Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Novembro

A sociedade espírita de Paris aos espíritas da França e do Estrangeirismo

Caríssimos e mui honrados irmãos em crença,

Uma circunstância recente forneceu aos nossos adversários ocasião para renovar contra nossa doutrina ataques que ultrapassaram, em violência, o que até hoje havia sido feito, e derramar sobre os seus adeptos o sarcasmo, a injúria e a calúnia. A opinião de algumas pessoas por um instante pôde ser desviada, mas os protestos verbais ou escritos foram tão gerais que ela já volta atrás. Todos vós compreendestes que o Espiritismo está assente em bases inabaláveis para receber qualquer ataque, e que esse levante não poderá senão auxiliar para que ele seja melhor compreendido e mais popularizado.

É próprio de todas as grandes verdades receber o batismo da perseguição. As animosidades que o Espiritismo levanta são a prova de sua importância, porque, se o julgassem sem valor, com ele não se preocupariam. No conflito que acaba de ser levantado, todos os espíritas conservaram a calma e a moderação, que são os signos da verdadeira força; todos sustentaram o choque com coragem; ninguém duvidou do resultado, e ficai persuadidos de que essa atitude, ao mesmo tempo digna e firme, em oposição às invectivas e à acrimônia da linguagem de nossos antagonistas, não deixa de fazer refletir e de pesar muito sobre a opinião. O público imparcial não se engana. Mesmo sem levar em consideração o fato e a causa a favor de um ou do outro, uma secreta simpatia o atrai para aquele que na discussão sabe conservar a dignidade. A comparação lhe é sempre vantajosa. Assim, estes últimos acontecimentos conquistaram numerosos partidários para o Espiritismo.

Nesta circunstância, a Sociedade de Paris sente-se feliz em oferecer a todos os seus irmãos da França e do estrangeiro suas felicitações e seus sinceros agradecimentos. Nas novas lutas que poderão ocorrer, ela conta com eles, como eles podem contar com ela.

Recebei, senhores e caros irmãos, a certeza de nosso integral e afetuoso devotamento.

Pelos membros da Sociedade,

O presidente,

ALLAN KARDEC

(Aprovada por unanimidade na seção de 27 de outubro de 1865)

A locução na reabertura das sessões da sociedade de Paris, a 6 de outubro de 1865


Senhores e caros colegas,

No momento de retomar o curso de nossos trabalhos, é para todos nós, e para mim em particular, uma grande satisfação encontrarmo-nos novamente reunidos. Sem dúvida vamos reencontrar nossos bons guias espirituais. Façamos votos para que, graças ao seu concurso, este ano seja fecundo em resultados. Ao ensejo, permiti-me dirigir-vos algumas palavras a propósito.

Depois de nossa separação, fez-se um grande alarido a propósito do Espiritismo. A bem dizer, só tive conhecimento no meu retorno, porque apenas alguns ecos chegaram ao meu retiro no meio das montanhas.

A respeito disso não entrarei em detalhes, hoje supérfluos e, quanto à minha apreciação pessoal, vós a conheceis, pelo que eu disse na Revista. Apenas acrescentarei uma palavra. É que tudo vem confirmar minha opinião sobre as consequências do que se passou. Sinto-me feliz por ver que tal apreciação é compartilhada pela grande maioria, senão pela unanimidade dos espíritas, do que tenho provas diárias em minha correspondência.

Um fato evidente ressalta da polêmica travada por ocasião dos irmãos Davenport: É a absoluta ignorância dos críticos em relação ao Espiritismo. A confusão que estabelecerem entre o Espiritismo sério e a charlatanice sem dúvida pode momentaneamente induzir algumas pessoas ao erro, mas é notório que a própria excentricidade de sua linguagem levou muita gente a indagar o que ele tem de justo, e grande foi sua surpresa ao encontrar coisas diversas dos golpes de mágica. Assim, o Espiritismo ganhará, como eu disse, por tornar-se mais conhecido e melhor apreciado. Essa circunstância, que está longe de ser filha do acaso, incontestavelmente apressará o desenvolvimento da doutrina. Pode-se dizer que é um golpe de gravata cujo alcance não tardará a se fazer sentir.

Ademais, em breve o Espiritismo entrará numa nova fase, que forçosamente chamará a atenção dos mais indiferentes, e o que acaba de acontecer aplanará os caminhos. Então realizar-se-á aquela palavra profética do padre D..., cuja comunicação citei na Revista: “Os literatos serão os vossos mais poderosos auxiliares.” Eles já são, involuntariamente, porém, mais tarde sê-lo-ão voluntariamente. Preparam-se circunstâncias que precipitarão esse resultado, e é com segurança que digo que neste últimos tempos os negócios do Espiritismo avançaram mais do que se poderia crer.

Desde nossa separação, eu soube muitas coisas, senhores. Não penseis que durante esta interrupção de nossos trabalhos comuns eu tenha ido gozar o dolce far niente. É verdade que não fui visitar Centros Espíritas, mas nem por isto vi menos e menos observei, e por isto mesmo, trabalhei muito.

Os acontecimentos marcham com rapidez, e como os trabalhos que me restam para terminar são consideráveis, devo apressar-me, a fim de estar pronto em tempo oportuno. Em presença da grandeza e da gravidade dos acontecimentos que tudo faz pressentir, os incidentes secundários são insignificantes; as questões pessoais passam, mas a coisas capitais ficam.

Assim, é preciso ligar às coisas uma importância apenas relativa e, pelo que pessoalmente me concerne, devo afastar de minhas preocupações o que é apenas secundário e que poderia retardar-me ou me desviar do objetivo principal. Este objetivo cada vez se desenha mais nitidamente, e o que aprendi nestes últimos tempos foram sobretudo os meios de atingi-lo mais seguramente e de superar os obstáculos.

Deus me guarde de ter a presunção de me julgar o único capaz, ou mais capaz do que qualquer outro, ou o único encarregado de realizar os desígnios da Providência. Não. Tal pensamento está longe de mim. Neste grande movimento renovador, tenho minha parte de ação. Assim, só falo do que me concerne; mas o que posso afirmar sem vã fanfarronada é que, no papel que me incumbe, não me faltarão coragem nem perseverança. Jamais fraquejei, mas hoje que vejo a rota iluminar-se com uma claridade maravilhosa, sinto as forças crescerem. Jamais duvidei, mas hoje, graças às novas luzes que a Deus aprouve dar-me, tenho certeza, e o digo a todos os nossos irmãos, com mais segurança do que nunca: Coragem e perseverança, porque um deslumbrante sucesso coroará os nossos esforços.

Malgrado o estado próspero do Espiritismo, seria abusar estranhamente crer que de agora em diante ele vai marchar sem obstáculos. Ao contrário, devemos esperar novas dificuldades e novas lutas. Assim, ainda teremos que atravessar momentos penosos, porque nossos adversários não se dão por vencidos e disputarão o terreno palmo a palmo. Mas é nos momentos críticos que se conhecem os corações sólidos, os devotamentos verdadeiros. É então que as convicções profundas se distinguem das crenças superficiais ou simuladas. Na paz não há mérito em ter coragem. Neste momento nossos chefes invisíveis contam os seus soldados e as dificuldades para eles são um meio de pôr em evidência aqueles sobre os quais podem apoiar-se. Também é para nós um meio de saber realmente quem está conosco ou contra nós.

A tática dos nossos adversários ─ não seria demais repeti-lo ─ é neste momento procurar dividir os adeptos, lançando inopinadamente os fachos da discórdia, excitando os desfalecimentos verdadeiros ou simulados; e, é preciso dizer, eles têm como auxiliares certos Espíritos que se veem perturbados pelo aparecimento de uma fé que deve religar os homens num sentimento comum de fraternidade. Assim, estas palavras de um de nossos guias são perfeitamente verdadeiras: O Espiritismo revoluciona o mundo visível e o mundo invisível.

Há algum tempo os nossos adversários têm em mira as sociedades e as reuniões espíritas, onde semeiam em profusão o fermento da discórdia e do ciúme. Homens de vista curta, enceguecidos pela paixão, julgam ter conquistado uma grande vitória, quando conseguiram causar algumas perturbações numa localidade, como se o Espiritismo estivesse enfeudado num lugar qualquer, ou encarnado em alguns indivíduos! Ele está em toda parte, na Terra e no espaço! O movimento não é dado pelos homens, mas pelos Espíritos prepostos por Deus. Ele é irresistível porque é providencial. Não é, pois, uma revolução humana que se possa deter pela força material. Assim, quem se julgará capaz de travá-lo atirando uma pedrinha debaixo da roda? Pigmeu na mão de Deus, ele será arrastado pelo turbilhão.

Que todos os Espíritos sinceros se unam, pois, numa santa comunhão de pensamentos, para enfrentar a tempestade; que todos os que estão penetrados da grandeza do objetivo ponham de lado as pueris questões secundárias; que façam calar as suscetibilidades do amor-próprio, para ver apenas a importância do resultado para o qual a Providência conduz a Humanidade.

