Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Julho

Ária e palavras de Henrique III

O Grand Journal de 4 de junho de 1865 relata o fato seguinte:

“Todos os editores e todos os amantes da música de Paris conhecem o Sr. N. G. Bach, aluno de Zimmermann, primeiro prêmio de piano do Conservatório no concurso de 1819, um dos nossos mais estimados e mais honrados professores de piano, bisneto do grande Sebastian Bach, cujo nome ilustre leva com dignidade.

“Informado por nosso amigo comum, Sr. Dollingen, administrador do Grand Journal, que o apartamento do Sr. N. G. Bach tinha sido teatro de um verdadeiro prodígio na noite de 5 de maio último, pedi a Dollingen que me levasse ao Sr. Bach, e fui acolhido no nº 8 da Rua Castellane com uma elegante cortesia. Inútil acrescentar, ao que penso, que só depois de ter tido autorização expressa do herói desta história maravilhosa me permito contá-la aos leitores.

“A 4 de maio último, o Sr. Léon Bach, que é um curioso dublê de um artista, trouxe a seu pai uma espineta admiravelmente esculpida. Depois de longas e minuciosas pesquisas, o Sr. Bach descobriu, numa prancha interna, os dados históricos do instrumento: Ele data do mês de abril de 1564 e foi fabricado em Roma.

“O Sr. Bach passou uma parte do dia na contemplação de sua preciosa espineta. Ele pensava nela ao se deitar, e quando o sono lhe cerrou as pálpebras, continuava pensando.

“Não é, pois, de se espantar que tenha tido o seguinte sonho:

“No mais profundo de seu sono, o Sr. Bach viu aparecer à cabeceira do leito um homem com uma longa barba, sapatos arredondados na ponta, com grandes laços em cima, um culote muito grande, um jaleco de mangas colantes com pregas no alto, um grande colarinho e com um chapéu pontudo e de abas largas.

“Esse personagem curvou-se sobre o Sr. Bach e lhe disse o seguinte:

“A espineta que possuis me pertenceu. Muitas vezes me serviu para distrair meu senhor, o rei Henrique III. Quando ele era muito moço, compôs uma ária com letra, que ele gostava de cantar e que eu tocava para ele muitas vezes. Essa ária e a letra ele compôs em homenagem a uma mulher que ele encontrou numa caçada e pela qual se apaixonou. Afastaram-na dele; dizem que foi envenenada e que o rei sofreu uma grande dor. Toda vez que ele estava triste cantarolava essa romança. Depois, para distraí-lo, eu tocava em minha espineta uma sarabanda de minha composição, da qual ele gostava muito. Assim, eu reunia sempre esses dois trechos e não deixava de tocar um após o outro. Vou executá-los para ti.”

“Então o homem do sonho aproximou-se da espineta, deu alguns acordes e cantou a ária com tanta expressão que o Sr. Bach acordou em pranto. Ele acendeu uma vela, olhou a hora, constatou que eram duas da madrugada e não demorou a dormir de novo.

“É aqui que começa o extraordinário.

“Pela manhã, ao despertar, o Sr. Bach ficou muito surpreso ao encontrar sobre a cama uma página de música, coberta com uma escrita muito fina e notas microscópicas. Foi com dificuldade, e com a ajuda e seu pincenê, pois o Sr. Bach é muito míope, que ele conseguiu decifrar os rabiscos.

“Um instante depois o descendente de Sebastian sentou-se ao piano e executou o trecho com facilidade. A romança, as palavras e a sarabanda eram exatamente idênticas às que o homem do sonho lhe havia feito ouvir durante o seu sono!

“Ora, o Sr. Bach não é sonâmbulo. Ele jamais escreveu um único verso em sua vida e as regras da versificação lhe são completamente estranhas.

“Eis o refrão e as três estrofes que copiamos do manuscrito. Conservamos a sua ortografia que, diga-se de passagem, absolutamente não é familiar ao Sr. Bach.

Perdi aquela

Por quem tinha tanto amor;

Ela, tão bela,

Tinha por mim cada dia

Novo favor Desejo novo.

Oh! sim, sem ela,

Quero morrer!

Um dia durante uma distante caçada,

Eu avistei-a por primeira vez.

Julgava ver um anjo na baixada

E fui o mais feliz dos reis!

O meu reino daria para vê-la

Inda que fosse por um só instante,

E em humilde cabana poder tê-la

Junto ao meu coração palpitante.

Ora, longe de mim, enclausurada,

Levaram-na a passar os seus dias finais.

E enquanto levo aqui a vida amargurada

Ela não mais sente, ela não sofre mais.

“Nessa romança chorosa, como na sarabanda alegre que a segue, a notação musical não é menos arcaica que a grafia literária. As claves são diferentes das que hoje se usam. O baixo é escrito em um tom e o canto em outro. O Sr. Bach teve a gentileza de me fazer ouvir os dois trechos, que têm uma melodia simples, original e penetrante. Aliás, nossos leitores não tardarão a poder julgá-los com conhecimento de causa. Eles estão nas mãos dos gravadores e aparecerão esta semana no editor Legouix, no Boulevard Poissonnière, 27.

“O jornal da Estoile nos informa que o rei Henrique III teve uma grande paixão por Marie de Clèves, marquesa de Isles, falecida na flor da idade, numa abadia, a 15 de outubro de 1574. Não seria ‘a pobre, bela, triste e enclausurada’ a que aludem os versos? O mesmo jornal também nos diz que um músico italiano chamado

Baltazzarini veio à França nessa época e que ele foi um dos favoritos do rei. Teria a espineta pertencido a Baltazzarini? Foi o Espírito de Baltazzarini que escreveu a romança a sarabanda? ─ Mistério que não ousamos aprofundar!”

Alberic Second


Depois da letra, o Grand Journal inseriu a música, que lamentamos não poder reproduzir aqui. Mas como atualmente se acha à venda, os aficionados terão facilidade em adquiri-la. (Ver as “Notícias bibliográficas”).

O Sr. Albéric Second termina o seu relato por estas palavras: “Mistério que não ousamos aprofundar!” E porque não o ousais? Eis um fato cuja autenticidade vos é demonstrada, como vós mesmo reconheceis, e porque toca à vida misteriosa de além-túmulo, não ousais pesquisar-lhe a causa! Tremeis ao olhá-lo de frente! Então, malgrado vosso, tendes medo das aparições ou receais adquirir a prova de que nem tudo acaba com a vida do corpo? É verdade que para um céptico que nada vê e em nada crê além do presente, essa causa é muito difícil de encontrar. Contudo, porque o fato em si mesmo é muito estranho e parece não subordinar-se às leis conhecidas, tanto mais deve fazer refletir, ou pelo menos despertar a curiosidade.

Realmente, dir-se-ia que certas pessoas receiam ver muito claro, porque teriam que convir que se enganaram. Vejamos, entretanto, as deduções que todo homem sério pode tirar deste fato, abstração feita de qualquer ideia espírita.

O Sr. Bach recebe um instrumento, cuja antiguidade constata, o que lhe causa grande satisfação. Preocupado com esta ideia, é natural que ela provoque um sonho. No sonho, ele vê um homem em trajes da época, tocando aquele instrumento e cantando uma ária da época; nada aí que não possa, a rigor, ser atribuído à imaginação superexcitada pela emoção e pela lembrança da véspera, sobretudo num músico. Mas aqui o fenômeno se complica. A melodia e a letra não podem ser uma reminiscência, pois o Sr. Bach não as conhecia. Quem, pois, lhas revelou, se o homem que lhe apareceu não passa de um ser fantástico? Que a imaginação superexcitada faça reviver na memória coisas esquecidas, compreende-se, mas teria o poder de nos dar ideias novas; de nos ensinar coisas que não sabemos, que jamais soubemos e com as quais jamais nos ocupamos? Aí estaria um fato de alta importância e que bem valeria a pena ser examinado, porque seria a prova de que o Espírito age, percebe e concebe independentemente da matéria. Passemos também por cima disto, se quiserem. Estas considerações são de uma ordem tão elevada e tão abstrata que não é dado a todos perscrutá-las e nem mesmo de sobre elas deter o pensamento.

Vamos ao fato mais material, o mais positivo, o fato dessa música escrita com a letra. É um produto da imaginação? A coisa aí está, palpável, sob os olhos. É aqui que se torna indispensável um exame escrupuloso das circunstâncias. Para não nos lançarmos no campo das hipóteses, digamos, antes de ir mais longe, que o Sr. Bach, que não tínhamos a honra de conhecer, teve a bondade de nos vir ver e de nos submeter o original da peça em questão. Assim, pudemos recolher de sua boca todas as informações necessárias ao esclarecimento de nossa opinião, ao mesmo tempo que ele retificou nalguns pontos o relato do jornal.

Tudo se passou, no sonho, como foi descrito, mas não foi na mesma noite que o papel foi trazido. No dia seguinte, o Sr. Bach procurava recordar-se da ária que tinha ouvido; sentou-se à espineta e chegou a escrever a música, embora imperfeitamente. Cerca de três semanas depois, o mesmo indivíduo lhe apareceu uma segunda vez; dessa vez, cantou a música as palavras, e disse que lhe ia dar um meio para fixá-las na memória. Foi então que, ao despertar, encontrou o papel sobre a cama. Tendo-se levantado, tocou a música em seu instrumento e reconheceu que era exatamente a que ele tinha ouvido, bem como a letra, da qual apenas lhe havia ficado uma lembrança confusa.

