Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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Novembro

Maóme e o Islamismo

(2º Artigo - vide o nº de agosto de 1866)

Foi em Medina que Maomé mandou construir a primeira mesquita, na qual trabalhou com as próprias mãos e organizou um culto regular. Aí pregou pela primeira vez em 623. Todas as medidas tomadas por ele testemunhavam a sua solicitude e a sua previdência: “Um traço característico, ao mesmo tempo, do homem e do seu tempo”, diz o Sr. Barthélemy Saint-Hilaire, “é a escolha feita por Maomé de três poetas de Medina, oficialmente encarregados de defendê-lo contra as sátiras dos poetas de Meca. Provavelmente não era porque nele o amor-próprio fosse mais excitável do que convinha, mas, numa nação espirituosa e viva, esses ataques tinham uma repercussão análoga à que, em nossos dias, podem ter os jornais, e eles eram muito perigosos”.

Dissemos que Maomé foi constrangido a fazer-se guerreiro. Com efeito, ele absolutamente não tinha o humor belicoso como o havia provado nos primeiros cinquenta anos de sua existência. Ora, decorridos apenas dois anos de sua residência em Medina, e os coraicitas de Meca, coligados com as outras tribos hostis, vieram sitiar a cidade. Maomé teve que se defender, e a partir de então começou para ele um período guerreiro que durou dez anos, durante o qual se mostrou, sobretudo, um tático hábil. Num povo em que a guerra era o estado normal; que só conhecia o direito da força, ao chefe da nova religião era necessário o prestígio da vitória para firmar a sua autoridade, mesmo sobre os seus partidários. A persuasão tinha pouco domínio sobre essas populações ignorantes e turbulentas; uma mansuetude exagerada teria sido tomada como fraqueza. Em seu pensamento, o Deus forte não podia manifestar-se senão por um homem forte, e o Cristo, com a sua inalterável doçura, teria fracassado nessas regiões.

Portanto, Maomé foi guerreiro pela força das circunstâncias, muito mais do que por seu caráter, e terá sempre o mérito de não ter sido o provocador. Uma vez iniciada a luta, ele tinha que vencer ou morrer; só com essa condição poderia ser aceito como o enviado de Deus; era preciso que os seus inimigos fossem destroçados para se convencerem da superioridade de seu Deus sobre os ídolos que eles adoravam. Com exceção de um dos primeiros combates, no qual ele foi ferido e os muçulmanos derrotados, em 625, suas armas foram constantemente vitoriosas e no espaço de alguns anos ele submeteu a Arábia inteira à sua lei. Quando ele viu sua autoridade consolidada e a idolatria destruída, entrou triunfalmente em Meca, após dez anos de exílio, seguido por aproximadamente cem mil peregrinos, e aí realizou a célebre peregrinação dita do adeus, cujos ritos os muçulmanos conservaram escrupulosamente. Ele morreu no mesmo ano, dois meses depois de seu regresso a Medina, a 8 de junho de 632, com sessenta e dois anos de idade.

Temos que julgar Maomé pela história autêntica e imparcial, e não segundo as lendas ridículas que a ignorância e o fanatismo espalharam por sua conta, ou segundo as descrições feitas pelos que tinham interesse em desacreditá-lo, apresentando-o como um ambicioso sanguinário e cruel. Também não se deve considerá-lo responsável pelos excessos de seus sucessores que quiseram conquistar o mundo para a fé muçulmana de espada em punho. Sem dúvida houve grandes manchas no último período de sua vida; ele pode ser censurado por ter abusado, em algumas circunstâncias, do direito de vencedor e de nem sempre ter agido com toda a moderação desejável. Entretanto, ao lado de alguns atos que a nossa civilização reprova, é preciso dizer, em seu favor, que muitíssimas vezes ele se mostrou muito mais humano e clemente para com os inimigos do que vingativo, e que muitas vezes deu provas de verdadeira grandeza de alma. É forçoso reconhecer, também, que mesmo em meio aos seus sucessos e quando havia chegado ao topo de sua glória, até o seu último dia limitou-se a seu papel de profeta, sem jamais usurpar uma autoridade temporal despótica. Ele não se fez rei nem potentado, e jamais, na sua vida privada, se maculou com qualquer ato de fria barbárie, nem de baixa cupidez. Sempre viveu com simplicidade, sem fausto e sem luxo, mostrando-se bom e benevolente para com todos. Isto é da história.

Se nos reportarmos ao tempo e ao meio em que ele vivia; se considerarmos sobretudo as perseguições de que ele e os seus foram vítimas, o encarniçamento dos seus inimigos e os atos de barbárie que estes cometeram contra os seus partidários, é lícito nos admiremos que na ebriez de sua vitória por vezes ele tenha feito uso de represálias?

Podemos censurá-lo por ter implantado sua religião a ferro e fogo no meio de um povo bárbaro que o combatia, quando a Bíblia registra, como fatos gloriosos para a fé, carnificinas de tamanha atrocidade que somos tentados a tomar como lendas? Quando, mil anos depois dele, nas regiões civilizadas do ocidente, cristãos que tinham por guia a sublime lei do Cristo, atirando-se sobre vítimas pacificas, extinguiam as heresias pelas fogueiras, pelas torturas, pelos massacres e em ondas de sangue?

Se o papel guerreiro de Maomé lhe foi uma necessidade, e se esse papel pode escusá-lo de certos atos políticos, o mesmo não se dá em relação a outros aspectos. Até a idade de cinquenta anos e enquanto viveu sua primeira esposa Khadidja, quinze anos mais velha do que ele, seus costumes foram irreprocháveis, mas a partir de então suas paixões não conheceram freio, e foi incontestavelmente para justificar o abuso que delas fez que ele consagrou a poligamia na sua religião. Foi o seu mais grave erro, porque foi uma barreira que ele interpôs entre o Islamismo e o mundo civilizado. Assim, sua religião, após doze séculos, não pôde transpor os limites de certas raças. É, também, o lado pelo qual o seu fundador mais se rebaixa aos nossos olhos. Os homens de gênio perdem sempre o seu prestígio quando se deixam dominar pela matéria; ao contrário, crescem tanto mais quanto mais se elevam acima das fraquezas da Humanidade.

Contudo, o desregramento dos costumes era tal na época de Maomé, que uma reforma radical era muito difícil em homens habituados a se entregar às suas paixões com uma brutalidade bestial. Portanto, podemos dizer que regulamentando a poligamia ele pôs limites à desordem e conteve abusos mais graves. Mas nem por isso a poligamia deixará de ser o verme roedor do Islamismo, porque é contrária às leis da Natureza. Pela igualdade numérica dos sexos, a própria Natureza traçou os limites das uniões. Permitindo quatro mulheres legítimas, Maomé não pensou que, para que sua lei abrangesse a universalidade dos homens, era preciso que o sexo feminino fosse ao menos quatro vezes mais numeroso que o masculino.

Malgrado as suas imperfeições, o Islamismo não deixou de ser um grande benefício para a época em que apareceu e para o país onde surgiu, porque fundou o culto da unidade de Deus sobre as ruínas da idolatria. Era a única religião possível para esses povos bárbaros, aos quais não era razoável pedir grandes sacrifícios de suas ideias e costumes. Era-lhes necessário algo de simples como a Natureza, em cujo meio viviam. A religião cristã tinha muitas sutilezas metafísicas; assim, todas as tentativas feitas durante cinco séculos para implantá-la nessas regiões tinham falhado fragorosamente; o próprio Judaísmo, muito questionador, tinha feito poucos prosélitos entre os árabes, embora os judeus propriamente ditos aí fossem bastante numerosos. Superior aos de sua raça, Maomé tinha compreendido os homens de seu tempo; para arrancá-los da baixeza em que os mantinham grosseiras crenças rebaixadas a um estúpido fetichismo, ele lhes deu uma religião apropriada às suas necessidades e ao seu caráter. Essa religião era a mais simples de todas: “Crença num Deus único, onipotente, eterno, infinito, onipresente, clemente e misericordioso, criador dos céus, dos anjos e da Terra, pai do homem, sobre o qual vela e cumula de bens; remunerador e vingador numa outra vida, onde nos espera para nos recompensar ou castigar, conforme os nossos méritos; que vê nossas ações mais secretas e preside o destino de suas criaturas que ele não abandona um só instante, nem neste mundo nem no outro; submissão a mais humilde e confiança absoluta em sua vontade santa”, eis os dogmas.

Quanto ao culto, consiste na prece repetida cinco vezes por dia, nos jejuns e nas mortificações do mês de ramadã e em certas práticas, das quais diversas tinham um fim higiênico, mas de que Maomé fez uma obrigação religiosa, tais como as abluções diárias, a abstenção do vinho, das bebidas inebriantes, da carne de certos animais, que os fiéis consideram um caso de consciência observar nos mais minuciosos detalhes. A sexta-feira foi adotada como o dia santo da semana e Meca indicada como o ponto para o qual todo muçulmano deve voltar-se ao orar. O serviço público nas mesquitas consiste na prece em comum, sermões, leitura e explicação do Alcorão. A circuncisão não foi instituída por Maomé, mas por ele conservada; era praticada entre os árabes desde tempos imemoriais. A proibição de reproduzir pela pintura ou escultura qualquer ser vivo, homens e animais, foi feita visando destruir a idolatria e impedir que ela se revigorasse. Enfim, a peregrinação a Meca, que todo fiel deve realizar pelo menos uma vez na vida, é um ato religioso; entretanto, ele tinha um outro objetivo nessa época, um objetivo político, o de aproximar, por um laço fraternal, as diversas tribos inimigas, reunindo-as num comum sentimento de piedade num mesmo lugar consagrado.

Do ponto de vista histórico, a religião muçulmana admite o Antigo Testamento por inteiro, até Jesus Cristo, inclusive, que ela reconhece como profeta. Segundo Maomé, Moisés e Jesus eram enviados de Deus para ensinar a verdade aos homens; como a lei do Sinai, o Evangelho é a palavra de Deus, mas os cristãos alteraram o seu sentido. Ele declara, em termos explícitos, que não traz nem crenças novas nem culto novo, mas que vem restabelecer o culto do Deus único professado por Abraão. Não fala senão respeitosamente dos patriarcas e dos profetas que o precederam: Moisés, David, Isaías, Ezequiel e Jesus Cristo; do Pentateuco, dos Salmos e do Evangelho. São os livros que precederam e prepararam o Alcorão. Longe de ocultar esses empréstimos, gaba-se disso, e a grandeza deles é o fundamento da sua. Pode-se julgar de seus sentimentos e do caráter de suas instruções pelo fragmento seguinte do último discurso que pronunciou em Meca quando da peregrinação do adeus, pouco tempo antes de sua morte, e conservado na obra de Ibn-Ishâc e de Ibn-lshâm:

“Ó povos! Escutai minhas palavras, pois não sei se no próximo ano poderei encontrar-me convosco neste lugar. Sede humanos e justos entre vós. Que a vida e a propriedade de cada um sejam invioláveis e sagradas para os outros; que aquele que recebeu um depósito o devolva fielmente àquele que o confiou. Aparecereis diante do vosso Senhor e ele vos pedirá contas de vossas ações. Tratai bem as mulheres; elas são vossas auxiliares e nada podem por si sós. Vós as tomastes como um bem que Deus vos confiou e delas tomastes posse por palavras divinas.

