Você está em:
Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865 > Junho
Junho
Relatório da caixa do Espiritismo
Feito à Sociedade Espírita de Paris, no dia 5 de maio de 1865, pelo Sr. Allan Kardec
Senhores e caros colegas,
Há algum tempo vos anunciei novas explicações sobre a caixa do Espiritismo. O início de um novo ano social naturalmente me oferece essa ocasião. Nesta exposição lamento ter que falar de mim, o que faço o menos possível, mas nesta circunstância não poderia evitá-lo, por isso, e de antemão, peço me desculpeis.
Lembrarei sumariamente o relatório sobre o assunto que vos apresentei há dois anos.
Em fevereiro de 1860, foi posto à minha disposição um donativo de 10.000 francos para usá-lo à vontade, no interesse do Espiritismo. Naquela época, a Sociedade não tinha um local seu, o que constituía grave inconveniente. A extensão que começava a tomar a doutrina fazia sentir a utilidade de um local adequado não só para as sessões mas para a recepção de visitantes que a cada dia se tornavam mais numerosos e tornavam indispensável a presença permanente de alguém na própria sede da Sociedade. Escolhi este local, que reunia as vantagens do asseio e da localização central. Aliás, a escolha não foi fácil, dada a necessidade de dependências apropriadas à sua finalidade, aliada ao elevado preço dos aluguéis. O preço de locação deste local, inclusive as contribuições, é de 2.930 francos. Não podendo a Sociedade suportar tal encargo e pagando apenas l.200 francos, faltavam l.130 francos, os quais se devia prover. Aplicar o donativo feito, tanto na compra de material quanto no pagamento do excedente do aluguel, não era afastar-se das intenções do doador, porquanto era aplicado no interesse da doutrina e, com efeito, compreende-se, sobretudo hoje, quanto foi útil ter este centro para onde convergem tantas relações, e quanto era necessário, além disso, que eu tivesse aqui um alojamento. Contudo, devo lembrar que se aqui moro, não é vantagem para mim, porque tenho outro apartamento que nada me custa e onde me seria mais agradável morar, e com tanto mais razão quando essa dupla residência, longe de ser um alívio, é uma agravação de encargos, como logo demonstrarei.
A soma de 10.000 francos foi, pois, o primeiro fundo de caixa do Espiritismo, caixa que, como sabeis, é objeto de uma contabilidade especial e não se confunde com meus negócios pessoais. Esse fundo devia bastar para completar, mais ou menos, o aluguel durante seis anos, conforme a conta detalhada que apresentei da última vez. Ora, o contrato expira em um ano e a soma chega ao fim.
É verdade que o capital da caixa foi aumentado com várias somas, e assim está constituído:
1.º ─ Donativo de fevereiro de 1860 - 10.000 francos;
2.º ─ Concessão de um empréstimo feito numa época anterior, no interesse do Espiritismo – 600 francos;
3.º ─ Donativo feito em 1862 – 500 francos;
4.º ─ Outro donativo, feito em setembro de 1864 - 1.000 francos;
5.º ─ Outro donativo, feito em outubro de 1864 - 2.000 francos; TOTAL – 14.100 francos.
Tendo estas duas últimas parcelas destino especial, na realidade só 11.100 francos estão destinados ao aluguel e não bastarão inteiramente.
Mas o aluguel não é o único encargo que incumbe ao Espiritismo. Não falo das obras de beneficência, que são uma coisa à parte de que falaremos a seguir. Abordo um outro lado da questão, e é aqui que reclamo a vossa indulgência, pela necessidade que tenho de falar de mim.
Falaram muito do lucro que eu obtinha com as minhas obras. Ninguém sério na verdade acredita em meus milhões, malgrado a afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca; que eu tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. Por mais que tenha dito, além disso, o autor de uma brochura que conheceis, que prova por cálculos hiperbólicos que meu orçamento das receitas ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa (38 milhões. Revista de junho de 1862 e junho de 1863), o que, diga-se de passagem, testemunharia uma expansão verdadeiramente maravilhosa da doutrina, há um fato mais autêntico que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém; jamais alguém me deu algo para mim pessoalmente e nenhuma coleta de um vintém sequer veio atender às minhas necessidades. Numa palavra, não vivo às custas de ninguém, porquanto das somas que me foram confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi retirada em meu proveito e, aliás, vê-se a quanto montam as cifras.
Minhas imensas riquezas proviriam, então, de minhas obras espíritas. Embora essas obras tenham tido um sucesso inesperado, basta ter um leve conhecimento de assuntos de livraria para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns cêntimos por exemplar. Mas, seja ele muito ou pouco, sendo este produto o fruto do meu trabalho, ninguém tem que se imiscuir na aplicação que dele faço. Mesmo que ele se elevasse a milhões, considerando-se que tanto a compra dos livros quanto a assinatura da Revista são facultativas e não impostas em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade, ninguém tem nada a ver com isso. Falando comercialmente, estou na posição de qualquer homem que recolhe o fruto de seu trabalho: corro o risco de todo escritor que pode triunfar, como pode fracassar.
Embora, no particular, não tenha que prestar contas, creio útil à própria causa a que me votei, dar algumas explicações.
Para começar, direi que minhas obras não são minha propriedade exclusiva, e sou obrigado a comprá-las do meu editor e pagá-las, como um livreiro, com exceção da Revista, da qual conservei os direitos de propriedade; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas obras que não são vendidas e pelas distribuições gratuitas feitas no interesse da doutrina, a pessoas que sem isto delas estariam privadas. Um cálculo muito simples prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, basta para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. No fim das contas, feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes. O que faço com ela? Isto é o que mais preocupa certa gente.
Quem quer que tenha outrora visto nossa intimidade e a veja hoje, pode atestar que nada mudou em nossa maneira de viver depois que passei a ocupar-me do Espiritismo. Ela é tão simples agora quanto era outrora, porque uma vida suntuosa não está nos nossos gostos. Então, é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Não temos filhos, portanto não é para eles que economizamos, e nossos herdeiros indiretos são, em sua maioria, muito mais ricos que nós. Seria muita ingenuidade esgotar-me trabalhando por eles. Então teria eu a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Penso que meu caráter e meus hábitos jamais tenham permitido que fizessem tal suposição. Os que me atribuem tais ideias conhecem muito pouco meus princípios em matéria de Espiritismo, porque me julgam muito apegado aos bens da Terra. Por que as coisas são assim? Considerando-se que não tiro proveito disso, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia se saberá sua cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os criadores de histórias poderão economizar a imaginação; hoje limito-me a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto, devo entrar nalguns detalhes íntimos, pelo que vos peço perdão, mas são necessários.
De todos os tempos temos tido de que viver, muito modestamente, é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo, e o de um modesto emprego que tive de deixar quando os trabalhos da doutrina me absorveram todo o tempo.
Na propriedade que possuo e que me fica como sobra daquilo que a má-fé não me pôde arrancar, podíamos viver tranquilamente e longe da confusão dos negócios. Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho. Em pouco tempo vi-me arrastado num movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia do Livro dos Espíritos, minha intenção era não me pôr em evidência e ficar desconhecido, mas logo sobrecarregado, isto não mais me foi possível. Tive que renunciar à minha solitude, sob pena de abdicar da obra empreendida, que crescia prodigiosamente. Foi preciso seguir-lhe o impulso e tomar as suas rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, certamente não fui eu que a busquei, pois é notório que não a devo à propaganda nem à camaradagem da imprensa, e que jamais tirei proveito da minha posição e das minhas relações para me lançar no mundo, quando isto ter-me-ia sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto desenrolava-se à minha frente, cujos limites recuavam. Compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorar, as dificuldades e os obstáculos redobraram minha energia; vi o objetivo e resolvi atingi-lo, com a assistência dos bons Espíritos. Eu sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi em visitas inúteis nem em cerimônias ociosas. Foi a obra de minha vida. Para ela dediquei todo o meu tempo; a ela sacrifiquei meu repouso e a minha saúde, porque diante de mim o futuro estava escrito em caracteres irrefutáveis. Fi-lo por meu próprio impulso, e minha mulher, que não é nem mais ambiciosa nem mais interesseira que eu, concordou plenamente com meus pontos de vista e me secundou na tarefa laboriosa, como o faz ainda, por um trabalho por vezes acima de suas forças, sacrificando sem pesar os prazeres e distrações do mundo, aos quais sua posição de família a tinham habituado.
Sem nos afastarmos de nosso gênero de vida, essa posição excepcional não deixou de criar-nos necessidades às quais apenas meus próprios recursos permitiam prover. Seria difícil imaginar a multiplicidade de despesas que ela acarreta, e que sem isso eu teria evitado. A necessidade de morar em duas residências é, como já disse, um acréscimo de gastos, pela obrigação de ter todo o mobiliário em dobro, sem contar uma porção de gastos miúdos exigidos por essa dupla habitação e as perdas que resultam da negligência de meus interesses materiais, relegados por uma série de trabalhos que me absorvem todo o tempo. Não é uma queixa que formulo, pois minhas ocupações atuais são voluntárias; é um fato que constato, em resposta àqueles que dizem que tudo é lucro para mim no Espiritismo. Quanto aos gastos especiais ocasionados por minha posição, seria impossível enumerá-los, mas, se considerardes que tenho anualmente mais de oitocentos francos de despesas em porte de cartas, independentemente das viagens, e que tenho a necessidade de ligarme a alguém para me ajudar, e outros pequenos gastos indispensáveis, compreendereis que não exagero dizendo que minhas despesas anuais, que foram crescendo incessantemente, hoje estão mais que triplicadas. Pode-se fazer uma ideia, aproximadamente, a quanto pode se elevar este excedente em oito anos, tomando a média de 6.000 francos por ano. Ora, ninguém contestará a utilidade destas despesas para o sucesso da doutrina, que evidentemente teria enlanguecido se eu tivesse permanecido no meu retiro, sem ver ninguém e sem as numerosas relações que mantenho diariamente. É o que, entretanto, eu teria sido obrigado a fazer, se nada me tivesse vindo em auxílio.
Pois bem, senhores, o que me proporcionou esse suplemento de recursos foi o produto de minhas obras. Digo com satisfação que foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da doutrina. Assim, eu trouxe uma larga quotaparte à caixa do Espiritismo. Deus quis que ele encontrasse em si mesmo os seus primeiros meios de ação. No princípio eu lamentava que minha pouca fortuna não me permitisse fazer o que eu queria fazer pelo bem da causa, mas hoje aí vejo o dedo da Providência e a realização desta predição tantas vezes repetida pelos bons Espíritos: “Não te inquietes com nada. Deus sabe o que te é preciso e saberá provêlo.”
Se eu tivesse empregado o produto de minhas obras no aumento de meus prazeres materiais, isto teria resultado em prejuízo do Espiritismo, contudo, ninguém teria tido o direito de objetar, porque eu era bem senhor de dispor à vontade daquilo que só devia a mim mesmo; mas, porque me privava antes, podia privar-me depois; penso que o aplicando à obra, ninguém achará que seja dinheiro mal empregado e os que ajudam na propagação das obras não poderão dizer que trabalham para me enriquecer.
Prover o presente não era tudo. Era necessário pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse ajudar aquele que me substituirá na grande tarefa que terá de cumprir. Essa fundação, sobre a qual devo calar-me ainda, se liga à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico uma parte dos meus rendimentos em melhorá-la. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, duvido muito que, a despeito de minhas economias, meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria dar. Mas, considerando-se que sua realização está nos planos de meus guias espirituais, se eu mesmo não a fizer, é provável que um dia ou outro isto seja feito. Enquanto espero, faço os planos no papel.
Longe de mim, senhores, o pensamento de vangloriar-me do que vos acabo de expor. Foi preciso a persistência de certas diatribes para me impelir, embora contra a vontade, a romper o silêncio sobre alguns dos fatos a meu respeito. Mais tarde, todos aqueles a quem a malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por documentos autênticos, mas ainda não chegou o dia dessas explicações. A única coisa que me importava no momento era que fôsseis esclarecidos sobre o destino dos fundos que a Providência fez passar pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero senão como simples depositário daqueles que ganho, e com mais forte razão daqueles que me são confiados e dos quais prestarei contas rigorosas. Resumo dizendo que não necessito deles para mim, o que significa dizer que deles não tiro proveito.
Resta falar-vos, senhores, da caixa de beneficência. Sabeis que ela se formou, sem desígnio premeditado, com algumas quantias postas em minhas mãos para obras de caridade, mas sem destinação especial, às quais junto as que de vez em quando se acham sem emprego determinado. O primeiro donativo feito com este objetivo foi de 200 francos, enviados a 20 de agosto de 1863. No ano seguinte, a 17 de agosto, a mesma pessoa me remeteu outros 200 francos. A 1º de setembro, durante minha viagem, outra me enviou 100 francos. Quando das subscrições publicadas na Revista, várias pessoas juntaram às suas remessas importâncias menores, com emprego facultativo. Mais recentemente, a 28 de abril último, alguém me remeteu 500 francos. O total das receitas até hoje chegou ao montante de 1.317 francos. O total das despesas, em auxílios diversos, donativos e empréstimos ainda não reembolsados, chega ao montante de 1.060 francos. Atualmente restam-me em caixa 257 francos.
Alguém me perguntava um dia, naturalmente sem curiosidade, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se eu o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que teria sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isto teria sido inútil, porque nossos adversários disto se encarregaram às suas custas. Não pondo, portanto, grandes recursos à minha disposição, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo não devia o seu sucesso senão a si mesmo, à sua própria força, e não ao emprego dos meios vulgares.
Hoje que o horizonte se alargou, que sobretudo o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de outra ordem. Um capital como o que supondes teria um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes que seriam prematuros, apenas direi que uma parte serviria para converter minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra para constituir uma renda inalienável, destinada: 1.º ─ a manter o estabelecimento; 2.º ─ a assegurar uma existência independente àquele que me sucederá e àqueles que o ajudarão em sua missão; 3º ─ a cobrir as necessidades correntes do Espiritismo, sem a necessidade de recorrer aos produtos eventuais, como sou obrigado a fazer, porquanto a maior parte dos recursos repousam em meu trabalho, que terá um termo.
Eis o que eu faria. Mas, se esta satisfação não me é dada, pouco me importa que seja dada a outros. Aliás, eu sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo hábil. Eis por que absolutamente não me inquieto com isso e me ocupo do que para mim é a coisa essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.
Admiram-se que certas figuras altamente colocadas e notoriamente simpáticas à ideia espírita não tomem abertamente e oficialmente a causa em suas mãos. Dizem que seria seu dever, porquanto o Espiritismo é uma obra essencialmente moralizadora e humanitária. Esquecem-se que essas pessoas, por sua própria posição, têm, mais do que outras, que lutar contra preconceitos que só o tempo fará desaparecer, e que cairão ante o ascendente da opinião. Digamos, além disso, que o Espiritismo ainda se acha no estado de esboço e que ele não disse a sua última palavra. Os princípios gerais estão estabelecidos, mas ainda mal se entreveem as consequências, que não são e nem podem ser ainda claramente definidas. Até agora ele não passa de uma doutrina filosófica cuja aplicação às grandes questões de interesse geral é preciso esperar. Só então é que muitas pessoas compreenderão o seu verdadeiro alcance e utilidade e poderão pronunciar-se com conhecimento de causa. Até que o Espiritismo tenha completado sua obra, o bem que ele faz é limitado; ele não pode ser senão uma crença individual, e uma adesão oficial seria prematura e impossível. Então sim, muitos daqueles que hoje o consideram como uma coisa fútil, forçosamente mudarão sua maneira de ver e serão levados, pela própria força das coisas, a fazer dele um estudo sério. Deixemo-lo, pois, crescer e não peçamos que seja homem antes de ter sido menino; não peçamos à infância o que só a idade viril pode dar.
A. K.
Senhores e caros colegas,
Há algum tempo vos anunciei novas explicações sobre a caixa do Espiritismo. O início de um novo ano social naturalmente me oferece essa ocasião. Nesta exposição lamento ter que falar de mim, o que faço o menos possível, mas nesta circunstância não poderia evitá-lo, por isso, e de antemão, peço me desculpeis.
Lembrarei sumariamente o relatório sobre o assunto que vos apresentei há dois anos.
Em fevereiro de 1860, foi posto à minha disposição um donativo de 10.000 francos para usá-lo à vontade, no interesse do Espiritismo. Naquela época, a Sociedade não tinha um local seu, o que constituía grave inconveniente. A extensão que começava a tomar a doutrina fazia sentir a utilidade de um local adequado não só para as sessões mas para a recepção de visitantes que a cada dia se tornavam mais numerosos e tornavam indispensável a presença permanente de alguém na própria sede da Sociedade. Escolhi este local, que reunia as vantagens do asseio e da localização central. Aliás, a escolha não foi fácil, dada a necessidade de dependências apropriadas à sua finalidade, aliada ao elevado preço dos aluguéis. O preço de locação deste local, inclusive as contribuições, é de 2.930 francos. Não podendo a Sociedade suportar tal encargo e pagando apenas l.200 francos, faltavam l.130 francos, os quais se devia prover. Aplicar o donativo feito, tanto na compra de material quanto no pagamento do excedente do aluguel, não era afastar-se das intenções do doador, porquanto era aplicado no interesse da doutrina e, com efeito, compreende-se, sobretudo hoje, quanto foi útil ter este centro para onde convergem tantas relações, e quanto era necessário, além disso, que eu tivesse aqui um alojamento. Contudo, devo lembrar que se aqui moro, não é vantagem para mim, porque tenho outro apartamento que nada me custa e onde me seria mais agradável morar, e com tanto mais razão quando essa dupla residência, longe de ser um alívio, é uma agravação de encargos, como logo demonstrarei.
A soma de 10.000 francos foi, pois, o primeiro fundo de caixa do Espiritismo, caixa que, como sabeis, é objeto de uma contabilidade especial e não se confunde com meus negócios pessoais. Esse fundo devia bastar para completar, mais ou menos, o aluguel durante seis anos, conforme a conta detalhada que apresentei da última vez. Ora, o contrato expira em um ano e a soma chega ao fim.
