Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Março

Onde é o céu?

O vocábulo céu se diz, em geral, do espaço indefinido que circunda a Terra e, mais particularmente, da parte que está acima do nosso horizonte. Vem do latim coelum, formado do grego coilos, oco, côncavo, porque o céu parece aos nossos olhos como uma imensa concavidade. Os Antigos acreditavam na existência de vários céus superpostos, compostos de matéria sólida e transparente, formando esferas concêntricas, das quais a Terra era o centro. Girando em torno da Terra, essas esferas arrastavam consigo os astros, que se achavam em seu circuito.

Essa ideia, devida à insuficiência de conhecimentos astronômicos, foi a de todas as teogonias, que fizeram dos céus, assim escalonados, os diversos graus da beatificação. O último era a morada da suprema felicidade. Segundo a opinião mais comum, havia sete, daí a expressão Estar no sétimo céu para exprimir a felicidade perfeita. Os Muçulmanos admitem nove, em cada um dos quais aumenta a felicidade dos crentes. O astrônomo Ptolomeu[1] considerava a existência de onze, dos quais o último era chamado Empíreo[2], devido à deslumbrante luz que ali reina. É ainda hoje o nome poético, dado ao lugar da eterna beatitude. A teologia cristã reconhece três céus: o primeiro é o da região do ar e das nuvens; o segundo é o espaço onde se movem os astros; o terceiro, além da região dos astros, é a morada do Altíssimo, a casa dos eleitos que contemplam Deus face a face. É em vista dessa crença que se diz que São Paulo foi levado ao terceiro céu.

As diversas doutrinas concernentes à morada dos bem-aventurados repousam todas no duplo erro de considerar a Terra como centro do Universo e a região dos astros limitada. Foi para além deste limite imaginário que todas colocaram essa morada feliz e a morada do Todo-Poderoso. Singular anomalia que coloca o autor de todas as coisas, o que as governa todas, nos confins da criação, em vez de colocá-lo no centro, de onde a radiação de seu pensamento poderia estender-se a tudo!

Com a inexorável lógica dos fatos e da observação, a Ciência levou seu facho até as profundezas do espaço e mostrou a inanidade de todas essas teorias. A Terra já não é o pivô do Universo, mas um dos menores astros rodando na imensidade. O próprio Sol não passa de centro de um turbilhão planetário. As estrelas são inumeráveis sóis, em torno dos quais circulam mundos incontáveis, separados por distâncias acessíveis apenas ao pensamento, embora pareçam tocar-se. Nesse conjunto, regido por leis eternas nas quais se revelam a sabedoria e a onipotência do Criador, a Terra não aparece senão como um ponto imperceptível e um dos menos favorecidos para a habitabilidade. Isto posto, perguntamos por que Deus teria feito dela a única sede da vida e para aí teria relegado suas criaturas prediletas. Tudo, ao contrário, indica que a vida está por toda parte, e que a Humanidade é infinita como o Universo. Revelando-nos a Ciência mundos semelhantes à Terra, Deus não poderia tê-los criado sem objetivo. Deve tê-los povoado por seres capazes de governá-los.

As ideias do homem estão na razão do que ele sabe. Como todas as descobertas importantes, a da constituição dos mundos deve ter-lhes dado outro curso. Sob o império desses novos conhecimentos, suas crenças devem ter-se modificado. O céu foi deslocado, e a região das estrelas, não tendo limites, não mais lhe pode servir. Onde está ele? Diante de tal questão, todas as religiões ficam mudas.

O Espiritismo vem resolvê-la, demonstrando o verdadeiro destino do homem. A natureza deste último e os atributos de Deus tomados como ponto de partida, levam à conclusão.

O homem é composto de corpo e Espírito. O Espírito é o ser principal, o ser racional, o ser inteligente; o corpo é o envoltório material que reveste temporariamente o Espírito para a execução de sua missão na Terra e para o trabalho necessário ao seu adiantamento. Uma vez gasto, o corpo se destrói e o Espírito sobrevive à sua destruição. Sem o Espírito, o corpo é apenas matéria inerte, como um instrumento privado do braço que o maneja; sem o corpo, o Espírito é tudo: vida e inteligência. Deixando o corpo, ele retorna ao mundo espiritual de onde havia saído para encarnar-se.

Existe, portanto, o mundo corporal, composto de Espíritos encarnados, e o mundo espiritual, formado pelos Espíritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, em consequência de seu envoltório material, estão presos à Terra, ou a um globo qualquer. O mundo espiritual está por toda parte, em redor de nós e no espaço. Nenhum limite lhe é marcado. Em razão da natureza fluídica de seu envoltório, os seres que o compõem, em vez de se arrastarem penosamente no solo, transpõem as distâncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo é a ruptura dos laços que os retêm cativos.

Os Espíritos são criados simples e ignorantes, mas com aptidão para tudo adquirir e para progredir, em virtude de seu livre-arbítrio. Pelo progresso, adquirem novos conhecimentos, novas faculdades, novas percepções e, em consequência, novos prazeres desconhecidos aos Espíritos inferiores. Eles veem, ouvem, sentem e compreendem o que os Espíritos atrasados não podem ver nem ouvir nem sentir nem compreender. A felicidade é proporcional ao progresso realizado, de sorte que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto o outro, unicamente porque não é tão adiantado intelectual e moralmente, sem que haja necessidade de se achar cada um deles num lugar distinto. Embora estejam um ao lado do outro, um pode estar nas trevas, enquanto tudo é resplendente em redor do outro, absolutamente como para um cego e um vidente que se dessem as mãos: um percebe a luz, que não exerce qualquer impressão sobre seu vizinho. A felicidade dos Espíritos é inerente às qualidades que possuem. Assim, eles a desfrutam onde quer que se encontrem, na superfície da Terra, entre encarnados, ou no espaço.

Uma comparação vulgar dará melhor ainda a compreender esta situação. Se num concerto estiverem dois homens, um deles bom músico e de ouvido educado e o outro sem conhecimento de música e com o ouvido pouco delicado, o primeiro experimenta uma sensação de satisfação, ao passo que o segundo fica insensível, porque um compreende e percebe o que no outro não causa nenhuma impressão. Assim se dá com todos os prazeres dos Espíritos, que estão na razão da aptidão para senti-los. O mundo espiritual tem esplendores em toda parte, harmonias e sensações que os Espíritos inferiores, ainda submetidos às influências da matéria, nem mesmo entreveem, pois só são acessíveis aos Espíritos depurados.

O progresso dos Espíritos é fruto de seu próprio trabalho. Mas, como são livres, eles trabalham por seu adiantamento com maior ou menor intensidade ou negligência, conforme sua vontade. Assim, eles apressam ou retardam seu progresso, e, por isto mesmo, sua felicidade. Enquanto uns avançam rapidamente, outros se arrastam por longos séculos nas categorias inferiores. Eles são, portanto, os próprios artífices de sua situação, feliz ou infeliz, conforme as palavras do Cristo: “A cada um segundo as suas obras.” Todo Espírito que fica para trás não pode lamentar-se senão de si mesmo, da mesma forma que aquele que avança tem todo o mérito do próprio esforço. A felicidade que ele conquistou tem mais valor aos seus olhos.

A felicidade suprema só é partilha dos Espíritos perfeitos, isto é, dos puros Espíritos. Eles só a atingem depois de haver progredido em inteligência e moralidade. O progresso intelectual e o progresso moral raramente marcham juntos, mas o que o Espírito não faz num tempo, fá-lo-á em outro, de sorte que os dois progressos acabam por atingir o mesmo nível. Eis a razão pela qual, por vezes, se veem homens inteligentes e instruídos muito pouco adiantados moralmente, e viceversa.

A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do Espírito: Ao progresso intelectual, pela atividade que ele é obrigado a desenvolver no trabalho; ao progresso moral, pela necessidade que os homens têm uns dos outros. A vida social é a pedra de toque das boas e das más qualidades. A bondade, a maldade, a suavidade, a violência, a benevolência, a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a má-fé, a hipocrisia, numa palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o homem perverso, tem por móvel, por objetivo e por estimulante as relações do homem com os seus semelhantes. Por isto, quem vivesse sozinho não teria vícios nem virtudes. Se, pelo isolamento, ele se preserva do mal, anula a possibilidade de fazer o bem.

Uma única existência corporal é manifestamente insuficiente para que o Espírito possa adquirir tudo o que lhe falta em bem e se desfazer de tudo o que em si é mau. O selvagem, por exemplo, poderia, numa só encarnação, atingir o nível moral e intelectual do mais adiantado europeu? Isto é materialmente impossível. Deve ele ficar eternamente na ignorância e na barbárie, privado dos prazeres que só o desenvolvimento das faculdades pode proporcionar? O simples bom-senso repele tal suposição, que seria, ao mesmo tempo, a negação da justiça e da bondade de Deus e a da lei progressiva da Natureza. Eis por que Deus, que é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito do homem tantas existências quantas forem necessárias para que ele atinja o objetivo, que é a perfeição. Em cada nova existência, ele traz o que adquiriu nas precedentes em aptidão, em conhecimentos intuitivos, em inteligência e em moralidade. Cada existência é, assim, um passo à frente na via do progresso, a menos que, pela preguiça, por sua despreocupação ou por sua obstinação no mal, ele não a aproveite, caso em que deve recomeçar. Dele depende, pois, aumentar ou diminuir o número de suas encarnações, sempre mais ou menos penosas e laboriosas.

No intervalo das existências corpóreas, o Espírito reingressa, por um período mais ou menos longo, no mundo espiritual, onde é feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal que haja feito. O estado espiritual é o estado normal do Espírito, pois esse deve ser seu estado definitivo, tendo em vista que o corpo espiritual não morre. O estado corporal é apenas transitório e passageiro. É sobretudo no estado espiritual que ele recolhe os frutos do progresso realizado por seu trabalho na encarnação. É também nesse estado que ele se prepara para novas lutas e toma resoluções que se esforça para pôr em prática, ao voltar à humanidade.

