Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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Março

Introdução ao estudo dos fluidos espirituais

I


Os fluidos espirituais representam um importante papel em todos os fenômenos espíritas, ou melhor, são o princípio desses fenômenos. Até agora nos limitávamos a dizer que tal efeito é o resultado de uma ação fluídica, mas esse dado geral, suficiente no início, não o é mais quando queremos investigar os detalhes. Sabiamente os Espíritos limitaram seu ensinamento, no princípio; mais tarde, chamaram a atenção para a grave questão dos fluidos, e não foi num centro único que a abordaram. Foi praticamente em todos.

Mas os Espíritos não nos vêm trazer esta ciência, como nenhuma outra, já pronta. Eles nos põem no caminho, fornecem-nos os materiais e a nós cabe estudá-los, observá-los, analisá-los, coordená-los e pôlos em prática. Foi o que eles fizeram para a constituição da doutrina, e agiram da mesma maneira em relação aos fluidos. Sabemos que em mil lugares diferentes eles esboçaram o seu estudo; em toda parte encontramos alguns fatos, algumas explicações, uma teoria parcial, uma ideia, mas em parte alguma um completo trabalho de conjunto. Por que isto? Impossibilidade da parte deles? Certamente não, porque o que teriam podido fazer como homens, com mais forte razão podem fazer como Espíritos. Mas, como dissemos, é que por motivo nenhum eles vêm libertar-nos do trabalho da inteligência, sem o qual as nossas forças, ficando inativas, estiolar-se-iam, porque acharíamos mais cômodo que eles trabalhassem por nós.

Assim, o trabalho é deixado ao homem, no entanto, sendo limitados a sua inteligência, sua vida e seu tempo, a nenhum é dado elaborar tudo o que é necessário para a constituição de uma ciência. Eis por que não há uma só que seja, em todas as suas peças, obra de um só homem; nenhuma descoberta que o seu primeiro inventor tenha levado à perfeição. A cada edifício intelectual, vários homens e diversas gerações trouxeram seu contingente de pesquisas e de observações.

Assim também com a questão que nos ocupa, cujas diversas partes foram tratadas separadamente, depois coligidas num corpo metódico, quando puderam ser reunidos materiais suficientes. Esta parte da ciência espírita se mostra, desde já, não como uma concepção individual sistemática, de um homem ou de um Espírito, mas como o produto de observações múltiplas, que haurem sua autoridade da concordância entre elas existente.

Pelo motivo que acabamos de exprimir, não poderíamos pretender que esta seja a última palavra. Como temos dito, os Espíritos graduam os seus ensinos e os proporcionam à soma e à maturidade das ideias adquiridas. Não podemos duvidar, portanto, que mais tarde eles ponham novas observações no caminho. Mas, desde agora, há elementos suficientes para formar um corpo que ulteriormente e gradualmente será completado.

O encadeamento dos fatos nos obriga a tomar nosso ponto de partida de mais alto, a fim de proceder do conhecido para o desconhecido.


II


Tudo se liga na obra da criação. Outrora consideravam-se os três reinos como inteiramente independentes entre si, e teriam rido de quem pretendesse encontrar uma correlação entre o mineral e o vegetal, entre o vegetal e o animal. Uma observação atenta fez desaparecer a solução de continuidade, e provou que todos os corpos formam uma cadeia ininterrupta, de tal sorte que os três reinos não subsistem, na realidade, senão pelos caracteres gerais mais marcantes; mas, nos seus limites respectivos, eles se confundem, a ponto de se hesitar em determinar onde um termina e o outro começa, e em qual deles certos seres devem ser colocados. Tais são, por exemplo, os zoófitos, ou animais plantas, assim chamados porque eles têm, ao mesmo tempo, características de animal e de planta.

O mesmo acontece no que concerne à composição dos corpos. Durante muito tempo os quatro elementos serviram de base às ciências naturais, mas eles caíram ante as descobertas da química moderna, que reconheceu um número indeterminado de corpos simples. A química nos mostra todos os corpos da Natureza formados desse elementos combinados em diversas proporções. É da infinita variedade dessas proporções que nascem as inumeráveis propriedades dos diferentes corpos. É assim, por exemplo, que uma molécula de gás oxigênio e duas de gás hidrogênio, combinadas, formam água. Na sua transformação em água, o oxigênio e o hidrogênio perdem suas qualidades próprias; a bem dizer, não há mais oxigênio nem hidrogênio, mas água. Decompondo a água, encontram-se novamente os dois gases, nas mesmas proporções. Se, em vez de uma molécula de oxigênio houver duas, isto é, duas de cada gás, não será mais água, mas um líquido muito corrosivo. Bastou, pois, uma simples mudança na proporção de um dos elementos para transformar uma substância salutar em outra venenosa. Por uma operação inversa, se os elementos de uma substância deletéria, como, por exemplo, o arsênico, forem simplesmente combinados em outras proporções, sem adição ou subtração de nenhuma outra substância, ela tornar-se-á inofensiva, ou mesmo salutar. Há mais: várias moléculas reunidas, de um mesmo elemento, gozarão de propriedades diferentes, conforme o modo de agregação e as condições do meio onde se encontram. O ozônio, recentemente descoberto no ar atmosférico, é um exemplo disso. Reconheceu-se que essa substância não passa de oxigênio, um dos principais constituintes do ar, num estado particular que lhe dá propriedades distintas das do oxigênio propriamente dito. O ar não deixa de ser formado de oxigênio e de azoto, mas suas qualidades variam conforme contenha maior ou menor quantidade de oxigênio no estado de ozônio.

Estas observações, que parecem estranhas ao nosso assunto, não obstante a ele se ligam de maneira direta, como veremos mais tarde. Elas são, além disto, essenciais como pontos de comparação.

Essas composições e decomposições se obtêm artificialmente e em pequenas doses nos laboratórios, mas se operam em grande escala e espontaneamente no grande laboratório da Natureza. Sob a influência do calor, da luz, da eletricidade, da umidade, um corpo se decompõe, seus elementos se separam, outras combinações se operam e novos corpos se formam. Assim, a mesma molécula de oxigênio, por exemplo, que faz parte do nosso corpo, após a destruição deste, entra na composição de um mineral, de uma planta, ou de um corpo animado. Em nosso corpo atual acham-se, pois, as mesmas parcelas de matéria que foram partes constituintes de uma imensidade de outros corpos.

Citemos um exemplo para tornar a coisa mais clara.

Um pequeno grão é posto na terra, nasce, cresce e torna-se uma grande árvore que anualmente dá folhas, flores e frutos. Quer dizer que essa árvore se achava inteirinha no grão? Certamente não, porque ela contém uma quantidade de matéria muito mais considerável. Então, de onde lhe veio essa matéria? Dos líquidos, dos sais, dos gases que a planta tirou da terra e do ar, que se infiltraram em sua haste e pouco a pouco aumentaram de volume. Mas nem na terra nem no ar encontram-se madeira, folhas, flores e frutos. É que esses mesmos líquidos, sais e gases, no ato de absorção, se decompuseram; seus elementos sofreram novas combinações que os transformaram em seiva, lenho, casca, folhas, flores, frutos, essências odoríferas voláteis, etc. Essas mesmas partes, por sua vez, vão destruir-se e decompor-se; seus elementos vão misturar-se de novo na terra e no ar; recompor as substâncias necessárias à frutificação; ser reabsorvidos, decompostos e mais uma vez transformados em seiva, lenho, casca, etc. Numa palavra, a matéria não sofre aumento nem diminuição; ela se transforma, e por força dessas transformações sucessivas, a proporção das diversas substâncias é sempre em quantidade suficiente para as necessidades da Natureza. Suponhamos, por exemplo, que uma dada quantidade de água seja decomposta, no fenômeno da vegetação, para fornecer o oxigênio e o hidrogênio necessários à formação das diversas partes da planta; é uma quantidade de água que existe a menos na massa; mas essas partes da planta, quando de sua decomposição, vão libertar o oxigênio e o hidrogênio que elas encerravam, e esses gases, combinando-se entre si, vão formar uma nova quantidade de água equivalente à que havia desaparecido.

Um fato que é oportuno assinalar aqui, é que o homem, que pode operar artificialmente as composições e decomposições que se operam espontaneamente na Natureza, é impotente para reconstituir o menor corpo organizado, ainda que fosse um talo de erva ou uma folha morta. Depois de ter decomposto um mineral, pode recompô-lo em todas as suas peças, como era antes; mas quando separou os elementos de uma parcela de matéria vegetal ou animal, não pode reconstituí-la e, com mais forte razão, dar-lhe vida. Seu poder para na matéria inerte: o princípio da vida está na mão de Deus.

A maioria dos corpos simples são chamados ponderáveis, porque é possível achar o seu peso, e esse peso está na razão da soma de moléculas contidas num dado volume. Outros são ditos imponderáveis, porque para nós não têm peso e, seja qual for a quantidade em que se acumulem num outro corpo, não aumentam o peso desse. Tais são: o calórico, a luz, a eletricidade, o fluido magnético ou do ímã. Este último não passa de uma variedade da eletricidade. Embora imponderáveis, nem por isto esses fluidos deixam de ter um poder muito grande. O calórico divide os corpos mais duros, os reduz a vapor e dá aos líquidos evaporados uma irresistível força de expansão. O choque elétrico quebra árvores e pedras, curva barras de ferro, funde os metais, transporta para longe enormes massas. O magnetismo dá ao ferro um poder de atração capaz de sustentar pesos consideráveis. A luz não possui esse gênero de força, mas exerce uma ação química sobre a maioria dos corpos, e sob sua influência operam-se incessantemente composições e decomposições. Sem a luz, os vegetais e os animais se estiolam e os frutos não têm sabor nem cor.


