Você está em:
Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866 > Setembro
Setembro
Os irmãos Davenport em Bruxelas
Os irmãos Davenport acabam de passar algum tempo na Bélgica, onde pacificamente deram representações. Temos numerosos correspondentes nesse país, mas nem por eles nem pelos jornais soubemos que tais senhores ali tenham sido alvo de cenas lamentáveis como aquelas que ocorreram em Paris. Será que os belgas dariam lições de urbanidade aos parisienses? Poder-se-ia crê-lo comparando as duas situações. O que é evidente é que em Paris havia uma idéia preconcebida, uma conspiração organizada contra eles, e a prova disso é que os atacaram antes de saber o que iam fazer, antes mesmo que tivessem começado. Que vaiem os que fracassam, que não fazem o que anunciaram, é um direito comprado em toda parte, quando se paga a entrada. Mas que os escarneçam, que os insultem, que os maltratem, que lhes quebrem os instrumentos, antes mesmo que entrem em cena, é o que não se permitiria contra o último baderneiro de feira. Seja qual for a maneira pela qual sejam considerados esses senhores, tais procedimentos não têm desculpa num povo civilizado.
De que os acusam? De se apresentarem como médiuns? De pretenderem operar com a ajuda dos Espíritos? Se era, da parte deles, um meio fraudulento de atrair a curiosidade do público, quem tinha o direito de se lastimar? Os espíritas podiam achar ruim a exibição de uma coisa respeitável. Ora, quem lamentou? Quem gritou contra o escândalo, a impostura e a profanação? Precisamente os que não creem nos Espíritos. Mas, entre os que gritam mais alto que não há Espíritos, que fora do homem nada existe, alguns deles, de tanto ouvirem falar de manifestações, acabam, senão por crer, ao menos por temer que haja alguma coisa. O medo de que os irmãos Davenport viessem prová-lo claramente desencadeou contra eles uma verdadeira cólera que, se tivessem certeza de que eles não passavam de hábeis malabaristas, não haveria mais razão de ser do que se fosse dirigida contra o primeiro escamoteador que aparecesse. Sim, estamos convencidos de que o medo de vê-los vitoriosos foi a causa principal dessa hostilidade que tinha pré cedido o seu aparecimento em público e preparado os meios de fazer abortar sua primeira exibição.
Mas os irmãos Davenport não passavam de um pretexto; não era a eles, pessoalmente, que visavam, mas ao Espiritismo, ao qual pensavam que poderiam dar uma sanção e que, para o grande desapontamento de seus antagonistas, desfruta os efeitos da malevolência, pela prudente reserva da qual jamais se afastou, a despeito de tudo quanto fizeram para forçá-lo a dela afastar-se. Para muita gente, é um verdadeiro pesadelo. Era preciso conhecê-lo muito pouco para crer que aqueles senhores, colocandose em condições que ele desaprova, lhe pudessem servir de auxiliares. Contudo, eles serviram à sua causa, fazendo as pessoas falarem dele, na ocasião, e a crítica, sem querer, lhe deu a mão, provocando o exame da doutrina, É de notar que todo o alvoroço feito em torno do Espiritismo é obra desses mesmos que queriam abafá-lo. Por mais que tivessem feito contra ele, ele jamais gritou. Foram seus adversários que gritaram, como se já se julgassem mortos.
Extraímos do Office de Publicité, jornal de Bruxelas, que, ao que se diz, tem uma tiragem de 25.000 exemplares, as passagens seguintes de dois artigos publicados nos números de 8 e de 22 de julho último, sobre os irmãos Davenport, bem como duas cartas de refutação lealmente inseridas no mesmo jornal.
Embora um tanto gasto, o assunto não deixa de ter o seu lado instrutivo.
De que os acusam? De se apresentarem como médiuns? De pretenderem operar com a ajuda dos Espíritos? Se era, da parte deles, um meio fraudulento de atrair a curiosidade do público, quem tinha o direito de se lastimar? Os espíritas podiam achar ruim a exibição de uma coisa respeitável. Ora, quem lamentou? Quem gritou contra o escândalo, a impostura e a profanação? Precisamente os que não creem nos Espíritos. Mas, entre os que gritam mais alto que não há Espíritos, que fora do homem nada existe, alguns deles, de tanto ouvirem falar de manifestações, acabam, senão por crer, ao menos por temer que haja alguma coisa. O medo de que os irmãos Davenport viessem prová-lo claramente desencadeou contra eles uma verdadeira cólera que, se tivessem certeza de que eles não passavam de hábeis malabaristas, não haveria mais razão de ser do que se fosse dirigida contra o primeiro escamoteador que aparecesse. Sim, estamos convencidos de que o medo de vê-los vitoriosos foi a causa principal dessa hostilidade que tinha pré cedido o seu aparecimento em público e preparado os meios de fazer abortar sua primeira exibição.
Mas os irmãos Davenport não passavam de um pretexto; não era a eles, pessoalmente, que visavam, mas ao Espiritismo, ao qual pensavam que poderiam dar uma sanção e que, para o grande desapontamento de seus antagonistas, desfruta os efeitos da malevolência, pela prudente reserva da qual jamais se afastou, a despeito de tudo quanto fizeram para forçá-lo a dela afastar-se. Para muita gente, é um verdadeiro pesadelo. Era preciso conhecê-lo muito pouco para crer que aqueles senhores, colocandose em condições que ele desaprova, lhe pudessem servir de auxiliares. Contudo, eles serviram à sua causa, fazendo as pessoas falarem dele, na ocasião, e a crítica, sem querer, lhe deu a mão, provocando o exame da doutrina, É de notar que todo o alvoroço feito em torno do Espiritismo é obra desses mesmos que queriam abafá-lo. Por mais que tivessem feito contra ele, ele jamais gritou. Foram seus adversários que gritaram, como se já se julgassem mortos.
Extraímos do Office de Publicité, jornal de Bruxelas, que, ao que se diz, tem uma tiragem de 25.000 exemplares, as passagens seguintes de dois artigos publicados nos números de 8 e de 22 de julho último, sobre os irmãos Davenport, bem como duas cartas de refutação lealmente inseridas no mesmo jornal.
Embora um tanto gasto, o assunto não deixa de ter o seu lado instrutivo.
Crônica de Bruxelas
“É bem verdade que tudo acontece e que não se deve dizer: “Desta água não beberei.” Se me tivessem dito que eu jamais veria o armário dos irmãos Davenport nem esses ilustres feiticeiros, eu teria sido capaz de jurar que isto não teria importância, pois basta que me digam de alguém que ele é feiticeiro para me tirar toda curiosidade a seu respeito. O sobrenatural e a feitiçaria não têm inimigo mais teimoso do que eu. Eu não iria ver um milagre quando o mostrassem de graça: essas coisas me inspiram aversão, tanto quanto bezerros de duas cabeças, mulheres de barba e todos os monstros. Considero idiotas os Espíritos batedores e as mesas sábias, e não há superstição que me faça fugir para o fim do mundo. Julgai se com tais disposições eu teria podido ir engrossar a multidão junto aos irmãos Davenport, quando diziam que eles mantinham comércio regular com os Espíritos! Confesso que também não me teria vindo a ideia de desmascarar a trapaça, de quebrar o seu armário e provar que realmente não eram feiticeiros, pois me parece que assim eu teria dado a prova de que eu mesmo tinha acreditado em seus aparatos e em suas artes. Ter-me-ia parecido infinitamente mais simples afastar, de saída, essa suposta feitiçaria e supor que tendo enganado tanta gente, eles deveriam ser criaturas muito hábeis em seus exercícios. Quanto a compreender, eu não me teria dado a esse trabalho. Desde que os Espíritos aí não se metem, valeria a pena? E se tivesse havido muitos pobres Espíritos no outro mundo para neste vir fazer o papel de comparsas, ainda valeria a pena?
“Li oportunamente com muito atenção, embora tivesse em que empregar melhor o meu tempo, a maior parte dos livros em uso pelos espíritas e aí encontrei tudo quanto era necessário para satisfazer a necessidade de uma religião nova, mas não com que me converter a essa velha novidade. Consultados todos os Espíritos, cujas respostas são citadas, nada disseram que não tivesse sido dito antes deles e em melhores termos do que as repetiram. Ensinaram-nos que é preciso amar o bem e detestar o mal, que a verdade é o contrário da mentira, que a alma é imortal, que o homem deve tender incessantemente a tornar-se melhor e que a vida é uma provação, coisas todas sabidas há milhares de anos, para a revelação das quais era inútil evocar tantos mortos ilustres e até personagens que, por mais célebres que sejam, cometeram, entretanto, o erro de não terem existido. Não falo do Judeu-Errante, mas imaginai que eu vá evocar Dom Quixote e que ele volte, isto não seria divertido ao máximo?
“Eu não tinha mais que uma objeção a respeito dos irmãos Davenport, pois não passavam de hábeis prestidigitadores. Essa objeção se resumia em que, afastado de boa vontade e de comum acordo todo Espiritismo, seus exercícios bem podiam não passar de um divertimento medíocre. É provável que não me tivesse vindo a ideia de ir vê-los se, feita a oferta graciosa de lá ir, eu não tivesse considerado que a crônica obriga, que nem tudo são rosas na vida e que o cronista deve ir aonde vai o público e aborrecer-se um pouco, em compensação. Resolvido a fazer as coisas conscienciosamente, para começar fui de dia à sala do Círculo Artístico e Literário, onde se ocupavam na montagem do famoso armário. Vi-o ainda incompleto, à luz do dia, e despido de toda a sua ‘poesia’. Se às ruínas são necessárias a solidão e as sombras da noite, aos ‘truques’ dos prestidigitadores são necessárias a luz do gás, a multidão crédula e a distância. Mas os irmãos Davenport são bons artistas e põem as cartas na mesa. Podia-se ver, e entrava quem quisesse. Um criado americano montava o armário com tranquilidade; os violões, os pandeiros, as cordas, as campainhas lá estavam, de mistura com cofres, roupas, pedaços de tapetes, panos de embalagem; tudo ao abandono, ao alcance de qualquer um, como um desafio à curiosidade. Aquilo parecia dizer: Virai, revirai, examinai, procurai, mexei, sacudi! Nada sabereis.
“Nada há de mais insolentemente simples que o armário. É um guarda-roupa, que absolutamente não tem aparência de ter sido feito para alojar Espíritos. Pareceu-me de nogueira. Tem na frente três portas em vez de duas, e parece cansado das viagens que fez e dos assaltos que sofreu. Lancei-lhe um olhar, não muito de perto, porque, escancarado como estava, imaginei que um móvel tão misterioso devia exalar cheiro de mofo, como a espineta mágica na qual encerravam Mozart em criança.
“Declaro formalmente que, a menos que aí pusesse roupas, não saberia o que fazer do armário dos irmãos Davenport. A cada um a sua função. Eu o revi à noite, isolado sobre o estrado, diante da rampa: já tinha um aspecto monumental. A sala estava cheia, como jamais esteve nos dias em que Mozart, Beethoven e seus intérpretes bancaram sozinhos os custos do espetáculo. O mais belo público possível: os mais amáveis, os mais espirituosos, as mais belas mulheres de Bruxelas, depois os conselheiros da Corte de Cassação, presidentes políticos, judiciários e literários; todas as academias, senadores, ministros, representantes, jornalistas, artistas, empreiteiros de construções, entalhadores ‘que eram como um buquê de flores! O honrado Sr. Rogier, ministro dos negócios estrangeiros, estava naquele serão, onde lhe fazia companhia um antigo presidente da Câmara. O Sr. Vervoort que, desiludido das grandezas humanas, só conservou a presidência do Círculo, aliás uma realeza encantadora. À vista disso, senti-me seguro. Um de nossos melhores pintores, o Sr. Robie, fez eco ao meu pensamento dizendo-me: ‘Vedes! A Áustria e a Prússia podem bater-se quanto queiram. Desde que a crise europeia não perturbe o nosso ministro dos negócios estrangeiros, a Bélgica pode dormir em paz.’ Isso me pareceu peremptório, vós mesmo o julgareis, e sabendo que o Sr. Rogier assistiu sorridente ao sarau dos irmãos Davenport, dormireis descansados. É o que tendes de melhor a fazer.
“Vi todos os exercícios dos irmãos Davenport e absolutamente não procurei compreender o seu mistério. Tudo quanto posso dizer, sem pensar o mínimo em lhes diminuir o sucesso, é que me é impossível sentir o menor prazer com essas coisas. Elas não me interessam. Em minha presença amarraram os irmãos Davenport; disseram que os amarraram muito bem; depois puseram farinha em suas mãos e os trancaram no armário, baixaram a luz e ouvi um grande ruído de violões, de campainhas e de pandeiros no armário. De repente o armário se abriu ─ bruscamente um pandeiro rolou violentamente até os meus pés, e os irmãos Davenport apareceram desamarrados, saudando o público, sacudindo a farinha posta em suas mãos. Aplaudiram muito; aí está! ─ Enfim, como explicais isto?
─ Há pessoas do Círculo que o explicam muito bem. Quanto a mim, por mais que dê tratos à bola, não sinto absolutamente nenhuma vontade de entender. Eles se desataram, eis tudo, e o golpe da farinha foi bem feito. Acho os preparativos demorados, o ruído aborrecido e tudo pouco divertido. E nada de espírito, nem no singular nem no plural.
─ Então, não acreditais?
─ Sim; acredito no aborrecimento que senti.
─ E o Espiritismo? Não acreditais nele?
─ Isto é pergunta de Sganarello a Don Juan. Logo ireis perguntar se acredito no Frade-Cabeçudo (Moine-Bourru). Responderei como Don Juan, que acredito que dois e dois são quatro e que quatro e quatro são oito. Ainda não sei se, vendo o que se passa na Alemanha e alhures, não seria forçado a fazer reservas.
─ Então sois ateu?
─ Não. Sem modéstia, sou o homem mais religioso da Terra.
─ Assim, acreditais em Deus, na imortalidade da alma, na ...
─ Creio. É a minha felicidade e a minha esperança.