“Ó povos! Escutai minhas palavras e fixai-as em vosso Espírito. Eu vos revelei tudo; deixo-vos uma lei que vos preservará para sempre do erro, se a ela ficardes ligados fielmente, uma lei clara e positiva, o livro de Deus e o exemplo de seu profeta.

“Ó povos! Escutai minhas palavras e fixai-as em vosso Espírito. Sabei que todo muçulmano é o irmão do outro; que todos os muçulmanos são irmãos entre si, que sois todos iguais entre vós e que sois apenas uma família de irmãos. Guardai-vos da injustiça; ninguém deve cometê-la em detrimento de seu irmão: ela arrastará à vossa perdição eterna.

“Ó Deus! Desempenhei minha mensagem e terminei minha missão?

“A multidão que o rodeava respondeu: Sim, tu a cumpriste.

“E Maomé exclamou: Ó Deus, digna-te receber este testemunho!”

Eis agora o julgamento de Maomé e da influência de sua doutrina, feito por um de seus historiógrafos, o Sr. G. Weil, em sua obra alemã intitulada Mohammet der Prophet, às páginas 400 e seguintes:

“A doutrina de Deus e dos santos destinos do homem pregada por Maomé num país que estava entregue à mais brutal idolatria e que tinha uma pálida ideia da imortalidade da alma, tanto mais nos deve reconciliar com ele, a despeito de suas fraquezas e de seus erros, quanto sua vida particular não podia exercer sobre os seus aderentes nenhuma influência perniciosa. Longe de se dar jamais por modelo, ele queria sempre que o olhassem como um ser privilegiado, a quem Deus permitia pôr-se acima da lei comum, e de fato ele foi cada vez mais considerado sob esse aspecto especial.

“Seríamos injustos e cegos se não reconhecêssemos que seu povo lhe deve ainda outra coisa de verdadeiro e de bom. Ele reuniu numa só grande nação que fraternalmente crê em Deus, as inumeráveis tribos árabes, até então inimigas entre si. Em lugar do mais violento arbítrio, do direito da força e da luta individual, ele estabeleceu um direito inquebrantável que, malgrado suas imperfeições, constitui a base de todas as leis do Islamismo. Ele limitou a vingança de sangue que antes dele se estendia até aos parentes mais afastados e a limitou àquele que os juízes reconhecessem como assassino. Prestou relevantes serviços sobretudo ao belo sexo, não só protegendo as filhas contra o atroz costume que muitas vezes permitiam que fossem imoladas por seus pais, mas, além disso, protegendo as mulheres contra os parentes de seus maridos que as herdavam como coisas materiais, e protegendo-as contra os maus tratos dos homens. Restringiu a poligamia, não permitindo aos crentes senão quatro esposas legítimas, em vez de dez, como era usual, sobretudo em Medina. Sem ter emancipado inteiramente os escravos, foi bom e útil para eles de várias maneiras. Para os pobres, não só recomendou sempre a beneficência para com eles, mas estabeleceu formalmente um imposto em seu favor e lhes concedeu uma parte especial no espólio e no tributo. Proibindo o jogo, o vinho e todas as bebidas inebriantes, preveniu muitos vícios, muitos excessos, muitas querelas e muita desordem.

“Embora não consideremos Maomé como um verdadeiro profeta, porque empregou para propagar sua religião meios violentos e impuros e porque ele próprio foi muito fraco para se submeter à lei comum e porque se dizia o selo dos profetas, declarando que Deus sempre podia substituir o que ele havia dado por algo de melhor, não obstante ele tem o mérito de ter feito penetrar as mais belas doutrinas do Velho e do Novo Testamento num povo que não era esclarecido por nenhum raio da fé e sob este ponto de vista deve parecer, mesmo aos olhos não maometanos, como um enviado de Deus.”

Como complemento deste estudo, citaremos algumas passagens textuais do Alcorão, tiradas da tradução de Savary:

Em nome do Deus clemente e misericordioso. ─ Louvor a Deus, soberano dos mundos. ─ A misericórdia é a sua partilha. ─ Ele é o rei no dia do juízo. ─ Nós te adoramos, Senhor, e imploramos a tua assistência. ─ Dirige-nos no caminho da salvação, ─ no caminho dos que cumulaste com os teus benefícios; ─ dos que não mereceram a tua cólera e se preservaram do erro. (Introdução, Surata 1).

Ó mortais, adorai o Senhor que vos criou, vós e os vossos pais, a fim de que o temais; que vos deu a terra por leito e o céu por teto; que fez descer a chuva dos céus para produzir todos os frutos de que vos alimentais. Não deis sócio ao Altíssimo; vós o sabeis. (Surata II, v. 19 e 20).

Por que não credes em Deus? Estáveis mortos, ele vos deu a vida; ele extinguirá vossos dias e lhes reacenderá o facho. Voltareis a ele. ─ Ele criou para vosso refúgio tudo o que há sobre a Terra. Voltando depois seu olhar para o firmamento, formou os sete céus. Sua ciência abarca o Universo. (Surata II, v. 26 e 27).

O Oriente e o Ocidente pertencem a Deus; para qualquer lugar que se voltem vossos olhos, reconhecereis a sua face. Ele enche o Universo com a sua imensidade e com a sua ciência. ─ Ele formou a Terra e os céus. Quer ele produzir qualquer obra? Ele diz: “Seja feita”, e a obra é feita. ─ Os ignorantes dizem: “Se Deus não nos fala e se tu não nos fazes ver um milagre, nós não cremos.” Assim falavam seus pais; seus corações são semelhantes. Fizemos brilhar muitos prodígios para os que têm fé. (Surata II, v. 109 a 112).

Deus não exigirá de cada um de nós senão conforme as suas forças. Cada um terá em seu favor as boas obras e contra si o mal que houver feito. Senhor, não nos castigues por faltas cometidas por esquecimento. Perdoa os nossos pecados; não nos imponhas o fardo que nossos pais carregaram. Não nos carregues além de nossas forças. Faze brilhar para os teus servos o perdão e a indulgência. Tem compaixão de nós; és o nosso socorro. Ajuda-nos contra as nações infiéis. (Surata, II, v. 286).

Ó Deus, rei supremo, dás e tiras à vontade as coroas e o poder. Elevas e rebaixas os humanos à tua vontade; o bem está em tuas mãos: tu és o onipotente. ─ Mudas o dia em noite e a noite em dia. Fazes sair a vida do seio da morte e a morte do seio da vida. Derramas teus tesouros infinitos sobre quem te apraz. (Surata III, v. 25 e 26).

Ignorais quantos povos fizemos desaparecer da face da Terra? Nós lhes havíamos dado um império mais estável que o vosso. Mandávamos as nuvens derramarem a chuva sobre os seus campos; aí fazíamos correrem os rios. Só os seus crimes causaram a sua ruína. Nós os substituímos por outras nações. (Surata VI, v. 6).

É a Deus que deveis o sono da noite e o despertar da manhã. Ele sabe o que fazeis durante o dia. Ele vos deixa realizar o curso da vida. Reaparecereis diante dele e ele vos mostrará vossas obras. ─ Ele domina os seus servos. Ele vos dá como guardas, anjos encarregados de terminar vossos dias no momento prescrito. Eles executam cuidadosamente a ordem do Céu. ─ Voltareis em seguida diante do Deus da verdade. Não é a ele que cabe julgar? Ele é o mais exato dos juízes. ─ Quem vos livra das tribulações da terra e dos mares, quando, invocando-o em público ou no íntimo do coração exclamais: “Senhor, se de nós afastas estes males, nós te seremos reconhecidos?” ─ É Deus que deles vos livra. É sua bondade que vos alivia da pena que vos oprime; e depois voltais à idolatria. (Surata VI, v. 60 a 64)

Todos os segredos são desvelados aos seus olhos; é grande o Altíssimo. ─ Aquele que fala em segredo; aquele que fala em público; aquele que se envolve nas sombras da noite e aquele que aparece à luz do dia lhe são igualmente conhecidos. ─ É ele que faz brilhar o raio aos vossos olhos para vos inspirar o medo e a esperança. É ele que eleva as nuvens carregadas de chuva. ─ O trovão celebra seus louvores. Os anjos tremem em sua presença. Ele lança o raio e este fere as vítimas marcadas. Os homens discutem sobre Deus, mas ele é o forte e o poderoso. ─ Ele é a verdadeira invocação. Os que imploram a outros deuses não serão exalçados; eles se assemelham ao viajante que, premido pela sede, estende a mão para a água que não pode alcançar. A invocação dos infiéis se perde na noite do erro. (Surata XIII, v. 10 a 15).

Jamais digas: “Farei isto amanhã”, sem acrescentar: “se for a vontade de Deus”. Eleva a ele o teu pensamento quando tiveres esquecido alguma coisa e diz: “Talvez ele me esclareça e me faça conhecer a verdade.” (Surata XVIII, v. 23).

Se as ondas do mar se transformassem em tinta para descrever os louvores do Senhor, esgotar-se-iam antes de haver celebrado todas as suas maravilhas. Um outro oceano semelhante ainda não bastaria. (Surata XVIII, v. 109).

Aquele que busca a verdadeira grandeza a encontra em Deus, fonte de todas as perfeições. Os discursos virtuosos sobem ao seu trono. Ele exalta as boas obras; ele pune rigorosamente o celerado que trama perfídias.

Não, o céu jamais anula o decreto que ele pronunciou. ─ Eles não percorreram a Terra? Eles não viram que ela foi o fim deplorável dos povos que antes deles marcharam no caminho da iniquidade? Esses povos eram mais fortes e mais poderosos do que eles. Mas nada nos céus e na Terra pode opor-se as vontades do Altíssimo. A ciência e a força são seus atributos. ─ Se Deus punisse os homens desde o instante em que se tomam culpados, não restaria nenhum ser animado na Terra. Ele difere os castigos até o termo marcado. ─ Quando chega o tempo, ele distingue as ações de seus servidores. (Surata XXXV, v. 11 e 41 a 45).

Estas citações bastam para mostrar o profundo sentimento de piedade que animava Maomé e a ideia grande e sublime que ele fazia de Deus. O Cristianismo poderia reivindicar esse quadro.

Maomé não ensinou o dogma da fatalidade absoluta, como pensam geralmente. Essa crença, de que estão imbuídos os muçulmanos, e que paralisa sua iniciativa em muitas circunstâncias, não passa de uma falsa interpretação e de uma falsa aplicação do princípio da submissão à vontade de Deus levada além dos limites racionais; eles não compreendem que tal submissão não exclui o exercício das faculdades do homem, e lhes falta como corretivo a máxima: “Ajuda-te, e o céu te ajudará.” As passagens seguintes tratam de pontos particulares da doutrina.

Deus tem um filho, dizem os cristãos. Longe dele esta blasfêmia! Tudo o que está no céu e na Terra lhe pertence. Todos os seres obedecem à sua voz. (Surata II, v. 110).

