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Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865 > Agosto
Agosto
O que ensina o Espiritismo
Há criaturas que perguntam quais são as conquistas novas que devemos ao Espiritismo. Pelo fato de ele não ter dotado o mundo com uma nova indústria produtiva, como o vapor, concluem que ele nada produziu. A maior parte dos que fazem tal pergunta, não se tendo dado ao trabalho de estudá-lo, só conhecem o Espiritismo de fantasia, criado para as necessidades da crítica, e que nada tem de comum com o Espiritismo sério. Não é, pois, de admirar que perguntem qual pode ser o seu lado útil e prático. Teriam tido que buscá-lo em sua fonte, e não nas caricaturas que dele fizeram os que só têm interesse em denegri-lo.
Numa outra ordem de ideias, alguns acham, ao contrário, a marcha do Espiritismo muito lenta para o seu gosto. Admiram-se que ele não tenha ainda sondado todos os mistérios da Natureza, nem abordado todas as questões que parecem ser de sua alçada; gostariam de vê-lo diariamente ensinar coisas novas, ou enriquecer-se com alguma descoberta. Como ele ainda não resolveu a questão da origem dos seres, do princípio e do fim de todas as coisas, da essência divina e de algumas outras do mesmo porte, concluem que não saiu do á-bê-cê; que ainda não entrou na verdadeira via filosófica e que se arrasta nos lugares-comuns, porque prega incessantemente a humildade e a caridade. Dizem eles: “Até hoje ele nada de novo nos ensinou, porque a reencarnação, a negação das penas eternas, a imortalidade da alma, a gradação através dos períodos da vitalidade intelectual, o perispírito, não são descobertas espíritas propriamente ditas; então é preciso caminhar para descobertas mais verdadeiras e mais sólidas.”
A tal respeito julgamos que devemos apresentar algumas observações, que também não serão novidades, mas há coisas que devem ser repetidas sob diversas formas.
É verdade que o Espiritismo nada inventou de tudo isso, pois não há verdadeiras verdades senão aquelas que são eternas e que, por isto mesmo, devem ter germinado em todas as épocas. Mas não é alguma coisa havê-las tirado, senão do nada, ao menos do esquecimento; de um germe ter feito uma planta vivaz; de uma ideia individual, perdida na noite dos tempos, ou abafada pelos preconceitos, ter feito uma crença geral; ter provado o que estava em estado de hipótese; ter demonstrado a existência de uma lei no que parecia excepcional e fortuito; de uma teoria vaga ter feito uma coisa prática; de uma ideia improdutiva ter tirado aplicações úteis? Nada é mais verdadeiro que o provérbio: “Não há nada de novo sob o sol”, e até mesmo essa verdade não é nova. Assim, não há uma descoberta da qual não se encontrem vestígios e o princípio em algum lugar. Por conta disto, Copérnico não teria o mérito de seu sistema, porque o movimento da Terra tinha sido suspeitado antes da era cristã. Era uma coisa tão simples, entretanto, era preciso encontrá-la. A história do ovo de Colombo será sempre uma eterna verdade.
Além disso, é incontestável que o Espiritismo ainda tem muito a nos ensinar. É o que não temos cessado de repetir, pois jamais pretendemos que ele tenha dito a última palavra. No entanto, considerando-se que ainda há o que fazer, segue-se que ele não tenha ainda saído do á-bê-cê? Seu á-bê-cê foram as mesas girantes, e a partir de então, ao que nos parece, ele tem dado alguns passos; parece-nos mesmo que tais passos foram grandes em alguns anos, se o compararmos às outras ciências que levaram séculos para chegar ao ponto em que estão. Nenhuma chegou ao apogeu num primeiro impulso; elas avançam, não pela vontade dos homens, mas à medida que as circunstâncias as põem no caminho de novas descobertas. Ora, ninguém tem o poder de comandar essas circunstâncias, e a prova é que todas as vezes que uma ideia é prematura, ela aborta, para reaparecer mais tarde, em tempo oportuno.
Mas em falta de novas descobertas, os homens de ciência nada terão que fazer? A Química não será mais a Química se diariamente não descobrir novos corpos? Os astrônomos serão condenados a cruzar os braços por não encontrarem novos planetas? E assim em todos os outros ramos das Ciências e da indústria. Antes de procurar coisas novas, não se tem que fazer aplicação daquilo que se sabe? É precisamente para dar aos homens tempo de assimilar, aplicar e vulgarizar o que sabem, que a Providência põe em compasso de espera a marcha para a frente. Aí está a História para nos mostrar que as Ciências não seguem uma marcha ascendente contínua, pelo menos ostensivamente. Os grandes movimentos que revolucionam uma ideia só se operam em intervalos mais ou menos distanciados. Não há, portanto, estagnação, mas elaboração, aplicação e frutificação daquilo que se sabe, o que sempre é progresso.
Poderia o Espírito humano absorver incessantemente novas ideias? A própria Terra não necessita de um tempo de repouso antes de reproduzir? Que diriam de um professor que diariamente ensinasse novas regras aos seus alunos, sem lhes dar tempo para se exercitarem nas que aprenderam, de com elas se identificarem e de aplicá-las? Então Deus seria menos previdente e menos hábil que um professor?
Em todas as coisas, as ideias novas devem encaixar-se nas ideias adquiridas. Se estas não estão suficientemente elaboradas e consolidadas no cérebro; se o espírito não as assimilou, aquelas que aí quisermos implantar não criarão raízes. Estaremos semeando no vazio.
Dá-se o mesmo em relação ao Espiritismo. Os adeptos de tal modo aproveitaram o que ele até hoje ensinou, que nada mais tenham a fazer? São de tal modo caridosos, desprovidos de orgulho, desinteressados, benevolentes para os seus semelhantes; moderaram tanto as suas paixões, abjuraram o ódio, a inveja e o ciúme; enfim são tão perfeitos que de agora em diante seja supérfluo pregar-lhes a caridade, a humildade, a abnegação, numa palavra, a moral? Essa pretensão, por si só, provaria quanto ainda necessitam dessas lições elementares, que alguns consideram fastidiosas e pueris. É, entretanto, somente com o auxílio dessas instruções, se as aproveitarem, que poderão elevar-se bastante para se tornarem dignos de receber um ensinamento superior.
O Espiritismo tem como objetivo a regeneração da Humanidade: isto é um fato constatado. Ora, não podendo essa regeneração operar-se senão pelo progresso moral, daí resulta que seu objetivo essencial, providencial, é o melhoramento de cada um. Os mistérios que ele nos pode revelar são o acessório. Porque ele nos abriu o santuário de todos os conhecimentos, não estaríamos mais adiantados para o nosso estado futuro, se não fôssemos melhores. Para admitir-nos ao banquete da suprema felicidade, Deus não pergunta o que sabemos nem o que possuímos, mas o que valemos e o bem que fizemos. É, pois, no seu melhoramento individual que todo espírita sincero deve trabalhar, antes de tudo. Só aquele que dominou suas más inclinações realmente tirou proveito do Espiritismo e receberá a sua recompensa. É por isto que os bons Espíritos, por ordem de Deus, multiplicam suas instruções e as repetem à saciedade; só um orgulho insensato pode dizer: Não preciso de mais nada. Só Deus sabe quando elas serão inúteis e só a ele cabe dirigir o ensino de seus mensageiros e de adequá-lo ao nosso adiantamento.
Vejamos, entretanto, se fora do ensinamento puramente moral os resultados do Espiritismo são tão estéreis quanto pretendem alguns.
1.º ─ Inicialmente ele dá, como sabem todos, a prova cabal da existência e da imortalidade da alma. É verdade que não é uma descoberta, mas é por falta de provas sobre este ponto que há tantos incrédulos ou indiferentes quanto ao futuro; é provando o que não passava de teoria, que ele triunfa sobre o materialismo e evita as funestas consequências deste sobre a Sociedade. Tendo transformado em certeza a dúvida sobre o futuro, é toda uma revolução nas ideias, cujas consequências são incalculáveis. Se a isto se limitassem os resultados das manifestações, esses resultados seriam imensos.
2.º ─ Pela firme crença que desenvolve, ele exerce uma ação poderosa sobre o moral do homem; leva-o ao bem, consola-o nas aflições, dá-lhe força e coragem nas provações da vida e o desvia do pensamento do suicídio.
3.º ─ Retifica todas as ideias falsas que se tivessem feito do futuro da alma, do o Céu, do inferno, das penas e das recompensas; destrói radicalmente, pela irresistível lógica dos fatos, os dogmas das penas eternas e dos demônios; numa palavra, desvela-nos a vida futura e no-la mostra racional e conforme à justiça de Deus. É ainda uma coisa de muito valor.
4.º ─ Dá a conhecer o que se passa no momento da morte. Esse fenômeno, até hoje insondável, não mais tem mistérios; as menores particularidades dessa passagem tão temida são hoje conhecidas. Ora, como todo mundo morre, tal conhecimento interessa a todo mundo.
5.º ─ Pela lei da pluralidade das existências, abre um novo campo à Filosofia; o homem sabe de onde vem, para onde vai, com que objetivo está na Terra. Explica a causa de todas as misérias humanas, de todas as desigualdades sociais; dá as próprias leis da Natureza como base dos princípios de solidariedade universal, de fraternidade, de igualdade e de liberdade, que se assentavam apenas na teoria. Enfim, lança luz sobre as questões mais árduas da Metafísica, da Psicologia e da Moral.
6.º ─ Pela teoria dos fluidos perispirituais, dá a conhecer o mecanismo das sensações e das percepções da alma; explica os fenômenos da dupla vista, da visão à distância, do sonambulismo, do êxtase, dos sonhos, das visões, das aparições, etc.; abre um novo campo à Fisiologia e à Patologia.
7.º ─ Provando as relações existentes entre os mundos corporal e espiritual, mostra neste último uma das forças ativas da Natureza, um poder inteligente, e revela a razão de uma porção de efeitos atribuídos a causas sobrenaturais que alimentaram a maioria das ideias supersticiosas.
8.º ─ Revelando o fato das obsessões, faz conhecer a causa, até aqui desconhecida, de numerosas afecções sobre as quais a Ciência se havia equivocado em detrimento dos doentes, e dá os meios de curá-los.
9.º ─ Dando-nos a conhecer as verdadeiras condições da prece e seu modo de ação; revelando-nos a influência recíproca dos Espíritos encarnados e desencarnados, ensina-nos o poder do homem sobre os Espíritos imperfeitos para moralizá-los e arrancá-los aos sofrimentos inerentes à sua inferioridade.
10.º ─ Dando a conhecer a magnetização espiritual, que era desconhecida, abre ao magnetismo um novo caminho e lhe traz um novo e poderoso elemento de cura.
O mérito de uma invenção não está na descoberta de um princípio, quase sempre anteriormente conhecido, mas na aplicação desse princípio. A reencarnação, sem dúvida, não é uma ideia nova, tanto quanto o perispírito, descrito por São Paulo sob o nome de corpo espiritual, nem mesmo a comunicação com os Espíritos. O Espiritismo, que não se gaba de haver descoberto a Natureza, procura cuidadosamente todos os traços que pode encontrar, da anterioridade de suas ideias, e quando os encontra, apressa-se em proclamá-los, como prova em apoio ao que propõe. Aqueles, pois, que invocam essa anterioridade visando depreciar o que ele faz, vão contra o seu objetivo, e agem incorretamente, pois isto poderia levantar a suspeita de uma ideia preconcebida.
A descoberta da reencarnação e do perispírito não pertence, pois, ao Espiritismo. É coisa sabida. Mas, até o aparecimento dele, que proveito a Ciência, a Moral, a Religião haviam tirado desses dois princípios, ignorados pelas massas, e mantidos em estado de letra morta? Ele não só os pôs à luz, os provou e fez reconhecer como leis da Natureza, mas os desenvolveu e faz frutificar; deles já fez saírem numerosos e fecundos resultados, sem os quais não se poderia compreender uma infinidade de coisas; diariamente nos leva a compreendermos coisas novas, e estamos longe de esgotar essa mina. Levando-se em conta que esses dois princípios eram conhecidos, por que ficaram tanto tempo improdutivos? Por que, durante tantos séculos, todas as filosofias se chocaram contra tantos problemas insolúveis? É que eram diamantes brutos, que deviam ser lapidados: é o que fez o Espiritismo. Ele abriu um novo caminho à Filosofia, ou melhor, criou uma nova Filosofia que diariamente conquista seu lugar no mundo. Então, estes são resultados de tal modo nulos que devamos acelerar a caminhada em busca de descobertas mais verdadeiras e mais sólidas?
Em resumo, um certo número de verdades fundamentais, esboçadas por alguns cérebros de escol, e conservadas, em sua maioria, como que em estado latente, uma vez que foram estudadas, elaboradas e provadas, de estéreis que eram, tornam-se uma mina fecunda, de onde saíram inúmeros princípios secundários e aplicações, e abriram um vasto campo à exploração, novos horizontes às Ciências, à Filosofia, à Moral, à Religião e à economia social.
Tais são, até hoje, as principais conquistas devidas ao Espiritismo, e não temos feito mais do que indicar os pontos culminantes. Supondo que devessem limitar-se a isto, já nos poderíamos dar por satisfeitos, e dizer que uma ciência nova, que dá tais resultados em menos de dez anos, não é acusada de nulidade, porque toca em todas as questões vitais da Humanidade e traz aos conhecimentos humanos um contingente que não se pode desdenhar. Até que apenas esses pontos tenham recebido todas as aplicações que lhes são susceptíveis, e que os homens os tenham aproveitado, ainda se passará muito tempo, e os espíritas que quiserem pô-los em prática para si próprios e para o bem de todos, não ficarão desocupados.
Esses pontos são outros tantos focos de onde irradiarão inumeráveis verdades secundárias que se trata de desenvolver e aplicar, o que se faz diariamente, porque diariamente se revelam fatos que levantam uma nova ponta do véu. O Espiritismo deu sucessivamente e em alguns anos todas as bases fundamentais do novo edifício. Cabe agora a seus adeptos pôr em prática esse material, antes de pedir materiais novos. Deus saberá bem lhos fornecer, quando tiverem completado sua tarefa.
Dizem que os espíritas só sabem o á-bê-cê do Espiritismo. Que seja. Para começar, então, aprendamos a soletrar esse alfabeto, o que não é problema de um dia, porque, mesmo reduzido tão somente a essas proporções, passará muito tempo antes que tenhamos esgotado todas as combinações e recolhido todos os frutos. Não restam mais fatos a explicar? Aliás, os espíritas não têm que ensinar esse alfabeto aos que o ignoram? Já lançaram eles a semente em toda parte onde poderiam fazêlo? Não resta mais incrédulos a converter, obsedados a curar, consolações a dar, lágrimas a enxugar? Temos razões para dizer que não há mais nada a fazer quando ainda não terminamos a tarefa, quando ainda restam tantas chagas a fechar? Aí estão nobres ocupações que vale a pena conhecer melhor e um pouco mais cedo que os outros.
Saibamos, pois, soletrar o nosso alfabeto antes de querer ler correntemente no grande livro da Natureza. Deus saberá bem no-lo abrir, à medida que avançarmos, mas não depende de nenhum mortal forçar sua vontade, antecipando o tempo para cada coisa. Se a árvore da Ciência é muito alta para que possamos atingi-la, esperemos para voar sobre ela que as nossas asas estejam crescidas e solidamente pregadas, para não termos a sorte de Ícaro.
Numa outra ordem de ideias, alguns acham, ao contrário, a marcha do Espiritismo muito lenta para o seu gosto. Admiram-se que ele não tenha ainda sondado todos os mistérios da Natureza, nem abordado todas as questões que parecem ser de sua alçada; gostariam de vê-lo diariamente ensinar coisas novas, ou enriquecer-se com alguma descoberta. Como ele ainda não resolveu a questão da origem dos seres, do princípio e do fim de todas as coisas, da essência divina e de algumas outras do mesmo porte, concluem que não saiu do á-bê-cê; que ainda não entrou na verdadeira via filosófica e que se arrasta nos lugares-comuns, porque prega incessantemente a humildade e a caridade. Dizem eles: “Até hoje ele nada de novo nos ensinou, porque a reencarnação, a negação das penas eternas, a imortalidade da alma, a gradação através dos períodos da vitalidade intelectual, o perispírito, não são descobertas espíritas propriamente ditas; então é preciso caminhar para descobertas mais verdadeiras e mais sólidas.”
A tal respeito julgamos que devemos apresentar algumas observações, que também não serão novidades, mas há coisas que devem ser repetidas sob diversas formas.
É verdade que o Espiritismo nada inventou de tudo isso, pois não há verdadeiras verdades senão aquelas que são eternas e que, por isto mesmo, devem ter germinado em todas as épocas. Mas não é alguma coisa havê-las tirado, senão do nada, ao menos do esquecimento; de um germe ter feito uma planta vivaz; de uma ideia individual, perdida na noite dos tempos, ou abafada pelos preconceitos, ter feito uma crença geral; ter provado o que estava em estado de hipótese; ter demonstrado a existência de uma lei no que parecia excepcional e fortuito; de uma teoria vaga ter feito uma coisa prática; de uma ideia improdutiva ter tirado aplicações úteis? Nada é mais verdadeiro que o provérbio: “Não há nada de novo sob o sol”, e até mesmo essa verdade não é nova. Assim, não há uma descoberta da qual não se encontrem vestígios e o princípio em algum lugar. Por conta disto, Copérnico não teria o mérito de seu sistema, porque o movimento da Terra tinha sido suspeitado antes da era cristã. Era uma coisa tão simples, entretanto, era preciso encontrá-la. A história do ovo de Colombo será sempre uma eterna verdade.