Reconheceu também o papel, por lhe pertencer. Era uma folha dupla de papel de música comum, sobre uma das faces da qual ele havia escrito várias coisas de próprio punho. Esse papel, com muitos outros, estava numa escrivaninha com a gaveta trancada a chave, numa outra peça da casa. Era preciso, portanto, que alguém o tivesse tirado de lá para trazê-lo para a cama, enquanto ele dormia. Ora, na casa dele, ninguém do seu conhecimento poderia tê-lo feito. Quem poderia ter sido? Eis o mistério terrível, que o Sr. Albéric Second não ousa aprofundar.

Foi na página limpa que ele encontrou a ária escrita segundo o método e os sinais da época. As palavras são escritas com extrema precisão, cada sílaba colocada exatamente sob a nota correspondente. Tudo está escrito a lápis. A escrita é muito fina, mas muito clara e perfeitamente legível. A forma das letras é característica: é a que se vê nos manuscritos da época.

O Sr. Bach não era céptico nem materialista e ainda menos ateu, mas, como muita gente, estava na numerosa classe dos indiferentes, muito pouco preocupados com as questões filosóficas. Ele só conhecia o Espiritismo de nome. Aquilo que acabava de testemunhar despertou-lhe a atenção; longe de não ousar aprofundar o mistério, disse de si para si: aprofundemo-lo. Leu obras espíritas e começou a compreender, e foi com o objetivo de ter mais amplas informações que nos honrou com sua visita. Hoje o fato não tem mais mistérios para ele e lhe parece muito natural; além disso está muito feliz com a fé e os novos conhecimentos que a circunstância lhe permitiu adquirir. Eis o que ganhou.

Ele sabe perfeitamente que nem a música nem a letra podiam vir dele. Não duvidava que lhe tivessem sido ditadas pelo personagem que lhe havia aparecido; mas ele se perguntava quem poderia tê-las escrito, e se não poderia ter sido ele próprio, em estado sonambúlico, mesmo que jamais tivesse sido sonâmbulo. A coisa era possível, mas, admitindo-a, apenas provaria melhor a independência da alma, como todos os fatos desse gênero, tão curiosos e tão numerosos e com os quais, entretanto, a Ciência jamais se preocupou. Uma particularidade parece destruir tal opinião, é que a escrita não tem qualquer relação com a do Sr. Bach. Seria preciso que no estado sonambúlico ele mudasse a letra habitual para tomar a do século dezesseis, o que não é presumível. Seria brincadeira de alguém em sua casa? Mas, admitindo tal intenção, ele tem certeza que ninguém tinha conhecimentos necessários para executá-la. Ora, se ele, que tinha tido o sonho, tinha apenas uma lembrança insuficiente para transcrever as palavras e a música, como uma pessoa estranha ter-se-ia recordado melhor? O cuidado com o qual a coisa estava escrita teria, aliás, exigido muito tempo e requerido uma grande habilidade prática.

Outro ponto importante a esclarecer era o fato histórico dessa primeira paixão do rei, a que nenhuma história faz menção, e que lhe teria inspirado esse cântico melancólico. Tendo o filho do Sr. Bach se dirigido a um de seus amigos ligado à biblioteca imperial, a fim de saber se existiria algum documento a respeito, responderam-lhe que se existisse só poderia estar no jornal da Estoile, que era publicado nessa época. Pesquisas imediatas levaram à descoberta da passagem acima relatada. A mãe de Henrique III, temendo o ascendente que essa mulher de um espírito superior poderia exercer sobre o seu filho, a fez enclausurar e depois matar. O rei não se conformou com essa perda, da qual conservou uma profunda mágoa durante toda a vida. Não é singular que esse canto relate precisamente um fato por todos ignorado e, por consequência, do Sr. Bach, e que mais tarde seja confirmado por um documento da época, escondido numa biblioteca? Esta circunstância tem uma importância capital, pois prova de maneira irrefutável que essa letra não pode ser de autoria do Sr. Bach, nem de qualquer pessoa da casa. Toda suposição de charlatanice cai diante deste fato material.

Só o Espiritismo podia dar a chave desse fato, pelo conhecimento da lei que rege as relações do mundo corporal com o mundo invisível. Aí nada existe de maravilhoso nem de sobrenatural. Todo o mistério está na existência do mundo invisível, composto de almas que viveram na Terra, e que não interrompem suas relações com os sobreviventes. Mostrai a alguém que ignora a eletricidade, que se pode corresponder a duzentas léguas em alguns minutos, e isto lhe parecerá miraculoso; explicai-lhe a lei da eletricidade, e ele achará a coisa muito natural. Assim é com todos os fenômenos espíritas.

Numa sessão da Sociedade Espírita de Paris, à qual o Sr. Bach assistia, o Espírito que lhe havia aparecido deu as explicações seguintes sobre o fato que acabamos de relatar.


(Sociedade Espírita de Paris, 9 de junho de 1865 – Médium: Sr. Morin)

Pergunta (ao guia espiritual do médium). ─ Podemos chamar o Espírito que se manifestou ao Sr. Bach?

Resposta. ─ Meu filho, a grave questão a que dá lugar essa manifestação espontânea é muito natural. A partir desta noite ela deve ser resolvida, a fim de não deixar dúvida sobre a maneira pela qual a música foi feita. O Espírito está aí e responderá muito claramente às perguntas que lhe forem endereçadas.

P. (ao Espírito que se manifestou ao Sr. Bach). ─ Levando-se em consideração que quisestes vir até nós, antecipando o nosso apelo, nós vos seremos reconhecidos se nos derdes a explicação do fenômeno que se produziu por vossa intervenção. Também desejaríamos saber por que o Sr. Bach foi escolhido de preferência para essa manifestação, e que participação ele teve na produção do fenômeno.

R. ─ Agradeço a benevolência com que me acolheis entre vós. Compreendo a importância que dais a esse fato que, entretanto, não vos deve admirar, pois esse gênero de manifestações é hoje quase geral e conhecido por muita gente.

“Para começar, respondo à vossa primeira pergunta. O Sr. Bach foi escolhido por duas razões: a primeira é a simpatia que me une a ele; a segunda é toda no interesse da Doutrina Espírita. Situado como está no mundo, sua idade e sua longa carreira tão honradamente cumprida, suas relações com a imprensa e o mundo culto dele fizeram o melhor instrumento para dar publicidade a fatos que até hoje só eram impressos em jornais espíritas. Muitas vezes vos disseram que era chegado o dia em que o Espiritismo, conquistando direito de cidadania em toda parte onde há raciocínio, lógica e bom-senso, será aceito mesmo nos jornais que o denegriram.

“Quanto à segunda questão: Sim, tendes razão de procurar saber, a fim de não serdes vítimas de equívocos. O aporte ─ pois se trata de um aporte ─ foi feito, e dele participou o Espírito, que sou eu, e o Sr. Bach, no sonho puro e em relação apenas com os Espíritos.


NOTA: Esta última frase tem sua explicação no artigo adiante, sobre os sonhos.

“Eu trouxe ao Sr. Bach o papel de música que tirei de uma peça vizinha de seu quarto, e então a música foi escrita pelo próprio Espírito do Sr. Bach, que se serviu de seu corpo como meio de transmissão. Eu escrevi as palavras, pois as conhecia, e a obra assim feita pode ser considerada completamente espiritual, visto que o Sr.

Bach, em seu sonho, estava quase completamente desmaterializado.

P. ─ Qualquer pessoa dotada de mediunidade teria servido neste caso?

R. ─ Certamente não, porque se o Sr. Bach não tivesse todas as qualidades requeridas, é provável que nem ele nem eu tivéssemos sido escolhidos para essa propagação.

P. ─ Como se serviu o Sr. Bach de seu corpo para escrever a música? Tê-lo-ia feito em estado de sonambulismo?

R. ─ Eu disse que ele se serviu de seu corpo como meio de transmissão, porque seu Espírito ainda está encarnado e não pode agir como Espírito desencarnado. O Espírito encarnado só se pode servir de seus membros e não do seu perispírito, pois é o próprio perispírito que mantém o Espírito ligado ao corpo. P. ─ Podeis dizer-nos quem compôs a letra?

R. ─ Se tivesse sido eu, tenho uma grande dose de orgulho que lhe guardaria a honra. Mas não. Expliquei-me claramente, dizendo: “As palavras que eu conhecia.” Essas palavras, bem como a música, são, realmente, como vos foi dito, composição e inspiração próprias de meu então senhor, que era o rei Henrique.

