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Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866 > Agosto
Agosto
Maomé e o Islamismo
Há, por vezes, sobre os homens e sobre as coisas, opiniões nas quais acreditamos e que passam ao estado de coisas aceitas, por mais errôneas que sejam, porque achamos mais cômodo aceitá-las prontas e acabadas. Assim é com Maomé e sua religião, da qual se conhece quase só o lado legendário. O antagonismo das crenças, quer por espírito de partido, quer por ignorância, houve por bem fazer ressaltar os pontos mais acessíveis à crítica, muitas vezes e de propósito deixando na sombra as partes favoráveis. Quanto ao público imparcial e desinteressado, é preciso dizer em seu favor que faltaram elementos necessários para julgar por ele mesmo. As obras que poderiam tê-lo esclarecido, escritas numa língua apenas conhecida de raros cientistas, eram-lhe inacessíveis; e como, em definitivo, não havia para ele nenhum interesse direto, ele acreditou sob palavra naquilo que lhe disseram, sem perguntar mais. Disto resultou que sobre o fundador do Islamismo se fizeram ideias muitas vezes falsas ou ridículas, baseadas em preconceitos que não encontravam nenhuma contestação na discussão.
Os trabalhos perseverantes e conscienciosos de alguns sábios orientalistas modernos, tais como Caussin de Perceval, na França, o Dr. W. Muir, na Inglaterra, G. Weil e Sprenger, na Alemanha, hoje permitem encarar a questão sob seu verdadeiro prisma[1]. Graças a eles, Maomé nos aparece completamente diverso dos contos populares. O lugar considerável que sua religião ocupa na Humanidade e sua influência política hoje fazem desse estudo uma necessidade. A diversidade das religiões foi durante muito tempo uma das principais causas de antagonismo entre os povos. No momento em que elas têm uma tendência manifesta para aproximar-se, para fazer desaparecerem as barreiras que as separam, é útil conhecer o que, em suas crenças, pode favorecer ou retardar a aplicação do grande princípio da fraternidade universal. De todas as religiões, o Islamismo é a que, à primeira vista, parece encerrar maiores obstáculos a essa aproximação. Deste ponto de vista, como se vê, este assunto não poderia ser indiferente aos espíritas, e é esta a razão pela qual julgamos dever tratá-lo aqui.
Sempre julgamos mal uma religião quando tomamos por ponto de partida exclusivo suas crenças pessoais, porque então é difícil nos alhearmos de um sentimento de parcialidade na apreciação dos princípios. Para compreender o seu ponto forte e o fraco, é preciso vê-la de um ponto de vista mais elevado; abarcar o conjunto de suas causas e efeitos. Se nos reportarmos ao meio onde ela surgiu, aí encontraremos, quase sempre, senão uma justificativa completa, pelo menos uma razão de ser. É necessário, sobretudo, penetrar-se do primeiro pensamento do fundador e dos motivos que o guiaram. Longe de nós a intenção de absolver Maomé de todos os seus erros, bem como sua religião de todos os erros que ferem o mais vulgar bom-senso. Contudo, a bem da verdade devemos dizer que também seria tão pouco lógico julgar essa religião conforme o que dela fez o fanatismo, quanto o seria julgar o Cristianismo segundo a maneira pela qual alguns cristãos o praticam. É bem certo que, se os muçulmanos seguissem em espírito o Alcorão que o Profeta lhes deu por guia, eles seriam, sob muitos aspectos, muito diferentes do que são. Entretanto, esse livro, tão sagrado para eles que só o tocam com respeito, leem-no e o releem sem cessar; os fervorosos até o sabem de cor. Mas quantos o compreendem? Comentam-no, mas do ponto de vista de ideias preconcebidas, de cujo afastamento fariam um caso de consciência. Aí não veem, pois, senão o que querem ver. Aliás, a linguagem figurada permite aí encontrar tudo o que se quer, e os sacerdotes que, lá como alhures, governam pela fé cega, não buscam ali descobrir o que pudesse contrariá-los. Não é, pois, junto aos doutores da lei que se deve inquirir do espírito da lei de Maomé. Os cristãos também têm o Evangelho, muito mais explícito que o Alcorão, como código de moral, o que não impede que em nome desse mesmo Evangelho, que manda amar até os inimigos, tenham torturado e queimado milhares de vítimas, e que de uma lei toda de caridade tenham feito uma arma de intolerância e perseguição. Podemos exigir que povos ainda meio bárbaros façam uma interpretação mais sã de suas Escrituras do que o fazem os cristãos civilizados?
Para apreciar a obra de Maomé é preciso remontar à fonte, conhecer o homem e o povo ao qual ele se havia imposto a missão de regenerar, e só então compreenderemos que, para o meio onde ele vivia, seu código religioso era um progresso real.
Lancemos, inicialmente, um golpe de vista sobre a região.
Em época imemorial, a Arábia era povoada por diversas tribos, quase todas nômades, e perpetuamente em guerra umas contra as outras, suplementando pela pilhagem a pouca riqueza que proporcionava um trabalho penoso, sob um clima causticante. Os rebanhos eram sua principal fonte de recursos; algumas se dedicavam ao comércio, que era feito por caravanas partindo anualmente do Sul, para irem à Síria ou à Mesopotâmia. Sendo quase inacessível o centro da península, as caravanas pouco se afastavam das bordas do mar; as principais seguiam o Hidjaz, região que forma, nas margens do Mar Vermelho, uma faixa estreita, na extensão de quinhentas léguas, separada do centro por uma cadeia de montanhas, prolongamento das da Palestina. A palavra árabe hidjaz significa barreira, e se dizia da cadeia de montanhas que borda essa região e a separa do resto da Arábia. O Hidjaz e o Yemen, ao sul, são as partes mais férteis; o centro quase que não passa de um vasto deserto.
Essas tribos haviam estabelecido mercados para onde eles convergiam de todas as partes da Arábia. Ali se regulavam os negócios comuns; as tribos inimigas trocavam os seus prisioneiros de guerra, e muitas vezes resolviam as suas divergências por arbitragem. Coisa singular, essas populações, inteiramente bárbaras que eram, apaixonavam-se pela poesia. Nesses lugares de reunião, durante os intervalos de lazer deixados pelo cuidado dos negócios, havia desafios entre os poetas mais hábeis de cada tribo. O concurso era julgado pelos assistentes e era para uma tribo uma grande honra conquistar a vitória. As poesias de mérito excepcional eram transcritas em letras de ouro e pregadas nos muros sagrados da Caaba, em Meca, onde lhes veio o nome de Moudhahabat, ou poemas dourados.
Como para ir a esses mercados anuais e voltar com segurança era preciso certo tempo, havia quatro meses do ano em que os combates eram interditos e nos quais não era permitido perturbar as caravanas e os viajantes. Combater durante esses meses reservados era visto como um sacrilégio, que provocava as mais terríveis represálias.
Os pontos de estação das caravanas, que paravam nos lugares onde encontravam água e árvores tornaram-se centros onde pouco a pouco formaram-se cidades, das quais as duas principais, no Hidjaz, são Meca e Yathrib, hoje Medina.
A maior parte dessas tribos consideravam-se descendentes de Abraão. Assim, esse patriarca era tido em grande honra entre eles. Sua língua, pelas semelhanças com o hebraico, realmente atestava uma identidade de origem entre o povo árabe e o povo judeu. Mas não parece menos certo que o sul da Arábia tenha tido seus habitantes indígenas.
Entre essas populações havia uma crença, tida como certa, de que a famosa fonte de Zemzem, no vale do Meca, era a que tinha feito jorrar o anjo Gabriel, quando Agar, perdida no deserto, ia morrer de sede com o seu filho Ismael. A tradição dizia igualmente que Abraão, tendo vindo ver seu filho exilado, tinha construído com suas próprias mãos, não longe dessa fonte, a Caaba, casa quadrada de nove côvados[2] de altura por trinta e dois de comprimento e vinte e dois de largura. Essa casa, religiosamente conservada, tornou-se um lugar de grande devoção, que era um dever visitar, e foi transformada em templo. As caravanas aí paravam naturalmente e os peregrinos aproveitavam a companhia para viajar com mais segurança. É assim que as peregrinações a Meca existiram desde tempos imemoriais. Maomé nada mais fez que consagrar e tornar obrigatório um costume estabelecido. Para tanto teve um objetivo político, que veremos mais adiante.
Num dos ângulos externos do templo estava incrustada a famosa pedra negra, trazida dos céus, ao que se diz, pelo anjo Gabriel, para marcar o ponto onde deviam começar os giros que os peregrinos deviam fazer sete vezes em redor da Caaba. Dizem que originalmente essa pedra era de uma brancura deslumbrante, mas que o toque dos pecadores a enegreceu. No dizer dos viajantes que a viram, ela não tem mais de seis polegadas de altura por oito de comprimento. Pareceria um simples pedaço de basalto, ou talvez um aerólito, o que explicaria a sua origem celeste, segundo as crenças populares.
Construída por Abraão, a Caaba não tinha porta que a fechasse e era ao nível do solo. Destruída por uma torrente que irrompeu pelo ano 150 da era cristã, foi reconstruída e elevada acima do solo, para pô-la ao abrigo de semelhantes acidentes. Cerca de cinquenta anos mais tarde, um chefe de tribo do Yemen aí pôs uma cobertura de estofos preciosos e mandou colocar uma porta com fechadura para pôr em segurança os presentes preciosos acumulados incessantemente pela piedade dos peregrinos.
A veneração dos árabes pela Caaba e pelo território que a circundava era tão grande que eles não tinham ousado aí construir habitações. Essa área tão respeitada, chamada o Haram, compreendia todo o vale do Meca, cuja circunferência é de cerca de quinze léguas. A honra de guardar esse templo venerado era muito cobiçada; as tribos a disputavam e o mais das vezes essa atribuição era direito de conquista. No século quinto, Cossayy, chefe da tribo dos coraicitas, quinto antepassado de Maomé, tendo-se tornado senhor do Haram e tendo sido investido do poder civil e religioso, mandou construir um palácio ao lado da Caaba e permitiu que os de sua tribo aí se estabelecessem. Assim foi fundada a cidade de Meca. Parece que ele foi o primeiro que colocou uma cobertura de madeira na Caaba. A Caaba está hoje na área de uma mesquita, e Meca é uma cidade de cerca de quarenta mil habitantes, depois de ter tido, ao que se diz, cem mil.
No princípio, a religião dos árabes consistia na adoração de um Deus único, a cujas vontades o homem deve ser completamente submisso. Essa religião, que era a de Abraão, chamava-se Islã e os que a professavam diziam-se muçulmanos, isto é, submetidos à vontade de Deus. Mas, pouco a pouco, o puro Islã degenerou em grosseira idolatria; cada tribo tinha os seus deuses e os seus ídolos, que defendia obstinadamente pelas armas, para provar a superioridade de seu poder. Muitas vezes foram essas as causas ou pretextos de guerras longas e encarniçadas.
A fé de Abraão havia, pois, desaparecido entre esses povos, malgrado o respeito que conservavam por sua memória, ou pelo menos tinha sido de tal modo desfigurada que em realidade não mais existia. A veneração pelos objetos considerados sagrados tinha descido ao mais absurdo fetichismo; o culto da matéria tinha substituído o do espírito. Atribuía-se um poder sobrenatural aos mais vulgares objetos consagrados pela superstição, a uma imagem, a uma estátua. Tendo o pensamento abandonado o princípio pelo seu símbolo, a piedade não passava de uma série de práticas exteriores minuciosas, nas quais a menor infração era olhada como um sacrilégio.
Contudo, ainda se encontravam, em certas tribos, alguns adoradores do Deus único, homens piedosos que praticavam a mais inteira submissão à sua vontade suprema e condenavam o culto aos ídolos. Eles eram chamados de hanyfes. Eram os verdadeiros muçulmanos, os que tinham conservado a fé pura do Islã. Mas eles eram pouco numerosos e sem influência sobre o espírito das massas. Há muito tempo colônias judias se haviam estabelecido no Hidjaz e haviam conquistado um certo número de prosélitos ao Judaísmo, principalmente entre os hanyfes. O Cristianismo também aí teve os seus representantes e propagadores nos primeiros séculos de nossa era, mas nem uma nem outra dessas crenças aí lançaram raízes profundas e duráveis. A idolatria tinha-se transformado em religião dominante. Ela convinha melhor, por sua diversidade, à independência turbulenta e à divisão infinita das tribos, que a praticavam com o mais violento fanatismo. Para triunfar dessa anarquia religiosa e política, era preciso um homem de gênio, capaz de se impor por sua energia e firmeza, bastante hábil para partilhar dos costumes e do caráter desses povos, e cuja missão fosse exaltada aos seus olhos pelo prestígio de suas qualidades de profeta. Esse homem foi Maomé.
Maomé nasceu em Meca a 27 de agosto do ano 570 da era cristã, no ano dito do elefante. Não era, como pensam vulgarmente, um homem de condição obscura. Ao contrário, ele pertencia a uma família poderosa e considerada, da tribo dos coraicitas, uma das mais importantes da Arábia, que então dominava em Meca. Fazem-no descender em linha reta de Ismael, filho de Abraão e de Agar. Seus últimos antepassados, Cossayy, Abd-Menab, Hachim e Abd-el-Moutalib, seu avô, se haviam ilustrado por eminentes qualidades e altas funções que tinham desempenhado. Sua mãe, Amina, era de nobre família coraicita e descendia também de Cossayy. Seu pai Abd-Allah morreu dois meses antes de seu nascimento; assim, ele foi criado com muita ternura por sua mãe, que o deixou órfão com a idade de seis anos; depois por seu avô Abd-el-Moutalib, que o queria muito e se comprazia muitas vezes em lhe predizer altos destinos, mas que, ele próprio, morreu dois anos depois.
A despeito da posição que tinha ocupado sua família, Maomé passou sua infância e sua juventude numa situação bem próxima da miséria; sua mãe lhe havia deixado por única herança um rebanho de carneiros, cinco camelos e uma fiel escrava negra, que havia cuidado dele, e pela qual ele conservou sempre um vivo apego. Depois da morte de seu avô, ele foi recolhido pelos tios, cujos rebanhos pastoreou até a idade de vinte anos; ele os acompanhava inclusive em suas expedições guerreiras contra as outras tribos; mas, sendo de humor suave e pacífico, nelas não tomava parte ativa, sem contudo fugir ou temer o perigo, limitando-se a ir apanhar suas flechas. Quando ele chegou ao topo da glória, gostava de lembrar que Moisés e David, ambos profetas, tinham sido pastores, como ele.
Tinha o espírito meditativo e sonhador; seu caráter, de uma solidez e de uma maturidade precoces, a par de uma extrema direitura, de um perfeito desinteresse e de costumes irreprocháveis, lhe valeram uma tal confiança da parte de seus companheiros que o designavam pela alcunha de El-Amin, “o homem seguro, o homem fiel”. Embora jovem e pobre, convocavam-no às assembleias da tribo para os negócios mais importantes. Ele fazia parte de uma associação formada entre as principais famílias coraicitas, com vistas a prevenir as desordens da guerra, a proteger os fracos e a lhes fazer justiça. Considerava sempre uma glória ter concorrido para isto, e, nos últimos anos de sua vida, sempre se via ligado pelo juramento que neste sentido havia prestado na mocidade. Dizia que estava sempre pronto a responder ao apelo que lhe fizesse o homem mais obscuro em nome desse juramento, e que não queria, pelos mais belos camelos da Arábia, faltar à fé que ele havia jurado. Por esse juramento, os associados juravam ante uma divindade vingadora, que eles tomariam a defesa dos oprimidos e perseguiriam a punição dos culpados enquanto houvesse uma gota d’água no oceano.
Fisicamente, Maomé era de estatura pouco acima da média, fortemente constituído; a cabeça muito grande; sua fisionomia, sem ser bela, era agradável e respirava calma e tranquilidade e era marcada por uma suave gravidade.
Aos vinte e cinco anos de idade, casou-se com sua prima Khadidja, viúva rica, mais velha do que ele pelo menos quinze anos, da qual ele havia conquistado a confiança, pela inteligente probidade que ele havia desenvolvido na condução de uma de suas caravanas. Era uma mulher superior. Essa união, que durou vinte e quatro anos e que só terminou pela morte de Khadidja, aos sessenta e quatro anos de idade, foi constantemente feliz. Maomé tinha então quarenta e nove anos e essa perda lhe causou uma dor profunda.