─ E tudo isso se concilia com vosso quatro mais quatro são oito!
─ Precisamente. Tudo está aí. O turco é uma bela língua!
─ Então ides à missa?
─ Não, mas não vos impeço de ir. O pássaro no galho, o verme brilhando na grama, os globos no espaço e meu coração cheio de adoração me cantam a missa noite e dia. Amo a Deus apaixonadamente e sem medo. Que quereis que eu faça, com isso, das religiões e de outras variedades do davenportismo?
─ E o Espiritismo? E Allan Kardec?
─ Creio que o Sr. Allan Kardec, que faria muito melhor em usar o seu nome verdadeiro, é tão bom cidadão quanto vós e eu. Sua moral não difere da moral comum, que me basta. Quanto às suas revelações, gosto tanto quanto do armário dos Davenport, com ou sem violões. Li as revelações dos Espíritos; seu estilo não vale o de Bossuet, e, salvo as citações feitas das obras dos homens ilustres, é pesado e por vezes comum. Eu não gostaria de escrever como o mais forte do grupo. Meu editor me diria que o macarrão é bom, mas que dele não se deve abusar. O Espiritismo tem sobrenatural e dogmas e eu desconfio desse bloco enfarinhado. Eu disse isto há cinco anos, falando da doutrina, pois é uma doutrina: Ela tem tudo o que é preciso para instituir uma religião nova. Seria melhor ser simplesmente religioso e não ir além das revelações do Universo.
“Vejo essa religião despontar. Já é uma seita, e considerável, porque não podeis avaliar o número e a seriedade das cartas que já recebi, por haver tratado de Espiritismo ultimamente. Ele tem os seus fanáticos, terá os seus intolerantes, os seus sacerdotes, porque o dogma se presta à ação intermediária, pois os Espíritos têm classes e preferências. Assim que houver dez por cento a ganhar com esse novo dogma, ver-se-lhe-á um clero. Eu o creio destinado a herdar do Catolicismo, em razão de seus aspectos sedutores. Esperai apenas que os espertos aí se misturem, e os profetas e os evocadores privilegiados surgirão através do mistério da coisa, que é suave e poética, como as ervas parasitas num campo de trigo.
“Eis duas cartas que me foram dirigidas. Vêm de pessoas leais, simples e convictas. Por isto as publico.
“Ao Sr. Bertram.
“Há quatro anos eu era o que se pode chamar um franco retardatário: católico sincero, acreditava nos milagres, no diabo, na infalibilidade papal. Assim, teria acertado sem discutir a Encíclica de Pio IX, com todas as suas consequências na ordem política.
“Mas, perguntareis, com qual finalidade tal confissão de um desconhecido? Palavra, Sr. Bertram, vou informar-vos, com o risco de excitar a vossa veia trocista ou de vos fazer fugir até o fim do mundo.
“Um dia, em Antuérpia, vi uma mesinha (vulgarmente chamada mesa falante) que me respondeu a uma pergunta mental em meu idioma natal, desconhecido dos assistentes; entre eles havia espíritos fortes, maçons que não acreditavam nem em Deus nem na alma. A coisa lhes deu motivos para refletir; eles leram com avidez as obras espíritas de Allan Kardec; eu fiz como eles, sobretudo quando vários sacerdotes me haviam assegurado que tais fenômenos eram obra exclusiva do... demônio, e eu vos asseguro que não lamentei o tempo que isso me custou, muito pelo contrário. Nesses livros não só achei uma solução racional e muito natural do fenômeno acima, mas uma saída para muitas questões, para muitos problemas que antes me haviam surgido. Aí encontrastes matéria para uma religião nova; mas credes, Sr. Bertram, que haveria um grande mal nisso, se ocorresse? O Catolicismo está de tal modo vinculado às necessidades de nossa Sociedade que não possa ser renovado nem substituído vantajosamente? Ou acreditais que a Humanidade possa prescindir de toda crença religiosa? O liberalismo proclama belos princípios, mas é, em grande parte, céptico e materialista. Nessas condições, jamais ligaria as massas a si, tanto quanto o Catolicismo ultramontano. Se o Espiritismo um dia for chamado a tornar-se uma religião, será a religião natural, bem desenvolvida e bem compreendida, e certamente não é nova. É, como dizeis, uma velha novidade. Mas é também um terreno neutro, onde todas as opiniões, tanto políticas quanto religiosas, um dia poderão dar-se as mãos.
“Seja como for, desde que me tornei espírita, algumas más línguas me acusam de me haver tornado livre pensador. É verdade que a partir de então, assim como os Espíritos fortes dos quais eu falava acima, não mais creio no sobrenatural nem no diabo; mas, em compensação, todos cremos um pouco mais em Deus, na imortalidade da alma, na pluralidade das existências; filhos do século dezenove, percebemos uma estrada segura e queremos por ela empurrar o carro do progresso, em vez de retardá-lo. Vedes, pois, que o Espiritismo tem ainda coisas boas, porquanto pode operar tais mudanças.
“E agora, para voltar aos irmãos Davenport, seria erro evitar as experiências ou concluir com ideia preconcebida contra elas, pelo simples fato de serem novas. Quanto mais extraordinários os fatos que nos apresentem, mais merecem ser observados conscienciosamente e sem ideias preconcebidas, porque, quem poderia gabar-se de conhecer todos os segredos da Natureza? Jamais vi os irmãos Davenport, mas li o que a imprensa francesa escreveu sobre eles e fiquei admirado da má-fé posta no caso. Os amadores poderão ler com proveito Des forces naturelles inconnues (As forças naturais desconhecidas), de Hermès (Paris, Didier, 1865). É uma refutação, do ponto de vista da Ciência, das críticas contra eles dirigidas. Se é verdade que aqueles senhores não se apresentam como espíritas e não conhecem a doutrina, o Espiritismo não tem que lhes tomar a defesa. Tudo o que se pode dizer é que fatos semelhantes aos que eles apresentam são possíveis, em virtude de uma lei natural hoje conhecida e pela intervenção de Espíritos inferiores. Apenas, até aqui, esses fatos não se haviam produzido em condições tão pouco favoráveis, em horas fixas e com tanta regularidade.
“Espero, senhor, que acolhais estas observações desinteressadas e lhes deis hospitalidade em vosso jornal. Possam elas contribuir para elucidar uma questão mais interessante para os vossos leitores do que poderíeis supor.
“Vosso assinante,
“H. VANDERYST.”
“Ei-la publicada! Não me poderão acusar de ‘pôr a luz sob o velador’.
“Para começar, não tenho velador; depois, sem a sombra da troça, não vejo aqui muita luz. Jamais fiz objeção à moral espírita; ela é pura. Os espíritas são honestos e benfeitores. Seus donativos para as creches mo provaram. Se eles se apegam aos seus Espíritos superiores e inferiores, não vejo nisso inconveniente. É uma questão entre o seu instinto e a sua razão.
“Há um postscriptum na carta que diz: ‘Permiti chame a vossa atenção para a obra que acaba de ter as honras do Index: A Pluralidade das Existências da Alma, de Pezzani, advogado, onde essa questão é tratada fora da revelação espírita.’
“Passemos à outra carta:
(Segue-se uma segunda carta no mesmo sentido da precedente, e que assim termina):
“Tenho a convicção que, no dia em que a imprensa empenhar-se em desenvolver tudo o que o Espiritismo encerra de belo, o mundo fará progressos imensos, moralmente. Tornar perceptível ao homem que cada um traz em si a verdadeira religião, a consciência; deixá-lo em presença de si mesmo para responder por seus atos ante o Ser Supremo, que coisa importante! Não seria matar o materialismo, que faz tanto mal no mundo? Não seria uma barreira contra o orgulho, a ambição, a inveja, coisas que tornam o homem infeliz? Ensinar ao homem que deve fazer o bem para merecer sua recompensa: certamente há homens que estão convencidos de tudo isto, mas quantos em relação à totalidade? E tudo isto pode-se ensinar ao homem. De minha parte, evoquei meu pai e, graças às respostas obtidas, a dúvida não é mais possível.
“Se eu tivesse a felicidade de manejar a pena como vós, trataria o Espiritismo como chamado a nos inculcar uma moral suave e agradável. Meu primeiro artigo teria por título O Espiritismo, ou a destruição de todo fanatismo. A queda dos Jesuítas e de todos os que vivem da credulidade humana. Bebem-se todas essas ideias no excelente livro de Allan Kardec. Como eu gostaria que tivésseis a minha maneira de encarar o Espiritismo! Como faríeis bem à moral! Mas, meu caro Bertram, como pudestes encontrar sobrenatural e feitiçaria no Espiritismo? Não acho mais extraordinário em nos comunicarmos com nossos pais e amigos que passaram para o outro mundo, por meio do fluido que nos põe em contato com eles, do que nos comunicarmos com os nossos irmãos deste globo, a distâncias fabulosas, por meio do fio elétrico!”
* * *
“Tudo publicado sem observação nem comentários, para provar apenas que o Espiritismo na Bélgica tem partidários ardentes em sua fé. Positivamente, a seita faz progressos, e em breve o Catolicismo terá que contar com ela.
“A imprensa parisiense não foi de má-fé com os irmãos Davenport. O que ela deixa bem claro é que eles não mais exibem pretensões ao sobrenatural. Eles não mais fazem exibições a cinquenta francos por cabeça, ao menos que eu saiba. Contudo, creio que as pessoas que quisessem pagar esse preço por um lugar, não seriam mal recebidas. Para concluir, afirmo que seus exercícios não me parecem feitos para exercer grande influência sobre o futuro das sociedades humanas.
“BERTRAM.”
Depois das duas cartas que acabamos de ler, pouco temos a dizer sobre o artigo. Sua moderação contrasta com a acrimônia da maioria dos que outrora eram escritos sobre o mesmo assunto. Ao menos o autor não contesta aos espíritas o direito de ter uma opinião, que ele respeita, embora não a compartilhe. Em consonância com certos apóstolos do progresso, ele reconhece que a liberdade de consciência é um direito de todos. Já é alguma coisa. Ele concorda mesmo que os espíritas têm coisas boas e são de boa-fé. Constata, enfim, os progressos da doutrina, e confessa que ela tem um lado sedutor. Assim, faremos apenas ligeiras observações.
O Sr. Bertram nos considera mesmo tão bom cidadão quanto ele, e nós agradecemos, mas acrescenta que faríamos muito bem em usar o nosso nome verdadeiro. Por nosso lado, permitimo-nos perguntar-lhe por que assina seus artigos Bertram, em vez de Eugène Landois, o que nada tira de suas qualidades pessoais, pois sabemos que ele é o principal organizador da creche de Saint-Josse-Tennoode, da qual se ocupa com a mais louvável solicitude.
Se o Sr. Bertram tivesse lido os livros espíritas com tanta atenção quanto diz, saberia se os espíritas são tão simplórios para evocar o Judeu-Errante e Dom Quixote; saberia o que o Espiritismo aceita e o que rejeita; não tentaria apresentá-lo como uma religião, porque, da mesma forma, todas as filosofias seriam religiões, porquanto faz parte de sua essência discutir as bases de todas as religiões: Deus e a natureza da alma. Ele compreenderia, enfim, que se jamais o Espiritismo se tornasse uma religião, não poderia tornarse intolerante sem renegar seu princípio, que é a fraternidade universal, sem distinção de seita e de crença; sem abjurar sua divisa: fora da Caridade não há salvação, o mais explícito símbolo do amor ao próximo, da tolerância e da liberdade de consciência. Ele jamais diz: “Fora do Espiritismo não há salvação.” Se uma religião se apoiasse no Espiritismo com exclusão de seus princípios, não seria mais Espiritismo.
O Espiritismo é uma doutrina filosófica que toca em todas as questões humanitárias. Pelas modificações profundas que traz às ideias, faz encarar as coisas de outro ponto de vista, daí, para o futuro, inevitáveis modificações nas relações sociais. É uma mina fecunda onde as religiões, como as ciências, como as instituições civis, colherão elementos de progresso. Mas, porque toca em certas crenças religiosas, não constitui um culto novo, assim como não é um sistema particular de política, de legislação ou de economia social. Seus templos, suas cerimônias e seus sacerdotes estão na imaginação de seus detratores e daqueles que temem vê-lo tornar-se religião.
O Sr. Bertram critica o estilo dos Espíritos e coloca o seu muito acima: é direito seu e não o contestaremos. Também não contestamos sua opinião de que em questão de moral os Espíritos nada de novo nos ensinam. Isto prova uma coisa, é que os homens são disso os maiores culpados por praticá-la tão pouco. É, pois, de admirar que Deus, em sua solicitude, lha repita sob todas as formas? Se, sob esse ponto de vista, o ensino dos Espíritos é inútil, o do Cristo o era igualmente, porquanto ele apenas desenvolveu os mandamentos do Sinai. Os escritos de todos os moralistas também são inúteis, pois não fazem senão repetir a mesma coisa em outros termos. Com um tal sistema, quanta gente cujos trabalhos seriam inúteis, sem aí incluir os cronistas que, por sua condição, nada devem inventar.
É forçoso convir, portanto, que a moral dos Espíritos é tão velha quanto o mundo, o que nada tem de surpreendente se levarmos em consideração que não sendo a moral senão a lei de Deus, essa lei deve existir de toda a eternidade e que a criatura nada pode acrescentar à obra do Criador. Mas não há nada de novo no modo de ensinar? Até agora o código de moral não tinha sido promulgado senão por algumas individualidades; foi reproduzido em livros que nem todo mundo lê e nem todos compreendem. Pois bem! Hoje esse mesmo código é ensinado, não mais por alguns homens, mas por milhões de Espíritos, que foram homens, em todos os países, em cada família e, por assim dizer, em cada indivíduo. Credes que aquele que tiver sido indiferente à leitura de um livro, que tiver tratado as máximas que o mesmo encerra como lugares-comuns, não ficará diversamente impressionado se seu pai, sua mãe ou um ser que lhe é caro e que ele respeita, lhe vem dizer, mesmo num estilo inferior ao de Bossuet: “Não estou perdido para ti, como pensaste; estou aqui junto a ti, vejo-te e te escuto, conheço-te melhor que quando estava vivo, porque leio o teu pensamento. Para ser feliz no mundo onde estou, eis a regra de conduta a seguir; tal ação é boa e tal outra é má, etc.” Como vedes, é um ensino direto ou, se preferirdes, um novo meio de publicidade, tanto mais eficaz porque vai direto ao coração; porque nada custa; porque dirige-se a todo mundo, ao pequeno como ao grande, ao pobre como ao rico, ao ignorante como ao letrado, e porque desafia o despotismo humano que gostaria de impor-lhe uma barreira.