P. ─ Seria indiscrição pedir que nos esclarecêsseis sobre a vossa personalidade e dizer o que éreis sob Henrique III?

R. ─ Não há indiscrição desde que esteja em jogo um ensinamento geral. Responderei, portanto, que tendo partido de minha terra, que era Florença, vim à França e fui introduzido na corte por uma princesa que, tendo-me ouvido cantar, quis agradar ao infante, pois ele ainda o era, fazendo que ele ouvisse o pobre trovador. O prazer foi tão vivo que resolveram colocar-me à sua disposição, e eu fiquei muito tempo junto a ele a título de músico, mas, na realidade, como amigo, porque ele gostava muito de mim e eu lhe fazia bem. Tendo morrido antes dele, então tive a certeza de seu apego por mim, pelo pesar que ele sentiu com a minha perda. Meu nome foi pronunciado aqui: eu era Baltazzarini.

A Sra. Delanne, que assistia a essa sessão, recebia, pela audição, respostas idênticas às que eram dadas ao Sr. Morin. No dia seguinte, em sua casa, ela escreveu a comunicação seguinte, que confirma e completa a de Baltazzarini:

“Quando é chegada a hora, Deus se serve de todos os meios para fazer penetrar a ciência divina em todas as camadas da Sociedade. Seja qual for a opinião que se professe relativamente às ideias novas, cada um deve servir à causa, ainda que, malgrado seu, no meio onde está colocado. Tendo o Espírito do Sr. Bach vivido sob Henrique III, e tendo sido ligado à pessoa do rei, como amigo íntimo, gostava apaixonadamente de ouvir esses versos e sobretudo a música. Ele preferia a espineta aos outros instrumentos. Eis por que o Espírito que lhe apareceu, que era mesmo o de Baltazzarini, serviu-se desse instrumento a fim de trazer o Espírito de Bach à época em que ele vivia e lhe mostrar, como à Ciência, que a doutrina da reencarnação é diariamente confirmada por novas provas. Apenas o fato da música teria sido insuficiente para forçar o Sr. Bach a buscar a luz imediatamente. Era-lhe necessário um fenômeno do qual ele não pudesse dar conta por si mesmo, uma participação inteiramente inconsciente. Ele devia preconizar a doutrina contando o presente fato, procurando esclarecer-se quanto à maneira pela qual se tinha produzido, pedindo a todas as inteligências que com ele e de boa-fé buscassem a verdade. Por sua idade respeitável, sua honrosa posição, sua reputação no mundo e na imprensa literária, ele é uma das primeiras balizas plantadas no mundo rebelde, porque não se pode suspeitar de sua boa-fé, nem tratá-lo como se fosse louco, assim como não se pode negar a autenticidade da manifestação.

“Ademais, ficai convencidos de que tudo isto tinha sua razão de ser. Vedes que a imprensa absteve-se de comentários, entretanto, o artigo foi produzido por um não crente, um trocista da Ciência que, só ela, pode dar uma explicação racional do fato mencionado. Deus tem seus pontos de vista; ele lança a semente divina no coração quando julga oportuno. Esse fato terá mais repercussão do que supondes. Trabalhai sempre em silêncio e esperai com confiança.

“Nós vos temos dito muitas vezes, não vos inquieteis; Deus saberá suscitar, no devido tempo e lugar, homens e fatos que virão levantar os obstáculos e vos dar a confirmação que as bases da doutrina receberam sua sanção pelo Espírito de Verdade. O Espiritismo cresce e se expande; os galhos da árvore bendita e gigantesca se estendem já por todas as partes do globo. Diariamente o Espiritismo ganha numerosos adeptos em todas as classes, e novas falanges vêm engrossar as fileiras dos desencarnados. Quanto mais difíceis se tornarem os vossos trabalhos, maior será a assistência dos bons Espíritos.

“SÃO BENTO.”

Gontran, vencedor das corridas de chantilly

O fato seguinte, bem como a romança de Henrique III, que acabamos de relatar, é igualmente tirado do Grand Journal de 4 de junho de 1865, no qual não forma, com o precedente, senão um só e mesmo artigo, assinado por Albéric Second.


“Os que nos honram lendo-nos sabem, não há dúvida, que professamos o ceticismo radical a respeito do Espiritismo, dos espíritas e dos médiuns. ─ Mostrainos os fatos, dizíamos aos que se esforçavam por nos converter às suas teorias e às suas doutrinas. E, visto que não nos davam nenhuma prova concludente, persistíamos na negação e na troça.

“Antes de mais nada, quem assina estas crônicas é um escritor de boa-fé. Assim, julga-se obrigado a não pôr a luz debaixo do velador. Que tiremos do seu relato as conclusões que quisermos, não é problema seu. Semelhante a um presidente de um tribunal, ele vai limitar-se a reproduzir os fatos num rápido resumo, imparcial, deixando aos leitores o trabalho de pronunciar um veredicto à sua vontade.”

Depois deste preâmbulo, que é o de um homem leal, como desejaríamos que fossem todos os nossos antagonistas, conta o autor, na forma espirituosa que lhe é peculiar, que um de seus amigos, achando-se na casa de uma médium, perguntou se um Espírito poderia designar qual seria o vencedor das próximas corridas de Chantilly. A médium, que é, diz ele, uma camponesa recentemente vinda das montanhas do Jura, o que significa que é pouco letrada e pouco afeita aos hábitos do desporto, tendo evocado o Espírito de um dos nossos mais célebres desportistas, obteve pelas batidas a designação das letras formando o nome de Gontran.

“─ Existe um cavalo com esse nome entre os concorrentes inscritos? perguntou o Sr. Albéric Second.

“─ Para dizer a verdade, não sei, respondeu seu amigo, mas se o houver, podeis contar que é nele que apostarei.

“Ora, domingo último era 28 de maio. O Derby de Chantilly realizou-se nesse dia e o vencedor foi Gontran, da coudelaria do major Fridolin (pseudônimo hípico dos Srs. Charles Laffitte e Nivière).

“Os fatos que acabo de contar são conhecidos de um grande número de pessoas no mundo da Bolsa. O Sr. Émile T. foi amplamente recompensado pelo resultado de sua confiança absoluta na predição da camponesa do Jura, e os seus amigos que partilharam de sua fé igualmente tiveram bom lucro. ─ E dizer que este vosso criado desprezou uma tão rara ocasião de ganhar na certa e sem esforço 1.000 ou 1.500 luíses, que teriam sido bem-vindos! Não é muita tolice?”

Fatos desta natureza não são os que melhor servem à causa do Espiritismo, primeiro porque são muito raros, depois porque falseariam o seu espírito, fazendo crer que a mediunidade é um meio de adivinhação. Se tal ideia merecesse crédito, ver-se-ia uma multidão de indivíduos consultando os Espíritos, como se consultam as cartas, e os médiuns seriam transformados em ledores da sorte! É então que se teria razão de contra eles invocar a lei de Moisés, que fere de anátema “os adivinhos, os encantadores e os que têm o espírito de Piton.” É para evitar esse grave inconveniente, que seria muito prejudicial à doutrina, que sempre nos erguemos contra a mediunidade exploradora.

Não repetiremos o que foi dito cem vezes e largamente desenvolvido, sobre a perturbação que causaria o conhecimento do futuro, oculto ao homem pela sabedoria divina. O Espiritismo não está destinado a revelá-lo. Os Espíritos vêm para nos tornar melhores e não para nos revelar ou nos indicar os meios de ganhar dinheiro na certa e sem correr riscos, como diz o herói da aventura, ou se ocupar dos nossos interesses materiais, colocados pela Providência sob a salvaguarda de nossa inteligência, de nossa prudência, de nossa razão e de nossa atividade. Assim, todos aqueles que, com desígnio premeditado, julgaram encontrar no Espiritismo um novo elemento de especulação, a um título qualquer, equivocaram-se. As mistificações ridículas, e por vezes a ruína, em vez da fortuna, têm sido o fruto de seu engano. Eis o que todos os espíritas sérios devem esforçar-se em propagar, se quiserem servir utilmente à causa. Temos dito sempre aos que sonharam obter fortunas colossais com o concurso dos Espíritos, sob o especioso pretexto de que a sensação que um tal acontecimento produziria tornaria todo mundo crente, que se eles obtivessem êxito, desfeririam um golpe funesto na doutrina, excitando a cupidez em vez do amor ao bem. É por isto que as tentativas desse gênero, encorajadas por Espíritos mistificadores, sempre foram seguidas de decepções.

Há alguns anos alguém nos escrevia de Hamburgo que, tendo perdido tudo no jogo e achando-se sem recursos para partir, teve a ideia de se dirigir a um Espírito, que lhe indicou um número, no qual pôs o seu último florim e ganhou com que sair da dificuldade. A pessoa nos convidava a publicar o fato na Revista, como prova da intervenção dos Espíritos. Supondo a ação de um Espírito em tal circunstância, ela não via a severa lição que lhe era dada, pelo simples fato de lhe fornecerem os meios de ir-se embora e de o tirarem de uma dificuldade. Na verdade, era conhecer-nos muito pouco ou supor-nos bastante estúrdio para nos julgar capaz de preconizar semelhante fato como meio de propaganda, porquanto isso redundaria em favor das casas de jogo e não do Espiritismo. Teria sido realmente curioso ver-nos fazer a apologia dos Espíritos que favorecem os jogadores, e particularmente o roubo, porque ganhar na certa, quer com cartas marcadas, quer pela indicação de alguém, é uma verdadeira fraude.