É verdade que o capital da caixa foi aumentado com várias somas, e assim está constituído:
1.º ─ Donativo de fevereiro de 1860 - 10.000 francos;
2.º ─ Concessão de um empréstimo feito numa época anterior, no interesse do Espiritismo – 600 francos;
3.º ─ Donativo feito em 1862 – 500 francos;
4.º ─ Outro donativo, feito em setembro de 1864 - 1.000 francos;
5.º ─ Outro donativo, feito em outubro de 1864 - 2.000 francos; TOTAL – 14.100 francos.
Tendo estas duas últimas parcelas destino especial, na realidade só 11.100 francos estão destinados ao aluguel e não bastarão inteiramente.
Mas o aluguel não é o único encargo que incumbe ao Espiritismo. Não falo das obras de beneficência, que são uma coisa à parte de que falaremos a seguir. Abordo um outro lado da questão, e é aqui que reclamo a vossa indulgência, pela necessidade que tenho de falar de mim.
Falaram muito do lucro que eu obtinha com as minhas obras. Ninguém sério na verdade acredita em meus milhões, malgrado a afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu levava uma vida principesca; que eu tinha carruagens de quatro cavalos e que em minha casa só se pisava em tapetes de Aubusson. Por mais que tenha dito, além disso, o autor de uma brochura que conheceis, que prova por cálculos hiperbólicos que meu orçamento das receitas ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa (38 milhões. Revista de junho de 1862 e junho de 1863), o que, diga-se de passagem, testemunharia uma expansão verdadeiramente maravilhosa da doutrina, há um fato mais autêntico que os seus cálculos: é que jamais pedi qualquer coisa a alguém; jamais alguém me deu algo para mim pessoalmente e nenhuma coleta de um vintém sequer veio atender às minhas necessidades. Numa palavra, não vivo às custas de ninguém, porquanto das somas que me foram confiadas no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi retirada em meu proveito e, aliás, vê-se a quanto montam as cifras.
Minhas imensas riquezas proviriam, então, de minhas obras espíritas. Embora essas obras tenham tido um sucesso inesperado, basta ter um leve conhecimento de assuntos de livraria para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando sobre a venda só se tem o direito autoral de alguns cêntimos por exemplar. Mas, seja ele muito ou pouco, sendo este produto o fruto do meu trabalho, ninguém tem que se imiscuir na aplicação que dele faço. Mesmo que ele se elevasse a milhões, considerando-se que tanto a compra dos livros quanto a assinatura da Revista são facultativas e não impostas em nenhuma circunstância, nem mesmo para assistir às sessões da Sociedade, ninguém tem nada a ver com isso. Falando comercialmente, estou na posição de qualquer homem que recolhe o fruto de seu trabalho: corro o risco de todo escritor que pode triunfar, como pode fracassar.
Embora, no particular, não tenha que prestar contas, creio útil à própria causa a que me votei, dar algumas explicações.
Para começar, direi que minhas obras não são minha propriedade exclusiva, e sou obrigado a comprá-las do meu editor e pagá-las, como um livreiro, com exceção da Revista, da qual conservei os direitos de propriedade; que o lucro se acha singularmente diminuído pelas obras que não são vendidas e pelas distribuições gratuitas feitas no interesse da doutrina, a pessoas que sem isto delas estariam privadas. Um cálculo muito simples prova que o preço de dez volumes perdidos ou doados, que nem por isso deixo de pagar, basta para absorver o lucro de cem volumes. Isto seja dito a título de informação e entre parênteses. No fim das contas, feito o balanço, resta, contudo, alguma coisa. Imaginai a cifra que quiserdes. O que faço com ela? Isto é o que mais preocupa certa gente.
Quem quer que tenha outrora visto nossa intimidade e a veja hoje, pode atestar que nada mudou em nossa maneira de viver depois que passei a ocupar-me do Espiritismo. Ela é tão simples agora quanto era outrora, porque uma vida suntuosa não está nos nossos gostos. Então, é certo que os meus lucros, por maiores que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. Não temos filhos, portanto não é para eles que economizamos, e nossos herdeiros indiretos são, em sua maioria, muito mais ricos que nós. Seria muita ingenuidade esgotar-me trabalhando por eles. Então teria eu a mania de entesourar para ter o prazer de contemplar meu dinheiro? Penso que meu caráter e meus hábitos jamais tenham permitido que fizessem tal suposição. Os que me atribuem tais ideias conhecem muito pouco meus princípios em matéria de Espiritismo, porque me julgam muito apegado aos bens da Terra. Por que as coisas são assim? Considerando-se que não tiro proveito disso, quanto mais fabulosa for a soma, mais embaraçosa será a resposta. Um dia se saberá sua cifra exata, bem como o seu emprego detalhado, e os criadores de histórias poderão economizar a imaginação; hoje limito-me a alguns dados gerais para pôr um freio a suposições ridículas. Para tanto, devo entrar nalguns detalhes íntimos, pelo que vos peço perdão, mas são necessários.
De todos os tempos temos tido de que viver, muito modestamente, é verdade, mas o que teria sido pouco para certa gente nos bastava, graças a nossos gostos e hábitos de ordem e economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se, como suplemento, o produto das obras que publiquei antes do Espiritismo, e o de um modesto emprego que tive de deixar quando os trabalhos da doutrina me absorveram todo o tempo.
Na propriedade que possuo e que me fica como sobra daquilo que a má-fé não me pôde arrancar, podíamos viver tranquilamente e longe da confusão dos negócios. Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo veio lançar-me em novo caminho. Em pouco tempo vi-me arrastado num movimento que estava longe de prever. Quando concebi a ideia do Livro dos Espíritos, minha intenção era não me pôr em evidência e ficar desconhecido, mas logo sobrecarregado, isto não mais me foi possível. Tive que renunciar à minha solitude, sob pena de abdicar da obra empreendida, que crescia prodigiosamente. Foi preciso seguir-lhe o impulso e tomar as suas rédeas. Se meu nome tem agora alguma popularidade, certamente não fui eu que a busquei, pois é notório que não a devo à propaganda nem à camaradagem da imprensa, e que jamais tirei proveito da minha posição e das minhas relações para me lançar no mundo, quando isto ter-me-ia sido tão fácil. Mas, à medida que a obra crescia, um horizonte mais vasto desenrolava-se à minha frente, cujos limites recuavam. Compreendi então a imensidade de minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. Longe de me apavorar, as dificuldades e os obstáculos redobraram minha energia; vi o objetivo e resolvi atingi-lo, com a assistência dos bons Espíritos. Eu sentia que não tinha tempo a perder e não o perdi em visitas inúteis nem em cerimônias ociosas. Foi a obra de minha vida. Para ela dediquei todo o meu tempo; a ela sacrifiquei meu repouso e a minha saúde, porque diante de mim o futuro estava escrito em caracteres irrefutáveis. Fi-lo por meu próprio impulso, e minha mulher, que não é nem mais ambiciosa nem mais interesseira que eu, concordou plenamente com meus pontos de vista e me secundou na tarefa laboriosa, como o faz ainda, por um trabalho por vezes acima de suas forças, sacrificando sem pesar os prazeres e distrações do mundo, aos quais sua posição de família a tinham habituado.
Sem nos afastarmos de nosso gênero de vida, essa posição excepcional não deixou de criar-nos necessidades às quais apenas meus próprios recursos permitiam prover. Seria difícil imaginar a multiplicidade de despesas que ela acarreta, e que sem isso eu teria evitado. A necessidade de morar em duas residências é, como já disse, um acréscimo de gastos, pela obrigação de ter todo o mobiliário em dobro, sem contar uma porção de gastos miúdos exigidos por essa dupla habitação e as perdas que resultam da negligência de meus interesses materiais, relegados por uma série de trabalhos que me absorvem todo o tempo. Não é uma queixa que formulo, pois minhas ocupações atuais são voluntárias; é um fato que constato, em resposta àqueles que dizem que tudo é lucro para mim no Espiritismo. Quanto aos gastos especiais ocasionados por minha posição, seria impossível enumerá-los, mas, se considerardes que tenho anualmente mais de oitocentos francos de despesas em porte de cartas, independentemente das viagens, e que tenho a necessidade de ligarme a alguém para me ajudar, e outros pequenos gastos indispensáveis, compreendereis que não exagero dizendo que minhas despesas anuais, que foram crescendo incessantemente, hoje estão mais que triplicadas. Pode-se fazer uma ideia, aproximadamente, a quanto pode se elevar este excedente em oito anos, tomando a média de 6.000 francos por ano. Ora, ninguém contestará a utilidade destas despesas para o sucesso da doutrina, que evidentemente teria enlanguecido se eu tivesse permanecido no meu retiro, sem ver ninguém e sem as numerosas relações que mantenho diariamente. É o que, entretanto, eu teria sido obrigado a fazer, se nada me tivesse vindo em auxílio.
Pois bem, senhores, o que me proporcionou esse suplemento de recursos foi o produto de minhas obras. Digo com satisfação que foi com o meu próprio trabalho, com o fruto de minhas vigílias que provi, pelo menos em sua maior parte, às necessidades materiais da instalação da doutrina. Assim, eu trouxe uma larga quotaparte à caixa do Espiritismo. Deus quis que ele encontrasse em si mesmo os seus primeiros meios de ação. No princípio eu lamentava que minha pouca fortuna não me permitisse fazer o que eu queria fazer pelo bem da causa, mas hoje aí vejo o dedo da Providência e a realização desta predição tantas vezes repetida pelos bons Espíritos: “Não te inquietes com nada. Deus sabe o que te é preciso e saberá provêlo.”
Se eu tivesse empregado o produto de minhas obras no aumento de meus prazeres materiais, isto teria resultado em prejuízo do Espiritismo, contudo, ninguém teria tido o direito de objetar, porque eu era bem senhor de dispor à vontade daquilo que só devia a mim mesmo; mas, porque me privava antes, podia privar-me depois; penso que o aplicando à obra, ninguém achará que seja dinheiro mal empregado e os que ajudam na propagação das obras não poderão dizer que trabalham para me enriquecer.
Prover o presente não era tudo. Era necessário pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse ajudar aquele que me substituirá na grande tarefa que terá de cumprir. Essa fundação, sobre a qual devo calar-me ainda, se liga à propriedade que possuo e é em vista disto que aplico uma parte dos meus rendimentos em melhorá-la. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, duvido muito que, a despeito de minhas economias, meus recursos pessoais me permitam dar a essa fundação o complemento que em vida lhe queria dar. Mas, considerando-se que sua realização está nos planos de meus guias espirituais, se eu mesmo não a fizer, é provável que um dia ou outro isto seja feito. Enquanto espero, faço os planos no papel.
Longe de mim, senhores, o pensamento de vangloriar-me do que vos acabo de expor. Foi preciso a persistência de certas diatribes para me impelir, embora contra a vontade, a romper o silêncio sobre alguns dos fatos a meu respeito. Mais tarde, todos aqueles a quem a malevolência aprouve desnaturar serão trazidos à luz por documentos autênticos, mas ainda não chegou o dia dessas explicações. A única coisa que me importava no momento era que fôsseis esclarecidos sobre o destino dos fundos que a Providência fez passar pelas minhas mãos, seja qual for a sua origem. Não me considero senão como simples depositário daqueles que ganho, e com mais forte razão daqueles que me são confiados e dos quais prestarei contas rigorosas. Resumo dizendo que não necessito deles para mim, o que significa dizer que deles não tiro proveito.
Resta falar-vos, senhores, da caixa de beneficência. Sabeis que ela se formou, sem desígnio premeditado, com algumas quantias postas em minhas mãos para obras de caridade, mas sem destinação especial, às quais junto as que de vez em quando se acham sem emprego determinado. O primeiro donativo feito com este objetivo foi de 200 francos, enviados a 20 de agosto de 1863. No ano seguinte, a 17 de agosto, a mesma pessoa me remeteu outros 200 francos. A 1º de setembro, durante minha viagem, outra me enviou 100 francos. Quando das subscrições publicadas na Revista, várias pessoas juntaram às suas remessas importâncias menores, com emprego facultativo. Mais recentemente, a 28 de abril último, alguém me remeteu 500 francos. O total das receitas até hoje chegou ao montante de 1.317 francos. O total das despesas, em auxílios diversos, donativos e empréstimos ainda não reembolsados, chega ao montante de 1.060 francos. Atualmente restam-me em caixa 257 francos.
Alguém me perguntava um dia, naturalmente sem curiosidade, e por mero interesse pela causa, o que eu faria de um milhão, se eu o tivesse. Respondi-lhe que hoje o seu emprego seria totalmente diferente do que teria sido no princípio. Outrora eu teria feito propaganda por uma larga publicidade; agora reconheço que isto teria sido inútil, porque nossos adversários disto se encarregaram às suas custas. Não pondo, portanto, grandes recursos à minha disposição, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo não devia o seu sucesso senão a si mesmo, à sua própria força, e não ao emprego dos meios vulgares.
Hoje que o horizonte se alargou, que sobretudo o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de outra ordem. Um capital como o que supondes teria um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes que seriam prematuros, apenas direi que uma parte serviria para converter minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra para constituir uma renda inalienável, destinada: 1.º ─ a manter o estabelecimento; 2.º ─ a assegurar uma existência independente àquele que me sucederá e àqueles que o ajudarão em sua missão; 3º ─ a cobrir as necessidades correntes do Espiritismo, sem a necessidade de recorrer aos produtos eventuais, como sou obrigado a fazer, porquanto a maior parte dos recursos repousam em meu trabalho, que terá um termo.
Eis o que eu faria. Mas, se esta satisfação não me é dada, pouco me importa que seja dada a outros. Aliás, eu sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo hábil. Eis por que absolutamente não me inquieto com isso e me ocupo do que para mim é a coisa essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam por terminar. Feito isto, partirei quando a Deus aprouver chamar-me.
Admiram-se que certas figuras altamente colocadas e notoriamente simpáticas à ideia espírita não tomem abertamente e oficialmente a causa em suas mãos. Dizem que seria seu dever, porquanto o Espiritismo é uma obra essencialmente moralizadora e humanitária. Esquecem-se que essas pessoas, por sua própria posição, têm, mais do que outras, que lutar contra preconceitos que só o tempo fará desaparecer, e que cairão ante o ascendente da opinião. Digamos, além disso, que o Espiritismo ainda se acha no estado de esboço e que ele não disse a sua última palavra. Os princípios gerais estão estabelecidos, mas ainda mal se entreveem as consequências, que não são e nem podem ser ainda claramente definidas. Até agora ele não passa de uma doutrina filosófica cuja aplicação às grandes questões de interesse geral é preciso esperar. Só então é que muitas pessoas compreenderão o seu verdadeiro alcance e utilidade e poderão pronunciar-se com conhecimento de causa. Até que o Espiritismo tenha completado sua obra, o bem que ele faz é limitado; ele não pode ser senão uma crença individual, e uma adesão oficial seria prematura e impossível. Então sim, muitos daqueles que hoje o consideram como uma coisa fútil, forçosamente mudarão sua maneira de ver e serão levados, pela própria força das coisas, a fazer dele um estudo sério. Deixemo-lo, pois, crescer e não peçamos que seja homem antes de ter sido menino; não peçamos à infância o que só a idade viril pode dar.
A. K.
NOTA: Esta exposição tinha sido feita apenas para a Sociedade, mas, tendo sido pedida por unanimidade a sua inserção na Revista, julgamos dever atender a esse desejo.
O Espiritismo do alto abaixo da escala
Não dizemos nada de novo aos nossos irmãos em crença, nem aos adversários, dizendo que o Espiritismo invade todas as camadas da Sociedade. As duas cartas aqui citadas têm por objetivo principal pôr em relevo a similitude de sentimentos que a doutrina suscita nos polos extremos da escala social, em indivíduos que não têm nenhum contacto, que jamais vimos e que, nada obstante, se encontram no mesmo terreno, sem outro guia a não ser a leitura das obras. Um é um dignitário do império russo, e o outro um simples pastor da Touraine.
Eis a primeira carta:
Senhor,
Desde 23 de outubro último formou-se em nossa cidade um grupo espírita sob a proteção do apóstolo São Pedro. Considerando-vos, senhor, como nosso mestre em Espiritismo, julgo um dever, como presidente deste grupo, vos dar esta informação.
O objetivo principal que nos propomos é o alívio dos Espíritos sofredores, encarnados e desencarnados. Temos duas reuniões por semana. Procuramos atingir a unidade de pensamento, e para alcançá-la, cada um dos assistentes, durante toda a sessão, guarda o mais recolhido silêncio, e quando a pergunta aos Espíritos é lida em voz alta, cada um de nós mentalmente pede a seu anjo protetor a ajuda a fim de obter uma resposta verdadeira. Em nossas evocações, lidando o mais das vezes com Espíritos de ordem inferior, com Espíritos obsessores, e conhecendo, pela experiência, a eficácia da prece em comum, a ela quase sempre recorremos para esclarecer e aliviar esses infelizes. Nosso grupo possui muitos médiuns, mas ordinariamente só dois ou três escrevem em cada sessão. Temos, além disso, um médium auditivo e vidente, e um magnetizador. Prometem-nos um médium desenhista, mas, nunca o tendo visto, não posso apreciar sua faculdade. Nosso grupo já se compõe de quarenta membros.
Há várias outras reuniões espíritas em São Petersburgo, mas não possuem regulamentos. Nosso grupo é o primeiro regularmente organizado e esperamos que, com a ajuda de Deus, nosso exemplo seja seguido.
Tenho satisfação em poder dizer-vos que enfim apareceu a primeira brochura espírita na Rússia, impressa em São Petersburgo, com autorização da censura. É a minha resposta a um artigo que o arcipreste Sr. Debolsky inseriu no jornal Radougaf (O Arco-íris). Até agora nossa censura não permitia publicar artigos senão contra, mas nunca a favor Espiritismo. Pensei que a melhor refutação fosse a tradução de vossa brochura O Espiritismo em sua Expressão mais Simples, que fiz inserir naquele jornal.
Me permitis, senhor, que vos remeta as comunicações mais importantes que pudermos obter, sobretudo as que vierem em apoio à verdade e à sublimidade de nossa doutrina?
Tende a bondade de aceitar, etc.
General A. de B...