Além disso, é incontestável que o Espiritismo ainda tem muito a nos ensinar. É o que não temos cessado de repetir, pois jamais pretendemos que ele tenha dito a última palavra. No entanto, considerando-se que ainda há o que fazer, segue-se que ele não tenha ainda saído do á-bê-cê? Seu á-bê-cê foram as mesas girantes, e a partir de então, ao que nos parece, ele tem dado alguns passos; parece-nos mesmo que tais passos foram grandes em alguns anos, se o compararmos às outras ciências que levaram séculos para chegar ao ponto em que estão. Nenhuma chegou ao apogeu num primeiro impulso; elas avançam, não pela vontade dos homens, mas à medida que as circunstâncias as põem no caminho de novas descobertas. Ora, ninguém tem o poder de comandar essas circunstâncias, e a prova é que todas as vezes que uma ideia é prematura, ela aborta, para reaparecer mais tarde, em tempo oportuno.
Mas em falta de novas descobertas, os homens de ciência nada terão que fazer? A Química não será mais a Química se diariamente não descobrir novos corpos? Os astrônomos serão condenados a cruzar os braços por não encontrarem novos planetas? E assim em todos os outros ramos das Ciências e da indústria. Antes de procurar coisas novas, não se tem que fazer aplicação daquilo que se sabe? É precisamente para dar aos homens tempo de assimilar, aplicar e vulgarizar o que sabem, que a Providência põe em compasso de espera a marcha para a frente. Aí está a História para nos mostrar que as Ciências não seguem uma marcha ascendente contínua, pelo menos ostensivamente. Os grandes movimentos que revolucionam uma ideia só se operam em intervalos mais ou menos distanciados. Não há, portanto, estagnação, mas elaboração, aplicação e frutificação daquilo que se sabe, o que sempre é progresso.
Poderia o Espírito humano absorver incessantemente novas ideias? A própria Terra não necessita de um tempo de repouso antes de reproduzir? Que diriam de um professor que diariamente ensinasse novas regras aos seus alunos, sem lhes dar tempo para se exercitarem nas que aprenderam, de com elas se identificarem e de aplicá-las? Então Deus seria menos previdente e menos hábil que um professor?
Em todas as coisas, as ideias novas devem encaixar-se nas ideias adquiridas. Se estas não estão suficientemente elaboradas e consolidadas no cérebro; se o espírito não as assimilou, aquelas que aí quisermos implantar não criarão raízes. Estaremos semeando no vazio.
Dá-se o mesmo em relação ao Espiritismo. Os adeptos de tal modo aproveitaram o que ele até hoje ensinou, que nada mais tenham a fazer? São de tal modo caridosos, desprovidos de orgulho, desinteressados, benevolentes para os seus semelhantes; moderaram tanto as suas paixões, abjuraram o ódio, a inveja e o ciúme; enfim são tão perfeitos que de agora em diante seja supérfluo pregar-lhes a caridade, a humildade, a abnegação, numa palavra, a moral? Essa pretensão, por si só, provaria quanto ainda necessitam dessas lições elementares, que alguns consideram fastidiosas e pueris. É, entretanto, somente com o auxílio dessas instruções, se as aproveitarem, que poderão elevar-se bastante para se tornarem dignos de receber um ensinamento superior.
O Espiritismo tem como objetivo a regeneração da Humanidade: isto é um fato constatado. Ora, não podendo essa regeneração operar-se senão pelo progresso moral, daí resulta que seu objetivo essencial, providencial, é o melhoramento de cada um. Os mistérios que ele nos pode revelar são o acessório. Porque ele nos abriu o santuário de todos os conhecimentos, não estaríamos mais adiantados para o nosso estado futuro, se não fôssemos melhores. Para admitir-nos ao banquete da suprema felicidade, Deus não pergunta o que sabemos nem o que possuímos, mas o que valemos e o bem que fizemos. É, pois, no seu melhoramento individual que todo espírita sincero deve trabalhar, antes de tudo. Só aquele que dominou suas más inclinações realmente tirou proveito do Espiritismo e receberá a sua recompensa. É por isto que os bons Espíritos, por ordem de Deus, multiplicam suas instruções e as repetem à saciedade; só um orgulho insensato pode dizer: Não preciso de mais nada. Só Deus sabe quando elas serão inúteis e só a ele cabe dirigir o ensino de seus mensageiros e de adequá-lo ao nosso adiantamento.
Vejamos, entretanto, se fora do ensinamento puramente moral os resultados do Espiritismo são tão estéreis quanto pretendem alguns.
1.º ─ Inicialmente ele dá, como sabem todos, a prova cabal da existência e da imortalidade da alma. É verdade que não é uma descoberta, mas é por falta de provas sobre este ponto que há tantos incrédulos ou indiferentes quanto ao futuro; é provando o que não passava de teoria, que ele triunfa sobre o materialismo e evita as funestas consequências deste sobre a Sociedade. Tendo transformado em certeza a dúvida sobre o futuro, é toda uma revolução nas ideias, cujas consequências são incalculáveis. Se a isto se limitassem os resultados das manifestações, esses resultados seriam imensos.
2.º ─ Pela firme crença que desenvolve, ele exerce uma ação poderosa sobre o moral do homem; leva-o ao bem, consola-o nas aflições, dá-lhe força e coragem nas provações da vida e o desvia do pensamento do suicídio.
3.º ─ Retifica todas as ideias falsas que se tivessem feito do futuro da alma, do o Céu, do inferno, das penas e das recompensas; destrói radicalmente, pela irresistível lógica dos fatos, os dogmas das penas eternas e dos demônios; numa palavra, desvela-nos a vida futura e no-la mostra racional e conforme à justiça de Deus. É ainda uma coisa de muito valor.
4.º ─ Dá a conhecer o que se passa no momento da morte. Esse fenômeno, até hoje insondável, não mais tem mistérios; as menores particularidades dessa passagem tão temida são hoje conhecidas. Ora, como todo mundo morre, tal conhecimento interessa a todo mundo.
5.º ─ Pela lei da pluralidade das existências, abre um novo campo à Filosofia; o homem sabe de onde vem, para onde vai, com que objetivo está na Terra. Explica a causa de todas as misérias humanas, de todas as desigualdades sociais; dá as próprias leis da Natureza como base dos princípios de solidariedade universal, de fraternidade, de igualdade e de liberdade, que se assentavam apenas na teoria. Enfim, lança luz sobre as questões mais árduas da Metafísica, da Psicologia e da Moral.
6.º ─ Pela teoria dos fluidos perispirituais, dá a conhecer o mecanismo das sensações e das percepções da alma; explica os fenômenos da dupla vista, da visão à distância, do sonambulismo, do êxtase, dos sonhos, das visões, das aparições, etc.; abre um novo campo à Fisiologia e à Patologia.
7.º ─ Provando as relações existentes entre os mundos corporal e espiritual, mostra neste último uma das forças ativas da Natureza, um poder inteligente, e revela a razão de uma porção de efeitos atribuídos a causas sobrenaturais que alimentaram a maioria das ideias supersticiosas.
8.º ─ Revelando o fato das obsessões, faz conhecer a causa, até aqui desconhecida, de numerosas afecções sobre as quais a Ciência se havia equivocado em detrimento dos doentes, e dá os meios de curá-los.
9.º ─ Dando-nos a conhecer as verdadeiras condições da prece e seu modo de ação; revelando-nos a influência recíproca dos Espíritos encarnados e desencarnados, ensina-nos o poder do homem sobre os Espíritos imperfeitos para moralizá-los e arrancá-los aos sofrimentos inerentes à sua inferioridade.
10.º ─ Dando a conhecer a magnetização espiritual, que era desconhecida, abre ao magnetismo um novo caminho e lhe traz um novo e poderoso elemento de cura.
O mérito de uma invenção não está na descoberta de um princípio, quase sempre anteriormente conhecido, mas na aplicação desse princípio. A reencarnação, sem dúvida, não é uma ideia nova, tanto quanto o perispírito, descrito por São Paulo sob o nome de corpo espiritual, nem mesmo a comunicação com os Espíritos. O Espiritismo, que não se gaba de haver descoberto a Natureza, procura cuidadosamente todos os traços que pode encontrar, da anterioridade de suas ideias, e quando os encontra, apressa-se em proclamá-los, como prova em apoio ao que propõe. Aqueles, pois, que invocam essa anterioridade visando depreciar o que ele faz, vão contra o seu objetivo, e agem incorretamente, pois isto poderia levantar a suspeita de uma ideia preconcebida.
A descoberta da reencarnação e do perispírito não pertence, pois, ao Espiritismo. É coisa sabida. Mas, até o aparecimento dele, que proveito a Ciência, a Moral, a Religião haviam tirado desses dois princípios, ignorados pelas massas, e mantidos em estado de letra morta? Ele não só os pôs à luz, os provou e fez reconhecer como leis da Natureza, mas os desenvolveu e faz frutificar; deles já fez saírem numerosos e fecundos resultados, sem os quais não se poderia compreender uma infinidade de coisas; diariamente nos leva a compreendermos coisas novas, e estamos longe de esgotar essa mina. Levando-se em conta que esses dois princípios eram conhecidos, por que ficaram tanto tempo improdutivos? Por que, durante tantos séculos, todas as filosofias se chocaram contra tantos problemas insolúveis? É que eram diamantes brutos, que deviam ser lapidados: é o que fez o Espiritismo. Ele abriu um novo caminho à Filosofia, ou melhor, criou uma nova Filosofia que diariamente conquista seu lugar no mundo. Então, estes são resultados de tal modo nulos que devamos acelerar a caminhada em busca de descobertas mais verdadeiras e mais sólidas?
Em resumo, um certo número de verdades fundamentais, esboçadas por alguns cérebros de escol, e conservadas, em sua maioria, como que em estado latente, uma vez que foram estudadas, elaboradas e provadas, de estéreis que eram, tornam-se uma mina fecunda, de onde saíram inúmeros princípios secundários e aplicações, e abriram um vasto campo à exploração, novos horizontes às Ciências, à Filosofia, à Moral, à Religião e à economia social.
Tais são, até hoje, as principais conquistas devidas ao Espiritismo, e não temos feito mais do que indicar os pontos culminantes. Supondo que devessem limitar-se a isto, já nos poderíamos dar por satisfeitos, e dizer que uma ciência nova, que dá tais resultados em menos de dez anos, não é acusada de nulidade, porque toca em todas as questões vitais da Humanidade e traz aos conhecimentos humanos um contingente que não se pode desdenhar. Até que apenas esses pontos tenham recebido todas as aplicações que lhes são susceptíveis, e que os homens os tenham aproveitado, ainda se passará muito tempo, e os espíritas que quiserem pô-los em prática para si próprios e para o bem de todos, não ficarão desocupados.
Esses pontos são outros tantos focos de onde irradiarão inumeráveis verdades secundárias que se trata de desenvolver e aplicar, o que se faz diariamente, porque diariamente se revelam fatos que levantam uma nova ponta do véu. O Espiritismo deu sucessivamente e em alguns anos todas as bases fundamentais do novo edifício. Cabe agora a seus adeptos pôr em prática esse material, antes de pedir materiais novos. Deus saberá bem lhos fornecer, quando tiverem completado sua tarefa.
Dizem que os espíritas só sabem o á-bê-cê do Espiritismo. Que seja. Para começar, então, aprendamos a soletrar esse alfabeto, o que não é problema de um dia, porque, mesmo reduzido tão somente a essas proporções, passará muito tempo antes que tenhamos esgotado todas as combinações e recolhido todos os frutos. Não restam mais fatos a explicar? Aliás, os espíritas não têm que ensinar esse alfabeto aos que o ignoram? Já lançaram eles a semente em toda parte onde poderiam fazêlo? Não resta mais incrédulos a converter, obsedados a curar, consolações a dar, lágrimas a enxugar? Temos razões para dizer que não há mais nada a fazer quando ainda não terminamos a tarefa, quando ainda restam tantas chagas a fechar? Aí estão nobres ocupações que vale a pena conhecer melhor e um pouco mais cedo que os outros.
Saibamos, pois, soletrar o nosso alfabeto antes de querer ler correntemente no grande livro da Natureza. Deus saberá bem no-lo abrir, à medida que avançarmos, mas não depende de nenhum mortal forçar sua vontade, antecipando o tempo para cada coisa. Se a árvore da Ciência é muito alta para que possamos atingi-la, esperemos para voar sobre ela que as nossas asas estejam crescidas e solidamente pregadas, para não termos a sorte de Ícaro.
Padre Dégenettes, médium
Antigo cura de Notre-Dame Des Victoires, em Paris
O fato seguinte é tirado textualmente da obra intitulada Mês de Maria, pelo padre Défossés:
Eis como se produziu no mundo, de uma maneira sobrenatural e celeste, a obra divina da arquiconfraria do santíssimo e imaculado Coração de Maria. Deixemos ainda a palavra ao Sr. Dégenettes. Quem melhor do que ele poderia contar-nos o que se passou?
“A arquiconfraria nasceu a 3 de dezembro de 1836. Muitas pessoas que só julgam pelas aparências, nos chamam seu fundador. Não podemos deixar passar este preconceito sem combatê-lo e destruí-lo. Não somos o seu fundador. Só a Deus a honra e a glória. Não tínhamos nenhuma das disposições de espírito e de coração que nos pudessem preparar para isto. Devemos confessar, pedindo perdão a Deus e a Maria, que, sendo filho de Maria, habituado desde nossa mais tenra idade a amá-la e venerá-la como a mais terna das mães, nada compreendíamos da devoção de seu santo coração, que até evitávamos de pensar nisso. Acrescentamos ainda que um santo religioso, o padre Maccarty, um dia tendo pregado em nossa igreja das Missões estrangeiras sobre o santo coração de Maria, nenhum sentimento recolhemos de seu sermão, para dar nosso sufrágio ordinário à eloquência do pregador, mas aborrecido, tão grande era o orgulho de nossa prevenção, por ter ele tratado de um assunto que pensávamos não ser mais útil aos outros do que a nós. Tal foi nossa disposição constante até 3 de dezembro de 1836, festa de São Francisco Xavier.
“Naquele dia, às nove da manhã, eu começava a santa missa ao pé do altar da santa Virgem, que a partir de então consagramos ao seu santíssimo e imaculado Coração, e que é hoje o altar da arquiconfraria. Eu estava no primeiro versículo do salmo Judica me, quando um pensamento veio colher o meu espírito: era o pensamento da inutilidade de meu ministério nessa paróquia; ele não me era estranho e eu tinha muitas ocasiões de concebê-lo e recordá-lo, mas naquela circunstância ele me tocou mais vivamente que de ordinário. Como esse não era o lugar nem o momento para dele me ocupar, fiz todos os esforços possíveis para afastá-lo do meu espírito. Não foi possível consegui-lo e parecia-me sempre ouvir uma voz que vinha de meu íntimo e me dizia: Não farás nada, teu ministério é nulo. Vê, há mais de quatro anos estás aqui; que ganhaste? Tudo está perdido. Este povo não tem mais fé. Por prudência deverias retirar-te!...
“Malgrado todos os meus esforços para repelir esse pensamento infeliz, ele se obstinou de tal modo que absorveu todas as faculdades de meu espírito, a ponto de eu ler e recitar as preces sem mais compreender o que dizia. A violência que eu me tinha feito me havia fatigado e eu experimentava uma transpiração das mais abundantes. Fiquei nesse estado até o começo do cânon da missa. Depois de haver recitado o Sanctus parei um instante e procurei reunir minhas ideias; apavorado com o estado de meu espírito, disse para mim mesmo: “Meu Deus, em que estado estou? Como vou oferecer o divino sacrifício? Eu não tenho suficiente liberdade de espírito para consagrar. Ó meu Deus, livrai-me desta distração.” Assim que proferi essas palavras, ouvi distintamente estas, pronunciadas de maneira solene: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria. Tão logo ouvi essas palavras, que não me feriam o ouvido mas ressoavam apenas dentro de mim, recobrei imediatamente a calma e a liberdade de espírito. A fatal impressão que me tinha agitado tão violentamente, logo se apagou e não me ficou nenhuma impressão. Dei continuidade aos santos mistérios sem nenhuma lembrança de minha precedente distração.
“Após a minha ação de graças, examinei a maneira pela qual tinha oferecido o santo sacrifício. Só então me lembrei que tinha tido uma distração, mas era apenas uma lembrança confusa e fui obrigado, por uns instantes, a rebuscar qual tinha sido o objeto. Assegurei-me, dizendo: ‘Eu não pequei. Eu não estava livre.’ Perguntei-me como essa distração tinha cessado e a lembrança das palavras que tinha ouvido voltou ao meu espírito. Esse pensamento feriu-me com uma espécie de terror. Procurei negar a possibilidade do fato, mas minha memória confundia os raciocínios que eu me objetava. Batalhei comigo mesmo durante dez minutos. Eu dizia a mim mesmo: Se eu me detivesse nisto, expor-me-ia a uma grande desgraça; ela afetaria meu moral e eu poderia tornar-me visionário.