Mas, perguntareis, isto é possível? Não será uma ilusão? Essa dúvida seria natural se tais comunicações fossem feitas a um só homem privilegiado, pois nada provaria que não se engane. Mas quando milhares de indivíduos recebem mensagens semelhantes diariamente, em todos os países do mundo, é racional pensar que todos sejam alucinados? Se o ensino do Espiritismo estivesse encerrado exclusivamente nas obras espíritas, não teria conquistado a centésima parte dos adeptos que possui. Esses livros nada mais fazem que resumir e coordenar esse ensino, e o que constitui seu sucesso é que cada um encontra em seu íntimo a confirmação do que eles encerram.
Ter-se-á razão para dizer que o ensino moral dos Espíritos é supérfluo quando for provado que os homens são suficientemente bons para dispensá-lo. Até lá não é de admirar vê-lo repetido sob todas as formas e em todos os tons.
Que me importa, dizeis vós, Sr. Bertram, que me importa que haja ou não Espíritos! É possível que isto vos seja indiferente, mas não é assim com todos. É absolutamente como se dissésseis: “Que me importa que haja habitantes na América, e que o cabo elétrico me venha prová-lo!” Cientificamente, é apenas a prova da existência do mundo invisível; moralmente, é muito, porque a constatação da existência dos Espíritos povoando o espaço que julgávamos desabitado é a descoberta de todo um mundo, a revelação do futuro e do destino do homem, uma revolução nas suas crenças. Ora, se a coisa existe, toda denegação não poderá impedi-la de existir. Seus inevitáveis resultados bem merecem que com ela a gente se preocupe. Sois homem de progresso e repelis um elemento do progresso; um meio de melhorar a Humanidade, de cimentar a fraternidade entre os homens; uma descoberta que conduz à reforma dos abusos sociais contra os quais clamais incessantemente? Credes em vossa alma imortal e não vos preocupais absolutamente em saber o que ela se torna, o que se tornaram vossos pais e amigos? Francamente, isto é pouco racional. Direis que não é no armário dos Davenport que eu a encontrarei. De acordo. Jamais dissemos que aquilo é Espiritismo. Entretanto, esse mesmo armário, precisamente por que, com razão ou sem razão, aí fizeram intervirem os Espíritos, fez com que muito falassem dos Espíritos, mesmo aqueles que neles não acreditavam. Daí pesquisas e estudos que não teriam sido feitos se esses senhores se tivessem apresentado como simples prestidigitadores. Se os Espíritos não estavam em seu armário, bem que puderam provocar esse meio de fazer uma porção de gente sair de sua indiferença. Vedes que vós mesmo, inadvertidamente, fostes levado a semear a ideia entre vossos numerosos leitores, o que não teríeis feito sem esse famoso armário.
Quanto às verdades novas que ressaltam das revelações espíritas fora da moral, recomendamos o artigo publicado na Revista de janeiro de 1865 sob o título de O que o Espiritismo ensina.
“Li oportunamente com muito atenção, embora tivesse em que empregar melhor o meu tempo, a maior parte dos livros em uso pelos espíritas e aí encontrei tudo quanto era necessário para satisfazer a necessidade de uma religião nova, mas não com que me converter a essa velha novidade. Consultados todos os Espíritos, cujas respostas são citadas, nada disseram que não tivesse sido dito antes deles e em melhores termos do que as repetiram. Ensinaram-nos que é preciso amar o bem e detestar o mal, que a verdade é o contrário da mentira, que a alma é imortal, que o homem deve tender incessantemente a tornar-se melhor e que a vida é uma provação, coisas todas sabidas há milhares de anos, para a revelação das quais era inútil evocar tantos mortos ilustres e até personagens que, por mais célebres que sejam, cometeram, entretanto, o erro de não terem existido. Não falo do Judeu-Errante, mas imaginai que eu vá evocar Dom Quixote e que ele volte, isto não seria divertido ao máximo?
“Eu não tinha mais que uma objeção a respeito dos irmãos Davenport, pois não passavam de hábeis prestidigitadores. Essa objeção se resumia em que, afastado de boa vontade e de comum acordo todo Espiritismo, seus exercícios bem podiam não passar de um divertimento medíocre. É provável que não me tivesse vindo a ideia de ir vê-los se, feita a oferta graciosa de lá ir, eu não tivesse considerado que a crônica obriga, que nem tudo são rosas na vida e que o cronista deve ir aonde vai o público e aborrecer-se um pouco, em compensação. Resolvido a fazer as coisas conscienciosamente, para começar fui de dia à sala do Círculo Artístico e Literário, onde se ocupavam na montagem do famoso armário. Vi-o ainda incompleto, à luz do dia, e despido de toda a sua ‘poesia’. Se às ruínas são necessárias a solidão e as sombras da noite, aos ‘truques’ dos prestidigitadores são necessárias a luz do gás, a multidão crédula e a distância. Mas os irmãos Davenport são bons artistas e põem as cartas na mesa. Podia-se ver, e entrava quem quisesse. Um criado americano montava o armário com tranquilidade; os violões, os pandeiros, as cordas, as campainhas lá estavam, de mistura com cofres, roupas, pedaços de tapetes, panos de embalagem; tudo ao abandono, ao alcance de qualquer um, como um desafio à curiosidade. Aquilo parecia dizer: Virai, revirai, examinai, procurai, mexei, sacudi! Nada sabereis.
“Nada há de mais insolentemente simples que o armário. É um guarda-roupa, que absolutamente não tem aparência de ter sido feito para alojar Espíritos. Pareceu-me de nogueira. Tem na frente três portas em vez de duas, e parece cansado das viagens que fez e dos assaltos que sofreu. Lancei-lhe um olhar, não muito de perto, porque, escancarado como estava, imaginei que um móvel tão misterioso devia exalar cheiro de mofo, como a espineta mágica na qual encerravam Mozart em criança.
“Declaro formalmente que, a menos que aí pusesse roupas, não saberia o que fazer do armário dos irmãos Davenport. A cada um a sua função. Eu o revi à noite, isolado sobre o estrado, diante da rampa: já tinha um aspecto monumental. A sala estava cheia, como jamais esteve nos dias em que Mozart, Beethoven e seus intérpretes bancaram sozinhos os custos do espetáculo. O mais belo público possível: os mais amáveis, os mais espirituosos, as mais belas mulheres de Bruxelas, depois os conselheiros da Corte de Cassação, presidentes políticos, judiciários e literários; todas as academias, senadores, ministros, representantes, jornalistas, artistas, empreiteiros de construções, entalhadores ‘que eram como um buquê de flores! O honrado Sr. Rogier, ministro dos negócios estrangeiros, estava naquele serão, onde lhe fazia companhia um antigo presidente da Câmara. O Sr. Vervoort que, desiludido das grandezas humanas, só conservou a presidência do Círculo, aliás uma realeza encantadora. À vista disso, senti-me seguro. Um de nossos melhores pintores, o Sr. Robie, fez eco ao meu pensamento dizendo-me: ‘Vedes! A Áustria e a Prússia podem bater-se quanto queiram. Desde que a crise europeia não perturbe o nosso ministro dos negócios estrangeiros, a Bélgica pode dormir em paz.’ Isso me pareceu peremptório, vós mesmo o julgareis, e sabendo que o Sr. Rogier assistiu sorridente ao sarau dos irmãos Davenport, dormireis descansados. É o que tendes de melhor a fazer.
“Vi todos os exercícios dos irmãos Davenport e absolutamente não procurei compreender o seu mistério. Tudo quanto posso dizer, sem pensar o mínimo em lhes diminuir o sucesso, é que me é impossível sentir o menor prazer com essas coisas. Elas não me interessam. Em minha presença amarraram os irmãos Davenport; disseram que os amarraram muito bem; depois puseram farinha em suas mãos e os trancaram no armário, baixaram a luz e ouvi um grande ruído de violões, de campainhas e de pandeiros no armário. De repente o armário se abriu ─ bruscamente um pandeiro rolou violentamente até os meus pés, e os irmãos Davenport apareceram desamarrados, saudando o público, sacudindo a farinha posta em suas mãos. Aplaudiram muito; aí está! ─ Enfim, como explicais isto?
─ Há pessoas do Círculo que o explicam muito bem. Quanto a mim, por mais que dê tratos à bola, não sinto absolutamente nenhuma vontade de entender. Eles se desataram, eis tudo, e o golpe da farinha foi bem feito. Acho os preparativos demorados, o ruído aborrecido e tudo pouco divertido. E nada de espírito, nem no singular nem no plural.
─ Então, não acreditais?
─ Sim; acredito no aborrecimento que senti.
─ E o Espiritismo? Não acreditais nele?
─ Isto é pergunta de Sganarello a Don Juan. Logo ireis perguntar se acredito no Frade-Cabeçudo (Moine-Bourru). Responderei como Don Juan, que acredito que dois e dois são quatro e que quatro e quatro são oito. Ainda não sei se, vendo o que se passa na Alemanha e alhures, não seria forçado a fazer reservas.
─ Então sois ateu?
─ Não. Sem modéstia, sou o homem mais religioso da Terra.
─ Assim, acreditais em Deus, na imortalidade da alma, na ...
─ Creio. É a minha felicidade e a minha esperança.
─ E tudo isso se concilia com vosso quatro mais quatro são oito!
─ Precisamente. Tudo está aí. O turco é uma bela língua!
─ Então ides à missa?
─ Não, mas não vos impeço de ir. O pássaro no galho, o verme brilhando na grama, os globos no espaço e meu coração cheio de adoração me cantam a missa noite e dia. Amo a Deus apaixonadamente e sem medo. Que quereis que eu faça, com isso, das religiões e de outras variedades do davenportismo?
─ E o Espiritismo? E Allan Kardec?
─ Creio que o Sr. Allan Kardec, que faria muito melhor em usar o seu nome verdadeiro, é tão bom cidadão quanto vós e eu. Sua moral não difere da moral comum, que me basta. Quanto às suas revelações, gosto tanto quanto do armário dos Davenport, com ou sem violões. Li as revelações dos Espíritos; seu estilo não vale o de Bossuet, e, salvo as citações feitas das obras dos homens ilustres, é pesado e por vezes comum. Eu não gostaria de escrever como o mais forte do grupo. Meu editor me diria que o macarrão é bom, mas que dele não se deve abusar. O Espiritismo tem sobrenatural e dogmas e eu desconfio desse bloco enfarinhado. Eu disse isto há cinco anos, falando da doutrina, pois é uma doutrina: Ela tem tudo o que é preciso para instituir uma religião nova. Seria melhor ser simplesmente religioso e não ir além das revelações do Universo.
“Vejo essa religião despontar. Já é uma seita, e considerável, porque não podeis avaliar o número e a seriedade das cartas que já recebi, por haver tratado de Espiritismo ultimamente. Ele tem os seus fanáticos, terá os seus intolerantes, os seus sacerdotes, porque o dogma se presta à ação intermediária, pois os Espíritos têm classes e preferências. Assim que houver dez por cento a ganhar com esse novo dogma, ver-se-lhe-á um clero. Eu o creio destinado a herdar do Catolicismo, em razão de seus aspectos sedutores. Esperai apenas que os espertos aí se misturem, e os profetas e os evocadores privilegiados surgirão através do mistério da coisa, que é suave e poética, como as ervas parasitas num campo de trigo.
“Eis duas cartas que me foram dirigidas. Vêm de pessoas leais, simples e convictas. Por isto as publico.
“Ao Sr. Bertram.
“Há quatro anos eu era o que se pode chamar um franco retardatário: católico sincero, acreditava nos milagres, no diabo, na infalibilidade papal. Assim, teria acertado sem discutir a Encíclica de Pio IX, com todas as suas consequências na ordem política.
“Mas, perguntareis, com qual finalidade tal confissão de um desconhecido? Palavra, Sr. Bertram, vou informar-vos, com o risco de excitar a vossa veia trocista ou de vos fazer fugir até o fim do mundo.
“Um dia, em Antuérpia, vi uma mesinha (vulgarmente chamada mesa falante) que me respondeu a uma pergunta mental em meu idioma natal, desconhecido dos assistentes; entre eles havia espíritos fortes, maçons que não acreditavam nem em Deus nem na alma. A coisa lhes deu motivos para refletir; eles leram com avidez as obras espíritas de Allan Kardec; eu fiz como eles, sobretudo quando vários sacerdotes me haviam assegurado que tais fenômenos eram obra exclusiva do... demônio, e eu vos asseguro que não lamentei o tempo que isso me custou, muito pelo contrário. Nesses livros não só achei uma solução racional e muito natural do fenômeno acima, mas uma saída para muitas questões, para muitos problemas que antes me haviam surgido. Aí encontrastes matéria para uma religião nova; mas credes, Sr. Bertram, que haveria um grande mal nisso, se ocorresse? O Catolicismo está de tal modo vinculado às necessidades de nossa Sociedade que não possa ser renovado nem substituído vantajosamente? Ou acreditais que a Humanidade possa prescindir de toda crença religiosa? O liberalismo proclama belos princípios, mas é, em grande parte, céptico e materialista. Nessas condições, jamais ligaria as massas a si, tanto quanto o Catolicismo ultramontano. Se o Espiritismo um dia for chamado a tornar-se uma religião, será a religião natural, bem desenvolvida e bem compreendida, e certamente não é nova. É, como dizeis, uma velha novidade. Mas é também um terreno neutro, onde todas as opiniões, tanto políticas quanto religiosas, um dia poderão dar-se as mãos.
