja enviado. Ao contrário, reservam-se expressamente o direito de uma escolha rigorosa. Os volumes publicados à custa dos respectivos autores poderão entrar na coleção, se forem aceitos e estiverem nas condições de formato e preço.

Pessoalmente não temos vínculo com conjunto dessa publicação e com sua administração, que nada tem de comum com a Revista Espírita, nem com as nossas obras especiais sobre a matéria. Damos-lhe a nossa aprovação e o nosso apoio moral porque a julgamos útil e por ser a melhor via aberta aos médiuns, grupos e sociedades para suas publicações. Nela colaboraremos como os outros, por nossa conta, só assumindo responsabilidade pelo que levar o nosso nome.

Além das obras especiais que pudermos fornecer a essa coleção, dar-lhe-emos, sob o título especial de Portefeuille spirite[2], alguns volumes compostos de comunicações escolhidas, quer entre as que são obtidas em nossas reuniões de Paris, quer entre as que nos são remetidas por médiuns e grupos franceses e estrangeiros que se correspondem conosco e não querem fazer publicações pessoais. Oriundas de fontes diferentes, essas comunicações terão o atrativo da variedade. A elas juntaremos, conforme as circunstâncias, as observações necessárias à sua compreensão e desenvolvimento. A ordem, a classificação e todas as disposições materiais serão objeto de atenção especial.

Não visando lucro pessoal de tais publicações, nossa intenção é aplicar os direitos que nos couberem pelos cuidados a elas dados, em favor da distribuição gratuita de nossas obras sobre o Espiritismo às pessoas que não as puderem adquirir, ou qualquer outro emprego julgado útil à propagação da doutrina, conforme as condições que forem fixadas ulteriormente.

Tal plano parece corresponder a todas as necessidades e não duvidamos que seja acolhido com entusiasmo por todos os sinceros amigos da doutrina.



[1] Biblioteca do mundo invisível.
[2] Pasta espírita.


Controle do ensino espírita

A organização que propusemos para a formação de grupos espíritas visa preparar o caminho que deve facilitar suas relações mútuas. Entre as vantagens daí resultantes deve colocar-se em primeira linha a unidade de doutrina, que será sua consequência natural. Essa unidade já se acha em parte realizada e as bases fundamentais do Espiritismo são hoje admitidas pela imensa maioria dos adeptos. Mas ainda há questões duvidosas, ou porque ainda não tenham sido resolvidas, ou porque o foram em sentidos diversos pelos homens, e mesmo pelos Espíritos.

Se por vezes os sistemas são produto dos cérebros humanos, sabe-se que, a tal respeito, certos Espíritos não ficam para trás. Na verdade alguns se veem que arquitetam ideias absurdas com maravilhosa habilidade, encadeiam-nas com muita arte e constroem um todo mais engenhoso do que sólido, mas que poderia falsear a opinião de pessoas que não se dão ao trabalho de aprofundar-se, ou que são incapazes de fazê-lo pela insuficiência de conhecimentos. Sem dúvida as ideias falsas acabam caindo ante a experiência e a lógica inflexível. Mas antes disso podem produzir a incerteza.

Também é sabido que, conforme sua elevação, os Espíritos podem ter um modo de ver mais ou menos justo sobre determinados assuntos; que as assinaturas das comunicações nem sempre são garantia de autenticidade e que os Espíritos orgulhosos procuram por vezes pregar utopias ao abrigo de nomes respeitáveis, com que se enfeitam. É, sem a menor dúvida, uma das principais dificuldades da ciência prática, contra a qual muitos se chocaram.

Em caso de divergência, o melhor critério é a conformidade dos ensinos por diferentes Espíritos e transmitidos por médiuns diferentes e estranhos uns aos outros. Quando o mesmo princípio for proclamado ou condenado pela maioria, é preciso nos rendermos à evidência. Se há um meio de chegar à verdade é, certamente, pela concordância, tanto quanto pela racionalidade das comunicações, ajudadas pelos meios de que dispomos de constatar a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos. Desde que a opinião deixa de ser individual para se tornar coletiva, adquire um grau maior de autenticidade, porque não pode considerar-se como resultado de uma influência pessoal ou local. Os que ainda se acham em dúvida terão uma base para fixar as suas ideias, porque será irracional pensar que aquele que em seu ponto de vista está só, ou quase só, tenha razão contra todos.