“Fatigado por esse novo combate, tomei minha decisão e disse: Não posso deter-me neste pensamento; ele teria consequências muito desagradáveis; além do mais, é uma ilusão; tive uma longa distração durante a missa, eis tudo. O essencial para mim é não ter pecado. Não quero mais pensar nisto. Apoiei as mãos no genuflexório onde estava de joelhos. No mesmo instante, e ainda não me tinha levantado (estava sozinho na sacristia) ouvi pronunciar bem distintamente: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria. Caí de joelhos e minha primeira impressão foi um momento de estupefação. Eram as mesmas palavras, o mesmo som, a mesma maneira de ouvi-las. Durante alguns instantes tentei não acreditar; queria ao menos duvidar e não podia mais. Eu tinha ouvido, não podia ocultá-lo a mim mesmo. Um sentimento de tristeza apoderou-se de mim; as inquietudes que haviam acabado de atormentar o meu espírito apresentavam-se de novo. Em vão tentei expulsar todas essas ideias; eu me dizia: É ainda uma ilusão, fruto do abalo dado em teu cérebro pela primeira impressão que ressentiste; não ouviste, não pudeste ouvir, e o sentido íntimo me dizia: Não podes duvidar; ouviste duas vezes.
“Tomei a decisão de me não ocupar com o que acabava de acontecer, de tentar esquecer. Mas estas palavras: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria se apresentavam incessantemente ao meu espírito. Para me livrar da impressão que me fatigava, cedi exausto e me disse: É sempre um ato de devoção à santa Virgem, que pode ter um bom efeito. Tentemos. Meu consentimento não era livre; era exigido pela fadiga do meu espírito. Entrei em meu apartamento. Para me livrar de tal pensamento, pus-me a compor os estatutos de nossa associação. Tão logo pus mãos à obra, o assunto se esclareceu aos meus olhos e os estatutos não tardaram a ser redigidos. Eis a verdade, e não a dissemos nas primeiras edições de nosso manual; até a ocultamos ao nosso venerável diretor de consciência. Tínhamola até aquele dia tornado um segredo, mesmo para os amigos mais íntimos. Não ousávamos desvendá-lo; e hoje que a divina misericórdia assinalou tão autenticamente sua obra pelo estabelecimento, a prodigiosa propagação da arquiconfraria, e sobretudo pelos frutos admiráveis que ela produz, minha consciência me obriga a revelar este fato. ‘É glorioso, dizia o arcanjo Rafael a Tobias, é glorioso revelar as obras de Deus, a fim de que todos reconheçam que só a ele pertencem louvor, honra e glória.’”
O fato de mediunidade auditiva é aqui de máxima evidência. A quem negasse que seja um efeito mediúnico e o considerasse como miraculoso, responderíamos que o caráter de milagre é de ser excepcional e acima das leis da Natureza, e que jamais se pensou em dar essa qualidade aos fenômenos que se produzem diariamente; a reprodução é indício certo de que eles existem em virtude de uma lei e que, por conseguinte, não fogem à ordem natural. Ora, os fatos análogos ao do padre Dégenettes estão entre os mais vulgares, entre os da mediunidade; as comunicações por via auditiva são excessivamente numerosas.
Se, pois, segundo a opinião de alguns, o demônio é o único agente dos efeitos mediúnicos, seria forçoso concluir, para ser consequente, que a fundação da dita arquiconfraria é uma obra demoníaca, porque, em boa lógica, a analogia absoluta dos efeitos implica a da causa.
Um ponto muito embaraçoso para os partidários do demônio é a reprodução incessante de todos os fenômenos mediúnicos no seio do próprio clero e das comunidades religiosas, e a perfeita similitude de uma porção de efeitos reputados santos, com os que são reputados diabólicos. Forçoso, pois, é convir que os maus Espíritos não são os únicos com o poder de manifestar-se, do contrário a maioria dos santos não passariam de possessos, visto que muitos só deveram sua beatificação a fatos do gênero dos que hoje se produzem com os médiuns. Eles se esquivam dizendo que os bons Espíritos só se comunicam à Igreja ou que só à Igreja cabe distinguir os que vêm de Deus ou do diabo. Que seja. É uma razão como qualquer outra, que fica para a apreciação de cada um, mas que exclui a doutrina da comunicação exclusiva dos demônios.
Nosso colega Sr. Delanne, que teve a bondade de nos remeter o fato acima, juntou a comunicação seguinte, do padre Dégenettes, obtida pela Sra. Delanne:
“Meus caros filhos, respondo com prazer ao vosso apelo. Darei de boa vontade os detalhes que desejais conhecer, porque hoje estou ligado à grande falange dos Espíritos que têm por missão conduzir os homens no caminho da verdade.
“Quando eu estava na Terra, eu trabalhava de corpo e alma para reconduzir os homens a Deus, mas tinha apenas uma ideia muito fraca da importância desta grande lei pela qual todos os homens virão ao progresso. A matéria impõe graves entraves, e nossos instintos muitas vezes paralisam os esforços de nossa inteligência. Quando, pois, de minha audição, eu não sabia bem em que pensar; mas vendo que a voz continuava a fazer-se ouvir, concluí por um milagre. Não obstante, considerava-me como um verdadeiro instrumento, e tudo quanto obtive por essa intercessão, me confirmava essa ideia. Ah! Com efeito eu tinha sido um instrumento, mas não havia milagre: Eu era um dos homens designados a levar uma das primeiras pedras à doutrina, fornecendo a prova das comunicações espirituais.
“Estão próximos os tempos em que vos serão dados grandes desenvolvimentos concernentes às coisas chamadas mistérios, e que deviam sê-lo até o presente, porque os homens ainda não estavam aptos a compreendê-las. Oh! Mil vezes felizes os que hoje compreendem esta bela e invejável missão de propagar a doutrina da revelação e mostrar um Deus bom e misericordioso!
“Sim, meus caros filhos, quando eu estava em exílio na Terra, eu possuía o precioso dom da mediunidade; mas, eu vo-lo repito, não me dava conta disso. A partir do momento em que aquela voz falou ao meu coração, reconheci mais especialmente e mais visivelmente a proteção de Maria em todas as minhas ações, mesmo as mais simples, e se dissimulei antes de participar aos meus superiores o que se havia passado comigo, ainda foi por conselhos dessa mesma voz que me fazia compreender que ainda não havia chegado a hora de fazer aquela revelação. Eu tinha o pressentimento e uma vaga intuição da renovação que se opera. Eu compreendia que a revelação não devia vir da Igreja, mas que um dia a Igreja seria forçada a apoiá-la, por todos os fatos aos quais ela dá o nome de milagre e que atribui a causas sobrenaturais.
“Continuarei de outra vez, meus filhos. Que a paz do Senhor esteja em vossas almas e vos proporcione um sono pacífico.
“P. ─ Devemos mandar ao Sr. Allan Kardec esta comunicação e os fatos que a provocaram?
“R. ─ Eu não vos disse que eu era um dos propagadores da doutrina? Meu nome não tem grande valor, mas não vejo por que não vos autorizaria a fazê-lo. Aliás, não é a primeira vez que me comunico. Podeis, portanto, transmitir ao mestre minhas simples instruções, ou melhor, meus simples relatos.
DÉGENETTES
Eis como se produziu no mundo, de uma maneira sobrenatural e celeste, a obra divina da arquiconfraria do santíssimo e imaculado Coração de Maria. Deixemos ainda a palavra ao Sr. Dégenettes. Quem melhor do que ele poderia contar-nos o que se passou?
“A arquiconfraria nasceu a 3 de dezembro de 1836. Muitas pessoas que só julgam pelas aparências, nos chamam seu fundador. Não podemos deixar passar este preconceito sem combatê-lo e destruí-lo. Não somos o seu fundador. Só a Deus a honra e a glória. Não tínhamos nenhuma das disposições de espírito e de coração que nos pudessem preparar para isto. Devemos confessar, pedindo perdão a Deus e a Maria, que, sendo filho de Maria, habituado desde nossa mais tenra idade a amá-la e venerá-la como a mais terna das mães, nada compreendíamos da devoção de seu santo coração, que até evitávamos de pensar nisso. Acrescentamos ainda que um santo religioso, o padre Maccarty, um dia tendo pregado em nossa igreja das Missões estrangeiras sobre o santo coração de Maria, nenhum sentimento recolhemos de seu sermão, para dar nosso sufrágio ordinário à eloquência do pregador, mas aborrecido, tão grande era o orgulho de nossa prevenção, por ter ele tratado de um assunto que pensávamos não ser mais útil aos outros do que a nós. Tal foi nossa disposição constante até 3 de dezembro de 1836, festa de São Francisco Xavier.
“Naquele dia, às nove da manhã, eu começava a santa missa ao pé do altar da santa Virgem, que a partir de então consagramos ao seu santíssimo e imaculado Coração, e que é hoje o altar da arquiconfraria. Eu estava no primeiro versículo do salmo Judica me, quando um pensamento veio colher o meu espírito: era o pensamento da inutilidade de meu ministério nessa paróquia; ele não me era estranho e eu tinha muitas ocasiões de concebê-lo e recordá-lo, mas naquela circunstância ele me tocou mais vivamente que de ordinário. Como esse não era o lugar nem o momento para dele me ocupar, fiz todos os esforços possíveis para afastá-lo do meu espírito. Não foi possível consegui-lo e parecia-me sempre ouvir uma voz que vinha de meu íntimo e me dizia: Não farás nada, teu ministério é nulo. Vê, há mais de quatro anos estás aqui; que ganhaste? Tudo está perdido. Este povo não tem mais fé. Por prudência deverias retirar-te!...
“Malgrado todos os meus esforços para repelir esse pensamento infeliz, ele se obstinou de tal modo que absorveu todas as faculdades de meu espírito, a ponto de eu ler e recitar as preces sem mais compreender o que dizia. A violência que eu me tinha feito me havia fatigado e eu experimentava uma transpiração das mais abundantes. Fiquei nesse estado até o começo do cânon da missa. Depois de haver recitado o Sanctus parei um instante e procurei reunir minhas ideias; apavorado com o estado de meu espírito, disse para mim mesmo: “Meu Deus, em que estado estou? Como vou oferecer o divino sacrifício? Eu não tenho suficiente liberdade de espírito para consagrar. Ó meu Deus, livrai-me desta distração.” Assim que proferi essas palavras, ouvi distintamente estas, pronunciadas de maneira solene: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria. Tão logo ouvi essas palavras, que não me feriam o ouvido mas ressoavam apenas dentro de mim, recobrei imediatamente a calma e a liberdade de espírito. A fatal impressão que me tinha agitado tão violentamente, logo se apagou e não me ficou nenhuma impressão. Dei continuidade aos santos mistérios sem nenhuma lembrança de minha precedente distração.
“Após a minha ação de graças, examinei a maneira pela qual tinha oferecido o santo sacrifício. Só então me lembrei que tinha tido uma distração, mas era apenas uma lembrança confusa e fui obrigado, por uns instantes, a rebuscar qual tinha sido o objeto. Assegurei-me, dizendo: ‘Eu não pequei. Eu não estava livre.’ Perguntei-me como essa distração tinha cessado e a lembrança das palavras que tinha ouvido voltou ao meu espírito. Esse pensamento feriu-me com uma espécie de terror. Procurei negar a possibilidade do fato, mas minha memória confundia os raciocínios que eu me objetava. Batalhei comigo mesmo durante dez minutos. Eu dizia a mim mesmo: Se eu me detivesse nisto, expor-me-ia a uma grande desgraça; ela afetaria meu moral e eu poderia tornar-me visionário.
“Fatigado por esse novo combate, tomei minha decisão e disse: Não posso deter-me neste pensamento; ele teria consequências muito desagradáveis; além do mais, é uma ilusão; tive uma longa distração durante a missa, eis tudo. O essencial para mim é não ter pecado. Não quero mais pensar nisto. Apoiei as mãos no genuflexório onde estava de joelhos. No mesmo instante, e ainda não me tinha levantado (estava sozinho na sacristia) ouvi pronunciar bem distintamente: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria. Caí de joelhos e minha primeira impressão foi um momento de estupefação. Eram as mesmas palavras, o mesmo som, a mesma maneira de ouvi-las. Durante alguns instantes tentei não acreditar; queria ao menos duvidar e não podia mais. Eu tinha ouvido, não podia ocultá-lo a mim mesmo. Um sentimento de tristeza apoderou-se de mim; as inquietudes que haviam acabado de atormentar o meu espírito apresentavam-se de novo. Em vão tentei expulsar todas essas ideias; eu me dizia: É ainda uma ilusão, fruto do abalo dado em teu cérebro pela primeira impressão que ressentiste; não ouviste, não pudeste ouvir, e o sentido íntimo me dizia: Não podes duvidar; ouviste duas vezes.
“Tomei a decisão de me não ocupar com o que acabava de acontecer, de tentar esquecer. Mas estas palavras: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria se apresentavam incessantemente ao meu espírito. Para me livrar da impressão que me fatigava, cedi exausto e me disse: É sempre um ato de devoção à santa Virgem, que pode ter um bom efeito. Tentemos. Meu consentimento não era livre; era exigido pela fadiga do meu espírito. Entrei em meu apartamento. Para me livrar de tal pensamento, pus-me a compor os estatutos de nossa associação. Tão logo pus mãos à obra, o assunto se esclareceu aos meus olhos e os estatutos não tardaram a ser redigidos. Eis a verdade, e não a dissemos nas primeiras edições de nosso manual; até a ocultamos ao nosso venerável diretor de consciência. Tínhamola até aquele dia tornado um segredo, mesmo para os amigos mais íntimos. Não ousávamos desvendá-lo; e hoje que a divina misericórdia assinalou tão autenticamente sua obra pelo estabelecimento, a prodigiosa propagação da arquiconfraria, e sobretudo pelos frutos admiráveis que ela produz, minha consciência me obriga a revelar este fato. ‘É glorioso, dizia o arcanjo Rafael a Tobias, é glorioso revelar as obras de Deus, a fim de que todos reconheçam que só a ele pertencem louvor, honra e glória.’”
O fato de mediunidade auditiva é aqui de máxima evidência. A quem negasse que seja um efeito mediúnico e o considerasse como miraculoso, responderíamos que o caráter de milagre é de ser excepcional e acima das leis da Natureza, e que jamais se pensou em dar essa qualidade aos fenômenos que se produzem diariamente; a reprodução é indício certo de que eles existem em virtude de uma lei e que, por conseguinte, não fogem à ordem natural. Ora, os fatos análogos ao do padre Dégenettes estão entre os mais vulgares, entre os da mediunidade; as comunicações por via auditiva são excessivamente numerosas.
Se, pois, segundo a opinião de alguns, o demônio é o único agente dos efeitos mediúnicos, seria forçoso concluir, para ser consequente, que a fundação da dita arquiconfraria é uma obra demoníaca, porque, em boa lógica, a analogia absoluta dos efeitos implica a da causa.
Um ponto muito embaraçoso para os partidários do demônio é a reprodução incessante de todos os fenômenos mediúnicos no seio do próprio clero e das comunidades religiosas, e a perfeita similitude de uma porção de efeitos reputados santos, com os que são reputados diabólicos. Forçoso, pois, é convir que os maus Espíritos não são os únicos com o poder de manifestar-se, do contrário a maioria dos santos não passariam de possessos, visto que muitos só deveram sua beatificação a fatos do gênero dos que hoje se produzem com os médiuns. Eles se esquivam dizendo que os bons Espíritos só se comunicam à Igreja ou que só à Igreja cabe distinguir os que vêm de Deus ou do diabo. Que seja. É uma razão como qualquer outra, que fica para a apreciação de cada um, mas que exclui a doutrina da comunicação exclusiva dos demônios.
Nosso colega Sr. Delanne, que teve a bondade de nos remeter o fato acima, juntou a comunicação seguinte, do padre Dégenettes, obtida pela Sra. Delanne:
“Meus caros filhos, respondo com prazer ao vosso apelo. Darei de boa vontade os detalhes que desejais conhecer, porque hoje estou ligado à grande falange dos Espíritos que têm por missão conduzir os homens no caminho da verdade.
“Quando eu estava na Terra, eu trabalhava de corpo e alma para reconduzir os homens a Deus, mas tinha apenas uma ideia muito fraca da importância desta grande lei pela qual todos os homens virão ao progresso. A matéria impõe graves entraves, e nossos instintos muitas vezes paralisam os esforços de nossa inteligência. Quando, pois, de minha audição, eu não sabia bem em que pensar; mas vendo que a voz continuava a fazer-se ouvir, concluí por um milagre. Não obstante, considerava-me como um verdadeiro instrumento, e tudo quanto obtive por essa intercessão, me confirmava essa ideia. Ah! Com efeito eu tinha sido um instrumento, mas não havia milagre: Eu era um dos homens designados a levar uma das primeiras pedras à doutrina, fornecendo a prova das comunicações espirituais.
“Estão próximos os tempos em que vos serão dados grandes desenvolvimentos concernentes às coisas chamadas mistérios, e que deviam sê-lo até o presente, porque os homens ainda não estavam aptos a compreendê-las. Oh! Mil vezes felizes os que hoje compreendem esta bela e invejável missão de propagar a doutrina da revelação e mostrar um Deus bom e misericordioso!
“Sim, meus caros filhos, quando eu estava em exílio na Terra, eu possuía o precioso dom da mediunidade; mas, eu vo-lo repito, não me dava conta disso. A partir do momento em que aquela voz falou ao meu coração, reconheci mais especialmente e mais visivelmente a proteção de Maria em todas as minhas ações, mesmo as mais simples, e se dissimulei antes de participar aos meus superiores o que se havia passado comigo, ainda foi por conselhos dessa mesma voz que me fazia compreender que ainda não havia chegado a hora de fazer aquela revelação. Eu tinha o pressentimento e uma vaga intuição da renovação que se opera. Eu compreendia que a revelação não devia vir da Igreja, mas que um dia a Igreja seria forçada a apoiá-la, por todos os fatos aos quais ela dá o nome de milagre e que atribui a causas sobrenaturais.
“Continuarei de outra vez, meus filhos. Que a paz do Senhor esteja em vossas almas e vos proporcione um sono pacífico.