III


Todos os corpos da Natureza, minerais, vegetais, animais, animados ou inanimados, sólidos, líquidos ou gasosos, são formados dos mesmos elementos, combinados de maneira a produzir a infinita variedade dos diferentes corpos. Hoje a Ciência vai mais longe; suas investigações pouco a pouco a conduzem à grande lei da unidade. Agora é geralmente admitido que os corpos reputados simples não passam de modificações, de transformações de um elemento único, princípio universal designado sob os nomes de éter, fluido cósmico ou fluido universal, de tal sorte que, segundo o modo de agregação das moléculas desse fluido, e sob a influência de circunstâncias particulares, ele adquire propriedades especiais que constituem os corpos simples. Esses corpos simples, combinados entre si em diversas proporções, formam, como dissemos, a inumerável variedade de corpos compostos. Segundo essa opinião, o calórico, a luz, a eletricidade e o magnetismo não passariam de modificações do fluido primitivo universal. Assim, esse fluido que, segundo toda probabilidade, é imponderável, seria ao mesmo tempo o princípio dos fluidos imponderáveis e dos corpos ponderáveis.

A Química nos faz penetrar na constituição íntima dos corpos, mas, experimentalmente, não vai além dos corpos considerados simples. Seus meios de análise são impotentes para isolar o elemento primitivo e determinar a sua essência. Ora, entre esse elemento em sua pureza absoluta e o ponto onde param as investigações da Ciência, o intervalo é imenso. Raciocinando por analogia, chega-se à conclusão que entre esse dois pontos extremos, esse fluido deve sofrer modificações que escapam aos nossos instrumentos e aos nossos sentidos materiais. É nesse campo novo, até aqui fechado à exploração, que vamos tentar penetrar.


IV


Até agora só tínhamos ideias muito incompletas sobre o mundo espiritual ou invisível. Imaginávamos os Espíritos como seres fora da Humanidade; os anjos também eram criaturas à parte, de uma natureza mais perfeita. Quanto ao estado das almas após a morte, os conhecimentos não eram mais positivos. A opinião mais geral, deles fazia seres abstratos, dispersos na imensidade e não tendo mais relações com os vivos, a não ser que, segundo a doutrina da Igreja, estivessem na beatitude do Céu ou nas trevas do inferno. Além disto, parando as observações da Ciência na matéria tangível, disso resulta, entre o mundo corporal e o mundo espiritual, um abismo que parecia excluir toda reaproximação. É esse abismo que novas observações e o estudo de fenômenos ainda pouco conhecidos vem encher, pelo menos em parte.

Para começar, o Espiritismo nos ensina que os Espíritos são as almas dos homens que viveram na Terra; que elas progridem sem cessar, e que os anjos são essas mesmas almas ou Espíritos chegados a um estado de perfeição que os aproxima da Divindade.

Em segundo lugar, ele nos ensina que as almas passam alternativamente do estado de encarnação ao de erraticidade; que neste último estado elas constituem a população invisível do globo, ao qual ficam ligadas, até que tenham adquirido o desenvolvimento intelectual e moral que comporta a natureza deste globo, depois do que o deixam, passando a um mundo mais adiantado.

Pela morte do corpo, a Humanidade corporal fornece almas ou Espíritos ao mundo espiritual; pelos nascimentos, o mundo espiritual alimenta o mundo corporal; há, pois, transmutação incessante de um no outro. Esta relação constante os torna solidários, pois são os mesmos seres que entram no nosso mundo e dele saem alternativamente. Eis um primeiro traço de união, um ponto de contato, que já diminui a distância que parecia separar o mundo visível do mundo invisível.

A natureza íntima da alma, isto é, do princípio inteligente, fonte do pensamento, escapa completamente às nossas investigações. Mas sabemos agora que a alma é revestida de um envoltório ou corpo fluídico que dela faz, após a morte do corpo material, como antes, um ser distinto, circunscrito e individual. A alma é o princípio inteligente considerado isoladamente; é a força atuante e pensante, que não podemos conceber isolada da matéria senão como uma abstração. Revestida de seu envoltório fluídico, ou perispírito, a alma constitui o ser chamado Espírito, como quando está revestida do envoltório corporal, constitui o homem. Ora, embora no estado de Espírito ela goze de propriedades e de faculdades especiais, não cessou de pertencer à Humanidade. Os Espíritos são, pois, seres semelhantes a nós, pois cada um de nós torna-se Espírito após a morte do corpo, e cada Espírito torna-se homem pelo nascimento.

Esse envoltório não é a alma, pois não pensa; é apenas uma vestimenta. Sem a alma, o perispírito, assim como o corpo, é uma matéria inerte privada de vida e de sensações. Dizemos matéria porque, com efeito, o perispírito, embora de uma natureza etérea e sutil, não é menos matéria do que os fluidos imponderáveis e, ademais, matéria da mesma natureza e da mesma origem que a mais grosseira matéria tangível, como logo veremos.

A alma não se reveste do perispírito apenas no estado de Espírito; ela é inseparável desse envoltório, que a segue tanto na encarnação quanto na erraticidade. Na encarnação, ele é o laço que a une ao envoltório corporal, o intermediário com cujo auxílio ela age sobre os órgãos e percebe as sensações das coisas exteriores. Durante a vida, o fluido perispiritual identifica-se com o corpo, cujas partes todas penetra; com a morte, dele se desprende; privado da vida, o corpo se dissolve, mas o perispírito, sempre unido à alma, isto é, ao princípio vivificante, não perece; a alma, em vez de dois envoltórios, conserva apenas um: o mais leve, o que está mais em harmonia com o seu estado espiritual.

Embora esses princípios sejam elementares para os espíritas, era útil lembrá-los para a compreensão das explicações subsequentes e a ligação das ideias.


V


Algumas pessoas contestaram a utilidade do envoltório perispiritual da alma e, em consequência, a sua existência. Dizem que a alma não precisa de intermediário para agir sobre o corpo; e, uma vez separada do corpo, ele é um acessório supérfluo.

A isto respondemos, para começar, que o perispírito não é uma criação imaginária, uma hipótese inventada para chegar a uma solução; sua existência é um fato constatado pela observação. Quanto à sua utilidade, durante a vida ou após a morte, é preciso admitir que, considerando-se que ele existe, é que serve para alguma coisa. Os que contestam a sua utilidade são como um indivíduo que não compreendendo as funções de certas engrenagens num mecanismo, concluíssem que elas só servem para desnecessariamente complicar a máquina. Ele não vê que se a menor peça fosse suprimida, tudo ficaria desorganizado. Quantas coisas, no grande mecanismo da Natureza, parecem inúteis aos olhos do ignorante, e mesmo de certos cientistas que de boa-fé julgam que se tivessem sido encarregados da construção do Universo tê-lo-iam feito bem melhor!

O perispírito é uma das mais importantes engrenagens da economia. A Ciência o observou nalguns de seus efeitos e alternativamente o tem designado sob os nomes de fluido vital, fluido ou influxo nervoso, fluido magnético, eletricidade animal, etc., sem se dar precisa conta de sua natureza e de suas propriedades, e, ainda menos, de sua origem. Como envoltório do Espírito após a morte, ele foi suspeitado desde a mais alta Antiguidade. Todas as teogonias atribuem aos seres do mundo invisível um corpo fluídico. São Paulo diz em termos precisos que nós renascemos com um corpo espiritual (1ª Epístola aos Coríntios, Cap. XV, versículos 35 a 44 e 50).

Dá-se o mesmo com todas as grandes verdades baseadas nas leis da Natureza, e das quais, em todas as épocas, os homens de gênio tiveram a intuição. É assim que, desde antes de nossa era, notáveis filósofos tinham suspeitado da redondeza da Terra e seu movimento de rotação, o que nada tira ao mérito de Copérnico e de Galileu, mesmo supondo que estes últimos tenham aproveitado as ideias de seus predecessores. Graças a seus trabalhos, o que não passava de opinião individual, uma teoria incompleta e sem provas, desconhecida das massas, tornou-se uma verdade científica, prática e popular.

A doutrina do perispírito está no mesmo caso. O Espiritismo não foi o primeiro a descobri-lo. Mas, assim como Copérnico para o movimento da Terra, ele o estudou, demonstrou, analisou, definiu e dela tirou fecundos resultados. Sem os estudos modernos mais completos, esta grande verdade, como muitas outras, ainda estaria no estado de letra morta.


VI


O perispírito é o traço de união que liga o mundo espiritual ao mundo corporal. O Espiritismo no-los mostra em relação tão íntima e tão constante, que de um ao outro a transição é quase imperceptível. Ora, assim como na Natureza o reino vegetal se liga ao reino animal por seres semivegetais ou semianimais, o estado corporal se liga ao estado espiritual não só pelo princípio inteligente, que é o mesmo, mas também pelo envoltório fluídico, ao mesmo tempo semimaterial e semiespiritual, desse mesmo princípio. Durante a vida terrena, o ser corporal e o ser espiritual estão confundidos e agem de acordo; a morte do corpo apenas os separa. A ligação desses dois estados é tamanha, e eles reagem um sobre o outro com tanta força, que dia virá em que será reconhecido que o estudo da história natural do homem não poderá ser completo sem o estudo do envoltório perispiritual, isto é, sem pôr um pé no domínio do mundo invisível.