Ó vós que recebestes as escrituras, não ultrapasseis os limites da fé; não digais de Deus senão a verdade. Jesus é filho de Maria, enviado do Altíssimo e o seu Verbo. Ele o fez descer ao seio de Maria; ele é o seu sopro. Crede em Deus e em seus apóstolos, mas não digais que há uma trindade em Deus. Ele é uno; esta crença vos será mais segura. Longe de ter um filho, ele governa sozinho o Céu e a Terra; ele se basta a si mesmo. ─ O Messias não corará por ser o servo de Deus, assim como os anjos que rodeiam o seu trono e lhe obedecem. (Surata IV, v. 169, 170).

Aqueles que sustentam a trindade de Deus são blasfemos; não há senão um Deus. Se eles não mudarem de crença, um doloroso suplício será o preço de sua impiedade. (Surata V, v. 77).

Os judeus dizem que Ozaï é o filho de Deus. Os cristãos dizem o mesmo do Messias. Eles falam como os infiéis que os precederam. O céu punirá suas blasfêmias. ─ Eles chamam senhores aos seus pontífices, seus monges, e o Messias filho de Maria. Mas lhes é recomendado servir a um só Deus: não há outro. Anátema sobre os que eles associam ao seu culto. (Surata IX, 30, 31).

Deus não tem filhos; ele não partilha o império com outro Deus. Se assim fosse, cada um deles quereria apropriar-se de sua criação e elevar-se acima de seu rival. Louvor ao Altíssimo! Longe dele essas blasfêmias! (Surata XXII, v. 93).

Declara, ó Maomé, o que o céu te revelou. ─ A assembleia dos gênios, tendo escutado a leitura do Alcorão, exclamou: “Eis uma doutrina maravilhosa. ─ Ela conduz à verdadeira fé. Nós cremos nela e não damos um igual a Deus. ─ Glória à sua Majestade suprema! Deus não tem esposa; ele não gerou.” (Surata LXXII, v. l a 4).

Dizei: “Cremos em Deus, no livro que nos foi enviado, no que foi revelado a Abraão, Ismael, Isaac, Jacob e às doze tribos. Cremos na doutrina de Moisés, de Jesus e dos profetas; não fazemos nenhuma diferença entre eles e somos muçulmanos.” (Surata II, v. 130).

Não há Deus senão o Deus vivo e eterno. ─ Ele te enviou o livro que encerra a verdade, para confirmar a verdade das Escrituras que o precederam. Antes dele, fez descer o Pentateuco e o Evangelho, para servirem de guias aos homens; ele enviou o Alcorão dos céus. ─ Os que negarem a doutrina divina só devem esperar suplícios; Deus é poderoso e a vingança está em suas mãos. (Surata III, v. 1, 2, 3).

Há os que dizem: “Juramos a Deus não crer em nenhum profeta, a menos que a oferenda que ele apresenta não seja confirmada pelo fogo do Céu.” ─ Responde-lhes: “Tínheis profetas antes de mim; eles operaram milagres e aquele mesmo de que falais. Por que então manchastes as vossas mãos com seu sangue, se dizeis a verdade?” ─ Se eles negam a tua missão, trataram do mesmo modo os apóstolos que te precederam, embora fossem dotados do dom dos milagres e tivessem trazido o livro que esclarece (o Evangelho) e o livro dos salmos. (Surata III, v. 179 a 181).

Nós te inspiramos, assim como inspiramos Noé, os profetas, Abraão, Ismael, Isaac, Jacob, as tribos, Jesus, Job, Jonas, Aarão e Salomão. Nós demos os salmos de Davi. (Surata IV, v. 161).

Em muitas outras passagens Maomé fala no mesmo sentido e com o mesmo respeito dos profetas, de Jesus e do Evangelho, mas é evidente que se equivocou quanto ao sentido ligado à Trindade e a qualidade de filho de Deus, que ele toma ao pé da letra. Se esse mistério é incompreensível para tantos cristãos, e se entre estes provocou tantos comentários e controvérsias, não é de admirar que Maomé não o tenha compreendido. Nas três pessoas da Trindade ele viu três deuses e não um só Deus e três pessoas distintas; no filho de Deus ele viu uma procriação. Ora, a ideia que ele fazia do Ser Supremo era tão grande que a menor paridade entre Deus e um ser qualquer e a ideia de que pudesse partilhar o seu poder lhe parecia uma blasfêmia. Não se tendo Jesus jamais apresentado como Deus e não tendo falado da Trindade, esses dogmas lhe pareceram uma derrogação das próprias palavras do Cristo. Ele viu em Jesus e no Evangelho a confirmação do princípio da unidade de Deus, objetivo que ele próprio buscava. Eis por que os tinha em grande estima, ao passo que acusava os cristãos por se haverem afastado desse ensinamento, fracionando Deus e deificando o seu messias. Assim, ele se diz enviado após Jesus para reconduzir os homens à unidade pura da divindade. Toda a parte dogmática do Alcorão repousa nesse princípio que ele repete a cada passo.

Tendo o Islamismo as suas raízes no Antigo e no Novo Testamento, é uma derivação deles. Podemos considerá-lo como uma das numerosas seitas nascidas das dissidências que surgiram desde a origem do Cristianismo devidas à natureza do Cristo, com a diferença que o Islamismo, formado fora do Cristianismo, sobreviveu à maioria dessas seitas e conta hoje com cem milhões de sectários.

Maomé vinha combater a qualquer custo, na sua própria nação, a crença em vários deuses, para aí estabelecer o culto abandonado do Deus único de Abraão e de Moisés. O anátema que ele lançou sobre os infiéis e os ímpios tinha por objetivo principalmente a grosseira idolatria professada pelos da sua raça, mas de contragolpe feria os cristãos. É essa a causa do desprezo dos muçulmanos por tudo quanto leva o nome de cristão, malgrado seu respeito por Jesus e pelo Evangelho. Esse desprezo transformou-se em ódio sob a influência do fanatismo alimentado e estimulado por seus sacerdotes. Digamos, também, que por seu lado, os cristãos não estão isentos de censuras e que eles próprios alimentaram esse antagonismo por suas próprias agressões.

Embora censurando os cristãos, Maomé não tinha por eles sentimentos hostis e no próprio Alcorão ele recomenda habilidade para com eles, mas o fanatismo os englobou na proscrição geral dos idólatras e dos infiéis cuja presença não deve manchar os santuários do Islamismo, razão pela qual a entrada nas mesquitas, em Meca e nos lugares santos, lhes é interdita. Deu-se o mesmo em relação aos judeus, e se Maomé os castigou rudemente em Medina, foi por se haverem coligado contra ele. Aliás, em parte alguma no Alcorão se encontra o extermínio dos judeus e dos cristãos erigida em dever, como geralmente se pensa. Seria, pois, injusto imputar-lhe os males causados pelo zelo ininteligente e os excessos de seus sucessores.

Nós te inspiramos para que abraçasses a religião de Abraão, que reconhece a unidade de Deus e que só adora a sua majestade suprema. ─ Emprega a voz da sabedoria e a força de persuasão para chamar os homens a Deus. Combates com as armas da eloquência. Deus conhece perfeitamente os que estão transviados e os que marcham sob o estandarte da fé. (Surata XVI, v. 124 e 126).

Se eles te acusarem de impostura, responde-lhes: “Tenho por mim as minhas obras; que as vossas falem em vosso favor. Não sereis responsáveis pelo que faço, e sou inocente do que fazeis. (Surata X, v. 42).

Quando se cumprirão tuas ameaças? perguntam os infiéis; marca-nos um termo, se és verdadeiro. Responde-lhes: “Os tesouros e as vinganças celestes não estão em minhas mãos; só Deus é o seu dispensador. Cada nação tem o seu termo fixado; ela não poderia apressá-lo nem retardá-lo um instante.” (Surata X, v. 49, 50).

Se negam a tua doutrina, sabe que os profetas vindos antes de ti sofreram a mesma sorte, embora os milagres, a tradição e o livro que esclarece (o Evangelho) atestem a verdade de sua missão. (Surata XXXV, v. 23).

A cegueira dos infiéis te surpreende e eles riem de tua admiração. ─ Em vão queres instruí-los; seu coração rejeita a instrução. ─ Se eles vissem milagres, zombariam; ─ atribuí-los-iam à magia. (Surata XXXVII, v. 12 a 15).

Estas não são ordens de um Deus sanguinário que ordena o extermínio. Maomé não se faz o executor de sua justiça; seu papel é o de instruir; só a Deus cabe castigar ou recompensar neste e no outro mundo. O último parágrafo parece escrito para os espíritas de nossos dias, pois os homens são os mesmos, sempre e por toda a parte.

Fazei preces, dai esmolas; o bem que fizerdes encontrareis junto a Deus, pois ele vê as vossas ações. (Surata II, v. 104).

Para ser justificado não basta virar o rosto para o oriente e para o ocidente; ainda é preciso crer em Deus, no juízo final, nos anjos, no Alcorão, nos profetas. É preciso, por amor a Deus, socorrer o próximo, os órfãos, os pobres, os viajantes, os cativos e aqueles que pedem. É preciso fazer as preces, guardar as promessas, suportar pacientemente a adversidade e os males da guerra. Tais são os deveres dos verdadeiros crentes. (Surata II, v. 172).

Uma palavra honesta e o perdão das ofensas são preferíveis à esmola que fosse consequência da injustiça. Deus é rico e clemente. (Surata II, v. 265).

Se vosso devedor tem dificuldade em vos pagar, concedei-lhe tempo; ou se quiserdes fazer melhor, perdoai-lhe a dívida. Se soubésseis! (Surata II, v. 280).

A vingança deve ser proporcional à injúria, mas o homem generoso que perdoa tem sua recompensa assegurada junto a Deus, que odeia a violência. (Surata XLII, v. 38).

Combatei vossos inimigos na guerra empreendida pela religião, mas não ataqueis primeiro. Deus odeia os agressores. (Surata II, v. 186).

Certamente os muçulmanos, os judeus, os cristãos e os sabeístas, que creem em Deus e no juízo final, e que fizerem o bem, receberão a recompensa de suas mãos; eles estarão isentos do medo e dos suplícios. (Surata V, v. 73).

Não façais violência aos homens por causa de sua fé. O caminho da salvação é bem distinto do caminho do erro. Aquele que abjurar o culto dos ídolos pela religião santa terá conquistado uma coluna inabalável. O Senhor sabe e ouve tudo. (Surata II, v. 257).

Não discutais com os judeus e os cristãos senão em termos honestos e moderados. Entre eles confundi os ímpios. Dizei: “Nós cremos no livro que nos foi revelado e em vossas escrituras. Nosso Deus e o vosso são apenas um. Nós somos muçulmanos.” (Surata XXIX, v. 45).

Os Cristãos serão julgados segundo o Evangelho. Aqueles que os julgarem de outro modo serão prevaricadores. (Surata V, v. 51).

Nós demos o Pentateuco a Moisés. É à sua luz que deve marchar o povo hebreu. Não duvides de encontrar no céu o guia dos israelitas. (Surata XXXII, v. 23).