“Seja como for, desde que me tornei espírita, algumas más línguas me acusam de me haver tornado livre pensador. É verdade que a partir de então, assim como os Espíritos fortes dos quais eu falava acima, não mais creio no sobrenatural nem no diabo; mas, em compensação, todos cremos um pouco mais em Deus, na imortalidade da alma, na pluralidade das existências; filhos do século dezenove, percebemos uma estrada segura e queremos por ela empurrar o carro do progresso, em vez de retardá-lo. Vedes, pois, que o Espiritismo tem ainda coisas boas, porquanto pode operar tais mudanças.
“E agora, para voltar aos irmãos Davenport, seria erro evitar as experiências ou concluir com ideia preconcebida contra elas, pelo simples fato de serem novas. Quanto mais extraordinários os fatos que nos apresentem, mais merecem ser observados conscienciosamente e sem ideias preconcebidas, porque, quem poderia gabar-se de conhecer todos os segredos da Natureza? Jamais vi os irmãos Davenport, mas li o que a imprensa francesa escreveu sobre eles e fiquei admirado da má-fé posta no caso. Os amadores poderão ler com proveito Des forces naturelles inconnues (As forças naturais desconhecidas), de Hermès (Paris, Didier, 1865). É uma refutação, do ponto de vista da Ciência, das críticas contra eles dirigidas. Se é verdade que aqueles senhores não se apresentam como espíritas e não conhecem a doutrina, o Espiritismo não tem que lhes tomar a defesa. Tudo o que se pode dizer é que fatos semelhantes aos que eles apresentam são possíveis, em virtude de uma lei natural hoje conhecida e pela intervenção de Espíritos inferiores. Apenas, até aqui, esses fatos não se haviam produzido em condições tão pouco favoráveis, em horas fixas e com tanta regularidade.
“Espero, senhor, que acolhais estas observações desinteressadas e lhes deis hospitalidade em vosso jornal. Possam elas contribuir para elucidar uma questão mais interessante para os vossos leitores do que poderíeis supor.
“Vosso assinante,
“H. VANDERYST.”
“Ei-la publicada! Não me poderão acusar de ‘pôr a luz sob o velador’.
“Para começar, não tenho velador; depois, sem a sombra da troça, não vejo aqui muita luz. Jamais fiz objeção à moral espírita; ela é pura. Os espíritas são honestos e benfeitores. Seus donativos para as creches mo provaram. Se eles se apegam aos seus Espíritos superiores e inferiores, não vejo nisso inconveniente. É uma questão entre o seu instinto e a sua razão.
“Há um postscriptum na carta que diz: ‘Permiti chame a vossa atenção para a obra que acaba de ter as honras do Index: A Pluralidade das Existências da Alma, de Pezzani, advogado, onde essa questão é tratada fora da revelação espírita.’
“Passemos à outra carta:
(Segue-se uma segunda carta no mesmo sentido da precedente, e que assim termina):
“Tenho a convicção que, no dia em que a imprensa empenhar-se em desenvolver tudo o que o Espiritismo encerra de belo, o mundo fará progressos imensos, moralmente. Tornar perceptível ao homem que cada um traz em si a verdadeira religião, a consciência; deixá-lo em presença de si mesmo para responder por seus atos ante o Ser Supremo, que coisa importante! Não seria matar o materialismo, que faz tanto mal no mundo? Não seria uma barreira contra o orgulho, a ambição, a inveja, coisas que tornam o homem infeliz? Ensinar ao homem que deve fazer o bem para merecer sua recompensa: certamente há homens que estão convencidos de tudo isto, mas quantos em relação à totalidade? E tudo isto pode-se ensinar ao homem. De minha parte, evoquei meu pai e, graças às respostas obtidas, a dúvida não é mais possível.
“Se eu tivesse a felicidade de manejar a pena como vós, trataria o Espiritismo como chamado a nos inculcar uma moral suave e agradável. Meu primeiro artigo teria por título O Espiritismo, ou a destruição de todo fanatismo. A queda dos Jesuítas e de todos os que vivem da credulidade humana. Bebem-se todas essas ideias no excelente livro de Allan Kardec. Como eu gostaria que tivésseis a minha maneira de encarar o Espiritismo! Como faríeis bem à moral! Mas, meu caro Bertram, como pudestes encontrar sobrenatural e feitiçaria no Espiritismo? Não acho mais extraordinário em nos comunicarmos com nossos pais e amigos que passaram para o outro mundo, por meio do fluido que nos põe em contato com eles, do que nos comunicarmos com os nossos irmãos deste globo, a distâncias fabulosas, por meio do fio elétrico!”
* * *
“Tudo publicado sem observação nem comentários, para provar apenas que o Espiritismo na Bélgica tem partidários ardentes em sua fé. Positivamente, a seita faz progressos, e em breve o Catolicismo terá que contar com ela.
“A imprensa parisiense não foi de má-fé com os irmãos Davenport. O que ela deixa bem claro é que eles não mais exibem pretensões ao sobrenatural. Eles não mais fazem exibições a cinquenta francos por cabeça, ao menos que eu saiba. Contudo, creio que as pessoas que quisessem pagar esse preço por um lugar, não seriam mal recebidas. Para concluir, afirmo que seus exercícios não me parecem feitos para exercer grande influência sobre o futuro das sociedades humanas.
“BERTRAM.”
Depois das duas cartas que acabamos de ler, pouco temos a dizer sobre o artigo. Sua moderação contrasta com a acrimônia da maioria dos que outrora eram escritos sobre o mesmo assunto. Ao menos o autor não contesta aos espíritas o direito de ter uma opinião, que ele respeita, embora não a compartilhe. Em consonância com certos apóstolos do progresso, ele reconhece que a liberdade de consciência é um direito de todos. Já é alguma coisa. Ele concorda mesmo que os espíritas têm coisas boas e são de boa-fé. Constata, enfim, os progressos da doutrina, e confessa que ela tem um lado sedutor. Assim, faremos apenas ligeiras observações.
O Sr. Bertram nos considera mesmo tão bom cidadão quanto ele, e nós agradecemos, mas acrescenta que faríamos muito bem em usar o nosso nome verdadeiro. Por nosso lado, permitimo-nos perguntar-lhe por que assina seus artigos Bertram, em vez de Eugène Landois, o que nada tira de suas qualidades pessoais, pois sabemos que ele é o principal organizador da creche de Saint-Josse-Tennoode, da qual se ocupa com a mais louvável solicitude.
Se o Sr. Bertram tivesse lido os livros espíritas com tanta atenção quanto diz, saberia se os espíritas são tão simplórios para evocar o Judeu-Errante e Dom Quixote; saberia o que o Espiritismo aceita e o que rejeita; não tentaria apresentá-lo como uma religião, porque, da mesma forma, todas as filosofias seriam religiões, porquanto faz parte de sua essência discutir as bases de todas as religiões: Deus e a natureza da alma. Ele compreenderia, enfim, que se jamais o Espiritismo se tornasse uma religião, não poderia tornarse intolerante sem renegar seu princípio, que é a fraternidade universal, sem distinção de seita e de crença; sem abjurar sua divisa: fora da Caridade não há salvação, o mais explícito símbolo do amor ao próximo, da tolerância e da liberdade de consciência. Ele jamais diz: “Fora do Espiritismo não há salvação.” Se uma religião se apoiasse no Espiritismo com exclusão de seus princípios, não seria mais Espiritismo.
O Espiritismo é uma doutrina filosófica que toca em todas as questões humanitárias. Pelas modificações profundas que traz às ideias, faz encarar as coisas de outro ponto de vista, daí, para o futuro, inevitáveis modificações nas relações sociais. É uma mina fecunda onde as religiões, como as ciências, como as instituições civis, colherão elementos de progresso. Mas, porque toca em certas crenças religiosas, não constitui um culto novo, assim como não é um sistema particular de política, de legislação ou de economia social. Seus templos, suas cerimônias e seus sacerdotes estão na imaginação de seus detratores e daqueles que temem vê-lo tornar-se religião.
O Sr. Bertram critica o estilo dos Espíritos e coloca o seu muito acima: é direito seu e não o contestaremos. Também não contestamos sua opinião de que em questão de moral os Espíritos nada de novo nos ensinam. Isto prova uma coisa, é que os homens são disso os maiores culpados por praticá-la tão pouco. É, pois, de admirar que Deus, em sua solicitude, lha repita sob todas as formas? Se, sob esse ponto de vista, o ensino dos Espíritos é inútil, o do Cristo o era igualmente, porquanto ele apenas desenvolveu os mandamentos do Sinai. Os escritos de todos os moralistas também são inúteis, pois não fazem senão repetir a mesma coisa em outros termos. Com um tal sistema, quanta gente cujos trabalhos seriam inúteis, sem aí incluir os cronistas que, por sua condição, nada devem inventar.
É forçoso convir, portanto, que a moral dos Espíritos é tão velha quanto o mundo, o que nada tem de surpreendente se levarmos em consideração que não sendo a moral senão a lei de Deus, essa lei deve existir de toda a eternidade e que a criatura nada pode acrescentar à obra do Criador. Mas não há nada de novo no modo de ensinar? Até agora o código de moral não tinha sido promulgado senão por algumas individualidades; foi reproduzido em livros que nem todo mundo lê e nem todos compreendem. Pois bem! Hoje esse mesmo código é ensinado, não mais por alguns homens, mas por milhões de Espíritos, que foram homens, em todos os países, em cada família e, por assim dizer, em cada indivíduo. Credes que aquele que tiver sido indiferente à leitura de um livro, que tiver tratado as máximas que o mesmo encerra como lugares-comuns, não ficará diversamente impressionado se seu pai, sua mãe ou um ser que lhe é caro e que ele respeita, lhe vem dizer, mesmo num estilo inferior ao de Bossuet: “Não estou perdido para ti, como pensaste; estou aqui junto a ti, vejo-te e te escuto, conheço-te melhor que quando estava vivo, porque leio o teu pensamento. Para ser feliz no mundo onde estou, eis a regra de conduta a seguir; tal ação é boa e tal outra é má, etc.” Como vedes, é um ensino direto ou, se preferirdes, um novo meio de publicidade, tanto mais eficaz porque vai direto ao coração; porque nada custa; porque dirige-se a todo mundo, ao pequeno como ao grande, ao pobre como ao rico, ao ignorante como ao letrado, e porque desafia o despotismo humano que gostaria de impor-lhe uma barreira.
Mas, perguntareis, isto é possível? Não será uma ilusão? Essa dúvida seria natural se tais comunicações fossem feitas a um só homem privilegiado, pois nada provaria que não se engane. Mas quando milhares de indivíduos recebem mensagens semelhantes diariamente, em todos os países do mundo, é racional pensar que todos sejam alucinados? Se o ensino do Espiritismo estivesse encerrado exclusivamente nas obras espíritas, não teria conquistado a centésima parte dos adeptos que possui. Esses livros nada mais fazem que resumir e coordenar esse ensino, e o que constitui seu sucesso é que cada um encontra em seu íntimo a confirmação do que eles encerram.
Ter-se-á razão para dizer que o ensino moral dos Espíritos é supérfluo quando for provado que os homens são suficientemente bons para dispensá-lo. Até lá não é de admirar vê-lo repetido sob todas as formas e em todos os tons.
Que me importa, dizeis vós, Sr. Bertram, que me importa que haja ou não Espíritos! É possível que isto vos seja indiferente, mas não é assim com todos. É absolutamente como se dissésseis: “Que me importa que haja habitantes na América, e que o cabo elétrico me venha prová-lo!” Cientificamente, é apenas a prova da existência do mundo invisível; moralmente, é muito, porque a constatação da existência dos Espíritos povoando o espaço que julgávamos desabitado é a descoberta de todo um mundo, a revelação do futuro e do destino do homem, uma revolução nas suas crenças. Ora, se a coisa existe, toda denegação não poderá impedi-la de existir. Seus inevitáveis resultados bem merecem que com ela a gente se preocupe. Sois homem de progresso e repelis um elemento do progresso; um meio de melhorar a Humanidade, de cimentar a fraternidade entre os homens; uma descoberta que conduz à reforma dos abusos sociais contra os quais clamais incessantemente? Credes em vossa alma imortal e não vos preocupais absolutamente em saber o que ela se torna, o que se tornaram vossos pais e amigos? Francamente, isto é pouco racional. Direis que não é no armário dos Davenport que eu a encontrarei. De acordo. Jamais dissemos que aquilo é Espiritismo. Entretanto, esse mesmo armário, precisamente por que, com razão ou sem razão, aí fizeram intervirem os Espíritos, fez com que muito falassem dos Espíritos, mesmo aqueles que neles não acreditavam. Daí pesquisas e estudos que não teriam sido feitos se esses senhores se tivessem apresentado como simples prestidigitadores. Se os Espíritos não estavam em seu armário, bem que puderam provocar esse meio de fazer uma porção de gente sair de sua indiferença. Vedes que vós mesmo, inadvertidamente, fostes levado a semear a ideia entre vossos numerosos leitores, o que não teríeis feito sem esse famoso armário.
Quanto às verdades novas que ressaltam das revelações espíritas fora da moral, recomendamos o artigo publicado na Revista de janeiro de 1865 sob o título de O que o Espiritismo ensina.
O Espiritismo apenas pede que seja conhecido
É um fato constatado que a partir de quando a crítica passou a visar o Espiritismo, ela demonstrou a mais completa ignorância de seus princípios, mesmo dos mais elementares. Ela o provou superabundantemente, fazendo-o dizer precisamente o contrário do que ele diz, atribuindo-lhe ideias diametralmente opostas às que ele professa. Para ela, sendo o Espiritismo uma fantasia, disse de si para si: “Ele deve dizer e pensar tal coisa.” Numa palavra, ela julgou pelo que imaginou que ele pudesse ser, e não pelo que ele realmente é. Sem dúvida, fácil lhe era esclarecer-se. No entanto, para isso era preciso ler, estudar, aprofundar uma doutrina puramente filosófica, analisar o pensamento, sondar o alcance das palavras. Ora, eis aí um trabalho sério que não agrada a todo mundo e que é até fatigante para alguns. A maior parte dos escritores, encontrando nos escritos de alguns de seus confrades um julgamento acabado, de acordo com suas ideias cépticas, aceitaram o fundo sem mais exame, limitando-se a nelas realçar algumas variantes formais. Foi assim que as mais falsas ideias se propagaram como ecos na imprensa, e consequentemente numa parte do público.