O que acima de tudo contribuiu para o crédito da doutrina de O Livro dos Espíritos foi precisamente que sendo produto de um trabalho semelhante, tem um eco em toda parte. Como o dissemos, nem é obra de um Espírito único, que poderia ser sistemático, nem de um médium único, que poderia ser enganado. É, ao contrário, um ensino coletivo, dado por uma grande diversidade de Espíritos e de médiuns, e cujos princípios que encerra são confirmados mais ou menos por toda parte. Dizemos mais ou menos, visto que, como acima ficou explicado, há Espíritos que procuram fazer prevalecer suas ideias pessoais. É, pois, útil submeter as ideias divergentes ao controle que propomos. Se a doutrina ou quaisquer pontos doutrinários que professamos fossem reconhecidos como errados, num julgamento unânime, submeter-nos-íamos sem murmuração, sentindo-nos felizes por terem outros encontrado a verdade. Se, entretanto, ao contrário, elas forem confirmadas, hão de permitir creiamos estar com a verdade.

A Sociedade Espírita de Paris, compreendendo toda a importância de semelhante trabalho e tendo, em primeiro lugar, que esclarecê-lo por si mesma, e depois provar que de modo algum pretende erigir-se em árbitro absoluto das doutrinas que professa, submeterá aos diversos grupos que com ela se correspondem as questões que julgar mais úteis à propagação da verdade. Essas questões serão submetidas, conforme as circunstâncias, por correspondência particular ou por intermédio da Revista Espírita.

Compreende-se que para ela, e em razão da maneira séria pela qual encara o Espiritismo, a autoridade das comunicações depende das condições em que se realizam as reuniões, o caráter dos membros e o objetivo que se tenha em mira. Provindo de grupos formados sobre as bases indicadas em nosso artigo sobre a organização do Espiritismo, as comunicações terão tanto mais peso aos seus olhos quanto melhores forem as condições desses grupos.

Submetemos aos nossos correspondentes as questões que se seguem, enquanto aguardam as que remeteremos posteriormente.




Questões e problemas propostos aos vários grupos espíritas

1º - Formação da Terra

Há dois sistemas sobre a origem e a formação da Terra. Na opinião mais comum, e que parece geralmente adotada pela Ciência, ela seria o produto da condensação gradual da matéria cósmica sobre um determinado ponto do espaço. O mesmo se teria dado com os outros planetas.

Segundo um outro sistema, preconizado nos últimos tempos, conforme a revelação de um Espírito, a Terra teria sido formada da incrustação de quatro satélites de um antigo planeta desaparecido. Tal junção teria sido resultante da vontade própria da alma desses planetas. Um quinto satélite, a Lua, ter-se-ia recusado, em virtude de seu livre-arbítrio, a uma tal associação. Os vazios deixados entre eles pela ausência da Lua teriam formado as cavidades que foram enchidas pelos mares. Cada um desses planetas teria trazido consigo seres cataleptizados: homens, animais e plantas, que lhe eram peculiares. Saindo de sua letargia, depois de operada a junção e restabelecido o equilíbrio, esses seres teriam povoado o globo atual. Tal seria a origem das raças-mães do homem da Terra: a raça negra na África, a amarela na Ásia, a vermelha na América e a branca na Europa.

Qual desses dois sistemas pode ser considerado como expressão da verdade?

A respeito desse assunto, bem como dos outros, solicita-se uma solução explícita e raciocinada.


2º - Alma da Terra

A proposição que se segue é tirada de uma brochura intitulada Resumo da religião harmônica.



“Deus criou o homem, a mulher e todos os mais belos e melhores seres. Mas concedeu a todas as almas de astros o poder de criar seres de ordem inferior, a fim de completar o seu mobiliário, já pela combinação do seu próprio fluido prolífico, conhecido em nosso globo sob o nome de aurora boreal, já pela combinação desse fluido com o de outros astros. Ora, a alma do globo terrestre que, como as almas humanas, goza do livre-arbítrio, isto é, da faculdade de escolher o caminho do bem ou do mal, deixou-se arrastar por este último. Daí as criações imperfeitas e más, tais como os animais ferozes e venenosos, e os vegetais que produzem venenos. Mas a Humanidade fará desaparecer esses seres nocivos quando, ao se pôr em acordo com a alma da Terra para marchar pelo caminho do bem, ocupar-se, de maneira mais inteligente, da gestão do globo terrestre, sobre o qual será criado um mobiliário mais perfeito.”

O que há de verdadeiro nessa proposição? O que se deve entender por alma da Terra?


3º - Sede da alma humana

Lê-se na mesma obra a passagem seguinte, citada como extraída de A chave da vida, página 751:

“A alma é de natureza luminosa divina. Tem a forma do ser humano que ela anima. Reside num espaço situado na substância cerebral mediana, que reúne os dois lóbulos do cérebro por sua base. No homem harmonioso e na unidade, a alma, diamante resplandecente, é adornada por uma branca coroa luminosa. É a coroa da harmonia.”