Encaradas as coisas deste elevado ponto de vista, em que se torna a questão dos irmãos Davenport? Contudo, esta mesma circunstância, apesar de muito secundária, é um aviso salutar. Ela impõe deveres especiais a todos os espíritas, e a nós em particular. Como se sabe, o que falta aos que confundem o Espiritismo com a charlatanice é saber o que é o Espiritismo. Sem dúvida poderão sabê-lo pelos livros, quando se derem ao trabalho. Mas, que é a teoria ao lado da prática? Não basta dizer que a doutrina é bela; é necessário que os que a professam mostrem a sua aplicação. Cabe, pois, aos adeptos dedicados à causa, provar o que ela é, por sua maneira de agir, quer em particular, quer nas reuniões, evitando, com o máximo cuidado, tudo quanto pudesse dar margem à malevolência e produzir nos incrédulos uma impressão desfavorável. Quem quer que se encerre nos princípios da doutrina poderá ousadamente desafiar a crítica e jamais incorrerá na censura da autoridade, nem na severidade da lei.

Posta em evidência mais que qualquer outra, a Sociedade de Paris, sobretudo, deve dar o exemplo. Sentimo-nos todos felizes ao dizer que ela jamais faltou aos seus deveres e por termos constatado a boa impressão produzida por seu caráter eminentemente sério, pela gravidade e pelo recolhimento que presidem às suas reuniões. É um motivo a mais para ela evitar escrupulosamente até as aparências do que poderia comprometer a reputação que adquiriu. Incumbe a cada um de nós velar por isso, no próprio interesse da causa. É preciso que a qualidade de membro, ou de médium a lhe prestar concurso, seja um título de confiança e de consideração. Conto, pois, com a cooperação de todos os nossos colegas, cada um no limite de suas possibilidades. Não se deve perder de vista que as questões de pessoas devem apagar-se ante a questão do interesse geral. As circunstâncias em que vamos entrar são graves, repito, e cada um de nós terá sua missão, pequena ou grande. Por isso devemos pôr-nos em condições de cumpri-la, pois disso nos pedirão contas. Peço me perdoeis esta linguagem um pouco austera na retomada de nossos trabalhos, mas ela é imposta pelas circunstâncias.

Senhores, em nossa primeira reunião, um dos nossos colegas falta corporalmente à chamada. Durante nosso recesso, o Sr. Nant, pai de nossa boa e excelente espírita, a Sra. Breul, retornou ao mundo dos Espíritos, de onde, esperamos, terá a bondade de vir até nós. Em seus funerais, rendemos-lhe um justo tributo de simpatia, que julgamos dever renovar hoje e ficaremos felizes se dentro em breve ele tiver a bondade de dirigir-nos algumas palavras e, no futuro, juntar-se aos bons Espíritos que nos ajudam com seus conselhos. Peçamo-lhes, senhores, que tenham a bondade de continuarem a dar-nos a sua assistência.


Da crítica a propósito dos irmãos - Davenport (2º artigo)

Começa a acalmar-se a agitação causada pelos irmãos Davenport. Após a bordoada lançada pela imprensa contra eles e o Espiritismo, restam apenas alguns atiradores que, aqui e ali, queimam os últimos cartuchos, à espera de outro assunto que venha alimentar a curiosidade pública. De quem foi a vitória? O Espiritismo está morto? É o que não tardarão a saber. Suponhamos que a crítica tivesse matado os Srs. Davenport, o que não é de nossa conta. O que teria resultado? O que dissemos no artigo precedente. Em sua ignorância do que é o Espiritismo, ela atirou naqueles senhores, exatamente como um caçador que atira num gato pensando atirar numa lebre: o gato morreu, mas a lebre continua correndo.

Assim acontece com o Espiritismo, que não foi nem podia ser atingido pelos golpes dão em seus flancos. Então a crítica enganou-se, o que teria evitado facilmente se tivesse observado a etiqueta. Entretanto não lhe faltaram avisos. Alguns escritores até confessaram a influência das refutações que lhes chegavam de todos os lados, e isto da parte das mais honradas pessoas. Isto não lhes deveria ter aberto os olhos? Mas não, eles se haviam metido por um caminho e não queriam recuar; era preciso ter razão a todo o custo. Muitas dessas refutações nos foram enviadas. Todas se distinguiam por uma moderação que contrasta com a linguagem dos nossos adversários e, na maior parte, são de perfeita justeza de apreciação. Certamente ninguém pretendeu impor a opinião àqueles senhores, mas constitui um dever da imparcialidade admitir as retificações para pôr o público em condições de julgar os prós e os contras. Ora, como é mais cômodo ter razão quando se fala sozinho, muito poucas dessas retificações viram a luz da publicidade. Quem sabe, até, se a maior parte delas foi lida? Então é preciso ser grato aos jornais que se mostraram menos exclusivos. Entre eles está o Journal des Pyrénées-Orientales que, em seu número de 8 de outubro, publica a seguinte carta:

“Perpignan, 5 de outubro de 1865.

“Senhor Gerente,

“Não me venho lançar na polêmica; apenas solicito vossa equidade de me permitir, uma vez única, responder aos vivos ataques contidos na carta parisiense, publicada no último número de vosso jornal, contra os espíritas e o Espiritismo.

“Como os verdadeiros católicos, os verdadeiros espíritas não dão espetáculo público. Eles estão penetrados do respeito de sua fé, aspiram ao progresso moral de todos, e sabem que não é no palco que fazem prosélitos.

“Eis o que concerne aos irmãos Davenport.

“Haveria muito a dizer para refutar os erros do autor desses ataques irônicos. Apenas direi que, tendo Deus dado o livre-arbítrio ao homem, atentar contra a sua liberdade de crer, de pensar, é colocar-se acima de Deus, por consequência um enorme pecado do orgulho.

“Dizer que esta nova ciência fez imensos progressos e que muitas cidades contam com grande número de adeptos; que têm suas sedes, seus presidentes, e que suas reuniões contêm homens cultos, eminentes por sua posição na sociedade civil e militar, na advocacia, na magistratura, não é confessar que o Espiritismo está baseado na verdade?

“Se o Espiritismo é apenas um erro, por que ocupar-se tanto com ele? O erro tem apenas uma duração efêmera, é um fogo-fátuo que dura algumas horas e desaparece. Se, ao contrário, é uma verdade, por mais que façais não podereis destruí-lo nem detê-lo. A verdade é como a luz: só os cegos lhe negam a beleza.

“Também dizem que o Espiritismo provocou casos de alienação mental. Direi isto: O Espiritismo não ocasionou a loucura, tanto quanto o Cristianismo ou os outros cultos não são responsáveis pelos casos de idiotia que se encontram muitas vezes entre os praticantes das diversas religiões. Os espíritos mal conformados estão sujeitos à exaltação e aos desarranjos. Deixemos, pois, de uma vez por todas, esse último argumento no arsenal com as armas fora de uso.

“Termino esta resposta dizendo que o Espiritismo nada vem destruir a não ser a crença nos castigos eternos. Ele nos fortalece na fé em Deus; torna evidente que a alma é imortal e que o Espírito se depura e progride pelas reencarnações; prova-nos que as diferentes posições sociais têm a sua razão de ser; ensina-nos a suportar nossas provações, sejam quais forem; enfim, demonstra-nos que um só caminho nos conduz a Deus: o amor ao bem, a caridade!

“Recebei, senhor Gerente, meus agradecimentos e minhas respeitosas saudações.

“Tenho a honra de ser o vosso servidor.

“Breux.”

Todas as refutações que temos sob os olhos, e que foram dirigidas aos jornais, protestam contra a confusão que fizeram entre o Espiritismo e as sessões dos Srs. Davenport. Se, pois, a crítica persiste em torná-los solidários, é porque ela o quer.


NOTA: Num artigo que por falta de espaço temos que adiar para o próximo número, examinaremos as mais importantes proposições que ressaltam da polêmica suscitada a propósito dos Srs. Davenport.


Poesia espírita - Um fenômeno

(Fábula)

Por uma dessas noites serenas de primavera,

Que fazem luzir no céu tantos fogos brilhantes,

Alguns bons burgueses da cidade

Discorriam, em passo lento e tranquilo

Sobre as avenidas espaciais.

Cada um, por sua vez, erguia os olhos

Do chão à abóbada celeste

E, sem dúvida, pensareis

Que o tema de seus discursos

Rolava sobre o poder eterno e infinito,

Que submete todos esses corpos às leis da harmonia!

Não, eles davam um outro curso

Aos pensamentos: a alta ou queda na Bolsa,

As colheitas, seus preços, eram a única fonte

A lhes alimentar o espírito,

Quando um deles, parando, falou,

Como se tocado de súbito estupor:

“Que vejo? É possível?

Uma estrela se agita!