Eis a primeira carta:
Senhor,
Desde 23 de outubro último formou-se em nossa cidade um grupo espírita sob a proteção do apóstolo São Pedro. Considerando-vos, senhor, como nosso mestre em Espiritismo, julgo um dever, como presidente deste grupo, vos dar esta informação.
O objetivo principal que nos propomos é o alívio dos Espíritos sofredores, encarnados e desencarnados. Temos duas reuniões por semana. Procuramos atingir a unidade de pensamento, e para alcançá-la, cada um dos assistentes, durante toda a sessão, guarda o mais recolhido silêncio, e quando a pergunta aos Espíritos é lida em voz alta, cada um de nós mentalmente pede a seu anjo protetor a ajuda a fim de obter uma resposta verdadeira. Em nossas evocações, lidando o mais das vezes com Espíritos de ordem inferior, com Espíritos obsessores, e conhecendo, pela experiência, a eficácia da prece em comum, a ela quase sempre recorremos para esclarecer e aliviar esses infelizes. Nosso grupo possui muitos médiuns, mas ordinariamente só dois ou três escrevem em cada sessão. Temos, além disso, um médium auditivo e vidente, e um magnetizador. Prometem-nos um médium desenhista, mas, nunca o tendo visto, não posso apreciar sua faculdade. Nosso grupo já se compõe de quarenta membros.
Há várias outras reuniões espíritas em São Petersburgo, mas não possuem regulamentos. Nosso grupo é o primeiro regularmente organizado e esperamos que, com a ajuda de Deus, nosso exemplo seja seguido.
Tenho satisfação em poder dizer-vos que enfim apareceu a primeira brochura espírita na Rússia, impressa em São Petersburgo, com autorização da censura. É a minha resposta a um artigo que o arcipreste Sr. Debolsky inseriu no jornal Radougaf (O Arco-íris). Até agora nossa censura não permitia publicar artigos senão contra, mas nunca a favor Espiritismo. Pensei que a melhor refutação fosse a tradução de vossa brochura O Espiritismo em sua Expressão mais Simples, que fiz inserir naquele jornal.
Me permitis, senhor, que vos remeta as comunicações mais importantes que pudermos obter, sobretudo as que vierem em apoio à verdade e à sublimidade de nossa doutrina?
Tende a bondade de aceitar, etc.
General A. de B...
A atitude desse grupo, o objetivo todo de caridade a que se propõe, são as melhores provas que o Espiritismo ali é compreendido em sua verdadeira essência e encarado por seu lado mais sério e mais eminentemente prático. Nada, ali, de curiosidade, de pedidos fúteis, mas a aplicação da doutrina no que ela tem de mais elevado. Uma pessoa que assistiu a muitas dessas reuniões nos disse que as pessoas ficam edificadas com a seriedade, o recolhimento e o sentimento de verdadeira piedade que ali imperam.
A carta que segue não foi escrita para nós, mas para o presidente de um dos grupos espíritas de Tours. Transcrevemo-la literalmente, salvo a ortografia, que foi corrigida.
Caro senhor Rebondin e irmão em Deus,
Perdoai, caro senhor, se tomo a liberdade de vos escrever. Já há muito tempo tinha a intenção de fazê-lo, para vos agradecer a boa acolhida que me deste no ano passado, proporcionando-me o prazer de assistir duas vezes às vossas sessões. Sem dúvida não vos lembrais de mim, mas vou dizer-vos quem sou. Fui ver-vos com meu antigo patrão, Sr. T... Eu era seu pastor há onze anos. Hoje ele acaba de se casar e os parentes da esposa, percebendo que eu me ocupava de Espiritismo que, segundo eles, é um estudo diabólico, fizeram tanto que ele teve que nos despedir. Sofri muito com esta separação, caro senhor, mas quero seguir as máximas de nossa santa doutrina; meu dever é orar por todos os infelizes que ofendem o divino Mestre de todos.
Faço todos os meus esforços, desde que conheci a doutrina, para fazer adeptos. Se encontrei obstáculos, tive a satisfação de ter conduzido muitas pessoas ao conhecimento do Espiritismo, que explica todas as provações que sofremos nesta terra de amarguras e misérias. Oh! Como é doce ser espírita e praticar suas virtudes! Para mim é minha única felicidade. Vós, caro senhor, o mais devotado à santa causa, espero não me recusareis um lugar em vosso coração. Sou feliz por vos conhecer, acolhestes-me tão bem! Eis que duas vezes fui a Tours, com meus dois amigos que estudam o Espiritismo, com intenção de assistir às vossas sessões, mas soube que as sessões não mais se realizam aos domingos. Tende a bondade de me dizer se vos reunis sempre nesse dia e permitir que me reúna a vós, com os meus amigos, a fim de participarmos em nosso benefício espiritual. Dar-nos-eis uma felicidade muito grande. Conto com a vossa amizade e continuo esperando o dia em que terei a felicidade de estarmos reunidos para praticarmos o amor e a caridade.
Vosso amigo que vos ama, saúda fraternalmente,
PIERRE HOUDÉE, Pastor.
A carta que segue não foi escrita para nós, mas para o presidente de um dos grupos espíritas de Tours. Transcrevemo-la literalmente, salvo a ortografia, que foi corrigida.
Caro senhor Rebondin e irmão em Deus,
Perdoai, caro senhor, se tomo a liberdade de vos escrever. Já há muito tempo tinha a intenção de fazê-lo, para vos agradecer a boa acolhida que me deste no ano passado, proporcionando-me o prazer de assistir duas vezes às vossas sessões. Sem dúvida não vos lembrais de mim, mas vou dizer-vos quem sou. Fui ver-vos com meu antigo patrão, Sr. T... Eu era seu pastor há onze anos. Hoje ele acaba de se casar e os parentes da esposa, percebendo que eu me ocupava de Espiritismo que, segundo eles, é um estudo diabólico, fizeram tanto que ele teve que nos despedir. Sofri muito com esta separação, caro senhor, mas quero seguir as máximas de nossa santa doutrina; meu dever é orar por todos os infelizes que ofendem o divino Mestre de todos.
Faço todos os meus esforços, desde que conheci a doutrina, para fazer adeptos. Se encontrei obstáculos, tive a satisfação de ter conduzido muitas pessoas ao conhecimento do Espiritismo, que explica todas as provações que sofremos nesta terra de amarguras e misérias. Oh! Como é doce ser espírita e praticar suas virtudes! Para mim é minha única felicidade. Vós, caro senhor, o mais devotado à santa causa, espero não me recusareis um lugar em vosso coração. Sou feliz por vos conhecer, acolhestes-me tão bem! Eis que duas vezes fui a Tours, com meus dois amigos que estudam o Espiritismo, com intenção de assistir às vossas sessões, mas soube que as sessões não mais se realizam aos domingos. Tende a bondade de me dizer se vos reunis sempre nesse dia e permitir que me reúna a vós, com os meus amigos, a fim de participarmos em nosso benefício espiritual. Dar-nos-eis uma felicidade muito grande. Conto com a vossa amizade e continuo esperando o dia em que terei a felicidade de estarmos reunidos para praticarmos o amor e a caridade.
Vosso amigo que vos ama, saúda fraternalmente,
PIERRE HOUDÉE, Pastor.
Vê-se que não é preciso um diploma para compreender a doutrina. É que, malgrado seu alto alcance, ela é tão clara e tão lógica que chega sem esforço a todas inteligências, condição sem a qual nenhuma ideia pode popularizar-se. Ela toca o coração: eis o seu maior segredo, e há um coração no peito do operário, como no do grão-senhor. O grande, como o pequeno, tem suas dores, suas amarguras, suas feridas morais, para as quais pede bálsamo e consolações que, um e outro, encontram na certeza do futuro, porque um e outro são iguais perante a dor e diante da morte, que tanto ferem o rico quanto o pobre. Duvidamos muito que se chegue a dar à doutrina do demônio e das chamas eternas atrativos suficientes para suplantála. Esse mesmo pastor fazia muitas vezes, após o seu dia de trabalho, duas léguas para ir a Tours assistir a uma reunião espírita, e outras duas para voltar. Quando falamos do alto alcance da doutrina e das consolações que ela proporciona, falamos uma linguagem incompreendida para os que julgam que o Espiritismo está inteiramente nas mesas girantes, ou num fenômeno mais ou menos autêntico que reúne curiosos, mas que é perfeitamente entendido por quem quer que não se tenha detido na superfície e não se tenha deixado envolver por boatos, cujo número é grande.
Os espíritos na Espanha
Cura de uma obsesada em Barcelona
Sob este primeiro título publicamos, em setembro de 1864, um artigo no qual estava provado, por fatos autênticos, que para os Espíritos não havia Pireneus, e que eles até se riam dos autos-de-fé. A carta do Sr. Delanne, publicada em nosso último número, é uma nova prova disso. Aí se menciona sumariamente a cura de uma obsessão, devida ao zelo e à perseverança de alguns espíritas sinceros e devotados de Barcelona. Enviam-nos o relato detalhado dessa cura, que consideramos nosso dever publicar, bem como a carta que a acompanhou.
Senhor e caro mestre,
Tivemos a vantagem de ter entre nós o nosso caro irmão em crença Sr. Delanne e lhe demos notícia de nossos fracos trabalhos, bem como de nossos esforços para proporcionar alívio a alguns pobres pacientes que Deus pôs em nossas mãos. Entre estes estava uma mulher que, durante quinze anos, foi presa de uma obsessão das mais cruéis, e que Deus nos permitiu curar. Nossa intenção, certamente, não era mencioná-la, porque trabalhamos em silêncio, sem nos querermos atribuir qualquer mérito. Entretanto, o Sr. Delanne nos disse que o relato dessa cura serviria, sem dúvida, de encorajamento a outros crentes que, como nós, se dedicam a essa obra de caridade, então não hesitamos em vo-lo dirigir. Bendizemos a mão do Senhor, que nos permite saborear o fruto de nossos trabalhos e deles nos dá a recompensa ainda aqui na Terra.
Durante a Semana Santa foram pregados vários sermões contra o Espiritismo, dos quais um se destacava pelos absurdos. O pregador perguntava aos fiéis se eles ficariam satisfeitos em saber que as almas de seus parentes renasciam em corpos de um boi, de um jumento, de um porco, ou de outro animal qualquer. Eis, diz ele, o Espiritismo, meus caros irmãos; ele é perfeito para o espírito leviano dos franceses, mas não para vós, espanhóis, muito sérios para admiti-lo e nele acreditar.
Aceitai,
J. M. F.
Senhor e caro mestre,
Tivemos a vantagem de ter entre nós o nosso caro irmão em crença Sr. Delanne e lhe demos notícia de nossos fracos trabalhos, bem como de nossos esforços para proporcionar alívio a alguns pobres pacientes que Deus pôs em nossas mãos. Entre estes estava uma mulher que, durante quinze anos, foi presa de uma obsessão das mais cruéis, e que Deus nos permitiu curar. Nossa intenção, certamente, não era mencioná-la, porque trabalhamos em silêncio, sem nos querermos atribuir qualquer mérito. Entretanto, o Sr. Delanne nos disse que o relato dessa cura serviria, sem dúvida, de encorajamento a outros crentes que, como nós, se dedicam a essa obra de caridade, então não hesitamos em vo-lo dirigir. Bendizemos a mão do Senhor, que nos permite saborear o fruto de nossos trabalhos e deles nos dá a recompensa ainda aqui na Terra.
Durante a Semana Santa foram pregados vários sermões contra o Espiritismo, dos quais um se destacava pelos absurdos. O pregador perguntava aos fiéis se eles ficariam satisfeitos em saber que as almas de seus parentes renasciam em corpos de um boi, de um jumento, de um porco, ou de outro animal qualquer. Eis, diz ele, o Espiritismo, meus caros irmãos; ele é perfeito para o espírito leviano dos franceses, mas não para vós, espanhóis, muito sérios para admiti-lo e nele acreditar.
Aceitai,
J. M. F.
Rose N..., casada em 1850, poucos dias após o casamento foi atingida por ataques espasmódicos, que se repetiam muitas vezes e com violência, até engravidar. Durante a gravidez nada experimentou, mas após o parto os mesmos acidentes se repetiram. Por vezes as crises duravam três ou quatro horas, durante as quais ela fazia toda sorte de extravagâncias e eram necessárias três ou quatro pessoas para dominá-la. Entre os médicos chamados, uns diziam que era uma doença nervosa; outros loucura. O mesmo fenômeno se repetiu em cada gravidez, isto é, os acidentes cessavam durante a gestação e recomeçavam após o parto.
Isto durava vários anos. O pobre marido estava cansado de consultar a uns e outros e aplicar remédios que não davam o menor resultado. Essa brava gente estava no limite da paciência e dos recursos, pois a mulher ficava, por vezes, meses inteiros sem poder dedicar-se aos trabalhos domésticos. Por vezes sentia uma melhora, que permitia supor uma cura, mas após algumas semanas de trégua, o mal reaparecia com uma terrível recrudescência.
Algumas pessoas tendo-os convencido que um mal tão rebelde devia ser obra do demônio, recorreram aos exorcismos, e a paciente foi a um santuário distante vinte léguas, de onde voltou aparentemente tranquila. Mas, ao cabo de alguns dias, o mal voltou com nova intensidade. Ela partiu para outra ermida, onde ficou quatro meses, durante os quais ficou tão tranquila que julgaram-na curada. Voltou, então, à sua família, contente por vê-la enfim livre de sua cruel doença. Entretanto, após algumas semanas, suas esperanças se desvaneceram novamente. Os acessos voltaram com mais força do que nunca. Marido e mulher estavam desesperados.
Foi em julho último,1864, que um de nossos amigos e irmão em crença nos deu conhecimento desse fato, propondo-nos tentar aliviar, senão curar essa pobre perseguida, pois ele julgava que se tratasse de uma obsessão das mais cruéis. A doente estava sendo submetida a um tratamento magnético que lhe havia proporcionado um certo alívio, mas o magnetizador, embora espírita, não tinha meios de evocar o obsessor, por falta de médiuns, e não podia, a despeito de sua boa vontade, produzir o efeito desejado. Aceitamos com interesse essa ocasião de fazer uma boa obra. Reunimos vários adeptos sinceros e mandamos trazer a doente.
Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da moléstia de Rosa. Era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muito trabalho para fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, respondeu com algumas palavras sem nexo e logo atirou-se furiosamente sobre sua vítima, na qual provocou uma violenta crise, logo acalmada pelo magnetizador.
Na segunda sessão, poucos dias depois, pudemos reter por mais tempo o Espírito obsessor, que, entretanto, se mostrou constantemente rebelde e cruel para com sua vítima.
A terceira evocação foi mais feliz: O obsessor conversou familiarmente conosco. Fizemo-lo compreender todo o mal que ele fazia perseguindo essa infeliz mulher, mas ele não queria confessar seus erros, e dizia que a obrigava a pagar uma velha dívida.
Na quarta evocação ele orou conosco e se lamentou por ter sido trazido a nós contra sua vontade. Ele queria muito vir, mas por sua própria vontade. Foi o que fez na sessão seguinte. Pouco a pouco, a cada nova evocação, conseguíamos maior ascendente sobre ele e acabamos por fazê-lo renunciar ao mal que desde a quarta sessão vinha sempre diminuindo, e tivemos a satisfação de ver cessarem as crises na nona sessão. A cada vez, uma magnetização de 12 a 15 minutos acalmava totalmente Rose e a deixava perfeitamente tranquila.
Desde o mês de agosto, já lá vão nove meses, a doente não teve mais crises, e suas ocupações não foram interrompidas. Apenas de tempos em tempos ela sofreu ligeiros abalos, em consequência de alguma contrariedade que não podia dominar, mas eram como relâmpagos sem tempestade, para lhe demonstrar, na prática, que ela não devia esquecer os bons hábitos que tinha contraído para com Deus e os seus semelhantes. É preciso dizer também que ela contribuiu poderosamente para a cura pela sua fé, seu fervor, sua confiança no Criador, e reprimindo seu caráter naturalmente impulsivo. Tudo isto contribuiu para que o obsessor adquirisse força sobre si mesmo, pois ele não a tinha bastante para se empenhar resolutamente no bom caminho; ele temia as provações que teria de sofrer para merecer o perdão. Mas, graças a Deus, e com o poderoso auxílio dos bons guias, hoje ele está no bom caminho e faz tudo o que pode para ser perdoado. É ele que hoje dá conselhos muito bons àquela a quem perseguiu por tanto tempo e que é agora robusta e alegre, como se jamais tivesse sofrido. Contudo, de oito em oito dias ela vem submeter-se a uma magnetização, e, de tempos em tempos, evocamos seu antigo perseguidor, para fortalecê-lo nas boas resoluções. Eis sua última comunicação, de 19 de abril de 1865:
Eis-me aqui. Venho agradecer-vos a boa perseverança para comigo. Sem vós, sem esses bons e benévolos Espíritos que estão presentes, eu jamais teria conhecido a felicidade que sinto agora; ainda me arrastaria no mal, na miséria. Oh! sim, miséria, porque não se pode ser mais infeliz do que eu era; sempre fazer o mal e sempre desejar fazê-lo! Ah! Quantas vezes eu vos disse que não sofria! Só agora eu vejo quanto sofria. Neste instante mesmo, ainda sofro as consequências desses sofrimentos, mas não como outrora; hoje é o arrependimento e não a incessante necessidade de fazer o mal. Oh, não! Que o Deus de bondade dele me preserve, e que eu seja fortalecido para não mais recair na desgraça. Oh! Não mais essas torturas, não mais esses males causticantes que não deixam à alma nenhum momento de repouso. Isto é que é o inferno, e ele está com aquele que faz o mal, como eu fazia.
Fiz o mal por ressentimento, por vingança, por ambição! Que me restou disto? Ai! Repelido pelos bons Espíritos, não podia compreendê-los quando se aproximavam de mim e escutava as suas vozes, porque não me era permitido vê-los. Não! Hoje Deus mo permitiu, e é por isto que sinto um bem-estar que jamais experimentei, porque, mesmo que eu sofra muito, entrevejo o futuro e suporto meus sofrimentos com paciência e resignação, pedindo perdão a Deus e assistência dos bons Espíritos para aquela a quem persegui por tanto tempo. Que ela me perdoe. Dia virá, talvez breve, em que lhe poderei ser útil.