Um indivíduo que não era espírita, apressamo-nos em dizê-lo, mas que absolutamente não negava a intervenção dos Espíritos, um dia veio fazer-nos esta proposta singular:

“As casas de jogo são profundamente imorais; o meio de extingui-las é provar que se pode lutar contra elas com segurança. Encontrei, por uma nova combinação, um meio infalível de arrebentá-las todas. Quando se virem arruinadas e na impossibilidade de resistir, serão forçadas a fechar, e o mundo será libertado dessa chaga, que é o roubo organizado. Mas para isto é preciso certo capital que estou longe de possuir. Será que, por meio dos Espíritos, não poderíeis indicar a quem me possa dirigir com segurança? Imaginai o efeito que isto produzirá quando se souber que é por meio dos Espíritos que tão grande resultado é obtido! Quem poderá deixar de acreditar? Os mais incrédulos, os mais obstinados deverão render-se à evidência. Como vedes, meu objetivo é muito moral e eu não me aborreceria se na ocasião tivesse o conselho dos Espíritos sobre a minha combinação.”

─ Sem consultar os Espíritos, facilmente vos posso dizer sua opinião. Eis o que eles vos responderiam: “Achais que o ganho nas bancas de jogo é ilícito e um roubo organizado. Para remediar o mal quereis, por um meio infalível, apoderar-vos desse dinheiro mal adquirido. Em outros termos, quereis roubar o ladrão, o que não é mais moral. Temos um outro meio de chegar ao resultado que vos propondes: Em vez de fazer ganharem os jogadores, arruiná-los o mais possível, a fim de desgostá-los. Os desastres causados por essa paixão provocariam o fechamento de mais casas de jogo do que poderiam fazê-lo os jogadores mais felizes. É o excesso do mal que faz abrir os olhos e conduz a reformas salutares, nisto como em todas as coisas. Para propagar a crença no Espiritismo, temos igualmente meios mais eficazes, e sobretudo mais morais: é o bem que ele faz, as consolações que proporciona e a coragem que dá nas aflições. Assim, dizemos a todos os que almejam o progresso da doutrina: Quereis servir utilmente à causa, fazer uma propaganda verdadeiramente frutífera? Mostrai que o Espiritismo vos tornou melhores; fazei que em vos vendo transformados, cada um possa dizer: Eis os milagres dessa crença; é, pois, uma coisa boa. Mas se, ao lado de uma profissão de fé de crentes, vos virem sempre viciados, ambiciosos, odientos, cúpidos, invejosos ou debochados, dareis razão aos que perguntam para que serve o Espiritismo. A verdadeira propaganda de uma doutrina essencialmente moral se faz tocando o coração e não visando a bolsa. Eis por que favorecemos a uns e desiludimos os cálculos de outros.”

Voltemos a Gontran. Os fatos de previsão desse gênero, embora reais, não obstante são muito raros e podem ser considerados excepcionais; aliás, são sempre fortuitos e jamais o resultado de um cálculo premeditado. Quando acontecem, devem ser aceitos como fatos isolados, mas seria louco e muito imprudente quem se fiasse em sua realização.

Não se deve confundir esse tipo de revelações com as previsões que por vezes dão os Espíritos de grandes acontecimentos futuros, sobre cuja realização eles podem nos fazer pressentir no interesse geral. Isto tem sua utilidade para nos manter alerta e nos induzir a marchar no bom caminho. Mas as predições com dia certo, ou com um caráter de precisão muito grande, devem sempre ser consideradas suspeitas.

No caso de que se trata, esse pequeno fato tinha uma utilidade; era um meio, talvez o único para chamar a atenção de certas pessoas para a ideia dos Espíritos e sua intervenção no mundo, muito mais do que por um fato sério; isto é necessário para todos os caracteres. Entre eles, alguns simplesmente terão dito: “É singular!” Mas outros terão querido aprofundar a coisa, e terão encarado pelo lado sério e realmente útil. Ainda que fossem estes últimos apenas um em dez, seriam outros tantos elementos de ganho e de propaganda. Quanto aos outros, a ideia semeada em seu espírito germinará mais tarde.

Relatando o fato, porquanto ele teve grande publicidade, quisemos ressaltar as suas consequências, mas não o teríamos feito sem comentários e a título de simples anedota. O Espiritismo é uma mina inesgotável de assuntos de observação e de estudo por causa de suas inumeráveis aplicações.

Diz o autor do artigo, no preâmbulo: “Mostrai-nos fatos.” Sem dúvida ele imagina que os Espíritos obedecem às ordens e que os fenômenos se obtêm à vontade, como as experiências num laboratório ou como os truques de escamoteação. Ora, não é assim. Aquele que quer fenômenos não deve pedir que lhos tragam, mas deve procurá-los, observá-los pessoalmente e aceitar os que se apresentem. Esses fenômenos são de duas naturezas: os que são produto dos médiuns propriamente ditos e que, até certo ponto, podem ser provocados, e os fenômenos espontâneos. Para os incrédulos, estes últimos têm a vantagem de não serem suspeitos de preparação; são numerosos e se apresentam sob uma infinita variedade de aspectos tais como: aparições, visões, pressentimentos, dupla vista, ruídos insólitos, barulhos, perturbações, obsessões, etc. O caso do Sr. Bach pertence a esta categoria e o de Gontran à primeira. Para quem quer que queira seriamente convencer-se, os fatos não faltam, e aquele que os pede talvez mais de uma vez os tenha testemunhado sem o suspeitar; mas, para a maioria das pessoas, o erro é querer fatos à sua maneira, com hora marcada, e não se contentar com os que a Providência põe sob os seus olhos. A incerteza da obtenção desses fenômenos e a impossibilidade de provocá-los à vontade são provas de sua realidade, porque se fossem produto do charlatanismo ou de meios fraudulentos, jamais falhariam.

O que falta a certas pessoas não são os fatos, mas a paciência e a vontade de buscá-los e de estudar os que se apresentam.


Teoria dos sonhos

É verdadeiramente estranho que um fenômeno tão vulgar quanto o dos sonhos tenha sido objeto de tanta indiferença por parte da Ciência, e que ainda estejamos a perguntar a causa dessas visões. Dizer que são produto da imaginação não é resolver a questão; é uma dessas palavras com o auxílio das quais querem explicar o que não compreendem, mas que nada explicam. Em todo caso, a imaginação é um produto do entendimento. Ora, como não se pode admitir entendimento nem imaginação na matéria bruta, é necessário crer que a alma entre nisso por algum motivo. Se os sonhos ainda são um mistério para a Ciência, é que ela se obstinou em fechar os olhos para a causa espiritual.

Procuram a alma nas dobras do cérebro, enquanto ela se ergue a cada instante à nossa frente, livre e independente, numa porção de fenômenos inexplicáveis só pelas leis da matéria, notadamente nos sonhos, no sonambulismo natural e artificial e na dupla vista à distância, não nos fenômenos raros, excepcionais, sutis, que exigem pacientes pesquisas do sábio e do filósofo, mas nos mais vulgares. Lá está ela, que parece dizer: Olhai e ver-me-eis; estou sob vossos olhos e não me vedes; vistes-me muitas e muitas vezes; vedes-me todos os dias; os próprios meninos me veem; o sábio e o ignorante, o homem de gênio e o ignorante me veem e vós não me reconheceis.

Mas há pessoas que parecem temer olhá-la de frente, e ter a prova de sua existência. Quanto aos que a procuram de boa-fé, até hoje lhes faltou a única chave que poderia tê-la desvelado. Essa chave o Espiritismo acaba de dar pela lei que rege as relações do mundo corporal com o mundo espiritual. Com a ajuda dessa lei e das observações sobre as quais se apoia, ele dá dos sonhos a mais lógica explicação jamais fornecida. Ele demonstra que o sonho, o sonambulismo, o êxtase, a dupla vista, o pressentimento, a intuição do futuro, a penetração do pensamento não passam de variantes e graus de um mesmo princípio: a emancipação da alma, mais ou menos desprendida da matéria.

A respeito dos sonhos, ele dá explicações precisas de todas as variedades que eles apresentam? Não. Ainda não. Nós possuímos o princípio, o que já é muito. Aqueles que podemos explicar pôr-nos-ão no caminho dos outros; sem dúvida faltam-nos alguns conhecimentos, que adquiriremos mais tarde. Não há uma única ciência que, de saída, tenha desenvolvido todas as suas consequências e aplicações; elas não se podem completar senão por sucessivas observações. Ora, nascido ontem, o Espiritismo está como a Química nas mãos dos Lavoisier e dos Berthollet, seus primeiros criadores; eles descobriram as leis fundamentais; as primeiras balizas fincadas puseram no caminho de novas descobertas.

Entre os sonhos, uns há que têm um caráter de tal modo positivo que racionalmente não poderiam ser atribuídos a simples jogo da imaginação; tais são aqueles nos quais, ao despertar, adquire-se a prova da realidade do que se viu e em que absolutamente não se pensava. Os mais difíceis de explicar são os que nos apresentam imagens incoerentes, fantásticas, sem realidade aparente. Um estudo mais aprofundado do singular fenômeno das criações fluídicas sem dúvida por-nos-á no caminho.