O que há de verdadeiro nessa proposição?


4º - Sede das almas

Na mesma obra:

“Enquanto habitam as regiões planetárias, os Espíritos são obrigados a reencarnar-se para progredirem. Desde que chegam às regiões solares, não mais necessitam da reencarnação e progridem indo habitar sóis de ordem superior, de onde passam às regiões celestes. A Via Láctea, cuja luz é tão suave, é a morada dos anjos ou Espíritos superiores.”

Isto é verdade?


5º - Manifestações dos Espíritos

Conforme a doutrina ensinada por um Espírito, nenhum Espírito humano pode manifestar-se ou comunicar-se com os homens, ou servir de intermediário entre Deus e a Humanidade, visto que, sendo Deus Todo Poderoso e estando em toda parte, não necessita de auxiliares para a execução de sua vontade, pois tudo faz por si mesmo. Em todas as comunicações ditas espíritas, só Deus se manifesta, tomando a forma, nas aparições, e a linguagem, nas comunicações escritas, dos Espíritos evocados e aos quais julgamos falar. Em consequência, desde que a criatura está morta, não pode mais haver relações entre ela e os que deixou na Terra, antes que, por uma série de reencarnações sucessivas, durante as quais progridem, tenham atingido o mesmo grau de adiantamento no mundo dos Espíritos. Podendo apenas Deus manifestar-se, resulta que as comunicações grosseiras, triviais, blasfemas e mentirosas são igualmente dadas por ele, mas como prova, do mesmo modo que as dá boas, a fim de instruir.

O Espírito que ditou essa comunicação diz naturalmente que ele próprio é Deus. Nesse pressuposto, formulou uma extensa doutrina filosófica, social e religiosa.

O que pensar de tal sistema, de suas consequências e da natureza do Espírito que o ensina?


6º - Anjos rebeldes, anjos decaídos, paraíso perdido

O que pensar da teoria a respeito disso, no artigo acima, escrito pelo Sr. Allan Kardec?


Do sobrenatural - Pelo Sr. Guizot (2º artigo—Vide o nº de dezembro de 1861)

Em nosso último número publicamos o eloquente e notável capítulo do Sr. Guizot a propósito do sobrenatural, a respeito do qual nos propúnhamos fazer algumas observações críticas, que em nada diminuem a nossa admiração pelo ilustre escritor.

O Sr. Guizot acredita no sobrenatural. Sobre esse, como sobre muitos outros pontos de vista, importa nos entendamos quanto às palavras. Em sua acepção própria, sobrenatural significa o que está acima da Natureza, fora das leis da Natureza. O sobrenatural, propriamente dito, não está submetido a leis; é uma exceção, uma derrogação das leis que regem a Criação. Numa palavra, é sinônimo de milagre.

No sentido próprio, esses dois vocábulos passaram à linguagem figurada, servindo para designar tudo quanto seja extraordinário, surpreendente, insólito. De uma coisa que causa admiração, diz-se que é miraculosa, como se diz de uma grande extensão, que é incomensurável; de um grande número, que é incalculável ou de uma longa duração, que é eterna, muito embora, a rigor, possam ser medidas, calculadas e previsto um termo à última. Pela mesma razão qualifica-se de sobrenatural aquilo que à primeira vista parece sair dos limites do possível. O vulgo é sempre levado a tomar o vocábulo ao pé da letra naquilo que não compreende. Se por tal se entende tudo quanto se afaste das causas conhecidas, está bem; mas então o vocábulo não tem mais sentido preciso, porque aquilo que era sobrenatural ontem já não o é hoje. Quantas coisas, outrora como tal consideradas, não fez a Ciência entrarem no domínio das leis naturais!

Apesar dos progressos que temos feito, podemos vangloriar-nos de conhecer todos os segredos de Deus? Já nos disse a Natureza a última palavra sobre todas as coisas? Não temos desmentidos diários a essa orgulhosa pretensão? Se, pois, aquilo que ontem era sobrenatural hoje não o é, podemos logicamente inferir que o sobrenatural de hoje deixará de sê-lo amanhã. Para nós, tomamos o vocábulo sobrenatural no seu mais absoluto sentido próprio, isto é, para designar todo fenômeno contrário às leis da Natureza. O caráter do fato natural ou miraculoso é de ser excepcional. Desde que se repete, é porque está submetido a uma lei, conhecida ou não, e entra na ordem geral.