Isto, entretanto, não poderia durar muito tempo. A Doutrina Espírita, que nada tem de oculto, que é clara, precisa, sem alegorias nem ambiguidades, sem fórmulas abstratas, devia acabar sendo melhor conhecida. A própria violência com a qual ela era atacada devia provocar o seu exame. Foi isso que aconteceu, e é isso que provoca a reação que hoje se observa. Não quer isto dizer que todos os que a estudam, mesmo seriamente, devam tornar-se seus apóstolos. Certamente não, mas é impossível que um estudo atento, feito sem ideia preconcebida, não atenue pelo menos a prevenção que haviam concebido, se não a dissipa completamente. Era evidente que a hostilidade de que era objeto o Espiritismo deveria provocar esse resultado. É por isso que jamais tivemos preocupações a respeito.
Porque o Espiritismo faz menos alarido neste momento, algumas pessoas imaginam que há uma estagnação em sua marcha progressiva. Mas então não vale nada a reviravolta que se opera na opinião? Será uma conquista insignificante ser visto com menos maus olhos? Desde o princípio o Espiritismo atraiu para si todos aqueles em quem essas ideias estavam, por assim dizer, no estado de intuição. Bastou mostrar-se para ser aceito com entusiasmo. É o que explica seu rápido crescimento numérico. Hoje, que colheu o que estava maduro, ele age sobre a massa refratária. O trabalho é mais demorado e os meios de ação são diferentes e apropriados à natureza das dificuldades, mas, pelas flutuações da opinião, sente-se que essa massa se abala sob os camartelos dos Espíritos que a ferem incessantemente de mil maneiras. Por ser menos aparente, o progresso não é menos real. É como o de uma construção que sobe com rapidez e que parece parar quando se trabalha no interior.
Quanto aos espíritas, o primeiro momento foi de entusiasmo. Mas um estado de superexcitação não pode ser permanente; ao movimento expansivo exterior, sucedeu um estado mais calmo; a fé também é viva, embora mais fria, mais racional, e por isto mesmo mais sólida. A efervescência deu lugar a uma satisfação íntima mais suave, dia a dia melhor apreciada, pela serenidade que proporciona a inabalável confiança no futuro.
Hoje, pois, o Espiritismo começa a ser julgado de outro ponto de vista. Não o acham mais tão estranho e tão ridículo, porque o conhecem melhor. Os espíritas não mais são apontados a dedo, como animais curiosos. Se muitas pessoas ainda repelem o fato das manifestações que não podem conciliar com a ideia que fazem do mundo invisível, não mais contestam o alcance filosófico da doutrina. Seja a sua moral velha ou nova, nem por isso deixa de ser uma doutrina moral, que não pode senão estimular à prática do bem aqueles que a professam. É o que reconhece quem a julgue com conhecimento de causa. Agora, tudo quanto censuram nos espíritas é que eles acreditem na comunicação dos Espíritos, mas lhes desculpam essa pequena fraqueza em favor do resto. Nesse caso, os Espíritos encarregar-se-ão de mostrar se eles existem.
O artigo do Sr. Bertram, de Bruxelas, acima citado, parece-nos a expressão do sentimento que tende a se propagar no mundo dos trocistas ali mencionados, e desenvolver-se-á à medida que o Espiritismo for mais conhecido.
O artigo seguinte trata do mesmo assunto, mas revela uma convicção mais completa. É extraído do Soleil de 5 de maio.
“Ao mesmo tempo que aparecia Os Apóstolos, do Sr. Ernest Renan, o Sr. J. B. Roustaing, adepto esclarecido do Espiritismo, publicava na Livraria Central uma obra considerável intitulada Os Quatro Evangelhos, seguida dos mandamentos explicados em espírito e verdade pelos evangelistas assistidos pelos apóstolos.
“A massa parisiense quase não conhece, em matéria de Espiritismo, senão as mixórdias de alguns escamoteadores que em vão tentaram abusar da credulidade de um público incrédulo. Esses charlatães foram vaiados, o que é muito bem-feito; mas os espíritas, cheios de ardor e de fé, não deixaram de continuar as experiências e sua rápida propaganda.
“Em Paris, as mais sérias coisas são tratadas da mesma forma que as coisas fúteis. É aqui que, na maioria dos casos, se pergunta se se trata de um deus, de uma mesa, ou de uma bacia. As experiências sumárias tentadas entre duas taças de chá por algumas mulheres adúlteras e alguns jovens pretensiosos bastaram à curiosidade dos parisienses. Se a mesa dava sinais de que ia mover-se, riam muito; se, ao contrário, a mesa ficava firme, riam ainda mais, e era assim que a questão era aprofundada. A coisa era diferente entre a população mais refletida do interior. O menor resultado animava os prosélitos, excitavalhes o ardor. O Espírito de seus parentes respondia à sua expectativa, e cada um deles, conversando com a alma de seu pai e seu irmão defuntos, ficava convencido de haver levantado o véu da morte que, daí por diante, não podia causar-lhe terror.
“Se jamais houve uma doutrina consoladora, certamente é esta: a individualidade conservada além do túmulo, a promessa formal de uma outra vida que é realmente a continuação da primeira. A família subsiste, a afeição não morre com a pessoa; não há separação. Cada noite, no sul e no oeste da França, as reuniões espíritas atentas tornam-se mais numerosas. Eles oram, evocam, creem. Pessoas que não sabem escrever, escrevem; sua mão é guiada pelo Espírito.
“O Espiritismo não é um perigo social. Assim, deixam-no espalhar-se sem lhe opor barreiras. Se o Espiritismo fosse perseguido, ele teria os seus mártires, como o Babismo na Pérsia.
“Ao lado das respostas mediúnicas mais sérias, encontram-se indicações e conselhos que provocam o sorriso. O autor de Os Quatro Evangelhos, Sr. Roustaing, advogado na corte imperial de Bordeaux, seu antigo presidente, não é um ingênuo ─ como não é um diletante ─ e, no seu prefácio, encontra-se a seguinte comunicação:
“É chegado o momento em que te deves pôr em condições de entregar esta obra à publicidade. Não te fixamos limites; emprega com sabedoria e ponderação as tuas horas, a fim de poupar tuas forças... A publicação pode ser começada a partir do mês de agosto próximo; a partir de agora, trabalha o mais prontamente possível, mas sem ultrapassar as forças humanas, de tal maneira que a publicação esteja terminada no mês de agosto de 1866.”
“Assinado: MOISÉS, MATEUS, MARCOS, LUCAS e JOÃO,
“Assistidos pelos Apóstolos.”
“O leitor fica surpreso por não ver Moisés, Mateus, Lucas e João levarem seu conselho ao extremo e acrescentarem: ‘Mandarás imprimir a obra na casa Lavertujon, Rue des Treilles, 7, em Bordeaux, e colocarás à venda na Livraria Central, Boulevard des Italiens, 24, em Paris.’
“Também nos detemos um instante na passagem que diz para o autor não ultrapassar as forças humanas. Então o autor as teria ultrapassado, sem essa paternal recomendação dos senhores Moisés, Mateus, Marcos, Lucas e João?
“Sem falar inicialmente no Espiritismo, o Sr. Renan faz numerosas alusões a essa nova doutrina, cuja importância parece não desconhecer. O autor dos Apóstolos lembra, à pág. 8, uma passagem capital de São Paulo que estabelece: 1.º ─ a realidade das aparições; 2.º ─ a longa duração das aparições. Só uma vez, no curso de sua obra, o Sr. Renan mete o bedelho no Espiritismo. Na pág. 22, na segunda nota, ele diz:
“Para conceber a possibilidade de semelhantes ilusões, basta lembrar as cenas de nossos dias, em que pessoas reunidas reconhecem unanimemente ouvir ruídos inexistentes, e isto com perfeita boa-fé. A espera, o esforço de imaginação, a disposição para acreditar, por vezes complacências inocentes, explicam aqueles, dentre esses fenômenos, que não são produto direto da fraude. Essas complacências, em geral, vêm de pessoas convictas, animadas de um sentimento de benevolência, que não querem que a sessão acabe mal e desejam tirar do embaraço os donos da casa. Quando se crê no milagre, sempre se ajuda sem dar-se conta disso. A dúvida e a negação são impossíveis nessa espécie de reuniões. Seria penoso para os que creem e para os que convidaram. Eis por que tais experiências, que ante pequeno grupo dão resultado, falham geralmente ante um público pagante e sempre falham ante as comissões científicas.”
“Aqui, como alhures, ao livro do Sr. Renan faltam boas razões. De estilo suave e encantador, substituindo a lógica pela poesia, Apóstolos deveria intitular-se Os Últimos Abencerages. As referências a documentos inúteis, as falsas provas de que a obra está sobrecarregada lhe dão todas as aparências da puerilidade com que foi concebida. Não há com que se enganar.
“O Sr. Renan conta que Maria de Magdala, chorando ao pé do túmulo, teve uma visão, uma simples visão. ─ Quem lhe disse isto? ─ Ela acreditou ouvir uma voz. ─ Como ele sabe que ela realmente não a ouviu? Todas as afirmações contidas na obra têm mais ou menos a mesma força.
“Se os espíritas não têm a oferecer senão sua boa-fé como explicação, o Sr. Renan não tem nem mesmo esse recurso.
“Aqui só podemos comentar o livro do Sr. Roustaing; não temos o direito de discuti-lo, nem o de ver para onde ele nos conduz. Aliás, não seria o lugar para entrar em considerações que o leitor não busca em nossas colunas. A obra é séria, o estilo é claro e firme. O autor não caiu no desvio ordinário dos comentadores, que muitas vezes são mais obscuros que o próprio texto que querem elucidar.
“O Espiritismo, que tinha o seu catecismo, terá de agora em diante seus códigos anotados e seu curso de jurisprudência. Só lhe faltará a prova do martírio.”
AURÉLIEN SCHOLL
Isto, entretanto, não poderia durar muito tempo. A Doutrina Espírita, que nada tem de oculto, que é clara, precisa, sem alegorias nem ambiguidades, sem fórmulas abstratas, devia acabar sendo melhor conhecida. A própria violência com a qual ela era atacada devia provocar o seu exame. Foi isso que aconteceu, e é isso que provoca a reação que hoje se observa. Não quer isto dizer que todos os que a estudam, mesmo seriamente, devam tornar-se seus apóstolos. Certamente não, mas é impossível que um estudo atento, feito sem ideia preconcebida, não atenue pelo menos a prevenção que haviam concebido, se não a dissipa completamente. Era evidente que a hostilidade de que era objeto o Espiritismo deveria provocar esse resultado. É por isso que jamais tivemos preocupações a respeito.
Porque o Espiritismo faz menos alarido neste momento, algumas pessoas imaginam que há uma estagnação em sua marcha progressiva. Mas então não vale nada a reviravolta que se opera na opinião? Será uma conquista insignificante ser visto com menos maus olhos? Desde o princípio o Espiritismo atraiu para si todos aqueles em quem essas ideias estavam, por assim dizer, no estado de intuição. Bastou mostrar-se para ser aceito com entusiasmo. É o que explica seu rápido crescimento numérico. Hoje, que colheu o que estava maduro, ele age sobre a massa refratária. O trabalho é mais demorado e os meios de ação são diferentes e apropriados à natureza das dificuldades, mas, pelas flutuações da opinião, sente-se que essa massa se abala sob os camartelos dos Espíritos que a ferem incessantemente de mil maneiras. Por ser menos aparente, o progresso não é menos real. É como o de uma construção que sobe com rapidez e que parece parar quando se trabalha no interior.
Quanto aos espíritas, o primeiro momento foi de entusiasmo. Mas um estado de superexcitação não pode ser permanente; ao movimento expansivo exterior, sucedeu um estado mais calmo; a fé também é viva, embora mais fria, mais racional, e por isto mesmo mais sólida. A efervescência deu lugar a uma satisfação íntima mais suave, dia a dia melhor apreciada, pela serenidade que proporciona a inabalável confiança no futuro.
Hoje, pois, o Espiritismo começa a ser julgado de outro ponto de vista. Não o acham mais tão estranho e tão ridículo, porque o conhecem melhor. Os espíritas não mais são apontados a dedo, como animais curiosos. Se muitas pessoas ainda repelem o fato das manifestações que não podem conciliar com a ideia que fazem do mundo invisível, não mais contestam o alcance filosófico da doutrina. Seja a sua moral velha ou nova, nem por isso deixa de ser uma doutrina moral, que não pode senão estimular à prática do bem aqueles que a professam. É o que reconhece quem a julgue com conhecimento de causa. Agora, tudo quanto censuram nos espíritas é que eles acreditem na comunicação dos Espíritos, mas lhes desculpam essa pequena fraqueza em favor do resto. Nesse caso, os Espíritos encarregar-se-ão de mostrar se eles existem.
O artigo do Sr. Bertram, de Bruxelas, acima citado, parece-nos a expressão do sentimento que tende a se propagar no mundo dos trocistas ali mencionados, e desenvolver-se-á à medida que o Espiritismo for mais conhecido.
O artigo seguinte trata do mesmo assunto, mas revela uma convicção mais completa. É extraído do Soleil de 5 de maio.
“Ao mesmo tempo que aparecia Os Apóstolos, do Sr. Ernest Renan, o Sr. J. B. Roustaing, adepto esclarecido do Espiritismo, publicava na Livraria Central uma obra considerável intitulada Os Quatro Evangelhos, seguida dos mandamentos explicados em espírito e verdade pelos evangelistas assistidos pelos apóstolos.