Enquanto se espera, eis uma teoria que parece permitir um passo no assunto. Não a damos como absoluta, mas como fundada na lógica e podendo ser submetida a estudo. Ela nos foi dada por um dos nossos melhores médiuns, em estado de sonambulismo muito lúcido, por ocasião do fato seguinte:

Solicitado pela mãe de uma jovem a lhe dar notícias de sua filha, que estava em Lyon, ele a viu deitada e adormecida, e descreveu com exatidão o apartamento em que ela se achava. Essa jovem, de dezessete anos, é médium escrevente; sua mãe perguntou se ela tinha aptidão para se tornar médium vidente. Esperai, disse o sonâmbulo, é preciso que eu siga o rastro de seu Espírito, que neste momento não está no corpo. Ela está aqui, na Villa Ségur, na sala onde estamos, atraída pelo vosso pensamento; ela vos vê e vos escuta. Para ela é um sonho, do qual não se recordará ao despertar.

Podemos, acrescenta ele, dividir os sonhos em três categorias caracterizadas pelo grau da lembrança que fica no estado de desprendimento no qual se acha o Espírito. São elas:

1.º ─ Os sonhos que são provocados pela ação da matéria e dos sentidos sobre o Espírito, isto é, aqueles em que o organismo representa um papel preponderante pela mais íntima união entre o corpo e o Espírito. A gente se lembra claramente e, por pouco desenvolvida que seja a memória, dele conserva uma impressão durável.

2.º ─ Os sonhos que podem ser chamados mistos. Deles participam, ao mesmo tempo, a matéria e o Espírito. O desprendimento é mais completo. A gente se recorda, ao despertar, para esquecê-lo quase instantaneamente, a menos que uma particularidade venha despertar a lembrança.

3.º ─ Os sonhos etéreos ou puramente espirituais. São produtos só do Espírito, que está desprendido da matéria, tanto quanto o pode estar na vida do corpo. A gente não se recorda, ou se resta uma vaga lembrança de que se sonhou, nenhuma circunstância poderia trazer à memória os incidentes do sono.

O sonho atual da jovem pertence a esta terceira categoria. Ela não o recordará. Ela foi conduzida para cá por um Espírito muito conhecido do mundo espírita lionês, e mesmo do mundo espírita europeu ─ o médium sonambúlico descreve o Espírito Cárita. ─ Ele a trouxe com o objetivo de que ela conserve, senão uma lembrança precisa, um pressentimento do bem que se pode colher de uma crença firme, pura e santa, e do bem que se pode fazer aos outros, fazendo-o a si próprio.

Ela diz à sua mãe que se ela se lembrasse tão bem em seu estado normal quanto se lembra agora de suas encarnações precedentes, não demoraria muito no estado estacionário em que está, porque vê claramente e pode avançar sem hesitação, ao passo que no estado ordinário temos uma venda sobre os olhos. Ela diz aos assistentes: “Obrigado por vos terdes ocupado comigo.” Depois beija sua mãe. Como é feliz! ─ acrescenta o médium, terminando ─ Como ela é feliz com este sonho, do qual não se recordará, mas que, nem por isso, deixará de lhe deixar uma salutar impressão! São esses sonhos inconscientes que proporcionam estas sensações indefiníveis de contentamento e de felicidade de que a gente não se dá conta, e que são um antegozo daquilo de que desfrutam os Espíritos felizes.

Disto ressalta que o Espírito encarnado pode sofrer transformações que lhe modificam as aptidões. Um fato que talvez não tenha sido suficientemente observado vem apoiar a teoria acima. Sabe-se que o esquecimento do sonho é um dos caracteres do sonambulismo. Ora, do primeiro grau de lucidez, por vezes o Espírito passa a um grau mais elevado, que é diferente do êxtase, e no qual adquire novas ideias e percepções mais sutis. Saindo desse segundo grau para entrar no primeiro, não se lembra do que disse nem do que viu. Depois, passando deste grau para o estado de vigília, há novo esquecimento. Uma coisa a notar é que há uma lembrança do grau superior para o inferior, ao passo que há esquecimento do grau inferior para o superior.

É pois bem evidente que entre os dois estados sonambúlicos de que acabamos de falar, passa-se algo análogo ao que ocorre entre o estado de vigília e o primeiro grau de lucidez; que o que se passa influi sobre as faculdades e as aptidões do Espírito. Dir-se-ia que do estado de vigília ao primeiro grau o Espírito é despojado de um véu e que do primeiro ao segundo grau é despojado de um segundo véu. Nos graus superiores, não mais existindo esses véus, o Espírito vê o que está abaixo e se lembra; descendo novamente a escada, os véus se refazem sucessivamente e lhe ocultam o que está acima, com o que ele perde a sua lembrança. A vontade do magnetizador por vezes pode dissipar esse véu fluídico e permitir a lembrança.

Como se vê, há uma grande analogia entre esses dois estados sonambúlicos e as diferentes categorias de sonhos descritos acima. Parece-nos mais do que provável que, num e noutro caso, o Espírito se ache numa situação idêntica. A cada degrau que ele sobe, eleva-se acima de uma camada de névoa; sua vista e suas percepções tornam-se mais claras.


Questões e problemas

Cura moral dos encarnados

Muitas vezes veem-se Espíritos de natureza má ceder muito prontamente sob a influência da moralização e se melhorar. Pode-se agir do mesmo modo sobre os encarnados, mas com muito mais trabalho. Por que a educação moral dos Espíritos desencarnados é mais fácil que a dos encarnados?

Esta pergunta foi motivada pelo seguinte fato. Um jovem, cego há doze anos, tinha sido recolhido por um espírita dedicado, que se havia empenhado em curá-lo pelo magnetismo, pois os Espíritos haviam dito que isso era possível. Mas o jovem, em vez de se mostrar reconhecido pela bondade de que era objeto, e sem a qual teria ficado sem asilo e sem pão, só teve ingratidão e mau procedimento, e deu provas do pior caráter.
Consultado a respeito, respondeu o Espírito de São Luís:

“Esse jovem, como muitos outros, é punido por onde pecou e suporta a pena de sua má conduta. Sua enfermidade não é incurável, e uma magnetização espiritual praticada com zelo, devotamento e perseverança, certamente teria êxito, ajudada por um tratamento médico destinado a corrigir seu sangue viciado. Já haveria uma sensível melhora em sua visão, que ainda não está completamente extinta, se os maus fluidos de que está cercado e saturado não opusessem um obstáculo à penetração dos bons fluidos que, de certo modo, são repelidos. No estado em que ele se encontra, a ação magnética será impotente enquanto, por sua vontade e sua melhoria, ele não se desembaraçar desses fluidos perniciosos.

“É, pois, uma cura moral que se deve obter, antes de buscar a cura física. Uma mudança de direção em seu comportamento é a única coisa que pode tornar eficazes os cuidados de seu magnetizador, que os bons Espíritos procurarão ajudar. Caso contrário, deve-se esperar que ele perca o pouco de luz que lhe resta e que seja submetido a novas e muito terríveis provações que terá de sofrer.

“Agi, pois, sobre ele como fazeis com os maus Espíritos desencarnados, que quereis trazer ao bem. Ele não está sob uma obsessão: é sua natureza que é má e que, além disso, perverteu-se no meio onde viveu. Os maus Espíritos que o assediam só são atraídos pelas semelhanças com ele próprio. À medida que ele se melhorar, eles se afastarão. Só então a ação magnética terá toda a sua eficácia. Dai-lhe conselhos; explicai-lhe sua posição; que várias pessoas sinceras se unam em pensamento para orar, a fim de atrair influências salutares sobre ele. Se ele as aproveitar, não tardará a lhes experimentar os bons efeitos, porque será recompensado por uma sensível melhora na sua posição.”

Esta instrução nos revela um fato importante, o obstáculo oposto pelo estado moral, em certos casos, à cura dos males físicos. A explicação acima é de uma lógica incontestável, mas não poderia ser compreendida pelos que apenas veem em toda parte a ação exclusiva da matéria. No caso de que se trata, a cura moral do paciente encontrou sérias dificuldades; foi o que motivou a pergunta acima, proposta na Sociedade Espírita de Paris.

Seis respostas foram obtidas, todas concordando perfeitamente entre si. Citaremos apenas duas, para evitar repetições inúteis. Escolhemos aquelas em que a questão é tratada com mais desenvolvimento.


I

Como o Espírito desencarnado vê manifestamente o que se passa e os exemplos terríveis da vida, compreende tanto mais rapidamente o que o exortam a crer e a fazer, por isso não é raro ver Espíritos desencarnados dissertarem sabiamente sobre questões que em vida estavam longe de comovê-los.

A adversidade amadurece o pensamento. Esta expressão é verdadeira sobretudo para os Espíritos desencarnados, que veem de perto as consequências de sua vida passada.

