Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Dezembro

Abri-me! - Apelo de Cárita


Escrevem-nos de Lyon:

“... O Espiritismo, esse grande traço de união entre todos os filhos de Deus, nos abriu um horizonte tão largo, que podemos olhar de um a outro ponto todos esses corações esparsos que as circunstâncias colocaram no oriente e no ocidente, e vê-los vibrar a um só apelo de Cárita. Ainda me lembro da profunda emoção que senti quando, no ano passado, a Revista Espírita nos dava conta da impressão produzida em todas as partes da Europa por uma comunicação desse excelente Espírito. Sem dúvida poder-se-á dizer tudo quanto se queira contra o Espiritismo: é uma prova de que ele cresce, porque geralmente não se atacam as coisas pequenas, mas os grandes efeitos. Ademais, o que são esses ataques senão como a cólera de uma criança que atirasse pedras ao oceano para impedi-lo de roncar? E os detratores do Espiritismo quase não suspeitam que denegrindo a doutrina, eles cobrem todas as despesas de uma propaganda que dá a todos os que a leem vontade de conhecer esse terrível inimigo que tem como palavra de ordem: “Fora da caridade não há salvação...”

Esta carta estava acompanhada da seguinte comunicação, ditada pelo Espírito de Cárita, a eloquente e graciosa pedinte que os bons corações conhecem tão bem.

(Lyon, 8 de novembro de 1865)
“Faz frio, chove, o vento sopra muito forte; abri-me!

“Fiz uma longa caminhada através da região da miséria e retorno com o coração semimorto e as espáduas vergadas ao fardo de todas as dores. Abri-me bem depressa, meus amados, vós que sabeis que quando a caridade bate à vossa porta é que encontrou muitos infelizes em seu caminho. Abri vosso coração para receber minhas confidências; abri a vossa bolsa para enxugar as lágrimas dos meus protegidos e escutai-me com essa emoção que a dor faz subir de vossa alma aos vossos lábios. Oh! vós que sabeis o que Deus reserva, e que muitas vezes chorais essas lágrimas de amor que o Cristo chamava de orvalho da vida celeste, abri-me!... Obrigada! Eu entrei.

“Parti esta manhã. Chamavam-me de todos os lados, e o sofrimento tem a voz tão vibrante que basta um só apelo. Minha primeira visita foi para dois pobres velhos: marido e mulher. Eles viveram ambos esses longos dias em que o pão rareia, em que o sol se esconde, em que o trabalho falta aos braços fortes que o chamam. Eles sepultaram sua miséria no crisol da dignidade, e ninguém pôde adivinhar que muitas vezes o dia transcorria sem trazer seu pão cotidiano. Depois chegou a idade, os membros enfraqueceram, os olhos ficaram velados e o patrão que fornecia trabalho disse: Nada mais tenho para fazer. Entretanto, a morte não veio, e a fome e o frio diariamente são os visitantes habituais da pobre morada. Como responder a essa miséria? Proclamando-a? Oh! não. Há feridas que não se curam arrancando a atadura que as cobre. O que acalma o coração é uma palavra de consolo, dita por uma voz amiga que adivinhou, com sua alma, o que lhe foi oculto aos olhos. Para esses pobres, abri-me!

“E depois vi uma mãe repartir seu único pedaço de pão com os três filhinhos, e como o pedaço era minúsculo, nada guardou para si. Vi o fogão apagado, o leito sem lençóis; vi os membros tiritantes envolvidos em trapos; vi o marido entrar em casa sem ter encontrado trabalho; vi enfim o filho menor morrer sem socorro, porque o pai e a mãe são espíritas e tiveram que sofrer humilhações das obras de beneficência.
“Vi a miséria em toda a sua chaga horrível; vi os corações se atrofiarem e a dignidade extinguir-se sob o verme roedor da necessidade de viver. Vi criaturas de Deus renegarem sua origem imortal, porque não compreendiam a provação. Vi, enfim, o materialismo crescer com a miséria e em vão exclamei:

Abri-me! Eu sou a caridade. Venho a vós com o coração cheio de ternura. Não choreis mais, eu venho vos consolar. Mas o coração dos infelizes não me escutou, pois suas entranhas tinham muita fome!

“Então aproximei-me de vós, meus bons amigos, de vós que me escutastes; de vós que sabeis que Cárita é a mendiga para os pobres e vos disse: Abri-me!

“Acabo de vos contar o que vi em minha longa jornada e vos peço, tende para os meus pobres um pensamento, uma palavra, uma suave lembrança, a fim de que à noite, à hora da prece, eles não adormeçam sem agradecer a Deus, porque vós lhes sorristes de longe. Sabeis que os pobres são a pedra de toque que Deus envia à Terra para experimentar vossos corações. Não os repilais, a fim de que um dia, quando tiverdes transposto o sólio que conduz ao espaço, Deus vos reconheça pela pureza dos vossos corações e vos admita na morada dos eleitos!

CÁRITA”

É com felicidade que nos fazemos intérpretes da boa Cárita e esperamos que ela não tenha dito em vão: Abri-me! Se ela bate à porta com tanta insistência, é que o inverno, por sua vez, também aí bate.


SUBSCRIÇÃO

EM BENEFÍCIO DOS POBRES DE LYON E DAS VÍTIMAS DA CÓLERA

(Aberta no escritório da Revista Espírita)
Este ano uma causa de sofrimento veio juntar-se aos rigores do inverno que avança a passos largos. Sem dúvida, jamais a solicitude da autoridade se mostrou mais inteligente e mais previdente do que nesta última invasão do flagelo, em relação aos atingidos; rapidez e sábia distribuição dos socorros médicos e outros, nada faltou nesse particular. É uma justiça que cada um se apraz em lhe render. Assim, graças às medidas tomadas, sua devastação foi rapidamente circunscrita. Entretanto, ele deixa após si traços cruéis de sua passagem nas famílias pobres, e os mais lastimáveis não são os que sucumbem. É aí sobretudo que se faz necessária a caridade particular.

O montante das somas recebidas e sua distribuição são submetidos ao controle da Sociedade Espírita de Paris.

Os romances espíritas

Por Théophile Gautier - A dupla vista por Éllie Berthet

Quem diz romance, diz obra de imaginação. A própria essência do romance é representar um assunto fictício, quanto aos fatos e personagens. Mas, mesmo nesse gênero de produções, há regras de que o bom-senso não permite afastar-se e que, aliadas às qualidades do estilo, constituem o seu mérito. Se os detalhes não forem verdadeiros em si mesmos, ao menos devem ser verossímeis e de perfeito acordo com o meio onde se passa a ação.

Nos romances históricos, por exemplo, é de rigor a manutenção estrita da cor local, e há anacronismos que não seriam toleráveis. O leitor deve poder transportarse pelo pensamento para o tempo e para os lugares de que se fala e deles fazer uma ideia justa. Aí estava o grande talento de Walter Scott. Lendo-o, encontramo-nos em plena Idade Média. Se ele tivesse atribuído os fatos e gestos de Francisco I a Luís XI, ou mesmo se tivesse feito este e os personagens de sua corte falarem como no tempo da Renascença, o mais belo estilo não poderia tê-lo absolvido de tais erros.

Dá-se o mesmo nos romances de costumes. Seu mérito está na verdade dos quadros, porque seria extremamente ridículo emprestar a um súdito espanhol os hábitos e o caráter dos ingleses.

Para começar, o romance parece ser o gênero mais fácil. Consideramo-lo mais difícil que a História, apesar de ser menos sério. O historiador tem o seu quadro traçado pelos fatos, dos quais não pode afastar-se uma linha; o romancista deve tudo criar; mas muitos pensam que basta um pouco de imaginação e de estilo para fazer um bom romance. É um grave erro: é necessária muita erudição. Para fazer a sua Nossa Senhora de Paris, Victor Hugo devia conhecer sua velha Paris arqueológica tão bem quanto a sua Paris moderna.

Podem fazer-se romances sobre o Espiritismo, como sobre todas as coisas. Dizemos até que quando for conhecido e compreendido em sua essência, ele fornecerá às letras e às artes fontes inesgotáveis de deslumbrante poesia. Mas não seria certamente para os que só o vissem nas mesas girantes, nas cordas dos irmãos Davenport ou nas artes dos charlatães. Como nos romances históricos ou de costumes, é indispensável conhecer a fundo a talagarça sobre a qual se quer bordar, a fim de não produzir contra-sensos, que seriam outras tantas provas de ignorância. Assim se dá com o músico que faz variações sobre um tema que se deve sempre reconhecer através das adições da fantasia. Aquele, pois, que não estudou a fundo o Espiritismo em seu espírito, em suas tendências, em suas máximas, tão bem quanto em suas formas materiais, também é tão inapto para fazer um romance espírita de algum valor, quanto teria sido Lesage para fazer Gil Blas, se não tivesse conhecido a história e os costumes da Espanha.

Para isto é, pois, necessário ser espírita crente e fervoroso? Absolutamente não. Basta ser verídico, e não se pode sê-lo sem conhecimento de causa. Para fazer um romance árabe, certamente não é necessário ser muçulmano, mas é indispensável conhecer bastante a religião muçulmana, seu caráter, seus dogmas e suas práticas, bem como os costumes daí decorrentes, para não fazer os africanos falarem como cavaleiros franceses. Mas há aqueles que acham que é suficiente, para dar o cunho da raça, prodigalizar a torto e a direito os Allah! os nomes de Fátima e de Zulema, pois é quase tudo o que eles sabem do Islamismo. Numa palavra, se não é preciso ser muçulmano, é preciso impregnar-se do espírito muçulmano, como para fazer uma obra espírita, mesmo fantástica, é necessário impregnar-se do espírito do Espiritismo. Enfim, é preciso que, lendo um romance espírita, os espíritas possam reconhecer-se, como os árabes deverão reconhecer-se num romance árabe e poderem dizer: é isto; mas nem uns nem outros reconhecer-se-ão se eles forem deturpados, e o autor terá feito uma obra informe, como se um pintor pintasse damas francesas em trajes chineses.