Termino agradecendo-vos e vos pedindo que persistais em vossas preces por mim e na boa amizade que me testemunhastes e me perdoeis o trabalho que vos dei. Oh! Obrigado! Obrigado! Não podeis saber quanto o meu Espírito é reconhecido pelo bem que me fizestes. Rogai a Deus para que ele me perdoe, e aos bons Espíritos para que estejam comigo, a fim de me ajudarem e me fortalecerem.
Adeus.
PEDRO Depois desta comunicação, recebemos a seguinte dos nossos guias espirituais:
Isto durava vários anos. O pobre marido estava cansado de consultar a uns e outros e aplicar remédios que não davam o menor resultado. Essa brava gente estava no limite da paciência e dos recursos, pois a mulher ficava, por vezes, meses inteiros sem poder dedicar-se aos trabalhos domésticos. Por vezes sentia uma melhora, que permitia supor uma cura, mas após algumas semanas de trégua, o mal reaparecia com uma terrível recrudescência.
Algumas pessoas tendo-os convencido que um mal tão rebelde devia ser obra do demônio, recorreram aos exorcismos, e a paciente foi a um santuário distante vinte léguas, de onde voltou aparentemente tranquila. Mas, ao cabo de alguns dias, o mal voltou com nova intensidade. Ela partiu para outra ermida, onde ficou quatro meses, durante os quais ficou tão tranquila que julgaram-na curada. Voltou, então, à sua família, contente por vê-la enfim livre de sua cruel doença. Entretanto, após algumas semanas, suas esperanças se desvaneceram novamente. Os acessos voltaram com mais força do que nunca. Marido e mulher estavam desesperados.
Foi em julho último,1864, que um de nossos amigos e irmão em crença nos deu conhecimento desse fato, propondo-nos tentar aliviar, senão curar essa pobre perseguida, pois ele julgava que se tratasse de uma obsessão das mais cruéis. A doente estava sendo submetida a um tratamento magnético que lhe havia proporcionado um certo alívio, mas o magnetizador, embora espírita, não tinha meios de evocar o obsessor, por falta de médiuns, e não podia, a despeito de sua boa vontade, produzir o efeito desejado. Aceitamos com interesse essa ocasião de fazer uma boa obra. Reunimos vários adeptos sinceros e mandamos trazer a doente.
Alguns minutos bastaram para reconhecer a causa da moléstia de Rosa. Era, com efeito, uma obsessão das mais terríveis. Tivemos muito trabalho para fazer o obsessor vir ao nosso chamado. Ele foi muito violento, respondeu com algumas palavras sem nexo e logo atirou-se furiosamente sobre sua vítima, na qual provocou uma violenta crise, logo acalmada pelo magnetizador.
Na segunda sessão, poucos dias depois, pudemos reter por mais tempo o Espírito obsessor, que, entretanto, se mostrou constantemente rebelde e cruel para com sua vítima.
A terceira evocação foi mais feliz: O obsessor conversou familiarmente conosco. Fizemo-lo compreender todo o mal que ele fazia perseguindo essa infeliz mulher, mas ele não queria confessar seus erros, e dizia que a obrigava a pagar uma velha dívida.
Na quarta evocação ele orou conosco e se lamentou por ter sido trazido a nós contra sua vontade. Ele queria muito vir, mas por sua própria vontade. Foi o que fez na sessão seguinte. Pouco a pouco, a cada nova evocação, conseguíamos maior ascendente sobre ele e acabamos por fazê-lo renunciar ao mal que desde a quarta sessão vinha sempre diminuindo, e tivemos a satisfação de ver cessarem as crises na nona sessão. A cada vez, uma magnetização de 12 a 15 minutos acalmava totalmente Rose e a deixava perfeitamente tranquila.
Desde o mês de agosto, já lá vão nove meses, a doente não teve mais crises, e suas ocupações não foram interrompidas. Apenas de tempos em tempos ela sofreu ligeiros abalos, em consequência de alguma contrariedade que não podia dominar, mas eram como relâmpagos sem tempestade, para lhe demonstrar, na prática, que ela não devia esquecer os bons hábitos que tinha contraído para com Deus e os seus semelhantes. É preciso dizer também que ela contribuiu poderosamente para a cura pela sua fé, seu fervor, sua confiança no Criador, e reprimindo seu caráter naturalmente impulsivo. Tudo isto contribuiu para que o obsessor adquirisse força sobre si mesmo, pois ele não a tinha bastante para se empenhar resolutamente no bom caminho; ele temia as provações que teria de sofrer para merecer o perdão. Mas, graças a Deus, e com o poderoso auxílio dos bons guias, hoje ele está no bom caminho e faz tudo o que pode para ser perdoado. É ele que hoje dá conselhos muito bons àquela a quem perseguiu por tanto tempo e que é agora robusta e alegre, como se jamais tivesse sofrido. Contudo, de oito em oito dias ela vem submeter-se a uma magnetização, e, de tempos em tempos, evocamos seu antigo perseguidor, para fortalecê-lo nas boas resoluções. Eis sua última comunicação, de 19 de abril de 1865:
Eis-me aqui. Venho agradecer-vos a boa perseverança para comigo. Sem vós, sem esses bons e benévolos Espíritos que estão presentes, eu jamais teria conhecido a felicidade que sinto agora; ainda me arrastaria no mal, na miséria. Oh! sim, miséria, porque não se pode ser mais infeliz do que eu era; sempre fazer o mal e sempre desejar fazê-lo! Ah! Quantas vezes eu vos disse que não sofria! Só agora eu vejo quanto sofria. Neste instante mesmo, ainda sofro as consequências desses sofrimentos, mas não como outrora; hoje é o arrependimento e não a incessante necessidade de fazer o mal. Oh, não! Que o Deus de bondade dele me preserve, e que eu seja fortalecido para não mais recair na desgraça. Oh! Não mais essas torturas, não mais esses males causticantes que não deixam à alma nenhum momento de repouso. Isto é que é o inferno, e ele está com aquele que faz o mal, como eu fazia.
Fiz o mal por ressentimento, por vingança, por ambição! Que me restou disto? Ai! Repelido pelos bons Espíritos, não podia compreendê-los quando se aproximavam de mim e escutava as suas vozes, porque não me era permitido vê-los. Não! Hoje Deus mo permitiu, e é por isto que sinto um bem-estar que jamais experimentei, porque, mesmo que eu sofra muito, entrevejo o futuro e suporto meus sofrimentos com paciência e resignação, pedindo perdão a Deus e assistência dos bons Espíritos para aquela a quem persegui por tanto tempo. Que ela me perdoe. Dia virá, talvez breve, em que lhe poderei ser útil.
Termino agradecendo-vos e vos pedindo que persistais em vossas preces por mim e na boa amizade que me testemunhastes e me perdoeis o trabalho que vos dei. Oh! Obrigado! Obrigado! Não podeis saber quanto o meu Espírito é reconhecido pelo bem que me fizestes. Rogai a Deus para que ele me perdoe, e aos bons Espíritos para que estejam comigo, a fim de me ajudarem e me fortalecerem.
Adeus.
PEDRO Depois desta comunicação, recebemos a seguinte dos nossos guias espirituais:
A cura chega ao fim. Agradecei a Deus que se dignou ouvir vossas preces e se servir de vós para que um inimigo encarniçado se tivesse tornado hoje um amigo, porque, tende certeza, esse Espírito um dia fará tudo o que for possível pela pobre família que ele atormentou por tanto tempo. Mas vós, caros filhos, não abandoneis o perseguidor nem a perseguida. Ambos ainda necessitam de vossa assistência, um para sustentá-lo no bom caminho que ele tomou, pois evocando-o algumas vezes aumentareis a sua coragem; a outra, para dissipar totalmente o fluido malsão que a envolveu por tanto tempo; fazei-lhe, de tempos em tempos, uma abundante magnetização, sem o que ela ainda se acharia exposta à influência de outros Espíritos malévolos, pois sabeis que estes não faltam, e vós o lamentaríeis por isso. Coragem, pois! Acabai, completai vossa obra e preparai-vos para as que ainda vos estão reservadas. Sede firmes! Vossa tarefa é espinhosa, é verdade, mas também, se não vos dobrardes, quão grande será vossa recompensa por isso!
VOSSOS GUIAS Não basta relatar fatos mais ou menos interessantes. O essencial é deles tirar uma instrução, sem o que eles não têm proveito. É pelos fatos que o Espiritismo se constituiu em ciência e em doutrina; mas se nos tivéssemos limitado a constatá-los e registrá-los, não estaríamos mais adiantados que no primeiro dia. Em Espiritismo, como em toda ciência, sempre há o que aprender; ora, é pelo estudo, pela observação e pela dedução dos fatos que se aprende. É por isso que, quando é o caso, fazemos seguir os fatos que citamos das reflexões que eles nos sugerem, quer venham confirmar um princípio conhecido, quer sirvam de elemento a um princípio novo. Em nossa opinião, é o meio de captar a atenção das criaturas sérias.
Uma primeira observação a fazer sobre a carta acima referida é que, a exemplo dos que compreendem a doutrina em sua pureza, seus adeptos fazem abstração de todo amor-próprio; não fazem exibição e não procuram brilhar; fazem o bem sem ostentação e sem vangloriar-se das curas que conseguem, porque sabem que não as devem nem ao seu talento nem ao seu mérito pessoal, e que Deus lhes pode retirar esse favor quando lhe aprouver; não é uma reputação nem uma clientela que buscam. Eles acham sua recompensa na satisfação de ter aliviado um aflito e não no vão sufrágio dos homens. É o meio de conciliar o apoio dos bons Espíritos que abandonam o orgulho com os Espíritos orgulhosos.
Os casos de cura como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida são um encorajamento; são, também, excelentes lições práticas que mostram a que resultados se pode chegar pela fé, pela perseverança e por uma sábia e inteligente direção. Contudo, o que não deixa de ser um bom ensinamento é o exemplo da modéstia, da humildade e do completo desinteresse moral e material. É nos centros animados por tais sentimentos que se obtêm esses maravilhosos resultados, porque aí se é verdadeiramente forte contra os maus Espíritos. Não é menos notável que desde que o orgulho aí penetre, desde que o bem não seja feito exclusivamente pelo bem e que aí se busque a satisfação do amorpróprio, a força declina.
Notemos igualmente que é nos centros realmente sérios que se faz a maior parte dos adeptos sinceros, porque os assistentes são tocados pela boa impressão que recebem, ao passo que nos centros levianos e frívolos, só se é atraído pela curiosidade, que nem sempre é satisfeita. É compreender o verdadeiro objetivo da doutrina empregá-la em fazer o bem aos desencarnados, bem como aos encarnados. É pouco recreativo para certas pessoas, temos que convir, mas é mais meritório para os que a isso se devotam. Assim, temos a satisfação de ver multiplicarem-se os centros que se dedicam a esses úteis trabalhos. Aí que as pessoas se instruem prestando serviço, e os assuntos de estudo não faltam. São esses os mais sólidos sustentáculos da doutrina.
Não é um fato muito característico ver nas duas extremidades da Europa, no norte da Rússia e no sul da Espanha, reuniões espíritas animadas pelo mesmo pensamento de fazer o bem, que agem sob o impulso dos sentimentos e da caridade para com os seus irmãos? Não é o indício da irresistível moral da doutrina, que vence todos os obstáculos e não conhece barreiras?
Em verdade, é preciso ser muito desprovido de boas razões para combatê-la, quando se está reduzido aos tristes expedientes empregados pelo pregador de Barcelona, acima citado; seria perder tempo refutá-los; só há que lamentar aqueles que se deixam levar por semelhantes aberrações que provam a mais cega ignorância ou a mais insigne má-fé. Mas disso não deixa de resultar uma importante instrução. Suponhamos que a senhora Rose tivesse acreditado nas afirmativas do pregador e tivesse repelido o Espiritismo. O que teria acontecido? Ela não teria sido curada; teria caído na miséria, por não poder trabalhar; ela e o marido talvez tivessem amaldiçoado Deus, ao passo que agora o bendizem, e o Espírito mau não se teria convertido ao bem. Do ponto de vista teológico, são três almas salvas pelo Espiritismo, que o pregador teria deixado que se perdessem.
Vendo os primeiros sintomas do mal, compreende-se que a Ciência tenha podido enganar-se, porque eles tinham todos os caracteres de um caso patológico. Contudo, não era nada disso. Só o Espiritismo podia descobrir-lhe a verdadeira causa, e a prova é que a Ciência, com seus remédios, foi impotente durante longos anos, ao passo que em alguns dias o Espiritismo triunfou sem medicamentos, apenas pela moralização do ser perverso que era o seu autor.
O fato aí está, ao lado de milhares de fatos semelhantes. A isso, o que dizem os incrédulos? É o acaso, a força da Natureza; a doente devia curar-se. E certos sacerdotes? Dizemos certos sacerdotes intencionalmente, porque nem todos pensam do mesmo modo: Essa mulher foi curada pelo demônio, e teria sido melhor para a salvação de sua alma que tivesse ficado doente. A senhora Rose não é dessa opinião. Como ela agradece por isso a Deus e não ao demônio, ora e faz boas obras, absolutamente não julga comprometida a sua salvação. Em segundo lugar, ela prefere ter sido curada e trabalhar para alimentar os filhos do que vê-los morrer de fome. Em nossa opinião, Deus é a fonte de todo bem.
Mas se o diabo é o verdadeiro ator em todos os casos de obsessão, de onde vem a impotência dos exorcismos? É um fato positivo que não só o exorcismo sempre falhou em semelhantes casos, mas que as cerimônias desse gênero sempre foram seguidas de recrudescência no mal. Morzine ofereceu memoráveis exemplos disso. O diabo é, pois, mais poderoso do que Deus, pois resiste aos seus ministros, àqueles que lhe opõem coisas santas? Entretanto os espíritas, a quem invocam? A quem solicitam apoio? A Deus. Por que, com a mesma assistência, eles triunfam, ao passo que os outros falham? Eis a razão:
Para começar, a volta do obsessor ao bem e, em consequência, a cura do doente, o que é um fato material, provam que não se trata do demônio, mas de um mau Espírito susceptível de se melhorar. Em segundo lugar, no exorcismo, não lhe opõem senão palavras e sinais materiais, em virtude dos quais se tem fé, mas que o Espírito não leva em consideração. Irritam-no, ameaçam-no, maldizem-no, votandoo às chamas eternas; querem dominá-lo pela força e, como ele é inatingível, ri-se e vos escapa e quer provar-vos que é mais forte que vós. Pelo Espiritismo lhe falamos com doçura; procuramos nele fazer vibrar a corda do sentimento; mostramos-lhe a misericórdia de Deus; fazemos-lhe entrever a esperança e muito docemente o conduzimos ao bem. Eis todo o segredo.
O fato acima apresenta um caso particular, o da suspensão das crises durante a gravidez. De onde vem isto? Que a Ciência o explique, se puder. Eis a razão dada pelo Espiritismo:
A doença não era loucura nem uma afecção nervosa. A cura é a prova disso. Era sem dúvida uma obsessão. O Espírito obsessor exercia uma vingança. Deus o permitia para servir de provação e de expiação à mãe e, além disso, porque, mais tarde, a sua cura devia levar ao melhoramento do Espírito. Mas as crises durante a gestação poderiam prejudicar a criança. Deus efetivamente queria que a mãe fosse castigada pelo mal que tinha praticado, mas não queria que o ser inocente que ela carregava sofresse por isso. É por esta razão que aos perseguidores foi tirada toda a liberdade de ação durante esse tempo.
Quantas coisas o Espiritismo explica para quem queira estudar e observar! Que horizontes abrirá à Ciência, quando esta levar em conta o elemento espiritual! Como estão longe de compreendê-lo aqueles que só o veem nas manifestações curiosas!
VOSSOS GUIAS Não basta relatar fatos mais ou menos interessantes. O essencial é deles tirar uma instrução, sem o que eles não têm proveito. É pelos fatos que o Espiritismo se constituiu em ciência e em doutrina; mas se nos tivéssemos limitado a constatá-los e registrá-los, não estaríamos mais adiantados que no primeiro dia. Em Espiritismo, como em toda ciência, sempre há o que aprender; ora, é pelo estudo, pela observação e pela dedução dos fatos que se aprende. É por isso que, quando é o caso, fazemos seguir os fatos que citamos das reflexões que eles nos sugerem, quer venham confirmar um princípio conhecido, quer sirvam de elemento a um princípio novo. Em nossa opinião, é o meio de captar a atenção das criaturas sérias.
Uma primeira observação a fazer sobre a carta acima referida é que, a exemplo dos que compreendem a doutrina em sua pureza, seus adeptos fazem abstração de todo amor-próprio; não fazem exibição e não procuram brilhar; fazem o bem sem ostentação e sem vangloriar-se das curas que conseguem, porque sabem que não as devem nem ao seu talento nem ao seu mérito pessoal, e que Deus lhes pode retirar esse favor quando lhe aprouver; não é uma reputação nem uma clientela que buscam. Eles acham sua recompensa na satisfação de ter aliviado um aflito e não no vão sufrágio dos homens. É o meio de conciliar o apoio dos bons Espíritos que abandonam o orgulho com os Espíritos orgulhosos.
Os casos de cura como este, como os de Marmande e outros não menos meritórios, sem dúvida são um encorajamento; são, também, excelentes lições práticas que mostram a que resultados se pode chegar pela fé, pela perseverança e por uma sábia e inteligente direção. Contudo, o que não deixa de ser um bom ensinamento é o exemplo da modéstia, da humildade e do completo desinteresse moral e material. É nos centros animados por tais sentimentos que se obtêm esses maravilhosos resultados, porque aí se é verdadeiramente forte contra os maus Espíritos. Não é menos notável que desde que o orgulho aí penetre, desde que o bem não seja feito exclusivamente pelo bem e que aí se busque a satisfação do amorpróprio, a força declina.