Eleva-se..., depois desce!”

E esfregando os olhos:

“Que digo eu,

Uma estrela...?

Palavra, penso que é um prodígio,

A menos que eu sonhe, vai crescendo;

Uma, duas, três e mesmo quatro estrelas

Movem-se e dançam sem ruído;

Estranho mistério que a noite

Parece ter prazer em cobrir com seus véus!”

E o espírito dos burgueses, cujo olhar atônito

Acompanha as fases do fenômeno,

Em vão, para explicá-lo, recolhe-se, concentra-se;

Só o acaso os conduz.

Andam, e sua fronte é tocada pelas fitas

Que sustentam no ar outros tantos papagaios

Ornados de uma luz vacilante

Ao sopro de brisas novas;

E os garotos, autores do fato maravilhoso,

Ficavam a sorrir, a dois passos deles.

Que disseram após essa dupla surpresa,

Depois desse desencanto?

Que todos os fogos do firmamento

Não passam de artifícios, de obra da tolice,

Para lançar os ingênuos no pasmo.

Assim, se o horizonte se avermelha e se colore,

E reveste a noite de luz misteriosa;

Se a chama de um meteoro

Súbito resplandece no fundo negro do céu;

Se uma estrela cadente em vivas fagulhas

Sulca os campos do éter,

Esses bons burgueses, com os olhos e os braços no arVão por toda parte procurando as fitas.

A verdade sempre tem sua contrafação:

Cabe-nos distinguir, pela comparação,

O verdadeiro do embuste.

O ceticismo, emocionado, berra: charlatanice!

Ante os fatos sujeitos a uma lei eterna.

Para julgar direito os efeitos e as causas,

Ao céptico faltam duas coisas:

Um pouco de modéstia ─ e boa-fé.



C. DOMBRE, de Marmande.


O Espiritismo no Brasil

Extraído do diário da Bahia

Sob o título de A Doutrina Espírita, o Diário da Bahia de 26 e 27 de setembro de 1865 contém dois artigos, que são a tradução para o português dos que foram publicados há seis anos pelo Dr. Déchambre na Gazette Médicale de Paris. Acabava de aparecer a segunda edição do Livro dos Espíritos e é dessa obra que o Dr. Déchambre faz um relato semiburlesco. Mas, a propósito, ele prova historicamente, e por citações, que o fenômeno das mesas girantes e vibrantes é mencionado em Teócrito, sob o nome de Kosskinomanteia, adivinhação pelo crivo, porque então se serviam de um crivo para esse gênero de operação, de onde conclui, com a lógica ordinária dos nossos adversários, que não sendo nosso esse fenômeno, não tem qualquer fundo de realidade. Para um homem de ciências positivas, é forçoso convir que aí está um argumento singular. Lamentamos que a erudição do Sr. Déchambre não lhe tivesse permitido remontar ainda mais longe, porque ele o teria encontrado no antigo Egito e nas Índias. Um dia voltaremos a esse artigo, que tínhamos perdido de vista, e que faltava em nossa coleção. Enquanto esperamos, perguntaremos ao Sr. Déchambre se devemos rejeitar a Medicina e a Física modernas porque seus rudimentos se acham misturados às práticas supersticiosas da Antiguidade e da Idade Média. Se a sábia Química de hoje não teve o seu berço na Alquimia, e a Astronomia o seu na Astrologia judiciária. Por que, então, os fenômenos espíritas, que não são, em definitivo, senão fenômenos naturais cujas leis não conhecíamos, também não se encontrariam nas crenças e práticas antigas?

Tendo sido esse artigo pura e simplesmente reproduzido sem comentários, nada prova, da parte do jornal brasileiro, uma hostilidade sistemática contra a Doutrina. É mesmo provável que não o conhecendo, ele julgou encontrar ali uma apreciação exata. O que o provaria é seu afã em inserir, no número seguinte, de 28 de setembro, a refutação que os espíritas da Bahia lhe dirigiram, e que está assim concebida:

“Senhor redator,

“Como agis de boa-fé, no que concerne à doutrina do Espiritismo, rogamos a bondade de publicar no Diário uma passagem do Livro dos Espíritos, do Sr. Allan Kardec, que já atingiu a décima terceira edição, a fim de que vossos leitores possam apreciar, em seu justo valor, a reprodução que fizestes de um artigo da Gazette Médicale de Paris, escrito há mais de seis anos pelo Dr. Déchambre, contra essa mesma doutrina, e no qual se reconhece que o dito doutor não é fiel nas citações que faz do Livro dos Espíritos, visando depreciar essa doutrina. “Somos, senhor redator, vossos amigos agradecidos,

“LUÍS OLYMPIO TELLES DE MENEZES“
"JOSÉ ÁLVARES DO AMARAL"
“JOAQUIM CARNEIRO DE CAMPOS”


Segue, como resposta e refutação, um extrato muito extenso da introdução do Livro dos Espíritos.

As citações textuais das obras espíritas são, com efeito, a melhor refutação das deformações a que certos críticos submetem a Doutrina. A Doutrina se justifica por si mesma, razão pela qual as sofre. Não se trata de convencer os seus adversários que ela é boa, o que, às mais das vezes, é tempo perdido, porque, a bem da justiça, eles têm inteira liberdade de achá-la má, mas simplesmente de provar que ela diz o contrário do que a fazem dizer. Cabe ao público imparcial julgar, pela comparação, se ela é boa ou má. Ora, como, a despeito de tudo quanto puderam fazer, ela recruta incessantemente novos partidários, é uma prova de que não desagrada a todo mundo, e que os argumentos que lhe opõem são impotentes para desacreditá-la. Podemos ver, por esse artigo, que ela não tem nacionalidade e dá a volta ao mundo.


O Espiritismo e a cólera

Sabemos de que acusações eram vítimas os primeiros cristãos em Roma. Não havia crimes de que não fossem capazes, nem desgraças públicas de que, no dizer de seus inimigos, eles não fossem os autores voluntários ou a causa involuntária, porque sua influência era perniciosa. Daqui a uns séculos teremos dificuldade em crer que espíritos fortes do século dezenove tenham tentado ressuscitar essas ideias a respeito dos espíritas, declarando-os autores de todas as perturbações da Sociedade, comparando sua doutrina à peste, e estimulando a persegui-los. Isto é história impressa; estas palavras caíram de mais de um cátedra evangélica, mas, o que é mais surpreendente, é que as encontramos nos jornais, que dizem falar em nome da razão e se arvoram em campeões de todas as liberdades e, em particular, da liberdade de consciência. Já possuímos uma curiosíssima coleção de amenidades desse gênero, que nos propomos mais tarde reunir em volume, para maior glória de seus autores e edificação da posteridade. Seremos, pois, reconhecido aos que nos ajudarem a enriquecer essa coleção, enviando-nos tudo o que, em seu conhecimento, apareceu ou aparecer a respeito. Comparando esses documentos da história do Espiritismo com os da história dos primeiros séculos da Igreja, ficaremos surpresos de aí encontrar pensamentos e expressões idênticas. Só falta uma coisa: as feras do circo, o que, não obstante, é um progresso.

Sendo, pois, o Espiritismo uma peste eminentemente contagiosa, porquanto, segundo a confissão de seus adversários, ela invade com terrível rapidez todas as classes da Sociedade, ele tem uma certa analogia com a cólera. Assim, nesta última batalha, certos críticos facciosamente o chamaram de Spirito-morbus; nada haveria de surpreendente se o acusassem de haver importado o flagelo, porque observa-se que dois campos diametralmente opostos se dão as mãos para combatê-lo. Em um, ao que nos disseram, mandaram cunhar uma medalha com a efígie de São Bento, que basta usar para se preservar do contágio espírita. Não nos disseram se tal meio cura os que foram contagiados.

Certamente há uma analogia entre o Espiritismo e a cólera. É o medo que ambos causam a certas pessoas. Mas consideremos a coisa de um ponto de vista mais sério. Eis o que nos escrevem de Constantinopla:

“...Os jornais vos informaram do rigor com que o terrível flagelo acaba de açoitar nossa cidade e seus subúrbios, já atenuando sua devastação. Algumas pessoas, dizendo-se bem informadas, elevam o número dos coléricos mortos a 70 mil, e outros a quase cem mil. De qualquer modo, fomos rudemente provados, e podeis imaginar as dores e o luto geral de nossas populações. É sobretudo nestes tristes momentos de epidemia espantosa que a fé e a crença espírita dão coragem. Acabamos todos de dar a mais verídica das provas. Quem sabe se não devemos a essa calma da alma, a essa persuasão da imortalidade, a essa certeza das existências sucessivas, em que os seres são compensados segundo o seu mérito e seu grau de adiantamento; quem sabe, digo eu, se não é por essas crenças, bases de nossa bela doutrina, que nós todos, espíritas de Constantinopla, que somos, como sabeis, bastante numerosos, devemos ter sido preservados do flagelo que se espalhou e ainda se espalha em torno de nós! Digo isto principalmente porque foi constatado, aqui e alhures, que o medo é o predisponente mais perigosos da cólera, como a ignorância infelizmente se torna uma fonte de contágio...