Essas reflexões nos são sugeridas a propósito do romance-folhetim que neste momento o Sr. Théophile Gautier publica no grande Moniteur, com o título de Espírita. Não temos a honra de conhecer pessoalmente o autor e não sabemos quais são as suas convicções ou seus conhecimentos acerca do Espiritismo. Sua obra, que está no começo, ainda não permite ver a conclusão. Diremos apenas que se ele não encarasse o seu assunto senão de um só ponto de vista, o das manifestações, desprezando o lado filosófico e moral da Doutrina, não responderia à ideia geral e complexa que o seu título abarca, embora o nome Espírita seja o de um de seus personagens. Se os fatos que ele imagina, pela necessidade da ação, não se encerrassem nos limites traçados pela experiência; se os apresentasse como se passando em condições admissíveis, sua obra falsearia a verdade e faria supor que os espíritas creem nas maravilhas dos contos das Mil e Uma Noites. Se ele atribuísse aos espíritas práticas e crenças que estes desautorizam, ela não seria imparcial e, sob tal ponto de vista, não seria uma obra literária séria.

A Doutrina Espírita não é secreta como a da maçonaria. Não tem mistérios para ninguém e se mostra à luz da publicidade. Não é mística nem abstrata nem ambígua, mas clara e ao alcance de todos; nada tendo de alegórico, não pode dar lugar a equívocos nem a falsas interpretações; diz claramente o que admite e o que não admite. Os fenômenos cuja possibilidade reconhece, não são sobrenaturais nem maravilhosos, mas fundados nas leis da Natureza, de sorte que ela não faz milagres nem prodígios. Aquele, pois, que não a conhece, ou que se engana quanto às suas tendências, é porque não se quer dar ao trabalho de conhecê-la. Essa clareza e essa vulgarização dos princípios espíritas, que contam com adeptos em todos os países e em todas as camadas sociais, são a mais peremptória refutação às diatribes de seus adversários, porque não há uma só de suas alegações erradas que não encontre uma resposta categórica. O Espiritismo, portanto, não pode senão ganhar em ser conhecido, e é no que trabalham, sem querer, os que julgam arruiná-lo por ataques desprovidos de qualquer argumento sério. Os desvios da conveniência na linguagem produzem efeito absolutamente contrário ao que se propõem. O público os analisa e não é favorável aos que a tal se permitem. Quanto mais violenta a agressão, tanto mais gente é levada a buscar a verdade, até mesmo nas fileiras da literatura hostil. A calma dos espíritas diante desse levante; o sangue-frio e a dignidade que conservaram em suas respostas, fazem com a acrimônia dos antagonistas um contraste que choca até os indiferentes, e lançaram a incerteza nas fileiras opostas, que hoje registram mais de uma deserção.

O romance espírita pode ser considerado como uma transição passageira entre a negação e a afirmação. É preciso coragem real para enfrentar e desafiar o ridículo que se liga às ideias novas, mas essa coragem vem com a convicção. Mas tarde ─ estamos convencido ─ das camadas dos nossos adversários da imprensa sairão campeões sérios da doutrina.

Quando as tendências da obra do Sr. Théophile Gautier estiverem melhor desenhadas, nós faremos a nossa apreciação do ponto de vista da verdade espírita.

As reflexões acima naturalmente se aplicam às obras do mesmo gênero sobre o magnetismo e o sonambulismo. Ultimamente a dupla vista forneceu ao Sr. Élie Berthet assunto para um romance muito interessante publicado pelo Siècle, e que, ao talento do escritor, alia o mérito da exatidão. Incontestavelmente, o autor deve ter feito um estudo sério dessa faculdade. Para descrevê-la como o faz, é preciso ter visto e observado bem. Contudo, poder-se-ia censurar-lhe um pouco de exagero na extensão que lhe dá, em certos casos. Outro erro, em nossa opinião, é o de apresentá-la como uma doença. Ora, uma faculdade natural, seja qual for, pode coincidir com um estado patológico, mas, por si mesma, não é uma doença, e a prova é que uma porção de pessoas dotadas da dupla vista no mais alto grau, gozam de perfeita saúde. A heroína é aqui uma jovem tuberculosa e cataléptica: eis o seu verdadeiro mal. A faculdade de que ela goza causou infelicidades pelos enganos que se seguiram, razão pela qual ela deplora o dom funesto que recebeu. Mas esse dom só foi funesto por ignorância, inexperiência e imprudência dos que dele se serviram incorretamente. Deste ponto de vista, não há uma só de nossas faculdades que não possa tornar-se um presente funesto, pelo mau uso ou falsas aplicações que dela possam ser feitas.

Feitas estas reservas, diremos que o fenômeno é perfeitamente descrito. Ele descreve judiciosamente essa visão da alma desprendida que não conhece distâncias, que penetra a matéria como um raio de luz penetra os corpos transparentes, e que é a prova patente e visível da existência e da independência do princípio espiritual; judiciosamente descreve também o quadro da estranha transfiguração que se opera no êxtase, dessa prodigiosa lucidez que confunde por sua precisão em certos casos, e que desconcerta pelas ilusões que às vezes produz. Para os personagens do drama, é o quadro mais verdadeiro dos sentimentos que agitam os crentes, os incrédulos, os incertos e os espantados. Há aí um médico que flutua entre o ceticismo e a crença mas, como homem de bom-senso, ele não acredita que a Ciência tenha dito a última palavra. Ele observa, estuda e constata os fatos. Sua conduta durante as crises da moça atesta a sua prudência. Há também o desânimo dos exploradores, que aí são justamente fustigados.

O autor teria feito obra incompleta, se tivesse negligenciado o lado moral da questão. Seu objetivo não é açular a curiosidade com fatos extraordinários, mas deduzir-lhes as consequências úteis e práticas. Entre outros, um episódio prova que ele compreendeu perfeitamente esta parte de seu programa.

A jovem vidente descobre num subterrâneo importantes papéis que devem pôr termo a um grave processo de família. Ela descreve minuciosamente os lugares e as circunstâncias. As escavações, feitas conforme suas indicações, provam que ela viu muito bem. Eles encontram os papéis e o processo é anulado. Notemos, de passagem, que ela fez tal descoberta espontaneamente, solicitada pelo interesse que tem pela família, e não por solicitações. A peça principal consistia de uma carta em estilo antigo, da qual ela faz a leitura textual e completa com tanta facilidade quanto se a tivesse sob os olhos. É aí, sobretudo, que sua faculdade nos parece levada ao exagero.

Mais adiante ela vê um outro subterrâneo, onde estão imensos tesouros, cuja origem explica. Para lá chegar há que atravessar outra caverna, cheia de restos humanos, de numerosas vítimas dos tempos do feudalismo. Até aí, nada que não seja provável; o que absolutamente não é provável é que as almas dessas vítimas aí tenham ficado encerradas há séculos e possam erguer-se ameaçadoras ante os que venham perturbar seu sombrio repouso, à cata de um tesouro. Aí está o fantástico. Se fossem os carrascos, nada haveria de surpreendente. Sabemos, por numerosos exemplos, que tal é, muitas vezes, o castigo temporário dos culpados, condenados a ficar no mesmo lugar e em presença de seus crimes, até que, tocados pelo arrependimento, elevem o pensamento a Deus para implorar sua misericórdia. Mas aqui são as vítimas inocentes que seriam punidas, o que não é racional.

O dono do castelo, velho avarento, atraído pela descoberta dos papéis, quer continuar as escavações. Elas são difíceis, perigosas para os operários, mas nada o detém. A vidente lhe suplica em vão que renuncie; prediz que, se ele persistir, virá a desgraça.

─ Além do mais, acrescenta ela, não o conseguireis.

─ Então esses tesouros não existem? pergunta o velho avaro.

─ Existem tais quais os descrevi, eu garanto; mas, ainda uma vez, lá não chegareis.

─ E quem me impedirá?

─ As almas que estão na caverna que é preciso atravessar.

O velho avarento, cético endurecido, admitia a visão extracorpórea da moça, sem compreender muito bem, porque acabara de ter uma prova disso em seu prejuízo, porquanto os papéis encontrados frustraram suas pretensões no processo, mas ele acreditava mais no dinheiro do que nas forças invisíveis.

Ele continua:

─ Com que direito eles se oporão? Esses tesouros me pertencem, porque estão na minha propriedade.

─ Não. Eles serão um dia descobertos sem dificuldade por aquele que deve desfrutá-los; mas não é a vós que estão destinados. Eis por que não o conseguireis. Repito, se persistirdes, virá a desgraça.

Eis o lado essencialmente moral, instrutivo e verdadeiro do relato. Essas palavras parecem tiradas do Livro dos Médiuns, no artigo sobre o concurso dos Espíritos para a descoberta dos tesouros: “Se a Providência destina tesouros ocultos a alguém, este os encontrará naturalmente, do contrário, não.” (Cap. XXVI, nº. 295). Com efeito, não há exemplo de que Espíritos ou sonâmbulos tenham facilitado semelhantes descobertas, assim como a recuperação de heranças, e todos os que, embalados por essa esperança, fizeram semelhantes tentativas, sofreram muito e gastaram um bom dinheiro. Tristes e cruéis decepções esperam os que baseiam a esperança de enriquecimento por semelhantes meios. Os Espíritos não têm por missão favorecer a cupidez e nos proporcionar riqueza sem trabalho, o que não seria justo nem moral. Sem dúvida o sonâmbulo lúcido vê, mas apenas o que lhe é permitido ver, e os Espíritos podem, conforme as circunstâncias, e por ordem superior, obliterar a sua lucidez, ou pôr obstáculos à realização de coisas que não estão nos desígnios da Providência. No caso de que se trata, foi permitido achar os papéis que deviam pôr um termo às dissensões de família; não foi achar tesouros, que não deviam servir senão para satisfazer a cupidez. Eis por que o velho avarento pereceu, vítima de sua obstinação.