A reencarnação pode dar-se na Terra ou em outros mundos. Entre os mundos, uns são mais adiantados que os outros, e neles a existência se realiza em condições menos penosas do que na Terra, física e moralmente, mas onde não são admitidos senão Espíritos que atingiram um grau de perfeição compatível com o estado desses mundos.

A vida nos mundos superiores já é uma recompensa, porque aí se está isento dos males e das vicissitudes a que se está exposto aqui. Os corpos, menos materiais, quase fluídicos, ali não estão sujeitos nem às doenças nem às enfermidades nem às necessidades. Estando excluídos os maus Espíritos, os homens ali vivem em paz, sem outro cuidado senão o de seu adiantamento pelo trabalho da inteligência. Ali reina a verdadeira fraternidade, pois não há egoísmo; a verdadeira liberdade, pois não há desordens a reprimir, nem ambiciosos procurando oprimir o fraco. Comparados à Terra, esses mundos são verdadeiros paraísos. São as etapas da rota do progresso que conduz à morada definitiva. Sendo a Terra um mundo inferior, destinado à depuração de Espíritos imperfeitos, essa é a razão pela qual o mal aqui domina até que a Deus apraza dela fazer a morada de Espíritos mais adiantados.

Assim é que o Espírito, progredindo gradualmente, à medida que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade. Entretanto, antes de haver atingido o ponto culminante da perfeição, ele goza de uma felicidade relativa ao seu adiantamento, assim como a criança, que gosta dos prazeres da primeira infância, mais tarde aprecia os da juventude, e finalmente os mais sólidos da idade madura.

A felicidade dos Espíritos bem-aventurados não está na ociosidade contemplativa, que seria, como muitas vezes já foi dito, uma eterna e fastidiosa inutilidade. Em todos os graus, a vida espiritual é, ao contrário, uma atividade constante, mas isenta de fadigas. A suprema felicidade consiste no gozo de todos os esplendores da criação, que nenhuma linguagem humana poderia pintar, e que a mais fecunda imaginação não poderia conceber; no conhecimento e na penetração de todas as coisas; na ausência de todo cansaço físico e moral; numa satisfação íntima, uma serenidade de alma, que nada altera; no amor que une todos os seres, devido à ausência de todo atrito pelo contacto dos maus; e acima de tudo pela visão de Deus e pela compreensão de seus mistérios revelados aos mais dignos. Ela está também nas funções por cujo encargo se sentem felizes. Os puros Espíritos são os messias ou mensageiros de Deus, para transmissão e execução de suas vontades. Eles realizam as grandes missões, presidem à formação dos mundos e à harmonia geral do Universo, encargo glorioso ao qual só se chega pela perfeição. Somente os da ordem mais elevada compreendem os segredos de Deus e se inspiram em seu pensamento, do qual são os representantes diretos.

As atribuições dos Espíritos são proporcionais ao seu adiantamento, às luzes que possuem, à sua capacidade, à sua experiência e ao grau de confiança que inspiram ao soberano Mestre. Aí não há privilégios ou favores que não sejam o preço do mérito. Tudo é medido pelos critérios da estrita justiça. As mais importantes missões não são confiadas senão àqueles que são reconhecidamente capazes de desempenhá-las e incapazes de falhar ou de comprometê-las. Enquanto sob os olhos do próprio Deus os mais dignos compõem o conselho supremo, a chefes superiores é confiada a direção de um turbilhão planetário; a outros é confiada a de um mundo especial. Vêm a seguir, na ordem de adiantamento e de subordinação hierárquica, as atribuições mais restritas dos que são prepostos à marcha dos povos, à proteção das famílias e dos indivíduos, ao impulso de cada ramo do progresso, às diversas operações da Natureza, até aos mínimos detalhes da criação. Nesse vasto e harmonioso conjunto, há ocupação para todas as capacidades, todas as aptidões, todas as boas-vontades, ocupações aceitas com alegria, solicitadas com ardor, porque é um meio de adiantamento para os Espíritos que aspiram elevarse.

A encarnação é inerente à inferioridade dos Espíritos. Ela deixa de ser necessária para aqueles que transpuseram o seu limite e que progridem no estado espiritual, ou em existências corporais em mundos superiores que nada mais têm da materialidade terrestre. Para esses ela é voluntária, com vistas a exercer sobre os encarnados uma ação direta, para a realização da missão de que estão encarregados junto daqueles. Eles aceitam as suas vicissitudes e os sofrimentos por devotamento.

Ao lado das grandes missões confiadas aos Espíritos superiores, há outras de todos os graus de importância, confiadas aos de todas as ordens, pelo que pode-se dizer que cada encarnado tem a sua, isto é, deveres a cumprir para o bem de seus semelhantes, desde o pai de família, a quem incumbe o cuidado de fazer os filhos progredirem, até o homem de gênio, que lança na Sociedade novos elementos de progresso. É nessas missões secundárias que muitas vezes se encontram fracassos, prevaricações, renúncias, mas que só prejudicam o indivíduo, e não o conjunto.

Todas as inteligências concorrem, pois, para a obra geral, seja qual for o grau que tenham atingido, e cada uma na medida de suas forças, umas no estado de encarnação, outras no de Espírito. Por toda parte a atividade, de baixo ao alto da escala, todas se instruindo, se entreajudando, se prestando mútuo apoio, se dando as mãos para chegarem ao topo.

Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo espiritual e o mundo corporal, isto é, entre os homens e os Espíritos, entre os Espíritos livres e os Espíritos cativos. Assim se perpetuam e se consolidam, pela depuração e pela continuidade das relações, as verdadeiras simpatias, as afeições santas.

Por toda parte, pois, há vida e movimento. Nenhum recanto do espaço infinito que não esteja povoado; nenhuma região que não seja incessantemente percorrida por inumeráveis legiões de seres radiosos, invisíveis para os sentidos grosseiros dos encarnados, mas cuja vista deslumbra de admiração e de alegria as almas desprendidas da matéria. Por toda parte, enfim, há uma felicidade relativa para todos os progressos, para todos os deveres cumpridos. Cada um leva consigo os elementos de sua felicidade, na razão da categoria onde o coloca seu grau de adiantamento.

A felicidade depende das qualidades próprias dos indivíduos e não o estado material do meio em que se acham; está, pois, em toda parte onde haja Espíritos capazes de ser felizes; nenhum lugar circunscrito lhes é determinado no Universo. Em qualquer lugar onde se encontrem, os puros Espíritos podem contemplar a majestade divina, porque Deus está em toda parte.

Entretanto, a felicidade não é pessoal. Se a encontrássemos apenas em nós mesmos, sem poder compartilhá-la com os outros, ela seria egoísta e triste. Ela está também na comunhão de pensamentos que une os seres simpáticos. Os Espíritos felizes, atraídos uns para os outros pela similitude das ideias, dos gostos, dos sentimentos, formam vastos grupos ou famílias homogêneas, no seio das quais cada individualidade irradia suas próprias qualidades e se penetra dos eflúvios serenos e benéficos que emanam do conjunto, cujos membros tanto se dispersam para se entregarem às suas missões, quanto se reúnem num ponto qualquer do espaço para compartilhar o resultado de seus trabalhos, ou se reúnem em torno de um Espírito de ordem mais elevada, para receber conselhos e instruções.

Embora estejam os Espíritos por toda parte, os mundos são os lugares onde de preferência se reúnem, em razão da analogia que existe entre eles e aqueles que os habitam. Em torno dos mundos adiantados abundam os Espíritos superiores; em torno dos atrasados pululam os Espíritos inferiores. A Terra é ainda um destes últimos. Cada globo, pois, de certo modo, tem sua população própria de Espíritos encarnados e desencarnados, que se realimenta, em sua maioria, pela encarnação e desencarnação dos mesmos Espíritos. Essa população é mais estável nos mundos inferiores, onde os Espíritos são mais ligados à matéria, e mais flutuante nos mundos superiores. Mas, dos mundos que são focos de luz e de felicidade, destacam-se Espíritos para mundos inferiores, a fim de ali semearem os germes do progresso e para ali levarem a consolação e a esperança; para ali levantarem os ânimos abatidos pelas provações da vida. Por vezes eles aí se encarnam para cumprir sua missão com mais eficácia.

Nessa imensidão sem limites, onde, pois, está o Céu? Por toda parte. Nenhum muro o limita. Os mundos felizes são as últimas estações que a ele conduzem. As virtudes abrem o seu caminho e os vícios barram o seu acesso.

Ao lado deste quadro grandioso, que povoa todos os recantos do Universo, que dá a todos os objetos da criação um objetivo e uma razão de ser, como é pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a Humanidade a um imperceptível ponto do espaço; que no-la mostra começando num dado instante, para terminar igualmente num dia, com o mundo que a leva, não abarcando, assim, senão um minuto na Eternidade! Como é triste, fria, glacial, quando nos mostra o resto do Universo antes, durante e depois da Humanidade terrena, sem vida, sem movimento, como um imenso deserto mergulhado no silêncio! Como é desesperadora, pelo quadro que apresenta do pequeno número dos eleitos votados à perpétua contemplação, enquanto a maioria das criaturas é condenada a sofrimentos sem fim! Como é pungente para os corações amantes, pela barreira que põe entre os vivos e os mortos! Dizem que as almas felizes só pensam em sua felicidade e as infelizes em suas dores. É de espantar que o egoísmo reine na Terra, quando o mostram no Céu? Assim, quão estreita é a ideia que ela dá da grandeza, do poder e da bondade do Criador!