Se os judeus tivessem fé e temor ao Senhor, nós apagaríamos os seus pecados; introduzi-los-íamos no jardim das delícias. A observação do Pentateuco, do Evangelho e dos preceitos divinos proporcionar-lhes-ia o gozo de todos os bens. Há entre eles os que seguem o bom caminho, mas em maioria são ímpios. (Surata V, v. 70).

Dize aos judeus e aos cristãos: “Terminemos nossas diferenças; não admitamos senão um Deus e não lhe demos um igual; que nenhum de nós tenha outro Senhor senão ele.” Se recusarem obedecer, dize-lhes: “Pelo menos dareis testemunho que, quanto a nós, nós somos crentes. (Surata III, v. 57).

Eis certas máximas de caridade e de tolerância que gostaríamos de ver em todos os corações cristãos!

Nós te enviamos a um povo que outros povos precederam, para que lhe ensines as nossas revelações. Eles não creem nos misericordiosos. Dizei-lhes: “Ele é o meu Senhor; não há Deus senão ele. Pus minha confiança em sua bondade. Eu aparecerei diante de seu tribunal.” (Surata XIII, v. 29).

Trouxemos aos homens um livro no qual brilha a ciência que deve esclarecer os fiéis e lhes proporcionar a misericórdia divina. ─ Esperam eles a realização do Alcorão? No dia em que ele for cumprido, os que tiverem vivido no esquecimento de suas máximas, dirão: “Os ministros do Senhor nos pregavam a verdade. Onde encontraremos agora intercessores? Que esperança temos de voltar à Terra para nos corrigirmos? Eles perderam sua alma e suas ilusões se desvaneceram. (Surata VII, v. 50, 51).



O vocábulo voltar implica a ideia de já ter vindo, isto é, de ter vivido antes da existência atual. Maomé a expressa muito bem quando diz: “Reapareceis diante dele e ele vos mostrará as vossas obras. Voltareis ante o Deus de Verdade.” É o fundo da doutrina da preexistência da alma, ao passo que, segundo a Igreja, a alma é criada no nascimento de cada corpo. A pluralidade das existências terrenas não está indicada no Alcorão de maneira tão explícita quanto no Evangelho, entretanto, a ideia de reviver na Terra entrou no pensamento de Maomé, pois tal seria, segundo ele, o desejo dos culpados de se corrigir. Assim ele compreendeu que seria útil poder recomeçar uma nova existência.

Quando lhes perguntamos: Credes no que Deus enviou do céu? Eles respondem: “Cremos nas Escrituras que recebemos.” E rejeitam o livro verdadeiro que veio depois para pôr o selo em seus livros sagrados. Dizei-lhes: “Por que matastes os profetas se tínheis fé?” (Surata II, v. 85).

Maomé não é o pai de nenhum de vós. Ele é o enviado de Deus e o selo dos profetas. A ciência de Deus é infinita. (Surata XXXIII, v. 40).

Considerando-se como o selo dos profetas, Maomé anuncia que é o último, a conclusão, porque disse toda a verdade; depois dele não virão outros. Eis um artigo de fé entre os muçulmanos. Do ponto de vista exclusivamente religioso, ele caiu no erro de todas as religiões, que se julgam inamovíveis, mesmo contra o progresso das ciências, mas para ele era quase uma necessidade, a fim de afirmar a autoridade de sua palavra num povo que ele teve tanto trabalho para converter à sua fé. Do ponto de vista social era um erro, porque sendo o Alcorão uma legislação civil e religiosa, ele pôs um ponto de estagnação no progresso. Tal a causa que tornou, e tornará ainda por muito tempo os povos muçulmanos estacionários e refratários às inovações e às reformas que não se acham no Alcorão. É um exemplo do inconveniente que há em confundir o que deve ser distinto. Maomé não levou em conta o progresso humano. É um erro comum a quase todos os reformadores religiosos. Por outro lado, havia não só que reformar a fé, mas o caráter, os usos, os hábitos sociais de seus povos; era-lhe necessário apoiar suas reformas na autoridade da religião, como o fizeram todos os legisladores dos povos primitivos. A dificuldade era grande, sem dúvida; contudo ele deixa uma porta aberta à interpretação e às modificações, dizendo que “Deus sempre pode substituir o que deu por algo de melhor”.

Interdito vos é desposar vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs, vossas tias paternas e maternas, vossas sobrinhas, vossas amas, vossas irmãs de leite, as mães de vossas esposas, as filhas confiadas à vossa tutela e filhas de mulheres com as quais tenhais coabitado. Também não desposeis as filhas dos vossos filhos que tiverdes gerado, nem duas irmãs. É-vos proibido desposar mulheres casadas, exceto as que tiverem caído em vossas mãos como escravas. (Surata IV, v. 27 e seguintes).

Estas prescrições podem dar uma ideia da imoralidade desses povos. Para ser obrigado a proibir tais abusos, era preciso que eles existissem.

Esposas do Profeta, ficai no interior de vossas casas. Não vos adorneis faustosamente, como nos dias da idolatria. Fazei preces e dai esmolas. Obedecei a Deus e ao seu apóstolo. Ele quer afastar o vício dos vossos corações. Sois da família do profeta e deveis ser puras. ─ Zeid repudiou a sua esposa. Nós te unimos com ela, para que os fiéis tenham a liberdade de desposar as mulheres de seus filhos adotivos, após o repúdio. O preceito divino deve ter sua execução. ─ Ó profeta, a ti é permitido desposar as mulheres que tiveres adotado, as escravas que Deus fez caírem em tuas mãos, as filhas de teus tios e de tuas tias que fugiram contigo, e toda mulher fiel que te der seu coração. É um privilégio que te concedemos. ─ Não aumentarás o atual número de tuas esposas; não poderás trocá-las por outras cuja beleza te haja tocado. Mas a frequentação de tuas mulheres escravas te é sempre permitida. Deus tudo observa. (Surata XXXIII, v. 37, 49, 52).

É aqui que Maomé realmente desce do pedestal no qual ele havia subido. Lamentamos vê-lo cair tão baixo depois de se haver elevado tanto, e fazer Deus intervir para justificar os privilégios que ele a si próprio concedia para a satisfação de suas paixões. Ele permitia aos crentes quatro esposas legítimas, enquanto ele próprio tinha treze. O legislador deve ser o primeiro a cumprir as leis que faz. É uma mancha indelével que ele lançou sobre si e sobre o Islamismo.

Esforçai-vos por merecer a indulgência do Senhor e a posse do paraíso, cuja extensão iguala os céus e a Terra, morada preparada para os justos, ─ para aqueles que dão esmola na prosperidade e na adversidade, e que, senhores dos movimentos de sua cólera, sabem perdoar os seus semelhantes. Deus ama a beneficência. (Surata III, v. 127, 128).

Deus prometeu aos fiéis que houverem praticado a virtude a entrada nos jardins onde os rios correm. Eles aí morarão eternamente. As promessas do Senhor são verdadeiras. Que de mais infalível que sua palavra? (Surata IV, v. 121).

Eles habitarão eternamente a morada que Deus lhes preparou, os jardins de delícias regados pelos rios, lugares onde reinará a suprema beatitude. (Surata IX v. 90).

Os jardins e as fontes serão a partilha dos que temem o Senhor. Eles entrarão com a paz e a segurança. ─ Tiraremos a inveja de seus corações. Eles repousarão em leitos e terão uns para com os outros uma benevolência fraterna. ─ A fadiga não se aproximará da morada das delícias. Sua posse não lhes será tirada. (Surata XV, v. 45 a 48).

Os jardins do Éden serão a habitação dos justos. Braceletes de ouro ornados de pérolas e roupas de seda formarão sua indumentária. ─ Louvor a Deus, exclamarão eles; ele afastou de nós o sofrimento; é misericordioso e compassivo. ─ Ele introduziunos no palácio eterno, morada de sua magnificência. Nem a fadiga nem a dor se aproximam deste asilo. (Surata XXXV, v. 30, 31, 32).

Os habitantes do paraíso beberão a largos sorvos na taça da felicidade. ─ Deitados em leitos de seda, repousarão junto às suas esposas, em sombras deliciosas. ─ Eles encontrarão todos os frutos. Todos os seus desejos serão satisfeitos. (Surata XXXVI, v. 55, 56, 57).

Os verdadeiros servos de Deus terão um alimento escolhido, ─ frutos deliciosos, e serão servidos com honra. ─ Os jardins das delícias serão seu asilo. ─ Cheios de mútua benevolência, eles repousarão em poltronas. ─ Ser-lhes-ão oferecidas taças de uma água pura, límpida e de um gosto delicioso ─ que não lhes obscurecerá a razão e não os embriagará. ─ Perto deles estarão virgens de olhar modesto, grandes olhos negros e cuja tez terá a cor dos ovos de avestruz. (Surata XXXVII, v. 30 a 47).

Dir-se-á aos crentes que tiverem professado o Islamismo: Entrai no jardim das delícias, vós e vossas esposas; abri vossos corações à alegria. ─ Dar-lhes-ão a beber em taças de ouro. O coração encontrará nessa morada tudo quanto pode desejar, o olho tudo quanto pode encantá-lo e esses prazeres serão eternos. ─ Eis o paraíso que vossas obras vos proporcionaram. ─ Alimentai-vos dos frutos que ali crescem em abundância. (Surata XLIII, v. 69 a 72).



Eis aí o famoso paraíso de Maomé, do qual tanto zombaram, e que certamente não procuraremos justificar. Apenas diremos que estava em harmonia com os costumes desses povos e que devia agradá-los muito mais que a perspectiva de um estado puramente espiritual, por mais esplêndido que fosse, porque eles eram muito apegados à matéria para compreendê-lo e apreciarem seu valor. Era-lhes preciso algo de mais substancial e pode-se dizer que eles foram servidos a contento. Sem dúvida notar-se-á que os rios, as fontes, os frutos abundantes e as sombras aí representam um grande papel, porque representam o que falta aos habitantes do deserto. Leitos macios e roupas de seda, para pessoas habituadas a dormir no chão vestidas ou cobertas com pele de camelo, também deviam ter grande atrativo. Por mais ridículo que isto nos pareça, pensemos no meio em que vivia Maomé e não o censuremos muito, pois com o auxílio deste atrativo, ele soube tirar um povo da barbárie e dele fazer uma grande nação.

Em próximo artigo examinaremos como o Islamismo poderá ligar-se à grande família da Humanidade civilizada.


Sonambulismo mediúnico espontâneo

A última sessão da Sociedade Espírita de Paris, antes das férias, foi uma das mais notáveis do ano, quer pelo número e pelo nível das comunicações obtidas, quer pela produção de um fenômeno espontâneo de sonambulismo mediúnico. Pelo meio da sessão, o Sr. Morin, membro da Sociedade e um dos médiuns habituais, adormeceu espontaneamente sob a influência dos Espíritos, o que jamais lhe havia acontecido. Então falou com calor, com eloquência, sobre um assunto de alta seriedade e do maior interesse, do qual nos ocuparemos futuramente.