As terríveis peripécias do drama imaginado pelo Sr. Élie Berthet não são tão fantásticas quanto se poderia crer. Elas lembram as mais reais, sofridas pelo Sr. Borreau, de Niort, em pesquisas da mesma natureza, e cujo relato comovente se acha em sua brochura Como e por que me tornei espírita. (Vide nosso relato na Revista de dezembro de 1864).

Uma outra instrução, não menos importante, ressalta do livro do Sr. Élie Berthet. A moça viu coisas positivas, e, em outra circunstância grave, ela se engana, atribuindo um crime a uma pessoa inocente. Que consequência daí tira o autor? A negação da faculdade? Não, pois que, ao lado disto, ele a prova; mas esta conclusão, justificada pela experiência, demonstra que a mais comprovada lucidez não é infalível e que nela não se poderia confiar de maneira absoluta, sem controle. A visão, pela alma, de coisas que o corpo não pode ver, prova a existência da alma. Já é um resultado muito importante. Mas ela não é dada para a satisfação das paixões humanas.

Por que, então, a alma, em seu estado de emancipação, não vê sempre claramente? É que, sendo o homem ainda imperfeito, sua alma não pode gozar das prerrogativas da perfeição. Embora isolada, ela participa das influências materiais, até sua completa depuração. Assim é com as almas desencarnadas ou Espíritos e, com mais forte razão, com as que ainda estão ligadas à vida corporal. Eis o que o Espiritismo ensina aos que se dão ao trabalho de estudá-lo.


Modo de protesto de um espírita contra os ataques de certos jornais

Um de nossos correspondentes escreve-nos o seguinte.

“Eis o que escrevi, há dois anos, ao Sr. Nefftzer, diretor do jornal le Temps:

“Eu era assinante de vosso jornal, cujas tendências e opiniões me eram simpáticas. Assim, é com pesar que cancelei minha assinatura. Permiti vos dê os motivos. Em vosso número de 3 de junho, vos esforçais em ridicularizar o Espiritismo e os espíritas, contando uma história mais ou menos autêntica, sem citar nomes nem data nem lugar, o que é cômodo. Procurais estabelecer, tema hoje obrigatório dos materialistas, incomodados enormemente pelo Espiritismo, que essa crença leva à loucura. Sem dúvida, espíritos fracos, já tendo tendências para um desarranjo das faculdades cerebrais, de fato perderam a cabeça ao se ocuparem do Espiritismo, como lhes teria acontecido sem isto, e como acontece aos que se ocupam de Química, de Física ou de Astronomia, e mesmo a escritores que não acreditam em Espíritos. Também não nego que haja charlatães que exploram o Espiritismo, pois qual é a ciência que está livre do charlatanismo? Não temos charlatães literários, industriais, agrícolas, militares, políticos, sobretudo destes últimos? Mas concluir daí contra o Espiritismo em geral é pouco lógico e pouco sensato. Antes de lançar uma acusação dessa natureza, seria preciso, ao menos, conhecer a coisa de que se fala, mas essa muitas vezes é a menor preocupação de quem escreve. Cortam e decidem a torto e a direito, o que é mais cômodo do que aprofundar e compreender.

“Se já experimentardes grandes desgraças, vivas dores, crede-me, senhor, estudai o Espiritismo; somente nele encontrareis a consolação e as verdades que vos farão suportar vossas mágoas, vossos prejuízos e vossos desesperos, o que valerá mais que o suicídio. O que teríeis a oferecer-nos, melhor do que essa bela e consoladora filosofia cristã? O culto dos interesses materiais, do bezerro de ouro? É talvez o que convém ao temperamento da generalidade dos felizes de hoje, mas outra coisa é necessária para aqueles que não mais querem o fanatismo, a superstição, as práticas ridículas e grosseiras da Idade Média, o ateísmo, o panteísmo e a incredulidade sistemática dos séculos dezoito e dezenove. “Permiti-me, senhor, aconselhar-vos a ser mais prudente em vossas diatribes contra o Espiritismo, porque elas se dirigem hoje, só na França, a cerca de trezentas ou quatrocentas mil pessoas.

“BLANC DE LALÉSIE “Proprietário em Genouilly, perto de Joncy (Saône-et-Loire)”


“Os jornais nos informaram, há poucos dias, da morte do filho único do Sr. Nefftzer. Não sei se essa desgraça o terá feito lembrar-se de minha carta.

“Acabo de dirigir ao Sr. Émile Aucante, administrador do jornal Univers Illustré, a carta seguinte:

“Há dezoito meses sou assinante do Univers Illustré, e desde essa época, quase não há edições em que o vosso cronista, sob o pseudônimo de Gérôme, não tenha julgado útil ocupar sua pena com troças em todos os tons, sobre o Espiritismo e os espíritas. Até agora, esse divertimento, um pouco fastidioso por sua frequência, é muito inocente: o Espiritismo não vai mal por isto. Mas o Sr. Gérôme, sem dúvida percebendo que pouco se inquietam com suas piadas, muda de linguagem e, na edição de 7 de outubro, trata todos os espíritas, em massa, de idiotas. Da piada ele passa à injúria, e não teme insultar milhares de pessoas tão instruídas, tão esclarecidas e tão inteligentes quanto ele, porque elas creem ter uma alma imortal e pensam que essa alma, numa outra vida, será recompensada ou punida, conforme seus méritos ou deméritos. O Sr. Gérôme não tem tais preconceitos. Irra! Sem dúvida ele crê que come, bebe, reproduz sua espécie, nem mais nem menos que meu cachorro ou meu cavalo. Rendo-lhe meus cumprimentos!

“Se o Sr. Gérôme se dignasse receber um conselho, eu me permitiria convidá-lo a só falar de coisas que conhece e a calar-se em relação às que não conhece, ou, ao menos, estudá-las, o que seria fácil com sua alta e incontestável inteligência. Ele aprenderia coisas das quais não faz a menor ideia, como o fato de que o Espiritismo não é senão o Cristianismo desenvolvido, e que as manifestações dos Espíritos, que existiram em todos os tempos, nada acrescentam à doutrina, que não deixa de existir, com ou sem manifestações.

“Mas por que falo de Espíritos a um homem que só acredita no seu, e que talvez ignore se tem uma alma?! Enfim, que o Sr. Gérôme seja envolto na bandeira do materialismo, do panteísmo ou do paganismo ─ este último seria melhor, porque nele ao menos se acreditava na existência da alma e na vida futura ─ pouco importa! Mas que ele saiba, respeitando-se a si mesmo, respeitar a crença de seus leitores. É evidente que não me seria possível continuar dando meu dinheiro para me fazer insultar, e se essas injúrias devessem continuar, eu teria o pesar de deixar de ser vosso assinante...”

O Sr. Lalésie é modesto ao avaliar o número dos espíritas da França em trezentos ou quatrocentos mil. Teria podido dobrar a cifra sem exagero e ainda estaria muito abaixo dos cálculos do autor de uma brochura que pretendia pulverizar-nos e a elevava a 20 milhões. Aliás, um recenseamento exato dos espíritas é coisa impossível, porque eles não estão arregimentados, não formam uma corporação, nem uma filiação, nem uma congregação cujos membros são registrados e podem ser contados.

O Espiritismo é uma crença. Quem quer que creia na existência e na sobrevivência das almas e na possibilidade de relações entre os homens e o mundo espiritual, é espírita, e muitos o são intuitivamente, sem jamais terem ouvido falar de Espiritismo nem de médiuns. É-se espírita por convicção, como outros são incrédulos, por isto, absolutamente não é necessário fazer parte de uma sociedade, e a prova é que nem a milésima parte dos adeptos frequenta reuniões. Para fazer a sua contagem não há nenhum registro a consultar. Seria preciso fazer um inquérito junto a cada indivíduo e lhe perguntar o que pensa. Todos os dias, na conversa, descobrem-se pessoas simpáticas à ideia e que, por isto só, são espíritas, sem que haja necessidade de diploma ou de um ato público qualquer. Seu número cresce diariamente. O fato é constatado por nossos adversários, que reconhecem com pavor que esta crença invade todas as camadas da Sociedade, de alto a baixo da escala. É, pois, uma opinião que hoje deve ser levada em consideração, e que tem de particular que não é circunscrita a uma classe, nem a uma casta ou seita, nem a uma nação ou partido político. Ela tem representantes em toda parte, nas letras, nas artes, nas ciências, na medicina, na magistratura, no fórum, no exército, no comércio, etc.

Na França, o número de espíritas seguramente ultrapassa em muito o dos assinantes de todos os jornais de Paris. É evidente que eles constituem uma parte considerável desses assinantes. É, pois, a esses que lhes pagam que os senhores jornalistas dizem injúrias. Ora, como diz com razão o Sr. de Lalésie, não é agradável dar seu dinheiro para ser ridicularizado e injuriado. Por isso cortou a assinatura dos jornais onde se via maltratado em sua crença, e ninguém deixará de achar lógica sua maneira de agir.

Isto significa que para agradar aos espíritas os jornais devam adotar suas ideias? De modo algum. Todos os dias eles discutem opiniões que não compartilham, mas não injuriam os que as professam. Esses escritores não são judeus, no entanto não se permitem lançar o anátema e o desprezo sobre os judeus em geral, nem a submeter sua crença ao ridículo. Por que isto? Porque, dizem, há que respeitar a liberdade de consciência. Por que, então, não existiria essa liberdade para os espíritas? Não são eles cidadãos como todo mundo? Reclamam eles isenções e privilégios? Eles só pedem uma coisa: o direito de pensar como entenderem. Aqueles que inscrevem em sua bandeira: “Liberdade, igualdade, fraternidade” quereriam então criar na França uma classe de párias?


Como vem o Espiritismo - Vem sem ser procurado

Jovem camponesa - Médium inconsciente

É um fato constatado pela experiência que os Espíritos agem sobre as pessoas mais alheias às ideias espíritas, malgrado seu. Já citamos vários exemplos nesta revista. Não conhecemos um único gênero de mediunidade que não se tenha revelado espontaneamente, mesmo o da escrita. Como aqueles que atribuem todas essas manifestações ao efeito da imaginação ou da charlatanice explicarão o fato seguinte?