“REPOS FILHO, advogado.”


Certamente seria absurdo crer que a fé espírita seja um atestado de garantia contra a cólera. Mas como está cientificamente reconhecido que o medo, enfraquecendo, ao mesmo tempo, o moral e o físico, torna mais impressionável e mais susceptível de ser atingido pelas moléstias contagiosas, é evidente que toda causa tendente a fortificar o moral é um preservativo. Isto hoje é tão bem compreendido que se evita, tanto quanto possível, quer nos relatórios, quer nas disposições materiais, aquilo que pode ferir a imaginação por um aspecto lúgubre.

Sem dúvida os espíritas podem morrer de cólera, como todo mundo, porque seu corpo não é mais imortal que o dos outros e porque, quando chega a hora, há que partir, por esta ou aquela causa. A cólera é uma das causas que só tem de particular levar um maior número de pessoas ao mesmo tempo, o que produz maior sensação. Parte-se em massa, em vez de isoladamente, eis a diferença. Mas a certeza que eles têm do futuro, e sobretudo o conhecimento desse futuro, que responde a todas as suas aspirações e satisfaz à razão, fazem que absolutamente não lamentem deixar a Terra, onde se consideram como em passageiro exílio. Enquanto em presença da morte o incrédulo só vê o nada, ou pergunta o que vai ser de si, o espírita sabe que, se morrer, apenas será despojado de um envoltório material sujeito aos sofrimentos e às vicissitudes da vida, mas que continuará sendo ele mesmo com um corpo etéreo inacessível à dor; que desfrutará de percepções novas e de maiores faculdades; que vai reencontrar os que amou e que o esperam no sólio da verdadeira vida, da vida imperecível. Quanto aos bens materiais, sabe que deles não mais necessita, e que os prazeres que eles proporcionam serão substituídos por outros mais puros e invejáveis, que não deixam atrás de si nem amarguras nem pesares. Assim, abandona-os sem esforço e com alegria, e lamenta aqueles que, ficando depois de si na Terra, ainda vão deles precisar. É como aquele que, tornando-se rico, deixa seus trapos velhos aos infelizes. Assim, ao deixar os amigos, lhes diz: Não me lastimeis; não choreis minha morte; antes felicitai-me por me ver livre das preocupações da vida e por entrar no mundo radioso onde vos esperarei.

Quem quer que tenha lido e meditado nossa obra O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo, sobretudo o capítulo sobre as apreensões da morte, compreenderá a força moral que os espíritas adquirem em sua crença, em presença do flagelo que dizima as populações.

Segue-se que vão negligenciar as precauções necessárias em casos semelhantes e baixar a cabeça diante do perigo? Absolutamente não. Eles tomarão todas aquelas que são aconselhadas pela prudência e por uma higiene racional, porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não devem procurá-la. Ora, desprezar as medidas sanitárias que podem preservá-los seria um verdadeiro suicídio, cujas consequências conhecem muito bem para a ele se exporem. Consideram como um dever velar pela saúde do corpo, porque a saúde é necessária à realização dos deveres sociais. Se buscam prolongar a vida corporal, não é por apego à Terra, mas para ter mais tempo para progredir, melhorar-se, depurar-se, despojar-se do homem velho e adquirir maior soma de méritos para a vida espiritual. Mas se, a despeito de todos os cuidados, devem sucumbir, tomam o seu partido sem queixa, sabendo que todo progresso tem os seus frutos, que nada do que se adquire em moralidade e em inteligência fica perdido, e que se não se desmereceram aos olhos de Deus, serão sempre melhores no outro mundo do que neste, mesmo que não tenham o primeiro lugar. Eles apenas dizem: Vamos um pouco mais cedo para onde iríamos um pouco mais tarde.

Crê-se que com tais pensamentos não se esteja em melhores condições de tranquilidade de espírito recomendadas pela ciência? Para o incrédulo ou para aquele que duvida, a morte tem todos os seus terrores, porque ele perde tudo e nada espera. Que pode dizer um médico materialista para acalmar nos doentes o medo do morrer? Nada senão o que um dia dizia um deles a um pobre diabo que tremia à simples palavra cólera: “Bah! Enquanto não estamos mortos, há esperança; depois, em definitivo, só morremos uma vez, e logo a coisa passa; quando estamos mortos, tudo está acabado; não sofremos mais.” Tudo está acabado quando se está morto, eis o supremo consolo que ele dá.

Ao contrário, o médico espírita diz ao que vê a morte à sua frente: “Meu amigo, vou empregar todos os recursos da Ciência para vos restabelecer a saúde e vos conservar o maior tempo possível. Nós conseguiremos, assim espero. Mas a vida do homem está nas mãos de Deus, que nos chama quando terminada nossa prova aqui em baixo. Se a hora de vossa libertação tiver chegado, rejubilai-vos, como o prisioneiro que vai sair da sua prisão. A morte nos desembaraça do corpo que nos faz sofrer e nos leva à verdadeira vida, vida isenta de perturbações e misérias. Se deveis partir, não penseis que estejais perdido para os vossos parentes e amigos que ficam depois de vós. Não, não estareis menos no meio deles; vê-los-eis e os ouvireis melhor do que podeis fazê-lo neste momento. Vós os aconselhareis, os dirigireis, os inspirareis para o bem. Se, pois, aprouver a Deus vos chamar a si, agradecei-lhe por vos dar a liberdade; se ele prolongar a vossa estada aqui, agradecei-lhe por vos dar tempo de acabar a vossa tarefa. Na dúvida, submetei-vos sem murmúrio à sua santa vontade.”

Tais palavras não são adequadas a trazer serenidade à alma, e esta serenidade não secunda a eficácia dos remédios, ao passo que a perspectiva do nada mergulha o moribundo na ansiedade do desespero?

Além desta influência moral, o Espiritismo tem outra mais material. Sabe-se que os excessos de toda sorte são uma das causas que mais predispõem aos ataques da epidemia reinante. Assim, os médicos recomendam sobriedade em tudo, prescrição salutar à qual muita gente tem dificuldade de submeter-se. Admitindo que o façam, é sem dúvida um ponto importante, mas acredita-se que uma abstenção momentânea possa reparar instantaneamente as desordens orgânicas causadas por abusos inveterados, degenerados pelo hábito, que estragaram o corpo e, por isso mesmo, o tornaram acessível aos miasmas deletérios? Fora da cólera, não se sabe quanto o hábito da intemperança é pernicioso nos climas tórridos, e naqueles onde a febre amarela é endêmica? Pois bem! Por força de suas crenças e da maneira de encarar o objetivo da vida presente e o resultado da vida futura, o espírita modifica completamente os seus hábitos. Em vez de viver para comer, come para viver; não pratica excessos; não vive como cenobita; assim, usa de tudo, mas não abusa de nada. Isto deve ser, certamente, uma consideração preponderante a acrescentar à que faz valer o nosso correspondente de Constantinopla.

Eis, pois, um dos resultados desta doutrina, sobre a qual a incredulidade lança a injúria e o sarcasmo, escarnece, taxa de loucura e, segundo ela, traz a perturbação à Sociedade. Mantende a vossa incredulidade, se ela vos apraz, mas respeitai uma crença que torna felizes e melhores os que a possuem. Se é uma loucura crer que nem tudo acaba com a vida; que depois da morte vivemos uma vida melhor, isenta de preocupações; que voltamos ao meio daqueles que amamos; ou ainda crer que depois da morte não somos mergulhados nas chamas eternas sem esperança de sair de lá, o que não valeria mais do que o nada, nem perdidos na ociosa e beata contemplação do infinito, aprouvesse a Deus que todos os homens fossem loucos desta maneira, pois haveria entre eles muito menos crimes e suicídios.

Numerosas comunicações foram dadas sobre a cólera; várias o foram na Sociedade de Paris ou no nosso círculo íntimo. Apenas reproduzimos duas, fundidas numa só, para evitar as repetições, e porque resumem o pensamento dominante da maioria.

(Sociedade de Paris ─ Médiuns: Srs. Desliens e Morin)


Considerando-se que a cólera é um assunto de atualidade e cada um traz o seu remédio para afastar o terrível flagelo, eu me permitirei, se o quiserdes, dar também o meu conselho, se bem que me pareça pouco provável que tenhais que temer sua ação de maneira cruel. Contudo, como é bom que na ocasião não faltem os meios, ponho minha pouca luz à vossa disposição.

Essa afecção, apesar do que dizem, não é imediatamente contagiosa, e aqueles que se acham numa região onde ela grassa, não devem temer prestar socorro aos doentes.