Ao contrário, quão sublime é a que o Espiritismo apresenta! Como sua doutrina amplia as ideias e alarga o pensamento! ─ Mas quem diz que ele é verdadeiro? Primeiro a razão, depois a revelação, e finalmente a concordância com o progresso da Ciência. Entre duas doutrinas das quais uma apequena e a outra amplia os atributos de Deus; das quais uma está em desacordo e a outra em harmonia com o progresso; das quais uma fica para trás e a outra avança, diz o bom-senso de que lado está a verdade. Que em presença das duas, cada um, em seu foro íntimo, interrogue as suas aspirações, e uma voz íntima lhe responderá. As aspirações são a voz de Deus, que não pode enganar os homens.

Mas, então, por que, desde o princípio, Deus não lhes revelou toda a verdade? Pela mesma razão pela qual não se ensina à criança o que se lhe ensina na idade madura. A revelação restrita era suficiente durante um certo período da Humanidade. Deus a concede na medida das forças do Espírito. Os que hoje recebem uma revelação mais completa são os mesmos Espíritos que noutros tempos receberam apenas uma parcela, mas que depois cresceram em inteligência. Antes que a Ciência lhes tivesse revelado as forças vivas da Natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro papel e a formação da Terra, teriam eles compreendido a imensidade do espaço e a pluralidade dos mundos? Teriam podido identificar-se com a vida espiritual? Teriam podido conceber, depois da morte, uma vida feliz ou infeliz, a não ser num lugar circunscrito e sob uma forma material? Não!Compreendendo mais pelos sentidos do que pelo pensamento, o Universo era demasiado vasto para seu cérebro. Era preciso reduzi-lo a menores proporções, para adequá-lo ao seu ponto de vista, com a possibilidade de ampliá-lo mais tarde. Então, uma revelação parcial tinha sua utilidade. Era sábia. Hoje é insuficiente. O erro é daqueles que, não levando em conta o progresso das ideias, creem poder governar homens maduros com as andadeiras da infância.

A.K.


NOTA: Este artigo, bem como o do número precedente, sobre o temor da morte, são extraídos da nova obra que o Sr. Allan Kardec publicará proximamente.

Os dois fatos seguintes vêm confirmar este quadro do Céu.



[1] Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no 2.º século da era cristã.


[2] Do grego pur ou pyr, fogo.





Necrologia

Sra. Viúva Foulon

O jornal le Siècle, na seção de necrologia de 13 de fevereiro de 1865, publicou a nota seguinte, reproduzida pelo jornal do Havre e pelo de Antibes:

“Uma artista amada e apreciada no Havre, a Sra. Viúva Foulon, hábil miniaturista, faleceu no dia 3 de fevereiro em Antibes, onde tinha ido buscar, num clima mais suave, o restabelecimento da saúde alterada pelo trabalho e pela idade.”

Tendo conhecido pessoalmente e muito intimamente a Sra. Foulon, sentimonos feliz por poder completar a justa mas curtíssima notícia acima. Nisto cumprimos um dever de amizade, ao tempo que prestamos uma homenagem merecida a virtudes ignoradas e a um salutar exemplo para todo mundo e para os espíritas em particular, que aqui encontrarão preciosos ensinamentos.

Como artista, a Sra. Foulon tinha um talento notável. Suas obras, justamente apreciadas em muitas exposições, lhe valeram numerosas recompensas honorificas. É, sem dúvida, um mérito, mas que nada tem de excepcional. O que a fazia amada e estimada, o que torna sua memória cara a todos os que a conheceram, é a amenidade de seu caráter; são suas qualidades privadas, cuja extensão só podiam apreciar os que conheciam sua vida íntima, porque, como todos aqueles nos quais é inato o sentimento do bem, ela não os exibia e nem mesmo os suspeitava. Se há alguém sobre quem o egoísmo não tinha o menor domínio, era ela, sem dúvida. Talvez jamais o sentimento de abnegação pessoal tenha ido mais longe. Sempre pronta a sacrificar o repouso, a saúde, os interesses por aqueles a quem podia ser útil, sua vida não foi senão uma longa série de dedicações, assim como não foi, desde a juventude, senão uma longa série de rudes e cruéis provações ante as quais sua coragem, sua resignação e sua perseverança jamais faliram. Não lhe tendo deixado os reveses da fortuna senão o talento como único recurso, foi só com os pincéis, quer dando lições, quer fazendo retratos, que ela educou uma numerosa família e assegurou uma honrosa posição a todos os filhos. É preciso ter conhecido sua vida íntima para saber tudo o que ela suportou de fadigas e privações, todas as dificuldades contra as quais teve de lutar para atingir o seu objetivo. Mas, ah! Sua vista, gasta pelo trabalho fatigante da miniatura, extinguia-se dia a dia; ainda mais algum tempo, e a cegueira, já avançada, teria sido completa.

Quando, há alguns anos, a Sra. Foulon teve conhecimento da Doutrina Espírita, foi para ela um raio de luz. Pareceu-lhe que um véu era retirado de algo que lhe não era desconhecido, mas de que tinha apenas uma vaga intuição. Então, ela o estudou com ardor, mas ao mesmo tempo com essa lucidez de espírito, essa justeza de apreciação que era peculiar à sua alta inteligência. É necessário conhecer todas as perplexidades de sua vida, perplexidades que sempre tinham por móvel, não ela própria, mas os seres que lhe eram caros, para compreender todas as consolações que obteve nessa sublime revelação que lhe dava uma fé inabalável no futuro e lhe mostrava o nada das coisas terrenas. Sem o respeito devido às coisas íntimas, quão grandiosos ensinamentos sairiam do último período dessa vida tão fecunda em emoções! Assim, não lhe faltou a assistência dos bons Espíritos. As instruções e os ensinamentos que houveram por bem prodigalizar a essa alma de escol formam uma coletânea das mais edificantes, mas muito particular, da qual tivemos, mais de uma vez, a felicidade de ser o agente provocador. Também sua morte foi digna de sua vida. Ela viu sua aproximação sem nenhuma apreensão penosa. Para ela era a libertação dos laços terrenos que devia abrir-lhe essa vida espiritual bem-aventurada, com a qual se havia identificado pelo estudo do Espiritismo.

Morreu com calma, porque tinha consciência de ter cumprido a missão que tinha aceitado ao vir à Terra; de ter escrupulosamente cumprido os seus deveres de esposa e de mãe de família, porque, também, durante a vida, tinha abjurado todo ressentimento contra aqueles dos quais podia lastimar-se e que a tinham pago com ingratidão. Ela sempre havia retribuído o mal com o bem, e deixou a vida perdoando a todos, entregando-se por si mesma à bondade e à justiça de Deus. Enfim, morreu com a serenidade que dá uma consciência pura e a certeza de estar menos separada de seus filhos que durante a vida corporal, pois doravante poderia estar com eles em Espírito, em qualquer ponto do globo onde eles estivessem; ajudá-los com seus conselhos e estender-lhes a sua proteção. Agora, qual a sua sorte no mundo onde se encontra? Os espíritas já o pressentem. Deixemos, porém, que ela mesma relate suas impressões.

Como se viu, ela morreu a 3 de fevereiro. Recebemos a notícia no dia 6 e o nosso primeiro desejo foi o de nos comunicarmos com ela, se fosse possível. No momento estávamos acometido por uma doença grave, o que explica algumas de suas palavras. É importante ressaltar que o médium não a conhecia e ignorava as particularidades de sua vida, da qual ela fala espontaneamente. Eis a sua primeira comunicação, de 6 de fevereiro.

(6 de fevereiro de 1865 – Médium: Sra. Cazemajour)

Eu estava certa de que teríeis o pensamento de me evocar logo após o meu trespasse e mantinha-me pronta para vos responder, pois não conheci a perturbação. Só os que têm medo são envolvidos por suas espessas trevas.

Então, meu amigo, agora estou feliz. Estes pobres olhos que se tinham enfraquecido e só me deixavam a lembrança dos prismas que tinham colorido minha juventude com seu brilho cambiante, abriram-se aqui e reencontraram os esplêndidos horizontes que, em suas vagas reproduções, alguns dos vossos grandes artistas idealizam, mas cuja realidade majestosa, severa, e contudo cheia de encantos, é marcada pela mais completa realidade.

Apenas há três dias estou morta, e sinto que sou artista. Minhas aspirações para o ideal da beleza na Arte não eram senão a intuição de uma faculdade que eu tinha estudado e adquirido em outras existências e que se desenvolveram na última. Mas, o que tenho a fazer para reproduzir uma obra-prima digna da grande cena que impressiona o espírito ao chegar à região da luz? Pincéis! Pincéis! E provarei ao mundo que a arte espírita é o coroamento da arte pagã, da arte cristã que periclita, e que só ao Espiritismo está reservada a glória de fazê-la reviver em todo o seu brilho no vosso mundo deserdado.

Basta para a artista. É a vez da amiga.

Por que, boa amiga (Sra. Allan Kardec), vos afetar assim pela minha morte? Sobretudo vós, que conheceis as decepções e as amarguras de minha vida, deveríeis alegrar-vos, ao contrário, por ver que agora não mais devo beber a taça amarga das dores terrenas, que esvaziei até o fim. Crede-me, os mortos são mais felizes que os vivos e chorá-los é duvidar da verdade do Espiritismo. Tende certeza de que voltareis a ver-me; parti primeiro, porque aqui embaixo minha tarefa estava acabada; cada um tem a sua a cumprir na Terra, e quando a vossa estiver acabada, vireis repousar um pouco junto a mim, para recomeçar em seguida, se for preciso, tendo em vista que não está na natureza ficar inativo. Cada um tem suas tendências e a elas se curva; é uma lei suprema que prova o poder do livre-arbítrio. Assim, boa amiga, indulgência e caridade, de que todos necessitamos reciprocamente, quer no mundo visível, quer no invisível. Com tal divisa, tudo vai bem.