A pequena aldeia de E..., no departamento de Aube, até os últimos tempos tinha sido muito favorecida, neste tempo de epidemia moral, por ser preservada do flagelo do Espiritismo. O próprio nome dessa obra satânica jamais havia ferido o ouvido de seus pacíficos habitantes, sem dúvida porque o cura do lugar não tinha decidido pregar contra. Mas quem conta sem seu hóspede conta duas vezes; ele não devia contar com a ausência dos Espíritos, que não precisam de licença. Eis o que aconteceu, há uns quatro meses.

Na aldeia há uma jovem de dezessete anos, quase iletrada, filha de um pobre e honesto cultivador e que, ela própria, vai diariamente trabalhar nos campos. Um dia, voltando à sua cabana, foi tomada de completa perturbação; depois, ela que não escrevia desde que saíra da escola, teve a ideia de escrever. Escrever o que? Não sabia nada, mas queria escrever. Uma outra ideia, não menos bizarra, lhe veio à mente, a de procurar um lápis, embora bem soubesse que não havia nenhum em sua cabana, não mais que a menor folha de papel.

Enquanto procurava se dar conta da incoerência de suas ideias e se esforçava por descartá-las, avistou na lareira um tição apagado; sentiu-se irresistivelmente atraída para apanhá-lo, depois guiada por uma força invisível para a parede caiada. De repente o braço ergueu-se maquinalmente e traçou na parede, em caracteres bem legíveis, esta frase: “Arranja papel e penas e deles te servirás para te corresponderes com os Espíritos.”

Coisa singular, embora jamais tivesse ouvido falar de manifestações de Espíritos, não ficou surpreendida com o que acabava de se passar. Deu conhecimento a seu pai, que falou com um de seus amigos, humilde camponês como ele, mas dotado de grande perspicácia. Esse amigo veio com prudência verificar o fato; depois, como um espírita experimentado, embora tão ignorante do assunto quanto a moça, ele fez perguntas ao Espírito que se tinha manifestado e que assina o nome de um general russo. Este último os convidou a se dirigirem aos espíritas de Troyes para obter instruções mais completas, o que fizeram. Desde então a moça é médium escrevente, e além disso obtém efeitos físicos muito notáveis. Formou-se um grupo espírita na aldeia, e eis como o Espiritismo vem, queiram ou não queiram, sem ser procurado.

A carta de nosso correspondente relatando este fato termina dizendo: “Não poderíamos dizer que quanto mais os trocistas se empenham em enganar a si próprios, tanto mais a Providência, como que para confundi-los, faz diariamente jorrarem as manifestações que desafiam todas as negações e todas a interpretações da incredulidade?”

A Sociedade de Paris recebeu, a respeito, a comunicação seguinte:

(Sociedade de Paris, 27 de novembro de 1865 – Médium Sr. Morin)

O poder de Deus é infinito e se serve de todos os meios para fazer triunfar uma doutrina que está em tudo. Passou-se aqui um duplo fenômeno cuja explicação tentarei dar-vos.

A jovem camponesa foi subitamente envolvida por um fluido poderoso que a levou a abandonar momentaneamente as suas ocupações diárias. Antes da manifestação do fenômeno, houve a preparação da paciente, que foi magnetizada e trazida, pela vontade do Espírito, a procurar um instrumento que sabia que não existia em sua casa. Quando se curvava na lareira, para retirar um carvão que devia substituir o lápis ausente, ela apenas executava um movimento que lhe era suscitado pelo Espírito. Não era o seu instinto nem a sua inteligência que agia, mas o próprio Espírito que se servia da jovem como de um instrumento adequado ao seu fluido. Até aí ela não era, a bem dizer, médium; só depois do primeiro aviso escrito por ela é que ela tornou-se realmente médium, e não foi mais dominada pelo Espírito que a forçava a agir. A partir desse momento, a mediunidade tornou-se semi-mecânica, isto é, ela sabia e compreendia o que escrevia, mas não teria podido explicá-lo verbalmente. Além disto, os efeitos físicos se mostraram com tal força, que toda ideia de charlatanice devia ser afastada. Nada tinha vindo demonstrar essa aptidão para os efeitos físicos, antes dos primeiros fenômenos. Se esses efeitos tivessem sido os primeiros a revelar a mediunidade, poderiam ter sido desnaturados pela superstição. O homem que, como um espírita consumado, fazia as perguntas ao Espírito era, ele próprio, conduzido por uma força da mesma natureza daquela que impelia o médium a escrever. Essa força, cuja origem ele não podia compreender, duplicava o seu poder evocador, unindo ao seu desejo de saber a lembrança das baladas supersticiosas que faziam falar e aparecer as almas dos mortos. Só um estudo sério dos princípios da Doutrina pode dar a compreender a esses novos adeptos o lado real, positivo e natural da coisa, afastando o que aí pudessem ver de sobrenatural e maravilhoso.

Eis, pois, os dois principais atores desses fatos, que malgrado seu, representaram o seu papel. No que se passou, eles serviram de instrumentos tanto mais poderosos quanto mais ignorantes e mais isentos de ideias preconcebidas.

Vedes, meus amigos, que tudo concorre para fazer resplandecer a luz, e que os mais iletrados podem dar lições aos mais sábios.

O GUIA DO MÉDIUM

Um camponês filósofo

Decididamente, o Espiritismo invade o campo. Os Espíritos querem provar sua existência tomando seus instrumentos em toda parte, mesmo fora do círculo dos adeptos, o que destrói toda suposição de conivência. Acabamos de ver a Doutrina implantada numa pequena aldeia de Aube, entre simples cultivadores, por uma manifestação espontânea. Eis um fato ainda mais admirável, sob outro ponto de vista. Nosso colega, Sr. Delanne, escreve-nos o que segue:

“...Durante as poucas horas que passei na aldeia onde educam o meu filho, um vinhateiro me deu duas brochuras que havia publicado sob este título: Ideias filosóficas naturais e espontâneas sobre a existência em geral, a partir do princípio absoluto até o fim dos fins, da causa primeira até o infinito, por Chevelle pai, de Joinville (Haute-Marne): A primeira tem por objeto Deus, os anjos, a alma do homem, a alma animal ou instintiva; a segunda: as forças físicas, os elementos, a organização, o movimento[1].

“Conforme esse título pomposo e os graves assuntos que abarca, pensareis tratar-se de um homem que se debruçou sobre os livros a vida inteira. Desenganaivos, pois esse filósofo metafísico é um humilde artesão, um verdadeiro filósofo de tamancos, pois vai, pelas aldeias, vender legumes e outros produtos agrícolas.” Eis algumas passagens de seu prefácio:

“Empreendi esta obra porque pensei que seria de alguma utilidade para o público. O homem se deve aos seus semelhantes; sua condição não é viver isolado, e a Sociedade tem direito de reclamar de cada indivíduo o compartilhamento de seus conhecimentos; o egoísmo é um vício intolerável.

“A obra é inteiramente minha; não fui ajudado nem secundado por ninguém; nada copiei de ninguém; é o fruto das meditações de toda a minha vida... Numerosas dificuldades se opuseram à execução de meus propósitos, mas não as dissimulei. Para mim, a miséria era a pior de todas; ela me impedia de agir, não me deixando tempo livre; sempre a suportei sem me lamentar; eu tinha aprendido o segredo de viver feliz sem fortuna, e esse segredo é sempre meu maior recurso.

“...Dei a conhecer as minhas ideias, porque as escrevi à medida que me vieram, naturalmente e espontaneamente, à medida que me vieram pela reflexão e pela meditação.

“...Em filosofia não se demonstram todas as existências por cálculos matemáticos; não medimos os Espíritos com um metro e não os observamos no microscópio.

“...Não se deve esperar encontrar em meu livro um estilo elevado, extremamente brilhante. Não fiz cursos; apenas fui à escola de minha aldeia. Quando a gente tinha aprendido as preces em latim e recitava bem o catecismo, era considerado bastante instruído.

“...Naqueles tempos, éramos considerados extremamente sábios quando sabíamos fazer as quatro operações; vinham procurar-nos para medir os campos. Aos dez anos eu era o primeiro da escola e meu velho pai sentia-se glorioso ao ver que me vinham procurar para definir o lugar onde deviam plantar um marco, ou para escrever um bilhete ou um recibo.

“Tenho, pois, o direito de pedir desculpas aos leitores, pela trivialidade de minha linguagem. Não aprendi as regras de retórica e creio que o título que convém à minha obra é: Ideias naturais.

“Íamos à escola desde o dia de Todos os Santos até a Páscoa e ficávamos em férias da Páscoa até o dia de Todos os Santos. Mas como meu pai, por mais pobre que fosse, não tinha receio de gastar alguns vinténs para me comprar livros, eu aprendia muito mais com eles nas férias, e deles não me esquecia nos meses de aula.”

Eis agora alguns fragmentos do capítulo sobre Deus:

“Deus é o único que pode dizer: Eu sou aquele que é. Ele é um e é tudo; tudo existe dele, nele e por ele, e nada pode existir sem ele e fora dele. Ele é uno e não obstante produziu o múltiplo e o divisível, um e outro ao infinito... Se eu pudesse bem definir Deus, eu seria deus, mas não pode haver dois.

“Deus é um todo infinito, indivisível, eterno, imutável; não tem limites no pequeno nem no grande... Um minuto e cem mil anos ou cem mil séculos são a mesma coisa para Deus; a eternidade não admite partilha; para ele não há passado nem futuro, é um eterno presente; para Deus, o passado ainda é e o futuro já é; ele vê todos os tempos de uma vez; não há ontem nem amanhã, e ele disse, falando de seu filho: Eu vos gerei hoje.

“A eternidade não se mede, como não se mede o infinito do espaço; são dois abismos onde só podemos chegar pela abstração e aí nos perderíamos se quiséssemos penetrá-los; são florestas virgens sem trilhas. Em lá chegando, somos forçados a parar.