Não existe um remédio universal contra essa moléstia, seja preventivo, seja curativo, visto que o mal se complica de várias maneiras que ora se devem ao temperamento dos indivíduos, ora ao seu estado moral e aos seus hábitos, ora às condições climáticas, o que faz que tal remédio dê resultado em certos casos e não em outros. Pode-se dizer que a cada período de invasão, e conforme as localidades, o mal deve ser objeto de estudo especial e requer uma medicação diferente. É assim que, por exemplo, o gelo, a triaga, etc., que puderam curar casos numerosos nas cóleras de 1832 e 1849, e em certas regiões, poderiam dar apenas resultados negativos em outras épocas e em outros países. Há, pois, uma porção de remédios bons, e nenhum que seja específico. É essa diversidade nos resultados que desnorteou e desnorteará ainda a Ciência, e faz com que nós mesmos não possamos dar um remédio aplicável a todos, porque a natureza do mal não o comporta. Há, entretanto, regras gerais, frutos da observação, das quais importa não se afastar.

O melhor preservativo consiste nas precauções de higiene sabiamente recomendadas em todas as instruções dadas a respeito, que consistem na limpeza, no afastamento de toda causa de insalubridade e dos focos de infecção, e na abstenção de todo excesso. Além disto, deve-se evitar a mudança de hábitos alimentares, salvo para evitar as coisas debilitantes. É preciso igualmente evitar os resfriados, as transições bruscas de temperatura e abster-se, ao menos por necessidade absoluta, de toda medicação violenta que possa trazer perturbação à economia.

Sabeis que muitas vezes, em casos semelhantes, o medo é pior que o mal. Infelizmente o sangue-frio não se impõe, mas vós, espíritas, não necessitais de conselhos sobre este ponto, pois encarais a morte sem receio e com a calma dada pela fé.

Em caso de ataque, importa não negligenciar os primeiros sintomas. O calor, a dieta, uma transpiração abundante, as fricções, a água de arroz com algumas gotas de láudano, são medicamentos pouco custosos e cuja ação é muito eficaz, se a energia moral e o sangue-frio a tudo isso se vierem juntar. Como às vezes é difícil conseguir láudano, por falta de médico, pode-se dar, em casos de urgência, qualquer outra composição calmante, e em particular o suco de alface, mas em dose fraca. Aliás, pode-se apenas ferver algumas folhas de alface em água de arroz.

A confiança em si e em Deus é, em tais circunstâncias, o primeiro elemento da saúde.

Agora que a vossa saúde material está ao abrigo do perigo, permiti-me pensar em vosso temperamento espiritual, ao qual uma epidemia de outro gênero parece querer atacar. Nada temais por esse lado, pois o mal só poderia atingir os seres a quem falta a vida verdadeiramente espiritual e já mortos na haste. Todos os que se votaram sem retorno e sem segundas intenções à Doutrina, ao contrário, nela encontrarão novas forças, para fazer frutificar o ensino, que consideramos um dever transmitir-vos. A perseguição, seja qual for, é sempre útil. Ela põe à luz os corações sólidos, e se destaca do tronco alguns galhos mal fixados, os jovens rebentos, amadurecidos pelas lutas nas quais triunfarão, segundo nosso conselho, tornar-se-ão homens sérios e refletidos. Assim, pois, muita coragem. Marchai sem medo pelo caminho que vos é traçado, e contai com aquele que jamais vos faltará, na medida de suas forças.

Doutor DEMEURE

Um novo Nabucodonosor

Escrevem-nos de Charkow, na Rússia:

Escrevendo-vos, Sr. Presidente, ouso esperar que o Espiritismo talvez venha lançar alguma luz sobre um fato até hoje inexplicável, e que me parece oferecer um poderoso interesse. Colhi-o de uma testemunha ocular, parente próximo da pessoa em questão. Eis o que ele me contou.

Todos os membros da família R... se faziam notados pela originalidade do caráter e por suas inclinações. Mas aqui falarei apenas dos dois irmãos Alexandre e Voldemar. O que impressionava neste último eram os olhos, cuja impressão é impossível descrever. Crianças, brincávamos juntos; mesmo longe de ser um poltrão, eu não podia, entretanto, suportar o seu olhar. Fiz a observação a meu pai, que me confessou experimentar, olhando-o, o mesmo sentimento de perturbação, e aconselhou-me que o evitasse. Parece que Voldemar não era o favorito da família. Quando chegou a idade dos estudos sérios, os dois irmãos entraram para a Universidade de Kazan. Voldemar não tardou em deixar estupefatos os mestres e os colegas, por atitudes esquisitas; muitas vezes gabava-se em presença do irmão, que havia escolhido para vítima de suas troças. Mas seus sucessos não duraram. Aos dezesseis anos ele morreu nos braços de seu irmão. É deste último que nos vamos ocupar.

Mesmo em menor grau, Alexandre também possuía nos olhos negros esse magnetismo fascinante que tanto chocava em seu irmão. Também não tinha as brilhantes qualidades, mas isto não o impedia de ter muito espírito e de aprender com facilidade. A morte do irmão causou-lhe tal impressão que se tornou outro homem. Seis semanas depois, ficou sem abrir os olhos, deixou de se pentear, de se lavar, e não quis, sob nenhum pretexto, mudar de roupa, de modo que as roupas apodreciam-lhe no corpo e caíam em farrapos.

Então a mãe o levou para o campo. Um tio que morava perto conseguiu que ela lhe confiasse seu sobrinho por algum tempo, prometendo fazê-lo esquecer todas as suas fantasias. Com efeito, disse-lhe muito severamente que se quisesse manter semelhante atitude em sua casa, não teria escrúpulos com os meios de corrigi-lo. Alexandre logo tornou-se perfeitamente razoável; não ofereceu qualquer resistência às ordens do tio, mas escreveu secretamente à sua mãe, pedindo-lhe que viesse livrálo de seu carrasco. Sua mãe atendeu logo ao seu desejo. No entanto, uma vez longe do tio, as bizarrices recomeçaram mais intensas. Entre outras coisas, ele exigia que tocassem os sinos da igreja, quando se sentava à mesa. Pensaram num desarranjo cerebral e puseram-no numa casa de saúde de Kazan. Coisa estranha! Também dessa vez mudou completamente. Nada em sua conduta ou nas palavras denotava um cérebro doentio. Os médicos pensaram numa intriga de família e não mais o observaram de perto.

Uma noite, vendo que todos dormiam, ele enfiou o barrete e a jaqueta de um dos médicos, saiu do quarto, passou perto do porteiro sem ser reconhecido, ganhou a rua e fez 30 verstas[1] a pé até a sua fazenda. Entrou numa espécie de cabana, que servia de galinheiro, tirou toda a roupa e pondo-se no meio da cabana declarou que uma toesa[2] quadrada de chão bastava para a vida de um homem que de nada necessitava. Em vão a mãe, de joelhos, lhe suplicou que mudasse de ideia; em vão tentaram persuadi-lo a permitir que construíssem um teto para sua cabana. Ele ficou inabalável; quis ao seu lado apenas uma velha criada que jamais o tinha deixado e que por ele tinha uma fidelidade e um apego de cão. Seu pai, vendo que nada conseguia, ordenou a todos os seus camponeses que deixassem o lugar e fossem instalar-se a 7 verstas dali; ele próprio partiu, apelidando a aldeia de Aldeia Perdida. Então quiseram pôr a propriedade sob tutela. Nomearam comissões, mas Alexandre, que era sempre prevenido a tempo, vestiu-se, mesmo sem roupas íntimas, e veio ao encontro de todos. Respondeu a todas as perguntas com um bom-senso e uma justeza que nada deixavam a desejar, e tão bem que a comissão que ao chegar imaginava tratar com um louco, retirou-se desapontada.

Isto se passou em 1842, e até agora Alexandre permanece no mesmo estado. Ele se mantém de pé, sem nenhuma roupa, num pardieiro sem portas nem janelas, exposto a todas as intempéries e onde, no inverno, o frio chega a 30º abaixo de zero. Ele se alimenta de um pouco de geleia de uva que lhe trazem uma vez por dia numa tigela de barro; atiram-na com uma colher e ele a apanha no ar, à maneira dos animais, dos quais adotou o mugido, porque não mais se serve da voz humana. De tanto manter a cabeça inclinada, não pode mais erguê-la; seus pés atingiram uma largura desmesurada e ele não pode mais andar. Algumas vezes, à noite, acomoda-se e permite que o cubram com uma pele de carneiro. Seu aspecto nada apresenta de extraordinário, salvo os olhos. Não é gordo nem magro. O rosto tem uma expressão de sofrimento. Certa vez lhe perguntaram a razão de sua conduta extraordinária. Ele respondeu: “Não me fale nisto, é uma falta de vontade.” Não conseguiram mais. Que entendia ele por falta de vontade? Seria um voto?... Às vezes ele pronuncia o nome do irmão morto; outras vezes exclama: “Mas quando isto terminará?” Não segue nenhuma das regras de sua religião. Tinham mandado seus cabelos a um célebre sonâmbulo de Londres. A resposta foi que “era a doença de Nabucodonosor.