“P. ─ Devemos mandar ao Sr. Allan Kardec esta comunicação e os fatos que a provocaram?
“R. ─ Eu não vos disse que eu era um dos propagadores da doutrina? Meu nome não tem grande valor, mas não vejo por que não vos autorizaria a fazê-lo. Aliás, não é a primeira vez que me comunico. Podeis, portanto, transmitir ao mestre minhas simples instruções, ou melhor, meus simples relatos.
DÉGENETTES
OBSERVAÇÃO: Com efeito, o padre Dégenettes comunicou-se várias vazes espontaneamente e ditou palavras dignas da elevação de seu Espírito.
Tanto quanto nos lembramos, foi ele que, num sermão pregado na igreja de Notre-Dame des Victories, contou o seguinte fato: Uma pobre operária sem trabalho que veio orar na Igreja, à saída encontrou um senhor que a abordou e lhe disse:
─ Buscais trabalho; ide a tal endereço, procurai a Sra. fulana de tal; ela vo-lo arranjará.
A pobre mulher agradeceu e foi ao endereço indicado, onde realmente encontrou a pessoa em questão, à qual contou o que acontecera. Aquela senhora lhe disse:
─ Não sei quem poderia ter dado meu endereço, porque não pedi empregada.
Contudo, como tenho algo para mandar fazer, vou encarregá-la disso.
A pobre mulher, vendo um retrato na sala, disse:
─ Olhai, senhora. O senhor que me mandou vir aqui foi esse aí. ─ E apontou o retrato.
─ É impossível, disse a senhora, esse retrato é de meu filho, falecido há três anos.
─ Não sei como é isto, respondeu a operária, mas eu o reconheço perfeitamente.
Assim, o padre Dégenettes acreditava na aparição das almas após a morte, com a aparência que tinham em vida. Os fatos deste gênero não são insólitos e deles temos numerosos exemplos. Não é presumível que o padre Dégenettes tenha relatado este do púlpito sem provas autênticas. Sua crença neste ponto, somada à que lhe chegou pessoalmente, vem em apoio ao que disse de sua missão atual de propagar a doutrina dos Espíritos.
Um fato como o último que foi relatado necessariamente deveria passar por maravilhoso. Só o Espiritismo, pelo conhecimento das propriedades do perispírito, poderia dar-lhe uma explicação racional. Ele prova, por isto mesmo, a possibilidade da aparição do Cristo aos apóstolos, após a sua morte.
Tanto quanto nos lembramos, foi ele que, num sermão pregado na igreja de Notre-Dame des Victories, contou o seguinte fato: Uma pobre operária sem trabalho que veio orar na Igreja, à saída encontrou um senhor que a abordou e lhe disse:
─ Buscais trabalho; ide a tal endereço, procurai a Sra. fulana de tal; ela vo-lo arranjará.
A pobre mulher agradeceu e foi ao endereço indicado, onde realmente encontrou a pessoa em questão, à qual contou o que acontecera. Aquela senhora lhe disse:
─ Não sei quem poderia ter dado meu endereço, porque não pedi empregada.
Contudo, como tenho algo para mandar fazer, vou encarregá-la disso.
A pobre mulher, vendo um retrato na sala, disse:
─ Olhai, senhora. O senhor que me mandou vir aqui foi esse aí. ─ E apontou o retrato.
─ É impossível, disse a senhora, esse retrato é de meu filho, falecido há três anos.
─ Não sei como é isto, respondeu a operária, mas eu o reconheço perfeitamente.
Assim, o padre Dégenettes acreditava na aparição das almas após a morte, com a aparência que tinham em vida. Os fatos deste gênero não são insólitos e deles temos numerosos exemplos. Não é presumível que o padre Dégenettes tenha relatado este do púlpito sem provas autênticas. Sua crença neste ponto, somada à que lhe chegou pessoalmente, vem em apoio ao que disse de sua missão atual de propagar a doutrina dos Espíritos.
Um fato como o último que foi relatado necessariamente deveria passar por maravilhoso. Só o Espiritismo, pelo conhecimento das propriedades do perispírito, poderia dar-lhe uma explicação racional. Ele prova, por isto mesmo, a possibilidade da aparição do Cristo aos apóstolos, após a sua morte.
Manifestações de Fives, perto de Lille (norte)
Lê-se no Indépendant de Douai, de 6 e 8 de julho de 1865, o relato seguinte, dos fatos que acabam de se passar em Fives:
I
“Há uns quinze dias, na Rua du Prieuré, em Fives, ocorrem fatos ainda não explicados e que causam uma profunda sensação em todo o bairro. A certos intervalos, no pátio de duas casas dessa rua, cai uma chuva de projéteis que quebram vidraças e por vezes atingem os moradores, sem que se possa descobrir nem o lugar de onde partem nem a pessoa que os atira. As coisas chegaram a tal ponto que um dos inquilinos teve que proteger suas janelas com tela, temeroso de ser atingido.
“A princípio os interessados observaram atentamente, depois recorreram à polícia, que exerceu a mais ativa vigilância durante vários dias. Isto não impediu que pedaços de tijolos, carvão de pedra, etc. caíssem abundantemente nos dois pátios. Um agente chegou a ser atingido nos rins, no momento em que procurava explicar a um de seus camaradas a parábola que as pedras descreviam antes de cair.
“O vidraceiro, substituindo os vidros quebrados na véspera por pedaços de tijolo, foi igualmente atingido nas costas. Logo se adiantou, jurando descobrir o autor desses atos censuráveis, mas não foi mais feliz que os outros.
“Há alguns dias constata-se uma notável diminuição no volume dos projéteis, mas são mais numerosos, de sorte que a movimentação continua. Entretanto, esperam em breve descobrir o que há de misterioso neste caso.
“A princípio os interessados observaram atentamente, depois recorreram à polícia, que exerceu a mais ativa vigilância durante vários dias. Isto não impediu que pedaços de tijolos, carvão de pedra, etc. caíssem abundantemente nos dois pátios. Um agente chegou a ser atingido nos rins, no momento em que procurava explicar a um de seus camaradas a parábola que as pedras descreviam antes de cair.
“O vidraceiro, substituindo os vidros quebrados na véspera por pedaços de tijolo, foi igualmente atingido nas costas. Logo se adiantou, jurando descobrir o autor desses atos censuráveis, mas não foi mais feliz que os outros.
“Há alguns dias constata-se uma notável diminuição no volume dos projéteis, mas são mais numerosos, de sorte que a movimentação continua. Entretanto, esperam em breve descobrir o que há de misterioso neste caso.
II
“Os fenômenos bizarros que se produzem na Rua du Prieuré, em Fives, desde quinta-feira, 14 de junho, e dos quais já tínhamos falado, desde sábado entraram numa nova fase, diz o jornal de onde tiramos o primeiro relato.
“Não se trata mais de projéteis atirados de fora com um barulho extraordinário às portas e janelas, e muito menos violentamente nas pessoas.
“Eis o que se passa agora numa das duas casas de que falamos, pois a outra ficou perfeitamente tranquila.
“No sábado, caíram no pátio oito cêntimos e cinco moedas de dois cêntimos belgas. A dona da casa, vendo ao mesmo tempo vários móveis se mexerem e cadeiras caindo, foi chamar pessoas da vizinhança. Levantaram as cadeiras; por várias vezes elas caíram de novo. Ao mesmo tempo foram vistos no jardim os tamancos deixados à entrada pela criada pularem em cadência, como se estivessem nos pés de alguém que dançasse.
“À noite, um calendário posto em cima de uma lareira saltou e turbilhonou no ar; sapatos, postos no chão, também saltavam e caíam emborcados.
“Vindo a noite, o Sr. M..., dono da casa, resolveu velar.
“Tão logo ficou só, ouviu um barulho: era um candeeiro que caía sobre a lareira; enquanto ele o ergueu, uma concha rolou por terra; ele se abaixou para apanhá-la e outro candeeiro lhe caiu nas costas. Essas manobras duraram uma parte da noite.
“Nesse ínterim, a empregada, que dorme no andar de cima, gritou por socorro. Encontraram-na tão apavorada que não duvidaram de sua sinceridade, quando afirmou que haviam batido nela. Fizeram-na descer e deitar-se no quarto ao lado; logo ouviram os seus lamentos e escutaram até mesmo as pancadas que ela recebia.
“Essa moça ficou doente e teve que voltar para a casa dos pais.
“No domingo de manhã e no dia seguinte ainda caíram moedas belgas no pátio.
“À tarde, a Sra. X... saiu com uma de suas amigas, depois de haver examinado toda a casa e sem encontrar coisa alguma fora de ordem.
“A porta foi fechada cuidadosamente. Ninguém podia entrar. Voltando, a Sra. X... encontrou desenhado sobre a cama um grande 8 com meias e tecidos que estavam trancados armário.
“À noite, com seu marido, seu sobrinho e um pensionista, que com ela constituem todo o pessoal da casa, ela fez uma vistoria em todas as peças. Na manhã seguinte, subindo ao quarto outrora ocupado pela empregada, encontrou sobre o leito um desenho esquisito, formado com barretes, e, ao pé da escada, dez degraus cobertos com paletós de seu marido, de seu sobrinho e do pensionista, estendidos e encimados por um chapéu.
“Na terça-feira de manhã ainda caiu no pátio um cêntimo belga. Eles tinham intenção de dá-lo aos pobres, com as moedas caídas dois dias anteriores, mas eis que o estojo onde elas estavam depositadas saltou de uma peça a outra e o dinheiro desapareceu, bem como a chave da escrivaninha.
“Varrendo a sala de jantar, de repente foram vistas duas facas se fincarem no soalho e outra no teto.
“De repente uma chave caiu no pátio. É a da porta da rua; depois veio a da escrivaninha; depois xales e lenços enrolados e em nós, que haviam desaparecido há algum tempo.
“À tarde viu-se no leito do Sr. M... uma roda formada com roupas, e no celeiro um desenho do mesmo gênero, formado com um capote velho e uma cesta.
“Todos estes fatos, bem como os de que falamos sábado, são atestados pelas pessoas da casa, cujo caráter está longe de ser levado ao exagero ou à ilusão. Eles parecem tanto mais singulares porque a vizinhança é perfeitamente bem habitada, e uma vigilância ativa não deixou de ser exercida há três semanas.
“Pode imaginar-se quanto as pessoas da casa sofrem com esse estado de coisas. Depois de ter começado por lacrar as janelas do lado do pátio, decidiram-se a abandonar as peças onde se produziam os fatos relatados, e agora estão, de certo modo, acampadas em duas ou três peças, esperando o fim de seus aborrecimentos.
“Pela crônica: TH. DENIS.”
“Não se trata mais de projéteis atirados de fora com um barulho extraordinário às portas e janelas, e muito menos violentamente nas pessoas.
“Eis o que se passa agora numa das duas casas de que falamos, pois a outra ficou perfeitamente tranquila.
“No sábado, caíram no pátio oito cêntimos e cinco moedas de dois cêntimos belgas. A dona da casa, vendo ao mesmo tempo vários móveis se mexerem e cadeiras caindo, foi chamar pessoas da vizinhança. Levantaram as cadeiras; por várias vezes elas caíram de novo. Ao mesmo tempo foram vistos no jardim os tamancos deixados à entrada pela criada pularem em cadência, como se estivessem nos pés de alguém que dançasse.
“À noite, um calendário posto em cima de uma lareira saltou e turbilhonou no ar; sapatos, postos no chão, também saltavam e caíam emborcados.
“Vindo a noite, o Sr. M..., dono da casa, resolveu velar.
“Tão logo ficou só, ouviu um barulho: era um candeeiro que caía sobre a lareira; enquanto ele o ergueu, uma concha rolou por terra; ele se abaixou para apanhá-la e outro candeeiro lhe caiu nas costas. Essas manobras duraram uma parte da noite.
“Nesse ínterim, a empregada, que dorme no andar de cima, gritou por socorro. Encontraram-na tão apavorada que não duvidaram de sua sinceridade, quando afirmou que haviam batido nela. Fizeram-na descer e deitar-se no quarto ao lado; logo ouviram os seus lamentos e escutaram até mesmo as pancadas que ela recebia.
“Essa moça ficou doente e teve que voltar para a casa dos pais.
“No domingo de manhã e no dia seguinte ainda caíram moedas belgas no pátio.
“À tarde, a Sra. X... saiu com uma de suas amigas, depois de haver examinado toda a casa e sem encontrar coisa alguma fora de ordem.
“A porta foi fechada cuidadosamente. Ninguém podia entrar. Voltando, a Sra. X... encontrou desenhado sobre a cama um grande 8 com meias e tecidos que estavam trancados armário.
“À noite, com seu marido, seu sobrinho e um pensionista, que com ela constituem todo o pessoal da casa, ela fez uma vistoria em todas as peças. Na manhã seguinte, subindo ao quarto outrora ocupado pela empregada, encontrou sobre o leito um desenho esquisito, formado com barretes, e, ao pé da escada, dez degraus cobertos com paletós de seu marido, de seu sobrinho e do pensionista, estendidos e encimados por um chapéu.
“Na terça-feira de manhã ainda caiu no pátio um cêntimo belga. Eles tinham intenção de dá-lo aos pobres, com as moedas caídas dois dias anteriores, mas eis que o estojo onde elas estavam depositadas saltou de uma peça a outra e o dinheiro desapareceu, bem como a chave da escrivaninha.
“Varrendo a sala de jantar, de repente foram vistas duas facas se fincarem no soalho e outra no teto.
“De repente uma chave caiu no pátio. É a da porta da rua; depois veio a da escrivaninha; depois xales e lenços enrolados e em nós, que haviam desaparecido há algum tempo.
“À tarde viu-se no leito do Sr. M... uma roda formada com roupas, e no celeiro um desenho do mesmo gênero, formado com um capote velho e uma cesta.
“Todos estes fatos, bem como os de que falamos sábado, são atestados pelas pessoas da casa, cujo caráter está longe de ser levado ao exagero ou à ilusão. Eles parecem tanto mais singulares porque a vizinhança é perfeitamente bem habitada, e uma vigilância ativa não deixou de ser exercida há três semanas.
“Pode imaginar-se quanto as pessoas da casa sofrem com esse estado de coisas. Depois de ter começado por lacrar as janelas do lado do pátio, decidiram-se a abandonar as peças onde se produziam os fatos relatados, e agora estão, de certo modo, acampadas em duas ou três peças, esperando o fim de seus aborrecimentos.
“Pela crônica: TH. DENIS.”
Como se vê, esses fatos têm uma certa analogia com os de Poitiers, do Boulevard Chave, em Marselha, da Rua des Grès e dos de Noyers, em Paris, de Hoerdt, perto de Estrasburgo, e de uma porção de outras localidades. Por toda parte eles puseram em cheque a mais ativa vigilância e as investigações da polícia. Graças à sua multiplicação, eles acabarão por abrir os olhos. Se eles se produzissem num único lugar, seríamos levados a atribuí-los a uma causa local, mas quando ocorrem em pontos tão afastados e em tempos diferentes, seremos forçados a reconhecer que a causa está no mundo invisível, pois não a encontramos aqui. Em presença desses fatos tão multiplicados e que, por consequência, têm tão numerosas testemunhas, a negação já não é possível, e assim vemos as notícias se limitarem, geralmente, a meros relatos.
Os Espíritos anunciaram que manifestações de toda natureza iam produzir-se em todos os pontos. Com efeito, se examinarmos o que se passa há algum tempo, veremos que eles são fecundos em recursos para atestarem sua presença. Os incrédulos pedem fatos; os Espíritos lhos apresentam a todo instante, com um valor tanto maior pelo fato de não serem provocados e se produzirem sem o concurso da mediunidade ordinária e na maior parte do tempo entre pessoas alheias ao Espiritismo. Parece que os Espíritos lhes dizem: Acusais os médiuns de compadrio, de prestidigitação, de alucinações; nós vos damos fatos que não são suspeitos. Se depois disto não credes, é porque quereis fechar os olhos e os ouvidos.
As manifestações de Fives, além do mais, nos são atestadas pelo Sr. Mallet, de Douai, oficial superior e homem de Ciência, que se informou de sua realidade nos próprios locais e junto a pessoas interessadas. Podemos, pois, garantir a sua perfeita exatidão.
Os Espíritos anunciaram que manifestações de toda natureza iam produzir-se em todos os pontos. Com efeito, se examinarmos o que se passa há algum tempo, veremos que eles são fecundos em recursos para atestarem sua presença. Os incrédulos pedem fatos; os Espíritos lhos apresentam a todo instante, com um valor tanto maior pelo fato de não serem provocados e se produzirem sem o concurso da mediunidade ordinária e na maior parte do tempo entre pessoas alheias ao Espiritismo. Parece que os Espíritos lhes dizem: Acusais os médiuns de compadrio, de prestidigitação, de alucinações; nós vos damos fatos que não são suspeitos. Se depois disto não credes, é porque quereis fechar os olhos e os ouvidos.
As manifestações de Fives, além do mais, nos são atestadas pelo Sr. Mallet, de Douai, oficial superior e homem de Ciência, que se informou de sua realidade nos próprios locais e junto a pessoas interessadas. Podemos, pois, garantir a sua perfeita exatidão.
Problema psicológico
Dois irmãos idiotas
Numa família de operários de Paris encontram-se duas crianças atingidas de idiotia e que apresentam a particularidade de, até a idade de cinco a seis anos, gozarem de todas as faculdades intelectuais bem desenvolvidas. A menos que seja provocada por uma causa acidental, a idiotia nas crianças é quase sempre o resultado de uma parada no desenvolvimento dos órgãos e, consequentemente, se manifesta desde o nascimento. Além disso, aqui é notável o fato de duas crianças serem atingidas pela mesma enfermidade em condições idênticas.