A sessão de reabertura de sexta-feira, 5 de outubro, apresentou um fenômeno análogo, mas em mais largas proporções. Havia treze médiuns à mesa. Durante a primeira parte, dois entre eles, a Sra. C... e o Sr. Vavasseur, adormeceram, como o Sr. Morin, sem qualquer provocação e sem que ninguém nisto tivesse pensado, sob a influência dos Espíritos. O Sr. Vavasseur é o médium poeta, que com a maior facilidade obtém notáveis poesias das quais publicamos algumas amostras. O Sr. Morin estava a ponto de adormecer também. Ora, eis o que se passou durante o sono deles, que durou quase uma hora.

O Sr. Vavasseur, com voz grave e solene, disse:

─ Toda vontade, toda ação magnética é e deve ficar estranha a este fenômeno. Ninguém deve falar nem à minha irmã nem a mim.

Falando de sua irmã, ele designava a Sra. C..., isto é, irmã espiritual, pois eles não são parentes. Depois, dirigindo-se ao Sr. Morin, colocado no outro extremo da mesa, e estendendo sua mão para ele com um gesto imperativo:

─ Proíbo-te de dormir.

O Sr. Morin, com efeito, já quase adormecido, despertou por si mesmo. Além disso foi feita recomendação expressa para não tocar em qualquer dos dois médiuns. O Sr. V... continuou:

─ Ah! Sinto aqui uma corrente fluídica má, que me fatiga... Irmã, tu sentes também?

─ Sim, respondeu a Sra. C...

─ Olha! A Sociedade é numerosa esta noite. Vês?

─ Ainda não muito claramente.

─ Sr. V..., quero que vejas.

A Sra. C... ─ Oh! sim! Os Espíritos são numerosos!

O Sr. V...: ─ Sim, eles muito numerosos; são incontáveis! ... Mas, olha à tua frente; vês um Espírito mais luminoso, com auréola mais brilhante... Parece sorrir-nos com benevolência! Dizem que é o meu patrono (São Luís)... Vamos, caminhemos; vamos até ele, nós dois... Oh! Tenho muitos erros a reparar... (dirigindo-se ao Espírito): Caro Espírito! Quando nasci, minha mãe me deu vosso nome. Depois, eu me recordo, essa pobre mãe me dizia todos os dias: “Oh! meu filho, roga a Deus; ora ao teu anjo de guarda; ora sobretudo ao teu patrono.” Mais tarde esqueci tudo... tudo!... A dúvida, a incredulidade me perseguiram; em meu transviamento eu vos desconheci, desconheci a vontade de Deus.... Hoje, caro Espírito, venho pedir-vos o esquecimento do passado e o perdão no presente!... Ó São Luís, vedes minha dor e meu arrependimento, esquecei e perdoai.” (Estas últimas palavras foram ditas com um tom de desespero dilacerante).

A Sra. C...: ─ Não deve chorar, irmão... São Luís te perdoa e te abençoa... Os bons Espíritos não têm ressentimento contra os que abandonam seus erros. Digo-te que ele te perdoa!... Oh! este Espírito é bom!... Veja! Ele nos sorri. (Levando a mão ao seu peito.) Oh! Como dói sofrer assim!

O Sr. V...: ─ Ele me fala... Escuta!... Coragem, diz-me ele, trabalha com teus irmãos. O ano que começa será fértil em grandes acontecimentos. Em torno de vós surgirão grandes gênios, poetas, pintores, literatos. A era das Artes sucede a era da Filosofia. Se a primeira fez prodígios, a segunda fará milagres.

(O Sr. V... exprime-se com extraordinária veemência; está no supremo grau do êxtase). A Sra. C...: ─ Acalma-te, irmão; nisto pões demasiado calor, e isto te faz mal. Acalma-te.”

O Sr. V... (continuando): ─ Mas aí começa a missão de vossa Sociedade, missão muito grande e muito bela para aqueles que a compreendem... Foco da Doutrina Espírita, ela deve defendê-la e propagar os seus princípios por todos os meios de que dispõe. Aliás, o seu presidente saberá o que deve ser feito.

“Agora, irmã, ele se afasta; ainda nos sorri; diz-nos com a mão: até logo... Vamos, subamos, irmã; deves assistir a um espetáculo esplêndido, a um espetáculo que o olhar terreno jamais viu.., jamais... jamais!... Sobe... sobe... eu quero! (Silêncio). O que vês?... Olha este exército de Espíritos!... Lá estão os poetas que nos cercam... Oh! Cantai também, cantai!... Vossos cantos são cantos do céu, o hino da criação!... Cantai!... E seus murmúrios acariciam os meus ouvidos... e seus acordes adormecem o meu espírito... Tu não ouves?...

A Sra. C...: ─ Sim, eu ouço... Parece que eles dizem que com o ano espírita que começa, começa uma nova fase para o Espiritismo... fase brilhante, de triunfo e de alegria para os corações sinceros, de vergonha e de confusão para os orgulhosos e para os hipócritas! Para estes, as decepções, o desamparo, o esquecimento, a miséria; para os outros, a glorificação.

O Sr. V...: ─ Eles já o disseram, e isto se verifica.

A Sra. C...: ─ Oh! Que festa! Que magnificência! Que esplendor deslumbrante! Meu olhar apenas pode sustentar o seu brilho. Que suave harmonia se faz ouvir e penetra a alma!... Olha todos estes bons Espíritos que preparam o triunfo da doutrina sob a conduta dos Espíritos superiores e do grande Espírito de Verdade!... Como eles são resplandecentes, e quanto lhes deve custar voltar a habitar um globo como o nosso! Isto é doloroso, mas faz progredir.

O Sr. V...: ─ Escuta!... Escuta!... Escuta, digo-te eu!

O Sr. V. começa o improviso seguinte, em versos. Era a primeira vez que ele fazia poesia mediúnica verbalmente. Até agora as comunicações desse gênero sempre tinham sido dadas por escrito e espontaneamente.


Era uma noite de tempestade.

O mar rolava seus mortos,

Jogando na praia lúgubres acordes!...

Uma criança, ainda pequenina,

De pé sobre um rochedo,

Esperava que a aurora

Clareasse para andar,

Para ir à praia

Procurar sua irmã

Salva do naufrágio,

Ou... com o coração deslumbrado.

Poderia ele, da praia,

Vê-la, como outrora,

Sorridente e ingênua,

Acorrer à sua voz?

Nesta noite horrível,

Sobre as ondas esparsas,

Essa mão invisível

Que os separou,

Reuni-los-á?

Foi esperança vã!

A aurora surgiu bela,

Mas... nada lhe deixou ver;

Nada... senão triste destroço

De um barco destruído!

Nada... senão a onda que lava

O que a noite sujou.

A vaga, com mistério,

Aflorava escorregando,

Espumosa e leve,

Ameaçando o abismo

Que ocultava sua vítima,

Abafava-lhe o soluço

E queria de seu crime

Desculpar as ondas

Pela brisa lamentosa!

A criança, exausta de buscar,

De correr pela praia,

Já não podia andar...

Sufocada, sem ar,

Coxeando... semimorta... quebrada...

Apenas se sustendo,

Tinha-se plantado

Sobre a pedra escaldante

De um rochedo desnudo

E fazia sua prece,

Quando passa um desconhecido.

Surpreso, ele o olha,

Quando orava com fé.

─ Oh! meu filho, Deus te guarde,

Diz ele; levanta-te!...

Esse Deus que vê tuas lágrimas,

Me pôs em teu caminho

Para acalmar teus medos

E estender-te a mão!

Que nada te retenha;

Meu lar é teu lar

E minha família é a tua;

Tua desgraça é a minha.

Vem, di-me teu sofrimento;

Abrirei meu coração

E em breve a esperança

Acalmará teu espanto.


(Dirigindo-se a Sra. C... ):

─ Vês, ele pára! Mas deve falar ainda!...

Sim, ele se aproxima!...

Os sons se tornam mais distintos... eu escuto... ah!

Esta pobre criança... sou eu!


(Dirigindo-se ao Sr. Allan Kardec)

Esse desconhecido... és tu,

Caro e honrado mestre!

Tu que me deste a conhecer

Duas palavras:...

Eternidade E... Imortalidade!

Dois nomes: um, Deus, o outro, alma!

Um foco, o outro, chama!

E vós, meus caros amigos

Neste lugar reunidos,

Sois minha família

Onde, agora tranquilo,

Vou terminar meus dias!

Oh!... Amai sempre!...


─ Ele foge... Casimir Delavigne!... Oh! Caro Espírito... ainda!... Ele foge!... Vamos, não sou bastante forte para assistir a este concerto divino... Sim, é demasiadamente belo... é belíssimo!...

A Sra. C...: ─ Ele falaria mais se quisesses, mas tua exaltação o impediu. Eis-te quebrado, amortecido, exausto; não podes mais falar.

O Sr. V...: ─ Sim, eu o sinto; é uma fraqueza (com um vivo sentimento de pesar) e devo despertarte!... muito cedo... Por que não ficar para sempre neste lugar? Por que voltar à Terra?... Vamos, porque é preciso, irmã, é preciso obedecer esse murmurar... Desperta! Eu quero que despertes. (A Sra. C... abre os olhos). De minha parte, podes despertar-me agitando o teu lenço. Eu sufoco! Ar!.. Ar!...

Estas palavras, e sobretudo os versos, foram ditos com uma ênfase, com uma efusão de sentimentos e um calor de expressão das quais as mais dramáticas e patéticas cenas podem dar uma pálida ideia. A emoção da assistência era geral, porque sentíamos que não era a declamação, mas a própria alma desprendida da matéria que falava...

Esgotado de fadiga, o Sr. V... foi obrigado a deixar a sala e ficou muito tempo aniquilado, dominado por um meio sono do qual só saiu pouco a pouco, por si mesmo, sem querer que ninguém o ajudasse.

Estes fatos vêm confirmar as previsões dos Espíritos quanto às novas formas que não tardaria a tomar a mediunidade. O estado de sonambulismo espontâneo, no qual se desenvolve ao mesmo tempo a mediunidade falante e a vidente, é, com efeito, uma faculdade nova, no sentido em que parece generalizar-se; é um modo particular de comunicação, que tem sua razão de ser neste momento, mais que anteriormente.

Ademais, este fenômeno é muito mais para servir de complemento à instrução dos Espíritos do que para a convicção dos incrédulos, que nele veriam apenas uma comédia. Só os espíritas esclarecidos podem, não só o compreender, mas nele descobrir as provas da sinceridade ou da charlatanice, como em todos os outros gêneros de mediunidade; só eles podem dele destacar o que é útil, deduzindo suas consequências para o progresso da Ciência, na qual os faz penetrar mais cedo. Assim, esses fenômenos geralmente só se produzem na intimidade e aí, além de que os médiuns não teriam nenhum interesse em simular uma faculdade inexistente, a trapaça logo seria desmascarada.