Se restringirmos a Natureza ao mundo material visível, é evidente que as coisas do mundo invisível serão sobrenaturais. Mas estando, também, o mundo invisível submetido a leis, parece-nos mais lógico definir a Natureza como o conjunto das obras da Criação, regidas pelas leis imutáveis da Divindade. Se, como o demonstra o Espiritismo, o mundo invisível é uma de suas forças, um dos poderes reagentes sobre a matéria, ele representa um papel importante em a Natureza. Por essa razão os fenômenos espíritas para nós nem são sobrenaturais, nem maravilhosos ou miraculosos. Daí se nota que longe de ampliar o círculo do maravilhoso, o Espiritismo tende a restringi-lo e fazê-lo desaparecer.

Dissemos que o Sr. Guizot acredita no sobrenatural, mas no sentido miraculoso, o que de modo algum implica na crença nos Espíritos e suas manifestações. Ora, desde que, para nós, os fenômenos espíritas nada têm de anormal, não se segue que, em determinados casos, Deus não venha derrogar as suas leis, de vez que é Todo Poderoso. Tê-lo-ia feito? Não é aqui o lugar de examinar o problema. Para tanto, fora necessário discutir, não o princípio, mas cada fato isoladamente. Ora, colocando-nos no ponto de vista do Sr. Guizot, isto é, da realidade dos fatos miraculosos, vamos tentar combater a consequência que daí ele tira, isto é, que a religião não é possível sem o sobrenatural e, ao contrário, provar que de seu sistema decorre o aniquilamento da religião.

O Sr. Guizot parte do princípio de que todas as religiões se fundam no sobrenatural. Isso é certo se entendermos como tal aquilo que se não compreende. Se, porém, remontarmos ao estado dos conhecimentos humanos na época da fundação de cada religião conhecida, veremos quão limitado era o saber humano em Astronomia, em Física, em Química, em Geologia, em Fisiologia, etc.

Se, nos tempos modernos, um bom número de fenômenos já perfeitamente conhecidos e explicados passam por maravilhosos, com mais forte razão assim deveria ser em tempos remotos. Acrescentemos que a linguagem figurada, simbólica e alegórica, em uso entre todos os povos do Oriente, naturalmente se prestava às ficções, cujo verdadeiro sentido a ignorância não era capaz de descobrir.

Acrescentemos, ainda, que os fundadores das religiões, homens superiores à craveira comum, conhecendo muito mais, tiveram que impressionar as massas, cercando-se de um prestígio sobre-humano, enquanto certos ambiciosos puderam explorar a credulidade. Vede Numa, Maomé e tantos outros! Direis que são impostores. Seja.

Tomemos as religiões saídas da lei mosaica. Todas adotam a criação segundo o Gênesis. Ora, haverá realmente algo de mais sobrenatural do que essa formação da Terra, tirada do nada, surgida do caos, povoada por todos os seres vivos, homens, animais e plantas, todos formados e adultos, e isto em seis vezes vinte e quatro horas, como se por um golpe de varinha mágica? Não é a derrogação formal das leis que regem a matéria e a progressão dos seres? Certamente que Deus podia fazê-lo. Mas ele o fez? Ainda há bem poucos anos isto era afirmado como artigo de fé, e eis que a Ciência repõe o fato magno da origem do mundo na ordem dos fatos naturais, provando que tudo se realizou segundo as leis eternas. A religião sofreu por não ter mais como base um fato maravilhoso por excelência? Incontestavelmente muito teria sofrido no seu crédito se se tivesse obstinado em negar a evidência, ao passo que ganhou entrando na ordem comum.

Um fato muito menos importante, apesar das perseguições a que deu origem, é o de Josué parando o Sol para prolongar o dia em duas horas. Não importa se foi o Sol ou a Terra que parou. O fato não deixa de ser sobrenatural. É uma derrogação de uma lei capital, a da força que arrasta os mundos.

Pensaram em sair da dificuldade reconhecendo que é a Terra que gira, mas não haviam levado em conta a maçã de Newton, a mecânica celeste de Laplace e a lei da gravitação. Se o movimento da Terra for suspenso, não por duas horas, mas por alguns minutos, cessará a força centrífuga e a Terra precipitar-se-á sobre o Sol. O equilíbrio das águas na sua superfície é mantido pela continuidade do movimento. Cessando este, tudo se esboroa. Ora, a história do mundo não menciona o menor cataclismo nessa época. Não contestamos que Deus tenha podido favorecer a Josué, prolongando a claridade do dia. Por que meio? Ignoramo-lo. Poderia ter sido uma aurora boreal, um meteoro ou qualquer outro fenômeno que não tivesse alterado a ordem das coisas. Mas, inquestionavelmente, não foi aquele que, durante séculos, foi tomado como artigo de fé. É muito natural que outrora acreditassem, mas hoje isso é impossível, a menos que se renegue a Ciência.