Notemos igualmente que é nos centros realmente sérios que se faz a maior parte dos adeptos sinceros, porque os assistentes são tocados pela boa impressão que recebem, ao passo que nos centros levianos e frívolos, só se é atraído pela curiosidade, que nem sempre é satisfeita. É compreender o verdadeiro objetivo da doutrina empregá-la em fazer o bem aos desencarnados, bem como aos encarnados. É pouco recreativo para certas pessoas, temos que convir, mas é mais meritório para os que a isso se devotam. Assim, temos a satisfação de ver multiplicarem-se os centros que se dedicam a esses úteis trabalhos. Aí que as pessoas se instruem prestando serviço, e os assuntos de estudo não faltam. São esses os mais sólidos sustentáculos da doutrina.
Não é um fato muito característico ver nas duas extremidades da Europa, no norte da Rússia e no sul da Espanha, reuniões espíritas animadas pelo mesmo pensamento de fazer o bem, que agem sob o impulso dos sentimentos e da caridade para com os seus irmãos? Não é o indício da irresistível moral da doutrina, que vence todos os obstáculos e não conhece barreiras?
Em verdade, é preciso ser muito desprovido de boas razões para combatê-la, quando se está reduzido aos tristes expedientes empregados pelo pregador de Barcelona, acima citado; seria perder tempo refutá-los; só há que lamentar aqueles que se deixam levar por semelhantes aberrações que provam a mais cega ignorância ou a mais insigne má-fé. Mas disso não deixa de resultar uma importante instrução. Suponhamos que a senhora Rose tivesse acreditado nas afirmativas do pregador e tivesse repelido o Espiritismo. O que teria acontecido? Ela não teria sido curada; teria caído na miséria, por não poder trabalhar; ela e o marido talvez tivessem amaldiçoado Deus, ao passo que agora o bendizem, e o Espírito mau não se teria convertido ao bem. Do ponto de vista teológico, são três almas salvas pelo Espiritismo, que o pregador teria deixado que se perdessem.
Vendo os primeiros sintomas do mal, compreende-se que a Ciência tenha podido enganar-se, porque eles tinham todos os caracteres de um caso patológico. Contudo, não era nada disso. Só o Espiritismo podia descobrir-lhe a verdadeira causa, e a prova é que a Ciência, com seus remédios, foi impotente durante longos anos, ao passo que em alguns dias o Espiritismo triunfou sem medicamentos, apenas pela moralização do ser perverso que era o seu autor.
O fato aí está, ao lado de milhares de fatos semelhantes. A isso, o que dizem os incrédulos? É o acaso, a força da Natureza; a doente devia curar-se. E certos sacerdotes? Dizemos certos sacerdotes intencionalmente, porque nem todos pensam do mesmo modo: Essa mulher foi curada pelo demônio, e teria sido melhor para a salvação de sua alma que tivesse ficado doente. A senhora Rose não é dessa opinião. Como ela agradece por isso a Deus e não ao demônio, ora e faz boas obras, absolutamente não julga comprometida a sua salvação. Em segundo lugar, ela prefere ter sido curada e trabalhar para alimentar os filhos do que vê-los morrer de fome. Em nossa opinião, Deus é a fonte de todo bem.
Mas se o diabo é o verdadeiro ator em todos os casos de obsessão, de onde vem a impotência dos exorcismos? É um fato positivo que não só o exorcismo sempre falhou em semelhantes casos, mas que as cerimônias desse gênero sempre foram seguidas de recrudescência no mal. Morzine ofereceu memoráveis exemplos disso. O diabo é, pois, mais poderoso do que Deus, pois resiste aos seus ministros, àqueles que lhe opõem coisas santas? Entretanto os espíritas, a quem invocam? A quem solicitam apoio? A Deus. Por que, com a mesma assistência, eles triunfam, ao passo que os outros falham? Eis a razão:
Para começar, a volta do obsessor ao bem e, em consequência, a cura do doente, o que é um fato material, provam que não se trata do demônio, mas de um mau Espírito susceptível de se melhorar. Em segundo lugar, no exorcismo, não lhe opõem senão palavras e sinais materiais, em virtude dos quais se tem fé, mas que o Espírito não leva em consideração. Irritam-no, ameaçam-no, maldizem-no, votandoo às chamas eternas; querem dominá-lo pela força e, como ele é inatingível, ri-se e vos escapa e quer provar-vos que é mais forte que vós. Pelo Espiritismo lhe falamos com doçura; procuramos nele fazer vibrar a corda do sentimento; mostramos-lhe a misericórdia de Deus; fazemos-lhe entrever a esperança e muito docemente o conduzimos ao bem. Eis todo o segredo.
O fato acima apresenta um caso particular, o da suspensão das crises durante a gravidez. De onde vem isto? Que a Ciência o explique, se puder. Eis a razão dada pelo Espiritismo:
A doença não era loucura nem uma afecção nervosa. A cura é a prova disso. Era sem dúvida uma obsessão. O Espírito obsessor exercia uma vingança. Deus o permitia para servir de provação e de expiação à mãe e, além disso, porque, mais tarde, a sua cura devia levar ao melhoramento do Espírito. Mas as crises durante a gestação poderiam prejudicar a criança. Deus efetivamente queria que a mãe fosse castigada pelo mal que tinha praticado, mas não queria que o ser inocente que ela carregava sofresse por isso. É por esta razão que aos perseguidores foi tirada toda a liberdade de ação durante esse tempo.
Quantas coisas o Espiritismo explica para quem queira estudar e observar! Que horizontes abrirá à Ciência, quando esta levar em conta o elemento espiritual! Como estão longe de compreendê-lo aqueles que só o veem nas manifestações curiosas!
Os dois espiões
Um dos nossos correspondentes de São Petersburgo nos envia a tradução de um artigo publicado contra o Espiritismo, num jornal religioso daquela cidade: Doukhownaïa Beceda (Práticas religiosas).
É um relato feito por dois jovens de Moscou, os senhores XX..., que se apresentaram a nós em novembro último, sob a aparência de gente da melhor sociedade, dizendo-se muito simpáticos ao Espiritismo e que foram recebidos com as atenções devidas à sua qualidade de estrangeiros.
Nada, absolutamente, em suas palavras e maneiras, traía a intenção que os movia. Era preciso que assim fosse para representarem seu papel e realizarem a missão de que estavam encarregados.
Certamente nossos adversários da França nos habituaram a relatos que não primam pela exatidão, em matéria de Espiritismo, mas, justiça seja feita, nenhum deles, que saibamos, levou tão longe a calúnia. Isto teria sido difícil num jornal francês, pois a lei protege contra tais abusos, mas também porque muitas testemunhas oculares viriam constatar a verdade. Mas, a seiscentas léguas, num país estrangeiro e numa língua aqui desconhecida, a coisa era mais fácil.
Devemos aos numerosos adeptos da Rússia uma refutação desse ignóbil panfleto, cujos autores são tanto mais repreensíveis quanto abusaram da confiança que tinham buscado inspirar. Introduzindo-se sob falsas aparências, como emissários de um partido, numa casa particular e numa reunião privada que jamais é aberta ao público e onde só se é admitido mediante recomendação, para dar publicidade a um relatório desfigurado e ultrajante, colocam-se abaixo dos espiões, porque os espiões ao menos dão exata conta do que viram.
É lamentável, ainda, que semelhantes coisas sejam feitas em nome da religião que elas sejam consideradas necessárias como seu sustentáculo. Não é por tais meios que arruinarão o Espiritismo. Pelo ódio que lhe votam, auxiliam no seu crescimento.
Assim foi com o Cristianismo no seu início. Perseguindo-o, os adversários trabalharam para a sua consolidação. Mas, naquela época não havia publicidade, e a calúnia poderia chocar por muito tempo. Hoje a verdade se revela prontamente e quando maldosamente dizem que uma coisa é preta, cada um pode achar, por sua vez, que é branca, e o odioso da calúnia cai sobre seus autores.
As reflexões do jornal são as de todos os detratores, que têm a mesma opinião. Foram refutadas tantas vezes que seria inútil a elas voltar. Contudo, citaremos a seguinte passagem:
“Os espíritas estarão, com efeito, em comunicação direta com o mundo dos Espíritos, a tal ponto que as mais altas personagens e as mais sagradas venham ao seu apelo ad libitum, à vontade dos médiuns, como ao toque de uma sineta? Não há nisso charlatanismo e grosseira trapaça, não da parte dos Espíritos que Allan Kardec tão bem ensina a distinguir, mas da parte do próprio chefe dessa nova seita, tão sedutora para a imaginação de seus adeptos inexperientes? As duas cartas anexas, de Paris, vindas de pessoas dignas de fé, mas que não quiseram identificar-se, podem dar uma resposta suficiente a essa delicada questão.”
O Espiritismo jamais disse que os Espíritos, sejam quais forem, vêm à vontade de um médium qualquer. Ao contrário, diz que eles não estão às ordens de ninguém; que eles vêm quando querem e quando podem. Ele faz mais, pois revela as causas materiais que se opõem a que um Espírito se manifeste pelo primeiro que aparecer.
Se a comunicação dos Espíritos não passa de uma ideia sem fundamento e de uma encenação, apenas uma pessoa deveria ter o seu monopólio. Como é que a realidade é constatada há anos por milhares de indivíduos de todas as classes e idades, em todos os países? Então todo mundo representa a comédia, dos príncipes aos peões, e isso em proveito de quem? O que é ainda mais original é que essa comédia reconduz os incrédulos a Deus e faz que orem os que riam da prece. Jamais se viu uma escamoteação produzir resultados tão sérios.
Quanto às cartas dos dois emissários, seria supérfluo responder às tolas e grosseiras injúrias que encerram; basta citar alguns erros materiais para mostrar o crédito que merece seu relatório sobre o resto.
“À hora convencionada, fomos encontrar-nos com Allan Kardec. Ele reside numa passagem sempre tomada por uma por multidão. Um grande cartaz anuncia que é lá que se realizam os mistérios do Espiritismo.”
Ao pé da escada há um pequeno aviso com estas palavras: Revista Espírita, no 2º andar, porque lá está a redação do jornal, e sendo todo jornal sujeito ao público, deve indicar a sua sede. Abaixo está escrito: Sala de cursos, porque a sala das sessões era primitivamente destinada a cursos diversos que jamais se realizaram desde que residimos nesse local. Eis uma primeira invenção desses senhores tão dignos de fé.
“Eram cinco horas da tarde. Estava escuro e o espírita não tinha lume. Por corredores tortuosos fomos introduzidos em seu gabinete.”
Os visitantes jamais foram levados ao meu gabinete, mas a um salão de recepção, que por certo não é o de um palácio, mas onde os que não o acham dignos de si estão perfeitamente livres para não voltar.
“Depois de nos ter convidado para nos sentarmos, continuou a conversar com um moço desconhecido para nós. As palavras desse último nos permitiram compreender que era um médium novato, e que ele se encontrava obsidiado, pela força impura que lhe dava respostas sob a máscara de puros Espíritos; que a princípio as respostas são veladas por uma inocência perfeita, mas em seguida o diabo se traía pouco a pouco. A voz, o ar espantado do moço, tudo denotava uma violenta agitação. O espírita respondeu que uma pureza moral da vida e a moderação eram necessárias para se comunicar com os Espíritos, e ainda mais: que no começo o médium é ordinariamente perseguido pelos maus Espíritos, mas que depois chegam os bons. O tom desse discurso era o de um mestre ou preceptor. Não há dúvida que tudo isto não passava de uma comédia representada em nossa frente.”
Esse moço, nós nos lembramos, era um simples operário que nos vinha pedir conselhos, como acontece muitas vezes. Nós continuamos nossa conversa com ele, porque aos nossos olhos um operário honesto tem direito a tanto mais consideração quanto mais humilde a sua posição. É possível que esta não fosse a ideia daqueles senhores, mas eles lá chegarão quando, em outra existência, se acharem nas condições daqueles a quem hoje olham com altivez. Quanto à comédia que, não há dúvida, era representada por eles, é muito singular que tivesse sido por eles preparada, porque não os esperávamos. À sua chegada, o moço estava só; se nós continuamos a conversa, é porque a tínhamos começado. Então nós dois representamos a comédia. Em todo o caso, ela nada tinha de muito interessante, e quando se faz tanto, faz-se algo melhor.
“Graças a uma obscuridade interessante, o mestre não era visível. Ele dirigiu-se a nós com uma pergunta que sondava nossa crença no Espiritismo, seu desenvolvimento em Moscou e assim por diante. Ele procedia com muita reserva, até que soube do nosso desejo. Trouxeram uma lâmpada. Então vimos à nossa frente um senhor muito corpulento, idoso, a fisionomia bastante agradável, olhos singulares; dir-se-ia que varavam o indivíduo: é o primeiro olhar, e em segundo lugar eram marcados por uma certa nostalgia. Fitei muito tempo seus olhos admiráveis no mais alto grau, sobre sua fisionomia comum.
“Não sei por que atraí sua atenção, de sorte que várias vezes me perguntou se eu não era médium. Provando nossa conversa os nossos conhecimentos de Espiritismo, ele começou a tornar-se mais comunicativo.”
Vê-se qual era o conhecimento deles sobre Espiritismo e sobretudo sua sinceridade. Se, por uma linguagem astuciosa, pensaram nos enganar, eles é que representavam a comédia.
“Ele pôs-se a falar, em termos obscuros, da alma e dos Espíritos. A princípio sua voz era calma, mas terminou seu discurso com uma ênfase singular. Tendo-lhe perguntado como distingue os bons Espíritos dos maus, ele respondeu que previamente submetiam cada Espírito à prova: Se o Espírito não contradissesse as opiniões morais e religiosas dos espíritas, consideravam-no como puro Espírito. À minha pergunta: Por que só se ocupava da solução de questões morais e nem tocava nas científicas nem nas políticas, pergunta que visivelmente lhe desagradou, respondeu algo neste gênero: Os Espíritos não se metem nisto.”
Geralmente a política é o terreno perigoso ao qual os falsos irmãos procuram trazer os espíritas. Segundo eles, a moral é coisa muito banal e muito vulgar; isto é muito repisado; é necessário o positivo. Um indivíduo condecorado, que sob falsa aparência se introduziu num meio operário, em Lyon, onde se encontravam também alguns militares, propôs esta questão: “O que os Espíritos pensam de Henrique V?” A resposta dos Espíritos e dos assistentes não lhe deu vontade de continuar nem de voltar.
“Depois de certa hesitação, ele nos permitiu assistir à reunião dos espíritas na sexta-feira. Eles pretendiam interrogar um coronel da guarda, médium há pouco falecido. Dissemos-lhe adeus. A noite de sexta-feira me interessa, e vos darei conta de tudo o que vir e ouvir. Entretanto, dizem que ele cobra cem francos por sessão. Se for verdade, fica bem entendido que não poderei ver nem ouvir. Sacrificarei dez francos, no máximo.
“Paris, 2/14 de novembro de 1864.”
É um relato feito por dois jovens de Moscou, os senhores XX..., que se apresentaram a nós em novembro último, sob a aparência de gente da melhor sociedade, dizendo-se muito simpáticos ao Espiritismo e que foram recebidos com as atenções devidas à sua qualidade de estrangeiros.
Nada, absolutamente, em suas palavras e maneiras, traía a intenção que os movia. Era preciso que assim fosse para representarem seu papel e realizarem a missão de que estavam encarregados.
Certamente nossos adversários da França nos habituaram a relatos que não primam pela exatidão, em matéria de Espiritismo, mas, justiça seja feita, nenhum deles, que saibamos, levou tão longe a calúnia. Isto teria sido difícil num jornal francês, pois a lei protege contra tais abusos, mas também porque muitas testemunhas oculares viriam constatar a verdade. Mas, a seiscentas léguas, num país estrangeiro e numa língua aqui desconhecida, a coisa era mais fácil.
Devemos aos numerosos adeptos da Rússia uma refutação desse ignóbil panfleto, cujos autores são tanto mais repreensíveis quanto abusaram da confiança que tinham buscado inspirar. Introduzindo-se sob falsas aparências, como emissários de um partido, numa casa particular e numa reunião privada que jamais é aberta ao público e onde só se é admitido mediante recomendação, para dar publicidade a um relatório desfigurado e ultrajante, colocam-se abaixo dos espiões, porque os espiões ao menos dão exata conta do que viram.
É lamentável, ainda, que semelhantes coisas sejam feitas em nome da religião que elas sejam consideradas necessárias como seu sustentáculo. Não é por tais meios que arruinarão o Espiritismo. Pelo ódio que lhe votam, auxiliam no seu crescimento.
Assim foi com o Cristianismo no seu início. Perseguindo-o, os adversários trabalharam para a sua consolidação. Mas, naquela época não havia publicidade, e a calúnia poderia chocar por muito tempo. Hoje a verdade se revela prontamente e quando maldosamente dizem que uma coisa é preta, cada um pode achar, por sua vez, que é branca, e o odioso da calúnia cai sobre seus autores.
As reflexões do jornal são as de todos os detratores, que têm a mesma opinião. Foram refutadas tantas vezes que seria inútil a elas voltar. Contudo, citaremos a seguinte passagem:
“Os espíritas estarão, com efeito, em comunicação direta com o mundo dos Espíritos, a tal ponto que as mais altas personagens e as mais sagradas venham ao seu apelo ad libitum, à vontade dos médiuns, como ao toque de uma sineta? Não há nisso charlatanismo e grosseira trapaça, não da parte dos Espíritos que Allan Kardec tão bem ensina a distinguir, mas da parte do próprio chefe dessa nova seita, tão sedutora para a imaginação de seus adeptos inexperientes? As duas cartas anexas, de Paris, vindas de pessoas dignas de fé, mas que não quiseram identificar-se, podem dar uma resposta suficiente a essa delicada questão.”
O Espiritismo jamais disse que os Espíritos, sejam quais forem, vêm à vontade de um médium qualquer. Ao contrário, diz que eles não estão às ordens de ninguém; que eles vêm quando querem e quando podem. Ele faz mais, pois revela as causas materiais que se opõem a que um Espírito se manifeste pelo primeiro que aparecer.
Se a comunicação dos Espíritos não passa de uma ideia sem fundamento e de uma encenação, apenas uma pessoa deveria ter o seu monopólio. Como é que a realidade é constatada há anos por milhares de indivíduos de todas as classes e idades, em todos os países? Então todo mundo representa a comédia, dos príncipes aos peões, e isso em proveito de quem? O que é ainda mais original é que essa comédia reconduz os incrédulos a Deus e faz que orem os que riam da prece. Jamais se viu uma escamoteação produzir resultados tão sérios.