As nuanças de observação aqui são tão delicadas e sutis que exigem uma atenção contínua. Nesse estado de emancipação, a sensibilidade e a impressionabilidade são tão grandes, que a faculdade não pode desenvolver-se em todo o seu brilho senão sob a influência fluídica inteiramente simpática; uma corrente contrária basta para alterá-la, como o sopro que embacia o gelo. A sensação penosa que, por isso, sente o médium, fá-lo dobrar-se sobre si mesmo, como a sensitiva à aproximação da mão. Sua atenção se volta, então, na direção dessa corrente desagradável; ela penetra o pensamento, que é a sua fonte, ela a vê, ela a lê, e quanto mais a sente antipática, mais ela o paralisa. Por aí se julgue do efeito que deve produzir um concurso de pensamentos hostis! Assim, essas espécies de fenômenos absolutamente não se prestam a exibições públicas, nas quais a curiosidade é o sentimento dominante, quando não o da malevolência. Além disso, requerem, da parte das testemunhas, uma excessiva prudência, porque não se deve perder de vista que nesses momentos a alma apenas se liga ao corpo por um fio frágil, e que um abalo pode causar, pelo menos, graves desordens na economia. Uma curiosidade indiscreta e brutal pode ter as mais funestas consequências. Eis por que nunca se agiria com demasiada precaução.

Quando, no início, o Sr. V... diz que “toda vontade, toda ação magnética é e deve ficar estranha a este fenômeno”, ele dá a compreender que só a ação dos Espíritos é a sua causa e que ninguém poderia provocá-la. A recomendação de não falar nem a um nem a outro tinha por objetivo deixá-los inteiramente no êxtase. Perguntas teriam tido como efeito detê-los no impulso de seu Espírito, trazendo-os ao terra a terra e desviando-lhes o pensamento de seu objetivo principal. A exaltação da sensibilidade tornaria igualmente necessária a recomendação de não tocá-los. O contato teria produzido uma comoção penosa e prejudicial ao desenvolvimento da faculdade.

De acordo com isto, compreende-se por que a maior parte dos homens de ciência chamados a constatar fenômenos desse gênero ficam decepcionados. Não é por causa de sua falta de fé, como eles pretendem, que o efeito é recusado pelos Espíritos. São eles próprios que, por suas disposições morais, produzem uma reação contrária; em vez de se colocarem nas condições do fenômeno, eles querem colocar os fenômenos em sua própria condição. Eles desejariam aí encontrar a confirmação de suas teorias antiespiritualistas, porque, para eles, somente aí está a verdade, e se sentem vexados e humilhados por receberem um desmentido pelos fatos. Então, nada obtendo, ou obtendo somente coisas que contradizem sua maneira de ver, em vez de rever suas opiniões, eles preferem negar, ou dizer que tudo não passa de uma ilusão. E como poderia ser de outro modo entre gente que não admite a espiritualidade? O princípio espiritual é a causa de fenômenos de uma ordem particular. Buscar a sua causa fora desse princípio é buscar a causa do raio fora da eletricidade. Não compreendendo as condições especiais do fenômeno, eles fazem experiências com o paciente como se fosse um tubo de ensaio com produtos químicos; eles torturam-no como se se tratasse de uma operação cirúrgica, com o risco de comprometer a sua vida ou a sua saúde.

O êxtase, que é o mais alto grau de emancipação, exige muito mais precauções, porque o Espírito, nesse estado, embriagado pelo espetáculo que têm sob seus olhos, geralmente não deseja nada melhor do que permanecer onde está e deixar a Terra completamente; muitas vezes ele chega a fazer esforços para romper o último laço que o prende ao corpo, e se sua razão não for bastante forte para resistir à tentação, deixar-se-ia ir de boa vontade. É então que se torna necessário vir-lhe em auxílio por uma vontade forte, tirando-o desse estado. Compreende-se que aqui não há uma regra absoluta e que é preciso proceder de conformidade com as circunstâncias.

A respeito disto, um de nossos amigos nos oferece interessante tema de estudo.

Outrora inutilmente tinham tentado magnetizá-lo; de uns tempos para cá, ele cai espontaneamente no sono magnético, sob a influência da mais leve causa; basta que escreva algumas linhas mediunicamente, e por vezes uma simples conversação. Durante seu sono, ele tem percepções de uma ordem mais elevada; fala com eloquência e aprofunda com lógica notável as mais graves questões. Ele vê os Espíritos perfeitamente, mas a sua lucidez apresenta graus diversos, pelos quais ele passa alternativamente; o mais ordinário é o de um semiêxtase. Em certos momentos ele se exalta, e se experimenta uma viva emoção, o que é frequente, exclama com uma espécie de terror, e isto muitas vezes em meio da mais interessante conversa: Despertai-me imediatamente, o que seria imprudente não fazer. Felizmente ele indicou-nos o meio de despertá-lo instantaneamente, e que consiste em soprar fortemente em sua fronte, pois os passes magnéticos produzem um efeito muito lento, ou nulo.

Eis a explicação que nos foi dada sobre sua faculdade por um de nossos guias, com o auxílio de outro médium.

“O Espírito do Sr. T... é entravado em seu impulso pela provação material que ele escolheu. O instrumento de que ele se serve, o seu corpo, no estado atual em que se encontra, não é bastante maleável para lhe permitir assimilar os conhecimentos necessários, ou utilizar os que possui de motu próprio, no estado de vigília. Quando ele está adormecido, o corpo deixa de ser um entrave e se torna apenas o portavoz de seu próprio Espírito, ou daqueles com os quais está em relação. A fadiga material inerente às suas ocupações e a relativa ignorância em que sofre esta encarnação, porquanto ele não sabe, em questões de ciência, a não ser o que revelou a si próprio, tudo isto desaparece para dar lugar a uma lucidez de pensamento, a uma extensão de raciocínio e a uma eloquência excepcional que são o resultado do desenvolvimento anterior do Espírito. A frequência de seus êxtases apenas tem por objetivo habituar o seu corpo a um estado que, durante um certo período e com um especial objetivo ulterior, poderá tornarse, de certo modo, normal. Quando ele pede para ser despertado prontamente, é que se apega ao desejo de realizar sua missão sem falir. Sob o encanto dos quadros sublimes que se lhe oferecem, e do meio em que se encontra, ele gostaria de libertar-se dos laços terrenos e ficar definitivamente entre os Espíritos. Sua razão e o seu dever, que o retêm aqui embaixo, combatem esse desejo, e por medo de deixar-se dominar e sucumbir à tentação, ele vos grita para que o desperteis.”

Considerando-se que estes fenômenos de sonambulismo mediúnico espontâneo devem multiplicarse, as instruções que precedem têm por objetivo guiar os grupos onde eles poderiam produzir-se, na observação dos fatos, e de fazê-los compreender a necessidade de usar a mais extrema prudência em tais casos. O de que é preciso abster-se de maneira absoluta é de transformá-los em objeto de experimentação e de curiosidade. Os espíritas poderão aí colher grandes ensinamentos, próprios a esclarecer e a fortalecer a sua fé, mas, repetimo-lo, seriam sem proveito para os incrédulos. Os fenômenos destinados a convencer estes últimos e que se podem produzir em plena luz, são de uma outra ordem, e entre eles, alguns terão lugar e já se produzem, pelo menos em aparência, fora do Espiritismo. O vocábulo Espiritismo os apavora. Não sendo pronunciada esta palavra, será para eles uma razão a mais para dele se ocuparem. Os Espíritos são prudentes quando por vezes trocam a etiqueta.

Quanto à utilidade especial dessa mediunidade, ela está na prova, de certo modo palpável, que fornece, da independência do Espírito por seu isolamento da matéria. Como dissemos, as manifestações deste gênero esclarecem e fortalecem a fé; elas nos põem em contato mais direto com a vida espiritual. Qual é o Espírito morno ou incerto que ficaria indiferente em presença de fatos que lhe fazem, por assim dizer, tocar com o dedo a vida futura? Qual o que poderia ainda duvidar da presença e da intervenção dos Espíritos? Qual o coração bastante endurecido para não ficar comovido com o aspecto do futuro que se desdobra à sua frente, e que Deus, em sua bondade, lhe permite entrever?

Mas estas manifestações têm uma outra utilidade mais prática, mais atual, porque, mais que outras, elas terão o condão de erguer a coragem nos momentos duros que devemos atravessar. É no momento da tormenta que nos sentiremos felizes por sentirmos os protetores invisíveis ao nosso lado. É então que reconheceremos o valor desses conhecimentos que nos elevam acima da Humanidade e das misérias da Terra, que acalmam nossos pesares e nossas apreensões, fazendo-nos ver apenas o que é grande, imperecível e digno de nossas aspirações. É um socorro que Deus envia em tempo oportuno a seus fiéis servidores, e aí está mais um sinal de que os tempos marcados são chegados. Saibamos aproveitá-lo para o nosso avanço. Agradeçamos a Deus por ter permitido que fôssemos esclarecidos a tempo e lamentemos os incrédulos por se privarem desta imensa e suprema consolação, porque a luz foi espalhada para todos. Pela voz dos Espíritos que falam por toda a Terra, ele faz um último apelo aos endurecidos. Imploremos sua indulgência e sua misericórdia para os cegos.

O êxtase é, como dissemos, um estado superior de desprendimento, do qual o estado sonambúlico é um dos primeiros graus, mas que não implica, de modo algum, a superioridade do Espírito. O mais completo desprendimento é, certamente, o que se segue à morte. Ora, nós vemos neste momento o Espírito conservar suas imperfeições, seus preconceitos, cometer erros, criar ilusões, manifestar as mesmas inclinações. É que as boas e as más qualidades são inerentes ao Espírito e não dependem de causas exteriores. As causas exteriores podem paralisar as faculdades do Espírito, que as recobra no estado de liberdade, mas elas são impotentes para lhe dar as que ele não tem. O sabor de um fruto está nele mesmo; façamos o que fizermos, coloquê-mo-lo onde quisermos, se ele for insípido por natureza, não o tornaremos saboroso. Assim é com o Espírito. Se o desprendimento completo, após a morte, não o torna um ser perfeito, com menos forte razão pode tornar-se perfeito num desprendimento parcial.

O desprendimento extático é um estado fisiológico, indício evidente de um certo grau de adiantamento do Espírito, mas não de uma superioridade absoluta. As imperfeições morais, que são devidas à influência da matéria, desaparecem com essa influência, razão por que se nota, em geral, nos sonâmbulos e nos extáticos, ideias mais elevadas que no estado de vigília. Mas aquelas que são devidas às qualidades próprias do Espírito continuam a se manifestar, por vezes mesmo com menos intensidade do que no estado normal. Liberto de todo constrangimento, por vezes o Espírito dá livre curso aos seus sentimentos, que, como homem, procura dissimular aos olhos do mundo.

De todas as tendências más, as mais persistentes e que menos confessamos a nós mesmos, são os vícios radicais da Humanidade: o orgulho e o egoísmo, que geram o ciúme, as mesquinhas suscetibilidades do amor-próprio, a exaltação da personalidade, que muitas vezes se revelam no estado de sonambulismo. Não é o desprendimento que as faz brotar. Ele apenas as põe a descoberto; de latentes, tornam-se sensíveis por força da liberdade do Espírito.