Contudo, ele não é louco! O que há de mais extraordinário é que ao lado dessa existência puramente bestial, há nele uma vida intelectual, pois se interessa por tudo o que se passa no mundo. Ele manda vir muitos jornais, e como o ambiente onde vive é sombrio, permitiu que fizessem um rancho ao lado do seu. Era aí que outrora, durante horas, sua mãe lia para ele. Agora que ela está morta, foi substituída por uma leitora contratada.

A comissão encarregada de aprofundar-se no caso obteve os seguintes detalhes, que no fundo apenas o embrulharam. D..., colega de Alexandre R... na universidade, disse que quando estavam juntos, pôde observar que ele era apaixonado pela mulher de um farmacêutico; era uma criatura de rara beleza e muito virtuosa. Diariamente Alexandre montava a cavalo, para ter o prazer de passar em frente às suas janelas e vê-la, às vezes, de longe. A isto se limitaram os seus amores. Contudo, diariamente, à mesma hora, vinham trazer-lhe uma carta lacrada, e se houvesse alguém em seu quarto, ele se apressava em escondê-la numa gaveta. Persuadido de que fossem bilhetes amorosos, D... não se interessava em conhecer o conteúdo. Mais tarde, quando começaram as pesquisas, só encontraram duas cartas, pois ele havia queimado todas as demais, e supõe-se que eram daquelas que ele recebia da universidade. A primeira era mais ou menos nestes termos:

“Ontem aconteceu-me uma coisa estranha. Eu voltava de nossa Suíça Russa (nome de um passeio nos arredores de Kazan), e atravessava o campo de Ars, quando ouvi gritar: Socorro! Também gritei, e me precipitando para o lugar de onde vinham os gritos, cheguei perto de um cemitério murado. Vi aparecer em cima do muro um jovem que agradecia vivamente a minha intervenção dizendo que tinha sido atacado por ladrões; mas ouvindo uma voz, fugiram. (Uma fábrica de tecidos estava situada no campo de Ars; tinham parado o trabalho por algum tempo, e alguns operários, não mais tendo como ganhar o pão, se deram ao roubo). Tomamos juntos o caminho da cidade, e estabeleceu-se entre nós uma conversa muito interessante e animada. Não posso dizer-te aqui de que se tratava, mas direi quando nos encontrarmos.

“Enfim chegamos à casa do meu desconhecido e aí passei toda a tarde. Dizendo-me adeus, agradeceu-me ainda uma vez, sem contudo convidar-me a vir vê-lo em casa. Apenas indicou-me um lugar onde passeava todos os dias a uma hora certa e onde, se eu quisesse, poderia vê-lo. O que há de estranho é que, de volta à minha casa, foi-me impossível lembrar a rua e a casa que acabara de deixar, embora conheça perfeitamente a cidade onde moro há quatro anos. Proponho-me ir ver o meu desconhecido no lugar indicado. Tratarei de ir à sua casa e certamente dessa vez eu me lembrarei.”

Não havia assinatura.


Eis a segunda carta, que é uma continuação da precedente. Apenas é muito mais curta:

“Vi o meu desconhecido no lugar indicado; ele convidou-me a ir à sua casa; passamos a tarde juntos, mas, de volta à minha casa, de novo esqueci completamente a rua e a casa.”

Sem assinatura. Examinando a letra atentamente, pareceu que havia uma grande semelhança com a de um de seus camaradas, mas quando mostraram a este último as duas cartas, ele se pôs a rir, declarando que jamais em sua vida havia escrito semelhantes coisas.

Aqui param todas as pesquisas. Supõe-se que haja nisto um grande mistério e que esse mistério seja conhecido por apenas três pessoas. Primeiro sua mãe, depois a velha criada que não o deixava nunca, e por fim sua irmã. As duas primeiras estão mortas; a terceira mora com seu marido na mesma aldeia que Alexandre. Diariamente ela vai vê-lo e permanece com ele três ou quatro horas a fio. De que podem falar? Seu irmão esquece os rugidos para falar uma linguagem humana e voltar a ser razoável? É o que ninguém sabe. O que há de singular é que esse fato tão extraordinário é muito pouco conhecido. Ele jamais foi publicado por qualquer jornal, entretanto se passa bem perto de Kazan, cidade onde há uma universidade, cientistas e médicos. É verdade que no começo fizeram pesquisas, mas parece-me que logo se desencorajaram. Contudo, que vasto campo para a observação da Ciência, sem falar do lado psicológico! É um fato atual, que qualquer um pode constatar.

Poderia o Espiritismo, que explica tantas coisas, dar a solução para esse estranho fenômeno? Não ouso pedir-vos uma resposta por escrito, pois vosso tempo é muito precioso. Apenas espero que se considerardes o fato digno do vosso exame, emitais a vossa opinião na Revista Espírita, que aqui recebemos.

Aceitai, etc.

Uma coisa ressalta evidente deste relato. É que o jovem não é louco, na acepção científica do vocábulo; ele goza da plenitude da razão, quando quer. Mas qual pode ser a causa de semelhante excentricidade, nessa idade? Cremos que muito tempo passará antes que a Ciência a encontre, com seus recursos puramente materiais. Entretanto, existe algo que não é uma simples mania: é a assimilação da voz e dos gestos dos animais. É verdade que já vimos indivíduos abandonados nos bosques, desde tenra idade, vivendo com as feras, adotando seus gritos e seus costumes por imitação. Mas não é este o caso. Esse jovem fez estudos sérios, vive em suas terras e no meio de uma aldeia; está em contacto diário com seres humanos. Neste caso, portanto, não se trata de uma questão de hábito e de isolamento.

Disse o sonâmbulo de Londres que é uma doença de Nabucodonosor. Mas que moléstia é essa? A história desse rei não é uma lenda? É possível que um homem se transforme em fera? Contudo, se aproximarmos o relato bíblico do fato atual de Alexandre R..., notaremos entre eles mais de um ponto de semelhança. Compreendese que o que se passa em nossos dias pode ter-se passado outrora, e que o rei da Babilônia pode ter sido atingido por um mal semelhante. Se, pois, aquele rei, dominado por uma influência análoga, deixou o seu palácio, como Alexandre R... deixou o seu castelo; se viveu e gritou como ele, à maneira das feras, puderam dizer, na linguagem alegórica daquela época, que ele tinha sido transformado em fera. É verdade que isto destrói o milagre. Mas quantos milagres hoje caem ante as leis da Natureza que se descobrem diariamente! A religião com isto ganhará se for aceito como natural um fato que era considerado como maravilhoso. Quando os adversários do Espiritismo dizem que ele ressuscita o sobrenatural e a superstição, eles provam que lhe ignoram as primeiras palavras, porquanto ele vem, ao contrário, provar que certos fatos reputados misteriosos não passam de efeitos naturais.

Lido este relato na Sociedade de Paris, como assunto de estudo, foi solicitado um médium que evocasse os Espíritos que pudessem dar uma explicação. Foram obtidas as três comunicações seguintes, uma do irmão falecido, Voldemar; a segunda do Espírito protetor dos dois irmãos e a terceira, do guia espiritual de outro médium.

(Sociedade Espírita de Paris, 13 de outubro de 1865) (Médium: Sr. Desliens)


I


Eis-me aqui!... Que quereis?... Com que direito vos imiscuís em negócios íntimos de família?!... Sabei que ninguém jamais me ofendeu em vão, e temei incorrer em minha cólera tentando vasculhar um segredo que não vos pertence! Quereis ter a chave das razões que levam meu irmão a fazer semelhantes tolices? Sabei que toda a causa reside em mim, que o puni dessa maneira pela falta de fé com que se tornou culpado em relação a mim. Um elo nos unia, elo terrível, elo de morte!... Ele devia cumprir a sua promessa e não o fez; foi covarde!... Pois que ele sofra a pena por uma falta que não encontraria graça em mim!... Meu cúmplice na ação, ele deveria seguir-me no suplício. Por que hesitou?... Hoje ele suporta o castigo por suas hesitações.

Não podendo obrigá-lo a seguir-me, pelo menos imediatamente, empreguei a força magnética, que possuo em grau extremo, para obrigá-lo a abandonar a sua vontade e o seu ser ao meu livre-arbítrio. Ele sofre nessa posição?... Tanto melhor! Cada um de seus gemidos interiores me causa um tremor de sombria satisfação.

Estais contentes com a minha urbanidade? Achais suficientes as minhas explicações?... Não. Quereríeis moralizar-me?... Mas, que sois vós para me pregar sermões? Sois padre? Não. Pois então, a que título quereis que vos escute? Nada quero ouvir e volto ao lugar que não deveria ter deixado. Ele compreende seus males neste momento. Talvez sua vontade reaja sobre a sua matéria! Infelizes de vós se o fizerdes escapar ao meu domínio!