Podendo esse duplo fenômeno ser objeto de estudo interessante, do ponto de vista psicológico, um dos membros da Sociedade de Paris, o Sr. Desliens, foi por um amigo introduzido na família, a fim de poder dar contas à Sociedade. Eis o resultado de suas observações:
“Quando o pai soube do objetivo de minha visita, disse ele, passou a um quarto, de onde voltou tendo nos braços um ser mais semelhante, pelos traços, a um animal do que a um foco de inteligência. Trouxe igualmente um segundo no mesmo estado de embrutecimento, mas com aparências físicas mais humanas. Nenhum som sensato saía da boca desses infortunados; gritinhos agudos e grunhidos roucos são suas únicas manifestações sonoras. Quase sempre um riso bestial lhes anima a fisionomia. O mais velho chama-se Alfredo e o outro Paulino.
“Alfredo, atualmente com dezessete anos, nasceu com toda a sua inteligência, que se manifestou mesmo com certa precocidade. Aos três anos falava com senso e compreendia os menores sinais. Teve então uma ligeira doença, depois da qual perdeu o uso da palavra e as faculdades mentais. Os tratamentos médicos apenas levaram ao esgotamento das forças vitais, hoje traduzido por um raquitismo absoluto.
“Esse ser, que não tem nem mesmo a aparência de um homem, contudo tem sentimento; ama seus pais e seu irmão, e sabe manifestar simpatia ou repulsa pelos que o rodeiam. Ele compreende tudo o que lhe dizem; em seus olhos brilha a inteligência; procura incessantemente, mas sem resultado, responder quando falam diante dele de coisas que lhe interessam. Tem um medo incontestável da morte e não pode ver um carro mortuário sem procurar esconder-se. Um dia lhe tendo dito sua tia, por brincadeira, que o envenenaria se ele fosse mau, ele compreendeu tão bem que, durante mais de um ano, recusou receber qualquer alimento de suas mãos, embora tenha um apetite extraordinário.
“Paulino, de quinze anos, tem corporalmente uma aparência mais humana. Tem no rosto embrutecido o cunho de um idiotismo absoluto. Contudo ama, mas a isto se limitam suas manifestações exteriores. Ele nasceu igualmente com plena razão, que conservou até os seis anos. Gostava muito do irmão. Com essa idade adoeceu e passou pelas mesmas fases do mais velho. Ultimamente teve uma doença prolongada, depois da qual parece compreender melhor o que lhe dizem. O cura e os padres da paróquia disseram à família que se tratava de possessão do demônio, e que era preciso exorcizar os meninos. Os pais hesitaram. Contudo, fatigados com a insistência daqueles senhores e temendo perder o auxílio que recebiam por causa das crianças, concordaram. Mas então aqueles senhores afirmaram que com efeito teria havido possessão em outra época, mas que hoje não havia mais, e que nada mais podia ser feito. É preciso dizer, em homenagem aos pais, que sua ternura por essas infortunadas criaturas jamais foi desmentida e que elas têm sido constantemente objeto dos mais afetuosos cuidados.”
Os senhores eclesiásticos renunciaram sabiamente ao exorcismo, que apenas teria levado a um fracasso. As crianças não apresentam nenhum dos caracteres da obsessão, no sentido do Espiritismo, e tudo prova que a causa do mal é puramente patológica. Em ambos a idiotia é produzida em consequência de uma doença que, sem dúvida, ocasionou a atrofia dos órgãos da manifestação do pensamento. Mas é fácil ver que, por detrás desse véu, existe um pensamento ativo, que encontra um obstáculo invencível à sua livre expressão. A inteligência dessas crianças, durante os primeiros anos, prova que eles são de Espíritos adiantados, que mais tarde se acharam encerrados em laços muito apertados para que se pudessem manifestar. Num envoltório em condições normais, teriam sido homens inteligentes, e quando a morte os tiver libertado de seus entraves, recuperarão o livre uso de suas faculdades.
Essa constrição imposta a um Espírito deve ter causa moral, providencial, e essa causa deve ser justa, pois que Deus é a fonte de toda justiça. Ora, como esses meninos nada puderam fazer nesta existência que pudesse merecer um castigo qualquer, é forçoso admitir que pagam a dívida de uma existência anterior, a menos que neguemos a justiça de Deus. Eles nos oferecem uma prova da necessidade da reencarnação, essa chave que resolve tantos problemas e que diariamente lança luz sobre tantas questões ainda obscuras.” (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. V, item 6: Causas anteriores das aflições).
A comunicação seguinte foi dada a propósito desse assunto na Sociedade de Paris, a 7 de julho de 1865 (Médium, Sr. Desliens):
“A perda da inteligência nos dois idiotas dos quais se trata é certamente explicável do ponto de vista científico. Cada um deles teve uma curta doença; pode, pois, concluir-se com razão que os órgãos cerebrais foram afetados. Mas, por que esse acidente ocorreu após a manifestação evidente de todas as suas faculdades, contrariamente ao que, em geral, se passa na idiotia? Repito: Toda a perturbação da inteligência ou das funções orgânicas pode ser explicada fisiologicamente, seja qual for a causa primeira, visto que tendo sido estabelecidas leis pelo Criador para as relações entre a inteligência e os órgãos de transmissão, elas não podem ser derrogadas. A perturbação dessas relações é uma consequência dessas leis, e pode ferir o culpado por suas faltas anteriores: aí está a expiação.
“Por que esses dois seres são feridos juntos? Porque participaram da mesma vida; estavam ligados durante a provação, e devem estar reunidos na vida de expiação.
“Por que sua inteligência a princípio se manifestou, contrariamente ao que ordinariamente acontece em casos semelhantes? Do ponto de vista da intenção providencial, é uma das mil nuanças da expiação, que tem sua razão de ser para o indivíduo, mas cujo motivo muitas vezes seria difícil sondar, pelo simples fato que ele é individual. É preciso aí ver, também, um desses fatos que diariamente vêm confirmar, para o observador atento, as bases da Doutrina Espírita, e sancionar, pela evidência, os princípios da reencarnação.
“Não esqueçais, também, que os pais têm sua parte no que aqui se passa. É para sua ternura por esses seres que não lhes oferecem qualquer compensação, uma grande provação. Eles devem ser felicitados por não haverem falido, porque essa compensação que não encontram neste mundo, encontrá-la-ão mais tarde. Dizeis em vosso íntimo que os cuidados e a afeição que prodigalizam a esses dois pobres seres, bem poderiam ser uma reparação em relação a eles, reparação que o estado de constrangimento da família torna ainda mais meritória.”
Moki
Podendo esse duplo fenômeno ser objeto de estudo interessante, do ponto de vista psicológico, um dos membros da Sociedade de Paris, o Sr. Desliens, foi por um amigo introduzido na família, a fim de poder dar contas à Sociedade. Eis o resultado de suas observações:
“Quando o pai soube do objetivo de minha visita, disse ele, passou a um quarto, de onde voltou tendo nos braços um ser mais semelhante, pelos traços, a um animal do que a um foco de inteligência. Trouxe igualmente um segundo no mesmo estado de embrutecimento, mas com aparências físicas mais humanas. Nenhum som sensato saía da boca desses infortunados; gritinhos agudos e grunhidos roucos são suas únicas manifestações sonoras. Quase sempre um riso bestial lhes anima a fisionomia. O mais velho chama-se Alfredo e o outro Paulino.
“Alfredo, atualmente com dezessete anos, nasceu com toda a sua inteligência, que se manifestou mesmo com certa precocidade. Aos três anos falava com senso e compreendia os menores sinais. Teve então uma ligeira doença, depois da qual perdeu o uso da palavra e as faculdades mentais. Os tratamentos médicos apenas levaram ao esgotamento das forças vitais, hoje traduzido por um raquitismo absoluto.
“Esse ser, que não tem nem mesmo a aparência de um homem, contudo tem sentimento; ama seus pais e seu irmão, e sabe manifestar simpatia ou repulsa pelos que o rodeiam. Ele compreende tudo o que lhe dizem; em seus olhos brilha a inteligência; procura incessantemente, mas sem resultado, responder quando falam diante dele de coisas que lhe interessam. Tem um medo incontestável da morte e não pode ver um carro mortuário sem procurar esconder-se. Um dia lhe tendo dito sua tia, por brincadeira, que o envenenaria se ele fosse mau, ele compreendeu tão bem que, durante mais de um ano, recusou receber qualquer alimento de suas mãos, embora tenha um apetite extraordinário.
“Paulino, de quinze anos, tem corporalmente uma aparência mais humana. Tem no rosto embrutecido o cunho de um idiotismo absoluto. Contudo ama, mas a isto se limitam suas manifestações exteriores. Ele nasceu igualmente com plena razão, que conservou até os seis anos. Gostava muito do irmão. Com essa idade adoeceu e passou pelas mesmas fases do mais velho. Ultimamente teve uma doença prolongada, depois da qual parece compreender melhor o que lhe dizem. O cura e os padres da paróquia disseram à família que se tratava de possessão do demônio, e que era preciso exorcizar os meninos. Os pais hesitaram. Contudo, fatigados com a insistência daqueles senhores e temendo perder o auxílio que recebiam por causa das crianças, concordaram. Mas então aqueles senhores afirmaram que com efeito teria havido possessão em outra época, mas que hoje não havia mais, e que nada mais podia ser feito. É preciso dizer, em homenagem aos pais, que sua ternura por essas infortunadas criaturas jamais foi desmentida e que elas têm sido constantemente objeto dos mais afetuosos cuidados.”
Os senhores eclesiásticos renunciaram sabiamente ao exorcismo, que apenas teria levado a um fracasso. As crianças não apresentam nenhum dos caracteres da obsessão, no sentido do Espiritismo, e tudo prova que a causa do mal é puramente patológica. Em ambos a idiotia é produzida em consequência de uma doença que, sem dúvida, ocasionou a atrofia dos órgãos da manifestação do pensamento. Mas é fácil ver que, por detrás desse véu, existe um pensamento ativo, que encontra um obstáculo invencível à sua livre expressão. A inteligência dessas crianças, durante os primeiros anos, prova que eles são de Espíritos adiantados, que mais tarde se acharam encerrados em laços muito apertados para que se pudessem manifestar. Num envoltório em condições normais, teriam sido homens inteligentes, e quando a morte os tiver libertado de seus entraves, recuperarão o livre uso de suas faculdades.
Essa constrição imposta a um Espírito deve ter causa moral, providencial, e essa causa deve ser justa, pois que Deus é a fonte de toda justiça. Ora, como esses meninos nada puderam fazer nesta existência que pudesse merecer um castigo qualquer, é forçoso admitir que pagam a dívida de uma existência anterior, a menos que neguemos a justiça de Deus. Eles nos oferecem uma prova da necessidade da reencarnação, essa chave que resolve tantos problemas e que diariamente lança luz sobre tantas questões ainda obscuras.” (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. V, item 6: Causas anteriores das aflições).
A comunicação seguinte foi dada a propósito desse assunto na Sociedade de Paris, a 7 de julho de 1865 (Médium, Sr. Desliens):
“A perda da inteligência nos dois idiotas dos quais se trata é certamente explicável do ponto de vista científico. Cada um deles teve uma curta doença; pode, pois, concluir-se com razão que os órgãos cerebrais foram afetados. Mas, por que esse acidente ocorreu após a manifestação evidente de todas as suas faculdades, contrariamente ao que, em geral, se passa na idiotia? Repito: Toda a perturbação da inteligência ou das funções orgânicas pode ser explicada fisiologicamente, seja qual for a causa primeira, visto que tendo sido estabelecidas leis pelo Criador para as relações entre a inteligência e os órgãos de transmissão, elas não podem ser derrogadas. A perturbação dessas relações é uma consequência dessas leis, e pode ferir o culpado por suas faltas anteriores: aí está a expiação.
“Por que esses dois seres são feridos juntos? Porque participaram da mesma vida; estavam ligados durante a provação, e devem estar reunidos na vida de expiação.
“Por que sua inteligência a princípio se manifestou, contrariamente ao que ordinariamente acontece em casos semelhantes? Do ponto de vista da intenção providencial, é uma das mil nuanças da expiação, que tem sua razão de ser para o indivíduo, mas cujo motivo muitas vezes seria difícil sondar, pelo simples fato que ele é individual. É preciso aí ver, também, um desses fatos que diariamente vêm confirmar, para o observador atento, as bases da Doutrina Espírita, e sancionar, pela evidência, os princípios da reencarnação.
“Não esqueçais, também, que os pais têm sua parte no que aqui se passa. É para sua ternura por esses seres que não lhes oferecem qualquer compensação, uma grande provação. Eles devem ser felicitados por não haverem falido, porque essa compensação que não encontram neste mundo, encontrá-la-ão mais tarde. Dizeis em vosso íntimo que os cuidados e a afeição que prodigalizam a esses dois pobres seres, bem poderiam ser uma reparação em relação a eles, reparação que o estado de constrangimento da família torna ainda mais meritória.”
Moki
Variedades
Epitáfio de Benjamin Franklin
Um dos nossos assinantes de Joinville, Haute-Marne, escreve-nos o que se segue:
“Sabendo da boa acolhida que é reservada a todos os documentos que têm qualquer relação com a Doutrina Espírita, apresso-me em vos dar conhecimento de uma passagem da biografia de Franklin, tirada de Mosaïque de 1839, página 287. Ela prova, mais uma vez, que em todas as épocas homens superiores tiveram a intuição das verdades espíritas. A crença desse grande homem na reencarnação e na progressão da alma se revela toda nas poucas linhas seguintes, que formam o epitáfio que ele próprio escreveu. Ele está assim concebido:
“Aqui repousa, entregue aos vermes, o corpo de Benjamin Franklin, impressor, como a capa de um velho livro cujas folhas foram arrancadas, e cujo título e douração, apagados. Mas por isto a obra não ficará perdida, pois reaparecerá, como ele acreditava, em nova e melhor edição, revista e corrigida pelo autor.”
Um dos principais cidadãos, de que mais se honram os Estados Unidos, era, pois, reencarnacionista. Ele não só acreditava em seu renascimento na Terra, mas acreditava que para aqui voltaria, melhorado por seu trabalho pessoal. É exatamente o que diz o Espiritismo.
Se recolhêssemos todos os testemunhos esparsos em milhares de escritos em favor desta doutrina, reconheceríamos quanto ela teve raízes em pensadores de todas as épocas, e nos admiraríamos menos da facilidade com que ela é hoje acolhida, porque pode dizer-se que ela jaz latente na consciência da maioria. Esses pensamentos, semeados aqui e ali, eram as centelhas precursoras do fogo que devia brilhar mais tarde e mostrar aos homens o seu destino.
“Sabendo da boa acolhida que é reservada a todos os documentos que têm qualquer relação com a Doutrina Espírita, apresso-me em vos dar conhecimento de uma passagem da biografia de Franklin, tirada de Mosaïque de 1839, página 287. Ela prova, mais uma vez, que em todas as épocas homens superiores tiveram a intuição das verdades espíritas. A crença desse grande homem na reencarnação e na progressão da alma se revela toda nas poucas linhas seguintes, que formam o epitáfio que ele próprio escreveu. Ele está assim concebido:
“Aqui repousa, entregue aos vermes, o corpo de Benjamin Franklin, impressor, como a capa de um velho livro cujas folhas foram arrancadas, e cujo título e douração, apagados. Mas por isto a obra não ficará perdida, pois reaparecerá, como ele acreditava, em nova e melhor edição, revista e corrigida pelo autor.”
Um dos principais cidadãos, de que mais se honram os Estados Unidos, era, pois, reencarnacionista. Ele não só acreditava em seu renascimento na Terra, mas acreditava que para aqui voltaria, melhorado por seu trabalho pessoal. É exatamente o que diz o Espiritismo.
Se recolhêssemos todos os testemunhos esparsos em milhares de escritos em favor desta doutrina, reconheceríamos quanto ela teve raízes em pensadores de todas as épocas, e nos admiraríamos menos da facilidade com que ela é hoje acolhida, porque pode dizer-se que ela jaz latente na consciência da maioria. Esses pensamentos, semeados aqui e ali, eram as centelhas precursoras do fogo que devia brilhar mais tarde e mostrar aos homens o seu destino.
Notícias bibliográficas
O manual de Xéfolius
Este livro é uma nova prova de fermentação das ideias espíritas, muito antes que se tratasse dos Espíritos. Mas aqui não são alguns pensamentos esparsos, é uma série de instruções que se diriam calcadas sobre a doutrina atual, ou, pelo menos, bebidas na mesma fonte. Essa obra, atribuída a Félix de Wimpfen, guilhotinado em 1793, parece ter sido publicada em 1788. A princípio foram impressos apenas sessenta e seis exemplares para alguns amigos, conforme nota colocada no início da obra e, consequentemente, era excessivamente rara.