“Deus não pode dispensar-se de criar. Ele seria apenas um Deus sem ação se não criasse, e sua glória seria apenas para si próprio. Monotonia impossível. Deus cria eternamente e o começo da criação, tomado no infinito, deve continuar ao infinito.

“...Era preciso que ele criasse inteligências livres, porque, qual seria a existência dos seres que pensam, se lhes não fosse permitido pensar livremente? Onde estaria a glória de Deus se suas criaturas não fossem livres para emitir uma opinião sobre ele? Seria o mesmo que ter ficado só; a adoração que elas lhe teriam rendido não teria passado de uma quimera, uma comédia dirigida por ele e para ele. Ele teria sido o único ator e o único espectador.

“Para a glória de Deus, então, era uma necessidade absoluta que as inteligências fossem criadas absolutamente livres, que tivessem o direito de julgar seu autor, de se conduzir, no bem ou no mal, como quisessem. Era preciso que o mal fosse permitido para que o bem existisse; é impossível que um seja conhecido sem que se veja o outro.

“Mas, ao mesmo tempo que Deus dá o livre-arbítrio às inteligências, também lhes dá esse foro íntimo, esse sentimento intelectual de sua liberdade de pensar, esse ato do espírito livre que chamamos de consciência, tribunal individual que adverte cada existência livre do valor de sua ação. Ninguém faz o mal sem o saber; só a vontade faz o pecado.

“Também temos razões para presumir que os Espíritos ou anjos têm qualquer participação no governo universal, pois foi recebido como dogma de fé que os homens são guardados pelos anjos e que cada um de nós tem seu anjo de guarda.

“As inteligências, ou Espíritos desprendidos da matéria, portanto, podem ter, às vezes, influência sobre o espírito do homem. Quantas pessoas tiveram revelações que se realizaram: testemunham Joana d’Arc e tantas outras de que falam os livros de história que li e que podemos encontrar. Mas a memória não me basta para lhes citar as passagens, e não necessito buscar alhures, senão em mim mesmo.

“Quando minha irmã mais velha morreu de cólera em Midrevay (Vosges), eu não tinha ouvido falar na existência da cólera naquele momento em parte alguma. Não tinha a menor ideia de que minha irmã estivesse doente; eu a tinha visto mais saudável que nunca e, assim, não tinha qualquer motivo para me preocupar com ela. Eu a vi em sonho vir dizer-me, em minha casa em Joinville: ‘Nosso José, venho dizerte que morri; sabes que sempre te amei muito e quis, eu mesma, trazer-te a notícia de minha volta ao outro mundo.’ No dia seguinte o carteiro me trouxe uma carta anunciando a morte de minha irmã. “Recebendo a carta tarjada de negro, eu disse a minha mulher: ‘Sabes do sonho que te contei ontem, e talvez aqui esteja a realidade.’ Eu não me enganava.

“Tive várias vezes, não dormindo, mas bem desperto, trabalhando, visões às quais não dei atenção senão quando se realizaram, mesmo muito tempo depois. Isto me aconteceu umas três ou quatro vezes no curso de minha vida; delas só me lembro vagamente, mas tenho certeza. Não sou o único que tive revelações mentais; outros provarão que tenho razão, e isso talvez já tenha sido provado.

“A alma animal não pode ser senão individual e, por consequência, indecomponível, portanto, a alma animal não morre. Já pensaram nela antes de mim, e foi isto que deu lugar à doutrina da metempsicose. Se existe a metempsicose, não poderia ser senão entre os indivíduos da mesma espécie: a alma vital ou animal de um mamífero não pode passar para uma árvore.

“Pelo que é a inteligência humana, é impossível que ela passe ao corpo animal. Ela aí não poderia agir. A constituição física do animal não pode servir de habitação à inteligência humana, embora tenham assegurado que demônios se uniram e possuíram animais. Não posso crer que em semelhantes organizações eles possam fazer algo de razoável; não lhes seria possível falar; eles não poderiam aniquilar o instinto, que agiria sempre, bom grado, malgrado; é uma das leis estabelecidas pelo Criador; elas seriam indignas dele se fosse possível derrogá-las, se fosse possível mudá-las. Os feixes de nervos, ou, como dissemos acima, as estações telegráficas dessa espécie, não podem ser dirigidas pela inteligência.

“Nestes últimos tempos tem-se falado muito do Espiritismo; algumas pessoas me dizem que este capítulo tem muitas relações com ele, mas se assim é, é por puro acaso, pois é uma obra que jamais li e da qual jamais ouvi dizer uma só frase.”


Eis agora as reflexões do autor sobre a Criação:

“Todos os geólogos, todos os naturalistas estão de acordo que os dias de Deus não eram como os nossos, que são regulados pelo Sol. Com efeito, os dias de Deus na Criação não podiam ser regulados pelo Sol, porque, segundo os textos das Escrituras Sagradas, o Sol ainda não tinha sido criado, ou não aparecia; daí a palavra que nas Santas Escrituras, na linguagem em que elas foram escritas, significa dias como significa tempo. Assim, o erro bem pode ser dos tradutores, que poderiam ter dito em seis tempos, em vez de em seis dias; além disto, por que quereríamos fazer os dias de Deus tão curtos quanto os nossos, se ele é eterno?

“Não que eu queira dizer que Deus não pudesse ter criado o mundo em seis dias de vinte e quatro horas cada um, quando cada um desses dias valesse centenas de milhares dos nossos anos. Se eu quisesse entendê-lo assim, estaria em contradição comigo mesmo, porque, em meu primeiro volume, eu disse que um minuto, cem mil anos ou cem mil séculos são a mesma coisa para Deus.

“Mesmo que Deus não tivesse utilizado senão um dia para cada criação indicada na Gênese, entre cada um desses dias talvez houvesse milhões de anos e mesmo séculos.

“Quando examinamos as camadas da Terra e como foram formadas, chamamos essas diferentes revoluções de épocas. As provas físicas aí estão, pois esses depósitos não ocorreram em vinte e quatro horas.

“Querem tomar muito ao pé da letra o texto das Sagradas Escrituras; elas são verdadeiras, mas é preciso saber compreendê-la. Não se trata de fazer como aqueles israelitas que se deixariam enforcar, não ousando defender-se porque era dia de sábado; se me quisessem matar num domingo, eu não esperaria a segunda-feira para me defender. É apenas para nós que a semana tem sete dias; Deus não tem senão um dia, e esse dia não tem começo nem fim. Para o nosso bem, ele quer que repousemos um dia por semana, mas ele não repousa, ele nunca não dorme, sua ação é incessante.

“Nossos dias não passam do aparecimento e o desaparecimento do outro que nos ilumina. Quando o Sol se põe para nós, levanta-se para outros povos. Em todas as horas do dia ou da noite ele se levanta, brilha no seu zênite ou se deita. E quando as neves, os gelos e a garoa nos fazem ficar ao pé do fogo, há outros povos que colhem flores e frutas. E depois, não existe apenas um mundo, apenas um Sol[2]; todas as estrelas que vemos são sóis que clareiam mundos como o nosso, e talvez mais perfeitos que o nosso. Deus é o autor de todos esses mundos e de muitos outros que não vemos; portanto, os seis dias da criação são seis épocas que duraram mais ou menos tempo, e que foram chamados dias para se porem ao alcance de nossa maneira de ver.”

Lemos com atenção as duas brochuras do pai Chevelle, e certamente deveríamos contradizê-lo em vários pontos, mas as citações que acabamos de fazer não deixam de revelar ideias de alto alcance filosófico e que não são desprovidas de um certo caráter de originalidade. Sua obra é uma pequena enciclopédia, porque ele ali trata um pouco de tudo, mesmo de coisas usuais.

Ele anuncia para mais tarde um Manual do Herborista Médico, ou Tratamento das doenças pelo emprego de plantas medicinais indígenas.

De onde lhe vêm todas essas ideias? Sem dúvida ele leu: isto é evidente, mas sua posição não lhe permitia ler muito e, aliás, era-lhe necessária uma aptidão especial para aproveitar essas leituras e tratar de assuntos tão abstratos. Vimos poetas naturais saírem da classe operária, mas é mais raro vermos saírem metafísicos sem estudos prévios, e ainda menos da classe dos camponeses. O pai Chevelle apresenta, no seu gênero, um fenômeno análogo ao desses pastores calculistas que venceram a Ciência. Não está aí um sério assunto de estudo? São fatos. Ora, como todo efeito tem uma causa, os sábios procuraram esta causa? Não, porque teria sido preciso sondar as profundezas da alma. Mas, e os filósofos espiritualistas? Falta-lhes a única chave que lhes podia dar a solução.

A esta pergunta, o ceticismo responde: Bizarria da Natureza; resultado da organização cerebral. O Espiritismo diz: Inteligências largamente desenvolvidas em existências anteriores e que, nada tendo perdido do que aprenderam, se refletem na existência atual, servindo essa aquisição de base a novas aquisições. Mas, por que essas inteligências, que devem ter brilhado numa esfera social elevada, estão hoje relegadas às classes mais inferiores? Outro problema não menos insolúvel sem a chave fornecida pelo Espiritismo. Ele diz que são provas ou expiações voluntárias escolhidas por essas mesmas inteligências que, em vista de seu adiantamento moral, quiseram nascer num meio ínfimo, seja por humildade, seja para adquirir conhecimentos práticos que lhes serão proveitosos em outra existência. A Providência permite que assim seja para sua própria instrução e para a dos homens, pondo estes no caminho da origem das faculdades pela pluralidade das existências.

Tendo sido relatados estes fatos na Sociedade Espírita de Paris, deram lugar à seguinte comunicação:


(Sociedade de Paris, 10 de novembro de 1865. ─ Médium: Sra. Breul.

Meus caros amigos, na leitura feita por vosso presidente, de diversos fatos relatados por vosso irmão Delanne, vistes que um notável trabalho filosófico foi posto à luz por um simples campônio dos Vosges. Não é aqui o lugar para constatar quantos prodígios se realizam neste momento para chocar os incrédulos e os sábios do mundo; para confundir esses homens que julgam ter o monopólio da Ciência e nada querem admitir fora de suas estreitas concepções, limitadas pela matéria?