Portanto, não se deve esperar nenhuma espécie de infalibilidade, nem moral, nem intelectual, nos sonâmbulos e extáticos. A faculdade de que gozam pode ser alterada pelas imperfeições de seu Espírito. Suas palavras podem ser o reflexo de seus pensamentos e de seus sentimentos. Além disso, eles podem sofrer os efeitos da obsessão, tanto quanto no estado ordinário, e ser, por parte dos Espíritos levianos ou mal-intencionados, joguete das mais estranhas ilusões, como demonstra a experiência.

Seria um erro, pois, crer que as visões e as revelações do êxtase não possam ser senão expressão da verdade. Como todas as outras manifestações, é preciso submetê-las ao cadinho do bom-senso e da razão, separar o bom do mau, o que é racional do que é ilógico. Se essas espécies de manifestações se multiplicam, é menos com o fito de nos dar revelações extraordinárias do que para nos fornecer novos assuntos de estudo e de observação sobre as faculdades e as propriedades da alma, e nos dar uma nova prova de sua existência e de sua independência da matéria.


Considerações sobre a propagação da mediunidade curadora

(Vide no nº anterior o artigo sobre o zuavo curador).

Devemos inicialmente fazer algumas retificações em nosso relatório das curas do Sr. Jacob. O próprio Sr. Jacob nos disse que a cura da menina, quando ele chegou a Ferté-sous-Jouarre, não se deu em praça pública; é verdade que foi aí que ele a viu, mas a cura foi na casa de seus pais, onde a fez entrar.

Isto em nada altera o resultado, mas a circunstância dá à ação um caráter menos excêntrico.

De sua parte, o Sr. Boivinet nos escreve:

“A respeito da proporção dos doentes curados, eu quis dizer que sobre 4.000, um quarto não experimentou resultados, e que do resto, isto é, de 3.000, um quarto foi curado e três quartos aliviados. De uma outra passagem do artigo poder-se-ia supor que eu tenha afirmado a cura de membros anquilosados; eu quis dizer que o Sr. Jacob tinha endireitado membros enrijecidos, rígidos como se estivessem anquilosados, mas não mais, o que não quer dizer que não tenha havido anquiloses curadas; apenas o ignoro.

Quanto aos membros enrijecidos por dores que paralisam em parte os movimentos, constatei, em último lugar, três casos de cura instantânea. No dia seguinte, um dos doentes estava absolutamente curado; outro tinha liberdade de movimentos com um resto de dor, com a qual, dizia-me ele, acomodarse-ia para sempre de boa vontade. Não revi o terceiro doente.”

Teria sido muito admirável se o diabo não tivesse vindo meter-se neste negócio. Uma outra pessoa nos escreve de uma das localidades onde correu a notícia das curas do Sr. Jacob:

“Aqui grande emoção na comuna e no presbitério. A criada do senhor cura, tendo encontrado duas vezes o Sr. Jacob na única rua da vila, está convicta de que ele é o diabo e que a persegue. A pobre mulher refugiou-se numa casa onde quase teve um ataque de nervos. É verdade que a farda vermelha do zuavo pode tê-la feito crer que ele saía do inferno. Parece que aqui preparam uma cruzada contra o diabo, para dissuadir os doentes de se fazerem curar por ele.”

Quem pode ter posto na cabeça dessa mulher a ideia que o Sr. Jacob é o diabo em pessoa e que as curas são uma astúcia de sua parte? Não disseram aos pobres de certa cidade que não deviam receber o pão e as esmolas dos espíritas porque eram uma sedução de Satã, e que, além disto, seria melhor ser ateu do que voltar a Deus pela influência do Espiritismo, porque também isso era uma artimanha do demônio? Em todo caso, atribuindo tantas coisas boas ao diabo, fizeram tudo o que era necessário para reabilitá-lo na opinião das pessoas. O que é mais estranho é que de semelhantes ideias ainda se alimentem populações a algumas léguas de Paris. Assim, que reação quando a luz se faz nesses cérebros fanatizados! Há que convir que há gente muito desajeitada.

Voltemos ao nosso assunto: as considerações gerais sobre a mediunidade curadora.

Dissemos, e nunca seria demais repetir, que há uma diferença radical entre os médiuns curadores e os que obtêm prescrições médicas da parte dos Espíritos. Estes em nada diferem dos médiuns escreventes ordinários, a não ser pela especialidade das comunicações. Os primeiros curam apenas pela ação fluídica em mais ou menos tempo, às vezes instantaneamente, sem o emprego de qualquer remédio. O poder curativo está todo inteiro no fluido depurado a que eles servem de condutores. A teoria deste fenômeno foi suficientemente explicada para provar que entra na ordem das leis naturais e que nada há de miraculoso. Ele é o produto de uma aptidão especial, tão independente da vontade quanto todas as outras faculdades mediúnicas; não é um talento que se possa adquirir; ninguém pode transformar-se em médium curador, da mesma maneira que pode tornar-se médico. A aptidão para curar é inerente ao médium, mas o exercício da faculdade só tem lugar com o concurso dos Espíritos, de onde se segue que se os Espíritos não querem, ou não querem mais servir-se dele, ele é como um instrumento sem músico, e nada obtém. Ele pode, pois, perder instantaneamente a sua faculdade, o que exclui a possibilidade de transformá-la em profissão.

Um outro ponto a considerar é que sendo esta faculdade fundada em leis naturais, ela tem limites traçados por essas mesmas leis. Compreende-se que a ação fluídica possa dar a sensibilidade a um órgão existente; fazer dissolver e desaparecer um obstáculo ao movimento e à percepção; cicatrizar uma ferida, porque então o fluido se torna um verdadeiro agente terapêutico; mas é evidente que não pode remediar a ausência ou a destruição de um órgão, o que seria um verdadeiro milagre. Assim, a visão poderá ser restituída a um cego por amaurose, oftalmia, belida ou catarata, mas não a quem tivesse os olhos vazados. Há, pois, doenças fundamentalmente incuráveis, e seria ilusão crer que a mediunidade curadora vá livrar a Humanidade de todas as suas enfermidades.

Além disto, há que levar em conta a variedade de nuanças apresentadas por essa faculdade, que está longe de ser uniforme em todos os que a possuem. Ela se apresenta sob aspectos muito diversos. Em razão do grau de desenvolvimento do poder, a ação é mais ou menos rápida, extensa ou circunscrita. Tal médium triunfa sobre certas moléstias em certas pessoas e em dadas circunstâncias, e falha completamente em casos aparentemente idênticos. Parece mesmo que em alguns a faculdade curadora se estende aos animais.

Opera-se neste fenômeno uma verdadeira reação química, análoga à produzida por certos medicamentos. Atuando o fluido como agente terapêutico, sua ação varia conforme as propriedades que recebe das qualidades do fluido pessoal do médium. Ora, devido ao temperamento e à constituição deste último, o fluido está impregnado de elementos diversos que lhe dão propriedades especiais. Ele pode ser, para nos servirmos de comparações materiais, mais ou menos carregado de eletricidade animal, de princípios ácidos ou alcalinos, ferruginosos, sulfurosos, dissolventes, adstringentes, cáusticos, etc. Daí resulta uma ação diferente, conforme a natureza da desordem orgânica. Essa ação, portanto, pode ser enérgica, muito poderosa em certos casos e nula em outros. É assim que os médiuns curadores podem ter especialidades: este curará as dores ou endireitará um membro, mas não dará a vista a um cego, e viceversa. Só a experiência pode dar a conhecer a especialidade e a extensão da aptidão, mas, em princípio, pode-se dizer que não há médiuns curadores universais, pela simples razão que não há homens perfeitos na Terra, e cujo poder seja ilimitado.

A ação é completamente diferente na obsessão, e a faculdade de curar não implica a de libertar os obsedados. O fluido curador age, de certo modo, materialmente sobre os órgãos afetados, ao passo que na obsessão é preciso agir moralmente sobre o Espírito obsessor; é preciso ter autoridade sobre ele para fazêlo largar a presa. São, pois, duas aptidões distintas, que nem sempre se encontram na mesma pessoa. O concurso do fluido curador torna-se necessário quando, o que é bastante frequente, a obsessão se complica com afecções orgânicas. Portanto, pode haver médiuns curadores impotentes para a obsessão, e vice-versa.

A mediunidade curadora não vem suplantar a medicina e os médicos; vem simplesmente provar a estes últimos que há coisas que eles não sabem e convidá-los a estudá-las; que a Natureza tem leis e recursos que eles ignoram; que o elemento espiritual, que eles desconhecem, não é uma quimera, e quando eles o levarem em conta, abrirão novos horizontes à Ciência e terão mais êxito do que agora.

Se essa faculdade fosse privilégio de um indivíduo, passaria despercebida; considerá-la-iam como uma exceção, um efeito do acaso, esta suprema explicação que nada explica, e a má-vontade facilmente poderia abafar a verdade. Mas quando virem os fatos se multiplicarem, serão forçados a reconhecer que eles não se podem produzir senão em virtude de uma lei; que se homens ignorantes triunfam onde os cientistas falham, é que os cientistas não sabem tudo. Isto em nada prejudica a Ciência, que será sempre a alavanca e a resultante do progresso intelectual. Só o amor-próprio daqueles que a circunscrevem aos limites de seu saber e da materialidade apenas pode sofrer com isso.

De todas as faculdades medianímicas, a mediunidade curadora vulgarizada é a que é chamada a produzir mais sensação, porque há, por toda parte, doentes em grande número, e não é a curiosidade que os atrai, mas a necessidade imperiosa de alívio. Mais do que qualquer outra, ela triunfará sobre a incredulidade, tanto quanto sobre o fanatismo, que vê em toda parte a intervenção do diabo. A multiplicidade dos fatos forçosamente conduzirá ao estudo da causa natural, e daí à destruição das ideias supersticiosas de feitiçaria, de poder oculto, de amuletos, etc. Se considerarmos o efeito produzido nos arredores do campo de Châlons por um só indivíduo, e a multidão de pessoas sofredoras vindas de dez léguas de distância, poderemos imaginar o que isto seria se dez, vinte, cem indivíduos aparecessem nas mesmas condições, quer na França, quer em países estrangeiros. Se disserdes a esses doentes que eles são joguetes de uma ilusão, eles vos responderão mostrando a perna restaurada; que são vítimas de charlatães, eles dirão que nada pagaram e que não lhes venderam nenhuma droga. Se disserdes que eles abusaram de sua confiança, dirão que nada lhes prometeram.

É também a faculdade que mais escapa à acusação de charlatanice e de fraude, porque ela desafia a troça, pois nada há de risível num doente curado que a Ciência havia abandonado. O charlatanismo pode simular mais ou menos grosseiramente a maioria dos efeitos mediúnicos, e a incredulidade neles procura sempre os seus cordões. Mas onde encontrará os fios da mediunidade curadora? Podem ser feitos certos truques para imitar os efeitos mediúnicos, e os efeitos mais reais, aos olhos de certa gente, podem passar por golpes de mestre, mas o que faria quem pretendesse imitar as qualidades de um médium curador? De duas, uma: ou ele cura ou não cura. Não há simulacro que possa produzir uma cura.