Tal aproximação é ainda maior quando se observa a origem, a natureza, a formação e as propriedades do perispírito, observação que decorre naturalmente do estudo dos fluidos.

VII

É sabido que todas as matérias animais têm como princípios constituintes o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono, combinados em diferentes proporções. Ora, como dissemos, esses mesmos corpos simples têm um princípio único, que é o fluido cósmico universal. Por suas diversas combinações eles formam todas as variedades de substâncias que compõem o corpo humano, o único de que aqui falamos, embora ocorra o mesmo em relação aos animais e às plantas. Disto resulta que o corpo humano, na realidade, não passa de uma espécie de concentração, de condensação, ou, se quiserem, de uma solidificação de gás carbônico. Com efeito, suponhamos a desagregação completa de todas as moléculas do corpo, e reencontraremos o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono; em outros termos, o corpo será volatilizado. Esses quatro elementos, voltando ao seu estado primitivo, por uma nova e mais completa decomposição, se os nossos meios de análise o permitissem, dariam o fluido cósmico. Esse fluido, sendo o princípio de toda matéria, é ele mesmo matéria, embora num completo estado de eterização.

Um fenômeno análogo se passa na formação do corpo fluídico ou perispírito: é, igualmente, uma condensação do fluido cósmico em redor do foco de inteligência, ou alma. Mas aqui a transformação molecular opera-se diferentemente, porque o fluido conserva sua imponderabilidade e suas qualidades etéreas. O corpo perispiritual e o corpo humano têm, pois, sua fonte no mesmo fluido; um e outro são matéria, embora sob dois estados diferentes. Assim, tivemos razão em dizer que o perispírito é da mesma natureza e da mesma origem que a mais grosseira matéria. Como se vê, nada há de sobrenatural, porque ele se liga, por seu princípio, às coisas da Natureza, das quais não passa de uma variedade.

Sendo o fluido universal o princípio de todos os corpos da Natureza, animados e inanimados e, por consequência, da terra, das pedras, Moisés estava certo quando disse: “Deus formou o corpo do homem do limo da terra”. Isto não quer dizer que Deus tomou um pouco de terra, a petrificou e com ela modelou o corpo do homem, como se modela uma estátua com barro, como acreditam os que tomam ao pé da letra as palavras bíblicas, mas que o corpo era formado dos mesmos princípios ou elementos que o limo da terra, ou que tinham servido para formar o limo da terra.

Moisés acrescenta: “E lhe deu uma alma vivente, feita à sua semelhança”. Assim, ele faz uma distinção entre a alma e o corpo; indica que ela é de natureza diferente, que ela não é matéria, mas espiritual e imaterial como Deus. Ele diz: “uma alma vivente” para especificar que só nela está o princípio de vida, ao passo que o corpo, formado de matéria, por si mesmo não vive. As palavras: à sua semelhança implicam uma similitude e não uma identidade. Se Moisés tivesse olhado a alma como uma porção da Divindade, ele teria dito: “Deus o anima dando-lhe uma alma tirada da sua própria substância”, como disse que o corpo tinha sido tirado da terra.

Estas reflexões são uma resposta às pessoas que acusam o Espiritismo de materializar a alma porque ele lhe dá um envoltório semimaterial.


VIII


No estado normal, o perispírito é invisível aos nossos olhos e impalpável ao nosso tato, como o são uma infinidade de fluidos e de gases. Contudo, a invisibilidade, a impalpabilidade, e mesmo a imponderabilidade do fluido perispiritual não são absolutas. É por isso que dizemos no estado normal. Em certos casos ele sofre talvez uma condensação maior, ou uma modificação molecular de natureza especial que o torna momentaneamente visível ou tangível. É assim que se produzem as aparições. Sem que haja aparição, muitas pessoas sentem a impressão fluídica dos Espíritos pela sensação do tato, o que é o indício de uma natureza material.

De qualquer maneira pela qual se opere a modificação atômica do fluido, não há coesão como nos corpos materiais; a aparência se forma e se dissipa instantaneamente, o que explica as aparições e as desaparições súbitas. Sendo as aparições o produto de um fluido material invisível, tornado visível por força de uma mudança momentânea na sua constituição molecular, não são mais sobrenaturais que os vapores que alternadamente se tornam visíveis ou invisíveis pela condensação ou pela rarefação. Citamos o vapor como ponto de comparação, sem pretender que haja similitude de causa e de efeito.


IX


Algumas pessoas criticaram a qualificação de semimaterial dada ao perispírito, dizendo que uma coisa é matéria ou não o é. Admitindo que a expressão seja imprópria, seria preciso adotá-la, em falta de um termo especial para exprimir esse estado particular da matéria. Se existisse um mais apropriado à coisa, os críticos deveriam tê-lo indicado. O perispírito é matéria, como acabamos de ver, filosoficamente falando, e por sua essência íntima; ninguém poderia contestá-lo; mas ele não tem as propriedades da matéria tangível, tal como se concebe vulgarmente; ele não pode ser submetido à análise química, porque, embora tenha o mesmo princípio que a carne e o mármore e possa tomar as suas aparências, na realidade não é nem carne nem mármore. Por sua natureza etérea ele tem, ao mesmo tempo, a aparência da materialidade por sua substância, e a da espiritualidade por sua impalpabilidade, e a palavra semimaterial não é mais ridícula do que semiduplo e tantas outras, porque também pode-se dizer que uma coisa é dupla ou não é.


X


Como princípio elementar universal, o fluido cósmico oferece dois estados distintos: o de eterização ou de imponderabilidade, que podemos considerar como o estado normal primitivo, e o de materialização ou de ponderabilidade, que não é, de certo modo, senão consecutivo. O ponto intermediário é o da transformação do fluido em matéria tangível. No entanto, também aí não há transição brusca, porque podemos considerar os nossos fluidos imponderáveis como um termo médio entre os dois estados.

Cada um desses dois estados necessariamente dá lugar a fenômenos especiais. Ao segundo pertencem os do mundo visível, e ao primeiro os do mundo invisível. Uns, chamados fenômenos materiais, são do campo da Ciência propriamente dita; os outros, qualificados de fenômenos espirituais, porque se ligam à existência dos Espíritos, são da alçada do Espiritismo. Mas há entre eles tão numerosos pontos de contato, que servem para mútuo esclarecimento e, como dissemos, o estudo de uns não poderia ser completo sem o estudo dos outros. É à explicação desses últimos que conduz o estudo dos fluidos, assunto sobre o qual futuramente faremos um trabalho especial.


O Espiritismo e a magistratura

Perseguições judiciais contra os espíritas - Cartas de um juiz

O Espiritismo conta com vários magistrados em suas fileiras, como temos dito diversas vezes, não só na França, como na Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha e na maioria dos países estrangeiros. A maior parte dos detratores da doutrina, que julgam ter o privilégio do bom-senso e tratam como insensatos os que não partilham de seu ceticismo a respeito das coisas espirituais, não dizemos sobrenaturais porque o Espiritismo não as admite, espantam-se que homens de inteligência e de valor, em sua opinião, caiam em semelhante erro. Os magistrados não são livres de ter sua opinião, sua fé, sua crença? Não há entre eles católicos, protestantes, livres-pensadores, francos-maçons? Quem, pois, poderia incriminar os que são espíritas? Não estamos mais nos tempos em que teriam cassado, talvez queimado o juiz que tivesse ousado afirmar publicamente que é a Terra que gira.

Coisa estranha! Há criaturas que gostariam de reviver esse tempo para os espíritas. No último alçar de escudos, não vimos homens que se dizem apóstolos da liberdade de pensamento apontá-los à vindita das leis como malfeitores, excitar as populações a corrê-los a pedradas, estigmatizá-los e lhes atirar injúrias à face, em jornais e em panfletos? Isso aconteceu não num momento de piadas, mas de verdadeira raiva, que, graças ao tempo em que vivemos, esgotou-se em palavras. Foi necessária toda a força moral de que se sentem animados os espíritas, toda a moderação de que os próprios princípios de sua doutrina fazem uma lei, para conservar a calma e o sangue-frio em semelhante circunstância e abster-se de represálias que poderiam ter sido lamentáveis. Esse contraste chocou todos os homens imparciais.

Então o Espiritismo é uma associação, uma afiliação tenebrosa, perigosa para a Sociedade, obediente a uma palavra de ordem? Seus adeptos têm um pacto entre si? Só a ignorância e a má-fé podem sustentar tais absurdos, levando-se em conta que sua doutrina não tem segredos para ninguém e eles agem à luz do dia. O Espiritismo é uma filosofia como qualquer outra, que é aceita livremente se convém, ou repelida se não convém; que repousa numa fé inalterável em Deus e no futuro e que só obriga moralmente os seus aderentes a uma coisa: olhar todos os homens como irmãos, sem acepção de crença, e fazer o bem, mesmo aos que nos fazem mal. Por que, então, não poderia um magistrado dizer-se abertamente seu partidário, declará-la boa se a julga boa, como pode dizer-se partidário da filosofia de Aristóteles, de Descartes ou de Leibnitz? Temeriam que sua justiça sofresse por isto? Que isto o tornasse muito indulgente para os adeptos? Naturalmente é aqui o lugar para algumas observações a respeito.