A despreocupação e a ideia preconcebida, ao contrário, triunfam nos Espíritos encarnados; as seduções da vida, e até os seus desenganos, dão-lhes uma misantropia ou uma indiferença completa pelos homens e pelas coisas divinas. A carne lhes faz esquecer o Espírito. Uns, fundamentalmente honestos, fazem o bem evitando o mal, por amor ao bem, mas a vida de sua alma é quase nula; outros, ao contrário, consideram a vida como uma comédia e esquecem seu papel de homens; outros, enfim, completamente embrutecidos e último degrau da espécie humana, nada vendo além, nada pressentindo, entregam-se, como o animal, aos crimes bárbaros, e esquecem a sua origem.
Assim, uns e outros são arrastados pela própria vida, ao passo que os Espíritos desencarnados veem, escutam e se arrependem com mais boa vontade.

LAMENNAIS (Médium: Sr. A. Didier)


II

Quantos problemas e questões a resolver antes que seja realizada a transformação humana conforme as ideias espíritas! A educação dos Espíritos e dos encarnados, do ponto de vista moral, está entre eles.

Os desencarnados estão desembaraçados dos laços da carne e não mais lhe sofrem as condições inferiores, ao passo que os homens, acorrentados numa matéria imperiosa do ponto de vista pessoal, deixam-se arrastar pelo estado das provas no qual estão mergulhados. É à diferença dessas diversas situações que se deve atribuir a dificuldade que os Espíritos iniciadores e os homens que têm essa missão experimentam para melhorar rapidamente, e, por assim dizer, nalgumas semanas, os homens que lhes são confiados. Ao contrário, os Espíritos aos quais a matéria não mais impõe as suas leis e não mais fornece os meios de satisfazerem seus maus apetites, e que, por consequência, não têm mais desejos inconfessáveis, são mais aptos a aceitar os conselhos que lhes são dados.

Talvez respondam com esta pergunta, que tem a sua importância: Por que eles não escutam os conselhos de seus guias do espaço e esperam os ensinamentos dos homens? Porque é necessário que os dois mundos, visível e invisível, reajam um sobre o outro, e que a ação dos humanos seja útil aos que viveram, como a ação da maior parte destes é benéfica aos que vivem entre vós. É uma dupla corrente, uma dupla ação, igualmente satisfatória para esses dois mundos, que estão unidos por tantos laços.

Eis minha resposta à pergunta feita por vosso presidente.

ERASTO (Médium: Sr. d’Ambel)


SOBRE A MORTE DOS ESPÍRITAS

Desde algum tempo a morte tem levado bem grande número de espíritas fervorosos e devotados, cujo concurso teria podido ser útil à causa. Qual a consequência a tirar deste fato?

Esta pergunta foi motivada pela morte recente do Sr. Geoffroy, de Saint-Jeand’Angely, membro honorário da Sociedade Espírita de Paris.


(Sociedade de Paris, 26 de maio de 1865 – Médium: Sra B...)

Como acaba de dizer o vosso presidente, um grande número de adeptos de nossa bela doutrina, de pouco tempo para cá, deixam o vosso mundo. Não os lamenteis. Depois de haverem dado as primeiras picaretadas nesse campo que ides preparar, eles foram repousar algumas horas, a fim de se prepararem para um novo trabalho; foram retemperar sua alma viril nessa fonte de vida e de progresso que, cada vez mais, deve derramar sobre vossa Terra suas ondas benfazejas. Em breve, novos atletas, eles reaparecerão na estacada, com novas forças e uma caridade mais perfeita, porque a alma que entreviu os esplendores da eterna verdade não pode recuar; mas, fiel à atração divina que quer aproximá-la do foco da Justiça, da Ciência e do Amor, segue seu caminho sem mais se desviar.

Ó, meus amigos, como é bela esta morada que vos está preparada! Tornai-vos dignos dela o quanto antes. Libertai-vos, pois, dessas suscetibilidades indignas que muitas vezes ainda se encontram entre vós. São os restos dessas raízes do orgulho, tão difícil de extirpar do vosso mundo. Entretanto, foi para destruí-lo que o Cristo se encarnou entre vós, porque enquanto ele subsistir entre os humanos, eles não chegarão à felicidade.

Meus amigos, há dezoito séculos vos pregam a admirável doutrina do Cristo, e ela ainda não foi compreendida, mas o Espiritismo, vindo ensinar-vos a desenvolver vossas faculdades intelectuais e a lhes dar uma boa direção, abre uma era nova em que se preencherá a lacuna que existia no ensino primitivo.

Estudai, pois, de maneira séria e digna de tão grave assunto, mas, sobretudo, modificai o que em vós há de imperfeito, porque omestre diz a todos: “Tornai-vos perfeitos, porque vosso pai celeste é perfeito.” Então vossa alma depurada elevar-seá gloriosa para as esplêndidas regiões onde o mal não tem mais acesso e onde tudo é harmonia.

SÃO LUÍS
Estudos morais

A Comuna de Koenigsfeld, mundo futuro em miniatura

Lê-se no Galneur de Colmar:

“A comuna de Koenigsfeld, perto de Villingen, na Floresta Negra, que tem cerca de 400 habitantes, forma um estado modelo em miniatura. Há cinquenta anos, que é o tempo de existência dessa comuna, jamais aconteceu que um só habitante tivesse tido envolvimento com a polícia; jamais houve casos de delitos ou de crimes; durante cinquenta anos, jamais houve hasta pública ou nasceu um filho ilegítimo. Jamais foi aberto um processo nessa comuna. Também ali não há mendigos.”

Esta interessante notícia foi lida na Sociedade de Paris e deu lugar à seguinte comunicação espontânea:

“É belo ver a virtude num centro restrito e pobre; ali todos se conhecem, todos se veem; a caridade ali é simples e grande. Não é o mais expressivo exemplo da solidariedade universal essa pequena comuna? Não é, em miniatura, o que um dia será o resultado da verdadeira caridade, quando esta for praticada por todos os homens? Tudo se resume nisto, espíritas: a caridade, a tolerância. Entre vós, a não ser o socorro ao infortúnio, que é exequível, as relações inteligentes, isentas de inveja, de ciúme e de dureza, o são sempre.”

LAMENNAIS (Médium: Sr. A. Didier)

Qual a causa da maior parte dos males da Terra, senão o contacto incessante dos homens maus e perversos? O egoísmo mata a benevolência, a condescendência, a indulgência, o devotamento, a afeição desinteressada e todas as qualidades que fazem o encanto e a segurança das relações sociais. Numa sociedade de egoístas não há segurança para ninguém, porque cada um, buscando apenas o próprio interesse, sacrifica sem escrúpulos o do vizinho. Muitas pessoas se creem perfeitamente honestas porque são incapazes de assassinar e de assaltar pelas estradas. Mas será que aquele que, por cupidez e dureza, causa a ruína de um indivíduo e o leva ao suicídio; que reduz toda uma família à miséria, ao desespero, não é pior que um assassino e um ladrão? Ele assassina em fogo lento, e porque a lei não o condena, porque os seus semelhantes aplaudem a sua maneira de agir e a sua habilidade, julga-se isento de censuras e caminha de cabeça erguida! Além disto, os homens sempre desconfiam uns dos outros; sua vida é uma ansiedade perpétua; se não temem a espada nem o veneno, estão às voltas com a astúcia, a inveja, o ciúme, a calúnia, numa palavra, com o assassinato moral. Que seria preciso para fazer cessar esse estado de coisas? Praticar a caridade. Tudo se resume nisto, como diz Lamennais.

A comunidade de Koenigsfeld nos oferece em miniatura o que será o mundo quando for regenerado. O que é possível em pequena escala sê-lo-á em grande escala? Duvidar seria negar o progresso. Dia virá em que os homens, vencidos pelos males engendrados pelo egoísmo, compreenderão que seguem o caminho errado, e Deus quer que eles encontrem o caminho à sua custa, porque lhes deu o livrearbítrio. O excesso do mal lhes fará sentir a necessidade do bem, e eles se voltarão para este lado, como para a única tábua de salvação. Quem os levará a isto? A fé séria no futuro, e não a crença no nada após a morte; a confiança num Deus bom e misericordioso, e não o medo dos suplícios eternos.

Tudo está submetido à lei do progresso; os mundos também progridem fisicamente e moralmente; mas, se a transformação da Humanidade deve esperar o resultado da melhora individual; se nenhuma causa vier apressar essa transformação, quantos séculos, quantos milhares de anos serão ainda necessários? Tendo a Terra chegado a uma de suas fases progressivas, basta que não seja mais permitido aos Espíritos atrasados aqui encarnarem e que, na medida das extinções, Espíritos mais adiantados venham tomar o lugar dos que partem, para que em uma ou duas gerações o caráter geral da Humanidade seja mudado. Suponhamos, pois, que em vez de Espíritos egoístas, a Humanidade seja, num dado tempo, formada de Espíritos imbuídos de sentimentos de caridade. Em vez de procurarem prejudicar-se, eles se ajudarão mutuamente. Viverão felizes e em paz. Não mais ambição de povo a povo e, portanto, não mais guerras. Não mais soberanos governando ao seu talante. A justiça em vez do arbítrio, portanto, não mais revoluções. Não mais os fortes esmagando e explorando o fraco. Equidade voluntária em todas as transações, portanto, não mais querelas nem trapaças. Tal será o estado do mundo depois de sua transformação. De um mundo de expiação e de provas, de um lugar de exílio para os Espíritos imperfeitos, ele se tornará um mundo feliz, um lugar de repouso para os bons Espíritos; de um mundo de punição, passará a ser um mundo de recompensa.