Dirão que a religião se apoia sobre muitos outros fatos que nem são explicados, nem explicáveis. Não explicados, sim; inexplicáveis, é outra questão. Sabemos que descobertas e que conhecimentos estão reservados ao futuro? Já não vemos, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, reproduzirem-se os êxtases, as visões, as aparições, a visão à distância, as curas instantâneas, os transportes, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, outrora considerados maravilhosos e hoje demonstrados como pertinentes à ordem das coisas naturais, conforme a lei constitutiva dos seres?

Os livros sagrados estão cheios de fatos qualificados de sobrenaturais. Como, porém, os encontramos análogos e até mais maravilhosos em todas as religiões pagãs da antiguidade, se a verdade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, não saberíamos qual delas seria a verdadeira.

Como prova do sobrenatural, cita o Sr. Guizot a formação do primeiro homem, que foi criado adulto porque, diz ele, sozinho e na infância não teria podido alimentar-se, mas se Deus fez uma exceção criando-o adulto, não teria podido fazer outra, dando ao menino os meios de viver, e isto sem se afastar da ordem estabelecida? Sendo os animais anteriores ao homem, não era possível, em relação ao primeiro menino, realizar a fábula de Rômulo e Remo?

Dizemos o primeiro menino quando deveríamos dizer os primeiros meninos, pois a questão de um tronco único para a espécie humana é controvertida. Com efeito, as leis da antropologia demonstram a impossibilidade material que a posteridade de um só homem tivesse podido, em alguns séculos, povoar toda a Terra e se transformar em raças negras, amarelas e vermelhas, pois está bem demonstrado que essas diferenças são devidas à constituição orgânica, e não ao clima.

O Sr. Guizot sustenta uma tese perigosa ao afirmar que nenhuma religião é possível sem o sobrenatural. Se ele assenta as verdades do Cristianismo sobre a base única do maravilhoso, dá-lhe um apoio frágil, cujas pedras se desagregam a cada dia. Damos-lhe uma base mais sólida: as leis imutáveis de Deus. Esta base desafia o tempo e a Ciência, porque os tempos e a Ciência virão sancioná-la.

A tese do Sr. Guizot conduz, pois, à conclusão que, num tempo dado, não haverá mais religião possível, nem mesmo a cristã, se se demonstrar que é natural aquilo que é tomado como sobrenatural. Foi isso que quis ele provar? Não. Mas é a consequência de seu argumento, e para ela marchamos a passos largos, porque, por mais que se faça, por mais que se amontoem raciocínios, não se chegará a manter a crença de que um fato é sobrenatural quando ficou provado que não é.

A tal respeito somos muito menos céticos que o Sr. Guizot, e dizemos que Deus não é menos digno de nossa admiração, do nosso reconhecimento e do nosso respeito por não haver derrogado as suas leis, grandes principalmente por sua imutabilidade; que não há necessidade do sobrenatural para lhe render o culto que lhe é devido e, consequentemente, para ter uma religião que encontrará tanto menos incrédulos quanto mais é, em todos os pontos, sancionada pela razão.

Em nossa opinião, nada tem o Cristianismo a perder com essa sanção, mas apenas a lucrar. Se algo o prejudicou, na opinião de muitos, foi precisamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural. Fazei com que os homens vejam a grandeza e o poder de Deus em todas as suas obras; mostrai-lhe a sabedoria e a admirável previdência, desde a germinação da plantinha até o mecanismo do Universo, e as maravilhas serão abundantes. Substitua-se em seu espírito a ideia de um Deus ciumento, colérico, vingativo e implacável, pela de um Deus soberanamente justo, bom e misericordioso, que não condena a suplícios eternos e sem esperança, por faltas temporárias. Que desde a infância ele seja alimentado por essas ideias que crescerão com a razão, e fareis muito mais crentes, firmes e sinceros, do que se forem embalados por alegorias, que são impostas ao pé da letra e que, mais tarde, repelidas por ele, conduzi-lo-ão a duvidar de tudo e a tudo negar. Se quereis manter a religião pela via única da ilusão do maravilhoso, só haverá um meio: manter os homens na ignorância. Vede se isso é possível. Por muita insistência em mostrar a ação de Deus apenas nos prodígios, nas exceções, a gente deixa de mostrá-la nas maravilhas que calcamos aos nossos pés.

Certamente objetarão com o nascimento do Cristo, que não poderia ser explicado pelas leis naturais e que é uma das provas mais brilhantes de seu caráter divino. Não é aqui o lugar de examinar esse assunto. Entretanto, ainda uma vez, não contestamos a Deus o poder de derrogar as suas leis. O que contestamos é a necessidade absoluta de tal derrogação, para o estabelecimento de uma religião qualquer.