Eis o texto do prefácio, que tem a data de 1788, e cuja forma bastante ambígua bem poderia ser uma maneira de dissimular a personalidade do autor:
“Se eu dissesse como me caiu nas mãos a obra que hoje entrego ao público, o extraordinário que encerra esta história não satisfaria mais o leitor do que pode inquietá-lo o meu silêncio, e nada acrescentaria ao preço inestimável do presente que lhe faço. Surpresa e preocupada por esta singularidade, li com uma espécie de desconfiança; mas logo as conjecturas foram abafadas pela admiração; encontrei o que nenhum filósofo jamais nos havia oferecido, um sistema completo. Senti meu Espírito apoiar-se, fixar-se sobre uma base que lhe era em tudo correspondente; senti minha alma crescer e elevar-se; senti meu coração abrasar-se de um novo amor por meus semelhantes; minha imaginação foi ferida por um respeito mais profundo pelo autor de todas as coisas; vi o porquê de tantos de murmúrios contra a sabedoria eterna; encontrando-me melhor e mais venturosa, pensei que não era por acaso que eu tinha sido escolhida, e que a Providência me havia determinado para ser o instrumento da publicação deste manual, próprio a todos os cultos, que ele respeita, a todas as idades, que ele instrui, a todos os estados, que ele consola, do monarca ao mendigo. O sentimento e a razão me levaram a partilhar com meus irmãos as encorajadoras esperanças, a pacífica resignação, os impulsos para a perfeição de que me acho penetrada. Fortalecida por uma felicidade que até então me era desconhecida, enfrento o ridículo que me atirarão os espíritos fortes pela fraqueza, e de antemão lhes perdoo os pesares com que talvez queiram pagar a felicidade à qual convido o leitor e que, mais cedo ou mais tarde, será sua partilha.”
Um de nossos colegas da Sociedade Espírita de Paris, que mora em Gray, na Haute-Saône, há pouco tempo encontrou essa obra sobre sua mesa, sem que jamais tenha podido saber como nem por quem foi trazida, pois não conhece ninguém que tenha podido fazê-lo, e aliás não compreende o motivo para se ocultar. Entre as pessoas de seu conhecimento, nenhuma fez alusão a isto em conversa, nem pareceu ter conhecimento do livro, quando dele falou. Tocado pelas ideias que o mesmo encerra, ele no-lo informou em sua última viagem a Paris. Tendo sido feita uma publicação recente pela casa Hachette, apressamo-nos em obtê-lo. Seu título, que infelizmente nada diz, deve ter contribuído para deixá-lo ignorado pelo público. Cremos que os espíritas nos serão gratos por tirá-lo do esquecimento, chamando sua atenção sobre ele. Nada melhor podemos fazer do que citar algumas de suas passagens.
“Partimos todos do mesmo ponto, para chegar à mesma circunferência, seguindo por raios diferentes; e é da diversidade dos tipos que temos usado que provém a diversidade de inclinações dos homens para o seu primeiro protótipo. Quanto às inclinações dos que já usaram vários, elas têm tantas causas diversas e tantas diferentes nuanças, que querendo indicá-las nós nos perderíamos no infinito. Contentar-me-ei, pois, em dizer que enquanto nada fazemos senão girar no círculo das vaidades, a gente é sempre semelhante; mas aquele que entrou em suas leis não poderá conceber como pôde cometer certas ações tão pouco semelhantes e tão contrárias ao que é atualmente.” (pág. 87).
“O homem não passa de um protótipo disforme ou débil senão quando criminosamente abusou da força e da beleza daquele que acaba de deixar, porque depois que fazemos a sua experiência, somos privados das vantagens de que abusamos, para nos afastarmos da felicidade e da salvação, e recebemos o que novamente delas nos pode aproximar. Se, pois, foi a beleza, nasceremos feios, disformes; se a saúde, fracos, doentios; se as riquezas, pobres, desprezados; se as grandezas, escravos, vilipendiados; tais, enfim, que o jogo das leis universais no-lo mostra, já aqui embaixo, alguns exemplos constantes naqueles que, depois de haverem abusado dos bens passageiros ou de convenção, para ultrajar os seus irmãos, tornaram-se para eles objeto de desprezo e de piedade.” (pág. 89).
“Quando julgamos das penas que merece um crime, podemos variar na medida das punições. Mas todos concordamos que o crime deve ser punido. Estaremos igualmente de acordo para concordar que os castigos que de um mau sujeito fariam um bom cidadão seriam preferíveis à barbárie de supliciá-lo eternamente e inutilmente para si e para os outros, e que a Onipotência, não podendo ser ameaçada, ofendida, perturbada, não pode querer vingar-se; que assim, tudo quanto experimentamos não é senão para nos esclarecer e nos modificar; mas o preço inestimável que liga o homem a objetos de toda sorte o faz pensar que não é menos necessário um poder infinito para proporcionar o castigo ao delito do qual se tornou culpado contra ele; e em sua louca paixão, imagina que Deus não deixará de vingarse, como ele se vingaria se fosse Deus, ao passo que outros procuram persuadir-se de que o Céu não toma conhecimento de seus crimes. Mas é assim que devem raciocinar os diversos transviados, cada um tomando seu interesse diferente como base.” (pág. 134).
“Se não tivéssemos limitado o Universo ao nosso pequeno globo, a um Elísio, a um Tártaro, todo cercado de velas, teríamos sido mais justos para com Deus e para com os homens.
“Tu não sabes o que fazer desse tirano de Roma que, depois de inumeráveis erros, morreu com o pesar de não haver cometido todos aqueles que ainda se encontram na lista. Não podendo fazê-lo passar aos Elíseos, inventas as Fúrias, um Tártaro, e o precipitas num abismo de penas eternas. Mas quando souberes que aquele tirano, assassinado na flor da idade, não deixou de viver; que ele passou pelas mais abjetas condições; que foi punido pela lei de Talião; que sofreu sozinho tudo o que fez sofrerem tantos outros; quando souberes que instruído pela desgraça, essa grande mestra do homem, modificado pelos sofrimentos, desenganado, esclarecido sobre tudo o que perturba; aquele coração, no qual abundavam os erros e os vícios, e que vomitou os crimes que as leis universais fizeram servir para a modificação e salvação de uma porção de nossos irmãos; quando souberes, digo eu, que aquele mesmo coração é hoje asilo da verdade, das mais suaves e harmoniosas virtudes, quais serão teus sentimentos por ele?” (pág. 131).
“Quando os homens imaginaram um Deus vingativo, fizeram-no à sua imagem. O homem se vinga porque acredita ter sido lesado ou para provar que com ele não se brinca, isto é, ele não se vinga senão por avareza e por medo, crendo só se vingar por um sentimento de justiça. Ora, cada um sabe a que excessos podem levar-nos nossas paixões discordantes. Mas o Eterno, inacessível aos nossos ataques, o Eterno, tão bom quanto justo, só exerce sua justiça na mesma medida da sua bondade. Tendo a sua bondade nos criado para um destino feliz, ele ordenou justamente a natureza das coisas de maneira a:
“1º ─ que nenhum crime fique impune;
“2º ─ que a punição, mais cedo ou mais tarde, se torne uma luz para o infrator e para vários outros;
“3º ─ que não possamos deslocar nem infringir nossas leis sem cair num mal proporcional à nossa infração e à luxação moral do grau atual de nossa modificação. (pág. 132).
“Quanto mais avançares, mais encantos encontrarás na prece de amor, porque é pelo amor que seremos felizes e porque, sendo o amor o elo dos seres, teu bom gênio reagirá sobre ti. Esse companheiro invisível talvez seja o amigo que julgas ter perdido, ou esse outro tu mesmo que pensas existir apenas em teu desejo; mas, ainda um momento, e tu estarás com ele e com todos aqueles que houveres amado, ou que terias amado preferentemente, se os tivesses conhecido.” (pág. 265).
“Quando uma injustiça ou uma maldade despertar em ti o sentimento de indignação, antes de raciocinar sobre essa injustiça ou essa maldade, racionaliza teu sentimento, a fim de que não se transforme em cólera. Dize para ti mesmo: É para suportar isto que necessito de sabedoria. Não será isto uma velha dívida que eu pago? Se me deixar perturbar, não tardarei a cair. Não estamos todos sob a mão do grande Obreiro e não sabe ele melhor do que eu qual o utensílio de que ele deve servir-se? Que conselhos eu daria ao meu amigo se o visse na minha posição? Não é verdade que eu lhe recordaria a gradação dos seres; que eu lhe perguntaria se uma árvore silvestre produz tão bons frutos quanto uma latada de árvores frutíferas; se ele quereria achar-se tão atrasado quanto o perverso, a fim de ser semelhante a ele; se o golpe que ele sofreu não cortou um elo que ele desconhecia ou que ele próprio não tinha força de romper? Não terminaria eu por fixar o seu olhar sobre essa felicidade eterna, preço do complemento de uma harmonia na qual não fazemos progressos senão à medida que nos esclarecemos, que nos destacamos dos miseráveis interesses de onde nascem os choques contínuos e que nos elevamos acima do finito!” (pág. 310).
Estas citações dizem o suficiente para dar a conhecer o espírito dessa obra e tornar supérfluo qualquer comentário. Tendo perguntado ao guia do médium Sr. Desliens, se seria possível evocar o Espírito do autor, ele respondeu: “Sim, certamente, e com tanto mais facilidade por não ser sua primeira comunicação.
Vários médiuns já foram dirigidos por ele em diversas circunstâncias. Mas deixo a ele mesmo a tarefa de se explicar, conforme abaixo.”
Evocado e interrogado quanto às fontes onde teria colhido as ideias contidas em seu livro, o Espírito deu a seguinte comunicação, a 29 de junho de 1865:
Considerando-se que lestes uma obra cujo mérito não me atribuo com exclusividade, deveis saber que o bem da Humanidade e a instrução dos meus irmãos foram o objetivo de meus caros desejos. Isto significa que venho com prazer vos dar as informações que de mim esperais. Já vim diversas vezes às sessões da Sociedade, não só como expectador, mas como instrutor, e não vos admireis do que adianto, quando vos disser, como já o sabeis, que em suas comunicações os Espíritos tomam o nome tipo do grupo a que pertencem. Assim, tal Espírito que assina Santo Agostinho não será o próprio Espírito de Santo Agostinho, mas um ser da mesma ordem, chegado ao mesmo grau de perfeição. Isto posto, sabei que fui, em minha vida corporal, um desses médiuns inconscientes que se revelam frequentemente em vossa época. Por que logo falei, e de uma forma que parece prematura, eu vos direi:
Para cada aquisição do homem nas ciências físicas ou morais, diversas balizas, a princípio desdenhadas, repelidas para a seguir triunfarem, tiveram que ser plantadas, a fim de insensivelmente preparar os Espíritos para os movimentos futuros. Toda ideia nova, fazendo, sem precedente, sua entrada no mundo que se costuma chamar sábio, quase não tem chance de êxito, em razão do espírito de partido e das oposições sistemáticas daqueles que o compõem. Entregar-se a ideias novas, cuja sabedoria entretanto reconhecem, é para eles uma humilhação, pois seria confessar sua fraqueza e provar a insanidade de seus sistemas particulares. Eles preferem negar por amor-próprio, pelo respeito humano, mesmo por ambição, até que a evidência os force a concordar que estão errados, sob pena de se verem cobertos do ridículo que tinham querido atirar sobre os novos instrumentos da Providência.
Assim foi em todos os tempos; também o foi para o Espiritismo. Não fiqueis, pois, admirados por encontrardes em épocas anteriores ao grande movimento espiritualista, diversas manifestações isoladas, cuja concordância com as da hora presente prova, mais uma vez, a intervenção da Onipotência em todas as descobertas que a Humanidade erroneamente atribui a qualquer gênio humano particular.
Sem dúvida, cada um tem seu gênio próprio; mas, reduzido às suas próprias forças, o que fará? Quando um homem dotado de uma inteligência capaz de propagar novas instituições com alguma chance de sucesso aparece na Terra ou alhures, ele é escolhido pela hierarquia dos seres invisíveis encarregados pela Providência de velar pela manifestação da nova invenção, para receber a inspiração dessa descoberta e trazer progressivamente os incidentes que devem assegurar-lhe o êxito.
Dizer-vos o que me impeliu a escrever esse livro, verdadeira manifestação de minha individualidade, ter-me-ia sido impossível ao tempo de minha encarnação. Agora vejo claramente que fui o instrumento, em parte passivo, do Espírito encarregado de me dirigir para o ponto harmonioso sobre o qual eu me devia modelar para adquirir a soma das perfeições que me era dado esperar na Terra.
Há duas espécies de perfeições, bem distintas uma da outra: as perfeições relativas, que nos são inspiradas pelo guia do momento, guia que ainda está muito longe do topo da escada da perfectibilidade, mas que apenas ultrapassa os seus protegidos em razão da compreensão de que são capazes, e a perfeição absoluta, que para mim é uma aspiração ainda velada, porque ainda a ignoro, e à qual se chega pela sucessão das perfeições relativas.
Em cada mundo que ela transita, a alma adquire novos sentidos morais, que lhe permitem conhecer coisas das quais não tinha a menor ideia. Dir-vos-ia eu o que fui? Que posição ocupo na escala dos seres? Com que finalidade? Que utilidade teria para mim um pouco de glória terrena?... Prefiro conservar a suave lembrança de ter sido útil aos meus semelhantes na medida de minhas forças e continuar aqui a tarefa que Deus, em sua bondade, me havia imposto na Terra.
Eu me instruí instruindo os outros. Aqui faço o mesmo. Apenas vos direi que faço parte dessa categoria de Espíritos que designais pelo nome genérico de São Luís.
P. ─ Poderíeis dizer-nos: 1.º ─ se, em vossa última encarnação, fostes a pessoa designada do prefácio da reedição de vossa obra, sob o nome de Félix de Wimpfen?2.º ─ se fazíeis parte da seita dos teósofos cujas opiniões se aproximam muito das nossas? 3.º ─ se deveis reencarnar em breve e fazer parte da falange de Espíritos destinados a acabar o grande movimento a que assistimos? O Sr. Allan Kardec tem a intenção de dar a conhecer o vosso livro. Ele também gostaria de ter a vossa opinião a respeito.
R. ─ Não, não fui Félix de Wimpfen, crede-me. Se tivesse sido, não hesitaria em vo-lo dizer. Ele foi meu amigo, bem como diversos outros filósofos do século dezoito; até mesmo partilhei de seu fim cruel. Mas, repito, meu nome permanecerá desconhecido, e me parece inútil dá-lo a conhecer.
Certamente fui um teósofo, sem partilhar do entusiasmo que distinguiu alguns dos partidários daquela escola.
Tive relações com os principais dentre eles e minhas ideias, como pudestes ver, eram em tudo conformes às deles.
Sou inteiramente submisso aos desígnios da Providência, e se lhe agradar mandar-me de novo à Terra para continuar a me purificar e esclarecer, bendirei sua bondade. Aliás, é um desejo que formulei e cuja realização espero ver em breve.
Vindo o conhecimento de meu livro apoiar as ideias espíritas, só posso aprovar a atitude do nosso caro presidente por ter pensado nisto. Mas talvez não seja o primeiro instigador dessa preparação e, de minha parte, estou certo que alguns Espíritos de meu conhecimento contribuíram para colocá-lo em suas mãos e para inspirar-lhe as intenções que traçou a esse respeito.
Quando me evocardes especialmente, dar-me-ei reconhecer, mas se vier vos instruir, como no passado, não reconhecereis em mim senão um dos Espíritos da ordem de São Luís.
Eis o texto do prefácio, que tem a data de 1788, e cuja forma bastante ambígua bem poderia ser uma maneira de dissimular a personalidade do autor:
“Se eu dissesse como me caiu nas mãos a obra que hoje entrego ao público, o extraordinário que encerra esta história não satisfaria mais o leitor do que pode inquietá-lo o meu silêncio, e nada acrescentaria ao preço inestimável do presente que lhe faço. Surpresa e preocupada por esta singularidade, li com uma espécie de desconfiança; mas logo as conjecturas foram abafadas pela admiração; encontrei o que nenhum filósofo jamais nos havia oferecido, um sistema completo. Senti meu Espírito apoiar-se, fixar-se sobre uma base que lhe era em tudo correspondente; senti minha alma crescer e elevar-se; senti meu coração abrasar-se de um novo amor por meus semelhantes; minha imaginação foi ferida por um respeito mais profundo pelo autor de todas as coisas; vi o porquê de tantos de murmúrios contra a sabedoria eterna; encontrando-me melhor e mais venturosa, pensei que não era por acaso que eu tinha sido escolhida, e que a Providência me havia determinado para ser o instrumento da publicação deste manual, próprio a todos os cultos, que ele respeita, a todas as idades, que ele instrui, a todos os estados, que ele consola, do monarca ao mendigo. O sentimento e a razão me levaram a partilhar com meus irmãos as encorajadoras esperanças, a pacífica resignação, os impulsos para a perfeição de que me acho penetrada. Fortalecida por uma felicidade que até então me era desconhecida, enfrento o ridículo que me atirarão os espíritos fortes pela fraqueza, e de antemão lhes perdoo os pesares com que talvez queiram pagar a felicidade à qual convido o leitor e que, mais cedo ou mais tarde, será sua partilha.”
Um de nossos colegas da Sociedade Espírita de Paris, que mora em Gray, na Haute-Saône, há pouco tempo encontrou essa obra sobre sua mesa, sem que jamais tenha podido saber como nem por quem foi trazida, pois não conhece ninguém que tenha podido fazê-lo, e aliás não compreende o motivo para se ocultar. Entre as pessoas de seu conhecimento, nenhuma fez alusão a isto em conversa, nem pareceu ter conhecimento do livro, quando dele falou. Tocado pelas ideias que o mesmo encerra, ele no-lo informou em sua última viagem a Paris. Tendo sido feita uma publicação recente pela casa Hachette, apressamo-nos em obtê-lo. Seu título, que infelizmente nada diz, deve ter contribuído para deixá-lo ignorado pelo público. Cremos que os espíritas nos serão gratos por tirá-lo do esquecimento, chamando sua atenção sobre ele. Nada melhor podemos fazer do que citar algumas de suas passagens.