A comuna de Koenigsfeld incontestavelmente é composta de Espíritos adiantados, ao menos moralmente, senão cientificamente, e que praticam entre si a lei da caridade e do amor ao próximo. Esses Espíritos se reúnem por simpatia nesse recanto abençoado da Terra, para aí viver em paz, esperando que possam fazê-lo em toda a sua superfície. Suponhamos que alguns Espíritos embusteiros, egoístas e malévolos aí venham encarnar-se. Em breve semearão a perturbação e a confusão; ver-se-ão reviverem, como alhures, as querelas, os processos, os delitos e os crimes. Assim aconteceria com a Terra, após a sua transformação, se Deus a abrisse ao acesso dos maus Espíritos. Progredindo a Terra, aí eles estariam deslocados. É por isso que eles irão expiar seu endurecimento e refazer sua educação moral em mundos menos adiantados.


Variedades

Manifestações espontâneas diversas

Uma carta de um dos nossos correspondentes conta o seguinte:

...Começo por uma lembrança de minha infância, que jamais esqueci, embora remonte a uma época já bem afastada.

Em 1819 ou 1820, em Saumur, falou-se muito de uma aparição a um oficial da guarnição dessa cidade. Aquele oficial, alojado numa família distinta, deitou-se pela manhã para repousar de uma noite em claro. Algumas horas depois, abrindo os olhos, percebeu uma sombra no quarto, vestida de branco. Julgando tratar-se de uma brincadeira de um de seus camaradas, levantou-se para ir ao gaiato. A sombra recuou à sua frente, deslizou para a alcova e desapareceu. A porta, que ele havia fechado para não ser perturbado, ainda estava fechada, e uma mocinha da casa, que estava doente há algum tempo, acabara de morrer naquele mesmo instante.

O fato, que tange o maravilhoso, trouxe à lembrança de um de seus camaradas, o Sr. de R..., tenente de couraceiros, um sonho extraordinário que ele tinha tido algum tempo antes e que então deu a conhecer.

Estando na guarnição de Versalhes, o Sr. de R... sonhou que via um homem cortando o pescoço e colhendo o sangue num vaso. Às cinco da manhã, levantou-se, preocupado com o sonho, e dirigiu-se ao quartel de cavalaria; ele estava de serviço. Seguindo uma rua ainda deserta, notou um grupo de pessoas examinando algo com muita atenção. Aproximou-se e soube que um homem acabava de se matar e, coisa extraordinária, disseram-lhe, o homem havia cortado o pescoço e tinha deixado o sangue correr num balde. O Sr. de R... reconheceu, pela aparência desse homem, aquele mesmo que tinha visto durante a noite.

Eu só soube desses fatos por ouvir dizer, e não conheci nenhum dos oficiais. Eis outros, que me são quase pessoais:

Minha mãe era uma senhora de uma piedade verdadeira e esclarecida, que as mais das vezes só se manifestava por uma caridade ardente, como o quer o Espiritismo, mas absolutamente sem caráter supersticioso e impressionável. Muitas vezes ela me falou dessa lembrança de sua mocidade. Quando moça, tinha uma amiga doente, junto da qual passava parte das noites, para lhe prestar socorros. Uma noite em que ela caía de fadiga, o pai da moça doente insistiu para que fosse repousar, prometendo-lhe que se a filha piorasse ele iria preveni-la. Minha mãe cedeu e foi para a cama, depois de ter fechado o quarto. Pelas duas horas da manhã, foi despertada pelo contacto de dois dedos gelados sobre a espádua. Ela ficou vivamente impressionada e não pôde mais dormir. Então vestiu-se para ir à sua querida doente. Quando ia abrir a porta do seu quarto, bateram à porta da rua. Era um criado que lhe vinha comunicar a morte da amiga que acabara de falecer.

Em 1851, um dia eu percorria a galeria de quadros e retratos da família do magnífico castelo de C..., conduzido pelo Dr. B..., que tinha sido médico da família. Parei algum tempo em frente ao retrato de um homem de quarenta e poucos anos, vestido, se bem me lembro, com um costume azul, colete raiado vermelho e preto e calças cinza. O Sr. B... aproximou-se e me disse:

“Eis como vi o conde de C..., quinze dias depois de sua morte.” Pedi uma explicação, e eis o que ele me respondeu: Aproximadamente 15 dias após a morte do Sr. de C..., certa noite, ao anoitecer, eu saía do quarto da condessa. Para sair, eu precisava seguir um longo corredor, no qual se abria a porta do gabinete do Sr. de C... Quando cheguei em frente àquela porta, ela se abriu e o Sr. de C... saiu, avançou em minha direção e caminhou ao meu lado até à porta de saída.

O Sr. B... atribuiu esse fato a uma mera alucinação, mas, em todo caso, ela não se teria prolongado muito, porque penso que no fim do corredor havia outra peça a atravessar antes da saída.

Enfim, eis um fato que me é inteiramente pessoal:

Em 1829, creio, em Hagueneau, na Alsácia, eu era encarregado de um alojamento de convalescentes que nos enviava a numerosa guarnição de Strasbourg, então muito atacada por febres intermitentes. Entre os doentes eu tinha um jovem tambor que todas as noites, depois de meia noite, sentia alguém deslizar sobre sua cama, abraçá-lo e morder-lhe o peito à altura do mamilo esquerdo. Os seus companheiros de quarto me disseram que há oito dias eram despertados por seus gritos; que se aproximando dele, encontravam-no agitado, espantado e só conseguiam acalmá-lo passando a ponta de sabre por baixo da cama para lhe mostrar que não havia ninguém sob a cama nem nas proximidades. Encontrei o jovem soldado com o peito um pouco tumefacto e doloroso no lado esquerdo, e então atribuí seu estado à ação dessa causa física sobre sua imaginação; mas o efeito só se produzia uns instantes a cada vinte e quatro horas, e sempre na mesma hora. Produziu-se ainda algumas vezes, depois não mais ouvi falar do caso...

OBSERVAÇÃO: Sabe-se quão numerosos são os fatos espontâneos desse gênero. O Espiritismo os guarda na memória, porque ele dá a única explicação racional possível. Certamente há, entre esses casos, alguns que a rigor poderiam ser atribuídos àquilo que convencionou-se chamar de alucinação, ou a uma preocupação do espírito, mas eles já não poderiam ser assim considerados quando seguidos de um efeito material. Eles são tanto mais importantes quanto mais reconhecida sua autenticidade, e não podem, como dissemos num artigo precedente, ser levados à conta de charlatanice.


Dissertações espíritas

O cardeal Wiseman



A Patrie de 18 de março de 1865 relatava o seguinte:

“O Cardeal Wiseman, que acaba de falecer na Inglaterra, acreditava no Espiritismo. É o que prova o fato seguinte, citado pelo Spiritualist Magazine.

“Um bispo tinha lançado a interdição sobre dois membros de sua igreja, por causa de sua tendência para o Espiritismo. O cardeal suspendeu essa interdição e permitiu que os dois sacerdotes continuassem seus estudos e servissem como médiuns, dizendo-lhes: “Eu mesmo creio firmemente no Espiritismo e não poderia ser um bom membro da Igreja se tivesse a menor dúvida a respeito.”

Esse artigo tinha sido lido e comentado numa reunião espírita em casa do Sr. Delanne, mas hesitavam em evocar o cardeal, quando ele se manifestou espontaneamente pelas duas comunicações seguintes:

I

Vosso desejo de me evocar me trouxe a vós e estou contente por vir dizer-vos, meus irmãos bem-amados, que sim, na Terra eu era espírita convicto. Tinha vindo com essas aspirações que não pude desenvolver, mas me sentia feliz por vê-las desenvolvidas por outros. Eu era espírita porque o Espiritismo é o caminho reto que conduz ao verdadeiro objetivo e à perfeição; eu era espírita porque reconhecia no Espiritismo a realização de todas as profecias, desde o começo do mundo até os nossos dias; eu era espírita porque esta doutrina é o desenvolvimento da religião, o esclarecimento dos mistérios e a marcha da Humanidade inteira para Deus, que é a unidade; eu era espírita porque compreendi que esta revelação vinha de Deus e que todos os homens sérios deviam ajudá-la a avançar, a fim de um dia poderem todos dar-se as mãos benévolas; eu era espírita, enfim, porque o Espiritismo não lança anátema sobre ninguém e, a exemplo do Cristo, nosso divino modelo, ele abre os braços a todos, sem distinção de classe e de culto. Eis por que eu era espírita cristão.

Ó meus bem-amados irmãos! Que imensa graça o Senhor concede aos homens em lhes enviando esta luz divina que lhes abre os olhos e lhes faz ver de maneira irrecusável que além do túmulo existe mesmo outra vida e que, em vez de temer a morte, quando se viveu segundo os desígnios de Deus, deve-se abençoá-la quando vem libertar um de nós das pesadas cadeias da matéria.