VOLDEMAR R...


II


Não tenteis, pelo menos agora, constranger esse pobre insensato a vos escutar. Ele não poderia fazê-lo e vossas palavras não teriam outros resultados senão excitar sua raiva brutal. Venho em seu lugar dar-vos algumas explicações que lançarão um pouco de luz sobre o drama sombrio de que esses dois seres foram autores em outra existência. Neste momento eles expiam, sofrendo as consequências da ação criminosa em cujos detalhes eu não poderia entrar hoje. Sabei apenas que, dessas duas individualidades, Alexandre, sob outro nome e noutra época, foi subordinado de Voldemar, numa condição social que podereis presumir por algumas palavras do relato que lestes. Meditai na passagem em que se diz que Alexandre exigia que fosse tocado o sino no começo de suas refeições, e estareis no caminho. Como eu vos disse, subordinado a Voldemar, e sob as instigações deste, ele perpetrou diversas ações cuja responsabilidade ambos carregam hoje, e que são a fonte de seus sofrimentos.

Alexandre era ─ e ainda é ─ um caráter fraco e vacilante, quando uma causa qualquer dava a alguém o domínio sobre ele. Em relação a todas as outras pessoas ele era altivo, despótico, brutal. Em suma, estava sob o domínio do irmão. O que ambos fizeram é o que o futuro vos dirá, no correr deste estudo. Passemos aos resultados.

Eles prometeram jamais trair-se ou se afastarem e, além disto, Voldemar se reservou o direito, com toda a sua vontade poderosa, de fazer o seu infeliz cúmplice suportar todo o seu peso. Vistes que ele o tinha tomado como alvo de suas brincadeiras, no fragmento de existência que percorreram juntos. Dotados de uma inteligência pouco comum, esses dois seres tinham formado anteriormente, pela associação de suas inclinações más, uma liga temível contra a Sociedade. Voldemar foi recolhido, por um desígnio da Providência, que assim preparava o caminho da renovação desses dois seres. Sob o império de sua promessa, Alexandre queria seguir seu irmão no túmulo, mas sua afeição por uma pessoa da qual se falou no relato, e a fadiga de um jugo que suportava com esforço, fizeram com que ele tomasse a resolução de lutar. Seu irmão não podia matá-lo materialmente, mas o matou moralmente, cercando-o de um feixe de influências que determinaram a cruel obsessão cujas consequências conheceis.

O sonâmbulo que designou essa afecção com o nome de moléstia de Nabucodonosor não estava tão longe da verdade quanto se podia crer, porque Nabucodonosor não passava de um obsedado que se convenceu de que se havia transformado em fera. É, pois, uma obsessão, que não exclui, como sabeis, a ação da inteligência e não a aniquila de maneira fatal. É um dos casos mais notáveis, cujo estudo poderá ser a todos proveitoso. Nesta noite ele nos arrastaria muito longe, pelos desenvolvimentos que requer. Limitar-me-ei a esta exposição, pedindo-vos ao mesmo tempo que reunais vossas forças espirituais para evocar Voldemar. Como o teme com razão, em sua ausência o irmão recobra a energia e pode libertar-se. Eis por que lhe repugna deixá-lo, e sobre ele exerce uma ação magnética contínua.

O guia de ambos PAULOWITCH


III


(Médium: Sra. Delanne)

Meus bem-amados irmãos, certos fatos relatados nas Escrituras, por muita gente são olhados como fábulas para as crianças. Desdenharam-nos porque não os compreenderam e recusaram dar-lhes fé. Não obstante, despido da forma alegórica, o fundo é verdadeiro, e só o Espiritismo podia dar-lhe a chave. Fatos de diversas naturezas vão produzir-se não só com os espíritas, mas com todo mundo e por toda a Terra, que forçarão os cientistas a estudar, e é então que poderão convencer-se, a despeito do que dizem alguns, que o Espiritismo ensina coisas novas, porque é por ele que se terá a explicação do que ficou incompreendido até hoje. Não vos disseram que a obsessão iria revestir novas formas? Este é um exemplo.

A punição de Nabucodonosor não é, portanto, uma fábula. Ele não foi, como dissestes muito judiciosamente, transformado em fera; mas ele era, como o caso que vos ocupa no momento, privado por algum tempo do livre exercício de suas faculdades intelectuais, e isso em condições que o assemelhavam às feras e transformavam o poderoso déspota em objeto de piedade para todos. Deus o tinha ferido no seu orgulho.

Todas estas questões se ligam às dos fluidos e do magnetismo. Nesse jovem, há obsessão e subjugação. Ele tem muita lucidez como Espírito, e seu irmão exerce sobre ele uma irresistível influência magnética; atrai-o facilmente para fora de seu corpo, quando uma pessoa amiga e simpática lá não está para retê-lo. Ele sofre quando desprendido; para ele, também, é uma punição, e é então que solta rugidos ferozes.

Não vos apresseis em condenar o que está escrito nos livros sagrados, como faz a maioria dos que só veem a letra e não o espírito. Diariamente vos esclareceis mais, e novas verdades desenrolar-se-ão aos vossos olhos, pois estais longe de ter esgotado todas as aplicações daquilo que sabeis em Espiritismo.

SÃO BENTO

Resulta desta explicação eminentemente racional, que esse jovem está sob o império de uma obsessão, ou melhor, de uma terrível subjugação, semelhante à que sofreu o rei Nabucodonosor. Isto destrói a justiça de Deus que tinha punido o monarca orgulhoso? Absolutamente não, pois sabemos que as obsessões são, ao mesmo tempo, provações e castigos. Assim, Deus podia puni-lo pondo-o sob o jugo de um Espírito maléfico que o constrangesse a agir como uma fera, sem com isso metamorfoseá-lo em fera. A primeira dessas punições é natural e se explica pela lei das relações entre o mundo visível e o invisível; a outra é antinatural, fantástica e não se explica. Uma se apresenta, em nossos dias, como uma realidade, sob as formas diversas da obsessão, a outra só se acha nos contos de fadas. Enfim, uma é aceitável pela razão, a outra não.

Do ponto de vista do Espiritismo, esse fato oferece importante tema de estudo. A obsessão aí se apresenta sob um aspecto novo quanto à forma e quanto à causa determinante, mas nada tem de surpreendente, depois do que nos é dado ver diariamente. São Bento tem toda razão ao dizer que estamos longe de haver esgotado todas as aplicações do Espiritismo e de compreendermos tudo quanto ele nos pode explicar. Tal como é, ele apresenta-nos uma rica mina a explorar, auxiliados pelas leis que nos dá a conhecer. Antes de dizer que está estacionário, saibamos, pois, tirar proveito do que ele nos ensina.



[1] Antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros.


[2] Antiga unidade de medida de comprimento, equivalente a 1,98m.



O Patriarca José e o vidente de Zimmerwald

Um dos nossos assinantes de Paris escreve o que segue:

“Lendo o número da Revista Espírita de outubro, reportei-me a uma passagem da Bíblia que assinala um fato análogo à mediunidade do vidente da floresta de Zimmerwald. Ei-lo:

“Quando os irmãos de José saíram da cidade, como ainda tinham andado um pequeno trecho do caminho, José chamou o intendente de sua casa e lhe disse: Correi atrás daquelas pessoas; parai-as e dizei-lhes: Por que fizestes o mal pelo bem? ─ A taça que roubastes é aquela em que meu Senhor bebe, e da qual ele se serve para adivinhar. Fizestes uma ação muito má.

“Quando os irmãos de José foram trazidos à sua presença, ele lhes disse:

“Por que agistes assim comigo? Ignorais que ninguém me iguala na ciência de adivinhar as coisas ocultas?” (Gênesis, 44: 4, 5 e 15).

“O gênero de mediunidade que assinalais existia, pois, entre os Egípcios e os Judeus.”

C...

Advogado.


Com efeito, nada mais positivo. José possuía a arte de adivinhar, isto é, de ver as coisas ocultas, e se servia de uma taça de beber, como o vidente de Zimmerwald se serve de seu copo. Se a mediunidade é uma faculdade demoníaca, eis um dos personagens mais venerados da Antiguidade sagrada convicto de agir pelo demônio. Se agisse por Deus, e os nossos médiuns pelo demônio, então o demônio faz o mesmo que Deus, e, consequentemente, o iguala em poder. Admiram-se de ver homens graves sustentarem semelhante tese, que arruína sua própria doutrina.

Assim, o Espiritismo não descobriu nem inventou os médiuns, mas descobriu as leis da mediunidade, e a explica. Assim, é a verdadeira chave para a compreensão do Antigo e do Novo Testamento, onde abundam fatos desse gênero. Por falta dessa chave é que foram feitos tantos comentários contraditórios sobre as Escrituras, e que nada explicaram. A incredulidade ia crescendo incessantemente na direção desses fatos e invadia a própria Igreja. De agora em diante serão admitidos como fenômenos naturais, pois eles se repetem em nossos dias, por leis agora conhecidas. Então temos razão de dizer que o Espiritismo é uma ciência positiva, que destrói os últimos vestígios do maravilhoso.