Num país como o nosso, onde as opiniões e as religiões são livres por lei, seria uma monstruosidade perseguir um indivíduo porque acredita nos Espíritos e suas manifestações. Se um espírita fosse entregue à justiça, não seria por causa de sua crença, como se fazia noutros tempos, mas porque teria cometido uma infração à lei. Portanto, é a falta que seria punida, e não a crença, e se ele fosse culpado, seria justamente sujeito às penas da lei. Para incriminar a doutrina, seria necessário ver se ela contém algum princípio ou máxima que autorizaria ou justificaria a falta. Se, ao contrário, nela for encontrada a censura a essa falta ou instruções em sentido contrário, a doutrina não poderia ser responsável pelos que não a compreendem ou não a praticam. Pois bem! Que analisem a Doutrina Espírita com imparcialidade, e desafiamos que nela encontrem uma só palavra sobre a qual se possam apoiar para cometer um ato qualquer repreensível aos olhos da moral, ou em relação ao próximo, ou mesmo que possa ser interpretado como mal, porque tudo aí é claro e sem equívoco.

Quem quer que se conforme aos preceitos da doutrina não poderia, pois, sofrer perseguições judiciais, a menos que nele se persiga a própria crença, o que entraria nas perseguições contra a fé. Ainda não temos conhecimento de perseguições dessa natureza na França, nem mesmo no estrangeiro, salvo a condenação, seguida do auto-de-fé de Barcelona, e ainda era uma sentença do bispo, e não do tribunal civil. E queimaram apenas livros. Com efeito, a que título perseguiriam pessoas que só pregam a ordem, a tranquilidade, o respeito à lei; que praticam a caridade, não só entre si, como nas seitas exclusivas, mas para com todo o mundo; cujo objetivo principal é trabalhar o seu próprio melhoramento moral; que contra os inimigos abjuram todo sentimento de ódio e de vingança? Homens que professam tais princípios não podem ser perturbadores da Sociedade. Certamente não serão eles que provocarão a desordem, o que levou um comissário de polícia a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas ele poderia fechar seu posto.

A maior parte das perseguições, em semelhantes casos, tem por objetivo o exercício ilegal da medicina, ou acusação de charlatanice, prestidigitação ou trapaça, por meio da mediunidade. Para começar, diremos que o Espiritismo não pode ser responsável por indivíduos que indevidamente se arrogam a qualidade de médiuns, assim como a verdadeira ciência não é responsável pelos escamoteadores que se dizem físicos. Um charlatão pode, portanto, dizer que opera com o auxílio dos Espíritos, como um prestidigitador diz que opera com a ajuda da física. É um meio como qualquer outro de jogar areia nos olhos. Tanto pior para os que se deixam enganar. Em segundo lugar, condenando a exploração da mediunidade como contrária aos princípios da doutrina, do ponto de vista moral, e além disso demonstrando que ela não deve nem pode ser um ofício ou uma profissão, e que todo médium que não tira de sua faculdade qualquer proveito direto ou indireto, ostensivo ou dissimulado, o Espiritismo afasta, por isso mesmo, até a suspeita de trapaça ou de charlatanismo. Considerando-se que o médium não é movido por nenhum interesse material, a charlatanice não teria sentido. O médium que compreende o que há de grave e santo num dom dessa natureza julgaria profaná-lo fazendo-o servir a coisas mundanas, para si e para os outros, ou se dele fizesse um objeto de divertimento e de curiosidade. Ele respeita os Espíritos, da mesma forma que deseja ser respeitado quando for Espírito, e não os põe em exibição. Além disto, ele sabe que a mediunidade não pode ser um meio de adivinhação e que ela não pode ajudá-lo a descobrir tesouros ou heranças, nem facilitar o êxito nas coisas aleatórias. Ele jamais será um ledor da sorte, nem por dinheiro nem por nada, portanto jamais terá embaraços com a justiça. Quanto à mediunidade curadora, ela existe, é certo. Mas está subordinada a condições restritivas, que excluem a possibilidade de consultório aberto sem suspeitas de charlatanismo. É uma obra de devotamento e de sacrifício e não de especulação. Exercida com desinteresse, prudência e discernimento, e contida nos limites traçados pela doutrina, ela não pode cair sob os golpes da lei.

Em resumo, o médium, segundo os desígnios da Providência e sob as vistas do Espiritismo, seja ele artífice ou príncipe, pois eles se encontram nos palácios e nas choupanas, recebeu um mandato que cumpre religiosamente e com dignidade. Ele não vê na sua faculdade senão um meio de glorificar Deus e servir ao próximo, e não um instrumento para servir aos seus interesses ou satisfazer a sua vaidade. Ele se faz estimar e respeitar por sua simplicidade, sua modéstia e sua abnegação, o que não se dá com os que buscam dele fazer um trampolim.

Ao usar de severidade contra os médiuns exploradores, aqueles que fazem mau uso de uma faculdade real, ou que simulam uma faculdade que não têm, a justiça não fere a doutrina, mas o abuso. Ora, o Espiritismo verdadeiro e sério, que não vive de abusos, com isto só poderá ganhar em consideração, e não tomaria sob seu patrocínio os que poderiam desviar a opinião pública por conta própria. Tomando fatos e causas para si, ele assumiria a responsabilidade do que eles fazem, porque esses tais não são verdadeiramente espíritas, mesmo que sejam realmente médiuns.

Enquanto não se perseguir num espírita, ou nos que tal se dizem, senão os atos repreensíveis aos olhos da lei, o papel do defensor é discutir o ato em si, abstração feita da crença do acusado. Seria grave erro procurar justificar o ato em nome da doutrina. Ao contrário, ele deve empenhar-se em demonstrar que ela lhe é estranha. Então o acusado cai no direito comum.

Um fato inconteste é que, quanto mais extensos e variados são os conhecimentos de um magistrado, mais apto é este para apreciar os fatos sobre os quais é chamado a se pronunciar. Num caso de medicina legal, por exemplo, é evidente que aquele que não for totalmente estranho à ciência poderá melhor julgar o valor dos argumentos da acusação e da defesa, do que outro que lhe ignora os rudimentos. Num caso em que o Espiritismo estivesse em questão, e hoje que ele está na ordem do dia e pode apresentar-se incidentemente, como principal ou como acessório, numa porção de casos, há um interesse real para os magistrados em saber pelo menos o que ele é, sem que por isso sejam tidos como espíritas. Num dos casos precitados, incontestavelmente saberiam melhor discernir o abuso da verdade.

Infiltrando-se o Espiritismo cada vez mais nas ideias, e tomando já um lugar entre as crenças aceitas, não está longe o tempo em que a nenhum homem esclarecido será permitido ignorar o que é, exatamente, essa doutrina, do mesmo modo que não pode ignorar os primeiros elementos das ciências. Ora, como ele abrange todas as questões científicas e morais, serão melhor compreendidas muitas coisas que, à primeira vista, pareciam estranhas. É assim, por exemplo, que o médico aí descobrirá a verdadeira causa de certas afecções; que o artista colherá numerosos temas de inspiração; que o magistrado e o advogado em muitas circunstâncias encontrarão uma fonte de luz.

É neste sentido que o concebe o Sr. Jaubert, honrado vice-presidente do tribunal de Carcassone. Para ele, é mais que um conhecimento adicionado aos que possui: é uma questão de convicção, pois lhe compreende o alcance moral. Embora jamais tenha ocultado sua opinião a esse respeito, convencido de estar certo e da força moralizadora da doutrina, hoje que a fé se apaga no ceticismo, quis ele dar-lhe o apoio da autoridade de seu nome, no momento mesmo em que ela era atacada com o máximo de violência, desafiando resolutamente a chacota, e mostrando aos seus adversários o pouco caso que faz de seus sarcasmos. Na sua posição, e dadas as circunstâncias, a carta que nos pediu que publicássemos, e que inserimos na Revista de janeiro último, é um ato de coragem, do qual todos os espíritas sinceros guardarão preciosa lembrança. Ela deixará sua marca na história do estabelecimento do Espiritismo.

A carta seguinte, que igualmente estamos autorizados a publicar, toma lugar ao lado da do Sr. Jaubert. É uma dessas adesões francamente explícitas e motivadas, à qual a posição do autor dá mais peso pelo fato de ser espontânea, pois não tínhamos a honra de conhecer esse senhor. Ele julga a doutrina pela simples impressão das obras, pois nada tinha visto. É a melhor resposta à acusação de inépcia e de charlatanice lançada sem distinção contra o Espiritismo e seus adeptos.


21 de novembro de 1865.

“Senhor,

“Permiti-me, como novo e fervoroso adepto, testemunhar-vos todo o meu reconhecimento por ter-me iniciado, pelos vossos escritos, à ciência espírita. Por curiosidade, li O Livro dos Espíritos; mas, após uma leitura atenta, a admiração, depois a mais inteira convicção sucederam em mim a uma desconfiada incredulidade. Com efeito, a doutrina que dele decorre dá a mais lógica solução, a mais satisfatória para a razão, de todas as questões que tão seriamente preocuparam os pensadores de todos os tempos, para definir as condições da existência do homem nesta Terra, explicar as vicissitudes que incumbem à Humanidade e determinar seus últimos fins. Esta admirável doutrina é incontestavelmente a sanção da mais pura e da mais fecunda moral, a exaltação demonstrada da justiça, da bondade de Deus e da obra sublime da criação, assim como a mais segura e mais firme base da ordem social.