Sim, essa vida que se prega constantemente de maneira tão horripilante existe, mas nada tem de penosa para as almas que na Terra observaram as leis do Senhor. Sim, lá encontramos aqueles que amamos na Terra; é a mãe bem-amada, uma terna mãe que vos vem felicitar e receber; são amigos que vos vêm ajudar a vos reconhecerdes, em vossa verdadeira pátria, e que vos mostram todos os encantos da vida verdadeira, dos quais os da Terra não passam de tristes imagens.

Perseverai, meus irmãos bem-amados, em marchar na via abençoada do Espiritismo; que para vós isto não seja uma palavra vã; que as comunicações que recebeis vos ajudem a subir o rude calvário da vida, a fim de que, chegados ao topo, possais ir colher os frutos de vida que para vós próprios tiverdes preparado.

É o que vos almejo, a vós todos que me escutais e a todos os meus irmãos em Deus. Aquele que foi o cardeal Wiseman.

(Médium :Sra. Delanne)


II

Meus amigos, por que não viria eu a vós? Os sentimentos expressos quando eu estava em vossa Terra, e que devem ser os de todos os servos de Deus e da verdade, devem ser, para todo espírita convicto, uma segurança de que usarei da graça que o Senhor me concede de vir instruir e guiar meus irmãos.

Oh! Sim, meus amigos, é com satisfação e reconhecimento por aquele a quem tudo devemos, que vos venho exortar, vós que tendes a felicidade de ser admitidos entre os obreiros do Senhor, a perseverardes na via em que estais empenhados. Ela é, senão a única, pelo menos a melhor, porque se uma parte da Humanidade pode construir a sua salvação com a fé cega, sem cair nos embustes e nos perigos que ela oferece, com mais forte razão aqueles cuja fé tem por base a razão e o amor a Deus, que nós vos fazemos conhecer tal qual ela é, devem chegar a conquistar a vida eterna no seio desse mesmo Deus.

Filhos, inclinai-vos, curvai a cabeça, porque o vosso Deus, vosso pai, vos abençoa. Glorificai-o e amai-o na eternidade!

Oremos juntos.

WISEMAN, assistido por Santo Agostinho (Médium: Sr. Erambert, de Aix).


Estas duas comunicações foram ditadas simultaneamente, o que explica a assistência de Santo Agostinho na última. Enquanto Wiseman fazia um médium escrever, Santo Agostinho fazia escrever outro, ao qual transmitia o pensamento do cardeal. Muitas vezes veem-se Espíritos pouco adiantados, ou ainda perturbados, não podendo exprimir-se sem a ajuda de um Espírito mais elevado; mas aqui não é o mesmo caso: Wiseman é bastante desprendido para exprimir suas próprias ideias.

Ambas as comunicações foram obtidas a 24 de março, na Sociedade de Paris, sem evocação, após a leitura das precedentes. A quarta é uma apreciação dos fatos acima, pelo Espírito de Lamennais.


III

Meus amigos, venho confirmar minha comunicação de segunda-feira. Estou feliz por vir a um meio onde teria muito a dizer e onde estou certo de ser compreendido. Oh! Sim, será uma grande felicidade para mim ver desenvolver-se, aos olhos do mestre, o progresso da doutrina santa e regeneradora que deve conduzir o mundo inteiro a seu destino divino.

Amigos, uni vossos esforços na obra que nos é confiada e sede reconhecidos pelo papel que o Criador de todas as coisas vos confiou. Jamais poderíeis fazer bastante para reconhecer a graça que ele vos concede. Mas a vossa boa vontade será levada em conta, como a vossa fé, a vossa caridade e o amor pelos vossos irmãos.

Bendizei-o, amai-o e tereis a vida eterna. Oremos juntos, meus caros amigos.

WISEMAN (Médium: Sr. Erambert, de Aix)



IV

A religião espiritualista é a alma do Cristianismo, é preciso não esquecer. Em meio do materialismo, do culto protestante e do católico, o cardeal Wiseman ousou proclamar a alma antes do corpo, o espírito antes da letra. Essa espécie de coragem é rara nos dois cleros, e é um espetáculo incomum, com efeito, o ato de fé espírita do cardeal Wiseman. Aliás, seria estranho que um Espírito tão culto, tão elevado quanto o do eminente cardeal tivesse visto no Espiritismo uma fé rebelde aos ensinos da mais pura moral do Cristianismo; nós, espíritas, nunca aplaudiríamos demais essa confiança afastada de todo respeito humano, de todo escrúpulo mundano. Não é um encorajamento a voz desse agonizante tão distinto? Não é um anúncio para o futuro, uma certeza de que com a boa vontade tão pregada pelo Evangelho, só há uma verdade contida na prática da caridade e na crença na imortalidade da alma? Outras vozes não menos sagradas diariamente proclamam nossa verdade imortal. É um hosannah sublime que cantam os homens visitados pelo Espírito, hosannah tão puro, tão entusiasta quanto o das almas visitadas por Jesus.

Nós mesmos, almas em sofrimento, não afastemos de nós a lembrança que nos chega, e no purgatório que suportamos, escutemos as vozes dos que nos fazem ver o além.

LAMENNAIS (Médium: Sr. A. Didier)

Notícias bibliográficas

O QUE É O ESPIRITISMO? por Allan Kardec. Nova edição revista e consideravelmente aumentada. In-12, com cerca de 200 páginas. Preço: l franco; pelo correio, l,20 franco.

As matérias desta nova edição estão assim divididas:


CAP. I: PEQUENA CONFERÊNCIA

Primeira conversa: O crítico Segunda conversa: O céptico

Espiritismo e Espiritualismo

Dissidências

Fenômenos espíritas simulados

Impotência dos detratores

O maravilhoso e o sobrenatural

Oposição da Ciência

Falsas explicações dos fenômenos

Os incrédulos não podem ver para se convencerem

Origem das ideias espíritas modernas

Meios de comunicação

Os médiuns interesseiros

Os médiuns e os feiticeiros

Diversidade nos Espíritos

Utilidade prática das manifestações

Loucura, suicídio, obsessão

Esquecimento do passado

Elementos de convicção

Sociedade Espírita de Paris

Interdição do Espiritismo

Terceira conversa: O padre. Objeções em nome da religião.


CAP. II: NOÇÕES ELEMENTARES DO ESPIRITISMO

Dos Espíritos

Comunicações com o mundo invisível

Objetivo providencial das manifestações espíritas

Dos médiuns

Escolhos dos médiuns

Qualidades dos médiuns

Charlatanismo

Identidade dos Espíritos

Contradições

Consequências do Espiritismo.


CAP. III: SOLUÇÃO DE ALGUNS PROBLEMAS PELA DOUTRINA ESPÍRITA

Pluralidade dos mundos

Da alma

O homem durante a vida terrenaO homem após a morte.


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No prelo, para aparecer a 1.º de agosto:

O CÉU E O INFERNO, ou A Justiça Divina segundo o Espiritismo, por Allan Kardec. Um volume grande in-12. Preço: 3,50 francos; pelo correio, 4 francos.

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VIE DE GERMAINE COUSIN[1], de Pibrac, bem-aventurada na caridade, dada mediunicamente por ela própria à senhorita M. S., num grupo de família. Brochura in-12. Preço: l franco; pelo correio, 1,10 franco. Toulouse, nas principais livrarias.

A vida de Germaine Cousin é, ao mesmo tempo, edificante e dramática, mas, por outro lado, eminentemente interessante pelos numerosos fatos mediúnicos que encerra, e que sem o Espiritismo seriam inexplicáveis ou maravilhosos. Os fenômenos, dos quais somos testemunhas em nossos dias, provam pelo menos a sua possibilidade. Todas as pessoas que não tenham uma ideia preconcebida da negação, e sobretudo os espíritas, lerão essa brochura com interesse.

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UNIÃO ESPÍRITA BORDALESA

Bordeaux contava com quatro publicações espíritas periódicas: La Ruche, le Sauveur, la Lumière e la Voix d’Outre-tombe. Estando la Lumière et le Sauveur sob a mesma direção, na realidade havia apenas três, que acabam de fundir-se numa publicação única, sob o título de l’Union spirite bordelaise, sob a direção do Sr. A. Bez, diretor de la Voix d’Outre-tombe. Felicitamos esses senhores pela medida que adotaram e que os nossos adversários errarão se a tomarem como indício de decadência da doutrina. Fatos antes concludentes aí estão para provar o contrário.

As matérias sobre o Espiritismo, embora muito numerosas, giram num círculo mais ou menos uniforme, daí a falta de variedade suficiente, e para o leitor que quisesse receber todas, uma carga muito onerosa, sem compensação. A nova folha bordalesa só poderia ganhar com essa fusão, sob todos os pontos de vista, e fazemos votos por sua prosperidade. Lemos com prazer, nos primeiros números, uma boa refutação aos artigos do Sr. Fumeaux sobre a iniquidade e os flagelos do Espiritismo, bem como um interessante relato de uma nova cura em Marmande.

(Ver a seguir em obras diversas).

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MÚSICA E LETRA compostas pelo Rei Henrique III em 1574, reveladas em sonho em 1865 ao Sr. N. C. Bach. Legouix, editor, Boulevard Poissonnière, 27 ─ Paris. Preço marcado: 3 francos.




[1] Damos sempre no original o título das obras não traduzidas para a nossa língua. N. do T.





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