Depois da morte de Khadidja, seus costumes mudaram. Desposou várias mulheres; teve doze ou treze em casamentos legítimos, e ao morrer deixou nove viúvas. Incontestavelmente isto foi um erro capital, cujas lamentáveis consequências veremos mais tarde.
Até os quarenta anos sua vida pacífica nada oferece de saliente. Só um fato o tirou um instante da obscuridade. Ele tinha, então, trinta e cinco anos. Os coraicitas resolveram reconstruir a Caaba, que ameaçava ruir. Só com muito trabalho apaziguaram, pela divisão dos trabalhos, as diferenças suscitadas pela rivalidade das famílias que aí queriam participar. Esses conflitos reapareceram com extrema violência quando se tratou de recolocar a famosa pedra negra. Ninguém queria ceder seu direito. Os trabalhos tinham sido interrompidos e de todos os lados corriam às armas. Por proposta do decano, concordaram em aceitar a decisão da primeira pessoa que entrasse na sala das deliberações: foi Maomé. Quando o viram, todos gritaram: “El-amin! El-amin! o homem firme e fiel”, e aguardaram o seu julgamento. Por sua presença de espírito, ele resolveu a dificuldade. Tendo estendido seu manto no chão, nele pôs a pedra e pediu a quatro dos principais chefes facciosos que o tomassem, cada um por uma ponta, e o levantassem, todos juntos, à altura que a pedra deveria ocupar, isto é, a quatro ou cinco pés acima do solo. Então tomou-a e a colocou com suas próprias mãos. Os assistentes se declararam satisfeitos e a paz foi restabelecida.
Maomé gostava de passear sozinho nos arredores de Meca, e todos os anos, durante os meses sagrados de trégua, retirava-se para o monte Hira, numa gruta estreita, onde se entregava à meditação. Ele estava com quarenta anos quando, num de seus retiros, teve uma visão durante o sono. O anjo Gabriel lhe apareceu, mostrando-lhe um livro que o aconselhou a ler. Três vezes Maomé resistiu a essa ordem, e só para escapar ao constrangimento exercido sobre ele é que consentiu em ler. Ao despertar disse ter sentido “que um livro tinha sido escrito em seu coração”. O sentido desta expressão é evidente. Significa que havia tido a inspiração de um livro. Mais tarde, porém, ela foi tomada ao pé da letra, como geralmente acontece com as coisas ditas em linguagem figurada.
Um outro fato prova a que erros de interpretação podem conduzir a ignorância e o fanatismo. Diz Maomé, em algum lugar, no Alcorão: “Nós não abrimos teu coração e não tiramos o fardo de teus ombros?” Estas palavras, relacionadas com um acidente ocorrido com Maomé quando ela era ainda garoto, deram lugar à fábula, propagada entre os crentes e ensinada pelos sacerdotes como um fato miraculoso, de que dois anjos abriram o ventre do menino e tiraram de seu coração uma mancha negra, sinal do pecado original. Deve-se acusar Maomé por esses absurdos, ou aqueles que não o compreenderam? Dá-se o mesmo com uma porção de histórias ridículas sobre as quais o acusam de haver apoiado sua religião. É por isso que não hesitamos em dizer que um cristão esclarecido e imparcial está em melhores condições de fazer uma interpretação sadia do Alcorão do que um muçulmano fanático.
Seja como for, Maomé foi profundamente perturbado em sua visão, que se apressou em contar à sua mulher. Tendo voltado ao monte Hira, presa da mais viva agitação, julgou-se possuído por Espíritos malignos e, para escapar do mal que temia, ia precipitar-se do alto de um rochedo, quando uma voz, partida do céu, se fez ouvir e lhe disse: “Ó Maomé! Tu és o enviado de Deus; eu sou o anjo Gabriel!” Então, levantando os olhos, viu o anjo sob forma humana, que desapareceu pouco a pouco no horizonte. Essa nova visão apenas aumentou a sua perturbação. Comunicou-a a Khadidja, que se esforçou por acalmá-lo; mas, pouco segura de si mesma, foi procurar seu primo Varaka, velho famoso por sua sabedoria e convertido ao Cristianismo, que lhe disse: “Se o que acabas de dizer-me é verdade, teu marido foi visitado pelo grande Nâmous, que outrora visitou Moisés, e ele será profeta deste povo. Anuncia-lho, e que ele se tranquilize.” Algum tempo depois, Varaka, tendo encontrado Maomé, fê-lo contar suas visões e lhe repetiu as palavras que havia dito à sua mulher, acrescentando: “Tratar-te-ão como impostor e te expulsarão; combater-te-ão violentamente. Que eu possa viver até essa hora para te assistir nessa luta!”
O que resulta destes fatos e de muitos outros é que a missão de Maomé não foi um cálculo premeditado de sua parte; ela foi confirmada por outros, antes de ser confirmado por ele. Ele custou muito a persuadir-se, mas a partir de quando ficou persuadido, tomou-a muito a sério. Para convencer-se, ele desejava uma nova aparição do anjo, que, segundo uns, demorou dois anos, segundo outros, seis meses. É a esse intervalo de incerteza e de hesitação que os muçulmanos chamam de fitreh. Durante todo esse tempo seu espírito foi presa de perplexidade e dos mais vivos temores. Parecia-lhe que ia perder a razão e esta era também a opinião de alguns daqueles que o rodeavam. Ele era sujeito a desfalecimentos e síncopes que os escritores modernos atribuíram, sem outras provas além de sua opinião pessoal, a ataques de epilepsia, que poderiam antes ser o efeito de um estado extático, cataléptico ou sonambúlico espontâneo. Nesses momentos de lucidez extracorpórea, muitas vezes se produziam, como se sabe, fenômenos estranhos, dos quais o Espiritismo se dá conta perfeitamente. Aos olhos de certas pessoas, ele deveria passar por louco; outros viam nesses fenômenos, para si singulares, algo de sobrenatural que colocava o homem acima da Humanidade. Diz o Sr. Barthélemy Sainte-Hilaire que “Quando se admite a ação da Providência nos negócios humanos, não se pode deixar de vê-la também nessas inteligências dominadoras que surgem de tempos em tempos para esclarecer e conduzir o resto dos homens
O Alcorão não é uma obra escrita por Maomé com a cabeça fria e de maneira continuada, mas o registro feito por seus amigos das palavras que ele pronunciava quando estava inspirado. Nesses momentos, dos quais não era senhor, ele caía num estado extraordinário e muito apavorante; o suor corria-lhe da fronte; os olhos tornavam-se vermelhos de sangue; ele soltava gemidos e a crise terminava, o mais das vezes, por uma síncope que durava mais ou menos tempo, o que por vezes lhe acontecia em meio à multidão, e mesmo quando montado em seu camelo, tanto quanto em casa. A inspiração era irregular e instantânea, e ele não podia prever o momento em que seria tomado.
Segundo o que hoje conhecemos desse estado, por uma porção de exemplos análogos, é provável que, sobretudo no princípio, ele não tivesse consciência do que dizia, e que se suas palavras não tivessem sido recolhidas, teriam ficado perdidas. Mais tarde, porém, quando ele tomou a sério o seu papel de reformador, é evidente que ele tenha falado com mais conhecimento de causa e tenha mesclado às inspirações o produto de seus próprios pensamentos, conforme os lugares e as circunstâncias, as paixões ou os sentimentos que o agitavam, em vista do objetivo que queria atingir, acreditando, talvez de boa-fé, falar em nome de Deus.
Esses fragmentos avulsos, recolhidos em diversas épocas, em número de 114, formam no Alcorão os capítulos chamados suratas. Eles ficaram esparsos durante sua vida, e só após a sua morte foram reunidos num corpo oficial de doutrina, pelos cuidados de Abu-Becr e de Omar. Dessas inspirações súbitas, recolhidas à medida que ocorriam, resultou uma falta absoluta de ordem e de método. Os assuntos mais díspares são aí tratados sem nenhuma ordem, por vezes na mesma surata, e apresentam tamanha confusão e tão numerosas repetições que uma leitura sequencial é penosa e fastidiosa para quem quer que não seja um fiel.
Segundo a crença vulgar, tornada artigo de fé, as páginas do Alcorão foram escritas no Céu e trazidas prontas e acabadas a Maomé pelo anjo Gabriel, porque numa passagem está escrito que: “Teu Senhor é misericordioso e poderoso, e o Alcorão é uma revelação do senhor do Universo. O Espírito fiel (o anjo Gabriel) o trouxe do alto e depositou-o em teu coração, ó Maomé, para que fosses apóstolo.” Maomé se exprime da mesma maneira a respeito do livro de Moisés e do Evangelho. Ele diz, na surata III, versículo 2: “Ele fez descer do alto o Pentateuco e o Evangelho, para servir de direção aos homens”, querendo dizer com isto que esses dois livros tinham sido inspirados por Deus a Moisés e a Jesus, como lhe havia sido inspirado o Alcorão.
Suas primeiras prédicas foram secretas durante dois anos, e nesse intervalo ele se ligou a uns cinquenta adeptos, entre os membros de sua família e seus amigos. Os primeiros convertidos à nova fé foram Khadidja, sua mulher; Ali, seu filho adotivo, de dez anos; Zeïd, Varaka e Abu-Becr, seu mais íntimo amigo, que devia ser o seu sucessor. Ele tinha quarenta e três anos quando começou a pregar publicamente, e a partir desse momento realizou-se a predição que lhe havia feito Varaka. Sua religião, fundada na unidade de Deus e na reforma de certos abusos, sendo a ruína da idolatria e dos que dela viviam, os coraicitas, guardas da Caaba e do culto nacional, levantaram-se contra ele. A princípio o trataram de louco; depois o acusaram de sacrilégio; amotinaram o povo. Perseguiram-no, e a perseguição tornou-se tão violenta que por duas vezes seus partidários tiveram que buscar refúgio na Abissínia. Entretanto, aos ultrajes ele sempre opunha a calma, o sangue-frio e a moderação. Sua seita crescia e seus adversários, vendo que não podiam reduzi-la pela força, resolveram desacreditá-la pela calúnia. A troça e o ridículo não lhe foram poupados. Como se viu, os poetas eram numerosos entre os árabes; eles manejavam a sátira habilmente e seus versos eram lidos com avidez. Era o meio empregado pela crítica malévola, que não deixavam de empregá-la contra ele. Como ele resistisse a tudo, seus inimigos finalmente recorreram aos conluios para matá-lo, e ele só escapou pela fuga do perigo que o ameaçava. Foi então que se refugiou em Yathrib, depois chamada Medina (Medinet-en-Nabi, cidade do Profeta), em 622, e é dessa época que data a Hégira, ou era dos muçulmanos. Ele tinha mandado antecipadamente a essa cidade, em pequenas tropas, para não levantar suspeitas, todos os seus partidários de Meca, e ele foi o último a se retirar, com Abu-Becr e Ali, seus discípulos mais devotados, quando soube que os outros estavam em segurança.
Nessa época inicia-se, para Maomé, uma nova fase em sua existência. De simples profeta que era, ele foi constrangido a tornar-se guerreiro.
(Continua no próximo número).
[1] O Sr. Barthélemy Saint-Hilaire, do Instituto, resumiu esses trabalhos numa interessante obra intitulada Mahomet et le Coran. l volume in-12. Preço 3,50 francos. Livraria Didier.
[2] O côvado equivale a cerca de 45 centímetros. É uma medida natural das mais antigas, que tinha por base a distância entre o cotovelo e a ponta dos dedos.
Os trabalhos perseverantes e conscienciosos de alguns sábios orientalistas modernos, tais como Caussin de Perceval, na França, o Dr. W. Muir, na Inglaterra, G. Weil e Sprenger, na Alemanha, hoje permitem encarar a questão sob seu verdadeiro prisma[1]. Graças a eles, Maomé nos aparece completamente diverso dos contos populares. O lugar considerável que sua religião ocupa na Humanidade e sua influência política hoje fazem desse estudo uma necessidade. A diversidade das religiões foi durante muito tempo uma das principais causas de antagonismo entre os povos. No momento em que elas têm uma tendência manifesta para aproximar-se, para fazer desaparecerem as barreiras que as separam, é útil conhecer o que, em suas crenças, pode favorecer ou retardar a aplicação do grande princípio da fraternidade universal. De todas as religiões, o Islamismo é a que, à primeira vista, parece encerrar maiores obstáculos a essa aproximação. Deste ponto de vista, como se vê, este assunto não poderia ser indiferente aos espíritas, e é esta a razão pela qual julgamos dever tratá-lo aqui.
Sempre julgamos mal uma religião quando tomamos por ponto de partida exclusivo suas crenças pessoais, porque então é difícil nos alhearmos de um sentimento de parcialidade na apreciação dos princípios. Para compreender o seu ponto forte e o fraco, é preciso vê-la de um ponto de vista mais elevado; abarcar o conjunto de suas causas e efeitos. Se nos reportarmos ao meio onde ela surgiu, aí encontraremos, quase sempre, senão uma justificativa completa, pelo menos uma razão de ser. É necessário, sobretudo, penetrar-se do primeiro pensamento do fundador e dos motivos que o guiaram. Longe de nós a intenção de absolver Maomé de todos os seus erros, bem como sua religião de todos os erros que ferem o mais vulgar bom-senso. Contudo, a bem da verdade devemos dizer que também seria tão pouco lógico julgar essa religião conforme o que dela fez o fanatismo, quanto o seria julgar o Cristianismo segundo a maneira pela qual alguns cristãos o praticam. É bem certo que, se os muçulmanos seguissem em espírito o Alcorão que o Profeta lhes deu por guia, eles seriam, sob muitos aspectos, muito diferentes do que são. Entretanto, esse livro, tão sagrado para eles que só o tocam com respeito, leem-no e o releem sem cessar; os fervorosos até o sabem de cor. Mas quantos o compreendem? Comentam-no, mas do ponto de vista de ideias preconcebidas, de cujo afastamento fariam um caso de consciência. Aí não veem, pois, senão o que querem ver. Aliás, a linguagem figurada permite aí encontrar tudo o que se quer, e os sacerdotes que, lá como alhures, governam pela fé cega, não buscam ali descobrir o que pudesse contrariá-los. Não é, pois, junto aos doutores da lei que se deve inquirir do espírito da lei de Maomé. Os cristãos também têm o Evangelho, muito mais explícito que o Alcorão, como código de moral, o que não impede que em nome desse mesmo Evangelho, que manda amar até os inimigos, tenham torturado e queimado milhares de vítimas, e que de uma lei toda de caridade tenham feito uma arma de intolerância e perseguição. Podemos exigir que povos ainda meio bárbaros façam uma interpretação mais sã de suas Escrituras do que o fazem os cristãos civilizados?
Para apreciar a obra de Maomé é preciso remontar à fonte, conhecer o homem e o povo ao qual ele se havia imposto a missão de regenerar, e só então compreenderemos que, para o meio onde ele vivia, seu código religioso era um progresso real.
Lancemos, inicialmente, um golpe de vista sobre a região.
Em época imemorial, a Arábia era povoada por diversas tribos, quase todas nômades, e perpetuamente em guerra umas contra as outras, suplementando pela pilhagem a pouca riqueza que proporcionava um trabalho penoso, sob um clima causticante. Os rebanhos eram sua principal fonte de recursos; algumas se dedicavam ao comércio, que era feito por caravanas partindo anualmente do Sul, para irem à Síria ou à Mesopotâmia. Sendo quase inacessível o centro da península, as caravanas pouco se afastavam das bordas do mar; as principais seguiam o Hidjaz, região que forma, nas margens do Mar Vermelho, uma faixa estreita, na extensão de quinhentas léguas, separada do centro por uma cadeia de montanhas, prolongamento das da Palestina. A palavra árabe hidjaz significa barreira, e se dizia da cadeia de montanhas que borda essa região e a separa do resto da Arábia. O Hidjaz e o Yemen, ao sul, são as partes mais férteis; o centro quase que não passa de um vasto deserto.
Essas tribos haviam estabelecido mercados para onde eles convergiam de todas as partes da Arábia. Ali se regulavam os negócios comuns; as tribos inimigas trocavam os seus prisioneiros de guerra, e muitas vezes resolviam as suas divergências por arbitragem. Coisa singular, essas populações, inteiramente bárbaras que eram, apaixonavam-se pela poesia. Nesses lugares de reunião, durante os intervalos de lazer deixados pelo cuidado dos negócios, havia desafios entre os poetas mais hábeis de cada tribo. O concurso era julgado pelos assistentes e era para uma tribo uma grande honra conquistar a vitória. As poesias de mérito excepcional eram transcritas em letras de ouro e pregadas nos muros sagrados da Caaba, em Meca, onde lhes veio o nome de Moudhahabat, ou poemas dourados.
Como para ir a esses mercados anuais e voltar com segurança era preciso certo tempo, havia quatro meses do ano em que os combates eram interditos e nos quais não era permitido perturbar as caravanas e os viajantes. Combater durante esses meses reservados era visto como um sacrilégio, que provocava as mais terríveis represálias.
Os pontos de estação das caravanas, que paravam nos lugares onde encontravam água e árvores tornaram-se centros onde pouco a pouco formaram-se cidades, das quais as duas principais, no Hidjaz, são Meca e Yathrib, hoje Medina.
A maior parte dessas tribos consideravam-se descendentes de Abraão. Assim, esse patriarca era tido em grande honra entre eles. Sua língua, pelas semelhanças com o hebraico, realmente atestava uma identidade de origem entre o povo árabe e o povo judeu. Mas não parece menos certo que o sul da Arábia tenha tido seus habitantes indígenas.
Entre essas populações havia uma crença, tida como certa, de que a famosa fonte de Zemzem, no vale do Meca, era a que tinha feito jorrar o anjo Gabriel, quando Agar, perdida no deserto, ia morrer de sede com o seu filho Ismael. A tradição dizia igualmente que Abraão, tendo vindo ver seu filho exilado, tinha construído com suas próprias mãos, não longe dessa fonte, a Caaba, casa quadrada de nove côvados[2] de altura por trinta e dois de comprimento e vinte e dois de largura. Essa casa, religiosamente conservada, tornou-se um lugar de grande devoção, que era um dever visitar, e foi transformada em templo. As caravanas aí paravam naturalmente e os peregrinos aproveitavam a companhia para viajar com mais segurança. É assim que as peregrinações a Meca existiram desde tempos imemoriais. Maomé nada mais fez que consagrar e tornar obrigatório um costume estabelecido. Para tanto teve um objetivo político, que veremos mais adiante.
Num dos ângulos externos do templo estava incrustada a famosa pedra negra, trazida dos céus, ao que se diz, pelo anjo Gabriel, para marcar o ponto onde deviam começar os giros que os peregrinos deviam fazer sete vezes em redor da Caaba. Dizem que originalmente essa pedra era de uma brancura deslumbrante, mas que o toque dos pecadores a enegreceu. No dizer dos viajantes que a viram, ela não tem mais de seis polegadas de altura por oito de comprimento. Pareceria um simples pedaço de basalto, ou talvez um aerólito, o que explicaria a sua origem celeste, segundo as crenças populares.
Construída por Abraão, a Caaba não tinha porta que a fechasse e era ao nível do solo. Destruída por uma torrente que irrompeu pelo ano 150 da era cristã, foi reconstruída e elevada acima do solo, para pô-la ao abrigo de semelhantes acidentes. Cerca de cinquenta anos mais tarde, um chefe de tribo do Yemen aí pôs uma cobertura de estofos preciosos e mandou colocar uma porta com fechadura para pôr em segurança os presentes preciosos acumulados incessantemente pela piedade dos peregrinos.
A veneração dos árabes pela Caaba e pelo território que a circundava era tão grande que eles não tinham ousado aí construir habitações. Essa área tão respeitada, chamada o Haram, compreendia todo o vale do Meca, cuja circunferência é de cerca de quinze léguas. A honra de guardar esse templo venerado era muito cobiçada; as tribos a disputavam e o mais das vezes essa atribuição era direito de conquista. No século quinto, Cossayy, chefe da tribo dos coraicitas, quinto antepassado de Maomé, tendo-se tornado senhor do Haram e tendo sido investido do poder civil e religioso, mandou construir um palácio ao lado da Caaba e permitiu que os de sua tribo aí se estabelecessem. Assim foi fundada a cidade de Meca. Parece que ele foi o primeiro que colocou uma cobertura de madeira na Caaba. A Caaba está hoje na área de uma mesquita, e Meca é uma cidade de cerca de quarenta mil habitantes, depois de ter tido, ao que se diz, cem mil.
No princípio, a religião dos árabes consistia na adoração de um Deus único, a cujas vontades o homem deve ser completamente submisso. Essa religião, que era a de Abraão, chamava-se Islã e os que a professavam diziam-se muçulmanos, isto é, submetidos à vontade de Deus. Mas, pouco a pouco, o puro Islã degenerou em grosseira idolatria; cada tribo tinha os seus deuses e os seus ídolos, que defendia obstinadamente pelas armas, para provar a superioridade de seu poder. Muitas vezes foram essas as causas ou pretextos de guerras longas e encarniçadas.
A fé de Abraão havia, pois, desaparecido entre esses povos, malgrado o respeito que conservavam por sua memória, ou pelo menos tinha sido de tal modo desfigurada que em realidade não mais existia. A veneração pelos objetos considerados sagrados tinha descido ao mais absurdo fetichismo; o culto da matéria tinha substituído o do espírito. Atribuía-se um poder sobrenatural aos mais vulgares objetos consagrados pela superstição, a uma imagem, a uma estátua. Tendo o pensamento abandonado o princípio pelo seu símbolo, a piedade não passava de uma série de práticas exteriores minuciosas, nas quais a menor infração era olhada como um sacrilégio.
Contudo, ainda se encontravam, em certas tribos, alguns adoradores do Deus único, homens piedosos que praticavam a mais inteira submissão à sua vontade suprema e condenavam o culto aos ídolos. Eles eram chamados de hanyfes. Eram os verdadeiros muçulmanos, os que tinham conservado a fé pura do Islã. Mas eles eram pouco numerosos e sem influência sobre o espírito das massas. Há muito tempo colônias judias se haviam estabelecido no Hidjaz e haviam conquistado um certo número de prosélitos ao Judaísmo, principalmente entre os hanyfes. O Cristianismo também aí teve os seus representantes e propagadores nos primeiros séculos de nossa era, mas nem uma nem outra dessas crenças aí lançaram raízes profundas e duráveis. A idolatria tinha-se transformado em religião dominante. Ela convinha melhor, por sua diversidade, à independência turbulenta e à divisão infinita das tribos, que a praticavam com o mais violento fanatismo. Para triunfar dessa anarquia religiosa e política, era preciso um homem de gênio, capaz de se impor por sua energia e firmeza, bastante hábil para partilhar dos costumes e do caráter desses povos, e cuja missão fosse exaltada aos seus olhos pelo prestígio de suas qualidades de profeta. Esse homem foi Maomé.
Maomé nasceu em Meca a 27 de agosto do ano 570 da era cristã, no ano dito do elefante. Não era, como pensam vulgarmente, um homem de condição obscura. Ao contrário, ele pertencia a uma família poderosa e considerada, da tribo dos coraicitas, uma das mais importantes da Arábia, que então dominava em Meca. Fazem-no descender em linha reta de Ismael, filho de Abraão e de Agar. Seus últimos antepassados, Cossayy, Abd-Menab, Hachim e Abd-el-Moutalib, seu avô, se haviam ilustrado por eminentes qualidades e altas funções que tinham desempenhado. Sua mãe, Amina, era de nobre família coraicita e descendia também de Cossayy. Seu pai Abd-Allah morreu dois meses antes de seu nascimento; assim, ele foi criado com muita ternura por sua mãe, que o deixou órfão com a idade de seis anos; depois por seu avô Abd-el-Moutalib, que o queria muito e se comprazia muitas vezes em lhe predizer altos destinos, mas que, ele próprio, morreu dois anos depois.
A despeito da posição que tinha ocupado sua família, Maomé passou sua infância e sua juventude numa situação bem próxima da miséria; sua mãe lhe havia deixado por única herança um rebanho de carneiros, cinco camelos e uma fiel escrava negra, que havia cuidado dele, e pela qual ele conservou sempre um vivo apego. Depois da morte de seu avô, ele foi recolhido pelos tios, cujos rebanhos pastoreou até a idade de vinte anos; ele os acompanhava inclusive em suas expedições guerreiras contra as outras tribos; mas, sendo de humor suave e pacífico, nelas não tomava parte ativa, sem contudo fugir ou temer o perigo, limitando-se a ir apanhar suas flechas. Quando ele chegou ao topo da glória, gostava de lembrar que Moisés e David, ambos profetas, tinham sido pastores, como ele.
Tinha o espírito meditativo e sonhador; seu caráter, de uma solidez e de uma maturidade precoces, a par de uma extrema direitura, de um perfeito desinteresse e de costumes irreprocháveis, lhe valeram uma tal confiança da parte de seus companheiros que o designavam pela alcunha de El-Amin, “o homem seguro, o homem fiel”. Embora jovem e pobre, convocavam-no às assembleias da tribo para os negócios mais importantes. Ele fazia parte de uma associação formada entre as principais famílias coraicitas, com vistas a prevenir as desordens da guerra, a proteger os fracos e a lhes fazer justiça. Considerava sempre uma glória ter concorrido para isto, e, nos últimos anos de sua vida, sempre se via ligado pelo juramento que neste sentido havia prestado na mocidade. Dizia que estava sempre pronto a responder ao apelo que lhe fizesse o homem mais obscuro em nome desse juramento, e que não queria, pelos mais belos camelos da Arábia, faltar à fé que ele havia jurado. Por esse juramento, os associados juravam ante uma divindade vingadora, que eles tomariam a defesa dos oprimidos e perseguiriam a punição dos culpados enquanto houvesse uma gota d’água no oceano.
Fisicamente, Maomé era de estatura pouco acima da média, fortemente constituído; a cabeça muito grande; sua fisionomia, sem ser bela, era agradável e respirava calma e tranquilidade e era marcada por uma suave gravidade.
Aos vinte e cinco anos de idade, casou-se com sua prima Khadidja, viúva rica, mais velha do que ele pelo menos quinze anos, da qual ele havia conquistado a confiança, pela inteligente probidade que ele havia desenvolvido na condução de uma de suas caravanas. Era uma mulher superior. Essa união, que durou vinte e quatro anos e que só terminou pela morte de Khadidja, aos sessenta e quatro anos de idade, foi constantemente feliz. Maomé tinha então quarenta e nove anos e essa perda lhe causou uma dor profunda.
Depois da morte de Khadidja, seus costumes mudaram. Desposou várias mulheres; teve doze ou treze em casamentos legítimos, e ao morrer deixou nove viúvas. Incontestavelmente isto foi um erro capital, cujas lamentáveis consequências veremos mais tarde.
Até os quarenta anos sua vida pacífica nada oferece de saliente. Só um fato o tirou um instante da obscuridade. Ele tinha, então, trinta e cinco anos. Os coraicitas resolveram reconstruir a Caaba, que ameaçava ruir. Só com muito trabalho apaziguaram, pela divisão dos trabalhos, as diferenças suscitadas pela rivalidade das famílias que aí queriam participar. Esses conflitos reapareceram com extrema violência quando se tratou de recolocar a famosa pedra negra. Ninguém queria ceder seu direito. Os trabalhos tinham sido interrompidos e de todos os lados corriam às armas. Por proposta do decano, concordaram em aceitar a decisão da primeira pessoa que entrasse na sala das deliberações: foi Maomé. Quando o viram, todos gritaram: “El-amin! El-amin! o homem firme e fiel”, e aguardaram o seu julgamento. Por sua presença de espírito, ele resolveu a dificuldade. Tendo estendido seu manto no chão, nele pôs a pedra e pediu a quatro dos principais chefes facciosos que o tomassem, cada um por uma ponta, e o levantassem, todos juntos, à altura que a pedra deveria ocupar, isto é, a quatro ou cinco pés acima do solo. Então tomou-a e a colocou com suas próprias mãos. Os assistentes se declararam satisfeitos e a paz foi restabelecida.
Maomé gostava de passear sozinho nos arredores de Meca, e todos os anos, durante os meses sagrados de trégua, retirava-se para o monte Hira, numa gruta estreita, onde se entregava à meditação. Ele estava com quarenta anos quando, num de seus retiros, teve uma visão durante o sono. O anjo Gabriel lhe apareceu, mostrando-lhe um livro que o aconselhou a ler. Três vezes Maomé resistiu a essa ordem, e só para escapar ao constrangimento exercido sobre ele é que consentiu em ler. Ao despertar disse ter sentido “que um livro tinha sido escrito em seu coração”. O sentido desta expressão é evidente. Significa que havia tido a inspiração de um livro. Mais tarde, porém, ela foi tomada ao pé da letra, como geralmente acontece com as coisas ditas em linguagem figurada.
Um outro fato prova a que erros de interpretação podem conduzir a ignorância e o fanatismo. Diz Maomé, em algum lugar, no Alcorão: “Nós não abrimos teu coração e não tiramos o fardo de teus ombros?” Estas palavras, relacionadas com um acidente ocorrido com Maomé quando ela era ainda garoto, deram lugar à fábula, propagada entre os crentes e ensinada pelos sacerdotes como um fato miraculoso, de que dois anjos abriram o ventre do menino e tiraram de seu coração uma mancha negra, sinal do pecado original. Deve-se acusar Maomé por esses absurdos, ou aqueles que não o compreenderam? Dá-se o mesmo com uma porção de histórias ridículas sobre as quais o acusam de haver apoiado sua religião. É por isso que não hesitamos em dizer que um cristão esclarecido e imparcial está em melhores condições de fazer uma interpretação sadia do Alcorão do que um muçulmano fanático.
Seja como for, Maomé foi profundamente perturbado em sua visão, que se apressou em contar à sua mulher. Tendo voltado ao monte Hira, presa da mais viva agitação, julgou-se possuído por Espíritos malignos e, para escapar do mal que temia, ia precipitar-se do alto de um rochedo, quando uma voz, partida do céu, se fez ouvir e lhe disse: “Ó Maomé! Tu és o enviado de Deus; eu sou o anjo Gabriel!” Então, levantando os olhos, viu o anjo sob forma humana, que desapareceu pouco a pouco no horizonte. Essa nova visão apenas aumentou a sua perturbação. Comunicou-a a Khadidja, que se esforçou por acalmá-lo; mas, pouco segura de si mesma, foi procurar seu primo Varaka, velho famoso por sua sabedoria e convertido ao Cristianismo, que lhe disse: “Se o que acabas de dizer-me é verdade, teu marido foi visitado pelo grande Nâmous, que outrora visitou Moisés, e ele será profeta deste povo. Anuncia-lho, e que ele se tranquilize.” Algum tempo depois, Varaka, tendo encontrado Maomé, fê-lo contar suas visões e lhe repetiu as palavras que havia dito à sua mulher, acrescentando: “Tratar-te-ão como impostor e te expulsarão; combater-te-ão violentamente. Que eu possa viver até essa hora para te assistir nessa luta!”
O que resulta destes fatos e de muitos outros é que a missão de Maomé não foi um cálculo premeditado de sua parte; ela foi confirmada por outros, antes de ser confirmado por ele. Ele custou muito a persuadir-se, mas a partir de quando ficou persuadido, tomou-a muito a sério. Para convencer-se, ele desejava uma nova aparição do anjo, que, segundo uns, demorou dois anos, segundo outros, seis meses. É a esse intervalo de incerteza e de hesitação que os muçulmanos chamam de fitreh. Durante todo esse tempo seu espírito foi presa de perplexidade e dos mais vivos temores. Parecia-lhe que ia perder a razão e esta era também a opinião de alguns daqueles que o rodeavam. Ele era sujeito a desfalecimentos e síncopes que os escritores modernos atribuíram, sem outras provas além de sua opinião pessoal, a ataques de epilepsia, que poderiam antes ser o efeito de um estado extático, cataléptico ou sonambúlico espontâneo. Nesses momentos de lucidez extracorpórea, muitas vezes se produziam, como se sabe, fenômenos estranhos, dos quais o Espiritismo se dá conta perfeitamente. Aos olhos de certas pessoas, ele deveria passar por louco; outros viam nesses fenômenos, para si singulares, algo de sobrenatural que colocava o homem acima da Humanidade. Diz o Sr. Barthélemy Sainte-Hilaire que “Quando se admite a ação da Providência nos negócios humanos, não se pode deixar de vê-la também nessas inteligências dominadoras que surgem de tempos em tempos para esclarecer e conduzir o resto dos homens
O Alcorão não é uma obra escrita por Maomé com a cabeça fria e de maneira continuada, mas o registro feito por seus amigos das palavras que ele pronunciava quando estava inspirado. Nesses momentos, dos quais não era senhor, ele caía num estado extraordinário e muito apavorante; o suor corria-lhe da fronte; os olhos tornavam-se vermelhos de sangue; ele soltava gemidos e a crise terminava, o mais das vezes, por uma síncope que durava mais ou menos tempo, o que por vezes lhe acontecia em meio à multidão, e mesmo quando montado em seu camelo, tanto quanto em casa. A inspiração era irregular e instantânea, e ele não podia prever o momento em que seria tomado.
Segundo o que hoje conhecemos desse estado, por uma porção de exemplos análogos, é provável que, sobretudo no princípio, ele não tivesse consciência do que dizia, e que se suas palavras não tivessem sido recolhidas, teriam ficado perdidas. Mais tarde, porém, quando ele tomou a sério o seu papel de reformador, é evidente que ele tenha falado com mais conhecimento de causa e tenha mesclado às inspirações o produto de seus próprios pensamentos, conforme os lugares e as circunstâncias, as paixões ou os sentimentos que o agitavam, em vista do objetivo que queria atingir, acreditando, talvez de boa-fé, falar em nome de Deus.
Esses fragmentos avulsos, recolhidos em diversas épocas, em número de 114, formam no Alcorão os capítulos chamados suratas. Eles ficaram esparsos durante sua vida, e só após a sua morte foram reunidos num corpo oficial de doutrina, pelos cuidados de Abu-Becr e de Omar. Dessas inspirações súbitas, recolhidas à medida que ocorriam, resultou uma falta absoluta de ordem e de método. Os assuntos mais díspares são aí tratados sem nenhuma ordem, por vezes na mesma surata, e apresentam tamanha confusão e tão numerosas repetições que uma leitura sequencial é penosa e fastidiosa para quem quer que não seja um fiel.
Segundo a crença vulgar, tornada artigo de fé, as páginas do Alcorão foram escritas no Céu e trazidas prontas e acabadas a Maomé pelo anjo Gabriel, porque numa passagem está escrito que: “Teu Senhor é misericordioso e poderoso, e o Alcorão é uma revelação do senhor do Universo. O Espírito fiel (o anjo Gabriel) o trouxe do alto e depositou-o em teu coração, ó Maomé, para que fosses apóstolo.” Maomé se exprime da mesma maneira a respeito do livro de Moisés e do Evangelho. Ele diz, na surata III, versículo 2: “Ele fez descer do alto o Pentateuco e o Evangelho, para servir de direção aos homens”, querendo dizer com isto que esses dois livros tinham sido inspirados por Deus a Moisés e a Jesus, como lhe havia sido inspirado o Alcorão.
Suas primeiras prédicas foram secretas durante dois anos, e nesse intervalo ele se ligou a uns cinquenta adeptos, entre os membros de sua família e seus amigos. Os primeiros convertidos à nova fé foram Khadidja, sua mulher; Ali, seu filho adotivo, de dez anos; Zeïd, Varaka e Abu-Becr, seu mais íntimo amigo, que devia ser o seu sucessor. Ele tinha quarenta e três anos quando começou a pregar publicamente, e a partir desse momento realizou-se a predição que lhe havia feito Varaka. Sua religião, fundada na unidade de Deus e na reforma de certos abusos, sendo a ruína da idolatria e dos que dela viviam, os coraicitas, guardas da Caaba e do culto nacional, levantaram-se contra ele. A princípio o trataram de louco; depois o acusaram de sacrilégio; amotinaram o povo. Perseguiram-no, e a perseguição tornou-se tão violenta que por duas vezes seus partidários tiveram que buscar refúgio na Abissínia. Entretanto, aos ultrajes ele sempre opunha a calma, o sangue-frio e a moderação. Sua seita crescia e seus adversários, vendo que não podiam reduzi-la pela força, resolveram desacreditá-la pela calúnia. A troça e o ridículo não lhe foram poupados. Como se viu, os poetas eram numerosos entre os árabes; eles manejavam a sátira habilmente e seus versos eram lidos com avidez. Era o meio empregado pela crítica malévola, que não deixavam de empregá-la contra ele. Como ele resistisse a tudo, seus inimigos finalmente recorreram aos conluios para matá-lo, e ele só escapou pela fuga do perigo que o ameaçava. Foi então que se refugiou em Yathrib, depois chamada Medina (Medinet-en-Nabi, cidade do Profeta), em 622, e é dessa época que data a Hégira, ou era dos muçulmanos. Ele tinha mandado antecipadamente a essa cidade, em pequenas tropas, para não levantar suspeitas, todos os seus partidários de Meca, e ele foi o último a se retirar, com Abu-Becr e Ali, seus discípulos mais devotados, quando soube que os outros estavam em segurança.
Nessa época inicia-se, para Maomé, uma nova fase em sua existência. De simples profeta que era, ele foi constrangido a tornar-se guerreiro.
(Continua no próximo número).
[1] O Sr. Barthélemy Saint-Hilaire, do Instituto, resumiu esses trabalhos numa interessante obra intitulada Mahomet et le Coran. l volume in-12. Preço 3,50 francos. Livraria Didier.
[2] O côvado equivale a cerca de 45 centímetros. É uma medida natural das mais antigas, que tinha por base a distância entre o cotovelo e a ponta dos dedos.
Os profetas do passado
Uma obra intitulada Les Prophètes du Passé, pelo Sr. Barbey d’Aurévilly, contém o elogio de Joseph de Maistre e de Bonald, porque eles ficaram ultramontanos durante toda a vida, ao passo que Chateaubriand aí é censurado e Lamennais insultado e apresentado sob aspecto odioso. A passagem seguinte mostra o espírito com que esse o livro é concebido.
“Neste mundo, onde o espírito e o corpo estão unidos por um mistério indissolúvel, o castigo corporal tem sua razão espiritual de existir, porque o homem não tem o encargo de desdobrar a criação. Ora, se em vez de queimar os escritos de Lutero, cujas cinzas caíram na Europa como uma semente, tivessem queimado o próprio Lutero, o mundo estaria salvo pelo menos por um século. Queimado Lutero, vão gritar, mas não me apego essencialmente à fogueira, desde que o erro seja suprimido em sua manifestação do momento e em sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou o escreveu e que a chama de verdade. É muito para os cordeiros da anarquia não balir senão a liberdade! Um homem de gênio, o mais positivo que existiu desde Maquiavel e que absolutamente não era católico, mas, ao contrário, um pouco liberal, dizia, com a brutalidade de uma decisão necessária: ‘Minha política é de matar dois homens, quando necessário, para salvar três.’ Ora, matando Lutero, não são três homens que se salvariam ao custo de dois; seriam milhares de homens ao preço de um só. Além disto, há mais do que a economia do sangue dos homens, há o respeito à consciência e à inteligência do gênero humano. Lutero falseava uma e outra. Depois, quando há um ensinamento e uma fé social, ─ era, então, o Catolicismo ─ é mesmo preciso protegê-los e defendê-los, sob pena de perecer, um dia ou outro, como Sociedade. Daí os tribunais e as instituições para identificar os delitos contra a fé e o ensino. A inquisição é, pois, uma necessidade lógica numa sociedade qualquer.”
Se os princípios que acabamos de citar não passassem de opinião pessoal do autor, não mereceriam mais preocupação do que muitas outras excentricidades, mas ele não fala apenas em seu nome, e o partido do qual se faz porta-voz, não os desaprovando, dá pelo menos uma adesão tácita. Aliás, não é a primeira vez que, em nossos dias, essas mesmas doutrinas são preconizadas publicamente e é bem certo que elas ainda hoje constituem a opinião de certa classe de pessoas. Se as pessoas não se comovem o bastante, é que a Sociedade tem muita consciência de sua força para amedrontar-se. Todos compreendem que tais anacronismos prejudicam, antes de tudo, aos que os praticam, porque cavam mais profundamente o abismo entre o passado e o presente; esclarecem as massas e as mantêm despertas.
Como se vê, o autor não disfarça o seu pensamento e não toma precauções oratórias; aqui ele vai direto ao ponto, sem rodeios : “Teria sido necessário queimar Lutero; teria sido preciso queimar todos os autores de heresias, para maior glória de Deus e para a salvação da religião.” Ele é claro e preciso. É triste para uma religião ter semelhantes expedientes como base de sua autoridade e de sua estabilidade; é mostrar pouca confiança em seu ascendente moral. Se a sua base é a verdade absoluta, ela deve desafiar todos os argumentos contrários; como o Sol, deve bastar-lhe mostrar-se para dissipar as trevas. Toda religião que vem de Deus nada tem a temer do capricho nem da malícia dos homens; ela haure a sua força no raciocínio, e se um homem tivesse o poder de derrubá-la, de duas, uma, ou ela não seria obra de Deus, ou esse homem seria mais lógico do que Deus, porquanto seus argumentos prevaleceriam sobre os de Deus.
O autor teria preferido antes queimar Lutero do que os seus livros, porque, diz ele, as cinzas destes caíram sobre a Europa como uma semente. Ele concorda, portanto, que os autos de fé dos livros beneficiam mais à ideia que se quer destruir do que a prejudicam. Eis uma grande e profunda verdade constatada pela experiência. Assim, queimar o homem lhe parece mais eficaz porque, em sua opinião, é parar o mal na fonte. Mas acredita ele que as cinzas do homem sejam menos fecundas que as dos livros? Refletiu ele em todos os rebentos que produziram as de quatrocentos mil heréticos queimados pela Inquisição, sem contar o número imensamente grande dos que pereceram em outros suplícios? Os livros queimados apenas dão cinzas, mas as vítimas humanas dão sangue que produz marcas indeléveis e cai sobre os que o derramam. Foi desse sangue que saiu a febre de incredulidade que atormenta o nosso século, e se a fé se extingue, é que quiseram cimentá-la pelo sangue e não pelo amor a Deus. Como amar um Deus que manda queimar os seus filhos? Como crer em sua bondade, se a fumaça das vítimas é um incenso que lhe é agradável? Como crer em seu poder infinito, se ele necessita do braço do homem para fazer prevalecer a sua autoridade pela destruição?
Dirão que isto não é a religião, mas o abuso. Com efeito, se fosse essa a essência do Cristianismo, nada haveria a invejar ao paganismo, mesmo quanto aos sacrifícios humanos, e o mundo pouco teria ganho com a troca. Sim, certamente é abuso; mas quando o abuso é obra de chefes que têm autoridade, que dela fazem uma lei e a apresentam como a mais santa ortodoxia, não é de admirar que mais tarde as massas pouco esclarecidas confundam tudo na mesma reprovação. Ora, foram precisamente os abusos que engendraram as reformas, e aqueles que as preconizaram colhem o que semearam.
É notável que 90% das trezentas e sessenta e tantas seitas que dividiram o Cristianismo desde a sua origem tiveram por objetivo aproximar-se dos princípios evangélicos, de onde é racional concluir que, se não tivessem dele se afastado, essas seitas não se teriam formado. E com que armas as combateram? Sempre pelo ferro, pelo fogo, pelas proscrições e pelas perseguições. Tristes e pobres meios de convencer! Foi no sangue que quiseram sufocá-las. Na falta de raciocínio, a força pôde triunfar sobre indivíduos, destruí-los, dispersá-los, mas não pôde aniquilar a ideia. É por isto que, com algumas variantes, nós as vemos reaparecerem incessantemente, sob outros nomes ou sob novos chefes.
O autor desse livro, como vimos, é a favor dos remédios heróicos. Contudo, como ele teme que a ideia de queimar faça gritar no século em que estamos, declara “não se ater essencialmente à fogueira, desde que o erro seja suprimido na sua manifestação do momento e na sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou o escreveu, e que o chama de verdade”. Assim, desde que o homem desapareça, pouco lhe importa a maneira. Sabe-se que os recursos não faltam, pois o fim justifica os meios. Eis para a manifestação do momento; mas, para que o erro seja destruído na sua manifestação contínua, é necessário fazer desaparecer todos os adeptos que não quiserem render-se de boa vontade. Vê-se que isto nos leva longe. Além do mais, se o meio é duro, é infalível para desembaraçar-se de qualquer oposição.
Tais ideias, no século em que vivemos, não podem deixar de ser importações e reminiscências de existências precedentes. Quanto aos cordeiros que balem a liberdade, aí ainda está um anacronismo, uma lembrança do passado. Realmente, outrora não podiam senão balir, mas hoje os cordeiros tornaram-se aríetes: não balem mais a liberdade; eles a tomam.[1]
Entretanto, vejamos se queimando Lutero teriam detido o movimento, do qual ele foi o instigador. O autor não parece muito certo disto, pois que diz: “O mundo estaria salvo, pelo menos por um século.” Um século de espera, eis tudo o que teriam ganho! E por quê? Eis a razão:
Se os reformadores só exprimissem as suas ideias pessoais, não reformariam absolutamente nada, porque não encontrariam eco. Um homem sozinho é impotente para agitar as massas se as massas estiverem inertes e não sentirem nelas vibrar alguma fibra. É de notar que as grandes renovações sociais jamais chegam bruscamente; como as erupções vulcânicas, elas são precedidas por sintomas precursores. As ideias novas germinam, fervem em muitas cabeças; a Sociedade é agitada por uma espécie de frêmito, que a põe à espera de alguma coisa.
É nesses momentos que surgem os verdadeiros reformadores, que assim se veem como representantes, não de uma ideia individual, mas de uma ideia coletiva, vaga, à qual o reformador dá forma precisa e concreta, e ele só triunfa porque encontra os espíritos prontos a recebê-la. Tal era a posição de Lutero. Mas Lutero nem foi o primeiro nem o único promotor da reforma. Antes dele, houve apóstolos como Wicklef, João Huss, Jerônimo de Praga. Estes dois últimos foram queimados por ordem do concílio de Constança; os hussitas, perseguidos tenazmente, após uma guerra encarniçada, foram vencidos e massacrados. Os homens foram destruídos, mas não a ideia, que foi retomada mais tarde sob outra forma e modificada nalguns detalhes por Lutero, Calvino, Zwingle e outros, de onde é permitido concluir que, se tivessem queimado Lutero, isto para nada teria servido, e nem mesmo dado um século de espera, porque a ideia da reforma não estava só na cabeça de Lutero, mas em milhares de outras, de onde deveriam sair homens capazes de sustentá-la. Não teria sido senão um crime a mais, sem proveito para a causa que o tivesse provocado. Tanto é certo que, quando uma corrente de ideias novas atravessa o mundo, nada poderá detê-la.
Lendo tais palavras, julgar-se-iam escritas durante a febre das guerras religiosas, e não nos tempos em que se julgam as doutrinas com a calma da razão.
[1] Aqui Kardec faz um trocadilho: Bélier ou belier significa carneiro e aríete. (N. Revisor.)
“Neste mundo, onde o espírito e o corpo estão unidos por um mistério indissolúvel, o castigo corporal tem sua razão espiritual de existir, porque o homem não tem o encargo de desdobrar a criação. Ora, se em vez de queimar os escritos de Lutero, cujas cinzas caíram na Europa como uma semente, tivessem queimado o próprio Lutero, o mundo estaria salvo pelo menos por um século. Queimado Lutero, vão gritar, mas não me apego essencialmente à fogueira, desde que o erro seja suprimido em sua manifestação do momento e em sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou o escreveu e que a chama de verdade. É muito para os cordeiros da anarquia não balir senão a liberdade! Um homem de gênio, o mais positivo que existiu desde Maquiavel e que absolutamente não era católico, mas, ao contrário, um pouco liberal, dizia, com a brutalidade de uma decisão necessária: ‘Minha política é de matar dois homens, quando necessário, para salvar três.’ Ora, matando Lutero, não são três homens que se salvariam ao custo de dois; seriam milhares de homens ao preço de um só. Além disto, há mais do que a economia do sangue dos homens, há o respeito à consciência e à inteligência do gênero humano. Lutero falseava uma e outra. Depois, quando há um ensinamento e uma fé social, ─ era, então, o Catolicismo ─ é mesmo preciso protegê-los e defendê-los, sob pena de perecer, um dia ou outro, como Sociedade. Daí os tribunais e as instituições para identificar os delitos contra a fé e o ensino. A inquisição é, pois, uma necessidade lógica numa sociedade qualquer.”
Se os princípios que acabamos de citar não passassem de opinião pessoal do autor, não mereceriam mais preocupação do que muitas outras excentricidades, mas ele não fala apenas em seu nome, e o partido do qual se faz porta-voz, não os desaprovando, dá pelo menos uma adesão tácita. Aliás, não é a primeira vez que, em nossos dias, essas mesmas doutrinas são preconizadas publicamente e é bem certo que elas ainda hoje constituem a opinião de certa classe de pessoas. Se as pessoas não se comovem o bastante, é que a Sociedade tem muita consciência de sua força para amedrontar-se. Todos compreendem que tais anacronismos prejudicam, antes de tudo, aos que os praticam, porque cavam mais profundamente o abismo entre o passado e o presente; esclarecem as massas e as mantêm despertas.
Como se vê, o autor não disfarça o seu pensamento e não toma precauções oratórias; aqui ele vai direto ao ponto, sem rodeios : “Teria sido necessário queimar Lutero; teria sido preciso queimar todos os autores de heresias, para maior glória de Deus e para a salvação da religião.” Ele é claro e preciso. É triste para uma religião ter semelhantes expedientes como base de sua autoridade e de sua estabilidade; é mostrar pouca confiança em seu ascendente moral. Se a sua base é a verdade absoluta, ela deve desafiar todos os argumentos contrários; como o Sol, deve bastar-lhe mostrar-se para dissipar as trevas. Toda religião que vem de Deus nada tem a temer do capricho nem da malícia dos homens; ela haure a sua força no raciocínio, e se um homem tivesse o poder de derrubá-la, de duas, uma, ou ela não seria obra de Deus, ou esse homem seria mais lógico do que Deus, porquanto seus argumentos prevaleceriam sobre os de Deus.
O autor teria preferido antes queimar Lutero do que os seus livros, porque, diz ele, as cinzas destes caíram sobre a Europa como uma semente. Ele concorda, portanto, que os autos de fé dos livros beneficiam mais à ideia que se quer destruir do que a prejudicam. Eis uma grande e profunda verdade constatada pela experiência. Assim, queimar o homem lhe parece mais eficaz porque, em sua opinião, é parar o mal na fonte. Mas acredita ele que as cinzas do homem sejam menos fecundas que as dos livros? Refletiu ele em todos os rebentos que produziram as de quatrocentos mil heréticos queimados pela Inquisição, sem contar o número imensamente grande dos que pereceram em outros suplícios? Os livros queimados apenas dão cinzas, mas as vítimas humanas dão sangue que produz marcas indeléveis e cai sobre os que o derramam. Foi desse sangue que saiu a febre de incredulidade que atormenta o nosso século, e se a fé se extingue, é que quiseram cimentá-la pelo sangue e não pelo amor a Deus. Como amar um Deus que manda queimar os seus filhos? Como crer em sua bondade, se a fumaça das vítimas é um incenso que lhe é agradável? Como crer em seu poder infinito, se ele necessita do braço do homem para fazer prevalecer a sua autoridade pela destruição?
Dirão que isto não é a religião, mas o abuso. Com efeito, se fosse essa a essência do Cristianismo, nada haveria a invejar ao paganismo, mesmo quanto aos sacrifícios humanos, e o mundo pouco teria ganho com a troca. Sim, certamente é abuso; mas quando o abuso é obra de chefes que têm autoridade, que dela fazem uma lei e a apresentam como a mais santa ortodoxia, não é de admirar que mais tarde as massas pouco esclarecidas confundam tudo na mesma reprovação. Ora, foram precisamente os abusos que engendraram as reformas, e aqueles que as preconizaram colhem o que semearam.
É notável que 90% das trezentas e sessenta e tantas seitas que dividiram o Cristianismo desde a sua origem tiveram por objetivo aproximar-se dos princípios evangélicos, de onde é racional concluir que, se não tivessem dele se afastado, essas seitas não se teriam formado. E com que armas as combateram? Sempre pelo ferro, pelo fogo, pelas proscrições e pelas perseguições. Tristes e pobres meios de convencer! Foi no sangue que quiseram sufocá-las. Na falta de raciocínio, a força pôde triunfar sobre indivíduos, destruí-los, dispersá-los, mas não pôde aniquilar a ideia. É por isto que, com algumas variantes, nós as vemos reaparecerem incessantemente, sob outros nomes ou sob novos chefes.
O autor desse livro, como vimos, é a favor dos remédios heróicos. Contudo, como ele teme que a ideia de queimar faça gritar no século em que estamos, declara “não se ater essencialmente à fogueira, desde que o erro seja suprimido na sua manifestação do momento e na sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou o escreveu, e que o chama de verdade”. Assim, desde que o homem desapareça, pouco lhe importa a maneira. Sabe-se que os recursos não faltam, pois o fim justifica os meios. Eis para a manifestação do momento; mas, para que o erro seja destruído na sua manifestação contínua, é necessário fazer desaparecer todos os adeptos que não quiserem render-se de boa vontade. Vê-se que isto nos leva longe. Além do mais, se o meio é duro, é infalível para desembaraçar-se de qualquer oposição.
Tais ideias, no século em que vivemos, não podem deixar de ser importações e reminiscências de existências precedentes. Quanto aos cordeiros que balem a liberdade, aí ainda está um anacronismo, uma lembrança do passado. Realmente, outrora não podiam senão balir, mas hoje os cordeiros tornaram-se aríetes: não balem mais a liberdade; eles a tomam.[1]
Entretanto, vejamos se queimando Lutero teriam detido o movimento, do qual ele foi o instigador. O autor não parece muito certo disto, pois que diz: “O mundo estaria salvo, pelo menos por um século.” Um século de espera, eis tudo o que teriam ganho! E por quê? Eis a razão:
Se os reformadores só exprimissem as suas ideias pessoais, não reformariam absolutamente nada, porque não encontrariam eco. Um homem sozinho é impotente para agitar as massas se as massas estiverem inertes e não sentirem nelas vibrar alguma fibra. É de notar que as grandes renovações sociais jamais chegam bruscamente; como as erupções vulcânicas, elas são precedidas por sintomas precursores. As ideias novas germinam, fervem em muitas cabeças; a Sociedade é agitada por uma espécie de frêmito, que a põe à espera de alguma coisa.
É nesses momentos que surgem os verdadeiros reformadores, que assim se veem como representantes, não de uma ideia individual, mas de uma ideia coletiva, vaga, à qual o reformador dá forma precisa e concreta, e ele só triunfa porque encontra os espíritos prontos a recebê-la. Tal era a posição de Lutero. Mas Lutero nem foi o primeiro nem o único promotor da reforma. Antes dele, houve apóstolos como Wicklef, João Huss, Jerônimo de Praga. Estes dois últimos foram queimados por ordem do concílio de Constança; os hussitas, perseguidos tenazmente, após uma guerra encarniçada, foram vencidos e massacrados. Os homens foram destruídos, mas não a ideia, que foi retomada mais tarde sob outra forma e modificada nalguns detalhes por Lutero, Calvino, Zwingle e outros, de onde é permitido concluir que, se tivessem queimado Lutero, isto para nada teria servido, e nem mesmo dado um século de espera, porque a ideia da reforma não estava só na cabeça de Lutero, mas em milhares de outras, de onde deveriam sair homens capazes de sustentá-la. Não teria sido senão um crime a mais, sem proveito para a causa que o tivesse provocado. Tanto é certo que, quando uma corrente de ideias novas atravessa o mundo, nada poderá detê-la.
Lendo tais palavras, julgar-se-iam escritas durante a febre das guerras religiosas, e não nos tempos em que se julgam as doutrinas com a calma da razão.
[1] Aqui Kardec faz um trocadilho: Bélier ou belier significa carneiro e aríete. (N. Revisor.)
Criações fantásticas da imaginação
As visões da senhora Cantianille
L’Événement de 19 de junho contém o seguinte artigo.
“Fatos estranhos, ainda inexplicados, produziram-se no ano passado em Auxerre e abalaram a população. Os partidários do Espiritismo neles viram manifestações de sua doutrina, e o clero os considerou como novos exemplos de possessão. Falaram de exorcismos, como se tivessem voltado os belos tempos das Ursulinas de Loudun. A pessoa em torno da qual se fazia todo esse alvoroço chamavase Cantianille B... Um vigário da catedral de Sens, o Sr. Padre Thorey, autorizado por seu bispo, constatou essas aparentes derrogações das leis naturais. Hoje esse padre publica o resultado de suas observações, sob o título de Relações maravilhosas da senhora Cantianille B... com o mundo sobrenatural. Ele nos traz uma prova de seu trabalho e é com prazer que dele destacamos um trecho, curioso sob vários aspectos.
“No prefácio, depois de haver exposto o plano de seu livro, o autor acrescenta:
“Que o meu leitor, ao percorrer estas páginas, não precipite o seu julgamento. Sem dúvida esses fatos lhe parecerão incríveis, mas lhe peço lembrar-se que afirmamos sob juramento, Cantianille e eu, a sua veracidade. No relato abaixo, nada de exagerado nem inventado ao bel-prazer; tudo aí é perfeitamente exato.
“Além disto, esses fatos, essas manifestações prodigiosas do mundo superior, se repetem todos os dias e todas as vezes que o desejo, e pedimos que não nos acreditem por nossa simples afirmação. Ao contrário, pedimos insistentemente que os estudem; que se façam reuniões de homens competentes, apenas desejosos da verdade e dispostos a buscá-la lealmente. Todas essas maravilhas reproduzir-se-ão à sua vista e tantas vezes quantas forem necessárias para convencê-los. Nós assumimos o compromisso.
“Possam os Espíritos com ideias largas considerar este livro como uma boa nova!”
No correr da obra, a senhora Cantianille B... conta como ela mesma se tornou membro e presidente de uma sociedade de Espíritos, em 1840, durante sua passagem por um convento de religiosas:
“Ossian, Espírito de segunda ordem, tendo vindo, como de hábito, buscar-me no convento, logo me vi transportada para o meio da reunião. Colocou-me sobre um trono, onde os aplausos mais barulhentos acolheram a minha aparição.
“Fizeram-me proferir o juramento ordinário: ‘Juro ofender a Deus por todos os meios possíveis e não recuar ante coisa alguma para fazer triunfar o inferno sobre o Céu. Amo Satã! Odeio Deus! Quero a queda do Céu e o reino do inferno!...’
“Depois disto, cada um me veio felicitar e encorajar-me para me mostrar forte nas provas que me restavam a passar. Prometi.
“Esses gritos, esse tumulto, esse interesse de cada um, a música e os feixes de luz que clareavam a sala, tudo me eletrizava, me inebriava!... Então eu gritava com voz forte: ‘Estou pronta; não temo vossas provas; ides ver se sou digna de estar entre os vossos.’ Logo cessou todo ruído, toda luz desapareceu. ‘Anda’, disse-me uma voz. Avancei sem hesitação por um estreito corredor, pois sentia de cada lado como duas muralhas, e essas muralhas pareciam aproximar-se cada vez mais. Pensei que ia ser esmagada, e o terror apoderou-se de mim. Quis voltar, mas no mesmo instante senti-me nos braços de Ossian. Ele exerceu sobre todo o meu corpo uma pressão tão viva que soltei um grito penetrante. ‘Cala-te, disse-me ele, ou estarás morta.’ O perigo restaurou-me a coragem...
“Não, não gritarei mais; não, não recuarei.” E fazendo um esforço sobre-humano, transpus como um raio esse longo corredor, que a cada passo se tomava mais escuro e estreito. A despeito de meus esforços, meu espanto redobrava e eu talvez fosse fugir, quando de repente, fugindo a terra de meus pés, caí num abismo cuja profundidade não podia avaliar. Fiquei um instante atordoada nessa queda, entretanto sem me desencorajar. Um pensamento infernal acabava de atravessar-me o espírito. “Ah! Eles querem me apavorar!... Eles verão se eu temo os demônios...” E logo me levantei para buscar uma saída. Mas... eis que de todos os lados apareciam chamas!... Elas se aproximavam de mim como para me queimar...
“E no meio desse fogo, os Espíritos gritando, urrando, que terror! “─ Para que me queres? Perguntei a Ossian.
“─ Quero que sejas a presidente de nossa associação... Quero que nos ajudes a odiar a Deus; quero que jures ser nossa, por nós e conosco, em toda parte e para sempre!
“Tão logo fiz essas promessas, o fogo apagou-se subitamente.
“─ Não me fujas, disse-me ele, eu te trago a felicidade e a grandeza. Olha.”
“Achei-me em meio aos associados, no meio da sala que haviam embelezado ainda mais em minha ausência. Um repasto suntuoso foi servido.
“Então me deram o lugar de honra, e no fim, quando todos estavam aquecidos pelo vinho e pelos licores e superexcitados pela música, fui nomeada presidente.
“Aquele que me havia entregue ressaltou nalgumas palavras a coragem que eu havia mostrado nessas provas terríveis e, em meio a mil bravos, aceitei o título fatal de presidente.
“Eu estava, assim, à testa de alguns milhares de pessoas atentas ao menor sinal. Não tive senão um pensamento: merecer sua confiança e sua submissão. Infelizmente, fui muito bem sucedida.”
O autor tem razão ao dizer que os partidários do Espiritismo podem ver nestes fatos manifestações de sua doutrina. É que, com efeito, o Espiritismo, para os que o estudaram alhures que não na escola dos senhores Davenport e Robin, é a revelação de um novo princípio, de uma nova lei da Natureza, que nos dá a razão daquilo que, na falta de melhor, convencionou-se atribuir à imaginação. Esse princípio está no mundo extracorpóreo, intimamente ligado à nossa existência. Aquele que não admite a alma individual e independente da matéria, rejeitando a causa a priori, não pode compreender os seus efeitos. Contudo, esses efeitos saltam incessantemente aos nossos olhos, inumeráveis e patentes. Seguindo-os passo a passo em sua sucessão, chega-se à fonte. É o que faz o Espiritismo, sempre procedendo pela observação, remontando do efeito à causa, e jamais pela teoria preconcebida.
Eis um ponto capital sobre o qual não seria demasiado insistir. O Espiritismo não adotou como ponto de partida a existência dos Espíritos e do mundo invisível, a título de suposição gratuita, a não ser para mais tarde provar essa existência, mas na observação dos fatos, e dos fatos constatados ele concluiu pela teoria. Essa observação o levou a reconhecer não apenas a existência da alma como ser principal, pois que nela residem a inteligência e as sensações, e ela sobrevive ao corpo, mas que fenômenos de uma ordem particular se passam na esfera da atividade da alma, encarnada ou desencarnada, fora da percepção dos sentidos. Como a ação da alma se liga essencialmente à do organismo durante a vida, é um campo de exploração vasto e novo aberto à psicologia e à fisiologia, e no qual a Ciência encontrará o que inutilmente procura há tanto tempo.
O Espiritismo, portanto, encontrou um princípio fecundo, mas não se segue que tudo possa explicar. O conhecimento das leis da eletricidade deu a explicação dos efeitos do raio. Ninguém tratou desse assunto com mais saber e lucidez do que Arago, contudo, no fenômeno tão vulgar do raio, há efeitos que ele declara, sábio que é, não poder explicar, como por exemplo o dos relâmpagos bifurcados. Nega-os por isso? Não, pois tem muito bom-senso e, aliás, não se pode negar um fato. Que faz ele? Ele diz: Observemos e esperemos estar mais adiantados. O Espiritismo não age diferentemente. Ele confessa a sua ignorância sobre aquilo que não sabe e, esperando sabê-lo, busca e observa.
As visões da senhora Cantianille pertencem a essa categoria de questões sobre as quais, de certo modo, não se pode, até mais ampla informação, senão tentar uma explicação. Cremos achá-la no princípio das criações fluídicas pelo pensamento.
Quando as visões têm por objeto uma coisa positiva, real, cuja existência é constatada, sua explicação é muito simples: A alma vê, por efeito de sua radiação, o que os olhos do corpo não podem ver. Se o Espiritismo tivesse explicado apenas isto, já teria levantado o véu de muitos mistérios. Mas a questão se complica quando se trata de visões que, como as da senhora Cantianille, são puramente fantásticas. Como pode a alma ver o que não existe? De onde vêm essas imagens que, para os que as veem, têm toda a aparência de realidade? Dizem que são efeitos da imaginação. Que seja, mas esses efeitos têm uma causa. Em que consiste esse poder da imaginação? Como e sobre o que age ela? Se uma pessoa medrosa ouve um ruído de camundongos durante a noite, é tomada de pavor e imagina ouvir passos de ladrões; se toma uma sombra ou uma forma vaga por um ser vivo que a persegue, aí estão verdadeiros efeitos da imaginação. Mas nas visões do gênero das de que aqui se trata, existe algo mais, porque não é mais apenas uma ideia falsa, é uma imagem com suas formas e cores, tão claras e precisas que poderiam ser desenhadas. Contudo, não passam de ilusão! De onde vem isto?
Para nos darmos conta do que se passa nessa circunstância, é necessário sair de nosso ponto de vista exclusivamente material e penetrar, pelo pensamento, no mundo incorpóreo; identificarmo-nos com a sua natureza e com os fenômenos especiais que se devem passar num meio completamente diferente do nosso. Estamos aqui embaixo na posição de um espectador que se admira de um efeito cênico, porque não compreende o seu mecanismo, mas se ele for para trás dos bastidores, compreenderá tudo.
Em nosso mundo tudo é matéria tangível; no mundo invisível tudo é, se assim nos podemos exprimir, matéria intangível, isto é, intangível para nós que só percebemos por órgãos materiais, mas tangível para os seres desse mundo, que percebem por sentidos espirituais. Tudo é fluídico nesse mundo, homens e coisas, e as coisas fluídicas aí são também reais, relativamente, como as coisas materiais são reais para nós. Eis um primeiro princípio.
O segundo princípio está nas modificações que o pensamento imprime ao elemento fluídico. Pode-se dizer que ele o modela à vontade, como modelamos um pouco de terra para dela fazer uma estátua. Apenas, sendo a terra uma matéria compacta e resistente, para a manipular é necessário um instrumento resistente, ao passo que a matéria etérea sofre sem esforço a ação do pensamento. Sob essa ação, ela é susceptível de revestir todas as formas e todas as aparências. É assim que vemos os Espíritos ainda pouco desmaterializados se apresentarem tendo em suas mãos os objetos que tinham em vida; vestir-se com as mesmas roupas; usarem os mesmos ornamentos e tomarem, à vontade, a mesma aparência. A rainha de Oude, cuja comunicação publicamos na Revista de março de 1858, sempre se via com suas joias e dizia que elas não a haviam deixado. Para isto basta-lhes um ato do pensamento, sem que, o mais das vezes, se deem conta da maneira pela qual a coisa se opera, como entre os vivos muita gente anda, vê e ouve sem poder dizer como e por quê. Acontecia o mesmo também com o Espírito do zuavo de Magenta (Revista de julho de 1859), que dizia ter o mesmo traje, e quando lhe perguntavam onde o tinha obtido, pois o seu havia ficado no campo de batalha, respondia: Isto é lá com o meu alfaiate. Citamos vários fatos deste gênero, entre outros o do homem da caixa de rapé (agosto de 1859), e o de Pierre Legay (novembro de 1864), que pagava sua passagem de ônibus. Essas criações fluídicas por vezes podem revestir, para os vivos, aparências momentaneamente visíveis e tangíveis, porque, na verdade, elas são devidas a uma transformação da matéria etérea. O princípio das criações fluídicas parece ser uma das mais importantes leis do mundo incorpóreo.
Nos seus momentos de emancipação, gozando a alma encarnada parcialmente das faculdades de Espírito livre, pode produzir efeitos análogos. Aí pode estar a causa das visões ditas fantásticas. Quando o Espírito está fortemente imbuído de uma ideia, seu pensamento pode criar uma imagem fluídica correspondente, que para ele tem todas as aparências da realidade, como no caso do dinheiro de Pierre Legay, embora a coisa não exista por si mesma. Tal é, sem dúvida, o caso que aconteceu com a senhora Cantianille. Preocupada com as descrições que tinha ouvido fazer do inferno, dos demônios e de suas tentações, dos pactos pelos quais eles se apoderam das almas, das torturas dos danados, seu pensamento criou um quadro fluídico que só tinha realidade para ela.
Podemos colocar na mesma categoria as visões da Irmã Elmerick, que afirmava ter visto todas as cenas da Paixão e encontrado o cálice no qual Jesus tinha bebido, bem como outros objetos análogos aos que são utilizados no culto atual, que certamente não existiam naquela época, e dos quais, entretanto, ela fazia uma descrição minuciosa. Dizendo que tinha visto tudo isso, ela agia de boa-fé, porque realmente tinha visto, pelos olhos da alma, mas uma imagem fluídica, criada por seu pensamento.
Todas as visões têm seu princípio nas percepções da alma, como a vista corporal tem a sua na sensibilidade do nervo óptico. Mas elas variam em sua causa e em seu objeto. Quanto menos desenvolvida é a alma, mais susceptível de criar ilusão sobre o que vê. Suas imperfeições a tornam sujeita ao erro. As mais desmaterializadas são aquelas cujas percepções são mais extensas e mais justas. Mas, por mais imperfeitas que sejam, são faculdades não menos úteis para estudo.
Se esta explicação não oferece uma certeza absoluta, pelo menos tem um caráter evidente de probabilidade. Ela prova sobretudo uma coisa, é que os espíritas não são tão crédulos quanto pretendem os seus detratores e não concordam com tudo o que parece maravilhoso. Todas as visões estão, pois, longe de ser para eles artigos de fé; mas, sejam o que forem, ilusão ou verdade, são efeitos que não poderiam ser negados. Eles os estudam e procuram compreendê-los, sem a pretensão de tudo saber e de tudo explicar. Só afirmam uma coisa quando está demonstrada pela evidência, pois seria tão inconsequente tudo aceitar quanto tudo negar.
Questões e problemas
Crianças, guias espirituais dos pais
Tendo perdido um filho de sete anos, e tendo-se tornado médium, a mãe teve essa mesma criança como guia. Um dia lhe fez a seguinte pergunta:
─ Caro e bem amado filho, um espírita meu amigo não compreende e não admite possas ser o guia espiritual de tua mãe, porque ela existia antes de ti e, indubitavelmente, deve ter tido um guia, mesmo que fosse apenas durante o tempo em que tivemos a felicidade de ter-te ao nosso lado. Podes dar-nos algumas explicações?
Resposta do Espírito da criança ─ Como quereis aprofundar tudo quanto vos parece incompreensível? Aquele que vos parece mesmo o mais adiantado no Espiritismo está apenas nos primeiros elementos da doutrina e não sabe mais do que esse ou aquele que vos parece ao par de tudo e capaz de vos dar explicações. Eu existi muito tempo antes de minha mãe, e ocupei, em outra existência, uma posição eminente por meus conhecimentos intelectuais.
“Mas um imenso orgulho se havia apoderado de meu Espírito, e durante várias existências consecutivas fui submetido à mesma provação, sem poder dela triunfar, até chegar à existência em que estava junto de vós. No entanto, como já era adiantado, e minha partida devia servir ao vosso adiantamento, para vós, tão atrasados na vida espírita, Deus me chamou antes do fim de minha carreira, considerando minha missão junto a vós mais aproveitável como Espírito do que como encarnado.
Durante minha última estada na Terra, minha mãe teve o seu anjo de guarda junto a ela, mas temporariamente, porque Deus sabia que era eu que devia ser o seu guia espiritual, e que eu a levaria mais eficazmente para o caminho do qual ela estava tão afastada. O seu guia foi chamado para outra missão, quando vim tomar seu lugar junto a ela.
Perguntai aos que sabeis mais adiantados do que vós se esta explicação é lógica e boa, porque pode ser que, considerando-se que esta é minha opinião pessoal, talvez eu me engane. Enfim, isto vos será explicado, se perguntardes. Muitas coisas ainda vos são ocultas e vos parecerão claras mais tarde. Não queirais aprofundar muito, porque dessa constante preocupação nasce a confusão de vossas ideias. Tende paciência, pois assim como um espelho embaciado por um sopro ligeiro pouco a pouco vai ficando límpido, vosso espírito tranquilo e calmo atingirá esse grau de compreensão necessário ao vosso adiantamento.
Coragem, pois, bons pais; marchai com confiança, e um dia bendireis a hora da provação terrível que vos trouxe ao caminho da felicidade eterna, sem a qual teríeis ainda muitas existências infelizes a percorrer.
OBSERVAÇÃO: Esse garoto tinha uma precocidade intelectual rara para a sua idade. Mesmo gozando de um bom estado de saúde, parecia pressentir seu fim próximo. Ele se alegrava nos cemitérios e sem jamais ter ouvido falar em Espiritismo, no qual seus pais não acreditavam, muitas vezes perguntava se, quando se estivesse morto, não se poderia voltar para os que se tinha amado. Ele aspirava a morte como uma felicidade e dizia que quando morresse sua mãe não deveria afligir-se, porque ele voltaria para junto dela. Com efeito, foi a morte de três filhos em alguns dias que levou os pais a buscar uma consolação no Espiritismo. Eles encontraram largamente essa consolação, e sua fé foi recompensada pela possibilidade de conversar a cada instante com os filhos. Dentro de bem pouco tempo a mãe se tornou excelente médium, tendo seu próprio filho como guia, Espírito que se revela de uma grande superioridade.
─ Caro e bem amado filho, um espírita meu amigo não compreende e não admite possas ser o guia espiritual de tua mãe, porque ela existia antes de ti e, indubitavelmente, deve ter tido um guia, mesmo que fosse apenas durante o tempo em que tivemos a felicidade de ter-te ao nosso lado. Podes dar-nos algumas explicações?
Resposta do Espírito da criança ─ Como quereis aprofundar tudo quanto vos parece incompreensível? Aquele que vos parece mesmo o mais adiantado no Espiritismo está apenas nos primeiros elementos da doutrina e não sabe mais do que esse ou aquele que vos parece ao par de tudo e capaz de vos dar explicações. Eu existi muito tempo antes de minha mãe, e ocupei, em outra existência, uma posição eminente por meus conhecimentos intelectuais.
“Mas um imenso orgulho se havia apoderado de meu Espírito, e durante várias existências consecutivas fui submetido à mesma provação, sem poder dela triunfar, até chegar à existência em que estava junto de vós. No entanto, como já era adiantado, e minha partida devia servir ao vosso adiantamento, para vós, tão atrasados na vida espírita, Deus me chamou antes do fim de minha carreira, considerando minha missão junto a vós mais aproveitável como Espírito do que como encarnado.
Durante minha última estada na Terra, minha mãe teve o seu anjo de guarda junto a ela, mas temporariamente, porque Deus sabia que era eu que devia ser o seu guia espiritual, e que eu a levaria mais eficazmente para o caminho do qual ela estava tão afastada. O seu guia foi chamado para outra missão, quando vim tomar seu lugar junto a ela.
Perguntai aos que sabeis mais adiantados do que vós se esta explicação é lógica e boa, porque pode ser que, considerando-se que esta é minha opinião pessoal, talvez eu me engane. Enfim, isto vos será explicado, se perguntardes. Muitas coisas ainda vos são ocultas e vos parecerão claras mais tarde. Não queirais aprofundar muito, porque dessa constante preocupação nasce a confusão de vossas ideias. Tende paciência, pois assim como um espelho embaciado por um sopro ligeiro pouco a pouco vai ficando límpido, vosso espírito tranquilo e calmo atingirá esse grau de compreensão necessário ao vosso adiantamento.
Coragem, pois, bons pais; marchai com confiança, e um dia bendireis a hora da provação terrível que vos trouxe ao caminho da felicidade eterna, sem a qual teríeis ainda muitas existências infelizes a percorrer.
OBSERVAÇÃO: Esse garoto tinha uma precocidade intelectual rara para a sua idade. Mesmo gozando de um bom estado de saúde, parecia pressentir seu fim próximo. Ele se alegrava nos cemitérios e sem jamais ter ouvido falar em Espiritismo, no qual seus pais não acreditavam, muitas vezes perguntava se, quando se estivesse morto, não se poderia voltar para os que se tinha amado. Ele aspirava a morte como uma felicidade e dizia que quando morresse sua mãe não deveria afligir-se, porque ele voltaria para junto dela. Com efeito, foi a morte de três filhos em alguns dias que levou os pais a buscar uma consolação no Espiritismo. Eles encontraram largamente essa consolação, e sua fé foi recompensada pela possibilidade de conversar a cada instante com os filhos. Dentro de bem pouco tempo a mãe se tornou excelente médium, tendo seu próprio filho como guia, Espírito que se revela de uma grande superioridade.
Comunicação com os seres que nos são caros
Por que todas as mães que choram os filhos e ficariam felizes se se comunicassem com eles muitas vezes não o podem? Por que a visão deles lhes é recusada, mesmo em sonhos, a despeito de seu desejo e de suas preces ardentes?
Além da falta de aptidão especial que, como se sabe, não é dada a todos, há por vezes outros motivos cuja utilidade a sabedoria da Providência aprecia melhor do que nós. Essas comunicações poderiam ter inconvenientes para naturezas muito impressionáveis; certas pessoas poderiam delas abusar e a elas se entregar com um excesso prejudicial à saúde. A dor, em semelhantes casos, sem dúvida é natural e legítima; mas algumas vezes é levada a um ponto desarrazoado. Nas pessoas de caráter fraco, muitas vezes essas comunicações reavivam a dor em vez de acalmá-la, por isso nem sempre lhes é permitido recebê-las, mesmo por outros médiuns, até que se tenham tornado mais calmas e bastante senhoras de si para dominar a emoção. A falta de resignação, em casos tais, é quase sempre uma causa de retardamento.
Depois, é preciso dizer que a impossibilidade de nos comunicarmos com os Espíritos que mais amamos, quando podemos com outros, é muitas vezes uma prova para a fé e a perseverança e, em certos casos, uma punição. Aquele a quem esse favor é recusado deve, pois, dizer-se que sem dúvida a mereceu. Cabe-lhe procurar a causa em si mesmo, e não atribuí-la à indiferença ou ao esquecimento do ser lamentado.
Enfim, há temperamentos que, não obstante a força moral, poderiam sofrer pelo exercício da mediunidade com certos Espíritos, mesmo simpáticos, conforme as circunstâncias.
Admiremos em tudo a solicitude da Providência, que vela pelos menores detalhes, e saibamos submeter-nos à sua vontade sem murmúrio, porque ela sabe melhor do que nós o que nos é útil ou prejudicial. Ela é para nós como um bom pai, que nem sempre dá a seu filho o que ele deseja.
As mesmas razões ocorrem no que concerne aos sonhos. Os sonhos são a lembrança do que a alma viu em estado de desprendimento durante o sono. Ora, essa lembrança pode ser interdita. Mas aquilo de que a gente não se lembra não está, por isto, perdido para a alma. As sensações experimentadas durante as excursões que ela faz no mundo invisível, deixam, ao despertar, impressões vagas, e a gente se lembra de pensamentos e ideias cuja origem muitas vezes não suspeita. Portanto, podemos ter visto, durante o sono, os seres aos quais temos afeição, termo-nos entretido com eles, mas não guardamos a lembrança. Então dizemos que não sonhamos.
Mas se o ser lamentado não pode manifestar-se de uma maneira extensiva qualquer, nem por isso estará menos junto aos que o atraem por seu pensamento simpático. Ele os vê, ouve as suas palavras e muitas vezes adivinha a sua presença por uma espécie de intuição, uma sensação íntima, algumas vezes mesmo por certas impressões físicas. A certeza de que ele não está no nada; de que ele não está perdido nas profundezas do espaço nem nos abismos do inferno; de que ele é mais feliz, agora isento dos sofrimentos corporais e das tribulações da vida; de que o verão, após uma separação momentânea, mais belo, mais resplendente, sob seu envoltório etéreo imperecível, e não sob a pesada carapaça carnal, eis a imensa consolação que recusam aqueles que creem que tudo acaba com a vida; eis o que dá o Espiritismo.
Em verdade não se compreende o encanto que se pode encontrar em comprazer-se na ideia do nada para si mesmo e para os seus, e na obstinação de certas pessoas em repelir até a esperança de que pode ser diferente, e os meios de adquirir a sua prova. Diga-se a um doente agonizante: “Amanhã estareis curado; vivereis ainda muitos anos, alegre, saudável”, e ele aceitará o augúrio com alegria. O pensamento da vida espiritual indefinida, isenta das enfermidades e preocupações da vida não é muito mais satisfatório?
Pois bem! O Espiritismo dela não dá apenas a esperança, mas a certeza. É por isto que os espíritas consideram a morte de maneira completamente diferente dos incrédulos.
Além da falta de aptidão especial que, como se sabe, não é dada a todos, há por vezes outros motivos cuja utilidade a sabedoria da Providência aprecia melhor do que nós. Essas comunicações poderiam ter inconvenientes para naturezas muito impressionáveis; certas pessoas poderiam delas abusar e a elas se entregar com um excesso prejudicial à saúde. A dor, em semelhantes casos, sem dúvida é natural e legítima; mas algumas vezes é levada a um ponto desarrazoado. Nas pessoas de caráter fraco, muitas vezes essas comunicações reavivam a dor em vez de acalmá-la, por isso nem sempre lhes é permitido recebê-las, mesmo por outros médiuns, até que se tenham tornado mais calmas e bastante senhoras de si para dominar a emoção. A falta de resignação, em casos tais, é quase sempre uma causa de retardamento.
Depois, é preciso dizer que a impossibilidade de nos comunicarmos com os Espíritos que mais amamos, quando podemos com outros, é muitas vezes uma prova para a fé e a perseverança e, em certos casos, uma punição. Aquele a quem esse favor é recusado deve, pois, dizer-se que sem dúvida a mereceu. Cabe-lhe procurar a causa em si mesmo, e não atribuí-la à indiferença ou ao esquecimento do ser lamentado.
Enfim, há temperamentos que, não obstante a força moral, poderiam sofrer pelo exercício da mediunidade com certos Espíritos, mesmo simpáticos, conforme as circunstâncias.
Admiremos em tudo a solicitude da Providência, que vela pelos menores detalhes, e saibamos submeter-nos à sua vontade sem murmúrio, porque ela sabe melhor do que nós o que nos é útil ou prejudicial. Ela é para nós como um bom pai, que nem sempre dá a seu filho o que ele deseja.
As mesmas razões ocorrem no que concerne aos sonhos. Os sonhos são a lembrança do que a alma viu em estado de desprendimento durante o sono. Ora, essa lembrança pode ser interdita. Mas aquilo de que a gente não se lembra não está, por isto, perdido para a alma. As sensações experimentadas durante as excursões que ela faz no mundo invisível, deixam, ao despertar, impressões vagas, e a gente se lembra de pensamentos e ideias cuja origem muitas vezes não suspeita. Portanto, podemos ter visto, durante o sono, os seres aos quais temos afeição, termo-nos entretido com eles, mas não guardamos a lembrança. Então dizemos que não sonhamos.
Mas se o ser lamentado não pode manifestar-se de uma maneira extensiva qualquer, nem por isso estará menos junto aos que o atraem por seu pensamento simpático. Ele os vê, ouve as suas palavras e muitas vezes adivinha a sua presença por uma espécie de intuição, uma sensação íntima, algumas vezes mesmo por certas impressões físicas. A certeza de que ele não está no nada; de que ele não está perdido nas profundezas do espaço nem nos abismos do inferno; de que ele é mais feliz, agora isento dos sofrimentos corporais e das tribulações da vida; de que o verão, após uma separação momentânea, mais belo, mais resplendente, sob seu envoltório etéreo imperecível, e não sob a pesada carapaça carnal, eis a imensa consolação que recusam aqueles que creem que tudo acaba com a vida; eis o que dá o Espiritismo.
Em verdade não se compreende o encanto que se pode encontrar em comprazer-se na ideia do nada para si mesmo e para os seus, e na obstinação de certas pessoas em repelir até a esperança de que pode ser diferente, e os meios de adquirir a sua prova. Diga-se a um doente agonizante: “Amanhã estareis curado; vivereis ainda muitos anos, alegre, saudável”, e ele aceitará o augúrio com alegria. O pensamento da vida espiritual indefinida, isenta das enfermidades e preocupações da vida não é muito mais satisfatório?
Pois bem! O Espiritismo dela não dá apenas a esperança, mas a certeza. É por isto que os espíritas consideram a morte de maneira completamente diferente dos incrédulos.
Perfectibilidade dos Espíritos
(Paris, 3 de fevereiro de 1866 - Grupo do Sr. Lat... - Médium: Sr. Desliens)
Pergunta. ─ Se os Espíritos ou almas se melhoram indefinidamente, conforme o Espiritismo, eles devem tornar-se infinitamente aperfeiçoados ou puros. Chegados a esse grau, por que não são iguais a Deus? Isto não está de acordo com a justiça.
Resposta. ─ O homem é uma criatura realmente singular! Sempre acha o seu horizonte muito limitado. Quer tudo compreender, tudo captar, tudo conhecer! Quer penetrar o insondável e despreza o estudo do que lhe toca imediatamente; quer compreender Deus, julgar os seus atos, fazê-lo justo ou injusto; diz como queria que ele fosse, sem suspeitar que ele é tudo isso e muito mais!... Mas, verme miserável, algum dia compreendeste de modo absoluto algo do que te cerca? Sabes por que lei a flor se colore e se perfuma aos beijos vivificantes do sol? Sabes como nasces, como vives e por que teu corpo morre?... ─ Tu vês fatos, mas as causas para ti ficam envoltas num véu impenetrável, e querias julgar o princípio de todas as coisas, a causa primeira, Deus enfim! ─ Há muitos outros estudos mais necessários ao desenvolvimento de teu ser, que merecem toda a tua atenção!...
Quando resolves um problema de álgebra vais do conhecido para o desconhecido e, para compreender Deus, esse problema insolúvel desde tantos séculos, queres dirigir-te a ele diretamente! Então tendes todos os elementos necessários para estabelecer tal equação? Não te falta algum documento para julgar teu criador em última instância? Por acaso vais acreditar que o mundo seja limitado a este grão de areia perdido na imensidade do espaço onde te agitas mais imperceptível que o menor dos infusórios, e que o Universo seja uma gota d’água? Contudo, raciocinemos e vejamos por que, conforme teus conhecimentos atuais, Deus seria injusto não se deixando jamais atingir por sua criatura.
Em todas as ciências há axiomas ou verdades irrecusáveis, que se admitem como bases fundamentais. As ciências matemáticas, e em geral todas as ciências, são baseadas no axioma de que a parte jamais poderia igualar o todo. O homem, criatura de Deus, segundo esse princípio, jamais poderia atingir aquele que o criou.
Suponde que um indivíduo tenha que percorrer uma estrada de extensão infinita. De uma extensão infinita, pesai bem a expressão. Aí está a posição do homem em relação a Deus, considerado como o seu objetivo.
Dir-me-eis que, por pouco que se marche, a soma dos anos e dos séculos de marcha permitirá atingir o fim. É um erro!... O que fizerdes num ano, num século, num milhão de séculos, será sempre uma quantidade finita; um outro espaço igual não vos permitirá acrescentar senão uma quantidade igualmente finita, e assim por diante. Ora, para o mais noviço matemático, uma soma de quantidades finitas jamais formará uma quantidade infinita. O contrário seria absurdo, pois nesse caso o infinito poderia ser medido, o que faria com que ele perdesse sua qualidade de infinito. ─ O homem progredirá sempre e incessantemente, mas em quantidade finita; a soma de seus progressos não será jamais senão uma perfeição finita, que não poderia atingir Deus, o infinito em tudo. Não há, pois, injustiça da parte de Deus em que suas criaturas jamais o possam igualar. A natureza de Deus é um obstáculo intransponível a um tal objetivo do Espírito; sua justiça não poderia permiti-lo, porque se um Espírito se igualasse a Deus, seria o próprio Deus. Ora, se dois Espíritos forem tais que tenham ambos o mesmo poder infinito em todos os sentidos e um for idêntico ao outro, eles se confundirão num só e não haverá mais que um Deus. Um deles deveria, pois, perder a sua individualidade, o que seria uma injustiça muito mais evidente do que não poder atingir um fim infinitamente distanciado, dele se aproximando constantemente. Deus faz bem o que faz e o homem é demasiadamente pequeno para permitir-se pesar as suas decisões.
MOKI
OBSERVAÇÃO: Se há um mistério insondável para o homem, é o princípio e o fim de todas as coisas. A visão do infinito lhe dá vertigem. Para compreendê-lo são necessários conhecimentos e um desenvolvimento intelectual e moral que ele ainda está longe de possuir, malgrado o orgulho que o leva a julgar-se chegado ao topo da escala humana. Em relação a certas ideias, ele está na posição de uma criança que quisesse fazer cálculo diferencial e integral, antes de saber as quatro operações. À medida que avançar para a perfeição, seus olhos abrir-se-ão à luz, e a névoa que os cobre se dissipará. Trabalhando seu melhoramento no presente, ele chegará mais cedo do que perdendo-se em conjecturas.
Resposta. ─ O homem é uma criatura realmente singular! Sempre acha o seu horizonte muito limitado. Quer tudo compreender, tudo captar, tudo conhecer! Quer penetrar o insondável e despreza o estudo do que lhe toca imediatamente; quer compreender Deus, julgar os seus atos, fazê-lo justo ou injusto; diz como queria que ele fosse, sem suspeitar que ele é tudo isso e muito mais!... Mas, verme miserável, algum dia compreendeste de modo absoluto algo do que te cerca? Sabes por que lei a flor se colore e se perfuma aos beijos vivificantes do sol? Sabes como nasces, como vives e por que teu corpo morre?... ─ Tu vês fatos, mas as causas para ti ficam envoltas num véu impenetrável, e querias julgar o princípio de todas as coisas, a causa primeira, Deus enfim! ─ Há muitos outros estudos mais necessários ao desenvolvimento de teu ser, que merecem toda a tua atenção!...
Quando resolves um problema de álgebra vais do conhecido para o desconhecido e, para compreender Deus, esse problema insolúvel desde tantos séculos, queres dirigir-te a ele diretamente! Então tendes todos os elementos necessários para estabelecer tal equação? Não te falta algum documento para julgar teu criador em última instância? Por acaso vais acreditar que o mundo seja limitado a este grão de areia perdido na imensidade do espaço onde te agitas mais imperceptível que o menor dos infusórios, e que o Universo seja uma gota d’água? Contudo, raciocinemos e vejamos por que, conforme teus conhecimentos atuais, Deus seria injusto não se deixando jamais atingir por sua criatura.
Em todas as ciências há axiomas ou verdades irrecusáveis, que se admitem como bases fundamentais. As ciências matemáticas, e em geral todas as ciências, são baseadas no axioma de que a parte jamais poderia igualar o todo. O homem, criatura de Deus, segundo esse princípio, jamais poderia atingir aquele que o criou.
Suponde que um indivíduo tenha que percorrer uma estrada de extensão infinita. De uma extensão infinita, pesai bem a expressão. Aí está a posição do homem em relação a Deus, considerado como o seu objetivo.
Dir-me-eis que, por pouco que se marche, a soma dos anos e dos séculos de marcha permitirá atingir o fim. É um erro!... O que fizerdes num ano, num século, num milhão de séculos, será sempre uma quantidade finita; um outro espaço igual não vos permitirá acrescentar senão uma quantidade igualmente finita, e assim por diante. Ora, para o mais noviço matemático, uma soma de quantidades finitas jamais formará uma quantidade infinita. O contrário seria absurdo, pois nesse caso o infinito poderia ser medido, o que faria com que ele perdesse sua qualidade de infinito. ─ O homem progredirá sempre e incessantemente, mas em quantidade finita; a soma de seus progressos não será jamais senão uma perfeição finita, que não poderia atingir Deus, o infinito em tudo. Não há, pois, injustiça da parte de Deus em que suas criaturas jamais o possam igualar. A natureza de Deus é um obstáculo intransponível a um tal objetivo do Espírito; sua justiça não poderia permiti-lo, porque se um Espírito se igualasse a Deus, seria o próprio Deus. Ora, se dois Espíritos forem tais que tenham ambos o mesmo poder infinito em todos os sentidos e um for idêntico ao outro, eles se confundirão num só e não haverá mais que um Deus. Um deles deveria, pois, perder a sua individualidade, o que seria uma injustiça muito mais evidente do que não poder atingir um fim infinitamente distanciado, dele se aproximando constantemente. Deus faz bem o que faz e o homem é demasiadamente pequeno para permitir-se pesar as suas decisões.
MOKI
OBSERVAÇÃO: Se há um mistério insondável para o homem, é o princípio e o fim de todas as coisas. A visão do infinito lhe dá vertigem. Para compreendê-lo são necessários conhecimentos e um desenvolvimento intelectual e moral que ele ainda está longe de possuir, malgrado o orgulho que o leva a julgar-se chegado ao topo da escala humana. Em relação a certas ideias, ele está na posição de uma criança que quisesse fazer cálculo diferencial e integral, antes de saber as quatro operações. À medida que avançar para a perfeição, seus olhos abrir-se-ão à luz, e a névoa que os cobre se dissipará. Trabalhando seu melhoramento no presente, ele chegará mais cedo do que perdendo-se em conjecturas.
Variedades - A rainha Vitória e o Espiritismo
Lê-se em Le Salut Public, de Lyon, de 3 de junho de 1866, nas notícias de Paris:
“Lord Granville, durante sua curta estada em Paris, dizia a alguns amigos que a rainha Vitória se mostrava mais preocupada do que jamais se viu em qualquer época de sua vida, por causa do conflito austro-prussiano. Acrescentava o nobre lorde, presidente do conselho privado de sua majestade britânica, que a rainha acreditava obedecer à voz do defunto príncipe Alberto, nada poupando para evitar uma guerra que poria na fogueira a Alemanha inteira. Foi sob essa impressão, que não a deixa, que ela escreveu várias vezes ao rei da Prússia, bem como ao imperador da Áustria, e que também teria dirigido uma carta autógrafa à imperatriz Eugênia, suplicando-lhe unir seus esforços aos dela em favor da paz.”
Este fato confirma o que publicamos na Revista Espírita de março de 1864, sob o título de Uma rainha médium. Ali era dito, de acordo com uma correspondência de Londres, reproduzida por vários jornais, que a Rainha Vitória se comunicava com o Espírito do Príncipe Alberto e tomava seus conselhos em certas circunstâncias, como o fazia enquanto ele estava vivo. Remetemos a esse artigo, para os detalhes do fato e para as reflexões que ele suscitou. Ademais, podemos afirmar que a rainha Vitória não é a única cabeça coroada ou próxima à coroa, que simpatiza com as ideias espíritas, e todas as vezes que dissemos que a doutrina tinha adeptos até nos mais altos graus da escala social, não exageramos.
Muitas vezes perguntaram por que os soberanos, convictos da verdade e da existência desta doutrina, não consideravam um dever apoiá-la abertamente com a autoridade de seu nome. É que os soberanos talvez sejam os homens menos livres; mais que simples particulares, estão submetidos às exigências do mundo e obrigados, por razões de Estado, a certas manobras. Não nos permitiríamos citar a rainha Vitória, a propósito do Espiritismo, se outros jornais não houvessem tomado a iniciativa, e porque não houve desmentidos para o fato, nem reclamações, julgamos poder fazê-lo sem inconveniente. Sem dúvida, dia virá em que os soberanos poderão confessar-se espíritas, como se confessam protestantes, católicos gregos ou romanos. Enquanto se espera, sua simpatia não é tão estéril quanto se poderia crer, porque, em certos países, se o Espiritismo não é entravado e perseguido oficialmente, como o era o Cristianismo em Roma, ele o deve a altas influências. Antes de ser oficialmente protegido, deve contentar-se em ser tolerado, aceitar o que lhe dão e não pedir muito, com risco de nada obter. Antes de ser carvalho, ele não passa de caniço, e se o caniço não se quebra é porque se dobra ao vento.
“Lord Granville, durante sua curta estada em Paris, dizia a alguns amigos que a rainha Vitória se mostrava mais preocupada do que jamais se viu em qualquer época de sua vida, por causa do conflito austro-prussiano. Acrescentava o nobre lorde, presidente do conselho privado de sua majestade britânica, que a rainha acreditava obedecer à voz do defunto príncipe Alberto, nada poupando para evitar uma guerra que poria na fogueira a Alemanha inteira. Foi sob essa impressão, que não a deixa, que ela escreveu várias vezes ao rei da Prússia, bem como ao imperador da Áustria, e que também teria dirigido uma carta autógrafa à imperatriz Eugênia, suplicando-lhe unir seus esforços aos dela em favor da paz.”
Este fato confirma o que publicamos na Revista Espírita de março de 1864, sob o título de Uma rainha médium. Ali era dito, de acordo com uma correspondência de Londres, reproduzida por vários jornais, que a Rainha Vitória se comunicava com o Espírito do Príncipe Alberto e tomava seus conselhos em certas circunstâncias, como o fazia enquanto ele estava vivo. Remetemos a esse artigo, para os detalhes do fato e para as reflexões que ele suscitou. Ademais, podemos afirmar que a rainha Vitória não é a única cabeça coroada ou próxima à coroa, que simpatiza com as ideias espíritas, e todas as vezes que dissemos que a doutrina tinha adeptos até nos mais altos graus da escala social, não exageramos.
Muitas vezes perguntaram por que os soberanos, convictos da verdade e da existência desta doutrina, não consideravam um dever apoiá-la abertamente com a autoridade de seu nome. É que os soberanos talvez sejam os homens menos livres; mais que simples particulares, estão submetidos às exigências do mundo e obrigados, por razões de Estado, a certas manobras. Não nos permitiríamos citar a rainha Vitória, a propósito do Espiritismo, se outros jornais não houvessem tomado a iniciativa, e porque não houve desmentidos para o fato, nem reclamações, julgamos poder fazê-lo sem inconveniente. Sem dúvida, dia virá em que os soberanos poderão confessar-se espíritas, como se confessam protestantes, católicos gregos ou romanos. Enquanto se espera, sua simpatia não é tão estéril quanto se poderia crer, porque, em certos países, se o Espiritismo não é entravado e perseguido oficialmente, como o era o Cristianismo em Roma, ele o deve a altas influências. Antes de ser oficialmente protegido, deve contentar-se em ser tolerado, aceitar o que lhe dão e não pedir muito, com risco de nada obter. Antes de ser carvalho, ele não passa de caniço, e se o caniço não se quebra é porque se dobra ao vento.
Poesias espíritas
Méry, o sonhador(Grupo do Sr. L..., 4 de julho de 1866 - Médium: Sr. Vavasseur)
Apenas recém-nascido em vossa margem,
Vi uma mulher atenta
Dizer, espiando meu despertar:
Não perturbeis seu doce sono,
Ele sonha; e eu apenas nascia!
Um pouco mais tarde, na planície,
Eu desfolhava o trevo florido,
E diziam que Joseph Méry
Sonhava; e quando a pobre mãe
Me sentava na pedra branca
Que guardava a borda do riacho,
Ela também dizia:
Sonha ainda, Meu filho.
Mais tarde, no colégio,
Por ódio ou por desprezo,
O que sei eu!
Fugiam-me os amigos para longe,
Deixando-me só, a um canto,
A sonhar.
E quando a louca ebriez
Dos prazeres perturbou-me a juventude
A turma me apontava com o dedo,
Dizendo: “É Méry, que deve
Sonhar ainda.” E quando, mais prudente,
Quase em meio do caminho,
Fui julgado como escritor,
Diziam de mim: “É em vão
Que ele evoca a poesia
Em seus versos. É o devaneio
Que me vem ao seu apelo.
Méry, Faça o que quiser, será Méry.”
E quando a última prece
Abençoou-me a fria poeira,
Atento sob o meu sepulcro,
Ouvi uma palavra, uma só:
“Sonhador!” Ah! sim, na Terra
Sonhei. Por que calar, então,
Um sonho que não findou
E que começo aqui?
J. MÉRY.
A prece da morte pelos mortos
(SOCIEDADE DE PARIS, 13 DE JULHO DE 1866 — MÉDIUM: Sr. VAVASSEUR).
Os séculos rolaram no vórtice do tempo
Sem piedade, flores e frutos, frios invernos, doces primaveras,
E a morte passou sem bater à porta
Que escondia o tesouro que ela leva em segredo;
A vida! Ó morte!
A mão que tua mão dirige,
Cansada de bater, não poderá amanhã
Suspender seus golpes?
Tua fome insaciada
Ainda quer perturbar o banquete da vida?
Mas, se vens sem cessar, a qualquer hora do dia,
Buscar mortos entre nós para encher tua morada,
O universo é pouco para teus abismos profundos,
Ou teu vórtice é sem fundo para as pobres vítimas.
Ó morte!
Tu vês chorar a virgem sem chorar,
E murchas as flores que deviam orná-la,
Sem permitir que sua fronte cinja a coroa
De rosas e de lírios, que lhe dá o esposo.
Ó morte!
Tu não ouves os gritos da pobre criança,
E vens, impiedosa, feri-la ao nascer,
Sem deixar que seus olhos conheçam sua mãe
Que lhe dava o Céu quando lhe dava a Terra.
Ó morte!
Tu não ouves os desejos desse velho Implorando o favor, à honra da partida,
De abraçar seu filho e abençoar a filha,
Para dormir depressa e morrer mais tranquilo.
Mas, cruel!
Diz pra mim, o que será dos mortos
Que deixam nossa margem e vão às tuas praias?
Sofrerão sempre as dores da Terra
Durante a eternidade, e a prece
Não poderia, ao menos, lhes suavizar um dia?
E a morte respondeu: “Nesta sombria morada
Onde, livre, instalei meu tenebroso império,
A prece é poderosa e é Deus que a inspira
Aos meus súditos e a mim.
Quando venho, à tarde,
Em meu trono sangrento sentar-me pomposa,
Olho os céus e sou a primeira
A recitar baixinho a prece pelos mortos.
Escuta, filho, escuta: “Ó Deus Onipotente,
Do alto sobre eles, sobre mim, lança de relance
Um olhar piedoso.
Que um raio de esperança
Aclare enfim estes lugares onde chora o sofrimento.
Faze-nos ver, ó Deus, a terra do perdão,
Essa margem sem fim, essa plaga sem nome,
A terra dos eleitos, a pátria eterna
Onde a todos criaste a eterna vida;
Faze que cada um de nós, ante a tua vontade,
Se incline com respeito; perante a majestade
De teus secretos desígnios, se prosterne e adore;
Ante teu nome se curve e ainda se erga,
Exclamando: Senhor! Se me banistes
Da morada dos vivos, se me haveis punido
Na morada dos mortos, ante vós confesso
Ter merecido mais; batei, batei sem cessar,
Senhor, eu sofrerei sem jamais murmurar,
E meus olhos jamais chorarão bastante
Para lavar a indelével mancha do passado
Que sempre ao presente se liga vergonhosa.
Sofrerei vossos golpes, levarei minha cruz
Sem jamais maldizer vossas leis justas,
E quando julgardes finda a minha prova,
Senhor, se me derdes à pálida sombra
Os bens que ela perdeu no cativeiro,
A brisa, o sol, o ar puro, a liberdade,
O repouso e a paz, ante vós me comprometo
A orar, por meu lado, em minha nova plaga,
Pelos irmãos curvados ao peso das correntes
Que os retêm no fundo de seu inferno;
Por suas sombras em pranto, às bordas da outra margem,
Mudas, olhando a minha fugitiva,
Afastar-se dizendo-lhes: Coragem, meus amigos,
Eu cumprirei no Céu o que aqui prometi.”
CASIMIR DELAVIGNE.
Já publicamos outras poesias recebidas por esse médium nos números de junho e julho, sob os títulos de A teu livro e A prece pelos Espíritos. O Sr. Vavasseur é um médium versificador na acepção da palavra, pois só muito raramente obtém comunicações em prosa, e embora muito letrado e conhecedor das regras de poesia, jamais fez versos próprios. Perguntarão o que sabemos a respeito e quem nos disse que aquilo que supostamente é mediúnico não é produto de sua composição pessoal? Nós acreditamos, em primeiro lugar porque ele o afirma, e nós o consideramos incapaz de enganar, e em segundo lugar porque nele sendo a mediunidade completamente desinteressada, nenhuma razão teria de se dar a um esforço inútil e de representar uma comédia indigna de um caráter honesto. Sem dúvida a coisa seria mais evidente e, sobretudo, mais extraordinária se ele fosse completamente iletrado, como se vê em certos médiuns, mas os conhecimentos que ele possui não infirmariam a sua faculdade, porquanto ela é demonstrada por outras provas.
Que expliquem por que, por exemplo, se ele quiser compor algo dele mesmo, um simples soneto, nada obtém, ao passo que, sem o buscar, e sem desígnio premeditado, escreve trechos de grande fôlego, de um jato, mais rapidamente e mais correntemente do que escreveríamos prosa, sobre um assunto improvisado, no qual não pensava? Qual o poeta capaz de semelhante esforço, renovado quase que diariamente? Não poderíamos duvidá-lo, porque os trechos que citamos, e muitos outros, foram escritos às nossas vistas, na sociedade e em diferentes grupos, em presença de uma assembleia por vezes numerosa. Que todos os malabaristas que pretendem descobrir os supostos fios dos médiuns imitando mais ou menos grosseiramente alguns efeitos físicos venham, pois, desafiar certos médiuns escreventes e tratar, mesmo em simples prosa, instantaneamente, sem preparação nem retoque, o primeiro assunto surgido e as mais abstratas questões! É uma prova a que nenhum detrator jamais quis submeter-se.
A propósito, recordamo-nos que há seis ou sete anos um escritor e jornalista cujo nome por vezes figura na imprensa entre os trocistas do Espiritismo, veio nos procurar, dando-se por médium escrevente intuitivo e oferecer seu concurso à Sociedade. Dissemos-lhe que antes de aceitar sua obsequiosa oferta, era-nos preciso conhecer a extensão e a natureza de sua faculdade. Convocamo-lo, em consequência, para uma sessão particular de ensaio, na qual se encontravam quatro ou cinco médiuns. Apenas estes tomaram do lápis, começaram a escrever com uma rapidez que o deixou estupefato. Ele rabiscou três ou quatro linhas, com muitas rasuras, e reclamou que estava com dor de cabeça, o que perturbava a sua faculdade. Prometeu voltar, mas não o vimos mais. Ao que parece, os Espíritos só o assistem com a cabeça fresca e em seu gabinete.
É verdade que apareceram improvisadores, como o finado Eugène de Pradel, que cativaram os ouvintes por sua facilidade. Admiraram-se que eles nada tivessem publicado. A razão é muito simples. É que o que seduzia a audição não era suportável como leitura; não passava de um arranjo de palavras saídas de uma fonte abundante, onde excepcionalmente brilhavam alguns traços espirituosos, mas cujo conjunto era vazio de ideias sérias e profundas, e eivado de incorreções revoltantes. Não é essa a censura que se pode fazer aos versos que citamos, embora obtidos com quase tanta rapidez quanto os improvisos verbais. Se eles fossem fruto de um trabalho pessoal, seria uma singular humildade da parte do autor atribuir o mérito a outro e não a si, e privar-se da honra que daí poderia tirar.
Embora a mediunidade do Sr. Vavasseur seja recente, ele já possui uma coleção bem importante de poesias de um mérito real, que pretende publicar. Apressamo-nos em anunciar essa obra antes que apareça e que, não temos dúvida, será lida com interesse.
Que expliquem por que, por exemplo, se ele quiser compor algo dele mesmo, um simples soneto, nada obtém, ao passo que, sem o buscar, e sem desígnio premeditado, escreve trechos de grande fôlego, de um jato, mais rapidamente e mais correntemente do que escreveríamos prosa, sobre um assunto improvisado, no qual não pensava? Qual o poeta capaz de semelhante esforço, renovado quase que diariamente? Não poderíamos duvidá-lo, porque os trechos que citamos, e muitos outros, foram escritos às nossas vistas, na sociedade e em diferentes grupos, em presença de uma assembleia por vezes numerosa. Que todos os malabaristas que pretendem descobrir os supostos fios dos médiuns imitando mais ou menos grosseiramente alguns efeitos físicos venham, pois, desafiar certos médiuns escreventes e tratar, mesmo em simples prosa, instantaneamente, sem preparação nem retoque, o primeiro assunto surgido e as mais abstratas questões! É uma prova a que nenhum detrator jamais quis submeter-se.
A propósito, recordamo-nos que há seis ou sete anos um escritor e jornalista cujo nome por vezes figura na imprensa entre os trocistas do Espiritismo, veio nos procurar, dando-se por médium escrevente intuitivo e oferecer seu concurso à Sociedade. Dissemos-lhe que antes de aceitar sua obsequiosa oferta, era-nos preciso conhecer a extensão e a natureza de sua faculdade. Convocamo-lo, em consequência, para uma sessão particular de ensaio, na qual se encontravam quatro ou cinco médiuns. Apenas estes tomaram do lápis, começaram a escrever com uma rapidez que o deixou estupefato. Ele rabiscou três ou quatro linhas, com muitas rasuras, e reclamou que estava com dor de cabeça, o que perturbava a sua faculdade. Prometeu voltar, mas não o vimos mais. Ao que parece, os Espíritos só o assistem com a cabeça fresca e em seu gabinete.
É verdade que apareceram improvisadores, como o finado Eugène de Pradel, que cativaram os ouvintes por sua facilidade. Admiraram-se que eles nada tivessem publicado. A razão é muito simples. É que o que seduzia a audição não era suportável como leitura; não passava de um arranjo de palavras saídas de uma fonte abundante, onde excepcionalmente brilhavam alguns traços espirituosos, mas cujo conjunto era vazio de ideias sérias e profundas, e eivado de incorreções revoltantes. Não é essa a censura que se pode fazer aos versos que citamos, embora obtidos com quase tanta rapidez quanto os improvisos verbais. Se eles fossem fruto de um trabalho pessoal, seria uma singular humildade da parte do autor atribuir o mérito a outro e não a si, e privar-se da honra que daí poderia tirar.
Embora a mediunidade do Sr. Vavasseur seja recente, ele já possui uma coleção bem importante de poesias de um mérito real, que pretende publicar. Apressamo-nos em anunciar essa obra antes que apareça e que, não temos dúvida, será lida com interesse.
Noticia bibliográfica
Cantata espírita
Letra do Sr. Herczka e música do Sr. Armand Toussaint, de Bruxelas, com acompanhamento de piano.
Esse trecho não é dado como produção mediúnica, mas como obra de um artista inspirado por sua fé espírita. As pessoas competentes que ouviram a sua execução concordam em lhe conferir um mérito real, digno do assunto. Temos dito muitas vezes que o Espiritismo bem compreendido será uma fecunda mina para as artes, onde a poesia, a pintura, a escultura e a música haurirão novas inspirações. Haverá a arte espírita, como houve a arte pagã e a cristã.
(Venda em benefício dos pobres. Preço líquido, l,50 franco, porte franco para a França. À venda em Bruxelas, na sede da Sociedade Espírita, Rue de la Montagne, 51; em Paris, no escritório da Revista).
ALLAN KARDEC.
Esse trecho não é dado como produção mediúnica, mas como obra de um artista inspirado por sua fé espírita. As pessoas competentes que ouviram a sua execução concordam em lhe conferir um mérito real, digno do assunto. Temos dito muitas vezes que o Espiritismo bem compreendido será uma fecunda mina para as artes, onde a poesia, a pintura, a escultura e a música haurirão novas inspirações. Haverá a arte espírita, como houve a arte pagã e a cristã.
(Venda em benefício dos pobres. Preço líquido, l,50 franco, porte franco para a França. À venda em Bruxelas, na sede da Sociedade Espírita, Rue de la Montagne, 51; em Paris, no escritório da Revista).
ALLAN KARDEC.