“Partimos todos do mesmo ponto, para chegar à mesma circunferência, seguindo por raios diferentes; e é da diversidade dos tipos que temos usado que provém a diversidade de inclinações dos homens para o seu primeiro protótipo. Quanto às inclinações dos que já usaram vários, elas têm tantas causas diversas e tantas diferentes nuanças, que querendo indicá-las nós nos perderíamos no infinito. Contentar-me-ei, pois, em dizer que enquanto nada fazemos senão girar no círculo das vaidades, a gente é sempre semelhante; mas aquele que entrou em suas leis não poderá conceber como pôde cometer certas ações tão pouco semelhantes e tão contrárias ao que é atualmente.” (pág. 87).
“O homem não passa de um protótipo disforme ou débil senão quando criminosamente abusou da força e da beleza daquele que acaba de deixar, porque depois que fazemos a sua experiência, somos privados das vantagens de que abusamos, para nos afastarmos da felicidade e da salvação, e recebemos o que novamente delas nos pode aproximar. Se, pois, foi a beleza, nasceremos feios, disformes; se a saúde, fracos, doentios; se as riquezas, pobres, desprezados; se as grandezas, escravos, vilipendiados; tais, enfim, que o jogo das leis universais no-lo mostra, já aqui embaixo, alguns exemplos constantes naqueles que, depois de haverem abusado dos bens passageiros ou de convenção, para ultrajar os seus irmãos, tornaram-se para eles objeto de desprezo e de piedade.” (pág. 89).
“Quando julgamos das penas que merece um crime, podemos variar na medida das punições. Mas todos concordamos que o crime deve ser punido. Estaremos igualmente de acordo para concordar que os castigos que de um mau sujeito fariam um bom cidadão seriam preferíveis à barbárie de supliciá-lo eternamente e inutilmente para si e para os outros, e que a Onipotência, não podendo ser ameaçada, ofendida, perturbada, não pode querer vingar-se; que assim, tudo quanto experimentamos não é senão para nos esclarecer e nos modificar; mas o preço inestimável que liga o homem a objetos de toda sorte o faz pensar que não é menos necessário um poder infinito para proporcionar o castigo ao delito do qual se tornou culpado contra ele; e em sua louca paixão, imagina que Deus não deixará de vingarse, como ele se vingaria se fosse Deus, ao passo que outros procuram persuadir-se de que o Céu não toma conhecimento de seus crimes. Mas é assim que devem raciocinar os diversos transviados, cada um tomando seu interesse diferente como base.” (pág. 134).
“Se não tivéssemos limitado o Universo ao nosso pequeno globo, a um Elísio, a um Tártaro, todo cercado de velas, teríamos sido mais justos para com Deus e para com os homens.
“Tu não sabes o que fazer desse tirano de Roma que, depois de inumeráveis erros, morreu com o pesar de não haver cometido todos aqueles que ainda se encontram na lista. Não podendo fazê-lo passar aos Elíseos, inventas as Fúrias, um Tártaro, e o precipitas num abismo de penas eternas. Mas quando souberes que aquele tirano, assassinado na flor da idade, não deixou de viver; que ele passou pelas mais abjetas condições; que foi punido pela lei de Talião; que sofreu sozinho tudo o que fez sofrerem tantos outros; quando souberes que instruído pela desgraça, essa grande mestra do homem, modificado pelos sofrimentos, desenganado, esclarecido sobre tudo o que perturba; aquele coração, no qual abundavam os erros e os vícios, e que vomitou os crimes que as leis universais fizeram servir para a modificação e salvação de uma porção de nossos irmãos; quando souberes, digo eu, que aquele mesmo coração é hoje asilo da verdade, das mais suaves e harmoniosas virtudes, quais serão teus sentimentos por ele?” (pág. 131).
“Quando os homens imaginaram um Deus vingativo, fizeram-no à sua imagem. O homem se vinga porque acredita ter sido lesado ou para provar que com ele não se brinca, isto é, ele não se vinga senão por avareza e por medo, crendo só se vingar por um sentimento de justiça. Ora, cada um sabe a que excessos podem levar-nos nossas paixões discordantes. Mas o Eterno, inacessível aos nossos ataques, o Eterno, tão bom quanto justo, só exerce sua justiça na mesma medida da sua bondade. Tendo a sua bondade nos criado para um destino feliz, ele ordenou justamente a natureza das coisas de maneira a:
“1º ─ que nenhum crime fique impune;
“2º ─ que a punição, mais cedo ou mais tarde, se torne uma luz para o infrator e para vários outros;
“3º ─ que não possamos deslocar nem infringir nossas leis sem cair num mal proporcional à nossa infração e à luxação moral do grau atual de nossa modificação. (pág. 132).
“Quanto mais avançares, mais encantos encontrarás na prece de amor, porque é pelo amor que seremos felizes e porque, sendo o amor o elo dos seres, teu bom gênio reagirá sobre ti. Esse companheiro invisível talvez seja o amigo que julgas ter perdido, ou esse outro tu mesmo que pensas existir apenas em teu desejo; mas, ainda um momento, e tu estarás com ele e com todos aqueles que houveres amado, ou que terias amado preferentemente, se os tivesses conhecido.” (pág. 265).
“Quando uma injustiça ou uma maldade despertar em ti o sentimento de indignação, antes de raciocinar sobre essa injustiça ou essa maldade, racionaliza teu sentimento, a fim de que não se transforme em cólera. Dize para ti mesmo: É para suportar isto que necessito de sabedoria. Não será isto uma velha dívida que eu pago? Se me deixar perturbar, não tardarei a cair. Não estamos todos sob a mão do grande Obreiro e não sabe ele melhor do que eu qual o utensílio de que ele deve servir-se? Que conselhos eu daria ao meu amigo se o visse na minha posição? Não é verdade que eu lhe recordaria a gradação dos seres; que eu lhe perguntaria se uma árvore silvestre produz tão bons frutos quanto uma latada de árvores frutíferas; se ele quereria achar-se tão atrasado quanto o perverso, a fim de ser semelhante a ele; se o golpe que ele sofreu não cortou um elo que ele desconhecia ou que ele próprio não tinha força de romper? Não terminaria eu por fixar o seu olhar sobre essa felicidade eterna, preço do complemento de uma harmonia na qual não fazemos progressos senão à medida que nos esclarecemos, que nos destacamos dos miseráveis interesses de onde nascem os choques contínuos e que nos elevamos acima do finito!” (pág. 310).
Estas citações dizem o suficiente para dar a conhecer o espírito dessa obra e tornar supérfluo qualquer comentário. Tendo perguntado ao guia do médium Sr. Desliens, se seria possível evocar o Espírito do autor, ele respondeu: “Sim, certamente, e com tanto mais facilidade por não ser sua primeira comunicação.
Vários médiuns já foram dirigidos por ele em diversas circunstâncias. Mas deixo a ele mesmo a tarefa de se explicar, conforme abaixo.”
Evocado e interrogado quanto às fontes onde teria colhido as ideias contidas em seu livro, o Espírito deu a seguinte comunicação, a 29 de junho de 1865:
Considerando-se que lestes uma obra cujo mérito não me atribuo com exclusividade, deveis saber que o bem da Humanidade e a instrução dos meus irmãos foram o objetivo de meus caros desejos. Isto significa que venho com prazer vos dar as informações que de mim esperais. Já vim diversas vezes às sessões da Sociedade, não só como expectador, mas como instrutor, e não vos admireis do que adianto, quando vos disser, como já o sabeis, que em suas comunicações os Espíritos tomam o nome tipo do grupo a que pertencem. Assim, tal Espírito que assina Santo Agostinho não será o próprio Espírito de Santo Agostinho, mas um ser da mesma ordem, chegado ao mesmo grau de perfeição. Isto posto, sabei que fui, em minha vida corporal, um desses médiuns inconscientes que se revelam frequentemente em vossa época. Por que logo falei, e de uma forma que parece prematura, eu vos direi:
Para cada aquisição do homem nas ciências físicas ou morais, diversas balizas, a princípio desdenhadas, repelidas para a seguir triunfarem, tiveram que ser plantadas, a fim de insensivelmente preparar os Espíritos para os movimentos futuros. Toda ideia nova, fazendo, sem precedente, sua entrada no mundo que se costuma chamar sábio, quase não tem chance de êxito, em razão do espírito de partido e das oposições sistemáticas daqueles que o compõem. Entregar-se a ideias novas, cuja sabedoria entretanto reconhecem, é para eles uma humilhação, pois seria confessar sua fraqueza e provar a insanidade de seus sistemas particulares. Eles preferem negar por amor-próprio, pelo respeito humano, mesmo por ambição, até que a evidência os force a concordar que estão errados, sob pena de se verem cobertos do ridículo que tinham querido atirar sobre os novos instrumentos da Providência.
Assim foi em todos os tempos; também o foi para o Espiritismo. Não fiqueis, pois, admirados por encontrardes em épocas anteriores ao grande movimento espiritualista, diversas manifestações isoladas, cuja concordância com as da hora presente prova, mais uma vez, a intervenção da Onipotência em todas as descobertas que a Humanidade erroneamente atribui a qualquer gênio humano particular.
Sem dúvida, cada um tem seu gênio próprio; mas, reduzido às suas próprias forças, o que fará? Quando um homem dotado de uma inteligência capaz de propagar novas instituições com alguma chance de sucesso aparece na Terra ou alhures, ele é escolhido pela hierarquia dos seres invisíveis encarregados pela Providência de velar pela manifestação da nova invenção, para receber a inspiração dessa descoberta e trazer progressivamente os incidentes que devem assegurar-lhe o êxito.
Dizer-vos o que me impeliu a escrever esse livro, verdadeira manifestação de minha individualidade, ter-me-ia sido impossível ao tempo de minha encarnação. Agora vejo claramente que fui o instrumento, em parte passivo, do Espírito encarregado de me dirigir para o ponto harmonioso sobre o qual eu me devia modelar para adquirir a soma das perfeições que me era dado esperar na Terra.
Há duas espécies de perfeições, bem distintas uma da outra: as perfeições relativas, que nos são inspiradas pelo guia do momento, guia que ainda está muito longe do topo da escada da perfectibilidade, mas que apenas ultrapassa os seus protegidos em razão da compreensão de que são capazes, e a perfeição absoluta, que para mim é uma aspiração ainda velada, porque ainda a ignoro, e à qual se chega pela sucessão das perfeições relativas.
Em cada mundo que ela transita, a alma adquire novos sentidos morais, que lhe permitem conhecer coisas das quais não tinha a menor ideia. Dir-vos-ia eu o que fui? Que posição ocupo na escala dos seres? Com que finalidade? Que utilidade teria para mim um pouco de glória terrena?... Prefiro conservar a suave lembrança de ter sido útil aos meus semelhantes na medida de minhas forças e continuar aqui a tarefa que Deus, em sua bondade, me havia imposto na Terra.
Eu me instruí instruindo os outros. Aqui faço o mesmo. Apenas vos direi que faço parte dessa categoria de Espíritos que designais pelo nome genérico de São Luís.
P. ─ Poderíeis dizer-nos: 1.º ─ se, em vossa última encarnação, fostes a pessoa designada do prefácio da reedição de vossa obra, sob o nome de Félix de Wimpfen?2.º ─ se fazíeis parte da seita dos teósofos cujas opiniões se aproximam muito das nossas? 3.º ─ se deveis reencarnar em breve e fazer parte da falange de Espíritos destinados a acabar o grande movimento a que assistimos? O Sr. Allan Kardec tem a intenção de dar a conhecer o vosso livro. Ele também gostaria de ter a vossa opinião a respeito.
R. ─ Não, não fui Félix de Wimpfen, crede-me. Se tivesse sido, não hesitaria em vo-lo dizer. Ele foi meu amigo, bem como diversos outros filósofos do século dezoito; até mesmo partilhei de seu fim cruel. Mas, repito, meu nome permanecerá desconhecido, e me parece inútil dá-lo a conhecer.
Certamente fui um teósofo, sem partilhar do entusiasmo que distinguiu alguns dos partidários daquela escola.
Tive relações com os principais dentre eles e minhas ideias, como pudestes ver, eram em tudo conformes às deles.
Sou inteiramente submisso aos desígnios da Providência, e se lhe agradar mandar-me de novo à Terra para continuar a me purificar e esclarecer, bendirei sua bondade. Aliás, é um desejo que formulei e cuja realização espero ver em breve.
Vindo o conhecimento de meu livro apoiar as ideias espíritas, só posso aprovar a atitude do nosso caro presidente por ter pensado nisto. Mas talvez não seja o primeiro instigador dessa preparação e, de minha parte, estou certo que alguns Espíritos de meu conhecimento contribuíram para colocá-lo em suas mãos e para inspirar-lhe as intenções que traçou a esse respeito.
Quando me evocardes especialmente, dar-me-ei reconhecer, mas se vier vos instruir, como no passado, não reconhecereis em mim senão um dos Espíritos da ordem de São Luís.
Dissertações espíritas
A chave do céu
(Sociedade de Montreuil - Sur - Mer, 5 de janeiro de 1865)
Quando se considera que tudo vem de Deus e retorna a Deus, é impossível não perceber, na generalidade das criações divinas, o laço que as une entre si e as sujeita a um trabalho de avanço comum, ao mesmo tempo que a um trabalho de progresso particular. Também não se pode desconhecer que a lei de solidariedade daí resultante não nos obriga a sacrifícios gratuitos de toda sorte, uns para com os outros. Além do mais, é de notar-se que Deus nos mostrou em tudo uma primeira aplicação dos princípios primordiais por ele estabelecidos. Assim, pela solidariedade, encontra-se esse princípio expresso na sensibilidade de que fomos dotados, sensibilidade que nos leva a compartilhar dos males alheios, a lhes ter piedade e a aliviá-los.
Isto não é tudo. Os profetas e o divino messias Jesus deram-nos o exemplo de uma segunda aplicação do princípio de solidariedade, inicialmente consagrando-a através de cerimônias simbólicas, e mais frequentemente pela autoridade de seus ensinamentos, o amor do homem pelo homem; depois, proclamando como um dever necessário e vigoroso a prática da caridade, que é a expressão da solidariedade. A caridade é o ato de nossa submissão à lei de Deus; é o sinal de nossa grandeza moral; é a chave do céu. Assim, é da caridade que vos quero falar. Encará-la-ei apenas sob um aspecto: o lado material, e a razão disto é simples: é o lado que menos agrada ao homem.
Nem os cristãos nem os espíritas negaram o princípio, ou melhor, a lei da solidariedade, mas procuraram subtrair-lhe as consequências, e para isto invocaram mil pretextos. Citarei alguns deles.
As coisas do espírito ou do coração, dizem, tendo um preço infinitamente superior ao das coisas materiais, segue-se que consolar aflições, por boas palavras ou por sábios conselhos, vale infinitamente mais que consolar por socorros materiais. Seguramente, senhores, tendes razão se a aflição de que falais tem uma causa moral; se encontra sua razão numa ferida do coração; mas se for a fome, se for o frio, se for uma doença; se, numa palavra, forem causas materiais que a provocaram, vossas sábias palavras bastarão para minimizá-la? Permitireis que eu duvide disso. Se Deus, colocando-vos na Terra, tivesse esquecido de prover o alimento para o vosso corpo, teríeis encontrado o seu equivalente nos socorros espirituais que ele vos concede? Mas Deus não é o homem. Deus é a sabedoria eterna e a bondade infinita. Ele vos impôs um corpo de lama, mas proveu às necessidades desse corpo fertilizando os vossos campos e fecundando os tesouros da Terra; aos socorros espirituais que se dirigiam à vossa alma, juntou os socorros materiais reclamados por vosso corpo. Desde então, e porque o egoísmo talvez tenha despojado o pobre de sua herança terrena, com que direito vos julgais quites para com ele? Porque a justiça humana o excluiu do número dos usufrutuários dos bens temporais, vossa caridade não encontraria uma justiça mais equitativa para lhe fazer?
Um ilustre pensador deste século não temia assim exprimir-se na sua memorável profissão de fé: “Cada abelha tem direito à porção de mel necessária à sua subsistência, e se, entre os homens, a alguns falta o necessário, é que a justiça e a caridade desapareceram de seu meio.” Por mais excessiva que vos possa parecer esta linguagem, ela não deixa de conter uma grande verdade, verdade talvez incompreensível para o entendimento de muitos entre vós, mas evidente para nós, Espíritos que, mais tocados pelos efeitos, porque os abraçamos em seu conjunto, vemos assim as causas que os produzem.
Ah! diz este, ninguém mais que eu lamenta as penas e as privações cruéis do verdadeiro pobre, do pobre cujo trabalho, insuficiente para a manutenção da família, não lhe traz, em troca das fadigas, nem a alegria de nutrir os seus, nem a esperança de torná-los felizes; mas eu considerava um caso de consciência encorajar, por cegas liberalidades, a preguiça ou a má conduta em farrapos. Aliás, considero a caridade como indispensável à salvação do homem; somente a impossibilidade de descobrir as necessidades reais entre tantas necessidades simuladas parece-me justificar a minha abstenção.
A impossibilidade de descobrir as necessidades reais, tal é, meu amigo, a vossa justificação. Vede, entretanto, que essa justificativa jamais será sancionada por vossa consciência e não quero outra prova além da vossa confissão, porque, do direito que teria o verdadeiro pobre à vossa esmola, ─ e reconheceis esse direito ─ desse direito, digo eu, decorre para vós o dever de procurá-lo. Vós o procurais? A impossibilidade vos detém. É evidente! A caridade não tem limites, ela é infinita como Deus, de onde emana, e não admite qualquer impossibilidade! Sim, algo vos detém: é o egoísmo, e Deus, que sonda a razão e o coração, Deus o descobrirá facilmente sob os falaciosos pretextos com que o velais. Podeis enganar o mundo, conseguireis enganar momentaneamente a vossa consciência, mas nunca enganareis Deus. Em cem anos, em mil anos, aparecereis novamente na Terra; sem dúvida aí vivereis, despojados de vossa opulência presente e curvados ao peso da indigência. Eu vos declaro, então, que recebereis do rico o desdém e a indiferença que vós mesmos, outrora ricos, tiverdes demonstrado pelo pobre. Diz-se que a nobreza obriga; a solidariedade obriga ainda mais. Quem se subtrai a essa lei perde todos os seus benefícios. Eis por que vós, que tiverdes alimentado o fundo egoísta de vossa natureza, sofrereis, por vossa vez, o desprezo do egoísmo.