Suponhamos que se tivessem perdido os livros dos Antigos, que nos explicam a teogonia pagã ou mitologia. Compreenderíamos hoje o sentido das inumeráveis inscrições que se descobrem diariamente, e que se referem mais ou menos diretamente a essas crenças? Compreenderíamos a finalidade, os motivos de estrutura da maior parte dos monumentos cujos restos contemplamos? Saberíamos o que representam a maioria das estátuas e baixos-relevos? Certamente não. Sem o conhecimento da Mitologia, todas as coisas para nós seriam letra morta, como a escritura cuneiforme e os hieróglifos egípcios. A Mitologia é, pois, a chave com o auxílio da qual reconstruímos a história do passado, por meio de um fragmento de pedra, como Cuvier, com um osso, reconstruía um animal antediluviano. Porque não mais acreditamos em fábulas das divindades pagãs, há que negligenciar ou desprezar a mitologia? Quem emitisse tal pensamento seria tratado de bárbaro.

Pois bem! O Espiritismo, como crença na existência e na manifestação das almas, como meio de com elas comunicar-se; o magnetismo, como meio de cura; o sonambulismo, como dupla vista, sendo muito espalhados na Antiguidade, se misturaram a todas as teogonias, mesmo à teogonia judaica, e mais tarde à cristã; aí se faz alusão a uma porção de monumentos e inscrições que nos restam. O Espiritismo, que abarca, ao mesmo tempo, o magnetismo e o sonambulismo, é um facho para a Arqueologia e para o estudo da Antiguidade. Estamos mesmo convencidos que é uma fonte fecunda para a compreensão dos hieróglifos, porque essas crenças eram muito espalhadas no Egito, e seu estudo fazia parte dos mistérios ocultos ao vulgo. Eis alguns fatos em apoio a esta asserção:

Um de nossos amigos, sábio arqueólogo que reside na África, e que é, ao mesmo tempo, um espírita esclarecido, encontrou, há alguns anos, nos arredores de Sétif, uma inscrição tumular cujo sentido era absolutamente ininteligível sem o conhecimento do Espiritismo.

Lembramo-nos de ter visto no Louvre, há bastante tempo, uma pintura egípcia que representava um indivíduo deitado e adormecido, e um outro de pé, com os braços e os dedos dirigidos para o primeiro, sobre o qual fixava o olhar, na exata atitude de um homem aplicando passes magnéticos. Dir-se-ia um desenho calcado na pequena vinheta que o Sr. Barão Dupotet punha outrora no frontispício do seu Journal du Magnetisme. Para qualquer magnetizador, não era possível engano quanto ao motivo desse quadro. Para quem quer que não tivesse conhecido o magnetismo, ele não tinha sentido. Só esse fato provaria, se não houvesse uma porção de outros, que os antigos Egípcios sabiam magnetizar, e que a isto se dedicavam mais ou menos como nós. Então isto fazia parte de seus costumes, porquanto se achava consagrado num monumento público. Sem o magnetismo moderno, que nos deu a chave de certas alegorias, não o saberíamos.

Uma outra pintura egípcia, igualmente no Louvre, representava uma múmia de pé, cercada de pequenas faixas; um corpo da mesma forma e tamanho, mas sem faixas, destacava-se a meio, como se saísse da múmia, e um outro indivíduo, posto à frente, parecia atraí-lo a si. Então não conhecíamos o Espiritismo e nos perguntávamos o que aquilo podia significar.

Hoje é claro que essa pintura alegórica representa a alma separando-se do corpo, mas conservando a aparência humana, e cujo desprendimento é facilitado pela ação de outra pessoa encarnada ou desencarnada, como nos ensina o Espiritismo.

Não creiais no Espiritismo, se não quiserdes. Admiti que seja uma quimera. Ninguém vo-lo impõe. Estudai-o como estudaríeis mitologia, a título se simples ensinamento, e rindo da credulidade humana, e vereis que horizontes ele vos abrirá, por pouco circunspectos que sejais.


Dissertações espíritas - O repouso eterno

(Sociedade de Paris, 31 de outubro de 1865 - Médium: Sr. Leymarie)

Quando deixei meu envoltório terreno, fizeram vários discursos em meu túmulo, e todos estavam impregnados da mesma ideia. Sonnez, meu amigo, dizia um, ides gozar do repouso eterno. Alma, dizia o padre, repousa na contemplação divina. Amigo, repetia o terceiro, dorme em paz após uma vida bem vivida. Enfim, era o repouso eterno contínuo, que ressaltava do fundo de tantos adeuses tocantes.

O repouso eterno! Que entendiam por esta expressão e pelas mesmas palavras continuamente repetidas, cada vez que um homem desaparecia da Terra e ia para o desconhecido?

Ah! meus amigos, dizeis que repousamos. Que erro estranho! Compreendeis o repouso à vossa maneira. Olhai em torno de vós; existe o repouso? Neste momento as árvores vão se despojar de seus envoltórios encantadores; tudo geme nesta estação; a Natureza parece preparar-se para a morte, contudo, se procurarmos, acharemos a vida em preparação sob essa morte aparente. Tudo se depura nesse grande laboratório terrestre: a seiva e a flor, o inseto e o fruto, tudo o que deve adornar e fecundar.

Esta montanha, que parece ter uma imobilidade eterna, não repousa. As infinitas moléculas que a compõem realizam um trabalho enorme. Elas tendem, umas a se agregar, outras a se separar, e essa lenta transformação causa espanto a princípio e depois admiração ao pesquisador que acha em tudo instintos diversos e mistérios a explorar. E se a Terra assim se agita em suas entranhas, é que esse grande cadinho elabora e prepara o ar que respirais, os gazes que devem sustentar a Natureza inteira. É que ela imita os milhões de planetas que percebeis no espaço, e cujos movimentos diários e trabalho contínuo obedecem à vontade soberana. Sua evolução é matemática e se eles encerram outros elementos além dos que vos fazem agir, vamos! Acreditai! Esses elementos trabalham para a sua depuração, para a sua perfeição.

Sim, para a sua perfeição, porque essa é a palavra eterna. A perfeição é o objetivo, e para atingi-lo, átomos, moléculas, seiva, minério, árvores, animais, homens, planetas e Espíritos se empenham nesse movimento geral, que é admirável por sua diversidade, pois é harmonia. Todas as tendências vão ao mesmo fim, e esse fim é Deus, centro de toda atração.

Depois da minha partida da Terra, minha missão não está realizada; busco e trabalho todos os dias; meu pensamento aumentado abarca melhor o poder dirigente; sinto-me melhor fazendo o bem e, como eu, legiões inumeráveis de Espíritos preparam o futuro. Não acrediteis no repouso eterno! Os que pronunciam essas palavras não compreendem o seu vazio. Vós todos que me ouvis, podeis matar o pensamento, forçá-lo ao repouso? Oh! não. O vagabundo procura e procura sempre e não desagrada aos amáveis e úteis charlatães que negam o Espírito e o seu poder. O Espírito existe, nós o provamos e o provaremos melhor quando chegar a hora. Nós lhes ensinaremos, a esses apóstolos da incredulidade, que o homem não é o nada, um agregado de átomos reunidos pelo acaso e pelo acaso destruídos. Nós lhes mostraremos o homem radiante por sua vontade e seu livre-arbítrio, senhor de seu destino, elaborando na geena terrestre o poder da ação necessária a outras vidas, a outras provas.

SONNEZ

Notícias bibliográficas

No prelo, para ser publicado dentro de poucos dias

O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO - POR ALLAN KARDEC

3ª edição REVISTA, CORRIGIDA E MODIFICADA

Esta edição foi objeto de um remanejamento completo da obra. Além de algumas adições, as principais alterações consistem numa classificação mais metódica, mais clara e mais cômoda das matérias, o que torna sua leitura e as buscas mais fáceis.


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A “GAZETTE DU MIDI” ANTE O ESPIRITISMO - A PROPÓSITO DOS IRMÃOS DAVENPORT - ESTUDO FILOSÓFICO
POR ERNEST ALTONY


Brochura in-8º. Preço 1 franco. Pelo correio, 1,20 franco. Em Marselha, na Livraria Mengelle, Rua Longue-des-Capucins. 32 bis. Venda em benefício das famílias vítimas da cólera. Para receber esta brochura, enviar l,20 franco em selos postais ao Sr. Mengelle, livreiro em Marselha.

Aviso

O Sr. Ledoyen, livreiro em Paris (Palais-Royal), retirou-se da atividade e não deixou sucessores. Todos os pedidos de assinaturas e outros que lhe fossem dirigidos ficariam sem efeito.

ALLAN KARDEC


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