Não me diríeis para parar de falar. Sabeis que falo longamente pela primeira vez! Assim vos deixo. É a vez do meu excelente amigo Sr. Kardec. Quero agradecer-lhe as afetuosas palavras que teve a bondade de dirigir à amiga que o precedeu no túmulo, porque deixamos de partir juntos para o mundo onde me encontro, meu bom amigo! (Tínhamos adoecido a 31 de janeiro). Que teria dito a bem-amada companheira dos vossos dias, se os bons Espíritos não tivessem nisto posto boa ordem? Então ela teria gemido e chorado! Eu o compreendo, mas também é preciso que ela vele para que não vos exponhais de novo ao perigo antes de ter acabado o vosso trabalho de iniciação espírita, sem o que vos arriscais a chegar entre nós demasiado cedo, e a não ver, como Moisés, a Terra Prometida senão de longe. Portanto, mantende-vos em guarda. É uma amiga que vos previne.

Agora me vou. Volto para junto de meus caros filhos; depois vou ver, além dos mares, se minha ovelha viajante enfim chegou ao porto, ou se ela é joguete da tempestade. Que os bons Espíritos a protejam. Vou juntar-me a eles para isto. Voltarei a conversar convosco, pois sou uma faladora infatigável. Vós vos lembrais disto. Até à vista, bons e caros amigos. Até breve.

VIÚVA FOULON

OBSERVAÇÃO: Sua ovelha viajante é uma de suas filhas, residente na América, que acabara de fazer longa e penosa viagem.

Não se teme a morte senão pela incerteza do que se passa nesse momento supremo e do que será de nós no além. A crença vaga na vida futura nem sempre basta para acalmar a apreensão do desconhecido. Todas as comunicações que visam iniciar-nos aos detalhes e impressões da passagem tendem a dissipar esse medo, à medida que nos familiarizam e nos identificam com a transição que em nós se opera. Deste ponto de vista, as comunicações da Sra. Foulon e as do Dr. Demeure, que vão adiante, são eminentemente instrutivas. A situação dos Espíritos após a morte é essencialmente variável, segundo a diversidade de aptidões, qualidades e caráter de cada um. Assim, é pela multiplicidade dos exemplos que se pode chegar a conhecer o estado real do mundo invisível.

(8 de fevereiro de 1865)

Espontânea. Eis-me entre vós, mais cedo do que pensava e muito feliz por vos rever, sobretudo agora que estais melhor e que em breve, assim o espero, estareis completamente restabelecido. Mas quero que me dirijais as perguntas que vos interessam, pois assim as responderei melhor. Sem isto, arrisco-me a falar demais, e é necessário que falemos de coisas puramente sérias. Não é isto, meu bom mestre espírita?

P. ─ Cara Sra. Foulon, fiquei muito contente com a comunicação que destes o outro dia, e com a promessa de continuar nossas conversas.

Eu vos reconheci perfeitamente na comunicação. Ali falais de coisas desconhecidas do médium, e que não podem vir senão de vós. Depois, vossa linguagem afetuosa a nosso respeito é bem característica de vossa alma amorosa, mas há em vossa linguagem uma segurança, um aprumo, uma firmeza que eu ignorava enquanto vivíeis. Sabeis que a este respeito eu me permiti mais de uma admoestação em certas circunstâncias.

R. ─ É verdade, mas desde que me vi gravemente doente, recobrei a firmeza de espírito, perdida pelas mágoas e vicissitudes que por vezes me tinham tornado medrosa durante a minha vida. Eu disse para mim mesma: Tu és Espírito. Esquece a Terra e prepara-te para a transformação de teu ser e vê, pelo pensamento, o caminho luminoso que tua alma deve seguir, ao deixar o corpo, e que a conduzirá, feliz e liberta, às esferas celestes onde doravante viverás.

Dir-me-eis que era um pouco presunçoso de minha parte contar com uma felicidade perfeita ao deixar a Terra, mas eu tinha sofrido tanto, que devia ter expiado minhas faltas desta existência e das existências precedentes. Essa intuição não me havia enganado, e foi ela que me deu coragem, calma e firmeza nos últimos instantes. Essa firmeza naturalmente aumentou quando, após o meu trespasse, vi minhas esperanças realizadas.

P. ─ Podeis descrever-nos agora vossa passagem, vosso despertar e vossas primeiras impressões?

R. ─ Eu sofri, mas meu Espírito foi mais forte que o sofrimento material que o desprendimento o fazia experimentar. Encontrei-me, após o supremo suspiro, como em síncope, sem consciência de meu estado, não pensando em nada, e numa vaga sonolência que não era nem sono do corpo nem despertar da alma. Fiquei assim bastante tempo. Depois, como se saísse de um longo desmaio, despertei pouco a pouco entre irmãos que não conhecia. Eles me prodigalizavam cuidados e carícias; mostravam-me um ponto no espaço, que parecia uma estrela brilhante, e me disseram: “É para lá que irás conosco, pois não pertences mais à Terra.” Então recobrei a memória, apoiei-me neles, e como um gracioso grupo que se lança para esferas desconhecidas, mas com a certeza de lá encontrar a felicidade... subimos, subimos, e a estrela crescia: Era um mundo feliz, um mundo superior, onde vossa amiga vai, enfim, encontrar o repouso. Quero dizer o repouso em relação às fadigas corporais que suportei e às vicissitudes da vida terrestre, mas não a indolência do Espírito, porque a atividade do Espírito é um prazer. P. ─ Deixastes definitivamente a Terra?

R. ─ Deixo aqui muitos seres que me são caros para abandoná-la definitivamente. Aqui voltarei, portanto, como Espírito, porque tenho missão a cumprir junto aos meus netos. Aliás, bem sabeis que nenhum obstáculo se opõe a que os Espíritos que estacionam em mundos superiores à Terra venham visitá-la.

P. ─ A posição em que estais parece que deverá enfraquecer vossas relações com os que deixastes aqui.

R. ─ Não, meu amigo. O amor aproxima as almas. Crede-me, na Terra pode-se estar mais próximo dos que atingiram a perfeição do que daqueles cuja inferioridade e egoísmo fazem turbilhonar em volta da esfera terrestre. A caridade e o amor são dois motores de uma poderosa atração. São o laço que cimenta a união das almas ligadas uma a outra, que persistem a despeito da distância e dos lugares. Só há distância para os corpos materiais. Ela não existe para os Espíritos.

P. ─ Conforme o que dissestes na comunicação precedente, sobre os vossos instintos de artista e sobre o desenvolvimento da arte espírita, eu pensava que numa nova existência seríeis um dos seus principais intérpretes.

R. ─ Não. É como guia e Espírito protetor que devo dar provas ao mundo da possibilidade de fazer obras-primas na arte espírita. As crianças serão médiuns pintores, e na idade em que só se fazem esboços informes, elas pintarão, não coisas da Terra, mas coisas dos mundos onde a Arte atingiu toda a sua perfeição.

P. ─ Que ideia fazeis agora de meus trabalhos concernentes ao Espiritismo?

R. ─ Acho que tendes encargo de almas e que o fardo é difícil de carregar, mas vejo o objetivo e sei que o atingireis. Se possível ajudar-vos-ei com meus conselhos de Espírito, para que possais superar as dificuldades que vos serão suscitadas, a propósito induzindo-vos a tomar certas medidas adequadas a ativar, em vida, o movimento renovador ao qual leva o Espiritismo. Vosso amigo Demeure, unido ao Espírito de Verdade, vos prestará um concurso ainda mais útil. Ele é mais sábio e mais sério do que eu, mas, como sei que a assistência dos bons Espíritos vos fortalece e sustenta em vosso trabalho, crede que o meu vos será assegurado sempre e em toda parte.

P. ─ Poderíamos deduzir de algumas de vossas palavras que não me dareis uma colaboração pessoal muito ativa à obra do Espiritismo.

R. ─ Enganai-vos. Mas eu vejo tantos Espíritos mais capazes do que eu de tratar dessa importante questão, que um invencível sentimento de timidez me impede, no momento, de vos responder conforme o vosso desejo. Talvez isto virá. Terei mais coragem e esperteza, mas antes é preciso que os conheça melhor. Estou morta há apenas quatro dias, e ainda estou sob o encanto do deslumbramento que me rodeia. Não compreendeis, meu amigo? Não consigo exprimir as novas sensações que experimento. Tive que violentar-me para me livrar da fascinação que sobre o meu ser exercem as maravilhas que ele admira. Não posso senão bendizer e adorar Deus em suas obras. Mas isto passará. Os Espíritos me asseguram que em breve estarei acostumada a todas essas magnificências, e que então poderei, com minha lucidez de Espírito, tratar todas as questões relativas à renovação terrestre. Depois, com tudo isto, pensai que sobretudo neste momento eu tenho uma família a consolar. O entusiasmo invadiu minha alma, e espero que ele arrefeça um pouco para vos entreter com o Espiritismo sério, e não com o Espiritismo poético, que não é bom para os homens, pois eles não o compreenderiam.

Adeus, e até breve.

De vossa boa amiga que vos ama e sempre vos amará, meu mestre, pois é a vós que ela deve a única consolação durável e verdadeira que experimentou na Terra.

VIÚVA FOULON

OBSERVAÇÃO: Todo espírita sério e esclarecido facilmente tirará destas comunicações os ensinamentos que delas mesmas ressaltam. Assim, só chamaremos a atenção para dois pontos. O primeiro é que este exemplo nos mostra a possibilidade de não mais encarnar na Terra e passar daqui a um mundo superior, sem sermos por isto separados dos seres queridos que aqui deixamos. Aqueles, pois, que temem a reencarnação por causa das misérias da vida, podem delas libertar-se fazendo o que é preciso, isto é, trabalhando para a sua melhora. Aquele que não quer vegetar nas camadas inferiores deve instruir-se e trabalhar para subir de grau.