Além disso, a mediunidade escapa completamente à lei sobre o exercício ilegal da medicina, porque não prescreve qualquer tratamento. A que penalidade poderiam condenar aquele que cura só por sua influência, secundada pela prece, e que, além disso, nada pede como pagamento por seus serviços? Ora, a prece não é uma substância farmacêutica. É, em vossa opinião, uma tolice; seja, mas se a cura está no fim dessa tolice, que direis vós? Uma tolice que cura vale bem mais do que remédios que não curam.

Puderam proibir o Sr. Jacob de receber os doentes no campo e de ir à casa deles, e se ele se submeteu, dizendo que não retomaria o exercício de sua faculdade senão quando a interdição fosse levantada oficialmente, é porque, sendo militar, quis mostrar-se escrupuloso observador da disciplina, por mais dura que fosse. Nisto ele agiu sabiamente, porque provou que o Espiritismo não conduz à insubordinação, mas aqui é um caso excepcional. Considerando-se que esta faculdade não é privilégio de um indivíduo, por que meio poderiam impedi-la de se propagar? Se ela se propaga, de bom grado ou de mau grado, terão que aceitá-la com todas as suas consequências.

Dependendo a mediunidade curadora de uma disposição orgânica, muitas pessoas a possuem, ao menos em germe, que fica em estado latente, por falta de exercício e de desenvolvimento. É uma faculdade que muitos ambicionam com razão, e se todos os que desejam possuí-la a pedissem com fervor e perseverança pela prece, e com um objetivo exclusivamente humanitário, é provável que desse concurso sairia mais de um verdadeiro médium curador.

Não é de admirar ver pessoas que a princípio dela não parecem dignas e são favorecidas com esse dom precioso. É que a assistência dos bons Espíritos é franqueada a todo mundo, para a todos abrir o caminho do bem, mas ela cessa, se a pessoa não souber tornar-se digna dela, melhorando-se. Dá-se aqui como com os dons da fortuna, que nem sempre vêm ao mais merecedor. É, então, uma prova pelo uso que ele dela faz. Felizes aqueles que dela saem vitoriosos.

Pela natureza de seus efeitos, a mediunidade curadora exige imperiosamente o concurso de Espíritos depurados, que não poderiam ser substituídos por Espíritos inferiores, ao passo que há efeitos medianímicos para cuja produção a elevação dos Espíritos não é uma condição necessária e que, por essa razão, são obtidos pouco mais ou menos em qualquer circunstância. Certos Espíritos até, menos escrupulosos que outros quanto a estas condições, preferem os médiuns em quem encontram simpatia. Mas pela obra se conhece o operário.

Há, pois, para o médium curador, a necessidade absoluta de conquistar o concurso dos Espíritos superiores, se quiser conservar e desenvolver sua faculdade, senão, em vez de crescer, ela declina e desaparece pelo afastamento dos bons Espíritos. A primeira condição para isto é trabalhar em sua própria depuração, a fim de não alterar os fluidos salutares que ele está encarregado de transmitir. Esta condição não poderia ser suprida sem o mais completo desinteresse material e moral. O primeiro é o mais fácil; o segundo é o mais raro, porque o orgulho e o egoísmo são os sentimentos mais difíceis de extirpar e porque várias causas contribuem para superexcitá-los nos médiuns. Quando um deles se revela com faculdades um pouco transcendentes, ─ falamos aqui dos médiuns em geral, escreventes, videntes e outros ─ ele é procurado, adulado e mais de um sucumbe a essa tentação da vaidade. Em breve, esquecendo que sem os Espíritos nada seria, ele se considera indispensável e como único intérprete da verdade; ele denigre os outros médiuns e se julga acima dos conselhos. O médium que assim se comporta está perdido, porque os Espíritos se encarregam de lhe provar que ele pode ser dispensado, fazendo surgir outros médiuns melhor assistidos. Comparando a série das comunicações de um mesmo médium, facilmente podemos julgar se ele cresce ou se degenera. Ah! Quantos temos visto, de todos os gêneros, cair triste e deploravelmente no terreno escorregadio do orgulho e da vaidade! Podemos, portanto, esperar o surgimento de uma multidão de médiuns curadores. Entre eles, vários se tornarão frutos secos e eclipsar-se-ão depois de ter emitido um brilho passageiro, ao passo que outros continuarão a elevar-se.

Eis um exemplo disto, há uns seis meses assinalado por um de nossos correspondentes. Num departamento do sul, um médium, que se havia revelado como curador, tinha operado várias curas notáveis e nele depositavam grandes esperanças. Sua faculdade apresentava particularidades que deram, num grupo, a ideia de fazer um estudo a respeito. Eis a resposta que obtiveram dos Espíritos, e que nos foi transmitida na ocasião. Ela pode servir de instrução a todos.

“X... realmente possui a faculdade de médium curador notavelmente desenvolvida. Infelizmente, como muitos outros, ele exagera muito a sua dimensão. É um excelente rapaz, cheio de boas intenções, mas que um orgulho desmesurado e uma visão extremamente curta dos homens e das coisas farão periclitar prontamente. Seu poder fluídico, que é considerável, bem utilizado e ajudado pela influência moral, poderia produzir excelentes resultados. Sabeis por que muitos de seus doentes só experimentam um bem-estar momentâneo que desaparece quando ele lá não mais está? É que ele age por sua presença somente, mas nada deixa ao Espírito para triunfar sobre os sofrimentos do corpo.

“Quando ele parte, nada resta dele, nem mesmo o pensamento que segue o doente, no qual ele não pensa mais, ao passo que a ação mental poderia, em sua ausência, continuar a ação direta. Ele acredita em seu poder fluídico, que é real, mas cuja ação não é persistente, porque não é corroborada pela influência moral. Quando obtém êxito, ele fica mais satisfeito por ser notado do que por ter curado. Contudo, é sinceramente desinteressado, pois coraria se recebesse a menor remuneração. Embora não seja rico, jamais pensou em fazer disto uma fonte de renda. O que ele deseja é fazer que falem de si. Falta-lhe também a afabilidade de coração, que atrai. Os que vêm a ele ficam chocados com as suas maneiras, que não inspiram simpatia, do que resulta uma falta de harmonia que prejudica a assimilação dos fluidos. Longe de acalmar e apaziguar as más paixões, ele as excita, julgando fazer o que é necessário para destruí-las, e isto pela falta de discernimento. É um instrumento desafinado; por vezes emite sons harmoniosos e bons, mas o conjunto só pode ser mau, ou pelo menos improdutivo. Ele não é tão útil à causa quanto poderia ser, e com muita frequência a prejudica, porque, por seu caráter, faz apreciar muito mal os resultados. É um desses que pregam com violência uma doutrina de doçura e de paz.

Pergunta. ─ Então pensais que ele perderá seu poder curador?

Resposta. ─ Estou persuadido disto, a menos que ele mude de atitude, o que infelizmente não acredito que ele seja capaz de fazer. Os conselhos seriam supérfluos, porque ele está convicto de que sabe mais que todo mundo. Talvez ele deixasse transparecer que os escuta, mas não os seguiria. Assim, perde duplamente o benefício de uma excelente faculdade.”

O acontecimento justificou a previsão. Soubemos mais tarde que esse médium, depois de uma série de choques que seu amor-próprio teve que sofrer, tinha renunciado a novas tentativas de curas.

O poder de curar independe da vontade do médium; eis um fato constatado pela experiência. O que depende dele são as qualidades que podem tornar esse poder frutuoso e durável. Essas qualidades são sobretudo o devotamento, a abnegação e a humildade; o egoísmo, o orgulho e a cupidez são pontos de parada, contra os quais se quebra a mais bela faculdade.

O verdadeiro médium curador, o que compreende a santidade de sua missão, é movido tão somente pelo desejo do bem; não vê no dom que possui senão um meio de tornar-se útil aos seus semelhantes, e não um degrau para elevar-se acima dos outros e pôr-se em evidência. É humilde de coração, isto é, nele a humildade e a modéstia são sinceras, reais, sem segundas intenções, e não se traduzem em palavras que desmentem, muitas vezes, os próprios atos. A humildade por vezes é um manto sob o qual se abriga o orgulho, mas que não iludiria a ninguém. Ela não procura nem o brilho, nem o renome, nem o ruído de seu nome, nem a satisfação de sua vaidade. Não há, em suas maneiras, nem jactância, nem bazófia; não exibe as curas que realiza, ao passo que o orgulhoso as enumera com complacência, muitas vezes as amplifica, e acaba por se persuadir que fez tudo o que diz.

Feliz pelo bem que faz, ele não o é menos pelo que outros podem fazer; não se julgando o primeiro nem o único capaz; não inveja nem denigre nenhum médium. Os que possuem a mesma faculdade são para ele irmãos que concorrem para o mesmo objetivo. Ele diz que quanto mais médiuns houver, maior será o bem.

Sua confiança em suas próprias forças não vai até a presunção de se julgar infalível e, ainda menos, universal; sabe que outros podem tanto ou mais que ele; sua fé é mais em Deus do que em si mesmo, pois sabe que tudo pode por ele, e nada sem ele. Eis por que nada promete senão sob a reserva da permissão de Deus.

À influência material, ele acrescenta a influência moral, auxiliar poderoso que dobra a sua força. Por sua palavra benevolente, ele encoraja, levanta o moral, faz nascer a esperança e a confiança em Deus. Já é uma parte da cura, porque é uma consolação que dispõe a receber o eflúvio benéfico, ou melhor, o pensamento benevolente já é um eflúvio salutar. Sem a influência moral, o médium tem por si apenas a ação fluídica, material e de certo modo brutal, insuficiente em muitos casos.

Enfim, para aquele que possui as qualidades do coração, o doente é atraído por uma simpatia que predispõe à assimilação dos fluidos, ao passo que o orgulho, a falta de benevolência, chocam e fazem experimentar um sentimento de repulsa que paralisa essa assimilação.

Tal é o médium curador amado pelos bons Espíritos. Tal é, também, a medida que pode servir para julgar o valor intrínseco dos que se revelarão e a extensão dos serviços que eles poderão prestar à causa do Espiritismo. Isto não significa que só existam médiuns nessas condições e que aquele que não reunisse todas essas qualidades não poderia momentaneamente prestar serviços parciais que seria um erro rejeitar. O mal é para ele, porque quanto mais se afasta do modelo ideal, menos pode esperar ver sua faculdade desenvolver-se e mais se aproxima do declínio. Os bons Espíritos só se ligam aos que se mostram dignos de sua proteção, e a queda do orgulhoso, cedo ou tarde é a sua punição. O desinteresse é incompleto sem o desinteresse moral.


O subscrição em favor dos inundados

A Sociedade Espírita de Paris, na sessão de reabertura de 5 de outubro, abriu uma subscrição em favor dos inundados. Uma primeira coleta de 300 francos foi feita em seu nome no escritório do Moniteur Universal. As subscrições continuarão a ser recebidas no escritório da Revista Espírita.



ALLAN KARDEC


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