Sim, neste tempo de preparação para a revolução humanitária que os Espíritos do Senhor devem realizar, pode-se, cada vez mais, reconhecer a verdade destas palavras do Cristo, que os homens pouco compreenderam: “Eu vos dou graças, meu Pai, por terdes ocultado essas coisas aos sábios e poderosos e por tê-las revelado aos humildes e aos pobres de Espírito.”

Quando digo sábios, não falo desses homens modestos que, infatigáveis pioneiros da Ciência, fazem a Humanidade avançar, desvelando-lhe as maravilhas que revelam a bondade e o poder do Criador, mas falo daqueles que, enfatuados de seu saber, acreditam simplesmente que não pode existir aquilo que eles não descobriram, patrocinaram e publicaram. Esses serão castigados em seu orgulho, e Deus já permite que sejam confundidos pela superioridade dos trabalhos intelectuais que saem da pena de homens que estão longe de usar o barrete de doutor.

Como ao tempo do Cristo, que quis honrar e erguer o trabalhador escolhendo nascer entre artífices, os anjos do Senhor agora recrutam seus auxiliares entre os corações simples e honestos e entre os homens de boa vontade que exercem as mais humildes profissões.

Compreendei, pois, amigos, que o orgulho é o maior inimigo do vosso adiantamento, e que a humildade e a caridade são as únicas virtudes que agradam a Deus e atraem para o homem esses divinos eflúvios que o ajudam a progredir e a dele aproximar-se.

LUÍS DE FRANÇA


[1] Duas brochuras grandes in-12; preço 1 franco cada, com o autor, em Joinville (Haute-Marne); em Bar-le-Duc, com Numa Rolin. O autor anuncia que completará o trabalho com cinco outras brochuras, que farão, ao todo, um volume.


[2] Na versão francesa: Só existe um mundo, um Sol, evidente falha no texto original. (Nota do Revisor)



Espíritos de dois sábios incrédulos a seus antigos amigos da terra

Quando os mais incrédulos e obstinados transpõem o sólio da vida corporal, são forçados a reconhecer que continuam vivos; que são Espíritos, porquanto não são mais carnais e que, consequentemente, há Espíritos; que esses se comunicam com os homens, pois eles mesmos o fazem. Mas a sua apreciação do mundo espiritual varia em razão de seu desenvolvimento moral, de seu saber ou sua ignorância, da elevação ou abjeção de sua alma. Os dois Espíritos de que falamos, em vida pertenciam à classe dos homens de ciência e de alta inteligência. Ambos eram fundamentalmente incrédulos, mas, homens esclarecidos, sua incredulidade tinha como contrapartida eminentes qualidades morais. Assim, uma vez no mundo dos Espíritos, prontamente encararam as coisas em seu verdadeiro ponto de vista e reconheceram o seu erro. Sem dúvida, nisto nada há de extraordinário e que não vejamos todos os dias, e se publicamos suas primeiras impressões, é em razão do seu lado eminentemente instrutivo. Um e outro morreram há pouco tempo. O primeiro, o Sr. M. L..., era cirurgião do Hospital B... e cunhado do Sr. A. Véron, membro da Sociedade Espírita de Paris. O segundo, Sr. Gui..., era um sábio economista, intimamente conhecido do Sr. Colliez, outro membro da Sociedade.

Inutilmente o Sr. Véron havia tentado trazer seu cunhado às ideias espiritualistas; depois de morto, ele foi mais acessível às suas instruções, e eis uma das primeiras comunicações dele recebidas.

(Paris, 5 de outubro de 1865 ─ Médium: Sr. Desliens)

Meu caro cunhado, considerando-se que estamos, por assim dizer, na intimidade, e que não temo tomar o lugar de alguém que vos pudesse ser mais útil do que eu, pois me solicitastes, atendo com prazer ao vosso apelo.

Não espereis, desde hoje, ver-me desdobrar todas as minhas faculdades espirituais. Sem dúvida eu poderia tentá-lo, e talvez com mais sucesso do que quando era vivo, mas a minha presunção orgulhosa está muito longe de mim, e se eu me julgava uma sumidade na Terra, aqui sou muito pequeno. Quanta gente que eu desdenhava e cuja proteção e ensinamentos me sinto feliz por encontrar hoje! Os ignorantes daqui de baixo são muitas vezes os sábios lá do alto, e quanto a nossa Ciência, que julga tudo saber e nada quer admitir fora de suas decisões, é ilusória e limitada!

Ó orgulho humano! Por quanto tempo ainda, por força do hábito, permanecerás nesta Terra onde, depois de tantos séculos, o espírito de rotina entrava o progresso em sua marcha incessante? “Não conheço um fato; ele está fora de meus conhecimentos, portanto não existe.” Tal é o nosso raciocínio aqui em baixo. É que, se o admitíssemos, ou se pelo menos estudássemos esse fato, resultado de leis desconhecidas, teríamos que renunciar a sistemas errôneos apoiados em grandes nomes que constituem nossa glória e, ainda pior, teríamos que concordar que estávamos enganados.

Não, nós, outros negadores, encontramos um Galileu universal que nos vem dizer: Eu sou Espírito, estou vivo, fui homem, e, homens vós mesmos, fostes Espíritos e vos tornareis como eu, até que, por uma série de encarnações, vos tereis depurado para subir outros degraus da escada infinita dos mundos... E nós negamos!

Mas, como dizia Galileu, após suas retratações: “E contudo ela se move!”, o Espiritismo nos vem dizer: “E contudo os Espíritos aí estão; eles se manifestam, e nenhuma negação poderia derrubar um fato.” O fato brutal existe; nada se pode contra ele. O tempo, esse grande instrutor, fará justiça de tudo, varrendo uns, instruindo os outros. Sede dos que se instruem.

Eu fui ceifado na idade madura do meu orgulho e sofri a pena de minhas negações. Evitai minha queda, e que minhas faltas sejam proveitosas aos que imitam meu raciocínio passado, para evitar o abismo das trevas de onde vossos cuidados me retiraram.

Vede, ainda há perturbação em minha linguagem. Mais tarde poderei falar-vos com mais lógica. Sede indulgentes para com a minha juventude espiritual.

M... L...

Antes de ser lida esta comunicação na Sociedade de Paris, o Espírito comunicou-se espontaneamente, ditando o que segue.


(Sociedade de Paris, 20 de outubro de 1865. ─ Médium: Sr. Desliens)

Caro senhor Allan Kardec, permiti que um Espírito que os vossos estudos levaram a considerar a existência, o ser e Deus sob seu verdadeiro ponto de vista vos testemunhe o seu reconhecimento. Nesta Terra, ignorei vosso nome e os vossos trabalhos. Talvez se me tivessem falado de um e dos outros, eu tivesse exercido a seu respeito a minha veia trocista, como costumava, em todas as coisas tendentes a provar a existência de um espírito distinto do corpo. Então eu era cego. Perdoai-me. Hoje, graças a vós, graças aos ensinamentos que os Espíritos espalharam e vulgarizaram por vossa mão, sou um outro ser, tenho consciência de mim mesmo, e vejo o meu destino. Quanto reconhecimento não vos devo, a vós e ao Espiritismo!!! ─ Quem quer que me tenha conhecido e leia hoje o que é a expressão do meu pensamento exclamará: “Este não pode ser aquele que conhecemos, aquele materialista radical que nada admitia fora dos fenômenos brutos da Natureza.” Sem dúvida; entretanto, sou eu mesmo.

Meu caro cunhado, a quem devo sinceros agradecimentos, diz que cheguei a bons sentimentos em pouco tempo. Agradeço-lhe a amenidade a meu respeito, mas, sem dúvida ele ignora quão longas são as horas de sofrimento resultantes da inconsciência da própria existência!!! Eu acreditava no nada e fui punido por um nada fictício. Sentir-se e não poder manifestar-se; julgar-se disseminado em todos os restos esparsos da matéria que forma o corpo, tal foi minha posição durante mais de dois meses!... dois séculos!... Ah! As horas do sofrimento são longas e se não se tivessem ocupado em me tirar dessa má atmosfera de niilismo, se não me tivessem constrangido a vir a estas reuniões de paz e de amor, onde eu não compreendia, não via e nada entendia, mas onde fluidos simpáticos agiam sobre mim e me despertavam pouco a pouco de meu pesado torpor espiritual, onde estaria eu ainda? Meu Deus!... Deus!... Que doce nome a pronunciar por quem foi por tanto tempo obstinado em negar esse pai tão grande e tão bom! Ah! meus amigos, moderai-me, porque hoje só uma coisa temo: é tornar-me fanático dessas crenças que eu teria repelido como vis engodos, se outrora tivessem vindo ao meu conhecimento!...

Nada direi hoje sobre os trabalhos de que vos ocupais; ainda estou muito novo, muito ignorante para ousar aventurar-me em vossas sábias dissertações. Já o sinto, mas ainda não sei. Dir-vos-ei apenas isto, porque isto eu sei: Sim, os fluidos têm uma influência enorme como ação curadora, se não corporal, de que nada sei, pelo menos espiritual, porque experimentei a sua ação. Eu vos disse e repito com felicidade e reconhecimento: eu ia, constrangido por uma força invencível, sem dúvida a de meu guia, às reuniões espíritas. Eu nada via, eu nada entendia, entretanto, uma ação fluídica que eu não podia compreender, curou-me espiritualmente.

Agradeço penhoradamente a todos aqueles que adquiriram direitos eternos ao meu reconhecimento, tirando-me do caos onde eu havia caído, e vos peço, meus amigos, a bondade de me permitir vir assistir em silêncio às vossas sábias assembleias, mais tarde pondo minhas fracas luzes científicas à vossa disposição.

M... L...


Pergunta. ─ Poderíeis dizer-nos, com a assistência do vosso guia, como tão prontamente pudestes reconhecer vossos erros terrenos, ao passo que bom número de Espíritos, a que não se poupa assistência espiritual, ficam tanto tempo sem compreender os conselhos que lhes são dados?