O segundo ponto é a confirmação desta verdade: Depois da morte estamos menos separados dos seres que nos são caros do que durante a vida. Há alguns dias apenas, a Sra. Foulon, retida pela idade e pela enfermidade numa cidadezinha do Sul, tinha ao seu lado apenas uma parte da sua família. Estando a maioria de seus filhos e de seus amigos dispersos e ao longe, obstáculos materiais impediam que ela pudesse vê-los tão frequentemente quanto uns e outros teriam desejado. O grande afastamento tornava até mesmo a correspondência rara e difícil para alguns. Apenas desembaraçada do pesado envoltório, ligeira, ela acorre para junto de cada um, transpõe as distâncias sem fadiga, com a rapidez da eletricidade, os vê, assiste às suas reuniões íntimas, cerca-os com a sua proteção e pode, pela mediunidade, entreter-se com eles a cada instante, como quando viva. E dizer que a este pensamento consolador há quem prefira uma separação indefinida!

NOTA: Recebemos muito tarde para poder publicá-lo, o interessante necrológico detalhado publicado no Journal du Havre de 10 de fevereiro. Nosso número já estava composto e completo, pronto para a impressão.

O Doutor Demeure

Morto em Albi Tarn, a 26 de janeiro de 1865

Mais uma alma de escol acaba de deixar a Terra! O Sr. Demeure era um médico homeopata muito distinto de Albi. Seu caráter, tanto quanto o seu saber, lhe tinha granjeado a estima e a veneração de seus concidadãos. Só o conhecemos através da correspondência sua e de seus amigos, mas isso bastou para nos revelar toda a grandeza e toda a nobreza de seus sentimentos. Sua bondade e sua caridade eram inesgotáveis e, a despeito de sua idade avançada, nenhuma fadiga o detinha para ir socorrer os pobres doentes. O preço de suas consultas era a menor das suas preocupações. Ele se preocupava mais com os infelizes do que com aqueles que podiam pagar, porque, dizia ele, estes últimos, na falta dele, sempre poderiam recorrer a outro médico. Aos primeiros ele não somente dava os remédios gratuitamente, mas muitas vezes deixava com que enfrentarem as necessidades materiais, o que, por vezes, é o mais útil dos medicamentos. Pode-se dizer que ele era o Cura d’Ars da medicina.

O Sr. Demeure havia abraçado com ardor a Doutrina Espírita, na qual tinha encontrado a chave dos mais sérios problemas cuja solução em vão tinha pedido à Ciência e a todas as filosofias. Seu espírito profundo e investigador fê-lo compreender imediatamente todo o seu alcance e, assim, foi um de seus mais zelosos propagandistas. Embora jamais nos tivéssemos visto, dizia-nos em uma de suas cartas que tinha a convicção que não éramos estranhos um ao outro e que havia relações anteriores entre nós. Sua pressa em vir até nós assim que morreu, sua solicitude por nós e os cuidados que nos dispensou na situação em que nos encontrávamos no momento, o papel que ele parece ter sido chamado a desempenhar, parecem confirmar essa previsão que ainda não pudemos verificar.

Soubemos de sua morte no dia 30 de janeiro, e nosso primeiro pensamento foi o de nos comunicarmos com ele. Eis a comunicação que nos deu naquela mesma noite, por intermédio da Sra. Cazemajour, médium.

“Eis-me aqui. Em vida me havia prometido que logo que estivesse morto viria, se isso me fosse possível, apertar a mão do meu caro mestre e amigo Sr. Allan Kardec.

“A morte havia dado à minha alma esse pesado sono que denominamos letargia, mas meu pensamento velava. Sacudi esse torpor funesto que prolonga a turbação que segue a morte, despertei e de um salto fiz a viagem.

“Como sou feliz! Não sou mais velho nem enfermo. Meu corpo era apenas um disfarce imposto. Sou jovem e belo, belo dessa eterna juventude dos Espíritos cujo rosto não é sulcado pelas rugas e cujos cabelos não embranquecem sob a ação do tempo. Sou leve como o pássaro que em voo rápido atravessa o horizonte do vosso céu nebuloso e admiro, contemplo, bendigo, amo e me inclino, átomo, ante a grandeza, a sabedoria, a ciência de nosso Criador, ante as maravilhas que me rodeiam.

“Eu estava junto de vós, caro e venerado amigo, quando o Sr. Sabfalou em fazer a minha evocação, e eu o segui.

“Eu sou feliz! Eu estou na glória! Oh! Quem poderia jamais traduzir as esplêndidas belezas da terra dos eleitos: os céus, os mundos, os sóis, seu papel no grande concerto da harmonia universal? Pois bem! Eu tentarei, ó meu mestre. Vou fazer o seu estudo e virei depor junto a vós a homenagem de meus trabalhos de Espírito que antecipadamente vos dedico. Até breve.

“DEMEURE”


OBSERVAÇÃO: As duas comunicações seguintes, dadas a 1º e 2 de fevereiro, são relativas à doença de que fomos atingidos subitamente a 31 de janeiro. Embora sejam pessoais, reproduzimo-las porque provam que o Sr. Demeure é tão bom como Espírito quanto o era como homem e porque elas oferecem, além disso, um ensinamento. É um testemunho de gratidão que devemos à solicitude de que fomos objeto, de sua parte, nessa circunstância:

“Meu bom amigo, tende confiança em nós e muita coragem. Esta crise, embora fatigante e dolorosa, não será longa, e com os cuidados prescritos, podereis, conforme o vosso desejo, completar a obra que foi o principal objetivo da vossa existência. Entretanto, sou eu que estou sempre aqui, ao vosso lado, com o Espírito de Verdade, que me permite tomar a palavra em seu nome, como o último de vossos amigos vindos entre os Espíritos! Eles me fazem as honras das boas-vindas. Caro mestre, como estou feliz por ter morrido a tempo de estar com eles neste momento! Se eu tivesse morrido mais cedo, talvez tivesse podido evitar esta crise que eu não previa. Havia muito pouco tempo que eu estava desencarnado para me ocupar de outra coisa senão espiritual, mas agora velarei por vós, caro mestre. É vosso irmão e amigo que está feliz de ser Espírito para estar junto de vós e vos proporcionar cuidados na vossa moléstia. Mas conheceis o provérbio: “Ajuda-te, e o Céu te ajudará.” Ajudai, pois, os bons Espíritos nos cuidados que vos dispensam, conformando-vos estritamente às suas prescrições.

“Faz muito calor aqui. Este carvão é fatigante. Enquanto estiverdes doente, não o queimeis, porque ele continua a aumentar a vossa opressão. Os gases que dele se desprendem são deletérios.

“Vosso amigo, DEMEURE”

“Sou eu, Demeure, o amigo do Sr. Kardec. Venho dizer-lhe que eu estava ao seu lado quando lhe ocorreu o acidente que poderia ter sido funesto sem uma intervenção eficaz para a qual tive a honra de contribuir. Segundo minhas observações e os ensinamentos que colhi em fonte fidedigna, é-me evidente que quanto mais cedo se der a sua desencarnação, tanto mais cedo poderá dar-se a sua reencarnação na qual ele virá completar a sua obra. Contudo, é preciso que ele dê, antes de partir, a última demão nas obras que devem completar a teoria doutrinária da qual ele é o iniciador, e ele será considerado culpado de homicídio voluntário pelo fato de contribuir, por excesso de trabalho, com a deficiência de sua organização que o ameaça de uma súbita partida para os nossos mundos. É preciso não ter medo de dizer-lhe toda a verdade, para que ele se guarde e siga as prescrições rigorosamente.

“DEMEURE.”


A comunicação seguinte foi obtida em Montalban, a 1.º de fevereiro, no círculo dos amigos espíritas que ele tinha naquela cidade.

“Antoine Demeure. Não estou morto para vós, meus bons amigos, mas para os que não conhecem, como vós, esta santa doutrina que reúne os que se amavam na Terra e que tiveram os mesmos pensamentos e os mesmos sentimentos de amor e caridade.

“Eu sou feliz. Sou mais feliz do que podia esperar, porque gozo de uma lucidez rara nos Espíritos há pouco tempo desprendidos da matéria. Tende coragem, meus bons amigos! Estarei muitas vezes junto de vós, e não deixarei de vos instruir sobre muitas coisas que ignoramos quando ligados à nossa pobre matéria que nos oculta tantas magnificências e tantos prazeres. Orai pelos que estão privados dessa felicidade, pois não sabem o mal que fazem a si mesmos.

“Hoje não continuarei por muito tempo, mas vos direi que não me acho nada estranho neste mundo dos invisíveis. A mim me parece que sempre o habitei. Aqui me sinto feliz porque vejo os meus amigos e posso comunicar-me com eles sempre que o deseje.

“Não choreis, meus amigos. Vós me faríeis lamentar por ter-vos conhecido. Daí tempo ao tempo, e Deus vos conduzirá a esta morada, onde devemos todos nos reunirmos.

“Boa noite, meus amigos. Que Deus vos console. Estou aqui, ao vosso lado.

“DEMEURE.”