Dirão que o Magnetismo e o Espiritismo, reproduzindo os fenômenos tidos por miraculosos, são contrários à religião atual, porque tendem a tirar desses fatos o seu caráter sobrenatural. Mas, que fazer, se os fatos são verdadeiros? Não os impedirão, desde que não constituem privilégio de um homem, mas se repetem no mundo inteiro. Outro tanto poder-se-ia dizer da Física, da Química, da Astronomia, da Geologia, da Meteorologia, de todas as ciências, enfim. A tal respeito diremos que o ceticismo de muita gente não tem outra fonte senão a impossibilidade, para eles, de tais fatos excepcionais. Negando a base sobre que se apoiam, negam tudo o mais. Prove-se-lhes a possibilidade e a realidade de tais fatos, reproduzindo-os aos seus olhos, e serão forçados a acreditar.

─ Isso é tirar ao Cristo o seu caráter divino!

─ Então preferis que eles não creiam em nada a acreditarem em alguma coisa? Haverá apenas esse meio de provar a divindade da missão do Cristo? Seu caráter não se destaca cem vezes melhor da sublimidade de sua doutrina e do exemplo que ele deu de suas virtudes? Se não se vê esse caráter senão nos atos materiais que praticou, outros não os fizeram semelhantes, para não falar senão de seu contemporâneo Apolônio de Tiana? Por que, então, o Cristo o superou? É porque fez um milagre muito maior do que transformar água em vinho; alimentar quatro mil homens com cinco pães; curar epilépticos; dar vista aos cegos e fazer andarem os paralíticos. Esse milagre é o de ter mudado a face do mundo; é a revolução feita pela simples palavra de um homem saído de um estábulo, durante três anos de pregações, sem nada haver escrito, ajudado apenas por alguns obscuros pescadores ignorantes. Eis o verdadeiro prodígio, no qual é preciso ser cego para não ver a mão de Deus. Penetrai os homens dessa verdade, eis a melhor maneira de convertê-los em sólidos crentes.




Poesias de além-túmulo

Queríamos versos deberanger (Sociedade espírita do México, 20 de Abril de 1858)

Desde que deixei nossa bela pátria, vi muitas terras.

Escuto chamar-me.

Cada um me diz: “Venha, venha, por favor: nós queremos versos de Béranger”.

Deixai, porém, repousar essa musa risonha.

Hoje ela mora nos vastos campos dos ares e, para louvar a seu Deus, sua voz sempre alegre se mistura diariamente aos concertos celestes.

Outrora ela cantou em árias muito frívolas, mas seu coração era bom.

Chamando-a a si, Deus não julgou más suas palavras levianas.


Ele amava e orava sem detestar ninguém.

Se eu pude flagelar a raça capuchinha, com isso os franceses deram boas risadas.

E se o bom Deus me destinar a regressar à Terra, reservarei para eles um estribilho de troça.


Arre! Vocês me assassinam, ó gente leviana! Versos! Sempre versos!

O pobre Béranger os fez em quantidade, ao passar pela Terra.


E contra eles a sua morte devia protegê-lo.


Mas, não! Nada disso! Que se cumpra o seu destino!


Eu esperava, ao morrer, que Deus o tivesse impedido.

Do pobre Béranger assistis ao suplício, e quereis puni-lo, ai de mim! por seu pecado.


BÉRANGER


Tento mais uma canção (Sociedade espírita do México)

I

Filho querido de uma terra adorada, aqui me lembro sempre de você.

Sob outros céus, alma regenerada, encontrei beleza, mocidade e amor.


Enfim estou no topo da vida, mundo eterno onde todos renascemos.

E, pobre Espírito desta outra pátria, ainda tento mais uma canção.


II

Vi chegar essa deusa pálida, cujo nome, só, a todos nos comove.

Mas não vendo em seus olhos senão ternura, pude apertar as mãos sem receio.

Adormeci e minha nova amiga embalou minha partida em sons maviosos.

E, pobre Espírito desta outra pátria, ainda tento mais uma canção.


III

Ide em paz. Deitai-vos no túmulo, ó mortos felizes, sem preocupação de despertar.

Vossos olhos fechados são a tela que cai, para se reabrir de novo, a um sol mais radioso.


Sorride, pois! A morte vos convida a seus banquetes de brilhantes colheitas.

E, pobre Espírito desta outra pátria, ainda tento mais uma canção.

IV

Estão caídos os gigantes da glória: escravos, reis, todos serão confundidos, porque, para nós todos, a mais bela vitória cabe ao que mais sabe amar.


Lá vemos aquilo que pede o nosso amor ou aquilo que, pesar nosso, aqui na Terra deixamos.

E, pobre Espírito desta outra pátria, ainda tento mais uma canção.