“Não testemunhei manifestações espíritas, mas este elemento de prova, de modo algum contrário aos ensinamentos de minha religião (a católica) não é necessário à minha convicção. Para começar, basta-me encontrar na ordem da Providência a razão de ser da desigualdade das condições nesta Terra, numa palavra, a razão de ser do mal material e do mal moral.

“Com efeito, minha razão admite plenamente, como justificando a existência do mal material e moral, a alma saindo simples e ignorante das mãos do Criador, enobrecida pelo livre-arbítrio, progredindo por provas e expiações sucessivas e não chegando à soberana felicidade senão adquirindo a plenitude de sua essência etérea, pela libertação completa das amarras da matéria, que, alterando as condições da beatitude, deve ter servido para o seu adiantamento.

“Nessa ordem de ideias, o que há de mais racional que os Espíritos, nas diversas fases de sua depuração progressiva, se comuniquem entre si de um a outro mundo, encarnados ou invisíveis, para se esclarecerem, se ajudarem mutuamente, concorrer reciprocamente para o seu avanço, facilitar suas provas e entrar na via reparadora do arrependimento e da volta a Deus! O que de mais racional, digo eu, que uma tal continuidade, um tal fortalecimento dos laços de família, de amizade e de caridade que, unindo os homens em sua passagem por esta Terra, devem, como último objetivo, reuni-los um dia numa só família no seio de Deus!

“Que traço de união sublime: O amor partindo do Céu para abraçar com seu sopro divino a Humanidade inteira, povoando o imenso Universo, e reconduzi-la a Deus para fazê-la participar da beatitude eterna, da qual esse amor é a fonte! Que de mais digno da sabedoria, da justiça e da bondade infinita do Criador! Que grandiosa ideia da obra cuja harmonia e imensidade o Espiritismo revela, levantando uma ponta do véu que ainda não permite ao homem penetrar-lhe todos os segredos! Quanto os homens tinham restringido a sua incomensurável grandeza, situando a Humanidade num ponto imperceptível, perdido no espaço, e não concedendo senão a um pequeno número de eleitos a felicidade eterna reservada a todos! Assim rebaixaram o divino artífice às proporções ínfimas de suas percepções, das aspirações tirânicas, vingativas e cruéis inerentes às suas imperfeições.

“Enfim, basta à minha razão encontrar nesta santa doutrina a serenidade da alma, coroando uma existência resignada às tribulações providenciais da vida honestamente realizada pelo cumprimento de seus deveres e a prática da caridade, a firmeza na sua fé, pela solução das dúvidas que comprimem as aspirações para Deus, e enfim esta plena e inteira confiança na justiça, na bondade e na misericordiosa e paternal solicitude de seu Criador.

“Tende a bondade, senhor, de me contar no número dos vossos irmãos em Espiritismo, e aceitar etc.

“BONNAMY, juiz de instrução.”



Uma comunicação dada pelo Espírito do pai do Sr. Bonnamy provocou a carta seguinte. Não reproduzimos essa comunicação, devido ao seu caráter íntimo e pessoal, mas damos a seguir a segunda carta, de interesse geral:

“Senhor e caro mestre, mil vezes obrigado por ter tido a bondade de evocar meu pai. Havia tanto tempo que não ouvia essa voz amada! Extinta para mim há tantos anos, ela revive hoje! Assim se realiza o sonho de minha imaginação entristecida, sonho concebido sob a impressão de nossa separação dolorosa. Que suave, que consoladora revelação, tão cheia de esperanças para mim! Sim, vejo meu pai e minha mãe no mundo dos Espíritos, velando por mim, prodigalizando-me o benefício dessa ansiosa solicitude com que me cercaram na Terra. Minha santa mãe, em sua terna preocupação pelo futuro, penetrando-me com seu eflúvio simpático para me conduzir a Deus e mostrar-me o caminho das verdades eternas que para mim cintilavam num longínquo nebuloso!

“Como eu seria feliz se, conforme o desejo expresso por meu pai de se comunicar novamente, sua evocação pudesse ser julgada útil ao progresso da ciência espírita, e entrar na ordem dos ensinamentos providenciais reservados à obra! Eu encontraria, assim, em vosso jornal, os elementos das instruções espíritas, por vezes mescladas às doçuras das conversas em família. É um simples desejo, bem compreendeis, caro mestre. Levo muito em consideração as exigências da missão que vos incumbe, para fazer de tal desejo um pedido.

“Dou plena autorização para a publicação de minha carta. De boa vontade levarei o meu grão de areia à ereção da construção do edifício espírita, feliz se, ao contato de minha convicção profunda, as dúvidas de alguns se diluíssem e os incrédulos pensassem dever refletir mais seriamente.

“Permiti-me, caro mestre, dirigir-vos algumas palavras de simpatia e encorajamento por vosso duro labor. O Espiritismo é um farol providencial cuja luz deslumbrante e fecunda deve abrir todos os olhos, confundir o orgulho dos homens e comover todas as consciências. Sua irradiação será irresistível. De que tesouros de consolação, de misericórdia e de amor sois o distribuidor!

“Aceitai, etc.

“BONNAMY.”


A lei humana

Instruções do Espírito do Sr. Bonnamy, pai

A lei humana, como todas as coisas, está submetida ao progresso; progresso lento, insensível, mas constante.

Por mais admiráveis que sejam, para certas pessoas, as legislações antigas dos gregos e dos romanos, elas são muito inferiores às que governam as populações adiantadas de vossa época! ─ Com efeito, o que vemos na origem de cada povo? ─ Um código de costumes e usos tirando a sua sanção da força e tendo como motor o mais absoluto egoísmo. Qual o objetivo de todos os legisladores primitivos? ─ Destruir o para a maior paz da Sociedade. Suspeita-se do criminoso? ─ Não. Bate-se nele para corrigi-lo e lhe mostrar a necessidade de uma conduta mais moderada em relação aos seus concidadãos mal e seus instrumentos? É visando o seu melhoramento? ─ Absolutamente. É exclusivamente para preservar a Sociedade contra as suas ações, Sociedade egoísta que rejeita impiedosamente de seu seio tudo quanto lhe pode perturbar a tranquilidade. Assim, todas as repressões são excessivas e a pena de morte é mais geralmente aplicada.

Isto é concebível quando se considera a ligação íntima que existe entre a lei e o princípio religioso. Ambos avançam concordes, para um objetivo único, amparando-se mutuamente.

A religião sanciona todos os prazeres materiais e todas as satisfações dos sentidos? A lei dura e excessiva fere o criminoso para desembaraçar a Sociedade de um hóspede importuno. A religião se transforma, sanciona a vida da alma e sua independência da matéria? Ela reage também sobre a legislação, demonstra-lhe a responsabilidade que lhe incumbe, no futuro do violador da lei. Daí, a assistência do ministro, seja qual for, nos últimos momentos do condenado. Ainda o agridem, mas já têm a preocupação com esse ser que não morre inteiramente com o seu corpo, e cuja parte espiritual vai receber o castigo que os homens infligiram ao elemento material.

Na Idade Média e desde a era cristã, a legislação recebe do princípio religioso uma influência cada vez mais notável. Ela perde pouco de sua crueldade, mas seus móveis ainda absolutos e cruéis mudaram completamente de direção.

Assim como a Ciência, a Filosofia e a Política, a jurisprudência tem as suas revoluções, que não se devem operar senão lentamente, para serem aceitas pela generalidade dos seres a quem interessam. Uma nova instituição, para dar frutos, não deve ser imposta. A arte do legislador é preparar os espíritos de maneira a fazer com que a desejem e a considerem como um benefício... Todo inovador, por melhores que sejam as intenções que o animem, por mais louváveis que sejam os seus desígnios, será considerado como um déspota, cujo jugo é preciso sacudir, se ele quiser se impor, ainda mesmo que por benefícios. ─ Por seu princípio, o homem é essencialmente livre, e quer aceitar sem constrangimento. Daí as dificuldades que encontram os homens muito avançados para o seu tempo; daí as perseguições com que são abatidos. Eles vivem no futuro! Com um ou dois séculos de avanço sobre a massa de seus contemporâneos, eles não podem senão fracassar e quebrar-se contra a rotina refratária.

Assim, na Idade Média, preocupavam-se com o futuro do criminoso. Pensavam em sua alma, e para a levá-la ao arrependimento, apavoravam-na com os castigos do inferno, as chamas eternas que, por um arrastamento culposo, lhe infligiria um Deus infinitamente justo e infinitamente bom!

Não podendo elevar-se à altura de Deus, os homens, para se engrandecer, o reduziam às suas mesquinhas proporções! Inquietavam-se com o futuro do criminoso; pensavam em sua alma, não por ela própria, mas em razão de uma nova transformação do egoísmo, que consistia em pôr a consciência em repouso, reconciliando o pecador com o seu Deus.

Pouco a pouco, no coração e no pensamento de um pequeno número, a iniquidade de semelhante sistema pareceu evidente. Eminentes espíritos tentaram modificações prematuras, mas que, nada obstante, deram frutos, estabelecendo precedentes sobre os quais se baseia a transformação que hoje se realiza em todas as coisas.