OBSERVAÇÃO: A situação do Sr. Demeure, como Espírito, é exatamente aquela que sua vida tão dignamente e tão utilmente vivida poderia permitir que fosse pressentida, mas um outro fato não menos instrutivo ressalta de suas comunicações, isto é, a atividade que ele desenvolve, quase que imediatamente após a sua morte, para ser útil. Por sua alta inteligência e por suas qualidades morais, ele pertence à ordem dos Espíritos muito adiantados. Ele é muito feliz, mas sua felicidade não é a inação. Há poucos dias ele cuidava de doentes como médico e tão logo desencarnado, apressa-se em dedicar-se a eles como Espírito. O que se ganha, então, em estar no outro mundo, perguntarão certas pessoas, se ali não se goza de repouso? A isto lhe perguntaremos, de saída, se não é nada não ter mais preocupações nem necessidades nem as enfermidades da vida; ser livre e poder, sem fadiga, percorrer o espaço com a rapidez do pensamento, ir ver os seus amigos a toda hora, seja qual for a distância a que se encontrem? Depois acrescentaremos: Quando estiverdes no outro mundo, nada vos forçará a fazer seja o que for. Estareis perfeitamente livres de ficar numa ociosidade beata, tanto tempo quanto quiserdes, mas em breve vos cansareis dessa ociosidade egoísta. Sereis os primeiros a pedir uma ocupação. Então vos será respondido: Se vos aborreceis por nada fazerdes, buscai vós mesmos algo para fazer. As ocasiões para ser útil não faltam nem no mundo dos Espíritos nem entre os homens. É assim que a atividade espiritual não é um constrangimento. Ela é uma necessidade, uma satisfação para os Espíritos que procuram as ocupações em relação com seus gostos e aptidões, e escolhem de preferência as que possam ajudar no seu adiantamento.



O processo Hillaire

Um assunto sobre o qual tínhamos guardado um silêncio facilmente compreensível, acaba de ter um desenlace que o coloca no domínio público. Tendo sido publicado por vários jornais das localidades vizinhas, por isso julgamos oportuno falar, a fim de prevenir as falsas interpretações da malevolência relativamente à Doutrina Espírita, e provar que esta doutrina não acoberta com seu manto nada que seja repreensível. Aliás, nosso nome estando envolvido nisso, é importante que se conheça a nossa maneira de ver. Este assunto concerne ao médium Hillaire, de Sonnac (Charente-Inférieure), sobre o qual já tivemos ocasião de falar aos nossos leitores.

Hillaire é um homem moço, casado, pai de família, simples trabalhador, quase iletrado. A Providência o dotou de notável faculdade mediúnica muito variada, cujos detalhes podem ser lidos na obra do Sr. Bez, intitulada Les Miracles de nos jours, que tem muita semelhança com a do Sr. Home. Naturalmente, essa faculdade chamou a atenção sobre ele. Ela lhe havia granjeado uma celebridade local, ao mesmo tempo que havia valido a simpatia de uns e a animadversão de outros. Os elogios um pouco exagerados de que era objeto, nele produziram sua má influência habitual. O sucesso do Sr. Home lhe havia subido à cabeça, como o atestam as cartas que ele nos escreveu. Ele sonhava com um teatro maior que a sua aldeia, contudo, a despeito de suas instâncias para que o mandássemos vir a Paris, jamais lhe quisemos dar a mão. Certamente, se nisso tivéssemos visto uma utilidade qualquer, tê-loíamos favorecido, mas estávamos convencido, com base nas suas idéias e no seu caráter, que conhecíamos, que ele não tinha a qualificação necessária para representar um papel muito preponderante em seu próprio interesse. Aliás, muito recentemente tínhamos visto um triste exemplo dessas ambições que empurram para a capital e que acabam em cruéis decepções. Colocando-o sobre um pedestal, prestaram-lhe um mau serviço. Sua missão era local. Num raio limitado, e sobre uma certa população, ele poderia prestar grandes serviços à causa do Espiritismo, com a ajuda dos notáveis fenômenos que se produziam sob sua influência. Ele os prestou propagando as ideias espíritas em sua terra, mas podia prestá-los ainda maiores, se se tivesse limitado à sua modesta esfera, sem abandonar o trabalho de que vivia, e se com mais prudência tivesse conciliado seu trabalho com o exercício da mediunidade. Infelizmente, para ele, a importância que a si mesmo atribuía o tornava pouco acessível aos conselhos da experiência. Como muita gente, ele os teria aceitado de boa vontade se estivessem de acordo com as suas idéias. Disso nos davam prova suas cartas! Vários indícios nos fizeram prever sua queda, mas estávamos longe de suspeitar a causa que a provocaria. Apenas nossos guias espirituais nos advertiram mais de uma vez para que agíssemos com ele com grande circunspecção e não nos antecipássemos, evitando sobretudo fazê-lo vir a Paris.

Por muita presunção de um lado e muita fraqueza do outro, ele destruiu sua missão no momento em que ela poderia ganhar o maior brilho. Cedendo a perigosos arrastamentos, e talvez, somos levados a crer, a pérfidas insinuações propositadas, ele cometeu uma falta, em seguida à qual deixou a região, e da qual, mais tarde, teve que prestar contas à Justiça. Longe de sofrer com isto, como se vangloriavam os nossos adversários, o Espiritismo saiu são e salvo dessa prova, como se verá em pouco. Desnecessário dizer que queriam fazer passar todas as manifestações do infeliz Hillaire como insignes trapaças.

Neste triste negócio, o lesado, um dos que mais o tinham aclamado ao tempo de sua glória passageira e que o tinha favorecido com o seu patrocínio, escreveu-nos, após a fuga dos culpados, para nos dar conta detalhada dos fatos e pedir nosso concurso e o de nossos correspondentes, a fim de que eles fossem presos. E terminou dizendo: “É preciso tirar-lhes todos os recursos, a fim de fazê-los voltarem à França, e então poderemos fazer que sejam castigados pela justiça dos homens, esperando que a desse Deus de misericórdia os castigue também, pois fazem um grande mal ao Espiritismo. Esperando uma resposta de vosso próprio punho, vou orar a Deus para que sejam descobertos. Sou todo vosso, vosso irmão em Deus, etc.”

Eis a resposta que lhe demos, sem suspeitar que se tornaria uma das peças do processo:

Senhor,

De volta de uma longa viagem que acabo de fazer, encontrei a carta que me escrevestes sobre Hillaire. Deploro tanto quanto qualquer outro esse triste fato, pelo qual, entretanto, o Espiritismo não pode receber nenhum ataque, pois ele não poderia ser responsabilizado pelos atos dos que o compreendem mal. Quanto a vós, o mais lesado nessa circunstância, compreendo vossa indignação e o primeiro momento de arroubo que vos deve ter agitado, mas espero que a reflexão tenha dado mais calma ao vosso espírito. Se fordes realmente espírita, deveis saber que devemos aceitar com resignação todas as provações que a Deus apraz enviar-nos, e que são, elas próprias, expiações que fizemos por merecer por faltas passadas. Não é pedindo a Deus, como fazeis, para nos vingar daqueles de quem temos queixas, que adquirimos o mérito das provas que ele nos manda. Dessa forma, pelo contrário, perdemos os seus frutos e atraímos provas ainda maiores. Não é uma contradição de vossa parte dizer que orais ao Deus de misericórdia para fazer que os culpados sejam presos, a fim de serem entregues à justiça dos homens? Dirigir-lhe semelhantes preces é ofendê-lo, quando nós necessitamos, uns mais, outros menos, de sua misericórdia para nós próprios, esquecendo que ele disse: Sereis perdoados como tiverdes perdoado aos outros. Tal linguagem não é cristã nem espírita, porque o Espiritismo, a exemplo do Cristo, nos ensina a indulgência e o perdão das ofensas. Esta é uma bela ocasião para nós, de mostrarmos grandeza e magnanimidade e de provar que estais acima das misérias humanas. Eu desejo, por vós, que não a deixeis escapar.

Pensais que esse acontecimento fará mal ao Espiritismo. Repito que ele não sofrerá com isto, malgrado o ardor dos seus adversários em explorar esta circunstância em seu proveito. Se devesse prejudicá-lo, seria apenas um efeito local e momentâneo, e nisso teríeis vossa parte de responsabilidade, pelo entusiasmo com que o divulgastes. Tanto por caridade quanto pelo interesse que dizeis ter pela doutrina, deveríeis ter feito o que estava em vosso poder para evitar o escândalo, ao passo que, pela repercussão que lhe destes, fornecestes armas aos nossos inimigos. Os espíritas sinceros vos teriam sido gratos por vossa moderação, e Deus vos teria levado em conta esse bom sentimento.

Lamento tenhais podido pensar que eu servisse, fosse no que fosse, aos vossos desejos de vingança, tomando providências para que os culpados fossem entregues à justiça. Era enganar-vos singularmente quanto ao meu papel, ao meu caráter e à minha compreensão dos verdadeiros interesses do Espiritismo. Se, como dizeis, sois realmente meu irmão em Deus, crede-me, implorai sua clemência e não a sua cólera, pois aquele que chama a cólera sobre outrem corre o risco de fazê-la cair sobre si mesmo.

Tenho a honra de vos saudar cordialmente, com a esperança de vos ver voltar a ideias mais dignas de um espírita sincero.

A.K.

Eis, agora, o relatório que nos foi enviado:

“Iniciado sexta-feira, o caso Hillaire terminou sábado, à meia-noite. Retirando Vitet sua queixa no momento em que ia ser pronunciado o julgamento, sua mulher foi inocentada. Só Hillaire ficava sob a espada da justiça. O ministério público concluiu pela culpabilidade e reclamou a aplicação dos artigos 336, 337, 338, etc., do Código Penal. O Tribunal, declinando de sua competência no que toca à apreciação de todos os transportes e outros fatos medianímicos, fazendo aplicação do Artigo 463, condenou Hillaire a um ano de prisão e multas. Aos nossos olhos, esse julgamento é uma justa aplicação da lei escrita, embora tenha sido reputado um pouco severo por pessoas que absolutamente não são espíritas.