Isto não é tudo. Os profetas e o divino messias Jesus deram-nos o exemplo de uma segunda aplicação do princípio de solidariedade, inicialmente consagrando-a através de cerimônias simbólicas, e mais frequentemente pela autoridade de seus ensinamentos, o amor do homem pelo homem; depois, proclamando como um dever necessário e vigoroso a prática da caridade, que é a expressão da solidariedade. A caridade é o ato de nossa submissão à lei de Deus; é o sinal de nossa grandeza moral; é a chave do céu. Assim, é da caridade que vos quero falar. Encará-la-ei apenas sob um aspecto: o lado material, e a razão disto é simples: é o lado que menos agrada ao homem.
Nem os cristãos nem os espíritas negaram o princípio, ou melhor, a lei da solidariedade, mas procuraram subtrair-lhe as consequências, e para isto invocaram mil pretextos. Citarei alguns deles.
As coisas do espírito ou do coração, dizem, tendo um preço infinitamente superior ao das coisas materiais, segue-se que consolar aflições, por boas palavras ou por sábios conselhos, vale infinitamente mais que consolar por socorros materiais. Seguramente, senhores, tendes razão se a aflição de que falais tem uma causa moral; se encontra sua razão numa ferida do coração; mas se for a fome, se for o frio, se for uma doença; se, numa palavra, forem causas materiais que a provocaram, vossas sábias palavras bastarão para minimizá-la? Permitireis que eu duvide disso. Se Deus, colocando-vos na Terra, tivesse esquecido de prover o alimento para o vosso corpo, teríeis encontrado o seu equivalente nos socorros espirituais que ele vos concede? Mas Deus não é o homem. Deus é a sabedoria eterna e a bondade infinita. Ele vos impôs um corpo de lama, mas proveu às necessidades desse corpo fertilizando os vossos campos e fecundando os tesouros da Terra; aos socorros espirituais que se dirigiam à vossa alma, juntou os socorros materiais reclamados por vosso corpo. Desde então, e porque o egoísmo talvez tenha despojado o pobre de sua herança terrena, com que direito vos julgais quites para com ele? Porque a justiça humana o excluiu do número dos usufrutuários dos bens temporais, vossa caridade não encontraria uma justiça mais equitativa para lhe fazer?
Um ilustre pensador deste século não temia assim exprimir-se na sua memorável profissão de fé: “Cada abelha tem direito à porção de mel necessária à sua subsistência, e se, entre os homens, a alguns falta o necessário, é que a justiça e a caridade desapareceram de seu meio.” Por mais excessiva que vos possa parecer esta linguagem, ela não deixa de conter uma grande verdade, verdade talvez incompreensível para o entendimento de muitos entre vós, mas evidente para nós, Espíritos que, mais tocados pelos efeitos, porque os abraçamos em seu conjunto, vemos assim as causas que os produzem.
Ah! diz este, ninguém mais que eu lamenta as penas e as privações cruéis do verdadeiro pobre, do pobre cujo trabalho, insuficiente para a manutenção da família, não lhe traz, em troca das fadigas, nem a alegria de nutrir os seus, nem a esperança de torná-los felizes; mas eu considerava um caso de consciência encorajar, por cegas liberalidades, a preguiça ou a má conduta em farrapos. Aliás, considero a caridade como indispensável à salvação do homem; somente a impossibilidade de descobrir as necessidades reais entre tantas necessidades simuladas parece-me justificar a minha abstenção.
A impossibilidade de descobrir as necessidades reais, tal é, meu amigo, a vossa justificação. Vede, entretanto, que essa justificativa jamais será sancionada por vossa consciência e não quero outra prova além da vossa confissão, porque, do direito que teria o verdadeiro pobre à vossa esmola, ─ e reconheceis esse direito ─ desse direito, digo eu, decorre para vós o dever de procurá-lo. Vós o procurais? A impossibilidade vos detém. É evidente! A caridade não tem limites, ela é infinita como Deus, de onde emana, e não admite qualquer impossibilidade! Sim, algo vos detém: é o egoísmo, e Deus, que sonda a razão e o coração, Deus o descobrirá facilmente sob os falaciosos pretextos com que o velais. Podeis enganar o mundo, conseguireis enganar momentaneamente a vossa consciência, mas nunca enganareis Deus. Em cem anos, em mil anos, aparecereis novamente na Terra; sem dúvida aí vivereis, despojados de vossa opulência presente e curvados ao peso da indigência. Eu vos declaro, então, que recebereis do rico o desdém e a indiferença que vós mesmos, outrora ricos, tiverdes demonstrado pelo pobre. Diz-se que a nobreza obriga; a solidariedade obriga ainda mais. Quem se subtrai a essa lei perde todos os seus benefícios. Eis por que vós, que tiverdes alimentado o fundo egoísta de vossa natureza, sofrereis, por vossa vez, o desprezo do egoísmo.
Escutai estas palavras de Rousseau:
“Para mim, sei que todos os pobres são meus irmãos e que não posso, sem uma inescusável dureza, recusar-lhes o fraco socorro que me pedem. Na maioria são vagabundos, concordo; mas conheço bem as penas da vida para ignorar por quantas desgraças o homem honesto pode encontrar-se reduzido em sua sorte. E como poderia eu estar certo de que o desconhecido que me vem implorar assistência em nome de Deus não é esse homem honesto, prestes a perecer de miséria, e que minha recusa vai reduzir ao desespero? Quando a esmola que se lhes dá não for para eles um socorro real, é ao menos um testemunho de que se participa de suas penas, um abrandamento da dureza da recusa, uma espécie de saudação que se lhes faz.”
É um filho de Genebra, senhores, que fala da sorte; é um filósofo saciado nas fontes secas do século dezoito que teme desconhecer o homem honesto entre os desconhecidos que lhe estendem a mão, e que dá a todos. Ele dá a todos porque todos são seus irmãos: ele o sabe! Sabeis menos do que ele, senhores? Não ouso acreditar.
Mas, em que medida deveis dar, ou melhor, qual é nos vossos bens a parte que vos pertence e a que pertence aos pobres? Vossa parte, senhores, é o necessário, nada mais que o necessário, e não é preciso que exagereis. Em vão vos prevalecereis de vossa posição, dos encargos dela decorrentes, das obrigações de luxo que ela exige. Tudo isto diz respeito ao mundo, e se quereis viver para o mundo, não avançareis senão com o mundo, não ireis mais depressa que o mundo. Em vão, ainda, alegareis, para justificar vossos hábitos de moleza, um trabalho ao qual não se entrega o pobre, e que, praticado em vossa casa e por vós, vos torna beneficiários de maior comodidade. Em vão alegareis isto, porque todo homem é votado ao trabalho, para si ou para outros, porque todo homem é votado ao trabalho, para si ou para os outros, porque a incúria de seu vizinho não o absolveria do abandono em que ele o teria deixado.
Do vosso patrimônio, como do vosso trabalho, não vos é permitido retirar senão uma coisa em vosso proveito: o necessário. O resto cabe aos pobres. Esta é a lei. Não nego que esta lei comporte, em certos casos e em dadas circunstâncias, temperamentos; no entanto, diante da luz, diante da verdade, diante da justiça divina, ela não comporta mais isso.
E a família, que será dela? Estamos quites com ela pelo fato de termos socorrido aqueles a quem chamamos de pobres? Não, evidentemente, senhores, porque, do momento em que reconheceis a necessidade de vos despojar pelos pobres, trata-se de fazer uma escolha e estabelecer uma hierarquia. Ora, vossas mulheres e vossos filhos são os vossos primeiros pobres; a ele deveis, pois, dar as vossas primeiras esmolas. Velai pelo futuro de vossos filhos; preocupai-vos em lhes preparar dias calmos e tranquilos em meio a esse vale de lágrimas; deixai-lhes até em depósito uma pequena herança que lhes permita continuarem o bem que haveis começado: isto é legítimo. Entretanto, não lhes ensineis jamais a viver egoisticamente e a olhar como deles o que é de todos. Antes e depois deles, os autores de vossos dias, aqueles que vos alimentaram e guardaram, aqueles que protegeram vossos primeiros passos e guiaram vossa adolescência, vosso pai e vossa mãe, têm direito à vossa solicitude. Depois vêm as almas que Deus vos deu como vossos irmãos segundo a carne; depois os amigos de coração; depois todos os pobres, a começar pelos mais miseráveis.
Vós o vedes, eu vos concedo temperamentos, estabeleço uma hierarquia conforme os instintos do vosso coração. Evitai, entretanto, favorecer demasiado a uns, com exclusão de outros. É pela partilha equitativa dos vossos benefícios que mostrareis vossa sabedoria, e é ainda por essa partilha equitativa que cumprireis a lei de Deus em relação aos vossos irmãos, que é a lei da solidariedade.
Diz Lamennais que “A justiça é a vida; a caridade também é a vida, mas uma vida mais bela e mais doce.”
Sim, a caridade é uma bela e doce vida, é a vida dos santos, é a chave do Céu.
LACORDAIRE
“Para mim, sei que todos os pobres são meus irmãos e que não posso, sem uma inescusável dureza, recusar-lhes o fraco socorro que me pedem. Na maioria são vagabundos, concordo; mas conheço bem as penas da vida para ignorar por quantas desgraças o homem honesto pode encontrar-se reduzido em sua sorte. E como poderia eu estar certo de que o desconhecido que me vem implorar assistência em nome de Deus não é esse homem honesto, prestes a perecer de miséria, e que minha recusa vai reduzir ao desespero? Quando a esmola que se lhes dá não for para eles um socorro real, é ao menos um testemunho de que se participa de suas penas, um abrandamento da dureza da recusa, uma espécie de saudação que se lhes faz.”
É um filho de Genebra, senhores, que fala da sorte; é um filósofo saciado nas fontes secas do século dezoito que teme desconhecer o homem honesto entre os desconhecidos que lhe estendem a mão, e que dá a todos. Ele dá a todos porque todos são seus irmãos: ele o sabe! Sabeis menos do que ele, senhores? Não ouso acreditar.
Mas, em que medida deveis dar, ou melhor, qual é nos vossos bens a parte que vos pertence e a que pertence aos pobres? Vossa parte, senhores, é o necessário, nada mais que o necessário, e não é preciso que exagereis. Em vão vos prevalecereis de vossa posição, dos encargos dela decorrentes, das obrigações de luxo que ela exige. Tudo isto diz respeito ao mundo, e se quereis viver para o mundo, não avançareis senão com o mundo, não ireis mais depressa que o mundo. Em vão, ainda, alegareis, para justificar vossos hábitos de moleza, um trabalho ao qual não se entrega o pobre, e que, praticado em vossa casa e por vós, vos torna beneficiários de maior comodidade. Em vão alegareis isto, porque todo homem é votado ao trabalho, para si ou para outros, porque todo homem é votado ao trabalho, para si ou para os outros, porque a incúria de seu vizinho não o absolveria do abandono em que ele o teria deixado.
Do vosso patrimônio, como do vosso trabalho, não vos é permitido retirar senão uma coisa em vosso proveito: o necessário. O resto cabe aos pobres. Esta é a lei. Não nego que esta lei comporte, em certos casos e em dadas circunstâncias, temperamentos; no entanto, diante da luz, diante da verdade, diante da justiça divina, ela não comporta mais isso.
E a família, que será dela? Estamos quites com ela pelo fato de termos socorrido aqueles a quem chamamos de pobres? Não, evidentemente, senhores, porque, do momento em que reconheceis a necessidade de vos despojar pelos pobres, trata-se de fazer uma escolha e estabelecer uma hierarquia. Ora, vossas mulheres e vossos filhos são os vossos primeiros pobres; a ele deveis, pois, dar as vossas primeiras esmolas. Velai pelo futuro de vossos filhos; preocupai-vos em lhes preparar dias calmos e tranquilos em meio a esse vale de lágrimas; deixai-lhes até em depósito uma pequena herança que lhes permita continuarem o bem que haveis começado: isto é legítimo. Entretanto, não lhes ensineis jamais a viver egoisticamente e a olhar como deles o que é de todos. Antes e depois deles, os autores de vossos dias, aqueles que vos alimentaram e guardaram, aqueles que protegeram vossos primeiros passos e guiaram vossa adolescência, vosso pai e vossa mãe, têm direito à vossa solicitude. Depois vêm as almas que Deus vos deu como vossos irmãos segundo a carne; depois os amigos de coração; depois todos os pobres, a começar pelos mais miseráveis.
Vós o vedes, eu vos concedo temperamentos, estabeleço uma hierarquia conforme os instintos do vosso coração. Evitai, entretanto, favorecer demasiado a uns, com exclusão de outros. É pela partilha equitativa dos vossos benefícios que mostrareis vossa sabedoria, e é ainda por essa partilha equitativa que cumprireis a lei de Deus em relação aos vossos irmãos, que é a lei da solidariedade.
Diz Lamennais que “A justiça é a vida; a caridade também é a vida, mas uma vida mais bela e mais doce.”
Sim, a caridade é uma bela e doce vida, é a vida dos santos, é a chave do Céu.
LACORDAIRE
A fé
(Grupo espírita de Doual, 7 de junho de 1865)
A fé plana sobre a Terra, buscando uma pousada onde abrigar-se, buscando um coração para esclarecer. Onde irá ela?... Para começar, ela entrará na alma do homem primitivo e impor-se-á; porá um véu momentâneo sobre a razão que começa a desenvolver-se e vacila nas trevas do espírito. Ela conduzi-lo-á através das idades da simplicidade e far-se-á mestra pelas revelações. Mas, não estando ainda o raciocínio bastante amadurecido para discernir o que é justo do que é falso, para julgar o que vem de Deus, ela arrastará o homem para fora do reto caminho, tomando-o pela mão e pondo-lhe uma venda nos olhos. Muitos desvios, tal deve ser a divisa da fé cega que, entretanto, durante muito tempo teve sua utilidade e sua razão de ser.
Esta virtude desaparece quando a alma, pressentindo que pode ver com seus próprios olhos, a afasta e não mais quer marchar senão com a sua razão. Esta a ajuda a desfazer-se das crenças falsas que ela havia adotado sem exame. Nisto ela é boa. Mas o homem, encontrando em seu caminho muitos mistérios e verdades obscuras, quer desvendá-las e se atrapalha. Seu julgamento não pode acompanhá-la; ele quer ir muito depressa e a progressão em tudo deve ser gradual. Assim, não tem mais a fé que repeliu; não tem mais a razão que ele quis ultrapassar. Então ele faz como as borboletas temerárias; queima as asas na luz e se perde nos desvios impossíveis. Daí saiu a má filosofia que, buscando muito, fez tudo esboroar-se e nada substituiu.
Estava aí o momento da transformação. O homem não era mais o crente cego; também ainda não era o crente que racionaliza a crença; era a crise universal tão bem representada pelo estado da crisálida.
À força de procurar na noite, a claridade brilha, e muitas almas transviadas, encontrando com dificuldade a luz obscurecida por tantos desvios inúteis e retomando como guias seus condutores eternos: a fé e a razão, fazem-nos marchar à sua frente, a fim de que seus dois clarões reunidos impeçam-nos de perder-se uma segunda vez. Elas fazem assentar a fé sobre as bases sólidas da razão, ela própria ajudada pela inspiração.
É vossa oportunidade, meus amigos. Segui o caminho. Deus está no fim.
DEMEURE
Esta virtude desaparece quando a alma, pressentindo que pode ver com seus próprios olhos, a afasta e não mais quer marchar senão com a sua razão. Esta a ajuda a desfazer-se das crenças falsas que ela havia adotado sem exame. Nisto ela é boa. Mas o homem, encontrando em seu caminho muitos mistérios e verdades obscuras, quer desvendá-las e se atrapalha. Seu julgamento não pode acompanhá-la; ele quer ir muito depressa e a progressão em tudo deve ser gradual. Assim, não tem mais a fé que repeliu; não tem mais a razão que ele quis ultrapassar. Então ele faz como as borboletas temerárias; queima as asas na luz e se perde nos desvios impossíveis. Daí saiu a má filosofia que, buscando muito, fez tudo esboroar-se e nada substituiu.
Estava aí o momento da transformação. O homem não era mais o crente cego; também ainda não era o crente que racionaliza a crença; era a crise universal tão bem representada pelo estado da crisálida.
À força de procurar na noite, a claridade brilha, e muitas almas transviadas, encontrando com dificuldade a luz obscurecida por tantos desvios inúteis e retomando como guias seus condutores eternos: a fé e a razão, fazem-nos marchar à sua frente, a fim de que seus dois clarões reunidos impeçam-nos de perder-se uma segunda vez. Elas fazem assentar a fé sobre as bases sólidas da razão, ela própria ajudada pela inspiração.
É vossa oportunidade, meus amigos. Segui o caminho. Deus está no fim.
DEMEURE
Aviso
As sessões da Sociedade Espírita de Paris serão suspensas, como nos anos anteriores, de 1º de agosto a 1º de outubro.
ALLAN KARDEC