V


Amigos, adeus. Entro no espaço, que sempre posso transpor ao vosso chamado:


imensidade que jamais nos deixa e que em breve percorrereis.


Sim, com voz feliz e rejuvenescida, juntos recitareis minhas lições.

E, pobre Espírito desta outra pátria, ainda tento mais uma canção.



BÉRANGER


NOTA: De passagem por Paris, o presidente da Sociedade Espírita do México nos confiou uma série de comunicações dessa sociedade e nos autorizou a escolher o que julgássemos de mais utilidade. Pensamos que os leitores não se lamentarão por essa primeira escolha que fizemos. Verão pelas mostras que bonitas comunicações são dadas em toda a parte. Devemos acrescentar que o médium que obteve as poesias acima é uma senhora inteiramente alheia à poesia.





Bibliografia

O Espiritismo na sua expressão mais simples, ou a Doutrina dos Espíritos popularizada

A brochura que anunciamos sob este título, em nosso último número, sairá a 15 de janeiro, mas, em vez de 25 centavos, preço indicado, será vendida a 15 centavos por exemplar avulso, ou a 10 centavos por exemplar, na compra de 20 exemplares, ou seja, 2 francos, além do porte.

O objetivo dessa publicação é dar, num quadro muito sucinto, o histórico do Espiritismo, e uma ideia suficiente da Doutrina dos Espíritos, para que se lhe possa compreender o objetivo moral e filosófico. Pela clareza e pela simplicidade do estilo, procuramos pô-la ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os verdadeiros espíritas para ajudar na sua propagação.


Revelações de Além-Túmulo

Pela Sra. H. Dozon, médium evocadora, Sr. H. Dozon, ex-oficial dos lanceiros da guarda, cavaleiro da Legião de Honra.

Um volume grande in-18, 2,25 francos. Livraria Ledoyen; Galerie d’Orléans, 31, Palais Royal.

A obra é uma coleção de comunicações obtidas pela Sra. Dozon, médium, membro da Sociedade Espírita de Paris, durante e após grave e dolorosa enfermidade que, como ela mesma diz, teria abatido sua coragem, não fossem a sua fé no Espiritismo e a evidente assistência dos amigos e guias espirituais que a sustentaram nos momentos mais difíceis. Assim, a maioria das comunicações são marcadas pelo cunho das circunstâncias em que foram dadas. Seu objetivo evidente era levantar o moral abatido, o que foi alcançado plenamente. Seu caráter é essencialmente religioso. Elas respiram a mais pura, suave e consoladora moral. Algumas são de notável elevação de ideias. É de lamentar-se apenas a rapidez com que o volume foi impresso, o que não permitiu fazer todas as desejáveis correções materiais.

Se a Biblioteca do Mundo Invisível, que anunciamos, estivesse em vias de publicação, essa obra teria podido aí encontrar uma honrosa posição.



Testamento em favor do Espiritismo

Meu caro senhor e muito honrado chefe espírita,

Junto a esta o meu testamento hológrafo, em envelope lacrado em cera verde, com menção sobre esse envelope lacrado do que deverá ser feito após a minha morte. Desde o momento em que conheci e compreendi o Espiritismo, seu objetivo, sua finalidade última, tive a ideia e tomei a resolução de fazer o meu testamento.

Tinha deixado para minha volta do campo, neste inverno, esta obra de minhas últimas vontades.

No lazer e na solidão do campo foi possível recolher-me e, à luz desse divino facho do Espiritismo, aproveitei todos os ensinamentos que recebi, sob todos os pontos de vista, dos Espíritos do Senhor, para me guiar no cumprimento desta obra da maneira mais útil aos meus irmãos da Terra, quer sentados em meu lar, quer perto ou longe de mim, conhecidos ou desconhecidos, amigos ou inimigos, e da maneira mais agradável a Deus.

Lembrei-me desse respeitável Sr. Jobard, de Bruxelas, cuja morte súbita o senhor nos anunciou, e do que ele escrevia na sua linguagem profunda e, ao mesmo tempo, faceta e espirituosa, relativamente a uma herança de vinte milhões, dos quais se dizia espoliado: que essa soma colossal teria sido uma alavanca poderosa para ativar de um século a nova era que se inicia. O dinheiro, que frequentemente e do ponto de vista terreno, tem sido chamado o nervo da guerra, é, com efeito, um instrumento temibilíssimo, poderoso para o bem e para o mal aqui na Terra, e eu disse de mim para mim: “Posso e devo consagrar, para ajudar essa nova era, uma notável porção de meu modesto patrimônio que adquiri, para a realização de minhas provas, com o suor de meu rosto, à custa de minha saúde, através da pobreza, da fadiga, do estudo e do trabalho, e por trinta anos de vida militante de advogado, um dos mais ocupados nas audiências e no escritório.