“Se fomos testemunhas do desenrolar de tristes torpezas a que podem conduzir as fraquezas humanas, por outro lado assistimos a um belo espetáculo, quando ouvimos ser proclamada solenemente a ortodoxia da moral espírita; quando, nos intervalos e à saída das audiências, ouvimos estas palavras, repetidas em público: “Devemos invejar a felicidade daqueles cuja fé os põe constantemente em presença daqueles a quem amaram, e dos quais o próprio túmulo não pode mais separar.”

“Com efeito, vede essa multidão que logo o pretório não poderá conter. Aí se comprimem membros de todas as posições sociais, desde a mais ínfima até a mais alta. Pensais que esses homens vêm apenas assistir aos vulgares debates de uma sórdida ocorrência da polícia correcional? À vergonha de dois infelizes que confessaram e contaram todas as circunstâncias de sua falta? Oh! não. O assunto em questão tem um alcance muito mais alto. O Espiritismo está em jogo. Eles vêm ouvir as revelações que contra a nova doutrina terá trazido um inquérito de três meses. Eles vêm gozar o ridículo que não deixará de cair sobre esses pobres alucinados, mas suas esperanças pouco caridosas foram desvanecidas pela sabedoria do tribunal.

“O presidente começa proclamando a mais absoluta liberdade de consciência. Recomenda a todos o respeito pela crença religiosa de cada um, e vai, ele próprio, até o fim, por esse caminho. Apresenta-se o momento de ler a carta de nosso mestre a Vitet (carta publicada acima). Ele a segura e observa, após a leitura, que nela reconhece uma voz digna dos primeiros Pais da Igreja; que jamais foi pregada mais bela moral em mais bela linguagem.

“Vinte testemunhas foram unânimes sobre a veracidade dos transportes; nenhuma manifestou a menor dúvida. Daí a declaração de incompetência do tribunal. Somente Vitet e seu criado Muson contestaram a marcha miraculosa, mas, no mesmo instante, lhes foi contraposto um depoimento redigido nesse mesmo dia por Vitet, escrito de próprio punho, com as assinaturas de Vitet e Muson. Dois membros de nossa sociedade foram ouvidos. O presidente não teve receio de fazer com que surgissem discussões por causa de seus depoimentos sobre certos pontos de doutrina. Um e outro responderam perfeitamente e triunfaram, para satisfação de todos os espíritas.

“O advogado de Hillaire foi, e não podia deixar de ter sido, muito sucinto no que se referia especialmente ao objeto central da acusação. Mas sobre a doutrina, sobre os seus ensinamentos, suas consequências e seus progressos no mundo; sobre a perseverança desses homens da localidade, pelo menos nossos iguais em conhecimento, em inteligência, em moralidade e em posição social, dizia ele; sobre os fatos diariamente publicados pela imprensa; sobre a multiplicidade das obras, dos jornais especializados, ele sempre falou com eloquência e convicção. Seu último golpe foi a leitura de uma carta do Sr. Jaubert. Nessa carta o Sr. Jaubert diz que ele próprio e seus amigos, ocupando-se de manifestações físicas, viram e viram bem, à luz das lâmpadas, bem como à luz do dia, fatos análogos aos obtidos por Hillaire, fatos que ele relata nos mínimos detalhes. Essa leitura, seguida da leitura em tom solene da profissão de fé do próprio Sr. Jaubert, um magistrado, vice-presidente em exercício de um tribunal civil em capital de Departamento, essa leitura comoveu todo o auditório. (O Journal de Saint-Jean-d’Angély de 12 de fevereiro analisa essa notável defesa. Ver também a Revue de l’Ouest, de Niort, de 18 de fevereiro).

“Na sua acusação, o promotor naturalmente difama o acusado. Quanto aos fatos das manifestações, explica-os por meios vulgares: Cada um, diz ele, em sua sala, pode produzi-los à vontade, com a maior facilidade; a menor habilidade é suficiente. Ele cita fatos mediúnicos históricos, para os quais conclui pela alucinação. No que concerne à Doutrina, ele sempre foi digno e respeitoso para com os adeptos dedicados. Sobretudo aplaudiu calorosamente a coragem, a sinceridade e a boa-fé das testemunhas que vieram afirmar sua crença, sem serem detidos nem pelo temor dos sarcasmos e pilhérias, nem por seus interesses materiais, que com isto podem ser prejudicados.”

O Espiritismo não saiu apenas são e salvo desta prova, mas dela saiu com as honras da guerra. É verdade que o julgamento não proclamou a realidade das manifestações de Hillaire, mas colocou-as fora de questão, por sua declaração de incompetência, e por isto mesmo não as declarou fraudulentas. Quanto à Doutrina, ela ali obteve um sufrágio brilhante. Para nós é o ponto essencial, porque o Espiritismo está menos nos fenômenos materiais do que em suas consequências morais. Pouco nos importa que neguem fatos que são constatados diariamente em todos os pontos da Terra, porque não está longe o dia em que todos serão forçados a render-se à evidência. O principal é que a doutrina daí decorrente seja reconhecida como digna do Evangelho, sobre o qual ela se apoia. Certamente o senhor substituto não é espírita; o presidente também não o é, ao que saibamos, mas ficamos feliz por constatar que sua opinião pessoal nada tira à sua imparcialidade.

Os elogios feitos às testemunhas são uma homenagem brilhante prestada à coragem da opinião e à sinceridade da crença. Devíamos a esses firmes sustentáculos de nossa fé um testemunho especial. Apressamo-nos em dá-lo através da mensagem seguinte, que lhes remetemos.

Paris, 21 de janeiro de 1865.


DO SR. ALLAN KARDEC, AOS ESPÍRITAS DEVOTADOS NO CASO HILLAIRE

Caros Irmãos em Espiritismo,

Venho, em meu nome pessoal e no da Sociedade Espírita de Paris, pagar um justo tributo de elogios a todos quantos, na triste circunstância que nos afligiu a todos, sustentaram sua fé e defenderam a verdade com coragem, dignidade e firmeza. Um brilhante e solene testemunho lhes foi prestado pelos órgãos da justiça. O de seus irmãos em crença não lhes podia faltar. Pedi a sua lista, tão exata e completa quanto possível, para inscrever os seus nomes ao lado dos demais que bem mereceram essa homenagem do Espiritismo. Não é para lhes dar uma publicidade que feriria sua modéstia e que, aliás, na hora que passa, seria mais nociva do que útil, mas nosso século está tão preocupado que é esquecido. É preciso que a memória dos devotamentos verdadeiros, livres de qualquer segunda intenção de interesse, não fique perdida para os que vierem depois de nós. Os arquivos do Espiritismo lhes dirão os que têm direito legítimo ao seu reconhecimento.

Aproveito a ocasião, caros irmãos, para conversar um instante convosco, sobre o que nos preocupa.

Antes de mais nada, podia-se temer as consequências desse caso para o Espiritismo. Jamais me inquietei com isso, como o sabeis, porque ele não podia, em todo caso, produzir senão uma emoção local e momentânea; porque a nossa doutrina, assim como a religião, não pode ser responsável pelas faltas dos que não a compreendem. É em vão que os nossos adversários se esforçam em apresentá-la como malsã e imoral; seria necessário provar que ela provoca, desculpa ou justifica um só ato repreensível, ou que ao lado de seus ensinos ostensivos, ela os tenha secretos, sob os quais a consciência possa abrigar-se. Mas como no Espiritismo tudo se passa à luz do dia e ele não prega senão a moral do Evangelho, à prática da qual tende a conduzir os homens que dela se afastam, só uma intenção malévola lhe poderia imputar tendências perniciosas. Considerando-se que cada um pode julgar por si mesmo os seus princípios altamente proclamados e claramente formulados em obras ao alcance de todos, só a ignorância ou a má-fé poderiam desnaturá-lo, assim como fizeram com os primeiros cristãos, acusados de todas as desgraças e de todos os acidentes que atingiram Roma, e de corromper os costumes. O Cristianismo, com o Evangelho na mão, só poderia sair vitorioso de todas essas acusações e da luta terrível contra ele desencadeada. Assim se dá com o Espiritismo, que também tem por bandeira o Evangelho. Para sua justificação, basta-lhe dizer: Vede o que ensino, o que recomendo e o que condeno. Ora, o que é que eu condeno? Todo ato contrário à caridade, que é a lei ensinada pelo Cristo.

O Espiritismo não está apenas na crença na manifestação dos Espíritos. O erro dos que o condenam é crer que só consista na produção de fenômenos estranhos, e isto por que, não se dando ao trabalho de estudá-lo, só lhe veem a superfície. Esses fenômenos só são estranhos para os que não conhecem a sua causa. Mas, quem quer que os aprofunde, neles não vê senão os efeitos de uma lei, de uma força da Natureza que não se conhecia e que, por isto mesmo, não são maravilhosos nem sobrenaturais. Esses fenômenos provam a existência dos Espíritos, que outra coisa não são senão as almas dos que viveram. Consequentemente, provam a existência da alma, sua sobrevivência ao corpo, a vida futura com todas as suas consequências morais. A fé no futuro, assim apoiada em provas materiais, torna-se inabalável e triunfa sobre a incredulidade. Eis por que, quando o Espiritismo tornar-se a crença de todos, não haverá mais incrédulos, nem materialistas, nem ateus. Sua missão é combater a incredulidade, a dúvida, a indiferença. Assim, ele não se dirige aos que têm fé e a quem basta essa fé, mas aos que em nada creem, ou que duvidam. Ele não diz a ninguém que deixe a sua religião; respeita todas as crenças, quando estas são sinceras. Aos seus olhos, a liberdade de consciência é um direito sagrado; se não a respeitasse, faltaria ao seu primeiro princípio, que é a caridade. Neutro entre todos os cultos, ele será o laço que os reunirá sob uma mesma bandeira, a da fraternidade universal. Um dia eles se darão as mãos, em vez de se anatematizarem.