“A massa parisiense quase não conhece, em matéria de Espiritismo, senão as mixórdias de alguns escamoteadores que em vão tentaram abusar da credulidade de um público incrédulo. Esses charlatães foram vaiados, o que é muito bem-feito; mas os espíritas, cheios de ardor e de fé, não deixaram de continuar as experiências e sua rápida propaganda.
“Em Paris, as mais sérias coisas são tratadas da mesma forma que as coisas fúteis. É aqui que, na maioria dos casos, se pergunta se se trata de um deus, de uma mesa, ou de uma bacia. As experiências sumárias tentadas entre duas taças de chá por algumas mulheres adúlteras e alguns jovens pretensiosos bastaram à curiosidade dos parisienses. Se a mesa dava sinais de que ia mover-se, riam muito; se, ao contrário, a mesa ficava firme, riam ainda mais, e era assim que a questão era aprofundada. A coisa era diferente entre a população mais refletida do interior. O menor resultado animava os prosélitos, excitavalhes o ardor. O Espírito de seus parentes respondia à sua expectativa, e cada um deles, conversando com a alma de seu pai e seu irmão defuntos, ficava convencido de haver levantado o véu da morte que, daí por diante, não podia causar-lhe terror.
“Se jamais houve uma doutrina consoladora, certamente é esta: a individualidade conservada além do túmulo, a promessa formal de uma outra vida que é realmente a continuação da primeira. A família subsiste, a afeição não morre com a pessoa; não há separação. Cada noite, no sul e no oeste da França, as reuniões espíritas atentas tornam-se mais numerosas. Eles oram, evocam, creem. Pessoas que não sabem escrever, escrevem; sua mão é guiada pelo Espírito.
“O Espiritismo não é um perigo social. Assim, deixam-no espalhar-se sem lhe opor barreiras. Se o Espiritismo fosse perseguido, ele teria os seus mártires, como o Babismo na Pérsia.
“Ao lado das respostas mediúnicas mais sérias, encontram-se indicações e conselhos que provocam o sorriso. O autor de Os Quatro Evangelhos, Sr. Roustaing, advogado na corte imperial de Bordeaux, seu antigo presidente, não é um ingênuo ─ como não é um diletante ─ e, no seu prefácio, encontra-se a seguinte comunicação:
“É chegado o momento em que te deves pôr em condições de entregar esta obra à publicidade. Não te fixamos limites; emprega com sabedoria e ponderação as tuas horas, a fim de poupar tuas forças... A publicação pode ser começada a partir do mês de agosto próximo; a partir de agora, trabalha o mais prontamente possível, mas sem ultrapassar as forças humanas, de tal maneira que a publicação esteja terminada no mês de agosto de 1866.”
“Assinado: MOISÉS, MATEUS, MARCOS, LUCAS e JOÃO,
“Assistidos pelos Apóstolos.”
“O leitor fica surpreso por não ver Moisés, Mateus, Lucas e João levarem seu conselho ao extremo e acrescentarem: ‘Mandarás imprimir a obra na casa Lavertujon, Rue des Treilles, 7, em Bordeaux, e colocarás à venda na Livraria Central, Boulevard des Italiens, 24, em Paris.’
“Também nos detemos um instante na passagem que diz para o autor não ultrapassar as forças humanas. Então o autor as teria ultrapassado, sem essa paternal recomendação dos senhores Moisés, Mateus, Marcos, Lucas e João?
“Sem falar inicialmente no Espiritismo, o Sr. Renan faz numerosas alusões a essa nova doutrina, cuja importância parece não desconhecer. O autor dos Apóstolos lembra, à pág. 8, uma passagem capital de São Paulo que estabelece: 1.º ─ a realidade das aparições; 2.º ─ a longa duração das aparições. Só uma vez, no curso de sua obra, o Sr. Renan mete o bedelho no Espiritismo. Na pág. 22, na segunda nota, ele diz:
“Para conceber a possibilidade de semelhantes ilusões, basta lembrar as cenas de nossos dias, em que pessoas reunidas reconhecem unanimemente ouvir ruídos inexistentes, e isto com perfeita boa-fé. A espera, o esforço de imaginação, a disposição para acreditar, por vezes complacências inocentes, explicam aqueles, dentre esses fenômenos, que não são produto direto da fraude. Essas complacências, em geral, vêm de pessoas convictas, animadas de um sentimento de benevolência, que não querem que a sessão acabe mal e desejam tirar do embaraço os donos da casa. Quando se crê no milagre, sempre se ajuda sem dar-se conta disso. A dúvida e a negação são impossíveis nessa espécie de reuniões. Seria penoso para os que creem e para os que convidaram. Eis por que tais experiências, que ante pequeno grupo dão resultado, falham geralmente ante um público pagante e sempre falham ante as comissões científicas.”
“Aqui, como alhures, ao livro do Sr. Renan faltam boas razões. De estilo suave e encantador, substituindo a lógica pela poesia, Apóstolos deveria intitular-se Os Últimos Abencerages. As referências a documentos inúteis, as falsas provas de que a obra está sobrecarregada lhe dão todas as aparências da puerilidade com que foi concebida. Não há com que se enganar.
“O Sr. Renan conta que Maria de Magdala, chorando ao pé do túmulo, teve uma visão, uma simples visão. ─ Quem lhe disse isto? ─ Ela acreditou ouvir uma voz. ─ Como ele sabe que ela realmente não a ouviu? Todas as afirmações contidas na obra têm mais ou menos a mesma força.
“Se os espíritas não têm a oferecer senão sua boa-fé como explicação, o Sr. Renan não tem nem mesmo esse recurso.
“Aqui só podemos comentar o livro do Sr. Roustaing; não temos o direito de discuti-lo, nem o de ver para onde ele nos conduz. Aliás, não seria o lugar para entrar em considerações que o leitor não busca em nossas colunas. A obra é séria, o estilo é claro e firme. O autor não caiu no desvio ordinário dos comentadores, que muitas vezes são mais obscuros que o próprio texto que querem elucidar.
“O Espiritismo, que tinha o seu catecismo, terá de agora em diante seus códigos anotados e seu curso de jurisprudência. Só lhe faltará a prova do martírio.”
AURÉLIEN SCHOLL
Extraído do progresso colonial da ilha Maurícia
Comunicação espírita
Não é só em nosso país que os jornais, não diremos ainda simpatizam, mas se humanizam com o Espiritismo, ao qual começam a conceder o direito de cidadania. Lê-se no Progrès Colonial, jornal de Port Louis, Ilha Maurícia, de 15 de junho de 1866:
“Todos os dias recebemos duas ou três destas comunicações espíritas, mas se nos abstivemos de reproduzi-las até agora, é porque ainda não estamos em condições de consagrar um lugar a essa coisa extraordinária chamada Espiritismo. Que nossos leitores, que são naturalmente curiosos, tenham um pouco de paciência, pois não esperarão muito. Se publicamos este pequeno escrito assinado Lázaro, é que se trata desse pobre Georges, falecido e enterrado tão desgraçadamente:
“Senhor,
“Li hoje uma correspondência inserta em vosso jornal, assinada ‘Uma testemunha ocular’, relatando como enterraram o cadáver do infortunado G. Lemeure.
“Há muito tempo, senhor, eu sabia perfeitamente que se a miséria não é um vício, é pelo menos uma das maiores calamidades que há no mundo. No entanto, o que eu não queria admitir é que os homens fossem adoradores do bezerro de ouro, a ponto de não mais respeitarem tudo quanto há de mais solene, de maior e de mais sagrado para nós: a morte!...
“Assim, pobre George, dotado de caráter brando, honesto e modesto, condenado a viver na maior pobreza, suportando as provações deste mundo com coragem e até com alegria, sempre pronto a prestar serviços ao próximo, foste morrer assim isolado, longe dos que te amavam e que talvez te lamentem; e ainda é necessário, para humilhar tua sombra, que homens, que irmãos, te cavem um buraco na terra, sozinho, sozinho com o nada, como se tua pobreza te tornasse indigno de partilhar, como os teus semelhantes, um terreno sagrado. Além disto, nem te fizeram a caridade de um caixão, de quatro tábuas! Apesar disto, és muito feliz, pensa esta boa Humanidade, por repousar na terra úmida e fria, esquecido de todos! Aliás, que lhes importa que teu corpo lá apodreça, sem que um amigo venha aí derramar uma lágrima, lançar uma flor e trazer uma lembrança?
“Paro aqui, pois ainda estou indignado por não terem cumprido nem mesmo as formalidades estabelecidas em semelhante ocasião para com os infelizes. Em todos os países civilizados, dão aos parentes ou amigos de uma pessoa morta encontrada pelas autoridades, vinte e quatro horas para virem reconhecê-la e reclamá-la. Se ao fim desse prazo ninguém veio, então a depositam em terreno santo, observando sempre as praxes devidas à morte. Mas aqui abstêm-se de semelhantes formalidades e contentam-se, se não tendes com que pagar as despesas do caixão, em vos atirar num recanto qualquer, como um animal, e vos cobrir com dois ou três punhados de poeira. “Repito, senhor, a miséria é um grande flagelo!
“LÁZARO.”
“Todos os dias recebemos duas ou três destas comunicações espíritas, mas se nos abstivemos de reproduzi-las até agora, é porque ainda não estamos em condições de consagrar um lugar a essa coisa extraordinária chamada Espiritismo. Que nossos leitores, que são naturalmente curiosos, tenham um pouco de paciência, pois não esperarão muito. Se publicamos este pequeno escrito assinado Lázaro, é que se trata desse pobre Georges, falecido e enterrado tão desgraçadamente:
“Senhor,
“Li hoje uma correspondência inserta em vosso jornal, assinada ‘Uma testemunha ocular’, relatando como enterraram o cadáver do infortunado G. Lemeure.
“Há muito tempo, senhor, eu sabia perfeitamente que se a miséria não é um vício, é pelo menos uma das maiores calamidades que há no mundo. No entanto, o que eu não queria admitir é que os homens fossem adoradores do bezerro de ouro, a ponto de não mais respeitarem tudo quanto há de mais solene, de maior e de mais sagrado para nós: a morte!...
“Assim, pobre George, dotado de caráter brando, honesto e modesto, condenado a viver na maior pobreza, suportando as provações deste mundo com coragem e até com alegria, sempre pronto a prestar serviços ao próximo, foste morrer assim isolado, longe dos que te amavam e que talvez te lamentem; e ainda é necessário, para humilhar tua sombra, que homens, que irmãos, te cavem um buraco na terra, sozinho, sozinho com o nada, como se tua pobreza te tornasse indigno de partilhar, como os teus semelhantes, um terreno sagrado. Além disto, nem te fizeram a caridade de um caixão, de quatro tábuas! Apesar disto, és muito feliz, pensa esta boa Humanidade, por repousar na terra úmida e fria, esquecido de todos! Aliás, que lhes importa que teu corpo lá apodreça, sem que um amigo venha aí derramar uma lágrima, lançar uma flor e trazer uma lembrança?
“Paro aqui, pois ainda estou indignado por não terem cumprido nem mesmo as formalidades estabelecidas em semelhante ocasião para com os infelizes. Em todos os países civilizados, dão aos parentes ou amigos de uma pessoa morta encontrada pelas autoridades, vinte e quatro horas para virem reconhecê-la e reclamá-la. Se ao fim desse prazo ninguém veio, então a depositam em terreno santo, observando sempre as praxes devidas à morte. Mas aqui abstêm-se de semelhantes formalidades e contentam-se, se não tendes com que pagar as despesas do caixão, em vos atirar num recanto qualquer, como um animal, e vos cobrir com dois ou três punhados de poeira. “Repito, senhor, a miséria é um grande flagelo!
“LÁZARO.”
Os fenômenos apócrifos
O fato seguinte é relatado pelo Evénement de 2 de agosto de 1866:
“Há alguns dias os habitantes do bairro vizinho da igreja de Saint-Médard estavam muito abalados por um fato singular, misterioso, que dava lugar aos mais lúgubres relatos e comentários.
“Estão sendo feitas demolições ao redor da igreja; a maior parte das casas demolidas foram construídas no lugar de um cemitério ao qual ligam a história dos supostos milagres que, no começo do século dezoito, motivaram um decreto do governo que, a 27 de janeiro de 1733, ordenou o fechamento desse cemitério, em cuja porta foi encontrado, no dia seguinte, este epigrama: “Por ordem do rei... fica proibido a Deus “Fazer milagres neste lugar.
“Ora, as casas respeitadas pelo martelo demolidor eram, todas as noites, devastadas por uma chuva de pedras, às vezes muito grandes, que quebravam os vidros das janelas e caíam sobre os telhados e os danificavam.
“A despeito das mais ativas pesquisas, ninguém descobriu de onde vinham os projéteis.
“Não deixaram de dizer que os mortos do cemitério, perturbados em seu repouso pelas demolições, assim manifestavam seu descontentamento. Mas pessoas menos crédulas, pensando que essas pedras que continuavam a cair todas as noites fossem lançadas por um ser vivo, foram reclamar a intervenção do Sr. Cazeaux, comissário de polícia, que estabeleceu uma vigilância por seus agentes.
“Enquanto a exerciam, as pedras não apareceram, mas assim que a suspenderam, recaíram ainda mais abundantes.
“Não sabiam o que fazer para penetrar esse mistério, quando a senhora X..., proprietária de uma casa
na rua Censier, veio declarar ao comissário que, assustada com o que se passava, tinha ido consultar uma sonâmbula.
“Ela me revelou”, disse a declarante, “que as pedras eram lançadas por uma moça afetada por um mal da cabeça. Precisamente a minha criada, Felícia F..., de dezesseis anos, sofre de herpes nessa parte do corpo.
“Embora não ligando importância a essa indicação, o comissário concordou em interrogar Felícia e dela obteve uma confissão completa. Agindo sob a inspiração de um Espírito que lhe apareceu, há alguns meses ela vinha guardando num celeiro grande quantidade de pedras, e todas as noites ela se levantava para atirar uma parte pela janela do celeiro sobre as casas vizinhas.