Sem dúvida, ainda por muito tempo a lei será repressiva e castigará os culpados. Ainda não chegamos ao momento em que só a consciência da falta será o mais cruel castigo daquele que a cometeu. Mas, como vedes todos os dias, as penas se abrandam; tem-se em vista a moralização do ser; criam-se instituições para preparar a sua renovação moral; torna-se o seu abatimento útil a ele próprio e à Sociedade. O criminoso não será mais a fera a ser expurgada do mundo a qualquer preço. Será a criança extraviada na qual deve ser corrigido o raciocínio falseado pelas más paixões e pela influência do meio perverso!

Ah! O magistrado e o juiz não são os únicos responsáveis e os únicos a agirem neste mister. Todo homem de coração, príncipe, senador, jornalista, romancista, legislador, professor e artesão, todos devem pôr mãos à obra e trazer o seu óbolo à regeneração da Humanidade.

A pena de morte, vestígio infamante da crueldade antiga, desaparecerá pela força das coisas. A repressão, necessária no estado atual, abrandar-se-á dia a dia; e, em algumas gerações, a única condenação, a colocação fora da lei de um ser inteligente será o último degrau da infâmia, até que, de transformação em transformação, a consciência de cada um fique como único juiz e carrasco do criminoso.

E a quem deveremos todo esse trabalho? Ao Espiritismo, que desde o começo do mundo age por suas revelações sucessivas, como Mosaísmo, Cristianismo e Espiritismo propriamente dito! Por toda parte, em cada período, sua influência benfazeja salta aos os olhos, e ainda há seres bastante cegos para não reconhecê-lo, bastante interessados para derrubá-lo e negar a sua existência. Ah! Esses devem ser lamentados, porque lutam contra uma força invencível: contra o dedo de Deus!

BONNAMY pai. (Médium: Sr. Desliens).


Mediunidade mental


Um dos nossos correspondentes escreve de Milianah, Argélia:

“... A propósito do desprendimento do Espírito, que se opera em todos durante o sono, meu guia espiritual exercita-me em vigília. Enquanto o corpo está entorpecido, o Espírito se transporta para longe, visita as pessoas e os lugares de que gosta e a seguir volta sem esforço. O que me parece mais surpreendente é que, enquanto estou como que em catalepsia, tenho consciência desse desprendimento. Exercito-me também no recolhimento, o que me proporciona a agradável visita de Espíritos simpáticos, encarnados e desencarnados. Este último estudo só ocorre durante a noite, pelas duas ou três horas, e quando o corpo, repousado, desperta. Fico alguns instantes à espera, como depois de uma evocação. Então sinto a presença do Espírito por uma impressão física, e logo surge em meu pensamento uma imagem que me faz reconhecê-lo. Estabelece-se a conversa mental, como na comunicação intuitiva, e esse gênero de conversa tem algo de adoravelmente íntimo. Muitas vezes meu irmão e minha irmã, encarnados, me visitam, às vezes acompanhados por meu pai e minha mãe, do mundo dos Espíritos.

“Há bem poucos dias recebi vossa visita, caro mestre, e pela suavidade do fluido que me penetrava, eu julgava que fosse um dos nossos bons protetores celestes; imaginai a minha alegria ao reconhecer, em meu pensamento, ou melhor, no meu cérebro, como que o próprio timbre de vossa voz. Lamennais nos deu uma comunicação a esse respeito e deve encorajar os meus esforços. Eu não poderia dizer-vos do encanto que dá esse gênero de mediunidade. Se tiverdes junto de vós alguns médiuns intuitivos, habituados ao recolhimento e à tensão de espírito, eles podem tentar também. Evoca-se e, em vez de escrever, conversa-se, exprimindo bem as ideias, sem prolixidade.

“Meu guia muitas vezes me fez a observação de que eu tinha um Espírito sofredor, um amigo que vem instruir-se ou buscar consolações. Sim, o Espiritismo é um benefício precioso: abre um vasto campo à caridade, e aquele que está inspirado por bons sentimentos, se não puder vir em socorro de seu irmão materialmente, sempre o pode espiritualmente.”

Esta mediunidade, à qual damos o nome de mediunidade mental, certamente não é adequada para convencer os incrédulos, porque nada tem de ostensivo, nem desses efeitos que ferem os sentidos. É toda para a satisfação íntima de quem a possui. Mas também é preciso reconhecer que se presta muito à ilusão e que é o caso de desconfiar das aparências. Quanto à existência da faculdade, não se poderia duvidar. Pensamos mesmo que deve ser a mais frequente, porque é considerável o número das pessoas que, no estado de vigília, sofrem a influência dos Espíritos e recebem a inspiração de um pensamento que sentem não ser seu. A impressão agradável ou penosa que por vezes se sente à vista de alguém que se encontra pela primeira vez; o pressentimento da aproximação de uma pessoa; a penetração e a transmissão do pensamento, são outros tantos efeitos devidos à mesma causa e que constituem uma espécie de mediunidade, que se pode dizer universal, pois todos possuem pelo os seus rudimentos. Mas, para experimentar seus efeitos marcantes é necessária uma aptidão especial, ou melhor, um grau de sensibilidade mais ou menos desenvolvido, conforme os indivíduos. Sob esse ponto de vista, como temos dito há muito tempo, todos são médiuns, e Deus não deserdou ninguém da preciosa vantagem de receber os salutares eflúvios do mundo espiritual, que se traduzem de mil e uma maneiras diferentes. Mas as variedades que existem no organismo humano não permitem a todos receber efeitos idênticos e ostensivos.

Tendo sido discutida esta questão na Sociedade de Paris, as instruções seguintes foram dadas a respeito, por diversos Espíritos.


I

É possível desenvolver o sentido espiritual, como diariamente se vê desenvolver-se uma aptidão por um trabalho constante. Ora, sabei que a comunicação do mundo incorpóreo com os vossos sentidos é constante: ela se dá a toda hora, a cada minuto, pela lei das relações espirituais. Que os encarnados ousem aqui negar uma lei da própria Natureza!

Acabam de dizer-vos que os Espíritos se veem e se visitam uns aos outros durante o sono: tendes muitas provas. Por que quereríeis que isto não ocorresse em vigília? Os Espíritos não têm noite. Não. Eles estão constantemente ao vosso lado; eles vos vigiam; vossos familiares vos inspiram, vos suscitam pensamentos, vos guiam; eles vos falam e vos exortam; eles protegem os vossos trabalhos, ajudam-vos a elaborar os vossos desígnios formados pela metade e os vossos sonhos ainda vacilantes; anotam vossas boas resoluções; lutam quando lutais. Eles estão aí, esses bons amigos, no fim de vossa encarnação; eles vos riem no berço, vos esclarecem nos estudos; depois se envolvem em todos os atos de vossa passagem aqui na Terra; oram quando vos veem preparando-se para irdes encontrá-los.

Oh! não, jamais negueis vossa assistência diária; jamais negueis vossa mediunidade espiritual, porque blasfemais contra Deus, e seríeis taxados de ingratidão pelos Espíritos que vos amam.

H. DOZON
(Médium: Sr. Delanne.)


II


Sim, esse gênero de comunicação espiritual é mesmo uma mediunidade, como, aliás, tendes ainda outros a constatar no curso de vossos estudos espíritas. É uma espécie de estado cataléptico muito agradável para quem o experimenta. Ele proporciona todas as alegrias da vida espiritual à alma prisioneira, que aí encontra um encanto indefinível, que gostaria de experimentar sempre. Mas é preciso voltar de qualquer modo, e, semelhante ao prisioneiro ao qual permitem tomar ar num prado, a alma entra constrangida na célula humana.

É uma mediunidade muito agradável esta que permite a um Espírito encarnado ver os velhos amigos, poder conversar com eles, comunicar-lhes suas impressões terrenas e poder expandir o coração no seio de amigos discretos que não procuram achar ridículo o que lhes confiais, mas antes vos dar bons conselhos, se vos forem úteis. Esses conselhos, dados assim, têm mais peso para o médium que os recebe, porque o Espírito que lhos dá, a ele se mostrando, deixou uma impressão profunda em seu cérebro, e, por este meio, gravou melhor em seu coração a sinceridade e o valor desses conselhos.

Essa mediunidade existe no estado inconsciente em muitas pessoas. Sabei que há sempre perto de vós um amigo sincero, sempre pronto a sustentar e a encorajar aquele cuja direção lhe é confiada pelo Todo-Poderoso. Não, meus amigos, esse apoio não vos faltará jamais; cabe-vos saber distinguir as boas inspirações entre todas as que se chocam no labirinto de vossas consciências. Sabendo compreender o que vem do vosso guia, não vos podeis afastar do reto caminho que toda alma que aspira à perfeição deve seguir.

Espírito Protetor
(Médium: Sra. Causse).


III

Já vos foi dito que a mediunidade se revelaria por diferentes formas. A que vosso Presidente qualificou de mental está bem definida. É o primeiro degrau da mediunidade vidente e falante.