Reli a carta que, depois de sua viagem a Roma, Lamennais escreveu a 1º de novembro de 1832 à condessa Senfft, na qual, com a expressão de suas decepções após tantos esforços e lutas consagradas à procura da verdade, encontravam-se estas palavras, senão proféticas, ao menos inspiradas, anunciando essa era nova.

(Seguem-se várias citações que deixamos de reproduzir por falta de espaço).

O envelope contém o seguinte aviso:

“Neste envelope, lacrado com cera verde, está meu testamento hológrafo. O envelope só deve ser aberto e o selo quebrado após a minha morte, em sessão geral da Sociedade Espírita de Paris. Nessa sessão, pelo presidente dessa Sociedade que estiver em exercício na época de minha morte, será feita a inteira leitura de meu testamento. O dito envelope será aberto e o dito selo será rompido pelo presidente. O presente envelope selado, contendo meu testamento, e que vai ser entregue ao Sr. Allan Kardec, presidente atual da dita Sociedade, será depositado por ele nos arquivos dessa Sociedade. Um original desse mesmo testamento será encontrado, na época de minha morte, depositado no gabinete da Sra. xxx; um outro original será, na mesma época, encontrado em minha casa. O depósito com o Sr. Allan Kardec é mencionado nos outros originais.”

Tendo sido comunicada à Sociedade Espírita de Paris em sua sessão de 20 de novembro de 1861, o presidente, Sr. Allan Kardec foi encarregado de agradecer, em nome da Sociedade, as generosas intenções do testamentário em favor do Espiritismo, e de felicitá-lo pela maneira como ele compreende a sua finalidade e o seu alcance.

Conquanto o autor da carta não haja recomendado silenciar o seu nome, caso se quisesse publicá-lo, compreende-se que, em tais circunstâncias e num ato dessa natureza, a mais absoluta reserva é obrigação rigorosa.


Carta ao Sr. Dr. Morhéry, A propósito da Srta. Godu

Nos últimos tempos têm sido comentados certos fenômenos estranhos operados pela senhorita Godu e que consistiriam notadamente na produção de diamantes e de grãos preciosos por meios não menos estranhos. O Sr. Morhéry escreveu-nos a respeito uma longa carta descritiva e algumas pessoas admiraram-se de que não a tivéssemos comentado. A razão disso é que não aceitamos nenhum fato com entusiasmo. Examinamos as coisas friamente antes de aceitá-las, pois nos ensina a experiência quanto devemos desconfiar de certas ilusões.

Se tivéssemos publicado sem exame todas as maravilhas que nos foram relatadas mais ou menos de boa-fé, nossa revista talvez se tivesse tornado mais divertida, mas devemos conservar-lhe o caráter sério que sempre teve.

Quanto à nova e prodigiosa faculdade que se teria revelado na senhorinha Godu, francamente achamos que a de médium curador era mais preciosa e mais útil à Humanidade, e mesmo à propagação do Espiritismo. Contudo, nada negamos, e aos que pensam que com tal notícia logo teríamos tomado a estrada de ferro para nos certificarmos, responderemos que, se a coisa é verdadeira, não deixará de ser constatada oficialmente. Então será o momento de falar, e não teremos nenhuma reserva em ser o primeiro a proclamá-la.

Eis um resumo da resposta que demos ao Sr. Morhéry:

“...É certo que não publiquei todos os relatórios que me enviastes sobre as curas operadas pela senhorinha Godu, mas disse o bastante para chamar a atenção para ela. Falar constantemente do caso fora dar a impressão de estar a serviço de interesses particulares. Aconselhava a prudência esperar que o futuro confirmasse o passado.

Quanto aos fenômenos que relatais na última carta, são tão estranhos que não me aventurarei a publicá-los senão quando tiver a sua confirmação de maneira irrefutável. Quanto mais anormal um fato, mais circunspecção ele exige. Não vos surpreendereis de que eu use muita, em tais circunstâncias. É este, também, o conselho do Comitê da Sociedade, ao qual submeti a vossa carta. Por unanimidade foi decidido aguardar o desenvolvimento, antes de falar do caso. Até agora tal fato é tão contrário a todas as leis naturais, e mesmo a todas as leis conhecidas do Espiritismo, que o primeiro sentimento que provoca, mesmo entre os espíritas, é de incredulidade. Falar dele antecipadamente e antes de poder apoiar-se em provas autênticas seria excitar inutilmente a veia dos trocistas.”



NOTA: Adiamos para o próximo número a publicação de diversas evocações e dissertações espíritas de subido interesse.

ALLAN KARDEC


TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados