Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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Junho

Monomania incendiária precoce - Estudo moral

Lê-se no Salut Public de Lyon, de 23 de fevereiro de 1866:

“A questão médico-legal da monomania homicida e da monomania incendiária, diz o Moniteur Judiciaire, foi e será, conforme toda a probabilidade, agitada ainda muitas vezes diante do júri e dos tribunais superiores.

“A propósito da monomania incendiária, podemos citar uma criança de Lyon, atualmente com quatro anos e meio, filho de honestos operários de seda domiciliados em Guillotière, que parece carregar em si, no último grau, o instinto incendiário. Mal seus olhos se abriam à luz e a visão das chamas parecia alegrálo. Aos dezoito meses ele sentia prazer em acender fósforos; aos dois anos punha fogo nos quatro cantos de um enxergão e destruía em parte o modesto mobiliário de seus pais. Hoje, às reprimendas que lhe fazem, só responde com ameaças de incêndio, e ainda na semana passada, tentava com um pouco de palha e pedaços de papel incendiar a alcova onde dormem os seus pais.

“Deixamos aos especialistas o cuidado de rebuscar as causas de tal monomania. Se ela não desaparecer com a idade, que sorte estará reservada ao infeliz que por ela é atingido?”

Diz o autor do artigo que deixa aos especialistas o cuidado de rebuscar as causas de tal monomania. De que especialistas quer falar? Dos médicos em geral, dos alienistas, dos sábios, dos frenologistas, dos filósofos ou dos teólogos? Cada um deles encarará a questão do ponto de vista de suas crenças materialistas, espiritualistas ou religiosas. Os materialistas, negando todo princípio inteligente, distinto da matéria, são incontestavelmente os menos próprios a resolvê-la de maneira completa. Fazendo do organismo a única fonte das faculdades e das inclinações, fazem do homem uma máquina movida fatalmente por uma força irresistível, sem livre-arbítrio e, por consequência, sem a responsabilidade moral de seus atos. Com tal sistema, todo criminoso pode desculpar-se com sua constituição, pois dele não dependeu fazer melhor. Numa sociedade onde tal princípio fosse admitido como verdade absoluta não haveria culpados, moralmente falando, e seria tão ilógico arrastar os homens à justiça quanto os animais.

Não falamos aqui senão das consequências sociais das doutrinas materialistas. Quanto à sua impossibilidade para resolver todos os problemas morais, ela está suficientemente demonstrada. Dir-se-á, com alguns, que as inclinações são hereditárias como os defeitos físicos? Ser-lhes-iam opostos os inumeráveis casos em que os pais mais virtuosos têm filhos instintivamente viciosos, e vice-versa. No caso que nos ocupa, é notório que a criança não herdou sua monomania incendiária de nenhum membro de sua família.

Sem dúvida os espiritualistas reconhecerão que essa inclinação se deve a uma imperfeição da alma ou Espírito, mas não deixarão de ser barrados por dificuldades insustentáveis apenas com os elementos até hoje disponíveis. A prova de que os dados atuais da Ciência, da Filosofia e da Teologia não fornecem nenhum princípio sólido para a solução dos problemas dessa natureza, é que não há um só que seja bastante evidente, bastante racional para ligar a maioria, e que se está reduzido às opiniões individuais, todas divergentes umas das outras.

Os teólogos que admitem como princípio dogmático a criação da alma no mesmo instante do nascimento de cada corpo, são talvez os que mais terão dificuldades para conciliar essas perversidades inatas com a justiça e a bondade de Deus. Conforme sua doutrina, eis, pois, um menino criado com instinto incendiário, votado, desde à sua formação, ao crime e a todas as suas consequências, para a vida presente e para a vida futura! Como há meninos instintivamente bons e outros maus, então Deus cria algumas almas boas e outras más? É a consequência lógica. Por que essa parcialidade? Com a doutrina materialista, o culpado se desculpa com a sua organização; com a da Igreja, ele pode apegar-se a Deus, dizendo que não é sua falta se ele o criou com defeitos.

É de admirar que haja pessoas que reneguem Deus, quando o mostram injusto e cruel em seus atos e parcial para com as criaturas? É a maneira pela qual a maior parte das religiões o representam que produz incrédulos e ateus. Se desde o início tivesse sido organizado um quadro em todos os pontos conciliável com a razão, não haveria incrédulos; é pela impossibilidade de se poder aceitá-lo tal como o fazem, com as mesquinharias e as paixões humanas que lhe atribuem que tanta gente busca fora dele a explicação das coisas.

Todas as vezes que a Teologia, premida pela inexorável lógica dos fatos, se acha num impasse, ela se retrai por detrás destas palavras: “Mistério incompreensível!” Pois bem! Diariamente vemos levantarse uma ponta do véu do que outrora era mistério, e a questão que nos ocupa está nesse número.

Essa questão está longe de ser pueril, e seria erro aí não ver senão um fato isolado ou, se quiserem, uma anomalia, uma bizarria sem consequência da Natureza. Ela tange todas as questões de educação e de moralização da Humanidade e, por isso mesmo, os mais graves problemas de economia social. É rebuscando a causa primeira dos instintos e dos pendores inatos que se descobrirão os meios mais eficazes de combater os maus e desenvolver os bons. Quando esta causa for conhecida, a educação possuirá a mais poderosa alavanca moralizadora que ela jamais teve.

Não se pode negar a influência do meio e do exemplo sobre o desenvolvimento dos bons e dos maus instintos, porque o contágio moral é tão manifesto quanto o contato físico. Contudo, essa influência não é exclusiva, pois se veem seres perversos nas mais honradas famílias, ao passo que outros saem puros do charco. Há, pois, incontestavelmente, disposições inatas, e se tivéssemos dúvida, o fato que nos ocupa disso seria uma prova irrefutável. Assim, eis um menino que, antes de saber falar, se compraz à vista da destruição pelo fogo; que aos dois anos incendeia voluntariamente um mobiliário, e que aos quatro anos compreende de tal modo o que faz, que responde às reprimendas por ameaças de incêndio.

Ó vós todos, médicos e sábios que pesquisais com tanta avidez os menores casos patológicos insólitos para transformá-los em assunto de vossas meditações, por que não estudais com o mesmo cuidado esses fenômenos estranhos que com razão podem ser qualificados de patologia moral? Por que não vos inteirais deles para descobrir-lhes a origem? Com isto a Humanidade ganharia pelo menos tanto quanto pela descoberta de um filete nervoso. Infelizmente a maioria dos que não desdenham ocupar-se com essas questões o fazem partindo de uma ideia preconcebida à qual tudo querem sujeitar: o materialista às leis exclusivas da matéria, o espiritualista à ideia que faz da natureza da alma, conforme as suas crenças. Antes de concluir, o mais sábio é estudar todos os sistemas, todas as teorias, com imparcialidade, e ver qual delas resolve melhor e mais logicamente o maior número de dificuldades.

A diversidade das aptidões intelectuais e morais inatas, independentes da educação e de todas as aquisições na vida presente, é um fato notório: é o conhecido. Partindo desse fato para chegar ao desconhecido, diremos que se a alma é criada ao nascimento do corpo, torna-se evidente que Deus cria almas de todas as qualidades. Ora, sendo essa doutrina inconciliável com o princípio de soberana justiça, forçosamente deve ser descartada. Mas se a alma não é criada no nascimento do indivíduo, é que ela existia antes. Com, efeito, é na preexistência da alma que se encontra a única solução possível e racional da questão e de todas as anomalias aparentes das faculdades humanas. As crianças que instintivamente têm aptidões transcendentes para uma arte ou uma ciência, que possuem certos conhecimentos sem havêlos aprendido, como os calculadores naturais, como aqueles aos quais, ao nascer, a música parece familiar; esses linguistas natos, como uma senhora da qual teremos, mais tarde, ocasião de falar e que, aos nove anos, dava lições de grego e de latim aos irmãos e aos doze lia e traduzia o hebraico, devem ter aprendido estas coisas nalgum lugar. Ora, se não foi nesta existência deve ter sido em outra.

Sim, o homem já viveu, não uma vez, mas talvez mil vezes; em cada existência suas ideias se desenvolveram; ele adquiriu conhecimentos dos quais traz a intuição na existência seguinte, e que o ajudam a adquirir novas. Dá-se o mesmo com o progresso moral. Os vícios de que se desfez não aparecem mais; os que conservou se reproduzem até que deles se corrija definitivamente.

Numa palavra, o homem nasce tal qual se fez ele próprio. Aqueles que viveram mais, mais adquiriram e melhor aproveitaram, são mais adiantados que os outros. Tal é a causa da diversidade dos instintos e das aptidões que entre eles se notam. Tal é, também, a razão pela qual vemos, na Terra, selvagens, bárbaros e homens civilizados. A pluralidade das existências é a chave de uma porção de problemas morais, e é por ter sido ignorado esse princípio que tantas questões ficaram insolúveis. Que o admitam apenas a título de hipótese, se quiserem, e verão aplainadas todas as dificuldades.

O homem civilizado chegou a um ponto em que não mais se contenta com a fé cega. Ele quer conhecer tudo, saber o como e o porquê cada coisa; preferirá, pois, uma filosofia que explica a outra que não explica. Ademais, a ideia da pluralidade das existências, como todas as grandes verdades, germina numa porção de cérebros, fora do Espiritismo, e como ela satisfaz à razão, não está longe o tempo em que será posta entre as leis que regem a Humanidade.

Que diremos agora do menino que deu assunto para este artigo? Seus instintos atuais se explicam por seus antecedentes. Ele nasceu incendiário, como outros nasceram poetas ou artistas, porque, sem a menor dúvida, foi incendiário em outra existência e lhe conservou o instinto.

Mas então, perguntarão, se cada existência é um progresso, na presente o progresso é nulo para ele.

Isto não é uma razão. De seus instintos atuais não se deve concluir que o progresso seja nulo. O homem não se despoja subitamente de todas as suas imperfeições. Esse menino provavelmente teria outras, que o tornavam pior do que é hoje. Ora, ainda que tivesse avançado apenas um passo, se só tivesse o arrependimento e o desejo de melhorar, ainda assim seria um progresso. Se esse instinto nele se manifesta de maneira tão precoce, é para cedo chamar a atenção sobre as suas tendências, a fim de que os pais e os que forem encarregados de sua educação procurem reprimi-las antes que se desenvolvam. Talvez ele mesmo tenha pedido que assim fosse, e que nascesse numa família honrada, pelo desejo de progredir.

É uma grande tarefa para seus pais, porque é uma alma tresmalhada que lhes é confiada para conduzir ao reto caminho, e sua responsabilidade seria grande se não fizessem, com esse objetivo, tudo quanto estivesse ao seu alcance. Se seu filho estivesse doente, cuidariam dele com solicitude. Devem olhá-lo como atingido por uma doença moral grave, que requer cuidados não menos assíduos.

De acordo com todas essas considerações, cremos sem vaidade que os espíritas são os melhores especialistas em semelhante circunstância, precisamente porque se dão ao estudo dos fenômenos morais e os apreciam, não segundo ideias pessoais, mas conforme as leis naturais.

Tendo sido esse fato apresentado à Sociedade de Paris como assunto de estudo, foi feita aos Espíritos a pergunta seguinte:

Qual a origem do instinto incendiário precoce nesse menino, e quais seriam os meios de combatê-lo pela educação?

Quatro respostas concordantes foram dadas. Citaremos apenas as duas seguintes:

(Sociedade de Paris, 13 de abril de 1866. - Médium: Sr. Br...)

I

Perguntais qual foi a existência desse menino que mostra uma inclinação tão precoce para a destruição e particularmente para o incêndio. Ora! Seu passado é horrível e suas tendências atuais vos dizem o que ele pôde fazer. Ele veio para expiar, e deve lutar contra seus instintos incendiários. É uma grande provação para os seus pais, que estão constantemente sob a ameaça de suas maldades, e não sabem como reprimir essa funesta inclinação. O conhecimento do Espiritismo lhes seria um poderoso auxílio, e Deus, em sua misericórdia, lhes concederá essa graça, porque é só por este conhecimento que se pode esperar melhorar esse Espírito.

Esse menino é uma prova evidente da anterioridade da alma na encarnação presente. Vós o sabeis: esse estranho estado moral desperta a atenção e faz refletir. Deus se serve de todos os meios para vos fazer chegar ao conhecimento da verdade acerca de vossa origem, de vossa progressão e de vosso destino.

Um Espírito.

(Médium: Senhorita Lat...)

II

O Espiritismo já representou um grande papel no vosso mundo, mas o que vistes é apenas o prelúdio do que estais chamados a ver. Quando a Ciência fica muda ante certos fatos que a Religião também não pode resolver, o Espiritismo lhe vem dar a solução. Quando a ciência falta aos vossos sábios, eles põem a causa de lado, por falta de explicações suficientes. Em muitas circunstâncias, as luzes do Espiritismo lhes poderiam ser de grande auxílio, notadamente neste caso de monomania incendiária. Para eles, é um gênero de loucura, porque olham todas as monomanias como loucuras. Eis um grande erro. Aqui a medicina nada tem a fazer. Cabe aos espíritas agirem.

Não é admissível para vós que essa inclinação para destruir pelo fogo date da presente existência; há que remontar mais alto e ver nas inclinações perversas desse menino um reflexo de seus atos anteriores.

Além disto, ele é encorajado por aqueles que foram suas vítimas, porque, para satisfazer à sua ambição, ele não recuou nem diante do incêndio nem diante do sacrifício dos que podiam constituir-lhe obstáculo. Numa palavra, está sob a influência de Espíritos que ainda não lhe perdoaram os tormentos que ele lhes fez sofrer. Eles esperam a vingança.

Ele tem como prova sair vitorioso dessa luta. Mas Deus, em sua soberana justiça, pôs o remédio ao lado do mal. Com efeito, esse remédio está em sua tenra idade e na boa influência do meio onde se acha. Hoje, o menino ainda nada pode: Cabe aos pais velar; mais tarde ele próprio deverá vencer, e enquanto não for senhor de sua posição, a luta se perpetuará. Seria necessário que ele fosse educado nos princípios do Espiritismo; aí ele colheria a força e, compreendendo a sua prova, teria mais vontade de triunfar.

Bons Espíritos encarregados de esclarecer os encarnados, voltai o olhar para essa pobre criança cujo castigo é justo; ide a ele, ajudai-o, dirigi os seus pensamentos para o Espiritismo, a fim de que ele triunfe mais depressa e que a luta termine com vantagens para ele.

Um Espírito.


Tentativa de assassinato do Imperador da Rússia

Estudo psicológico

O Indépendance Belge de 30 de abril, sob o título de Notícias da Rússia, correspondência de São Petersburgo, dá um relato minucioso das circunstâncias que seguiram ao atentado de que foi vítima o czar. Além disso, fala de certos indícios precursores do crime e contém a respeito esta passagem:

“Conta-se que o governador de São Petersburgo, o príncipe Souwouroff, tinha recebido uma carta anônima assinada N.N.N., na qual se ofereciam, por meio de certas informações, para desvendar um mistério importante, pedindo uma resposta na Gazeta da Polícia. A resposta apareceu e está assim concebida: “A chancelaria do governador geral convida N.N.N. a vir amanhã, entre onze e duas horas, para dar certas explicações”. Mas o anônimo não apareceu; ele enviou uma segunda carta, alegando que era muito tarde e não tinha mais a liberdade de ir.

“O convite foi reiterado dois dias após o atentado, mas sem resultado.

“Enfim, como último indício, algumas pessoas acabam de se lembrar que três semanas antes do atentado, o jornal alemão Die Gartenlaube publicou um relato de uma sessão espírita realizada em Heildelberg, na qual o Espírito de Catarina II anunciava que o imperador Alexandre estava ameaçado de um grande perigo.

“Dificilmente se compreende, depois de tudo isto, como a polícia secreta russa não pôde ser informada a tempo acerca do crime que se preparava. Essa polícia, que custa muito caro, e que inunda de espiões inúteis todos os nossos círculos e assembleias públicas, não soube não só descobrir a tempo o complô, mas até mesmo cercar o soberano com a sua vigilância, o que é elementar e absolutamente necessário, sobretudo com um príncipe que sai quase sempre só, seguido de seu cão enorme; que faz passeios a pé nas horas matinais, sem estar acompanhado por um ajudante de ordens. No próprio dia do atentado eu encontrei o imperador na rua Millonaïa, às nove e meia da manhã. Ele estava completamente só e saudava com afabilidade os que o reconheciam. A rua estava quase deserta e os policiais eram muito raros.”

O que há sobretudo de notável neste artigo é a menção, sem comentário, do aviso dado pelo Espírito de Catarina II numa sessão espírita. Teriam eles posto esse fato entre os indícios precursores, se considerassem as comunicações espíritas como palhaçada ou ilusão? Numa questão tão grave, teriam evitado fazer intervir uma crença considerada ridícula. É uma nova prova da reação que se opera na opinião, a respeito do Espiritismo.

Temos que analisar o fato do atentado sob outro ponto de vista. Sabe-se que o imperador deve sua salvação a um jovem camponês chamado Joseph Kommissaroff que, achando-se à sua passagem, desarmou o assassino. Sabe-se, também, os favores de toda natureza com que este último foi cumulado. Ele foi feito nobre, e as dádivas que recebeu lhe asseguram uma fortuna considerável.

Esse jovem se dirigia para uma capela situada do outro lado do Neva por ocasião de seu aniversário natalício; nesse momento havia começado o degelo e a circulação estava interrompida, por isso ele teve que renunciar ao seu plano. Devido a essa circunstância, ele ficou na outra margem do rio, na passagem do imperador, que saía do jardim de verão. Tendo-se misturado com a multidão, ele percebeu um indivíduo que procurava aproximar-se, e cujas atitudes lhe pareceram suspeitas; seguiu-o e tendo-o visto tirar uma pistola do bolso e apontá-la para o imperador, teve a presença de espírito de lhe bater debaixo do braço, o que fez o tiro partir para o ar.

Que feliz acaso, exclamarão certas pessoas, que justo no momento o degelo tenha impedido a Kommissaroff de atravessar o Neva! Para nós, que não cremos no acaso, mas que tudo está submetido a uma direção inteligente, diremos que estava nas provas do czar correr aquele perigo (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XXV: Prece num perigo iminente), mas que sua hora não tendo ainda chegado, Kommissaroff havia sido escolhido para impedir a realização do crime, e que as coisas que parecem efeito do acaso estavam organizadas para levar ao resultado desejado.

Os homens são os instrumentos inconscientes dos desígnios da Providência. É por intermédio deles que ela os realiza, sem que haja necessidade de recorrer a prodígios. Basta a mão invisível que os dirige, e nada foge da ordem das coisas naturais.

Se assim é, dirão, o homem não passa de uma máquina, e suas ações são fatais. ─ Absolutamente, porque se ele é solicitado a fazer uma coisa, não é constrangido a isso; ele não deixa de conservar o livrearbítrio, em virtude do qual pode fazê-la ou não, e a mão que o conduz fica invisível, precisamente para lhe deixar mais liberdade. Assim, Kommissaroff podia muito bem não ceder ao impulso oculto que o dirigia para a passagem do imperador; podia ficar indiferente, como tantos outros, à vista do homem e de sua atitude suspeita; enfim, poderia ter olhado para outro lado, no momento em que este último tirava a pistola do bolso. ─ Mas, então, se ele tivesse resistido a esse impulso, o imperador teria sido morto? ─ Também não. Os desígnios da Providência não estão à mercê do capricho de um homem. A vida do imperador devia ser preservada; em falta de Kommissaroff, teria sido por outro meio; uma mosca poderia picar a mão do assassino e obrigá-lo a um movimento involuntário; uma corrente fluídica sobre ele dirigida poderia ter-lhe provocado um ofuscamento. Se Kommissaroff não tivesse escutado a voz íntima que o guiava malgrado seu, ele apenas teria perdido o benefício da ação que estava incumbido de realizar. Eis tudo o que teria resultado. Mas, se tivesse soado a hora fatal para o czar, nada poderia tê-lo preservado. Ora, os perigos iminentes que corremos têm precisamente por objetivo mostrar-nos que nossa vida pende por um fio, que pode romper-se no momento em que menos pensamos nela, e por isso advertir-nospara estarmos sempre prontos para partir.

Mas, por que esse jovem camponês em vez de um outro? Para quem não vê nos acontecimentos um simples jogo do acaso, tudo tem a sua razão de ser. Devia, pois, haver um motivo na escolha daquele moço, e mesmo que esse motivo nos fosse desconhecido, a Providência nos dá muitas provas de sua sabedoria, para não duvidarmos que tal escolha tinha sua utilidade.

Apresentada essa questão como tema de estudo numa reunião espírita em casa de uma família russa residente em Paris, um Espírito deu a seguinte explicação.


(Paris, 1º de maio de 1866 ─ Médium: Sr. Desliens)

Mesmo na existência do mais ínfimo dos seres, nada é deixado ao acaso. Os principais acontecimentos de sua vida são determinados por sua provação: os detalhes são influenciados por seu livre-arbítrio. Mas o conjunto das situações foi previsto e combinado antecipadamente por ele próprio e por aqueles que Deus prepôs à sua guarda.

No presente caso, as coisas se passaram dentro da normalidade. Sendo esse moço já avançado e inteligente, escolheu como provação nascer em condição miserável, depois de ter ocupado uma alta posição social; estando já desenvolvidas a sua inteligência e a sua moralidade, ele pediu uma condição humilde e obscura, para extinguir as últimas sementes do orgulho que nele havia deixado o espírito de casta. Escolheu livremente, mas Deus e os bons Espíritos decidiram recompensá-lo na primeira manifestação de devotamento desinteressado e vedes em que consiste sua recompensa.

Resta-lhe agora, em meio às honrarias e à fortuna, conservar intacto o sentimento de humildade que foi a base de sua nova encarnação. Assim, é ainda uma prova e uma dupla prova, na sua qualidade de homem e na sua qualidade de pai. Como homem, deve resistir à embriaguez de uma alta e súbita fortuna; como pai, deve preservar os filhos da arrogância dos novos ricos. Ele pode criar-lhes uma posição admirável; pode aproveitar sua posição intermediária para fazer deles homens úteis ao seu país. Plebeus de nascimento e nobres pelo mérito de seu pai, eles poderão, como muitos dos que encarnam presentemente na Rússia, trabalhar poderosamente pela fusão de todos os elementos heterogêneos, pela extinção do elemento servil, que durante muito tempo, entretanto, não poderá ser destruído de maneira radical.

Nessa promoção há uma recompensa, sem dúvida, porém, mais do que isso, há uma prova. Sei que na Rússia o mérito recompensado encontra mercê diante dos grandes; mas lá, como alhures, o novo rico orgulhoso e compenetrado de seu valor é vítima das troças; ele se torna joguete de uma sociedade que em vão se esforça por imitar. O ouro e as grandezas não lhe deram a elegância e o espírito do mundo. Desprezado e invejado por aqueles em cujo meio nasceu, é muitas vezes isolado e infeliz em seu fausto.

Como vedes, nem tudo é agradável nessas elevações súbitas e sobretudo quando atingem tais proporções. Para esse moço, esperamos em razão de suas excelentes qualidades, que ele saiba gozar em paz as vantagens que lhe proporcionou sua ação, e evitar as pedras de tropeço que poderiam retardar sua marcha no caminho do progresso.

MOKI


OBSERVAÇÃO: Em falta de provas materiais sobre a exatidão desta explicação, há que convir que ela é eminentemente racional e instrutiva, e como o Espírito que a deu é sempre caracterizado pela gravidade e alto alcance de suas comunicações, consideramos esta como tendo todos os caracteres da probabilidade.

A nova posição de Kommissaroff é um efeito muito escorregadio para ele, e seu futuro depende da maneira pela qual suportará essa prova, cem vezes mais perigosa que as desgraças materiais às quais a gente se resigna à força, ao passo que é bem mais difícil resistir às tentações do orgulho e da opulência. Que força ele não hauriria do conhecimento do Espiritismo e das verdades que ele ensina!

Mas, como pudemos notar, as vistas da Providência não se detêm nesse moço. Submetendo-se a sua prova, e pelo próprio fato da prova, ele pode, pelo encadeamento das circunstâncias, tornar-se um elemento de progresso para o seu país, ajudando na destruição dos preconceitos de casta. Assim, tudo se liga no mundo, pelo concurso das forças inteligentes que o dirigem. Nada é inútil, e as coisas aparentemente menores podem conduzir aos maiores resultados, e isto sem derrogar as leis da Natureza. Se pudéssemos ver o mecanismo que nos ocultam a nossa natureza material e a nossa inferioridade, de que admiração não seríamos tomados! Mas se não podemos vê-lo, o Espiritismo, revelando as suas leis, no-lo faz compreensível pelo pensamento, e é assim que ele nos eleva, aumenta a nossa fé e a nossa confiança em Deus, e que combate vitoriosamente a incredulidade.


Um sonho instrutivo

Durante a última doença que tivemos durante o mês de abril de 1866, estávamos sob o império de uma sonolência e uma absorção quase contínuas; nesses momentos sonhávamos constantemente com coisas insignificantes, às quais não prestávamos a menor atenção. Mas na noite de 24 de abril, a visão ofereceu um caráter tão particular que ficamos vivamente chocado.

Num lugar que nenhuma lembrança trazia à nossa memória e que se parecia com uma rua, havia uma reunião de indivíduos que conversavam em grupo; entre eles, só alguns nos eram conhecidos em sonho, mas que não podíamos designar pelo nome. Observávamos essa multidão e procurávamos captar o assunto da conversa, quando de repente apareceu no canto de uma parede uma inscrição em letras pequenas, brilhantes como fogo, e que nos esforçávamos por decifrar. Ela estava assim concebida: Descobrimos que a borracha enrolada sob a roda faz uma légua em dez minutos, desde que a estrada... Enquanto procurávamos o fim da frase, a inscrição apagou-se pouco a pouco e nós acordamos. Com receio de esquecer essas palavras singulares, apressamo-nos em transcrevê-las.

Qual podia ser o sentido dessa visão, que nada absolutamente em nossos pensamentos e preocupações podia ter provocado? Não nos ocupando de invenções nem de pesquisas industriais, isto não podia ser um reflexo de nossas ideias. Depois, que podia significar essa borracha que, enrolada sob uma roda, faz uma légua em dez minutos? Era a revelação de alguma nova propriedade dessa substância? Seria ela chamada a representar um papel na locomoção? Quereriam pôr-nos na via de uma descoberta? Mas então, por que dirigir-se a nós em vez de a homens especiais, com oportunidade de fazer os estudos e as experiências necessárias? Contudo, esse sonho era muito característico, muito especial, para ser posto entre os sonhos de fantasia; devia ter um objetivo. Qual? Foi o que tentamos descobrir inutilmente.

Durante o dia, tendo tido ocasião de consultar o Dr. Demeure sobre a nossa saúde, aproveitamos para lhe pedir que nos dissesse se esse sonho apresentava algo de sério. Eis o que ele respondeu:

“Os numerosos sonhos que vos assediarem nestes últimos dias são o resultado do próprio sofrimento que experimentais. Todas as vezes que há enfraquecimento do corpo, há tendência para o desprendimento do Espírito; mas quando o corpo sofre, o desprendimento não se opera de maneira regular e normal; o Espírito é incessantemente chamado ao seu posto; daí uma espécie de luta, de conflito entre as necessidades materiais e as tendências espirituais; daí, também, interrupções e misturas que confundem as imagens e as transformam em conjuntos bizarros e desprovidos de sentido. Mais do que se pensa, o caráter dos sonhos se liga à natureza da doença. É um estudo a fazer, e os médicos aí encontrarão muitas vezes diagnósticos preciosos, quando reconhecerem a ação independente do Espírito e o papel importante que ele representa na economia. Se o estado do corpo reage sobre o Espírito, por seu lado o estado do Espírito influi poderosamente sobre a saúde e, em certos casos, é tão útil agir sobre o Espírito quanto sobre o corpo. Ora, a natureza dos sonhos pode, muitas vezes, ser indício do estado do Espírito. Repito que é um estudo a fazer, até hoje negligenciado pela Ciência, que não vê em toda parte senão a ação da matéria e não leva em conta o elemento espiritual

“O sonho que me assinalais, do qual guardastes uma lembrança tão clara, parece-me pertencer a outra categoria. Ele contém um fato notável e digno de atenção. Certamente foi motivado, mas presentemente eu não vos poderia dar uma explicação satisfatória; só poderia dar-vos a minha opinião pessoal, da qual não tenho muita certeza. Tomarei minhas informações em boa fonte, e amanhã vos informarei o que tiver apreendido.”

No dia seguinte deu-nos esta explicação:

“O que vistes no sonho que estou encarregado de explicar-vos não é uma dessas imagens fantásticas provocadas pela doença; é incontestavelmente uma manifestação, não de Espíritos desencarnados, mas de Espíritos encarnados. Sabeis que durante o sono podeis encontrar-vos com pessoas conhecidas ou desconhecidas, mortas ou vivas. Foi este último caso que ocorreu nessa circunstância. Os que vistes são encarnados que se ocupam separadamente, e na maioria sem se conhecerem, com invenções tendentes a aperfeiçoar os meios de locomoção, anulando, tanto quanto possível, o excesso de despesa causado pelo gasto de materiais hoje em uso. Uns pensaram na borracha, outros em outros materiais, mas o que há de particular é que quiseram chamar a vossa atenção, como assunto de estudo psicológico, sobre a reunião, num mesmo lugar, dos Espíritos de diversos homens perseguindo o mesmo objetivo. A descoberta não tem relação com o Espiritismo; é apenas o conciliábulo dos inventores que vos quiseram fazer ver, e a inscrição não tinha outro objetivo senão especificar, aos vossos olhos o objeto principal de sua preocupação, pois há alguns que procuram outras aplicações para a borracha. Ficai persuadido que isso ocorre muitas vezes, e que quando vários homens descobrem ao mesmo tempo uma nova lei ou um novo corpo, em diversos pontos do globo, seus Espíritos estudaram a questão em conjunto, durante o sono, e, ao despertar, cada um trabalhou por seu lado, colocando em prática o fruto de suas observações.

“Notai bem que aí estão ideias de encarnados, e que nada prejulgam quanto ao mérito da descoberta. Pode ser que de todos esses cérebros em ebulição saia algo de útil, como é possível que apenas saiam quimeras. Não vos preciso dizer que seria inútil interrogar os Espíritos a respeito, pois sua missão, como dissestes em vossas obras, não é poupar ao homem o trabalho das pesquisas, trazendo-lhe invenções acabadas que seriam outras tantas causas para o encorajamento da preguiça e da ignorância. Nesse grande torneio da inteligência humana, cada um aí está por conta própria, e a vitória será do mais hábil, do mais perseverante, do mais corajoso.

Pergunta. ─ Que pensar das descobertas atribuídas ao acaso? Não há descobertas que não são fruto de nenhuma pesquisa?

Resposta. ─ Bem sabeis que não existe acaso; as coisas que vos parecem as mais fortuitas têm sua razão de ser, pois há que se contar com as inumeráveis inteligências ocultas que presidem a todas as partes do conjunto. Se é chegado o momento de uma descoberta, os elementos são postos à luz por essas mesmas inteligências. Vinte homens, cem homens passarão ao lado sem notá-la; um apenas nela fixará a atenção. O fato insignificante para a multidão é para ele um facho de luz. Encontrá-lo não era tudo; o essencial era saber pô-lo em ação. Não foi o acaso que o pôs sob os olhos, mas os bons Espíritos que lhe disseram: “Olha, observa e aproveita, se quiseres”. Depois, ele próprio, nos momentos de liberdade de seu Espírito, durante o sono do corpo, pode ser posto no caminho e, ao despertar, instintivamente, ele se dirige para o lugar onde deve encontrar a coisa que está chamado a fazer frutificar por sua inteligência.”

“Não. Não há acaso. Tudo é inteligente na Natureza.”


Visão retrospectiva das várias encarnações de um Espírito

(Sono dos Espíritos) Pelo Dr. Cailleux
(Sociedade espírita de Paris, 11 de maio de 1866 - Médium: Sr. Morin)

Vosso bom acolhimento e as boas preces que fizestes em minha intenção obrigam-me a vos agradecer vivamente e vos assegurar o meu eterno devotamento. Desde a minha entrada na verdadeira vida, bem depressa familiarizei-me com todas as novidades, nas muito suaves exigências de minha situação atual. Hoje me chamam de todos os lados, não mais, como outrora, para dar meus cuidados aos corpos doentes, mas para levar alívio às doenças da alma. A tarefa é suave para desempenhar, e com mais rapidez do que outrora eu chegava à cabeceira dos doentes, hoje atendo ao chamado das almas sofredoras. Posso mesmo ─ e isto nada tem de admirável para mim ─ transportar-me quase que instantaneamente de um a outro ponto, com a mesma facilidade com que o meu pensamento passa de um a outro assunto. Apenas o que me admira é que eu possa fazê-lo, eu mesmo!...

Meus bons amigos, tenho que vos falar de um fato espiritual que me acontece, e que venho submeter ao vosso julgamento, para que me ajudeis a reconhecer o meu erro, se eu estiver enganado em minhas apreciações a respeito. Sabeis que como médico, em minha última encarnação, eu tinha-me dedicado com ardor aos estudos de minha profissão. Tudo quanto se referia à Medicina era para mim assunto de observação. Devo dizer, sem orgulho, que tinha adquirido alguns conhecimentos, talvez porque nem sempre seguisse ao pé da letra a rota traçada pela rotina. Muitas vezes buscava no moral o que pudesse trazer perturbação ao físico; talvez seja por isto que eu conhecia minha profissão um pouco melhor do que certos colegas. Enfim, eis o caso: Há alguns dias senti uma espécie de torpor apoderar-se de meu Espírito, e embora conservando a consciência de mim mesmo, senti-me transportado no espaço; quando cheguei a um lugar que para vós não tem nome encontrei-me numa reunião de Espíritos que em vida tinham adquirido alguma celebridade pelas descobertas que haviam feito.

Lá fiquei muito surpreso ao reconhecer nesses anciãos de todas as idades, nesses nomes de todas as épocas, uma semelhança perispiritual comigo. Perguntei-me o que tudo aquilo significava; dirigi-lhes as perguntas que me sugeria a minha posição, mas minha admiração foi ainda maior, ouvindo-me responder a mim mesmo. Voltei-me, então, para eles, e encontrei-me só. Eis minhas deduções...

DR. CAILLEUX


NOTA: Tendo parado aí, o Espírito continuou na sessão seguinte.

A questão dos fluidos, que constitui o fundo dos vossos estudos, representou um papel muito grande no fato que eu vos relatava na última sessão. Hoje posso explicar-vos melhor o que aconteceu e, em vez de vos dizer quais eram as minhas conjecturas, posso dizer-vos o que me revelaram os bons amigos que me guiam no mundo dos Espíritos.

Quando meu Espírito sofreu uma espécie de entorpecimento, eu estava, por assim dizer, magnetizado pelo fluido de meus amigos espirituais; por uma permissão de Deus, daí devia resultar uma satisfação moral que, dizem eles, é a minha recompensa e, ademais, um encorajamento para marchar num caminho que meu Espírito percorre há um bom número de existências.

Eu estava, pois, adormecido num sono magnético-espiritual; vi o passado formar-se num presente fictício; reconheci individualidades desaparecidas na esteira do tempo, ou melhor, que tinham sido um mesmo indivíduo. Vi um ser começar uma obra médica; um outro, mais tarde, continuar a obra que o primeiro deixara esboçada, e assim por diante. Cheguei a ver em menos tempo do que levo para vos dizer, de geração em geração, formar-se, crescer e tornar-se ciência, o que, no princípio, não passava dos primeiros ensaios de um cérebro ocupado em estudos para o alívio da Humanidade sofredora. Vi tudo isso, e quando cheguei ao último desses seres que sucessivamente tinham trazido um complemento à obra, então me reconheci. Então tudo se extinguiu e eu voltei a ser o Espírito ainda atrasado do vosso pobre doutor. Ora, eis aqui a explicação. Não vo-la dou para me envaidecer, longe disso, mas principalmente para vos fornecer um assunto de estudo, falando-vos do sono espiritual que, sendo elucidado por vossos guias, só me pode ser útil, pois assisto a todos os vossos trabalhos.

Nesse sono, vi os diferentes corpos que meu Espírito animou em algumas encarnações e todos trabalharam na ciência médica, sem jamais se afastar dos princípios que o primeiro havia elaborado. Esta última encarnação não era para aumentar o conhecimento, mas simplesmente para praticar o que ensinava a minha teoria.

Com tudo isto, fico sempre vosso devedor. Mas, se o permitirdes, virei pedir-vos lições, e eventualmente dar minha opinião pessoal sobre certas questões.

DR. CAILLEUX


Estudo

Há aqui um duplo ensinamento: para começar, há o fato da magnetização de um Espírito por outros Espíritos, e do sono que se lhe segue; e, em segundo lugar, da visão retrospectiva dos diferentes corpos que ele animou.

Há, pois, para os Espíritos, uma espécie de sono, o que é um ponto de contato a mais entre o estado corporal e o estado espiritual. É verdade que aqui se trata de um sono magnético; mas existiria para eles um sono natural semelhante ao nosso? Isto nada teria de surpreendente, quando se veem ainda Espíritos de tal modo identificados com o estado corporal que tomam seu corpo fluídico por um corpo material, que creem trabalhar como o faziam na Terra, e que sofrem fadiga. Se sentem fadiga, devem experimentar a necessidade de repouso, e podem crer deitar-se e dormir, como creem trabalhar e viajar em estrada de ferro. Dizemos que eles o creem, para falar do nosso ponto de vista, porque tudo é relativo, e em relação à sua natureza fluídica, a coisa é tão real quanto as coisas materiais o são para nós.

Não são senão Espíritos de ordem inferior que têm semelhantes ilusões; quanto menos avançados, mais o seu estado se aproxima do estado corporal. Ora, este não pode ser o caso do Dr. Cailleux, Espírito adiantado que tem perfeita noção de sua situação. Mas não é menos verdade que ele teve consciência de um entorpecimento análogo ao sono, durante o qual viu suas diversas individualidades.

Um membro da Sociedade explica esse fenômeno da seguinte maneira: No sono humano, só o corpo repousa, mas o Espírito não dorme. Deve dar-se o mesmo no estado espiritual; o sono magnético, ou outro, só deve afetar o corpo espiritual ou perispírito, e o espírito deve achar-se num estado relativamente análogo ao do Espírito encarnado durante o sono do corpo, isto é, conservar a consciência de seu ser. As diferentes encarnações do Sr. Cailleux, que os seus guias espirituais queriam fazê-lo ver, para sua instrução, puderam apresentar-se a ele como lembrança, da mesma maneira que as imagens se oferecem nos sonhos.

Essa explicação é perfeitamente lógica. Ela foi confirmada pelos Espíritos que, provocando o relato do Dr. Cailleux, quiseram dar-nos a conhecer uma nova fase da vida de além-túmulo.


Questões e problemas

Está no ar
(Paris, 13 de maio de 1866 - Médium: Sr. Tail...)

Pergunta. ─ Quando alguma coisa é pressentida pelas massas, geralmente se diz que está no ar. Qual a origem dessa expressão?

Resposta. ─ Sua origem, como a de uma porção de coisas de que a gente não se dá conta e que o Espiritismo vem explicar, está no sentimento íntimo e intuitivo da realidade. A expressão é mais verdadeira do que se pensa.

Esse pressentimento geral à aproximação de algum acontecimento grave tem duas causas: a primeira vem das massas inumeráveis de Espíritos que incessantemente percorrem o espaço e que têm conhecimento das coisas que se preparam; em consequência de sua desmaterialização, eles estão mais em condições de seguir o seu desenrolar e prever o seu desenlace. Esses Espíritos, que incessantemente roçam a Humanidade, comunicam-lhe os seus pensamentos pelas correntes fluídicas que ligam o mundo corporal ao mundo espiritual. Embora não os vejais, seus pensamentos vos chegam como o aroma das flores ocultas na folhagem, e vós os assimilais inadvertidamente. O ar é literalmente sulcado por essas correntes fluídicas que por toda parte semeiam a ideia, de tal sorte que a expressão está no ar não é apenas uma imagem, mas é positivamente verdadeira. Certos Espíritos são mais especialmente encarregados pela Providência de transmitir aos homens o pressentimento das coisas inevitáveis, visando dar-lhes um secreto aviso, e eles cumprem essa missão, espalhando-se entre estes. São como vozes íntimas que retinem no seu foro íntimo.

A segunda causa desse fenômeno está no desprendimento do Espírito encarnado, durante o repouso do corpo. Nesses momentos de liberdade, ele se reúne com Espíritos semelhantes, aqueles com os quais ele tem mais afinidade; penetra-se de seus pensamentos, vê o que não pode ver com os olhos do corpo, relata a sua intuição ao despertar, como uma ideia que lhe fosse totalmente pessoal. Isso explica como a mesma ideia surge ao mesmo tempo em cem pontos diversos e em milhares de cérebros.

Como sabeis, certos indivíduos são mais aptos que outros para receber o influxo espiritual, quer pela comunicação direta de Espíritos estranhos, quer pelo desprendimento mais fácil de seu próprio Espírito. Muitos gozam, em graus diversos, da segunda vista ou visão espiritual, faculdade muito mais comum do que pensais, e que se revela de mil maneiras; outros conservam uma lembrança mais ou menos nítida do que viram em momentos de emancipação da alma. Em consequência dessa aptidão, eles têm noções mais precisas das coisas; não é neles um simples pressentimento vago, mas a intuição, e nalguns o conhecimento da própria coisa, cuja realização preveem e anunciam. Se lhes perguntarmos como sabem, a maioria deles não saberá explicar: uns dirão que uma voz interior lhes falou, outros que tiveram uma visão reveladora; outros, enfim, que o sentem sem saber como. Nos tempos de ignorância, e aos olhos das pessoas supersticiosas, eles passam por adivinhos e feiticeiros, apesar de serem apenas pessoas dotadas de uma mediunidade espontânea e inconsciente, faculdade inerente à natureza humana, e que nada tem de sobrenatural, mas que aqueles que nada admitem fora da matéria não podem compreender.

Essa faculdade existiu em todos os tempos, mas é de notar que ela se desenvolve e se multiplica sob o império das circunstâncias que dão um aumento de atividade ao espírito, nos momentos de crise e na iminência de grandes acontecimentos. As revoluções, as guerras, as perseguições de partidos e seitas sempre fizeram nascer um grande número de videntes e inspirados que foram qualificados de iluminados.

Dr. DEMEURE.

OBSERVAÇÃO: As relações entre o mundo corporal e o mundo espiritual nada têm de surpreendente, se considerarmos que esses dois mundos são formados dos mesmos elementos, isto é, dos mesmos indivíduos, que passam alternativamente de um para o outro. Aquele que hoje está entre os encarnados da Terra, estará amanhã entre os desencarnados do espaço, e vice-versa. O mundo dos Espíritos não é, pois, um mundo à parte. É a própria Humanidade despojada de seu envoltório material, e que continua sua existência sob uma nova forma e com mais liberdade.

As relações desses dois mundos, em contato permanente, fazem parte, pois, das leis naturais. A ignorância da lei que as rege foi a pedra de tropeço de todas as filosofias. É por falta de seu conhecimento que tantos problemas ficaram insolúveis. O Espiritismo, que é a ciência dessas relações, nos dá a única chave que pode resolvê-los. Quantas coisas, graças a ele, já não são mais mistérios!




Poesias espíritas

Para o teu livro
(Sociedade de Paris, 11 de maio de 1866 - Médium: Sr. V...)


Em breve, criança, tu irás deixar

O teto humilde que te viu nascer,

Para o mundo correr e enfrentar

Os seus perigos e talvez morrer,

Sem haver alcançado o teu destino.

Antes de fugir do nosso lado,

Escuta, como outrora, ó meu menino,

A voz que te guiou no teu passado.

Ai de mim! meu filho, em teu caminho,

Muitas vezes a sarça orgulhosa

Rasgará as tuas brancas mãos,

E o seu venenoso espinho

Fará coxear o teu pé atingido

Mais de uma vez, na tua estrada.

Não importa! Longe daqui será preciso

Seguir a estrela que te ilumina,

E marchar sempre à frente;

Não ter saudades da pátria,

Da aldeia, do lar ausente,

E morrer sem chorar tua vida,

Se tinhas que perdê-la um dia,

Pregando a todos como doutrina

A fé, a caridade e o amor,

Únicos deveres de tua lei divina;

Por toda parte o orgulho extirpando,

Como o falso saber e o egoísmo,

Que se estendem qual mortalha

Sobre o berço do Espiritismo;

Repetindo o que a voz

De todos esses mundos invisíveis por vezes parece revelar-te

Em murmúrios indizíveis;

Lamentando um século grosseiro,

Que junta insulto e injúria

Quando te chama feiticeiro

Ou simples ledor da sorte;

Perdoando-lhe o seu desprezo;

Tentando pela prece

Pôr os seus muitos amigos

Sob tua santa e humilde bandeira.

Eu disse: Parte, meu filho! Adeus!

Difícil e pesada é a tua tarefa.

Mas crê e espera em teu Deus.

Ele a fará mais fácil.

Um Espírito Poeta.


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Na sessão seguinte, de 18 de maio, o mesmo médium escreveu espontaneamente o seguinte:

“Resposta a uma crítica a meus versos “Para o teu Livro”, feita um pouco levianamente, sexta-feira última, por um desconhecido que aqui não vejo esta noite.”


“Num bosque misterioso,

Oculto pela folhagem nascente

De verde lilás, todos os anos

Ouvia-se, na primavera,

Uma graciosa cotovia

Cantar sua linda cançoneta.

Os pássaros do bosque vizinho

Vinham, cada manhã,

Colocar-se perto dela, em silêncio,

Para melhor escutar a cadência

Que sua pura voz soltava,Desferia, perolava, modulava

Com uma graça infinita.

A multidão encantada, deslumbrada,

Aplaudia a diva

Quando por acaso chegou

Um jovem melro de negra plumagem

E pôs-se a assobiar de raiva

A monótona cançãoQue admiravam sem razão.

Súbito a cotovia parou,

Sorriu e disse ao desmancha prazer:

Vós que assobiais tão bem, deveis bem cantar.

Não se podia, belo melro, um dia vos escutar?

Sem responder o melro foi fugindo.

Por quê? Adivinhai-o... Boa noite! Eu vos deixo.


ALFRED DE MUSSET.


A lagarta e a borboleta
(Fábula do Espírito batedor de Carcassone)

De um ramo de jasmins trabalhando os contornos,

Trêmula, uma lagarta ao declinar de seus dias,

Dizia: “Estou muito doente,

Já nem digiro a folha de salada;

Mal e mal a couve provoca-me apetite;

Eu morro pouco a pouco;

Como é triste morrer! Mais valia não nascer.

Sem murmurar é preciso submeter-se.

Outros, depois de mim, que tracem o seu caminho.

─ Mas tu não morrerás, lhe diz a borboleta;

Se tenho boa memória, foi sobre a mesma planta

Que contigo vivi; pois eu sou da família.

O futuro te prepara destino mais feliz;

Talvez um mesmo amor nos unirá os dois.

Espera!... Rápida é a passagem do sono.

Como eu, tu serás uma crisálida;

Como eu poderás, em cores brilhantes,

Respirar o perfume das flores”.

A velha respondeu: “Impostora! Impostora!

Nada viria mudar as leis da Natureza;

O espinheiro jamais será jasmim.

Aos meus anéis partidos, às minhas juntas fracas

Que hábil operário virá ligar as asas?

Jovem louca, segue o teu caminho.

─ Lagarta! Tens razão. O possível tem limites!

Responde um caracol, triunfante em seus cornos.

Um sapo aplaudiu. Com seu dardo, um zangão

Insultou a linda borboleta.

.....................................................

Não, nem sempre é a verdade que brilha.

Aqui na Terra, quantos cegos de nascença

Negando a alma dos mortos. Doutores, raciocinais

Mais ou menos como a lagarta.





Dissertações espíritas

Ocupações dos Espíritos

(Sociedade de Paris, 16 de fevereiro de 1866 - Médium: Sr. Leymarie)

Fostes tão bons para comigo, senhores, tão atenciosos para com um recém-vindo, que volto para vos pedir alguns instantes de atenção.

Desde quando cheguei ao mundo dos Espíritos, estou com vontade de transmitir algumas reflexões que aproveitei, pois me dão a faculdade onipotente de mudar completamente minhas ideias adquiridas na última encarnação. Vou, pois, se mo permitirdes, transmitir algumas destas reflexões sugeridas por falsas ideias de certos detratores do Espiritismo.

Não é raro ouvir de todos os detratores: Mas os que fizeram o achado espírita bem poderiam dizernos em que trabalham os Espíritos que entraram no posse dessa famosa erraticidade. Têm eles um corpo correspondente ao nosso ou um corpo fluídico? Têm a ciência infusa? Sabem mais do que nós? Então por que tanta comunicação terra-a-terra, num francês ordinário ao alcance de todo mundo? Mas o primeiro que chega pode dizer outro tanto!...

E ainda acrescentam: Mas esses Espíritos farsistas, a que ginástica se entregam nos trapézios eternos? De que vivem? Com que se divertem? Mas se estão no ar ambiente, ocupados em nos ver trabalhar, não devem achar divertidas todas as nossas ações vis, todos os nossos pensamentos ridículos. Talvez estejam na contemplação eterna. E se eles veem Deus, como é constituída a Divindade? Que ideia nos podem dar de sua grandeza? Ai de nós! Ilusão! Repetem eles. E dizer que tem gente que se diz sensata e acredita em todas essas quimeras!

Eu os ouvi repetirem essas ideias, e, rindo como os outros, ou lamentando amargamente os adeptos de uma doutrina que, segundo nós, levava à loucura, muitas vezes perguntei a razão de tal aberração mental no século dezenove.

Um dia encontrei-me livre como todos os meus irmãos terrenos e, chegando a este mundo que tanto me tinha feito alçar os ombros, eis o que eu vi:

Os Espíritos, conforme as faculdades adquiridas na Terra, buscam o meio que lhes é próprio, a menos que, não podendo estar desprendidos, estejam na noite, nada vendo nem ouvindo, nessa terrível espera que é realmente o verdadeiro inferno do Espírito.

A faculdade que tem o Espírito desprendido de ir a qualquer parte por um simples efeito de sua vontade lhe permite encontrar um meio onde suas faculdades possam desenvolver-se pelos contrastes e pela diferença das ideias. Quando da separação do Espírito e do corpo, somos conduzidos por almas simpáticas para junto daqueles que nos esperam, prevendo a nossa volta.

Naturalmente fui acolhido por amigos tão incrédulos quanto eu. Mas como neste mundo tão conspurcado, todas as virtudes estão em evidência, todos os méritos brilham, todas as reflexões são bem recebidas, todos os contrastes se transformam numa difusão de luzes. Atraído, por curiosidade, a visitar grupos numerosos que preparam outras encarnações estudando todos os detalhes que o Espírito chamado a voltar à Terra deve elucidar, concebi uma grande ideia da reencarnação.

Quando um Espírito se prepara para uma nova existência, submete suas ideias às decisões do grupo a que pertence. O grupo discute; os Espíritos que o compõem vão aos grupos mais avançados ou à Terra; procuram entre vós elementos de aplicação. O Espírito aconselhado, fortalecido, esclarecido sobre todos os pontos poderá, daí por diante, se quiser, seguir seu caminho sem vacilar. Terá em sua peregrinação terrena uma multidão de Espíritos invisíveis, que não o perderão de vista; tendo participado em seus trabalhos preparatórios, eles aplaudem os seus resultados, os esforços para vencer, a sua vontade firme que, dominando a matéria, lhe permitiu trazer aos outros encarnados um contingente de quitações e de amor, isto é, o bem, segundo as grandes instruções, segundo Deus enfim, que as dita em todas as afirmações da ciência, da vegetação, de todos os problemas enfim, que são a luz do Espírito, quando ele sabe resolvê-las de forma racional.

Pertencendo ao grupo de alguns cientistas que se ocupam de economia política, aprendi a não desprezar nenhuma das faculdades de que tanto ri outrora. Compreendi que o homem, muito inclinado ao orgulho, se recusa a admitir, mesmo sem estudo, tudo quanto é novo e fora do seu gênero de espírito. Também me disse que muitos de meus antigos amigos seguiam por falsos caminhos, tomando a sombra pela realidade. Não obstante, segui o conjunto dos trabalhos da Humanidade, onde nada é inútil. Compreendi a grande lei da igualdade e da equidade que Deus derramou em todo o elemento humano e disse para mim mesmo que aquele que em nada crê, e que, apesar disso, faz o bem e ama os seus semelhantes, sem esperança de remuneração, é um nobre Espírito, muito mais nobre do que muitos daqueles que, prevendo uma outra vida e crendo no progresso do Espírito, esperam uma recompensa. Enfim, aprendi a ser tolerante, vendo essas legiões de Espíritos entregues a tantos trabalhos diversos, formigueiro inteligente que pressente Deus e procura coordenar todos os elementos do futuro. Eu disse para mim mesmo que o homem, esse pigmeu, é de tal modo orgulhoso que se ama e se adora desprezando os outros, em vez de entregar-se aos grandes instintos e sobretudo às ideias sãs e conscienciosas que a vida futura revela, desenvolvidas pelas ideias espiritualistas e sobretudo pelo Espiritismo, esta lei magnífica que a cada dia mais fortalece a solidariedade do mundo terreno e o da erraticidade. É ele que vos inicia em nossos pensamentos, em nossas esperanças, em tudo o que nos preparamos para o vosso adiantamento, para o fim desejado da geração que deve em breve emigrar para as regiões superiores. Até outra vez, obrigado.

GUI


OBSERVAÇÃO: Este Espírito, do qual demos uma notável comunicação na Revista de dezembro de 1865 era, em vida, um distinto economista, mas imbuído de ideias materialistas e um dos trocistas do Espiritismo. Contudo, como era um homem adiantado intelectual e moralmente, e que buscava o progresso, não demorou em reconhecer o seu erro, e seu maior desejo foi trazer seus amigos ao caminho da verdade. Foi na intenção destes que ditou várias comunicações. Por mais profunda e lógica que seja esta, vê-se que o mundo dos Espíritos ainda não lhe é perfeitamente conhecido. Ele está equivocado quando diz que a geração atual em breve deve emigrar para regiões superiores. Sem dúvida, no grande movimento regenerador que se opera, uma parte desta geração deixará a Terra e irá para mundos mais adiantados; mas, como a Terra regenerada será, ela própria, mais adiantada do que é, muitos acharão uma recompensa aqui reencarnando. Quanto aos endurecidos, que aqui são uma chaga, como aqui estariam deslocados, seriam um entravo ao progresso, perpetuando aqui o mal, é em mundos mais atrasados que eles irão esperar que a luz se faça para eles. É o que resulta da generalidade das instruções dadas pelos Espíritos sobre este assunto.


Suspensão da assistência dos Espíritos.

(Doual, 13 de outubro de 1865.)

Num grupo modelo, que conhecia e punha em prática deveres espíritas, notava-se com surpresa que certos Espíritos de escol e assistentes habituais há algum tempo abstinham-se de ali dar instruções, o que motivou a seguinte pergunta:

Pergunta. — Por que os Espíritos elevados que nos assistem de ordinário comunicam-se mais raramente conosco?

Resposta. — Caros amigos, há duas causas para esse abandono de que vos queixais. Mas, para começar, não é um abandono; é apenas um afastamento momentâneo e necessário. Sois como estudantes que, bem instruídos e bem providos de repetições preliminares, são obrigados a fazer os seus deveres sem o concurso dos professores; eles buscam na memória; eles espreitam um sinal, eles tentam descobrir uma palavra de auxílio: nada vem, nada deve vir.

Esperais nosso encorajamento, nossos conselhos sobre a vossa conduta, sobre as vossas determinações: nada vos satisfaz, porque nada vos deve satisfazer. Fostes providos de ensinamentos sábios, afetuosos, de encorajamentos frequentes, cheios de amenidade e de verdadeira sabedoria; tivestes muitas provas de nossa presença, da eficácia de nosso auxílio; a fé vos foi dada, comunicada; vós a tomastes, raciocinastes, adotastes. Numa palavra, como o estudante, fostes providos para o dever. É preciso cumpri-lo sem erros, com os vossos próprios recursos, e não com o nosso concurso. Onde estaria o vosso mérito? Não poderíamos senão repetir incessantemente a mesma coisa. Cabe-vos agora aplicar o que vos ensinamos. É preciso voar com vossas próprias asas e caminhar sem andadeiras.

A cada homem, num dado momento, Deus fornece uma arma e uma força para continuar a vencer novos perigos. O momento em que uma força nova se lhe revela é sempre para o homem uma hora de alegria, de entusiasmo. Então, a fé ardente aceita qualquer dor sem analisá-la, porque o amor não conta as penas. Entretanto, depois desses fatos subitâneos que são a festa, é preciso o trabalho, e nada mais do que o trabalho. A alma acalmou-se, o coração se asserenou, e eis que a luta e a provação chegam; eis o inimigo, é preciso aguentar o choque; é o momento decisivo. Então, que o amor vos transporte e vos faça desdenhar a Terra! É preciso que o vosso coração conquiste a vitória sobre os maus instintos do egoísmo e do abatimento; é a prova.

Há muito tempo vos temos dito, vos temos advertido que teríeis necessidade de vos reunirdes, de vos unirdes, de vos fortalecerdes pela luta. O momento é chegado, e aí estais. Como ides sustentá-la? Nada mais podemos fazer, do mesmo modo que o professor não pode soprar a composição do aluno. Ganhará ele o prêmio? Isto depende do proveito que ele tiver tirado das lições recebidas. Assim é convosco. Possuís um código de instruções suficiente para vos conduzir até um determinado ponto. Relede essas instruções, meditai-as e não peçais outras antes de tê-las seriamente aplicado, coisa de que só nós somos os juízes, e quando chegardes ao ponto em que elas forem insuficientes, em relação ao vosso progresso moral, nós bem saberemos dar-vos outras.

A segunda razão desta espécie de isolamento de que vos queixais é a seguinte: Muitos de vossos conselheiros simpáticos têm, junto a outros homens, missões análogas às que inicialmente quiseram desempenhar junto a vós, e essa quantidade de evocações de que são objeto muitas vezes os demovem do propósito de serem assíduos em vosso grupo. Vossa amiga Madalena desempenha longe daqui uma tarefa difícil, e sua solicitude, estando junto a vós, vai também para aqueles a quem ela se propôs salvar. Mas todos eles voltarão; reencontrareis, em dado momento, vossos amigos reunidos como outrora, num só pensamento de simpático concurso junto aos seus protegidos. Ponde esse tempo em proveito de vosso melhoramento, a fim de que, quando eles vierem, possam dizer-vos: Estamos contentes convosco.

PAMPHILE, Espírito protetor.

OBSERVAÇÃO: Esta comunicação é uma resposta aos que se lamentam da uniformidade do ensinamento dos Espíritos. Se refletíssemos no número de verdades que eles nos ensinaram, veríamos que elas nos oferecem um vastíssimo campo para a meditação, até que nós as tenhamos assimilado, e que tenhamos deduzido todas as suas aplicações. Que diríamos de um doente que diariamente pedisse um novo remédio ao seu médico, sem seguir as suas prescrições? Se os Espíritos não nos ensinam novidades todos os dias, com o auxílio da chave que nos puseram nas mãos e das leis que nos revelaram, por nós mesmos aprendemos coisas novas todos os dias, compreendendo o que para nós era incompreensível.


O trabalho
(Do jornal Espírita Italiano Lá Voce Di Dio. Traduzido do Italiano)

A medida do trabalho imposto a cada Espírito encarnado ou desencarnado é a certeza de ter realizado escrupulosamente a missão que lhe foi confiada. Ora, cada um tem uma missão a cumprir: este numa grande escala, aquele em escala menor. Contudo, relativamente, as obrigações são todas iguais, e Deus vos pedirá contas do óbolo posto entre vossas mãos. Se ganhastes juros, se dobrastes a soma, certamente cumpristes o vosso dever, porque obedecestes à ordem suprema. Se em vez de ter aumentado esse óbolo o tivésseis perdido, é certo que teríeis abusado da confiança que o vosso Criador tinha posto em vós; assim, sereis tratado como um ladrão, porque tomastes e não restituístes. Longe de aumentar, dissipastes. Ora, se, como acabo de dizer, cada criatura é obrigada a receber e dar, quanto mais, espíritas, tendes de obedecer a essa divina lei; quanto esforço deveis fazer para cumprir esse dever perante o Senhor que vos escolheu para partilhar seus trabalhos, que vos convidou à sua mesa. Pensai, meus irmãos, que o dom que vos é feito é um dos supremos dons de Deus. Não vos envaideçais por isso, mas fazei todos os esforços para merecer esse alto favor. Se os títulos que poderíeis receber de um grande da Terra; se os seus favores são algo de belo aos vossos olhos, quanto mais vos deveríeis sentir felizes com os dons do senhor dos mundos, dons incorruptíveis e imperecíveis que vos elevam acima de vossos irmãos e serão para vós a fonte de alegrias puras e santas!

Mas quereis ser os seus únicos possuidores? Como egoístas, quereríeis guardar só para vós tanta felicidade e alegria? Oh! Não. Fostes escolhidos como depositários. As riquezas que brilham aos vossos olhos não são para vós, mas pertencem a todos os vossos irmãos. Deveis, pois, aumentá-las e distribuí-las. Como o bom jardineiro que conserva e multiplica suas flores e vos apresenta no rigor do inverno as delícias da primavera; como no triste mês de novembro nascem rosas e lírios, assim estais encarregados de semear e cultivar em vosso campo moral flores de todas as estações, flores que desafiarão o sopro do aquilão e o vento sufocante do deserto; flores que uma vez abertas em suas hastes, não passarão nem fanarão jamais, mas, brilhantes e vivazes, serão o emblema da verdura e das cores eternas. O coração humano é um solo fértil em afeição e doces sentimentos, um campo cheio de sublimes aspirações quando cultivado pelas mãos da caridade e da religião.

Oh! Não reserveis apenas para vós essas hastes sobre as quais surgem sempre tão doces frutos! Oferecei-os aos vossos irmãos, convidai-os a vir saborear, sentir o perfume de vossas flores, a aprender a cultivar os vossos campos. Nós vos assistiremos; nós encontraremos regatos frescos que correndo suavemente darão força às plantas exóticas que são os germes da terra celeste. Vinde! Trabalharemos convosco, partilharemos vossa fadiga, a fim de que vós também possais amontoar esses bens e deles fazer participar outros irmãos necessitados. Deus nos dá, e nós, reconhecidos por seus dons, os multiplicamos o mais possível. Deus nos manda melhorar os outros e a nós próprios; cumpriremos nossas obrigações e santificaremos sua sublime vontade.

Espíritas, é a vós que me dirijo. Preparamos o vosso campo; agora agi de maneira que todos os que necessitarem, dele possam gozar largamente. Lembrai-vos que todos os ódios, todos os rancores, todas as inimizades devem desaparecer diante de vossos deveres. Instruir os ignorantes, assistir os fracos, ter compaixão dos aflitos, defender os inocentes, lamentar os que estão no erro, perdoar aos inimigos. Todas estas virtudes devem crescer em abundância no vosso campo, e deveis implantá-las no dos vossos irmãos. Recolhereis uma ampla colheita e sereis abençoados por vosso Pai que está nos céus!

Meus caros filhos, quis dizer-vos todas essas coisas a fim de vos encorajar a suportar com paciência todos aqueles que, inimigos da nova doutrina, buscam vos denegrir e vos afligir. Deus está convosco, não o duvideis. A palavra de nosso Pai celeste desceu sobre o vosso globo, como no dia da criação. Ele vos envia uma nova luz, luz cheia de esplendor e de verdade.

Aproximai-vos, ligai-vos estreitamente a ele e segui corajosamente o caminho que se abre à vossa frente.

SANTO AGOSTINHO


Notícias bibliográficas

Os Evangelhos explicados (Pelo Sr. Roustaing) (1)

Esta obra compreende a explicação e a interpretação dos Evangelhos, artigo por artigo, com a ajuda de comunicações ditadas pelos Espíritos. É um trabalho considerável que tem, para os espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. As partes correspondentes às que tratamos em O Evangelho segundo o Espiritismo o são em sentido análogo. Ademais, como nos limitamos às máximas morais que, com raras exceções, são geralmente claras, estas não poderiam ser interpretadas de diversas maneiras; assim, jamais foram assunto para controvérsias religiosas. É por esta razão que por aí começamos, a fim de ser aceito sem contestação, esperando, quanto ao resto, que a opinião geral estivesse mais familiarizada com a ideia espírita.

O autor desta nova obra julgou que deveria seguir um outro caminho. Em vez de proceder gradualmente, ele quis atingir a meta de um salto. Assim, tratou certas questões que não julgamos oportuno abordar ainda, e das quais, por consequência, lhe deixamos a responsabilidade, como aos Espíritos que as comentaram. Consequente com o nosso princípio, que consiste em regular a nossa marcha pelo desenvolvimento da opinião, até nova ordem não daremos às suas teorias nem aprovação nem desaprovação, deixando ao tempo o trabalho de sancioná-las ou contraditá-las. Convém, pois, considerar essas explicações como opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas, e que, em todo caso, necessitam da sanção do controle universal, e até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita.

Quando tratarmos destas questões fá-lo-emos decididamente. É que então teremos recolhido documentos bastante numerosos nos ensinos dados de todos os lados pelos Espíritos, a fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar de acordo com a maioria. É assim que temos feito, todas as vezes que se trata de formular um princípio capital. Dissemos cem vezes que para nós a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que ele traga, tem apenas o valor de uma opinião individual. Nosso critério está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa lógica, para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos. De que nos serviria dar prematuramente uma doutrina como uma verdade absoluta, se mais tarde devesse ser combatida pela generalidade dos Espíritos?

Dissemos que o livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios do Livro dos Espíritos e do Livro dos Médiuns. Nossas observações são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos fatos. É assim, por exemplo, que ele dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade e dele faz um agênere. Aos olhos dos homens que não tivessem então podido compreender sua natureza espiritual, ele deve ter passado EM APARÊNCIA ─ expressão incessantemente repetida no curso de toda a obra ─ por todas as vicissitudes da Humanidade. Assim seria explicado o mistério de seu nascimento: Maria teria tido apenas as aparências da gravidez. Posto como premissa e pedra angular, este ponto é a base em que ele se apoia para a explicação de todos os fatos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus.

Sem dúvida, nisto nada há de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório perispiritual. Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela é no mínimo hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errônea, por falta de base, o edifício desabaria. Esperamos, pois, os numerosos comentários que ela não deixará de provocar da parte dos Espíritos, e que contribuirão para elucidar a questão. Sem prejulgá-la, diremos que já foram feitas objeções sérias a essa teoria e que, em nossa opinião, os fatos podem ser perfeitamente explicados sem sair das condições da humanidade corporal.

Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra que, ao lado de coisas duvidosas, em nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente boas e verdadeiras, e será consultada com proveito pelos espíritas sérios.

Se o conteúdo de um livro é o principal, a forma não deve ser desdenhada, pois contribui com algo para o sucesso. Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver, se fosse limitada ao estritamente necessário, a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume, e teria ganho em popularidade.

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(1) Os Quatro Evangelhos, seguidos dos mandamentos explicados em espírito e em verdade pelos evangelistas, assistidos pelos apóstolos. Recolhidos e postos em ordem por J. B. Roustaing, advogado na corte imperial de Bordeaux, antigo chefe da ordem. 3 vols. in-12 Pr. 10 fr. 50 Paris, Librairie centrale, 24, boulevard des italiens. Bordeaux, todos os livreiros.


La Voce Di Dio

(A voz de Deus, jornal ditado pelos Espíritos, na sociedade de Scordia, Sicília) *

A Itália conta com uma nova publicação espírita periódica. Esta é exclusivamente consagrada ao ensino dos Espíritos. O primeiro número só contém, na verdade, produções mediúnicas, inclusive o prefácio e o discurso preliminar. Eis a lista dos assuntos tratados nesse número:

Prefácio: Conselhos dados à Sociedade, para a formação do jornal.

Discurso preliminar, assinado por Santo Agostinho.

Alegoria sobre o Espiritismo.

Reverberação da alma.

Previsões.

Arrependimento de um Espírito sofredor (Conversa).

O trabalho.

A morte do Cristo.

A prece coletiva.

Resposta a uma pergunta.

Todas essas comunicações têm um cunho incontestável de superioridade, do ponto de vista da moral e da elevação dos pensamentos. Pode-se fazer uma ideia por aquela sobre O Trabalho, que publicamos acima.

Os Espíritos terão, pois, o seu jornal e certamente não faltarão redatores. Mas, assim como entre os encarnados, há Espíritos de todos os graus de mérito. Contamos com o julgamento dos editores para uma escolha rigorosa entre essas produções de além-túmulo, que só terão a ganhar em clareza e interesse se, conforme as circunstâncias, forem acompanhadas de alguns comentários.


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* Pequeno in-8o , edição mensal. – Preço para a Itália: 6 fr. por ano; 3 fr. por seis meses. Um número: 60 centavos. – Endereço: Al signor Dr. Giuseppe Modica, in Scordia (Sicília).



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