O médium falante entra em comunicação com os Espíritos que o assistem, fala com eles; seu Espírito os vê, ou melhor, os adivinha; apenas não faz senão transmitir o que lhe dizem, enquanto que o médium mental pode, se for bem formado, dirigir perguntas e receber respostas, sem a intermediação da pena ou do lápis, mais facilmente que o médium intuitivo, porque aqui o Espírito do médium, estando mais desprendido, é um intérprete mais fiel. Mas para isto é necessário um ardente desejo de ser útil, trabalhar com vistas ao bem, com um sentimento puro, isento de todo pensamento de amor-próprio e de interesse. De todas as faculdades mediúnicas é a mais sutil e a mais delicada. O menor sopro impuro basta para manchá-la. É apenas nessas condições que o médium mental obterá provas da realidade das comunicações. Logo vereis surgir entre vós médiuns falantes que vos surpreenderão por sua eloquência e por sua lógica.

Esperai, pioneiros que tendes pressa de ver vossos trabalhos crescerem; novos obreiros virão reforçar vossas fileiras, e este ano verá concluir-se a primeira grande fase do Espiritismo e começar outra não menos importante.

E vós, caro mestre, que Deus abençoe os vossos trabalhos; que ele vos sustente e nos conserve o favor especial que nos concedeu, permitindo-nos guiar-vos e sustentar-vos em vossa tarefa, que é também a nossa.

Como Presidente Espiritual da Sociedade de Paris, velo por ela e por cada membro em particular, e rogo ao Senhor que espalhe sobre vós todas as suas graças e as suas bênçãos.

S. LUÍS
(Médium: Sra. Dellane).


IV


Seguramente, meus amigos, a mediunidade, que consiste em conversar com os Espíritos, como com pessoas que vivem a vida material, desenvolver-se-á mais à medida que o desprendimento do Espírito se efetuar com mais facilidade, pelo hábito do recolhimento. Quanto mais avançados moralmente forem os Espíritos encarnados, maior será essa facilidade das comunicações. Assim como dizeis, ela não será de uma importância muito grande do ponto de vista da convicção a dar aos incrédulos, mas tem para aquele que lhe é objeto uma grande doçura, e o ajuda a desmaterializar-se cada vez mais. O recolhimento, a prece, este impulso da alma junto ao seu Autor, para lhe exprimir seu amor e seu reconhecimento, solicitando ainda o seu socorro, são os dois elementos da vida espiritual; são eles que derramam na alma esse orvalho celeste que ajuda o desenvolvimento das faculdades que aí estão em estado latente. Como são infelizes os que dizem que a prece é inútil porque não modifica os desígnios de Deus! Sem dúvida as leis que regem as diversas ordens de fenômenos não serão perturbadas ao bel-prazer deste ou daquele, mas a prece não tem por efeito senão melhorar o indivíduo que, por esse ato, eleva seu pensamento acima das preocupações materiais, motivo pelo qual ele não deve negligenciá-la.

É pela renovação parcial dos indivíduos que a Sociedade acabará por regenerar-se, e Deus sabe se ela precisa disso!

Ficais revoltados quando pensais nos vícios da sociedade pagã, ao tempo em que o Cristo veio trazer sua reforma humanitária; mas em vossos dias, os vícios, por serem velados sob formas mais marcantes de polidez e de educação, não deixam de existir. Eles não têm magníficos templos, como os da Grécia Antiga, mas ah! Eles os têm no coração da maior parte dos homens e causam entre eles as mesmas devastações que ocasionavam entre os que precederam a era cristã. Não é, pois, sem uma grande utilidade que os Espíritos vieram lembrar os ensinamentos dados há dezoito séculos, porquanto, tendo-os esquecido ou mal compreendido, vós não podeis aproveitá-los e espalhá-los segundo a vontade do divino crucificado.

Agradecei, pois, ao Senhor, vós todos que fostes chamados a cooperar na obra dos Espíritos, e que o vosso desinteresse e vossa caridade jamais enfraqueçam, porque é nisto que se conhecem entre vós os verdadeiros espíritas.


LUÍS DE FRANÇA
(Médium: Sra. Breul).


Noticias bibliográficas

História fantástica, por Théophile Gautier

Na Revista de dezembro último dissemos algumas palavras sobre esse romance, que foi editado em folhetim no Moniteur Universel, e que hoje está publicado em livro. Lamentamos que o espaço não nos permita fazer uma análise minuciosa e, sobretudo, citar algumas passagens cujas ideias são incontestavelmente bebidas na própria fonte do Espiritismo; mas, considerando-se que a maior parte dos nossos leitores certamente já o leu, um relato desenvolvido seria supérfluo. Diremos apenas que a parte concedida ao fantástico é certamente um pouco grande, e que seria preciso não tomar todos os fatos ao pé da letra. É preciso considerar que não se trata de um tratado de Espiritismo. A verdade está no fundo das ideias e pensamentos, que são essencialmente espíritas e apresentados com uma delicadeza e uma graça encantadoras, bem mais do que nos fatos, cuja possibilidade, por vezes, é contestável. Apesar de ser um romance, essa obra não deixa de ter uma grande importância, primeiro pelo nome do autor, e porque é a primeira obra capital oriunda de escritores da imprensa, onde a ideia espírita é categoricamente confirmada, e que aparece no momento em que parecia haver um desmentido lançado na onda de ataques contra essa ideia. A própria forma do romance tinha sua utilidade; certamente era preferível, como transição, à forma doutrinal de aspectos severos. Graças a uma leveza aparente, ele penetrou em toda parte, e com ele, a ideia. Embora Théophile Gautier seja um dos autores favoritos da imprensa, essa foi, contra o costume, de uma sobriedade parcimoniosa a respeito desta última obra. Ela não sabia se devia louvá-lo ou censurá-lo.

Censurar Théophile Gautier, um amigo, um confrade, um escritor amado pelo público; dizer que ele tinha feito uma obra absurda, era uma coisa difícil; elogiar a obra seria exaltar a ideia; guardar silêncio acerca de um nome popular teria sido uma afronta. A forma romanesca afastou o embaraço; permitiu dizer que o autor tinha feito uma bela obra de imaginação, e não de convicção. Falaram, mas falaram pouco. É assim que com a própria incredulidade há acomodações. Notamos uma coisa muito singular: No dia em que a obra apareceu em livro, havia em todos os livreiros cartões com um pequeno anúncio colocado no exterior. Alguns dias depois, todos os anúncios tinham desaparecido. Nos magros e raros noticiários dos jornais, encontramos confissões significativas, sem dúvida saídas por descuido da pena do escritor. No Courrier du Monde Illustré de 16 de dezembro de 1865 lê-se o seguinte:

“É preciso crer que, sem dar-se conta, sem professar a doutrina, sem mesmo ter sondado muito essas insondáveis questões de Espiritismo e sonambulismo, o poeta Théophile Gautier, apenas pela intuição de seu gênio poético, acertou em cheio, fugiu com o dinheiro do caixa e encontrou o abre-te Sésamo das evocações misteriosas, porque o romance que publicou em folhetim no Moniteur, sob o título de Espírita, agitou violentamente todos os que se ocupam dessas perigosas questões. A emoção foi imensa e, para avaliar todo o seu alcance, é preciso percorrer, como o fazemos, os jornais da Europa inteira.

“Toda a Alemanha espírita levantou-se como um só homem, e como todos os que vivem na contemplação de uma ideia só têm olhos e ouvidos para ela, um dos órgãos mais sérios da Áustria pretende que o imperador encomendou a Théophile Gautier esse prodigioso romance, a fim de desviar a atenção da França das questões políticas. Primeira asserção, cujo alcance não exagero. A segunda asserção feriu-me por seu lado fantástico.

“Segundo a folha alemã, o poeta da Comédia da Morte, muito agitado em consequência de uma visão, teria ficado gravemente doente, teria sido levado para Genebra e ali, sob o domínio da febre, teria sido forçado a guardar o leito por várias semanas, vítima de estranhos pesadelos, de alucinações luminosas, joguete constante de Espíritos errantes. Pela manhã teriam encontrado ao pé da cama as folhas esparsas do manuscrito de Espírita.

“Sem atribuir à inspiração que guiou a pena do autor de Avatar uma fonte tão fantástica, cremos firmemente que uma vez envolvido no seu assunto, o escritor de O Romance da Múmia ter-se-ia embriagado com essas visões, e que no paroxismo teria traçado essa descrição admirável do Céu, que é uma de suas mais belas páginas.

“A correspondência que deu origem à publicação de Espírita é extremamente curiosa. Lamentamos que um sentimento de conveniência não nos tenha permitido pedir cópia de uma das cartas recebidas pelo poeta de Esmaltes e Camafeus”

Aqui não fazemos crítica literária, sem o que poderíamos achar de gosto duvidoso a espécie de catálogo que o autor utilizou em seu artigo, que também nos parece pecar um pouco por falta de clareza. Confessamos não haver compreendido a frase da rã ; contudo é citada textualmente. Isto talvez se deva à dificuldade de explicar onde o célebre romancista colheu semelhantes ideias, e como ousou apresentá-las sem rir. Mas o que é mais importante é a confissão da sensação produzida por essa obra na Europa inteira. É preciso convir, pois, que a ideia espírita está bem vivaz e bem difundida; não é, pois, um aborto natimorto. Quantas pessoas são colocadas, por uma penada dos nossos adversários, na categoria dos cretinos e dos idiotas! Felizmente seu julgamento não é definitivo. Os Srs. Jaubert, Bonnamy e muitos outros fazem a apelação da sentença.