Quanto às cartas dos dois emissários, seria supérfluo responder às tolas e grosseiras injúrias que encerram; basta citar alguns erros materiais para mostrar o crédito que merece seu relatório sobre o resto.
“À hora convencionada, fomos encontrar-nos com Allan Kardec. Ele reside numa passagem sempre tomada por uma por multidão. Um grande cartaz anuncia que é lá que se realizam os mistérios do Espiritismo.”
Ao pé da escada há um pequeno aviso com estas palavras: Revista Espírita, no 2º andar, porque lá está a redação do jornal, e sendo todo jornal sujeito ao público, deve indicar a sua sede. Abaixo está escrito: Sala de cursos, porque a sala das sessões era primitivamente destinada a cursos diversos que jamais se realizaram desde que residimos nesse local. Eis uma primeira invenção desses senhores tão dignos de fé.
“Eram cinco horas da tarde. Estava escuro e o espírita não tinha lume. Por corredores tortuosos fomos introduzidos em seu gabinete.”
Os visitantes jamais foram levados ao meu gabinete, mas a um salão de recepção, que por certo não é o de um palácio, mas onde os que não o acham dignos de si estão perfeitamente livres para não voltar.
“Depois de nos ter convidado para nos sentarmos, continuou a conversar com um moço desconhecido para nós. As palavras desse último nos permitiram compreender que era um médium novato, e que ele se encontrava obsidiado, pela força impura que lhe dava respostas sob a máscara de puros Espíritos; que a princípio as respostas são veladas por uma inocência perfeita, mas em seguida o diabo se traía pouco a pouco. A voz, o ar espantado do moço, tudo denotava uma violenta agitação. O espírita respondeu que uma pureza moral da vida e a moderação eram necessárias para se comunicar com os Espíritos, e ainda mais: que no começo o médium é ordinariamente perseguido pelos maus Espíritos, mas que depois chegam os bons. O tom desse discurso era o de um mestre ou preceptor. Não há dúvida que tudo isto não passava de uma comédia representada em nossa frente.”
Esse moço, nós nos lembramos, era um simples operário que nos vinha pedir conselhos, como acontece muitas vezes. Nós continuamos nossa conversa com ele, porque aos nossos olhos um operário honesto tem direito a tanto mais consideração quanto mais humilde a sua posição. É possível que esta não fosse a ideia daqueles senhores, mas eles lá chegarão quando, em outra existência, se acharem nas condições daqueles a quem hoje olham com altivez. Quanto à comédia que, não há dúvida, era representada por eles, é muito singular que tivesse sido por eles preparada, porque não os esperávamos. À sua chegada, o moço estava só; se nós continuamos a conversa, é porque a tínhamos começado. Então nós dois representamos a comédia. Em todo o caso, ela nada tinha de muito interessante, e quando se faz tanto, faz-se algo melhor.
“Graças a uma obscuridade interessante, o mestre não era visível. Ele dirigiu-se a nós com uma pergunta que sondava nossa crença no Espiritismo, seu desenvolvimento em Moscou e assim por diante. Ele procedia com muita reserva, até que soube do nosso desejo. Trouxeram uma lâmpada. Então vimos à nossa frente um senhor muito corpulento, idoso, a fisionomia bastante agradável, olhos singulares; dir-se-ia que varavam o indivíduo: é o primeiro olhar, e em segundo lugar eram marcados por uma certa nostalgia. Fitei muito tempo seus olhos admiráveis no mais alto grau, sobre sua fisionomia comum.
“Não sei por que atraí sua atenção, de sorte que várias vezes me perguntou se eu não era médium. Provando nossa conversa os nossos conhecimentos de Espiritismo, ele começou a tornar-se mais comunicativo.”
Vê-se qual era o conhecimento deles sobre Espiritismo e sobretudo sua sinceridade. Se, por uma linguagem astuciosa, pensaram nos enganar, eles é que representavam a comédia.
“Ele pôs-se a falar, em termos obscuros, da alma e dos Espíritos. A princípio sua voz era calma, mas terminou seu discurso com uma ênfase singular. Tendo-lhe perguntado como distingue os bons Espíritos dos maus, ele respondeu que previamente submetiam cada Espírito à prova: Se o Espírito não contradissesse as opiniões morais e religiosas dos espíritas, consideravam-no como puro Espírito. À minha pergunta: Por que só se ocupava da solução de questões morais e nem tocava nas científicas nem nas políticas, pergunta que visivelmente lhe desagradou, respondeu algo neste gênero: Os Espíritos não se metem nisto.”
Geralmente a política é o terreno perigoso ao qual os falsos irmãos procuram trazer os espíritas. Segundo eles, a moral é coisa muito banal e muito vulgar; isto é muito repisado; é necessário o positivo. Um indivíduo condecorado, que sob falsa aparência se introduziu num meio operário, em Lyon, onde se encontravam também alguns militares, propôs esta questão: “O que os Espíritos pensam de Henrique V?” A resposta dos Espíritos e dos assistentes não lhe deu vontade de continuar nem de voltar.
“Depois de certa hesitação, ele nos permitiu assistir à reunião dos espíritas na sexta-feira. Eles pretendiam interrogar um coronel da guarda, médium há pouco falecido. Dissemos-lhe adeus. A noite de sexta-feira me interessa, e vos darei conta de tudo o que vir e ouvir. Entretanto, dizem que ele cobra cem francos por sessão. Se for verdade, fica bem entendido que não poderei ver nem ouvir. Sacrificarei dez francos, no máximo.
“Paris, 2/14 de novembro de 1864.”
Independentemente de nossos bem conhecidos princípios, claramente formulados em nossas obras, em relação à exploração do Espiritismo sob qualquer forma, mais de seis mil ouvintes que foram admitidos às sessões da Sociedade Espírita de Paris, desde a sua fundação, a 1º de janeiro de 1858, podem dizer se alguma vez um só pagou alguma coisa como contribuição obrigatória ou facultativa, e mesmo se lhe foi imposto o que quer que fosse, como condição de admissão, como a compra de um só livro ou a assinatura da Revista. Quando se explora o público, a escolha não é difícil; visa-se a quantidade. Não seria concebível, portanto, a hesitação para admitir esses senhores; em vez de permitir que viessem, teríamos solicitado. Só por estas palavras eles se traem; mas não pensam em tudo.
A partir do momento que, como dizem, tinham ouvido falar que eram cobrados cem francos por pessoa, e que eles concordariam em dar apenas dez, como é que não confirmaram com antecedência? Era muito natural, necessário mesmo no-lo perguntar para não se verem apanhados desprevenidos. Há aqui uma insinuação pérfida, mas desajeitada. No relato que a seguir fazem da sessão a que assistiram, eles não falam de pagamento. Ora, tendo dito que sacrificariam dez francos, dão a entender que nada lhes custou. Eles recuaram diante de uma afirmação, mas disseram para si mesmos: “Lancemos a ideia; sempre restará alguma coisa.” Mas quando não há nada, nada pode restar. Sim, resta alguma coisa: a vergonha para o mentiroso.
Aliás, não é a primeira vez que a malevolência e a inveja empregam tal meio para buscar desacreditar a Sociedade na opinião pública. Ultimamente, em Nantes, um indivíduo afirmava que as entradas aí custavam cinco francos por pessoa. Seria singular que depois de oito anos que a Sociedade existe ainda não se saiba se ela cobra 100 francos ou 5 francos. Na verdade, é preciso estar muito enceguecido pela vontade de prejudicar para tentar ludibriar o público sobre um fato tão material que diariamente recebe o desmentido, quer pelas pessoas que aí vão, quer pelos princípios que ela professa e que são formulados sem equívoco em nossos escritos.
Contudo, dessa calúnia ressalta um ensino. A partir do momento em que nossos adversários pensam desacreditar a Sociedade, dizendo que ela exige uma contribuição dos visitantes, é que eles consideram mais honroso nada cobrar. Ora, considerando-se que ela nada exige; que, em vez de visar à quantidade de frequentadores, ela a restringe tanto quanto possível, é que não especula com eles; assim, corta cerce toda suspeita de charlatanice.
A circunstância do coronel que devia ser evocado nos forneceu a pista para descobrirmos a sessão a que aqueles senhores assistiram. Não se achando na lista desse dia os seus verdadeiros nomes, temos assim a prova de que se apresentaram com nomes falsos. Isto foi muito fácil de verificar, pois naquele dia a sessão era particular, reservada aos membros da Sociedade, à qual só tinham sido excepcionalmente admitidos quatro ou cinco estrangeiros, de passagem por Paris. Enviando-nos os seus nomes verdadeiros, nosso correspondente nos revela que são filhos de um alto funcionário eclesiástico russo.
“Sexta-feira passada, às oito horas da noite, fomos à sessão da Sociedade espírita. Chegamos cedo; os membros ainda não eram numerosos, de sorte que pudemos examinar minuciosamente o ambiente. Um salão muito grande continha numerosas filas de cadeiras. Ao lado de uma das paredes achava-se uma mesa coberta com uma toalha verde, em redor da qual estavam cadeiras para os principais membros da Sociedade. Sobre a mesa encontrava-se uma pilha de papel branco e uma porção de lápis apontados. Nada mais. Acima da mesa pendia a imagem do Salvador abençoando.”
Uma investigação tão minuciosa e levada até ao exame dos papéis é bastante indiscreta da parte de pessoas que se dizem gentis-homens admitidos por favor numa casa particular e a uma reunião que nada tem de pública.
Não há absolutamente nada suspenso acima da mesa. Perto da parede há uma estatueta de São Luís, presidente espiritual da Sociedade, em trajes de rei, e que aqueles senhores, ao que parece, tomaram pelo Cristo.
“As paredes eram ocupadas por quadros singulares. Examinei-os detalhadamente. O maior, pintado a óleo, representa um esquife com correntes caídas em volta; um sítio original, com plantas fantásticas, rodeava o esquife. Uma inscrição explica que o quadro foi pintado por Allan Kardec.”
Esse quadro alegórico é o de que falamos na Revista de 1862. Não há correntes nem plantas de qualquer espécie. Em baixo há uma legenda explicativa com esta inscrição aposta no próprio quadro, e em evidência: “Pintura mediúnica. Quadro alegórico do surgimento e da vitória do Espiritismo; pintado pelo Sr. V..., jovem aluno de farmácia, sem qualquer conhecimento de pintura e de desenho. Lyon.” Não sabemos como esses senhores puderam ver nestas palavras que o quadro foi pintado por Allan Kardec. Isto dá a medida da exatidão de seu relatório e da confiança que o resto merece.
“Mais longe, toda uma série de quadros ou desenhos, não sei bem como denominá-los, feitos por diversas pessoas, sob a influência dos Espíritos. Não vos posso dizer a impressão que sobre mim produziram todos esses quadros. Examineime, examinei-me severamente, e achei que a disposição de meu espírito naquele momento era perfeitamente tranquila, cheia de sangue-frio, de sorte que a impressão que experimentei, à vista daqueles quadros, era independente de minha imaginação. Os quadros ou desenhos representam uma insólita reunião de linhas, pontos, círculos, uma reunião original, sem qualquer semelhança com o que quer que seja. Todos têm um certo gênero particular, que lhes pertence em comum, mas inteiramente indefinível. Dir-se-ia que nada há de particular nesses pontos e linhas e, contudo, a impressão que deixam é uma das mais desagradáveis, semelhante a um litigante pesadelo. Numa palavra, aqueles desenhos não se parecem com nada do que jamais tenhais visto, e para mim são desagradáveis.”
Nessa coleção de desenhos mediúnicos acham-se: a casa de Mozart, publicada na Revista de agosto de 1858, e que todos conhecem; uma cabeça do Cristo, feita no México, de um tipo admirado por todos os conhecedores; um outro Cristo, coroado de espinhos, moldado em barro, na Sociedade Espírita de Madrid, e de uma execução notável; duas soberbas cabeças de mulher, de perfil grego, desenhadas na Sociedade Espírita de Constantinopla; uma paisagem desenhada a bico de pena pelo Sr. Jaubert, vicepresidente do Tribunal de Carcassone e que qualquer artista consumado assinaria, etc. Eis as linhas e os pontos que perturbaram os olhos daqueles senhores de maneira tão desagradável e tão repugnante. Seríamos realmente tentados a crer que um Espírito maligno os fascinou de maneira a fazê-los ver tudo pelo avesso, a fim de tornar seu relato mais pitoresco.
“Enfim, os membros da Sociedade se reúnem em número de cerca de setenta. Como nas sociedades verdadeiras, também havia secretários. A princípio leram um capítulo do Evangelho; a seguir o protocolo da sessão precedente. Confesso que não havia meio de escutar sem riso as diversas informações. Por exemplo, em Lyon um Espírito dizia tolices, porque o haviam excluído do número dos Espíritos de boa conduta.
“Em seguida leram o necrológio do coronel espírita que devia ser evocado durante essa sessão. Anteriormente ele havia sido sansimonista. Allan Kardec disse à Sociedade que lhe faria perguntas sobre as relações entre o Espiritismo e o Sansimonismo. Um dos assistentes queria fazer algumas perguntas, mas o mestre declarou que os outros não deviam intrometer-se naquilo que não lhes compete.
“Eu esperava que trouxessem o aparelho que devia escrever, mas enganavame. Allan Kardec tocou a campainha e veio da antecâmara um jovem com cara de trapaceiro, numa palavra, pronto, por um quarto de rublo, a dizer de cor pelo menos meia libra de toda sorte de absurdos. Disseram-nos que era um médium.”
Aqui já não se trata de simples inexatidões. É o cinismo da injúria e do ultraje. Basta citar tais palavras para desacreditá-las. Na França seus autores teriam sido levados aos tribunais. Em termos de inexatidões, diremos apenas que, desde que a Sociedade existe, jamais houve campainha em seu escritório e que, por consequência, não podíamos tocá-la. Os ouvidos desses senhores tiniram, como seus olhos se enviesaram ao observar os desenhos e a estatueta de São Luís.
“O público, na maioria velhos, era característico; quase metade deles eram meio loucos. A gente moça, extasiada e desgrenhada, seguia atentamente os movimentos do médium. Lá havia criaturas tão cegamente crentes, que até era pecado rir delas. Só se podia lamentá-las.”
Parece que mentir é um pecado menor. É verdade que certas pessoas pensam que é escusável toda mentira dita com boa intenção. Ora, denegrir o Espiritismo para alguns é excelente motivo.
“O que respondeu o Espírito? Respondeu pela tagarelice de Allan Kardec, que se pode admirar em suas obras.”
O Espírito de que se trata aqui é o do Sr. Bruneau, membro da Sociedade Espírita, antigo aluno da Escola Politécnica e coronel de artilharia, falecido recentemente. Pode-se ver a ata de sua evocação na Revista de dezembro de 1864.
“Allan Kardec propôs evocar um menino sansimonista.”
Naquele dia havia oito médiuns à mesa, e não um. Como acabáramos de evocar o Sr. Bruneau, que tinha sido sansimonista, e tínhamos falado dessa doutrina, seu antigo chefe, Père Enfantin, comunicou-se espontaneamente e sem evocação, por um dos médiuns, e participou da discussão. Foi, pois, Père Enfantin que o fiel narrador tomou por um menino sansimonista.[1]
“Quanto a nós, ficamos tão aborrecidos quanto desgostosos com o aspecto de toda essa gente. Levantamo-nos e saímos. Assim terminou nossa visita espírita.
Entretanto, não me posso dar conta se é velhacaria ou loucura. Mas, chega!
“Paris, 9/21 de novembro de 1864.”
O redator do jornal acrescenta:
“A pessoa que nos forneceu essas duas cartas interessantes as termina com a seguinte observação: ‘O relato consciencioso da testemunha ocular é muito importante, embora nem tudo explique. É por essa razão que pensamos que o presente resumo não é desprovido de utilidade para as pessoas muito crédulas em matéria de comunicação com os Espíritos.’”
As reflexões a que dão lugar os fatos desta natureza estão resumidas no artigo seguinte.
[1] Enfantin, em francês, é “infantil”.
A partir do momento que, como dizem, tinham ouvido falar que eram cobrados cem francos por pessoa, e que eles concordariam em dar apenas dez, como é que não confirmaram com antecedência? Era muito natural, necessário mesmo no-lo perguntar para não se verem apanhados desprevenidos. Há aqui uma insinuação pérfida, mas desajeitada. No relato que a seguir fazem da sessão a que assistiram, eles não falam de pagamento. Ora, tendo dito que sacrificariam dez francos, dão a entender que nada lhes custou. Eles recuaram diante de uma afirmação, mas disseram para si mesmos: “Lancemos a ideia; sempre restará alguma coisa.” Mas quando não há nada, nada pode restar. Sim, resta alguma coisa: a vergonha para o mentiroso.
Aliás, não é a primeira vez que a malevolência e a inveja empregam tal meio para buscar desacreditar a Sociedade na opinião pública. Ultimamente, em Nantes, um indivíduo afirmava que as entradas aí custavam cinco francos por pessoa. Seria singular que depois de oito anos que a Sociedade existe ainda não se saiba se ela cobra 100 francos ou 5 francos. Na verdade, é preciso estar muito enceguecido pela vontade de prejudicar para tentar ludibriar o público sobre um fato tão material que diariamente recebe o desmentido, quer pelas pessoas que aí vão, quer pelos princípios que ela professa e que são formulados sem equívoco em nossos escritos.
Contudo, dessa calúnia ressalta um ensino. A partir do momento em que nossos adversários pensam desacreditar a Sociedade, dizendo que ela exige uma contribuição dos visitantes, é que eles consideram mais honroso nada cobrar. Ora, considerando-se que ela nada exige; que, em vez de visar à quantidade de frequentadores, ela a restringe tanto quanto possível, é que não especula com eles; assim, corta cerce toda suspeita de charlatanice.