“Na presunção de que essa moça pudesse ser alienada, o comissário mandou-a à Prefeitura, para que aí fosse examinada por médicos especialistas.”
Este fato prova que se deve evitar atribuir a uma causa oculta todos os fatos desse gênero e que, quando existe uma causa material, sempre se chega a descobri-la, o que nada prova contra a possibilidade de uma outra origem em certos casos que não podem ser julgados senão pelo conjunto de circunstâncias, como no caso de Poitiers. A menos que a causa oculta seja demonstrada pela evidência, a dúvida é o partido mais sábio. Convém, assim, manter reservas. É preciso desconfiar, sobretudo das ciladas preparadas pela malevolência com o objetivo de dar-se ao prazer de mistificar os espíritas. A ideia fixa da maior parte dos antagonistas é que o Espiritismo está inteiramente nos efeitos físicos e não pode viver sem isto; que a fé dos espíritas não tem outro objetivo, motivo pelo qual imaginam matá-lo desacreditando os efeitos, quer simulando-os, quer os inventando em condições ridículas. Sua ignorância do Espiritismo faz com que, sem perceber, eles não atinjam o lado capital da questão, que é o ponto de vista moral e filosófico.
Alguns, entretanto, conhecem muito bem esse lado da doutrina; mas, como ele é inatacável, lançamse sobre o outro, mais vulnerável, e que se presta mais facilmente à charlatanice. Eles gostariam de fazer os espíritas passarem por admiradores crédulos e supersticiosos do fantástico, tudo aceitando de olhos fechados. É para eles um grande desapontamento não vê-los extasiados ao menor fato com a menor aparência de sobrenatural e de encontrá-los, em relação a certos fenômenos, mais cépticos do que aqueles que não conhecem o Espiritismo. Ora, é precisamente porque o conhecem que eles sabem o que é possível e o que não é, e não veem em tudo a ação dos Espíritos.
No fato exposto acima, é muito curioso ver a verdadeira causa revelada por uma sonâmbula. É a consagração do fenômeno da lucidez. Quanto à moça que diz ter agido sob o impulso de um Espírito, é certo que não foi o conhecimento do Espiritismo que lhe deu tal ideia. De onde lhe veio? É bem possível que ela estivesse sob o domínio de uma obsessão que tomaram, como sempre, por loucura. Se assim é, não será com remédios que a curarão. Em casos semelhantes, vimos muitas vezes pessoas a falar espontaneamente de Espíritos, porque elas os veem, e então dizem que elas estão alucinadas.
Nós a supomos de boa-fé, porque não temos nenhuma razão para dela suspeitar. Infelizmente, porém, há fatos de natureza a suscitar desconfiança. Lembramos de uma mulher que simulou loucura ao sair de uma reunião onde havia sido admitida às suas instâncias, a única a que ela tinha assistido. Conduzida imediatamente a um hospício, logo confessou que havia recebido cinquenta francos para representar a comédia. Era a época em que procuravam propagar a ideia que os hospícios regurgitavam de espíritas. Essa mulher se deixou seduzir pela tentação de algum dinheiro; outras podem ceder a outras influências. Não pretendemos que este seja o caso dessa moça; apenas quisemos mostrar que quando se quer denegrir uma coisa, todos os meios são bons. É, para os espíritas, uma razão a mais para se manterem em guarda e tudo observar escrupulosamente. Aliás, se tudo o que se trama em segredo prova que a luta não terminou e que é preciso redobrar a vigilância e a firmeza, é igualmente a prova que nem todo mundo olha o Espiritismo como uma quimera.
Ao lado da guerra surda, há a guerra a céu aberto, mais geralmente feita pela incredulidade trocista. Evidentemente esta modificou-se. Os fatos que se multiplicam; a adesão de pessoas de cuja boa-fé e razão não se pode suspeitar; a impassibilidade dos espíritas, bem como sua calma e moderação em presença das tempestades levantadas contra eles, deram motivos para reflexão. Diariamente a imprensa registra fatos espíritas. Se, entre esses fatos, há alguns verdadeiros, outros são evidentemente inventados pelas necessidades da causa da oposição. Ela não nega mais os fenômenos, mas procura torná-los ridículos pelo exagero. É uma tática muito inofensiva, porque hoje não é difícil, em certas matérias, representar o papel da inverossimilhança. Os jornais da América não ficam atrás nas invenções a esse respeito, e os nossos se apressam em imitá-los. É assim que a maior parte deles repetiu a seguinte história, no mês de março último:
“ESTADOS UNIDOS. ─ Um homem foi executado em Cleveland, Ohio, o Dr. Hughes, que, no momento de morrer, fez um discurso, revelando um espírito de uma firmeza e de uma lucidez extraordinárias. Ele aproveitou a ocasião para fazer uma dissertação, que não durou menos de meia hora, sobre a utilidade e a justiça da pena de morte. Essa penalidade máxima, disse ele, é simplesmente ridícula. Qual a vantagem de tirar-me a vida? Nenhuma. Certamente não será o meu exemplo que dissuadirá outros do crime. Será que me lembro de haver dado esse tiro de pistola? Hoje não tenho absolutamente a menor lembrança. Posso admitir que a lei de Ohio me fira justamente, mas digo, ao mesmo tempo, que ela é tola e vã.
“Se pretendeis que, porque esta corda vai ser amarrada em volta do meu pescoço e apertada até que eu morra, ela tenha por efeito prevenir o assassinato, digo que o vosso pensamento é tolo e vão, pois na situação de espírito em que estava John W. Hughes quando ele assassinou, não há exemplo na Terra que teria podido impedir um homem, fosse quem fosse, de fazer o que eu fiz. Inclino-me ante a lei do Estado, com o pensamento de que é um assassinato tão inútil quanto cruel tirar-me a vida. Espero que meu suplício não fique como um exemplo da pena de morte, mas como um argumento que prova a sua inutilidade.
“Em seguida, Hughes fez um exame de consciência e estendeu-se muito sobre a religião e sobre a imortalidade da alma. Suas teorias, nessas graves matérias, não são positivamente ortodoxas, mas ao menos atestam um sangue-frio singular. Ele falou também do Espiritualismo, ou melhor, do Espiritismo. Disse ele:
“─ Eu sei, por experiência própria, que há entre os que saem da vida e os que ficam, comunicações incessantes. Hoje vou sofrer a suprema pena legal, mas, ao mesmo tempo, tenho a certeza de que estarei convosco depois de minha execução, como aqui me encontro agora. Meus juízes e meus carrascos me verão sempre ante os seus olhos, e vós mesmos, que viestes aqui para me ver morrer, não há um só que não me reveja em carne e osso, vestido de preto, como estou, carregando meu próprio luto prematuro, tanto durante seu sono quanto nas horas de suas ocupações diárias. Adeus, senhores. Espero que nenhum de vós faça o que eu fiz. Se houver, porém, algum que se ache no estado mental em que eu mesmo estava quando cometi o crime, não será certamente a lembrança deste dia que o impedirá. Adeus.”
“Depois dessa arenga, o estrado foi derrubado e o Dr. Hughes ficou pendurado. Mas suas palavras tinham produzido uma profunda impressão sobre o auditório, do que resultaram singulares efeitos. Eis o que hoje encontramos a respeito no Herald, de Cleveland:
“Estando no cadafalso, com a corda no pescoço, o Dr. Hughes disse que estaria com os que o ouviam, assim como estava antes da sua morte, e diríamos que ele levou a sério o cumprimento de sua palavra. Entre as pessoas que o tinham visitado em sua cela antes da execução, achava-se um honesto açougueiro alemão. Esse homem, a partir da entrevista com o condenado, não tira o Dr. Hughes da cabeça. Ele tem incessantemente diante dos olhos, noite e dia, a toda hora, prisões, patíbulos, homens pendurados. Já não dorme, não come, não mais cuida da família e dos negócios, e ontem à noite esta visão quase o matou:
“Ele acabava de entrar no estábulo para tratar dos animais, quando viu de pé, junto de seu cavalo, o doutor Hughes, vestido com a mesma roupa preta que tinha ao deixar o nosso planeta e parecendo gozar de excelente saúde. O pobre açougueiro soltou um grito horrível, um urro do outro mundo, e caiu de costas.
“Correram e ergueram-no; tinha os olhos vagos, a face lívida, os lábios trêmulos e com uma voz ofegante perguntou, ao retomar a consciência, se o Dr. Hughes ainda estava ali. Dizia ter acabado de vê-lo e que se ele não estava mais no estábulo, não podia estar longe. Foi com todo esforço do mundo que o acalmaram e levaram para casa. A visão continuou a persegui-lo, e as últimas notícias nos dão conta que ele estava num estado de agitação que nada podia acalmar.
“Mas eis o que é ainda mais curioso. O açougueiro não é o único a quem o Dr. Hughes apareceu depois de morto. Dois dias após a execução, todos os detentos o viram, com os próprios olhos, entrar na prisão e percorrer os corredores. Ele tinha o semblante perfeitamente natural: estava vestido de preto, como no cadafalso; passava sempre a mão pelo pescoço e ao mesmo tempo deixava sair da boca um som gutural que sibilava entre os dentes. Ele subiu as escadas que levam à sua cela, entrou, sentou-se e pôs-se a escrever versos. Eis o que contaram os detentos, e nada no mundo os teria persuadido que tinham sido vítimas de uma ilusão.”
Este fato não deixa de ter o seu lado instrutivo, pelas palavras do paciente. Ele é verdadeiro, quanto ao assunto principal, mas como, em sua última alocução, ele achou que deveria falar do Espiritualismo ou Espiritismo, o narrador houve por bem rechear seu relato com casos de aparições que só existiram em sua pena, salvo a primeira, a do açougueiro, que parece ser real.
─ Tom, o cego não é um conto de fantasma, mas um incrível fenômeno de inteligência. Tom é um jovem negro de dezessete anos, cego de nascença, supostamente dotado de um maravilhoso instinto musical. O Harpers Weekly, jornal ilustrado de Nova Iorque, consagra-lhe um longo artigo, do qual extraímos as seguintes passagens:
“Há menos de dois anos ele traduzia para o canto tudo o que lhe feria o ouvido, e tal era a justeza e a facilidade com que captava um fragmento melódico que ouvindo as primeiras notas de um canto, podia executar a sua parte. Logo começou a acompanhar, fazendo a segunda voz, embora jamais a tivesse ouvido, mas um instinto natural lhe revelava que algo de semelhante devia cantar-se.
“Aos quatro anos de idade, pela primeira vez ouviu um piano. À chegada do instrumento, ele estava, como de hábito, brincando no pátio. A primeira vibração das cordas o atraiu para a sala. Permitiram-lhe passear os dedos nas teclas, apenas para satisfazer sua curiosidade e não lhe recusar o prazer inocente de fazer um pouco de ruído. Certa vez, depois da meia-noite, ele estava na sala de visitas, onde tinha aprendido a entrar. O piano não tinha sido fechado e as moças da casa despertaram pelos sons do instrumento. Para seu grande espanto, elas ouviram Tom tocando um de seus trechos, e de manhã o encontraram ainda ao piano. Então lhe permitiram tocar quanto quisesse. Ele fez progressos tão rápidos e admiráveis que o piano tornou-se o eco de tudo o que ele ouvia. Desenvolveu assim novas e prodigiosas faculdades, até então desconhecidas no mundo musical, e cujo monopólio parece que Deus tinha reservado a Tom. Ele tinha menos de cinco anos quando, depois de uma tempestade, dela fez o que denominou: O que me dizem o vento, o trovão e a chuva.
“Em Filadélfia, setenta professores de música apuseram espontaneamente sua assinatura numa declaração que assim termina: ‘De fato, sob qualquer forma de exame musical, execução, composição e improvisação, ele demonstrou um poder e uma capacidade que o classifica entre os mais admiráveis fenômenos cuja lembrança tenha sido guardada pela história da música. Os abaixo assinados pensam que é impossível explicar esses prodigiosos resultados por qualquer das hipóteses que podem fornecer as leis da Arte ou da Ciência.’
“Hoje ele toca as músicas mais difíceis dos grandes autores com uma delicadeza de toque, um poder e uma expressão raramente ouvidos. Na próxima primavera ele deve ir à Europa.”
A respeito disto, eis a explicação dada por intermédio do Sr. Morin, médium, numa reunião espírita de Paris, na casa da Princesa O..., a 13 de março de 1866, onde estávamos presente. Ela pode servir de guia em todos os casos análogos.
“Não vos apresseis muito em crer na vinda do famoso músico negro cego. Suas aptidões musicais são muito exaltadas pelos grandes divulgadores de novidades, que não são avaros em fatos imaginários destinados a satisfazer a curiosidade dos assinantes. Deveis desconfiar muito das reproduções e sobretudo dos empréstimos reais ou supostos que fazem os vossos jornalistas aos seus colegas de além-mar. Muitos balões de ensaio são lançados com o fito de fazer os espíritas caírem na armadilha, e na esperança de arrastar o Espiritismo e seus adeptos pelo domínio do ridículo. Portanto, ponde-vos em guarda, e jamais comenteis um fato sem previamente estardes bem informados e sem haver pedido a opinião de vossos guias.
“Não podeis imaginar todas as astúcias empregadas pelos grandes fanfarrões das ideias novas, para chegar a surpreender um descuido, uma falta, um absurdo palpável cometido pelos Espíritos ou seus prosélitos por demais confiantes. Por todos os lados são lançadas armadilhas aos Espíritos; todos os dias para aí trazem aperfeiçoamentos; grandes e pequenos estão à espreita, e o dia em que pudessem colher o chefe em erro, as mãos no saco do ridículo, seria o mais belo de sua vida. Eles têm tal confiança em si, que se divertem por antecipação; mas há um velho provérbio que diz: ‘Não se deve vender a pele do urso antes de havê-lo matado.’ Ora, o Espiritismo, sua besta negra, ainda está de pé, e bem poderia fazê-los usar os sapatos antes de se deixar atingir. É de cabeça baixa que um dia eles virão queimar incenso ante o altar da verdade que, em tempo próximo, será reconhecida por todo mundo.