Resposta. ─ Caro senhor, agradeço-vos a pergunta que tivestes a bondade de me dirigir, e que julgo poder resolver eu mesmo, com a assistência de meu guia.

Sem dúvida podeis ver uma anomalia em minha transformação, pois que, como dizeis, há seres que, malgrado todos os sentimentos que agem em seu favor, levam muito tempo sem permitir que se abram seus olhos. Não querendo abusar de vossa benevolência, dir-vos-ei em poucas palavras:

O Espírito que resiste à ação dos que agem sobre ele, é novo em relação às noções morais. Pode ser um indivíduo instruído, mas completamente ignorante em relação à caridade e à fraternidade, numa palavra, despido de espiritualidade. É-lhe necessário compreender a vida da alma que, mesmo no estado de Espírito, era rudimentar, para ele. Para mim foi completamente diferente. Digo-vos que sou velho, em relação à vossa vida, embora muito novo na eternidade. Eu tive noções de moral; eu acreditava na espiritualidade, que em mim ficou latente, porque um de meus pecados capitais, o orgulho, necessitava dessa punição.

Eu, que tinha conhecimento da vida da alma numa existência anterior, fui condenado a deixar-me dominar pelo orgulho e a esquecer Deus e o princípio eterno que residia em mim... Ah! Crede-o, só há uma espécie de cretinismo, e o idiota que, conservando sua alma, não pode manifestar sua inteligência, é talvez menos lamentável que aquele que, possuindo toda a sua inteligência, cientificamente falando, perdeu sua alma por algum tempo. É um idiotismo truncado, mas muito penoso.

M... L.


O outro Espírito, Sr. Gui..., manifestou-se espontaneamente à Sociedade no dia da sessão especial comemorativa dos mortos. O Sr. Colliez, que o havia conhecido pessoalmente, como dissemos, tinha-se limitado a inscrevê-lo na lista dos Espíritos recomendados às preces. Se bem que suas opiniões fossem completamente diversas das que tinha em vida, o Sr. Colliez o reconheceu pela forma da sua linguagem e antes que fosse lida a sua assinatura, ele tinha dito que deveria ser o Sr. Gui...


(Sociedade de Paris, 1º de novembro de 1865 Médium: Sr. Leymarie)

Senhores... Permiti-me empregar esta expressão comum, mas pouco fraterna. Sou um recém-chegado, um recruta não esperado, e sem dúvida meu nome jamais feriu ouvidos espíritas fervorosos. Não obstante, nunca é tarde demais, e quando cada família chora um ausente amado, venho a vós para vos exprimir meu arrependimento muito sincero.

Cercado de voltairianos, vivendo e pensando como eles, trazendo conforme a necessidade o meu óbolo e o meu trabalho para a propagação das ideias liberais e progressistas, acreditei agir corretamente, porque todo mundo fala, mas nem todos agem. Eu, portanto, agi, e vos peço que não esqueçais os homens de ação. Em sua esfera, eles sacudiram esse torpor de tantos séculos, que por assim dizer tinha velado o futuro. Rasgando o véu, nós também tínhamos enxotado a noite, o que é muito, quando o inimigo intolerante está à porta e busca pintar de preto cada raio de luz. Quantas vezes procuramos em nós mesmos a solução desta questão: “Ah! Se os mortos pudessem falar!” Reflexão profunda, absorvente, que nos matava na idade das desilusões, quando todo homem marcado por um acaso aparente se torna uma luz na multidão.

A família está aí!... Jovens frontes cândidas demandam nossos beijos de esperança, e nada podemos dar, porque essa esperança nós a selamos sob uma grande pedra muito fria, que chamamos incredulidade. Mas hoje creio e venho a vós, cheio de esperança e fé, dizer-vos: “Espero no futuro, creio em Deus, e os Espíritos de Béranger, de Royer-Collard, de Casimir Perrier... não me desmentirão.”

A vós que desejais o progresso, que quereis a luz, direi: Os mortos falam, eles falam todos os dias, entretanto, cegos que sois ─ que éramos! ─ pressentis a verdade sem afirmá-la abertamente. Como Galileu, vós vos dizeis todas as noites: “Entretanto, ela se move!” mas baixais os olhos ante o ridículo, ante o respeito à coisa julgada!

Vós todos que éreis meus fiéis, que semanalmente me concedíeis vossa tarde, sabeis em que me tornei.

Sábios que perscrutais os segredos da Natureza, perguntastes à folha morta, ao broto de erva, ao inseto, à matéria, em que se transformavam no grande concerto dos mortos terrenos? Perguntaste-lhes suas funções de mortos? Pudestes escrever em vossas fichas esta grande lei da Natureza que parece destruir-se anualmente para reviver esplêndida e soberba lançando o desafio da imortalidade aos vossos pensamentos passageiros e mortais?

Doutor sábio que diariamente inclinais a fronte preocupada sobre as doenças misteriosas que destroem os corpos humanos de maneira múltipla, por que tantos suores pelo futuro, tanto amor pela família, tanta previdência para assegurar a honorabilidade de um nome, pela fortuna e pela moralidade de vossos filhos, tanto respeito pela virtude de vossas companheiras?

Homens de progresso, que trabalhais constantemente para transformar as ideias e torná-las mais belas, por que tantos cuidados, vigílias e decepções, se essa lei eterna do progresso absorve todas as vossas faculdades e as decuplica, a fim de prestar homenagem ao movimento geral de harmonia e de amor, ante o qual vos inclinais?

Ah! meus amigos, quem quer que sejais na Terra, mecânicos, legisladores profundos, políticos, artistas, ou vós todos que inscreveis em vossa bandeira: Economia Política, crede-me, vossos trabalhos desafiam a morte; todas as vossas aspirações a rejeitam como uma negação, e quando, por vossas descobertas e vossa inteligência, deixastes um traço, uma lembrança, uma honorabilidade sem manchas, desafiastes a morte, como tudo o que vos cerca! Oferecestes um sacrifício ao poder criador e, como a Natureza, a matéria, como tudo o que vive e quer viver, vencestes a morte. Como eu outrora, como tantos outros, vos retemperais nesse aniquilamento do corpo que é a vida, ides para o Eterno, para vencer a eternidade!...

Mas não a vencereis, porque ela é vossa amiga. O Espírito é a eternidade, o eterno, e eu repito: Tudo o que morre fala de vida e de luz. A morte fala ao vivo; os mortos vêm falar. Só eles têm a chave de tudo, e é por eles que vos prometo outras explicações.

Gui...


(Sociedade Espírita de Paris, 17 de novembro de 1865 Médium: Sr. Leymarie)

Eles fugiram da epidemia e, neste pânico singular, quantas falências morais, quantas defecções vergonhosas! É que a morte se torna a mais violenta expiação para todos os que violam as leis da mais estrita equidade. A morte é o desconhecido para a fé vacilante. As religiões diversas, com o paraíso e o inferno, não puderam firmar-se naqueles que possuem a abnegação pelos bens terrenos, em vão ensinada; nenhum ponto de referência, nenhuma base certa. Difusão no ensino divino: isto não é a certeza. Assim, salvo algumas exceções, que pavor, que falta de caridade, que egoísmo no salve-se-quem-puder geral dos satisfeitos! Crer em Deus, estudar sua vontade nas afirmações inteligentes, estar certo de que as leis da existência estão subordinadas a leis superiores divinas que tudo medem com justiça, que dispensam a todos, em diversas existências, o sofrimento, a alegria, o trabalho, a miséria e a fortuna, mas é, parece-me, o que buscam todas as sábias pesquisas, todas as interrogações da Humanidade. Ter a sua certeza não é a verdadeira força em tudo? Se o corpo esgotado dá liberdade ao espírito, a fim de que este viva segundo as aptidões fluídicas que são a sua essência, se, digo eu, esta verdade se torna palpável, evidente como um raio de sol; se as leis que encadeiam matematicamente as diversas fases da existência terrena e extraterrena, ou da erraticidade, tornam-se para nós tão claramente demonstradas quanto um problema algébrico, então não tendes em mãos o tão procurado segredo; o porquê de todas as vossas objeções; a explicação racional da fraqueza dos vossos profundos estudos de economia política, fraqueza terrificante para a teoria, porquanto a prática destrói em um dia o trabalho da vida de um homem?

É por isto, amigos, que venho suplicar-vos leiais o Livro dos Espíritos. Não vos detenhais na letra, mas possuí-lhe o espírito. Pesquisadores inteligentes, encontrareis novos elementos para modificar vosso ponto de vista e o dos homens que vos estudam. Convictos da pluralidade das existências, encarareis a vida melhor; definindo-a melhor, sereis fortes. Homens de letras, plêiade pobre e bendita, dareis à Humanidade uma semente tanto mais séria quão verdadeira. E quando forem vistos os fortes, os sábios, acreditando e ensinando as máximas fortes e consoladoras, amar-se-ão mais e não mais fugirão do suposto mal invisível; a vontade de todos, homogeneidade poderosa, destruirá todas essas fermentações gasosas envenenadas, única fonte das epidemias.

O estudo dos fluidos, feito sob outro ponto de vista, transformará a Ciência; vistas novas iluminarão a estrada fecunda de nossos jovens estudantes, que não mais irão, orgulhosos, mostrar no estrangeiro a sua intolerância de linguagem e a sua ignorância; não serão mais a irrisão da Europa, porque os mortos amados lhes terão dado a fé e essa religião do Espírito que moraliza a princípio para elevar em seguida a encarnação às regiões serenas do saber e da caridade.

GUI...