A circunstância do coronel que devia ser evocado nos forneceu a pista para descobrirmos a sessão a que aqueles senhores assistiram. Não se achando na lista desse dia os seus verdadeiros nomes, temos assim a prova de que se apresentaram com nomes falsos. Isto foi muito fácil de verificar, pois naquele dia a sessão era particular, reservada aos membros da Sociedade, à qual só tinham sido excepcionalmente admitidos quatro ou cinco estrangeiros, de passagem por Paris. Enviando-nos os seus nomes verdadeiros, nosso correspondente nos revela que são filhos de um alto funcionário eclesiástico russo.
“Sexta-feira passada, às oito horas da noite, fomos à sessão da Sociedade espírita. Chegamos cedo; os membros ainda não eram numerosos, de sorte que pudemos examinar minuciosamente o ambiente. Um salão muito grande continha numerosas filas de cadeiras. Ao lado de uma das paredes achava-se uma mesa coberta com uma toalha verde, em redor da qual estavam cadeiras para os principais membros da Sociedade. Sobre a mesa encontrava-se uma pilha de papel branco e uma porção de lápis apontados. Nada mais. Acima da mesa pendia a imagem do Salvador abençoando.”
Uma investigação tão minuciosa e levada até ao exame dos papéis é bastante indiscreta da parte de pessoas que se dizem gentis-homens admitidos por favor numa casa particular e a uma reunião que nada tem de pública.
Não há absolutamente nada suspenso acima da mesa. Perto da parede há uma estatueta de São Luís, presidente espiritual da Sociedade, em trajes de rei, e que aqueles senhores, ao que parece, tomaram pelo Cristo.
“As paredes eram ocupadas por quadros singulares. Examinei-os detalhadamente. O maior, pintado a óleo, representa um esquife com correntes caídas em volta; um sítio original, com plantas fantásticas, rodeava o esquife. Uma inscrição explica que o quadro foi pintado por Allan Kardec.”
Esse quadro alegórico é o de que falamos na Revista de 1862. Não há correntes nem plantas de qualquer espécie. Em baixo há uma legenda explicativa com esta inscrição aposta no próprio quadro, e em evidência: “Pintura mediúnica. Quadro alegórico do surgimento e da vitória do Espiritismo; pintado pelo Sr. V..., jovem aluno de farmácia, sem qualquer conhecimento de pintura e de desenho. Lyon.” Não sabemos como esses senhores puderam ver nestas palavras que o quadro foi pintado por Allan Kardec. Isto dá a medida da exatidão de seu relatório e da confiança que o resto merece.
“Mais longe, toda uma série de quadros ou desenhos, não sei bem como denominá-los, feitos por diversas pessoas, sob a influência dos Espíritos. Não vos posso dizer a impressão que sobre mim produziram todos esses quadros. Examineime, examinei-me severamente, e achei que a disposição de meu espírito naquele momento era perfeitamente tranquila, cheia de sangue-frio, de sorte que a impressão que experimentei, à vista daqueles quadros, era independente de minha imaginação. Os quadros ou desenhos representam uma insólita reunião de linhas, pontos, círculos, uma reunião original, sem qualquer semelhança com o que quer que seja. Todos têm um certo gênero particular, que lhes pertence em comum, mas inteiramente indefinível. Dir-se-ia que nada há de particular nesses pontos e linhas e, contudo, a impressão que deixam é uma das mais desagradáveis, semelhante a um litigante pesadelo. Numa palavra, aqueles desenhos não se parecem com nada do que jamais tenhais visto, e para mim são desagradáveis.”
Nessa coleção de desenhos mediúnicos acham-se: a casa de Mozart, publicada na Revista de agosto de 1858, e que todos conhecem; uma cabeça do Cristo, feita no México, de um tipo admirado por todos os conhecedores; um outro Cristo, coroado de espinhos, moldado em barro, na Sociedade Espírita de Madrid, e de uma execução notável; duas soberbas cabeças de mulher, de perfil grego, desenhadas na Sociedade Espírita de Constantinopla; uma paisagem desenhada a bico de pena pelo Sr. Jaubert, vicepresidente do Tribunal de Carcassone e que qualquer artista consumado assinaria, etc. Eis as linhas e os pontos que perturbaram os olhos daqueles senhores de maneira tão desagradável e tão repugnante. Seríamos realmente tentados a crer que um Espírito maligno os fascinou de maneira a fazê-los ver tudo pelo avesso, a fim de tornar seu relato mais pitoresco.
“Enfim, os membros da Sociedade se reúnem em número de cerca de setenta. Como nas sociedades verdadeiras, também havia secretários. A princípio leram um capítulo do Evangelho; a seguir o protocolo da sessão precedente. Confesso que não havia meio de escutar sem riso as diversas informações. Por exemplo, em Lyon um Espírito dizia tolices, porque o haviam excluído do número dos Espíritos de boa conduta.
“Em seguida leram o necrológio do coronel espírita que devia ser evocado durante essa sessão. Anteriormente ele havia sido sansimonista. Allan Kardec disse à Sociedade que lhe faria perguntas sobre as relações entre o Espiritismo e o Sansimonismo. Um dos assistentes queria fazer algumas perguntas, mas o mestre declarou que os outros não deviam intrometer-se naquilo que não lhes compete.
“Eu esperava que trouxessem o aparelho que devia escrever, mas enganavame. Allan Kardec tocou a campainha e veio da antecâmara um jovem com cara de trapaceiro, numa palavra, pronto, por um quarto de rublo, a dizer de cor pelo menos meia libra de toda sorte de absurdos. Disseram-nos que era um médium.”
Aqui já não se trata de simples inexatidões. É o cinismo da injúria e do ultraje. Basta citar tais palavras para desacreditá-las. Na França seus autores teriam sido levados aos tribunais. Em termos de inexatidões, diremos apenas que, desde que a Sociedade existe, jamais houve campainha em seu escritório e que, por consequência, não podíamos tocá-la. Os ouvidos desses senhores tiniram, como seus olhos se enviesaram ao observar os desenhos e a estatueta de São Luís.
“O público, na maioria velhos, era característico; quase metade deles eram meio loucos. A gente moça, extasiada e desgrenhada, seguia atentamente os movimentos do médium. Lá havia criaturas tão cegamente crentes, que até era pecado rir delas. Só se podia lamentá-las.”
Parece que mentir é um pecado menor. É verdade que certas pessoas pensam que é escusável toda mentira dita com boa intenção. Ora, denegrir o Espiritismo para alguns é excelente motivo.
“O que respondeu o Espírito? Respondeu pela tagarelice de Allan Kardec, que se pode admirar em suas obras.”
O Espírito de que se trata aqui é o do Sr. Bruneau, membro da Sociedade Espírita, antigo aluno da Escola Politécnica e coronel de artilharia, falecido recentemente. Pode-se ver a ata de sua evocação na Revista de dezembro de 1864.
“Allan Kardec propôs evocar um menino sansimonista.”
Naquele dia havia oito médiuns à mesa, e não um. Como acabáramos de evocar o Sr. Bruneau, que tinha sido sansimonista, e tínhamos falado dessa doutrina, seu antigo chefe, Père Enfantin, comunicou-se espontaneamente e sem evocação, por um dos médiuns, e participou da discussão. Foi, pois, Père Enfantin que o fiel narrador tomou por um menino sansimonista.[1]
“Quanto a nós, ficamos tão aborrecidos quanto desgostosos com o aspecto de toda essa gente. Levantamo-nos e saímos. Assim terminou nossa visita espírita.
Entretanto, não me posso dar conta se é velhacaria ou loucura. Mas, chega!
“Paris, 9/21 de novembro de 1864.”
O redator do jornal acrescenta:
“A pessoa que nos forneceu essas duas cartas interessantes as termina com a seguinte observação: ‘O relato consciencioso da testemunha ocular é muito importante, embora nem tudo explique. É por essa razão que pensamos que o presente resumo não é desprovido de utilidade para as pessoas muito crédulas em matéria de comunicação com os Espíritos.’”
As reflexões a que dão lugar os fatos desta natureza estão resumidas no artigo seguinte.
[1] Enfantin, em francês, é “infantil”.
Nova tática dos adversários do Espiritismo.
Jamais uma doutrina filosófica dos tempos modernos causou tanta emoção quanto o Espiritismo. Jamais qualquer uma foi atacada com tanto encarniçamento. É a prova evidente de que lhe reconhecem mais vitalidade e raízes mais profundas que nas outras, pois não se toma de uma picareta para arrancar um capinzinho. Longe de se apavorar, os espíritas devem alegrar-se com isso, pois é prova da importância e da verdade da doutrina. Se ela não passasse de uma ideia efêmera e sem consistência, de uma mosca que voa, não a atacariam com tamanha violência; se fosse falsa, atacá-la-iam com argumentos sólidos que já teriam triunfado sobre ela. Entretanto, como nenhum dos argumentos que lhe opõem pôde detê-la, é que ninguém encontrou falha na couraça. Contudo, não faltaram nem boa vontade nem talento aos seus antagonistas.
Nesse vasto torneio de ideias, onde o passado entra em liça com o futuro, e que tem por campo fechado o mundo inteiro, o grande júri é a opinião pública. Ela escuta o pró e o contra; ela julga o valor dos meios de ataque e de defesa e se pronuncia a favor de quem dá as melhores razões. Se um dos dois campeões emprega armas desleais, é condenado por antecipação. Ora, haverá armas mais desleais que a mentira, a calúnia e a traição? Recorrer a semelhantes meios é confessar-se vencido pela lógica, e a causa que se reduz a tais expedientes é uma causa perdida; não será um homem, nem serão alguns homens que pronunciarão a sua sentença: será a humanidade, que a força das coisas e a consciência do bem arrastam para o que é mais justo e mais racional.
Vede, na história do mundo, se uma só ideia grande e verdadeira não triunfou sempre sobre qualquer coisa que tenham feito para entravá-la. A esse respeito, o Espiritismo nos apresenta um fato inaudito: é o da rapidez de propagação sem paralelo. Essa rapidez é tal que seus próprios adversários ficam aturdidos; assim, atacam com o cego furor dos combatentes que perdem o sangue frio e se aferram às suas próprias armas.
Entretanto, a luta está longe de chegar ao fim. É preciso, ao contrário, esperar que ela adquira maiores proporções e um outro caráter. Seria demasiado prodigioso e incompatível com o estado atual da humanidade que uma doutrina que leva em si o germe de toda uma renovação se estabelecesse pacificamente em alguns anos. Ainda uma vez, não nos lamentemos. Quanto mais rude for a luta, mais brilhante será o triunfo. Ninguém duvida que o Espiritismo cresceu pela oposição que lhe fizeram. Deixemos, pois, essa oposição esgotar os seus recursos. Ele crescerá ainda mais quando ela tiver revelado sua própria fraqueza aos olhos de todos. O campo de combate do Cristianismo nascente era circunscrito; o do Espiritismo se estende por toda a face da Terra. O Cristianismo não pôde ser abafado sob ondas de sangue; ele cresceu por seus mártires, como a liberdade dos povos, porque era uma verdade. O Espiritismo, que é o Cristianismo apropriado ao desenvolvimento da inteligência e livre dos abusos, crescerá do mesmo modo sob a perseguição, porque também ele é uma verdade.
A força bruta é reconhecidamente impotente contra a ideia espírita, mesmo nos países onde ela é aplicada com toda a liberdade. Aí está a experiência para atestá-lo. Comprimindo a ideia num ponto, fazem-na surgir de todos os lados. Uma compressão geral produzirá uma explosão. Contudo, nossos adversários não renunciaram. Enquanto esperam, recorrem a outra tática: a das manobras surdas.
Muitas vezes já tentaram, e tentarão de novo, comprometer a doutrina, impelindo-a por uma via perigosa ou ridícula para desacreditá-la. Hoje, semeando de forma sub-reptícia a divisão e lançando fachos de discórdia, eles esperam lançar a dúvida e a incerteza nos espíritos, provocar o desânimo verdadeiro ou simulado e fomentar a perturbação entre os adeptos. Mas não são adversários confessos que assim agiriam. O Espiritismo, cujos princípios têm tantos pontos de semelhança com os do Cristianismo, também deve ter os seus Judas, para que tenha a glória de sair vitorioso dessa nova prova. Por vezes o dinheiro é o argumento que substitui a lógica. Não se viu uma mulher confessar ter recebido 50 francos para simular loucura depois de haver assistido a uma única reunião espírita?
Assim, não é sem razão que, na Revista de março de 1863, publicamos o artigo sobre os falsos irmãos. O artigo não agradou a todo mundo, e mais de um queria que víssemos mais claro e que abríssemos os olhos dos outros, apertando-nos a mão em sinal de aprovação, como se fôssemos a vítima. Mas que importa! Nosso dever é premunir os espíritas sinceros contra as armadilhas que lhes preparam.
Quanto àqueles que nos hostilizaram, para os quais esses princípios, como vários outros, eram muito rigorosos, é que sua simpatia era superficial e não do fundo do coração, e nós não temos nenhuma razão para a eles nos atermos. Temos que nos ocupar de coisas mais importantes que a sua boa ou má vontade a nosso respeito. O presente é fugidio e amanhã não existirá mais. Para nós ele nada é. O futuro é tudo e é para o futuro que trabalhamos. Sabemos que as simpatias verdadeiras nos seguirão, e aquelas que estão à mercê de um interesse material ilusório ou de um amor-próprio não satisfeito, não merecem este nome.
Quem quer que ponha o seu ponto de vista fora da estreita esfera do presente não mais é perturbado pelas mesquinhas intrigas que se agitam ao seu redor. É o que nos esforçamos por fazer, e é o que aconselhamos aos que querem ter a paz da alma neste mundo. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. II, item 5).
Como todas as ideias novas, a ideia espírita não podia deixar de ser explorada por gente que, não tendo tido êxito em nada, por conduta errada ou por incapacidade, está em busca do que é novo, na esperança de aí encontrar uma mina mais produtiva e mais fácil. Se o sucesso não corresponde à sua expectativa, eles não assumem a responsabilidade, mas atribuem o insucesso à coisa, que declaram má. Essas pessoas têm apenas o nome de espíritas. Melhor do que qualquer outro, pudemos ver essa manobra, tendo sido muitas vezes o alvo dessas explorações, com as quais não quisemos compactuar, o que não nos valeu amigos.
Voltemos ao nosso assunto. O Espiritismo, repetimo-lo, ainda tem que passar por rudes provas e é aí que Deus reconhecerá seus verdadeiros servidores, por sua coragem, por sua firmeza e por sua perseverança. Aqueles que se abalarem pelo medo ou por uma decepção, são como esses soldados que só têm coragem nos tempos de paz e fogem ao primeiro tiro. A maior prova não será, entretanto, a perseguição, mas o conflito das ideias que será suscitado e com cujo auxílio esperam romper a falange dos adeptos e à admirável unidade que se faz na doutrina.
Esse conflito, embora provocado com má intenção, quer venha ele de homens, quer de maus Espíritos, é, contudo, necessário e deve trazer uma perturbação momentânea nalgumas consciências fracas, e mesmo que cause uma perturbação momentânea em algumas, terá como resultado definitivo a consolidação da unidade. Em todas as coisas não se devem julgar pontos isolados, mas ver o conjunto. É útil que todas as ideias, mesmo as mais contraditórias e as mais excêntricas, venham à luz; elas provocam o exame e o julgamento, e se forem falsas, o bom senso lhes fará justiça: elas cairão forçosamente ante a prova decisiva do controle universal, como já caíram tantas outras. Foi esse grande critério que fez a unidade atual; será ele que a concluirá, porque é o crivo que deve separar o bom do mau grão, e a verdade será mais brilhante quando sair do cadinho, livre de todas as escórias. O Espiritismo ainda está em ebulição; deixemos pois a espuma subir à tona e se derramar e ele apenas ficará mais depurado. Deixemos aos adversários a alegria maligna e pueril de soprar o fogo para provocar essa ebulição porque, sem querer, eles apressam sua depuração e seu triunfo, e eles próprios queimar-se-ão no fogo que acendem. Deus quer que tudo seja útil à causa, mesmo aquilo que é feito com a intenção de prejudicá-la.
Não esqueçamos que o Espiritismo não está acabado. Ele ainda não fez senão plantar balizas, mas, para avançar com segurança, deve fazê-lo gradualmente, à medida que o terreno esteja preparado para recebê-lo e bastante consolidado para nele pôr o pé com segurança. Os impacientes, que não sabem esperar o momento propício, comprometem a colheita, como comprometem a sorte das batalhas.
Entre os impacientes há, sem dúvida, aqueles de muito boa-fé; quereriam ver as coisas irem ainda mais depressa, mas assemelham-se a essas criaturas que julgam adiantar o tempo adiantando o relógio. Outros, não menos sinceros, são levados pelo amor-próprio a chegar primeiro; semeiam antes da estação e só colhem frutos abortados. Ao lado desses, outros há, infelizmente, que empurram o carro por trás, esperando vê-lo tombar.
Compreende-se que certos indivíduos que gostariam de ter sido os primeiros, nos censurem por termos ido tão depressa; que outros, por motivos contrários, nos censurem por avançarmos devagar; mas o que é menos explicável é, por vezes, ver essa dupla censura feita pelo mesmo indivíduo, o que não é prova de muita lógica. Se formos aguilhoados por andarmos pela direita ou pela esquerda, nem por isso avançaremos menos, como temos feito até aqui, na linha que nos é traçada, ao fim da qual está o objetivo que queremos atingir. Iremos para a frente ou esperaremos; apressar-nos-emos ou nos retardaremos conforme as circunstâncias, e não segundo a opinião deste ou daquele.
O Espiritismo marcha a despeito de seus adversários numerosos, que, não tendo podido tomá-lo pela força, tentam tomá-lo pela astúcia; eles se insinuam por toda parte, sob todas as máscaras e até nas reuniões íntimas, na esperança de aí flagrar um fato ou uma palavra que muitas vezes terão provocado e que esperam explorar em seu proveito. Comprometer o Espiritismo e torná-lo ridículo, tal é a tática com cujo auxílio esperam desacreditá-lo a princípio, para mais tarde terem um pretexto para interditar, se possível, o seu exercício público. É a cilada contra a qual é preciso manter-se em guarda, porque está armada por todos os lados, e à qual, sem querer, dão a mão os que se deixam levar pelas sugestões dos Espíritos enganadores e mistificadores.