O autor qualifica essas questões de perigosas. Mas, segundo ele e os seus confrades de ceticismo, são contos fúteis e ridículos. Ora, o que é que um conto fútil pode ter de perigoso para a Sociedade? De duas, uma: no fundo de tudo isto existe ou não existe algo de sério. Se nada existe, onde está o perigo? Se tivéssemos escutado, no nascedouro, todos os que declararam perigosas a maior parte das grandes verdades que hoje brilham, onde estaríamos com o progresso? A verdade não tem perigo senão para os poltrões, que não ousam encará-la de frente, e para os interesseiros.

Um fato não menos grave, que vários jornais se apressaram em publicar, como se fosse comprovado, é que o imperador teria encomendado esse prodigioso romance, para desviar a atenção da França das questões políticas. Evidentemente não é uma questão de suposição, porque, admitindo a realidade da fonte, não é presumível que a tivessem divulgado. Mas essa mesma suposição é uma confissão da força da ideia espírita, pois reconhecem que um soberano, o maior político de nossos dias, pôde julgá-la apta a produzir semelhante resultado. Se tivesse sido esse o pensamento que presidiu a execução dessa obra, parece-nos que a coisa seria supérflua, porque apareceu exatamente no momento em que os jornais se preocupavam em disputar a primazia da atenção com o barulho que faziam a propósito dos irmãos Davenport.

O que há de mais claro em tudo isto é que os detratores do Espiritismo não conseguem entender a prodigiosa rapidez do progresso da ideia, a despeito de tudo quanto fazem para detê-la. Não podendo negar o fato que dia a dia se toma mais evidente, esbofam-se em procurar a causa em toda parte onde não está, na esperança de atenuar sua importância.

Num artigo intitulado Livros de hoje e de amanhã, assinado por Émile Zola, o Événement de 16 de fevereiro dá um resumo muito exíguo do assunto da obra em questão, acompanhado das seguintes reflexões:

“Há pouco tempo o Moniteur deu uma notícia fantástica de Théophile Gautier: Spirite, que a livraria Charpentier acaba de publicar em livro.

“A obra é para a maior glória dos Davenport; ela nos leva a passeio pelo país dos Espíritos, mostranos o invisível, revela-nos o desconhecido. O Jornal oficial deu os boletins do outro mundo.

“Mas eu desconfio da fé de Théophile Gautier. Ele tem uma bonomia irônica que cheira a incredulidade a uma légua. Eu desconfio que ele entrou no invisível pelo único prazer de descrever, à sua maneira, horizontes imaginários.

“No fundo, ele não acredita numa palavra das histórias que conta, mas gosta de contá-las, e os leitores gostarão de ler. Tudo é, pois, para o melhor, na melhor das incredulidades possíveis.

“Escreva o que escrever, Théophile Gautier é sempre pitoresco e poeta original. Se ele acreditasse no que diz, seria perfeito ─ e isto talvez fosse uma pena.”

Singular confissão, lógica singular e mais singular conclusão! Se Théophile Gautier acreditasse no que diz em Spirite, seria perfeito! Então as doutrinas espíritas conduzem à perfeição aqueles que as assimilam, de onde a consequência que se todos os homens fossem espíritas, todos seriam perfeitos. Um outro teria concluído: “Apressemo-nos em difundir o Espiritismo”... mas, não; seria uma pena!

Quantas pessoas repelem as crenças espíritas, não pelo medo de se tornarem perfeitas, mas simplesmente pelo medo de serem obrigadas a emendar-se! Os Espíritos lhes metem medo porque falam do outro mundo, e esse mundo lhes causa terrores. É por isto que tapam os olhos e os ouvidos.

A mulher do Espírita (Por Ange de Kéraniou)

Sobre esta obra, o Événement de 19 de fevereiro traz o artigo seguinte, assinado por Zola, como o precedente.

“Decididamente, os romancistas curtos de imaginação, nestes tempos de produção incessante, vão dirigir-se ao Espiritismo para encontrar assuntos novos e estranhos. Em meu último artigo, falei de Espírita, de Théophile Gautier; hoje tenho a anunciar o lançamento, pela casa Lemer, de A Mulher do Espírita, por Ange de Kéraniou.

“Talvez o Espiritismo venha a fornecer ao gênio francês o maravilhoso necessário a toda epopeia bem condicionada.

“Os Davenport nos terão assim trazido um dos elementos do poema épico que a literatura francesa ainda espera.

“O livro do Sr. Kéraniou é um pouco difuso; não se sabe se ele faz troça ou se fala sério, mas é cheio de detalhes curiosos que fazem dele uma obra interessante para folhear.

“O Conde Humbert de Luzy, um espírita emérito, uma espécie de anticristo, que faz as mesas dançarem, casou-se com uma jovem a quem inspira muito naturalmente um medo horrível.

“A jovem senhora, era de esperar, quer arranjar um amante. É aqui que a história se torna realmente original. Os Espíritos se constituem em guardas de honra do marido, e, em duas ocasiões, em circunstâncias desesperadoras, salvam essa honra com o auxílio de aparições e tremores de terra. “Se eu fosse casado, tornar-me-ia espírita.”

Decididamente, a ideia espírita faz a sua entrada na imprensa pelo romance. Aí ela entra ornamentada: a verdade nua e crua chocaria esses senhores. Não conhecemos esta nova obra senão pelo artigo acima; então, nada podemos dizer sobre ela. Apenas constataremos que o autor desta crítica enuncia, talvez sem lhe ter visto o alcance, uma grande e fecunda verdade, a de que a literatura e as artes encontrarão no Espiritismo uma rica mina a explorar. Nós dissemos há muito tempo: Um dia haverá a arte espírita, como houve a arte pagã e a arte cristã. Sim, o poeta, o literato, o pintor, o escultor, o músico, o próprio arquiteto haurirão a mancheias, nesta nova fonte, temas de inspiração sublime quando tiverem explorado em outros lugares que não no fundo de um armário. Théophile Gautier foi o primeiro a entrar na liça, por uma obra capital cheia de poesia. Ele terá imitadores, sem a menor dúvida.

“Talvez o Espiritismo vá fornecer os elementos do poema épico que a literatura francesa ainda espera”; já não seria um resultado tão forte para desdenhar. (Vide a Revista Espírita de dezembro de 1860: A Arte Espírita, a Arte Pagã e a Arte Cristã).


Forças naturais desconhecidas

Por Hermès *

Este não é um romance; é uma refutação, do ponto de vista da Ciência, das críticas dirigidas contra os fenômenos espíritas, a propósito dos irmãos Davenport, e da similitude que pretendem estabelecer entre esses fenômenos e os truques de prestidigitação. O autor apresenta o charlatanismo, que desliza em tudo, e as condições desfavoráveis nas quais se apresentaram os Davenport, condições que ele não procura justificar. Examina os próprios fenômenos, com abstração das pessoas, e fala com a autoridade de um cientista. Levanta vigorosamente a luva atirada por uma parte da imprensa nessa circunstância, e estigmatiza suas excentricidades de linguagem, que ele traduz à luz do bom-senso, mostrando até que ponto ela se afastou de uma discussão leal. Podemos não partilhar do sentimento do autor sobre todos os pontos, mas não deixamos de dizer que seu livro é uma refutação difícil de refutar. Assim, a imprensa hostil em geral guardou silêncio sobre o assunto. Contudo, o Événement de 1.º de fevereiro falou dele nestes termos:

“Tenho em mãos um livro que deveria ter sido editado no último outono. Ele trata dos Davenport. Este livro, assinado com pseudônimo de ‘Hermès’, tem por título Forças naturais desconhecidas, e pretende que deveríamos aceitar o armário e os dois irmãos, porque nossos sentidos são débeis e não podemos explicar tudo em a Natureza. Inútil dizer que o livro foi editado pela livraria Didier.

“Eu não falaria destas folhas que se enganam de estação, se elas não contivessem um violento requisitório contra a imprensa parisiense inteira. O Sr. Hermès narra claramente os seus feitos aos redatores do Opinion, do Temps, da France, do Fígaro, do Petit Journal, etc. Eles foram insolentes e cruéis, e sua má-fé só pode ser comparada com a sua tolice. Eles não compreendiam, portanto não deviam falar. Ignorância, falsidade, grosseria, esses jornalistas cometeram todos os crimes.

“O Sr. Hermès é muito duro. Louis Ulbach é chamado ‘o homem de óculos’, injúria extremamente ultrajante. Edmond About, que havia perguntado qual a diferença entre os médiuns e o Dr. Lapommerais, recebe o troco largamente. O Sr. Hermès declara que ‘ele não se admira que certos amadores de trocadilhos tenham jogado na lama o nome de seu gracioso contraditor’. Sentis toda a delicadeza desse jogo de palavras?

“O Sr. Hermès acaba confessando que vive num jardim retirado e que só se preocupa com a verdade.

Seria preferível que vivesse na rua e que tivesse toda a calma e toda a caridade cristã da solidão.”

Não é curioso ver esses senhores darem lições teóricas de calma e de caridade cristã àqueles a quem injuriam gratuitamente, e não concordar que lhes respondam? Entretanto, não censurarão o Sr. Hermès por falta de moderação, porque, por excesso de consideração, ele não cita nenhum nome próprio. É verdade que as citações, assim agrupadas, formam um buquê muito pouco gracioso. De quem a falta se esse buquê não exala um perfume de urbanidade e de bom gosto? Para ter o direito de se queixar de algumas apreciações um pouco severas, seria preciso não provocá-las.

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* Broch. In-18. Pr.: l fr. Livraria Didier.

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