Dissertações espíritas - Estado social da mulher

(Sociedade de Paris, 20 de outubro de 1865 - Médium: Sr. Leymarie)

Na época em que eu vivia entre vós, meus amigos, acontecia-me, muitas vezes fazer sérias reflexões sobre a sorte da mulher. Meus numerosos e laboriosos estudos sempre deixavam um momento para esses seres amados. Cada noite, antes do sono, eu orava por essas pobres irmãs tão infelizes e muito desconhecidas, implorando a Deus por dias melhores, e pedindo às ideias um meio qualquer de fazer progredirem as desclassificadas. Por vezes, em sonho, eu as via livres, amadas, estimadas, tendo uma existência legal e moral na Sociedade, na família, cercadas de respeito e de cuidados; eu as via transfiguradas, e esse espetáculo era tão consolador, que despertava chorando. Mas ah! A triste realidade então me aparecia em sua lúgubre verdade e eu às vezes perdia a esperança de que chegassem melhores dias.

Esses dias chegaram, meus amigos. Há poucos entre vós que não sentem intuitivamente o direito da mulher; muitos o negam de fato, embora o reconheçam mentalmente, mas não é menos verdade que há para ela a esperança e a alegria em meio a misérias profundas e desilusões espantosas.

Há alguns dias eu ouvia uma roda de senhoras distintas pela posição, pela beleza e pela fortuna, e me dizia: Estas são todas perfume; foram amadas e aduladas. Como devem amar! Como devem ser boas mães, esposas encantadoras, filhas respeitosas! Elas sabem muito, amam e dão muito. Que estranho erro!... Todos esses rostos frescos mentiam, sob sorrisos estereotipados; elas palravam, falavam de tecidos, de corridas, de moda. Com uma graça encantadora, elas falavam mal da ausente, mas não se ocupavam dos filhos, nem dos maridos, nem de questões literárias, dos nossos gênios, de seu país, da liberdade! Ah! Belas cabeças, mas cérebro... nenhum. Pássaros encantadores, de boa vontade ergueram o vosso porte, a vossa atitude: é a etiqueta; vossa pretensão: agradar, tocar em tudo e nada conhecer. O vento leva a vossa tagarelice e não deixais traços; não sois filhas, nem esposas, nem mães. Ignorais a vossa terra, o seu passado, os seus sofrimentos, a sua grandeza. O vosso filho, confiastes a uma mercenária! A felicidade interior é uma ficção. Brilhantes borboletas, tendes bonitas asas... mas depois...

Eu também tinha ouvido um grupo de jovens e vivas operárias. Que sabiam elas? Nada... como as outras... nada da vida, nada do dever, nada da realidade! Elas invejavam, eis tudo. Deram-lhes o direito de se compreender, de se estimar, de se respeitar? Fizeram-nas compreender Deus, sua grandeza, sua vontade? Não, mil vezes não!... A Igreja lhes ensina o luxo; elas trabalham para o luxo, e é o luxo que bate à sua mansarda, dizendo: Abre-me! Eu sou a fita, a renda, a seda, os bons pratos, os vinhos delicados. Abre-me, e serás bela, terás todas as fantasias, todos os deslumbramentos!... Eis por que tantas entre elas são a vergonha da sua família!...

Cérebros amáveis que vos divertis com o problema do Espiritismo, poderíeis dizer-me qual a panaceia que inventastes para purificar a família, para lhe dar vida? Eu sei que em questões de moral sois indulgentes; muitas frases, gemidos pelos povos que caem, pela falta de educação das massas; mas para levantar moralmente a mulher, que fizestes? Nada... Grãos senhores da literatura, quantas vezes espezinhastes as santas leis do respeito à mulher, que tanto ergueis! Ah! Ignorais Deus e desprezais profundamente a mulher, isto é, a família e o futuro da nação!

E é nela e por ela que se deverão elaborar os graves problemas sociais do futuro! O que sois incapazes de fazer, bem o sabeis, o Espiritismo fará, e dará à mulher essa fé robusta que levanta montanhas, fé que lhes mostra o seu poder e o seu valor, tudo quanto Deus promete por sua doçura, sua inteligência, sua vontade poderosa. Compreendendo as leis magníficas desenvolvidas pelo Livro dos Espíritos, nenhuma entre elas quererá entregar o seu corpo e sua alma; filha de Deus, ela amará em seus filhos a visita do Espírito criador; ela quererá saber para ensinar aos seus; ela amará a sua terra e saberá a sua história, a fim de iniciar seus filhos nas grandes ideias progressistas. Elas serão mães e médicas, conselheiras e dirigentes; numa palavra, serão mulheres segundo o Espiritismo, isto é, o futuro, o progresso e a grandeza da pátria na mais larga expressão.

BALUZE

(Continuação ─ 27 de outubro de 1865)

Em minha última comunicação, meus amigos, eu vos tinha mostrado as mulheres sob dois aspectos e tinha acrescentado que a instrução numas e a ignorância noutras tinham produzido resultados negativos. Não obstante, há sérias exceções, que parecem desafiar a regra. Há moças que sabem estudar e tirar proveito do que ensinam os mestres. Estas não são vãs nem levianas; sua constante distração não é um adorno ou uma fita! ─ Alimentadas por lições fortes e sérias, gostam do que engrandece o espírito, o que lhes dá a calma íntima, essa calma dos fortes e das naturezas generosas.

No casamento, elas preveem a família; chamam com todos os votos o filho bem amado, o bem-vindo, não para abandoná-lo e atirá-lo aos cuidados interesseiros, mas para sacrificar-lhe suas vidas inteiras. O recém-nascido é o centro de tudo; para ele, o primeiro pensamento; para ele, as carícias e as preces ardentes, as noites sem sono, os dias muito curtos, nos quais se preparam os mil e um detalhes que serão o bemestar do novo encarnado. A criança é o estudo, é o amor sob suas mil formas. O esposo torna-se amável; ele esquece o rude labor do dia ou as distrações mundanas, para amparar os primeiros passos da criança e dar uma forma às suas primeiras sílabas. Respeito, pois, essas exceções exemplares que sabem desafiar a tentação e fugir dos prazeres para se devotarem e viver como mães divinamente inteligentes.

Humildes e pobres operárias; corações ulcerados que amais a vossa única esperança, vosso filho, haveria muito a dizer de vossa abnegação, do vosso profundo sentimento do dever, da vossa mansuetude ante os aborrecimentos de cada dia!
Nada vos desanima para consolar o anjinho; ele é para vós a força e o trabalho, e esse sublime egoísmo que vos faz sacrificar noite e dia.

Mas se a religião, ou antes, os diversos cultos unidos à instrução, não puderam destruir no rico e no pobre essa tendência geral para mal viver e ignorar o objetivo da vida, é que nem os cultos nem a instrução souberam, até hoje, impressionar vivamente a infância. Falam-lhe constantemente de interesses inimigos. Os pais que lutam contra as necessidades da vida se mostram ante esses corações jovens com uma crueza cínica. Apenas têm eles a percepção das primeiras palavras, já sabem que podem ser coléricos, arrebatados, e que o interesse pessoal é o centro em torno do qual gira cada indivíduo. Essas primeiras impressões os exploram largamente... Religião e instrução serão, daí em diante, palavras vãs, se eles não tenderem, a despeito de tudo, a aumentar o bem-estar e a fortuna!

E quando proclamamos a plenos pulmões o pensamento espírita, pensamento que desperta todas as paixões generosas, pensamento que dá uma certeza como um problema de matemática, riem-nos na cara! Pretensos liberais montam em suas pernas de pau para nos achar ridículos e ignorantes. Nós não sabemos escrever... não temos estilo!... Somos modelos de inépcia, loucos... bons para meter num hospício. E os apóstolos da liberdade de pensamento, de boa vontade instigariam a autoridade, auxiliada pelo Código Penal, a perseguir esses iluminados que rebaixam o bomsenso público!

Felizmente a opinião das massas não pertence nem a uma família nem a um escritor; ninguém tem direito de ter mais espírito e bom-senso que todo mundo, e nestes tempos em que simples folhetinistas pretendem rachar de alto a baixo os teólogos, os filósofos, o gênio sob todas as formas, o bom-senso na sua mais alta expressão, acontece que cada um quer saber por si mesmo. Correm sempre aos homens e às coisas dos quais pior se fala, e depois de haver lido e ouvido, põem de lado todos os panfletos insolentes, todas as insinuações malévolas, para render homenagem à verdade que toca a todos os espíritos.

É por isto que o Espiritismo se engrandece sob os vossos golpes. As famílias nos aceitam e nos bendizem. Um pai laborioso, se tiver um filho realmente espírita, não o verá, como no passado, desertar de casa para ser vagabundo. Não será ele quem arruinará sua família, venderá sua consciência ou renegará as leis sagradas do respeito devido à mulher e à criança. Ele sabe que Deus existe; ele conhece as leis fluídicas do Espírito e a existência da alma com todas as suas consequências admiráveis. É um homem sério, probo, fraterno, caridoso, e não um palhaço bem educado, traidor da vida, de Deus, dos amigos, dos pais e de si mesmo.

As mães serão realmente mães; penetradas do espírito espírita, serão a salvaguarda das filhas amadas. Ensinando-lhes o papel magnífico que estão chamadas a desempenhar, dar-lhes-ão a consciência de seu valor. O destino do homem lhes pertence de direito, e para cumprir o dever, terão que instruir-se a fim de orientar dignamente o filho que Deus envia. Saber não será mais o corolário dos desejos desenfreados e de vontades vergonhosas, mas, ao contrário, complemento da dignidade e do respeito à sua pessoa. Contra tais mulheres, que poderão as tentações e as paixões desregradas? Para égide, terão Deus e o direito e, além disso, essa aquisição superior que vem das coisas superiores.

Ora, que é a mulher, senão a família; e que é a família senão a nação? Tais mulheres, tal povo. ─ Queremos, pois, criar o que destruístes pelos extremos. A Idade Média tinha rebaixado a mulher pela superstição. Vós, senhores livrespensadores, pelo ceticismo!... Nem uma nem outro são bons! Nós inicialmente moralizamos; alforriamos a mulher para depois instruí-la. Vós quereis instruí-la sem moralizá-la!

E é por isto que a geração atual vos escapa, e as mães de família em breve não serão mais uma exceção.

BALUZE

ALLAN KARDEC


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