O meio de evitar essas maquinações é seguir o mais exatamente possível a linha de conduta traçada pela doutrina; sua moral, que é a sua parte essencial, é inatacável; praticando-a, não se dá ensejo a nenhuma crítica fundada e a agressão se torna mais odiosa. Apanhar os espíritas em falta e em contradição com os seus princípios seria uma grande sorte para os seus adversários; assim, vede como se empenham em acusar o Espiritismo de todas as aberrações e de todas as excentricidades pelas quais não podia ser responsável. A doutrina não é ambígua em nenhuma de suas partes; ela é clara, precisa, categórica nos mínimos detalhes; só a ignorância e a má-fé podem enganar-se sobre o que ela aprova ou condena. É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e devotados repudiar e desautorizar abertamente, em seu nome, os abusos de todo gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a responsabilidade; pactuar com os abusos seria tornar-se cúmplice e fornecer armas aos nossos adversários.
Os períodos de transição são sempre difíceis de passar. O Espiritismo está nesse período; atravessá-lo-á com tanto menos dificuldade quanto mais os seus adeptos forem prudentes. Estamos em guerra; aí está o inimigo que espia, prestes a explorar o menor passo em falso em seu proveito e prestes a fazê-lo meter o pé na lama, se puder.
Contudo, não nos apressemos em atirar pedras ou em levantar a suspeita muito levianamente, e em aparências que poderiam ser enganosas. Aliás, a caridade torna a moderação um dever, mesmo para com aqueles que estão contra nós. Contudo, a sinceridade, mesmo em seus erros, tem atitudes de franqueza, com as quais não é possível equívoco, e que a falsidade jamais simulará completamente, porque mais cedo ou mais tarde põe as unhas de fora. Deus e os bons Espíritos permitem que ela se traia por seus próprios atos. Se uma dúvida atravessa o espírito, deve ser apenas um motivo para se manter em reserva, o que pode ser feito sem faltar às conveniências.
Nesse vasto torneio de ideias, onde o passado entra em liça com o futuro, e que tem por campo fechado o mundo inteiro, o grande júri é a opinião pública. Ela escuta o pró e o contra; ela julga o valor dos meios de ataque e de defesa e se pronuncia a favor de quem dá as melhores razões. Se um dos dois campeões emprega armas desleais, é condenado por antecipação. Ora, haverá armas mais desleais que a mentira, a calúnia e a traição? Recorrer a semelhantes meios é confessar-se vencido pela lógica, e a causa que se reduz a tais expedientes é uma causa perdida; não será um homem, nem serão alguns homens que pronunciarão a sua sentença: será a humanidade, que a força das coisas e a consciência do bem arrastam para o que é mais justo e mais racional.
Vede, na história do mundo, se uma só ideia grande e verdadeira não triunfou sempre sobre qualquer coisa que tenham feito para entravá-la. A esse respeito, o Espiritismo nos apresenta um fato inaudito: é o da rapidez de propagação sem paralelo. Essa rapidez é tal que seus próprios adversários ficam aturdidos; assim, atacam com o cego furor dos combatentes que perdem o sangue frio e se aferram às suas próprias armas.
Entretanto, a luta está longe de chegar ao fim. É preciso, ao contrário, esperar que ela adquira maiores proporções e um outro caráter. Seria demasiado prodigioso e incompatível com o estado atual da humanidade que uma doutrina que leva em si o germe de toda uma renovação se estabelecesse pacificamente em alguns anos. Ainda uma vez, não nos lamentemos. Quanto mais rude for a luta, mais brilhante será o triunfo. Ninguém duvida que o Espiritismo cresceu pela oposição que lhe fizeram. Deixemos, pois, essa oposição esgotar os seus recursos. Ele crescerá ainda mais quando ela tiver revelado sua própria fraqueza aos olhos de todos. O campo de combate do Cristianismo nascente era circunscrito; o do Espiritismo se estende por toda a face da Terra. O Cristianismo não pôde ser abafado sob ondas de sangue; ele cresceu por seus mártires, como a liberdade dos povos, porque era uma verdade. O Espiritismo, que é o Cristianismo apropriado ao desenvolvimento da inteligência e livre dos abusos, crescerá do mesmo modo sob a perseguição, porque também ele é uma verdade.
A força bruta é reconhecidamente impotente contra a ideia espírita, mesmo nos países onde ela é aplicada com toda a liberdade. Aí está a experiência para atestá-lo. Comprimindo a ideia num ponto, fazem-na surgir de todos os lados. Uma compressão geral produzirá uma explosão. Contudo, nossos adversários não renunciaram. Enquanto esperam, recorrem a outra tática: a das manobras surdas.
Muitas vezes já tentaram, e tentarão de novo, comprometer a doutrina, impelindo-a por uma via perigosa ou ridícula para desacreditá-la. Hoje, semeando de forma sub-reptícia a divisão e lançando fachos de discórdia, eles esperam lançar a dúvida e a incerteza nos espíritos, provocar o desânimo verdadeiro ou simulado e fomentar a perturbação entre os adeptos. Mas não são adversários confessos que assim agiriam. O Espiritismo, cujos princípios têm tantos pontos de semelhança com os do Cristianismo, também deve ter os seus Judas, para que tenha a glória de sair vitorioso dessa nova prova. Por vezes o dinheiro é o argumento que substitui a lógica. Não se viu uma mulher confessar ter recebido 50 francos para simular loucura depois de haver assistido a uma única reunião espírita?
Assim, não é sem razão que, na Revista de março de 1863, publicamos o artigo sobre os falsos irmãos. O artigo não agradou a todo mundo, e mais de um queria que víssemos mais claro e que abríssemos os olhos dos outros, apertando-nos a mão em sinal de aprovação, como se fôssemos a vítima. Mas que importa! Nosso dever é premunir os espíritas sinceros contra as armadilhas que lhes preparam.
Quanto àqueles que nos hostilizaram, para os quais esses princípios, como vários outros, eram muito rigorosos, é que sua simpatia era superficial e não do fundo do coração, e nós não temos nenhuma razão para a eles nos atermos. Temos que nos ocupar de coisas mais importantes que a sua boa ou má vontade a nosso respeito. O presente é fugidio e amanhã não existirá mais. Para nós ele nada é. O futuro é tudo e é para o futuro que trabalhamos. Sabemos que as simpatias verdadeiras nos seguirão, e aquelas que estão à mercê de um interesse material ilusório ou de um amor-próprio não satisfeito, não merecem este nome.
Quem quer que ponha o seu ponto de vista fora da estreita esfera do presente não mais é perturbado pelas mesquinhas intrigas que se agitam ao seu redor. É o que nos esforçamos por fazer, e é o que aconselhamos aos que querem ter a paz da alma neste mundo. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. II, item 5).
Como todas as ideias novas, a ideia espírita não podia deixar de ser explorada por gente que, não tendo tido êxito em nada, por conduta errada ou por incapacidade, está em busca do que é novo, na esperança de aí encontrar uma mina mais produtiva e mais fácil. Se o sucesso não corresponde à sua expectativa, eles não assumem a responsabilidade, mas atribuem o insucesso à coisa, que declaram má. Essas pessoas têm apenas o nome de espíritas. Melhor do que qualquer outro, pudemos ver essa manobra, tendo sido muitas vezes o alvo dessas explorações, com as quais não quisemos compactuar, o que não nos valeu amigos.
Voltemos ao nosso assunto. O Espiritismo, repetimo-lo, ainda tem que passar por rudes provas e é aí que Deus reconhecerá seus verdadeiros servidores, por sua coragem, por sua firmeza e por sua perseverança. Aqueles que se abalarem pelo medo ou por uma decepção, são como esses soldados que só têm coragem nos tempos de paz e fogem ao primeiro tiro. A maior prova não será, entretanto, a perseguição, mas o conflito das ideias que será suscitado e com cujo auxílio esperam romper a falange dos adeptos e à admirável unidade que se faz na doutrina.
Esse conflito, embora provocado com má intenção, quer venha ele de homens, quer de maus Espíritos, é, contudo, necessário e deve trazer uma perturbação momentânea nalgumas consciências fracas, e mesmo que cause uma perturbação momentânea em algumas, terá como resultado definitivo a consolidação da unidade. Em todas as coisas não se devem julgar pontos isolados, mas ver o conjunto. É útil que todas as ideias, mesmo as mais contraditórias e as mais excêntricas, venham à luz; elas provocam o exame e o julgamento, e se forem falsas, o bom senso lhes fará justiça: elas cairão forçosamente ante a prova decisiva do controle universal, como já caíram tantas outras. Foi esse grande critério que fez a unidade atual; será ele que a concluirá, porque é o crivo que deve separar o bom do mau grão, e a verdade será mais brilhante quando sair do cadinho, livre de todas as escórias. O Espiritismo ainda está em ebulição; deixemos pois a espuma subir à tona e se derramar e ele apenas ficará mais depurado. Deixemos aos adversários a alegria maligna e pueril de soprar o fogo para provocar essa ebulição porque, sem querer, eles apressam sua depuração e seu triunfo, e eles próprios queimar-se-ão no fogo que acendem. Deus quer que tudo seja útil à causa, mesmo aquilo que é feito com a intenção de prejudicá-la.
Não esqueçamos que o Espiritismo não está acabado. Ele ainda não fez senão plantar balizas, mas, para avançar com segurança, deve fazê-lo gradualmente, à medida que o terreno esteja preparado para recebê-lo e bastante consolidado para nele pôr o pé com segurança. Os impacientes, que não sabem esperar o momento propício, comprometem a colheita, como comprometem a sorte das batalhas.
Entre os impacientes há, sem dúvida, aqueles de muito boa-fé; quereriam ver as coisas irem ainda mais depressa, mas assemelham-se a essas criaturas que julgam adiantar o tempo adiantando o relógio. Outros, não menos sinceros, são levados pelo amor-próprio a chegar primeiro; semeiam antes da estação e só colhem frutos abortados. Ao lado desses, outros há, infelizmente, que empurram o carro por trás, esperando vê-lo tombar.
Compreende-se que certos indivíduos que gostariam de ter sido os primeiros, nos censurem por termos ido tão depressa; que outros, por motivos contrários, nos censurem por avançarmos devagar; mas o que é menos explicável é, por vezes, ver essa dupla censura feita pelo mesmo indivíduo, o que não é prova de muita lógica. Se formos aguilhoados por andarmos pela direita ou pela esquerda, nem por isso avançaremos menos, como temos feito até aqui, na linha que nos é traçada, ao fim da qual está o objetivo que queremos atingir. Iremos para a frente ou esperaremos; apressar-nos-emos ou nos retardaremos conforme as circunstâncias, e não segundo a opinião deste ou daquele.
O Espiritismo marcha a despeito de seus adversários numerosos, que, não tendo podido tomá-lo pela força, tentam tomá-lo pela astúcia; eles se insinuam por toda parte, sob todas as máscaras e até nas reuniões íntimas, na esperança de aí flagrar um fato ou uma palavra que muitas vezes terão provocado e que esperam explorar em seu proveito. Comprometer o Espiritismo e torná-lo ridículo, tal é a tática com cujo auxílio esperam desacreditá-lo a princípio, para mais tarde terem um pretexto para interditar, se possível, o seu exercício público. É a cilada contra a qual é preciso manter-se em guarda, porque está armada por todos os lados, e à qual, sem querer, dão a mão os que se deixam levar pelas sugestões dos Espíritos enganadores e mistificadores.
O meio de evitar essas maquinações é seguir o mais exatamente possível a linha de conduta traçada pela doutrina; sua moral, que é a sua parte essencial, é inatacável; praticando-a, não se dá ensejo a nenhuma crítica fundada e a agressão se torna mais odiosa. Apanhar os espíritas em falta e em contradição com os seus princípios seria uma grande sorte para os seus adversários; assim, vede como se empenham em acusar o Espiritismo de todas as aberrações e de todas as excentricidades pelas quais não podia ser responsável. A doutrina não é ambígua em nenhuma de suas partes; ela é clara, precisa, categórica nos mínimos detalhes; só a ignorância e a má-fé podem enganar-se sobre o que ela aprova ou condena. É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e devotados repudiar e desautorizar abertamente, em seu nome, os abusos de todo gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a responsabilidade; pactuar com os abusos seria tornar-se cúmplice e fornecer armas aos nossos adversários.
Os períodos de transição são sempre difíceis de passar. O Espiritismo está nesse período; atravessá-lo-á com tanto menos dificuldade quanto mais os seus adeptos forem prudentes. Estamos em guerra; aí está o inimigo que espia, prestes a explorar o menor passo em falso em seu proveito e prestes a fazê-lo meter o pé na lama, se puder.
Contudo, não nos apressemos em atirar pedras ou em levantar a suspeita muito levianamente, e em aparências que poderiam ser enganosas. Aliás, a caridade torna a moderação um dever, mesmo para com aqueles que estão contra nós. Contudo, a sinceridade, mesmo em seus erros, tem atitudes de franqueza, com as quais não é possível equívoco, e que a falsidade jamais simulará completamente, porque mais cedo ou mais tarde põe as unhas de fora. Deus e os bons Espíritos permitem que ela se traia por seus próprios atos. Se uma dúvida atravessa o espírito, deve ser apenas um motivo para se manter em reserva, o que pode ser feito sem faltar às conveniências.
Variedades — Carta de Dante ao Sr. Thiers.
Sob este título, lê-se no Charivari de 20 de maio de 1865:
“Florença, 20 de maio de 1865.
“Senhor e caro confrade,
“Eu não podia ficar indiferente às festas que iam celebrar em minha honra, e tendo pedido e obtido uma licença de oito dias, minha sombra veio assistir à inauguração do monumento que me é consagrado. É, pois, de Florença que vos dirijo esta carta, sob a emoção que me causou a cerimônia que acabo de testemunhar. Se tomo esta liberdade, senhor e caro confrade, é porque julgo estar em condições de vos fornecer informações que vos serão de alguma utilidade.
“Embora falecido há cinco séculos, não deixei de continuar a seguir, sempre com a mesma atenção e o mesmo patriotismo, a marcha dos acontecimentos que interessam ao futuro da Itália. De quantas vicissitudes assim tenho sido testemunha, sabeis tão bem quanto eu. De quantas dores meu coração foi sobrecarregado, igualmente podeis fazer uma idéia...”
(Seguem-se longas reflexões sobre os acontecimentos na Itália e as opiniões do Sr. Thiers. Não as reproduzimos pelo duplo motivo de que são estranhas aos nossos objetivos e porque a política está fora dos objetivos deste jornal.) A carta assim termina:
“Se, pois, como me afirmaram, em breve empreendereis uma viagem à Itália, tende a bondade de passar por Florença e vir conversar uns instantes com minha estátua. Ela terá coisas muito interessantes a vos dizer.
“Com esta esperança, senhor e caro confrade, peço-vos aceiteis a certeza de, etc.
“Florença, 20 de maio de 1865.
“Senhor e caro confrade,
“Eu não podia ficar indiferente às festas que iam celebrar em minha honra, e tendo pedido e obtido uma licença de oito dias, minha sombra veio assistir à inauguração do monumento que me é consagrado. É, pois, de Florença que vos dirijo esta carta, sob a emoção que me causou a cerimônia que acabo de testemunhar. Se tomo esta liberdade, senhor e caro confrade, é porque julgo estar em condições de vos fornecer informações que vos serão de alguma utilidade.
“Embora falecido há cinco séculos, não deixei de continuar a seguir, sempre com a mesma atenção e o mesmo patriotismo, a marcha dos acontecimentos que interessam ao futuro da Itália. De quantas vicissitudes assim tenho sido testemunha, sabeis tão bem quanto eu. De quantas dores meu coração foi sobrecarregado, igualmente podeis fazer uma idéia...”
(Seguem-se longas reflexões sobre os acontecimentos na Itália e as opiniões do Sr. Thiers. Não as reproduzimos pelo duplo motivo de que são estranhas aos nossos objetivos e porque a política está fora dos objetivos deste jornal.) A carta assim termina:
“Se, pois, como me afirmaram, em breve empreendereis uma viagem à Itália, tende a bondade de passar por Florença e vir conversar uns instantes com minha estátua. Ela terá coisas muito interessantes a vos dizer.
“Com esta esperança, senhor e caro confrade, peço-vos aceiteis a certeza de, etc.
“Dante Alighieri.”
Por cópia fiel: Pierre Véron.
Duvidamos muito que o Sr. Pierre Véron seja simpático à ideia espírita, a julgar pelos vários artigos que tem publicado a respeito no Charivari. Não se deve, portanto, ver nesta carta mais que um simples produto da imaginação, apropriado à circunstância, a menos que o Espírito de Dante tenha vindo ditá-la sem o conhecimento do autor. Ela é muito espirituosa para que ele não a negue, mas só pode ser apreciada em seu conjunto, pois fracionada perde muito.
Era um pensamento engenhoso fazer intervir, mesmo ficticiamente, o Espírito de Dante nessa ocasião. Salvo pequenos detalhes, um Espírito não teria falado de outro modo. Para nós, não resta dúvida que Dante, a menos que se tenha reencarnado, tenha assistido a essa imponente manifestação, atraído pela poderosa evocação de todo um povo unido num mesmo pensamento. Se, naquele momento, o véu que aos olhos dos encarnados oculta o mundo espiritual tivesse sido levantado, que imenso cortejo de grandes homens teria sido visto, planando no espaço e se misturando à multidão, para aplaudir a regeneração da Itália! Que belo assunto para um pintor ou um poeta inspirado pela fé espírita!
Era um pensamento engenhoso fazer intervir, mesmo ficticiamente, o Espírito de Dante nessa ocasião. Salvo pequenos detalhes, um Espírito não teria falado de outro modo. Para nós, não resta dúvida que Dante, a menos que se tenha reencarnado, tenha assistido a essa imponente manifestação, atraído pela poderosa evocação de todo um povo unido num mesmo pensamento. Se, naquele momento, o véu que aos olhos dos encarnados oculta o mundo espiritual tivesse sido levantado, que imenso cortejo de grandes homens teria sido visto, planando no espaço e se misturando à multidão, para aplaudir a regeneração da Itália! Que belo assunto para um pintor ou um poeta inspirado pela fé espírita!
Allan Kardec.