Longe de serem a parte essencial do Espiritismo, os fenômenos apenas são um acessório, um meio suscitado por Deus para vencer a incredulidade que invade a Sociedade, e que consiste, sobretudo, na aplicação de seus princípios morais. É nisto que se reconhecem os espíritas sinceros. Os exemplos de reforma moral provocada pelo Espiritismo já são bastante numerosos para que se possa prever os resultados que produzirá com o tempo. É preciso que sua força moralizadora seja muito grande para triunfar dos hábitos inveterados pela idade, e da leviandade da juventude.

O efeito moralizador do Espiritismo, assim, tem por causa primeira o fenômeno das manifestações, que deu a fé. Se esses fenômenos fossem uma ilusão, como o pretendem os incrédulos, seria preciso abençoar uma ilusão que dá ao homem a força para vencer seus maus pendores.

Mas se, após dezoito séculos, ainda se veem tantas criaturas que professam o Cristianismo e o praticam tão pouco, é lícito admirar que em menos de dez anos todos os que creem no Espiritismo dele não tenham tirado todo o proveito desejável? Entre eles, há os que apenas viram o fato material das manifestações e nos quais foi mais excitada a curiosidade do que tocado o coração. Eis por que nem todos os espíritas são perfeitos. Isto nada tem de surpreendente em seu começo, e se uma coisa deve causar admiração, é o número de reformas operadas nesse curto intervalo. Se nem sempre o Espiritismo vence as más inclinações de maneira completa, um resultado parcial não deixa de ser um progresso a ser levado em conta, e como cada um de nós tem seu lado fraco, isto nos deve tornar indulgentes. O tempo e as novas existências acabarão o que está começado. Felizes os que se pouparem novas provações!

Hillaire pertence a essa classe que o Espiritismo de certo modo apenas faz aflorar, por isso faliu. A Providência o havia dotado de uma notável faculdade, com cujo auxílio ele muito fez de bem. Poderia fazer ainda muito mais se não tivesse, por sua fraqueza, rompido a missão. Não podemos condená-lo nem absolvê-lo, pois só a Deus cabe julgá-lo por não haver cumprido sua tarefa até o fim. Possa a expiação que ele sofre e uma séria guinada sobre si mesmo merecer a clemência de Deus!

Irmãos, estendamos-lhe nossas mãos compassivas e oremos por ele.

Notícias bibliográficas

UM ANJO DO CÉU NA TERRA (1)

Eis o relatório sobre a obra acima, feito na Sociedade Espírita de Paris por nosso colega Sr. Feyteau, advogado:

Sob este título, o Sr. Benjamin Mossé escreveu um livro cheio de poesia, no qual, sob duplo ponto de vista, a caridade é progressivamente ensinada pelos mais tocantes fatos. O assunto deste pequeno poema em prosa começa no Céu, desenvolve-se na Terra e termina no Céu, onde começou.

Os anjos, os arcanjos, os serafins, os ofanins, todos os seres sagrados, na expressão do Sr. Mossé, estão reunidos e cantam louvores ao Altíssimo, que os reuniu para lhes dar a missão de andar entre as almas da Terra, a fim de reconduzilas à via do bem, da qual as desviam incessantemente os apetites e as paixões terrenas.

Um desses anjos, o mais puro, foi o único a ficar após a partida de todos os outros. Esse anjo é Zadécia. Prosternada aos pés do trono do Eterno, ela implora para si o favor de uma exceção à regra geral imposta aos seus irmãos. Ela dizia, súplice: “Senhor, escuta a minha prece, antes que eu obedeça à tua voz! Vou descer à Terra, de acordo com a tua vontade. Subtraio-me, porquanto tu ordenas, à felicidade de que nos inundas; vou falar disto aos habitantes da morada inferior; vou inspirar-lhes a esperança, para sustentá-los em sua penosa caminhada. Mas digna-te conceder às minhas súplicas a graça que imploro! Permite, ó meu Deus, que afastada de teu palácio, jamais eu esqueça as suas delícias! Permite que o envoltório de que me vou revestir jamais seja obstáculo a meus voos para ti! Que eu fique sempre senhora de mim mesma; que jamais algo de impuro venha alterar minha nobreza! Permite, Senhor, que minha ausência da morada bem-aventurada não tenha longa duração! Permite que minha missão seja cumprida prontamente; que eu aqueça com minha chama um coração generoso; que eu cative com meus encantos esse coração já abençoado por tua mão; que meu amor o eleve, o aperfeiçoe, complete a sua virtude, a fim de que ele receba minhas inspirações, que ele aceite a minha mensagem, que ele se torne para a Humanidade uma consolação, uma luz, e que então eu possa, ó meu Deus, voltar à minha morada celeste, orgulhosa de deixar na Terra um nobre continuador de minha missão, animado por meu olhar, adorando minha imagem e sempre se elevando para mim, para buscar em meu seio a força para continuar sua obra, para cuja realização eu lhe prodigalizarei o encorajamento de meu amor, até a hora em que, por tua vontade, ele vier encontrar-me e receber em meus braços, aos pés do teu trono, tuas bênçãos eternas.”

─ “Acolho a tua prece, ó minha filha! respondeu-lhe a voz divina. Vai, vai sem medo, levar aos humanos os tesouros de tua chama. O fogo que te anima nada perderá de sua santidade na Terra, onde tua passagem será rápida, onde uma alma digna de ti já tomou um envoltório terrestre para cumprir a grande missão que lhe queres confiar. Tão ardentemente quão pura, ela enobrecer-se-á com teu amor. Ela será santificada por tua presença, pelos laços que a unirão ao teu destino imortal. Nessa união que abençoo antecipadamente, essa alma receberá tua missão, da qual se resgatará como tu mesma. Então regressarás a estas regiões supremas, de onde velarás sobre teu esposo bem-amado da Terra, que se tornará, ao terminar sua tarefa, teu bem-amado esposo no Céu!”

A estas palavras, Zadécia desceu radiosa das moradas infinitas para o meio dos humanos; depôs um beijo na fronte do menino que mais tarde deveria atrair a si pelo himeneu; depois, submetendo-se às condições necessárias da existência terrena, envolveu-se numa forma material na qual devia brilhar a sua beleza ou resplandecerem suas virtudes e encantos!!!

É nestas condições particularmente abençoadas que a alma de Zadécia empreende sua missão, cuja primeira fase é sua encarnação na criatura dada à luz dolorosamente por uma jovem e piedosa mãe. Na segunda fase de sua missão, Zadécia é um anjo de inocência, e sua beleza, que irradia como uma emanação divina, purifica tudo o que dela se aproxima. Na terceira fase, Zadécia é anjo de resignação pela paciência com que suporta os sofrimentos físicos. Na quarta, é anjo de piedade pelos exemplos de caridade e de abnegação que dá. Na quinta, é anjo de amor pela afeição simpática que se desenvolve entre ela e o jovem Azariel. Na sexta, é o anjo do amor conjugal por sua união com Azariel. Na sétima, ela é o anjo do amor maternal. A oitava fase, enfim, é sua volta ao Céu, deixando na Terra seu esposo e sua filha, para continuar sua obra de santificação.

Sem contradita, esses diversos quadros contêm exemplos edificantes e são de leitura atraente, mas o triunfo muito previsto de Zadécia sobre todas as provas a que sua encarnação está submetida lhes tira esse caráter de ensinamento útil que não pode resultar realmente senão dos esforços da luta. Essa condição em que se acha Zadécia, ao deixar o Céu, de conservar a pureza e a incorruptibilidade dos anjos, quase não permite interesse por ela além da atração que o autor deu, pela forma e pela expressão dos pensamentos, às etapas de sua viagem à Terra. Assim, depois de ter lido este livro e ter-lhe concedido o justo tributo de elogios que merecem o estilo e o conjunto realmente harmonioso do assunto, é forçoso lamentar que o autor pareça alheio aos princípios reais da natureza dos Espíritos, e jamais ter pensado em se dar conta da influência que eles exercem sobre as diversas condições sociais da Humanidade, pelo melhoramento progressivo que suas várias encarnações desenvolvem.

Há uma preocupação natural no homem sério. Quer perscrute ele, aos múltiplos clarões da filosofia, as peripécias da vida humana, quer sonde, com o facho das religiões, as misteriosas profundezas da morte, sua preocupação é chegar a uma conclusão que o esclareça sobre seu verdadeiro destino, mostrando-lhe o caminho que deve seguir. Sem dúvida esse caminho nem sempre é o verdadeiro, mas cada um segue o sulco traçado pela charrua da vontade no campo do pensamento, conforme tenha atrelado bons ou maus princípios. Para uns, sistemas preconcebidos tomam o lugar das verdades; deles fazem uma lei, esgotando-se em discussões para fazê-la prevalecer e impô-la. Para outros, é o próprio Deus que eles têm a pretensão de traduzir, interpretar e comentar de tantas maneiras e em tantos debates tempestuosos, quando não sangrentos, que os textos sagrados da palavra divina ficam enterrados sob os escombros de suas disputas.

O livro do Sr. Mossé, se não revela a preocupação que aí gostaríamos de ver sobre a natureza dos Espíritos, não revela nenhuma das que a excluem ou a combatem. Diremos até que mais se aproxima do que se afasta, e que, com um passo a mais, elas marchariam unidas, porque tendem para um fim comum: a prática da caridade como condição da vida bem-aventurada. É, pois, um bom livro que o Espiritismo deve acolher como um aliado que pode tornar-se irmão.

FEYTEAU
Advogado


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(1) Por BENJÂMIN Mossé. rabino de Avignon. — l rol. in-12; 3 ir. 50. — Em Avignon, Bonnet fils.




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