“Aconselhando-vos a vos manterdes em reserva, não pretendo que os fatos e gestos atribuídos a esse cego sejam impossíveis, mas não deveis neles acreditar antes de tê-los visto e sobretudo ouvido.”
EBELMANN
Um tal prodígio, mesmo admitindo larga margem ao exagero, seria a mais eloquente defesa em favor da reabilitação da raça negra, num país onde o preconceito de cor está tão arraigado, e se ele não pode ser explicado pelas conhecidas leis da Ciência, sê-lo-ia de maneira mais clara e mais racional pela reencarnação, não de um negro num negro, mas de branco num negro, porque uma faculdade instintiva tão precoce não poderia ser senão uma lembrança intuitiva de conhecimentos adquiridos numa existência anterior.
Mas então, perguntarão, seria uma retrogradação do Espírito, passar da raça branca à raça negra? Falência de posição social, sem dúvida, o que se vê todos os dias, quando de rico se renasce pobre ou de senhor, servo, mas não retrogradação do Espírito, pois teria conservado suas aptidões e suas aquisições. Esta posição ser-lhe-ia uma prova ou uma expiação; talvez, ainda, uma missão, a fim de provar que essa raça não está votada pela Natureza a uma inferioridade absoluta. Aqui raciocinamos na hipótese da realidade do fato e para casos análogos que pudessem surgir.
Os dois fatos seguintes são da mesma fábrica e não necessitam de outro comentário além do que acaba de ser dado. O primeiro, relatado pelo Soleil de 19 de julho, é supostamente de origem americana; o segundo, extraído do Événement de abril, é dado como parisiense. São incontestavelmente os Espíritos que se mostrarão os mais incrédulos e mais endurecidos. Quanto aos outros, a curiosidade bem poderia levar mais de um a buscar a causa que dizem produzir tantas maravilhas.
“Os Espíritos batedores e outros parece que fixaram residência em Taunton e que escolheram para teatro de suas aventuras a casa de um infeliz médico daquela cidade. O porão, os corredores, os quartos, a cozinha e até o celeiro do profissional são assombrados durante a noite pelas sombras de todos aqueles que ele enviou para um mundo melhor. São gritos, lamentos, imprecações, ironias sangrentas, conforme o espírito das sombras, que às vezes não têm sombra de espírito.
─ Tua última poção me matou, diz uma voz cavernosa.
─ Alopata, grita uma voz mais moça, tu não vales um homeopata.
─ Eu sou tua vítima número 299, a última de todas, salmodia uma outra aparição. Trata ao menos de fazer uma cruz quando chegares a 300.
“E assim por diante. A vida do infortunado médico não é mais suportável.”
A outra anedota é também espirituosa:
“É domingo à noite, durante uma pavorosa tempestade cujas devastações foram enumeradas nos jornais de ontem. Através da chuva e dos relâmpagos, um carro descia a avenida de Neuilly; nele se achavam quatro pessoas; tinham jantado juntas numa casa muito agradável e hospitaleira, perto do parque de Neuilly e, alegres pela noite agradável, os quatro viajantes, despreocupados da tempestade, entregavam-se a uma conversa um tanto leviana.
“Falavam mal das mulheres, até mesmo caluniando-as um pouco. O nome de uma jovem foi colocado na liça e alguém levantou dúvidas quanto à nacionalidade da vítima, insinuando que seguramente não tinha vindo à luz em Nanterre.
“De repente um trovão abalou as portas, um relâmpago iluminou toda a carruagem e a chuva açoitou os vidros quase os quebrando. Ao clarão do raio os quatro viajantes viram, então, de pé à sua frente, na carruagem, um quinto viajante, ou antes, uma viajante, uma mulher vestida de branco, um espectro, um anjo. A aparição desapareceu com o relâmpago, e depois, como se o fantasma quisesse protestar contra a calúnia dirigida contra a jovem ausente, uma chuva de flores de laranjeira caiu sobre os quatro companheiros de viagem e os cobriu de uma névoa embalsamada.
“Na verdade havia um médium entre os quatro viajantes.
“Nada nos obriga a crer nesta história inverossímil, a meu ver uma mentira. Foi um dos viajantes que me contou e que a considera real. Ela pareceu-me original, eis tudo!”
“Há alguns dias os habitantes do bairro vizinho da igreja de Saint-Médard estavam muito abalados por um fato singular, misterioso, que dava lugar aos mais lúgubres relatos e comentários.
“Estão sendo feitas demolições ao redor da igreja; a maior parte das casas demolidas foram construídas no lugar de um cemitério ao qual ligam a história dos supostos milagres que, no começo do século dezoito, motivaram um decreto do governo que, a 27 de janeiro de 1733, ordenou o fechamento desse cemitério, em cuja porta foi encontrado, no dia seguinte, este epigrama: “Por ordem do rei... fica proibido a Deus “Fazer milagres neste lugar.
“Ora, as casas respeitadas pelo martelo demolidor eram, todas as noites, devastadas por uma chuva de pedras, às vezes muito grandes, que quebravam os vidros das janelas e caíam sobre os telhados e os danificavam.
“A despeito das mais ativas pesquisas, ninguém descobriu de onde vinham os projéteis.
“Não deixaram de dizer que os mortos do cemitério, perturbados em seu repouso pelas demolições, assim manifestavam seu descontentamento. Mas pessoas menos crédulas, pensando que essas pedras que continuavam a cair todas as noites fossem lançadas por um ser vivo, foram reclamar a intervenção do Sr. Cazeaux, comissário de polícia, que estabeleceu uma vigilância por seus agentes.
“Enquanto a exerciam, as pedras não apareceram, mas assim que a suspenderam, recaíram ainda mais abundantes.
“Não sabiam o que fazer para penetrar esse mistério, quando a senhora X..., proprietária de uma casa
na rua Censier, veio declarar ao comissário que, assustada com o que se passava, tinha ido consultar uma sonâmbula.
“Ela me revelou”, disse a declarante, “que as pedras eram lançadas por uma moça afetada por um mal da cabeça. Precisamente a minha criada, Felícia F..., de dezesseis anos, sofre de herpes nessa parte do corpo.
“Embora não ligando importância a essa indicação, o comissário concordou em interrogar Felícia e dela obteve uma confissão completa. Agindo sob a inspiração de um Espírito que lhe apareceu, há alguns meses ela vinha guardando num celeiro grande quantidade de pedras, e todas as noites ela se levantava para atirar uma parte pela janela do celeiro sobre as casas vizinhas.
“Na presunção de que essa moça pudesse ser alienada, o comissário mandou-a à Prefeitura, para que aí fosse examinada por médicos especialistas.”
Este fato prova que se deve evitar atribuir a uma causa oculta todos os fatos desse gênero e que, quando existe uma causa material, sempre se chega a descobri-la, o que nada prova contra a possibilidade de uma outra origem em certos casos que não podem ser julgados senão pelo conjunto de circunstâncias, como no caso de Poitiers. A menos que a causa oculta seja demonstrada pela evidência, a dúvida é o partido mais sábio. Convém, assim, manter reservas. É preciso desconfiar, sobretudo das ciladas preparadas pela malevolência com o objetivo de dar-se ao prazer de mistificar os espíritas. A ideia fixa da maior parte dos antagonistas é que o Espiritismo está inteiramente nos efeitos físicos e não pode viver sem isto; que a fé dos espíritas não tem outro objetivo, motivo pelo qual imaginam matá-lo desacreditando os efeitos, quer simulando-os, quer os inventando em condições ridículas. Sua ignorância do Espiritismo faz com que, sem perceber, eles não atinjam o lado capital da questão, que é o ponto de vista moral e filosófico.
Alguns, entretanto, conhecem muito bem esse lado da doutrina; mas, como ele é inatacável, lançamse sobre o outro, mais vulnerável, e que se presta mais facilmente à charlatanice. Eles gostariam de fazer os espíritas passarem por admiradores crédulos e supersticiosos do fantástico, tudo aceitando de olhos fechados. É para eles um grande desapontamento não vê-los extasiados ao menor fato com a menor aparência de sobrenatural e de encontrá-los, em relação a certos fenômenos, mais cépticos do que aqueles que não conhecem o Espiritismo. Ora, é precisamente porque o conhecem que eles sabem o que é possível e o que não é, e não veem em tudo a ação dos Espíritos.
No fato exposto acima, é muito curioso ver a verdadeira causa revelada por uma sonâmbula. É a consagração do fenômeno da lucidez. Quanto à moça que diz ter agido sob o impulso de um Espírito, é certo que não foi o conhecimento do Espiritismo que lhe deu tal ideia. De onde lhe veio? É bem possível que ela estivesse sob o domínio de uma obsessão que tomaram, como sempre, por loucura. Se assim é, não será com remédios que a curarão. Em casos semelhantes, vimos muitas vezes pessoas a falar espontaneamente de Espíritos, porque elas os veem, e então dizem que elas estão alucinadas.
Nós a supomos de boa-fé, porque não temos nenhuma razão para dela suspeitar. Infelizmente, porém, há fatos de natureza a suscitar desconfiança. Lembramos de uma mulher que simulou loucura ao sair de uma reunião onde havia sido admitida às suas instâncias, a única a que ela tinha assistido. Conduzida imediatamente a um hospício, logo confessou que havia recebido cinquenta francos para representar a comédia. Era a época em que procuravam propagar a ideia que os hospícios regurgitavam de espíritas. Essa mulher se deixou seduzir pela tentação de algum dinheiro; outras podem ceder a outras influências. Não pretendemos que este seja o caso dessa moça; apenas quisemos mostrar que quando se quer denegrir uma coisa, todos os meios são bons. É, para os espíritas, uma razão a mais para se manterem em guarda e tudo observar escrupulosamente. Aliás, se tudo o que se trama em segredo prova que a luta não terminou e que é preciso redobrar a vigilância e a firmeza, é igualmente a prova que nem todo mundo olha o Espiritismo como uma quimera.
Ao lado da guerra surda, há a guerra a céu aberto, mais geralmente feita pela incredulidade trocista. Evidentemente esta modificou-se. Os fatos que se multiplicam; a adesão de pessoas de cuja boa-fé e razão não se pode suspeitar; a impassibilidade dos espíritas, bem como sua calma e moderação em presença das tempestades levantadas contra eles, deram motivos para reflexão. Diariamente a imprensa registra fatos espíritas. Se, entre esses fatos, há alguns verdadeiros, outros são evidentemente inventados pelas necessidades da causa da oposição. Ela não nega mais os fenômenos, mas procura torná-los ridículos pelo exagero. É uma tática muito inofensiva, porque hoje não é difícil, em certas matérias, representar o papel da inverossimilhança. Os jornais da América não ficam atrás nas invenções a esse respeito, e os nossos se apressam em imitá-los. É assim que a maior parte deles repetiu a seguinte história, no mês de março último:
“ESTADOS UNIDOS. ─ Um homem foi executado em Cleveland, Ohio, o Dr. Hughes, que, no momento de morrer, fez um discurso, revelando um espírito de uma firmeza e de uma lucidez extraordinárias. Ele aproveitou a ocasião para fazer uma dissertação, que não durou menos de meia hora, sobre a utilidade e a justiça da pena de morte. Essa penalidade máxima, disse ele, é simplesmente ridícula. Qual a vantagem de tirar-me a vida? Nenhuma. Certamente não será o meu exemplo que dissuadirá outros do crime. Será que me lembro de haver dado esse tiro de pistola? Hoje não tenho absolutamente a menor lembrança. Posso admitir que a lei de Ohio me fira justamente, mas digo, ao mesmo tempo, que ela é tola e vã.
“Se pretendeis que, porque esta corda vai ser amarrada em volta do meu pescoço e apertada até que eu morra, ela tenha por efeito prevenir o assassinato, digo que o vosso pensamento é tolo e vão, pois na situação de espírito em que estava John W. Hughes quando ele assassinou, não há exemplo na Terra que teria podido impedir um homem, fosse quem fosse, de fazer o que eu fiz. Inclino-me ante a lei do Estado, com o pensamento de que é um assassinato tão inútil quanto cruel tirar-me a vida. Espero que meu suplício não fique como um exemplo da pena de morte, mas como um argumento que prova a sua inutilidade.
“Em seguida, Hughes fez um exame de consciência e estendeu-se muito sobre a religião e sobre a imortalidade da alma. Suas teorias, nessas graves matérias, não são positivamente ortodoxas, mas ao menos atestam um sangue-frio singular. Ele falou também do Espiritualismo, ou melhor, do Espiritismo. Disse ele:
“─ Eu sei, por experiência própria, que há entre os que saem da vida e os que ficam, comunicações incessantes. Hoje vou sofrer a suprema pena legal, mas, ao mesmo tempo, tenho a certeza de que estarei convosco depois de minha execução, como aqui me encontro agora. Meus juízes e meus carrascos me verão sempre ante os seus olhos, e vós mesmos, que viestes aqui para me ver morrer, não há um só que não me reveja em carne e osso, vestido de preto, como estou, carregando meu próprio luto prematuro, tanto durante seu sono quanto nas horas de suas ocupações diárias. Adeus, senhores. Espero que nenhum de vós faça o que eu fiz. Se houver, porém, algum que se ache no estado mental em que eu mesmo estava quando cometi o crime, não será certamente a lembrança deste dia que o impedirá. Adeus.”
“Depois dessa arenga, o estrado foi derrubado e o Dr. Hughes ficou pendurado. Mas suas palavras tinham produzido uma profunda impressão sobre o auditório, do que resultaram singulares efeitos. Eis o que hoje encontramos a respeito no Herald, de Cleveland:
“Estando no cadafalso, com a corda no pescoço, o Dr. Hughes disse que estaria com os que o ouviam, assim como estava antes da sua morte, e diríamos que ele levou a sério o cumprimento de sua palavra. Entre as pessoas que o tinham visitado em sua cela antes da execução, achava-se um honesto açougueiro alemão. Esse homem, a partir da entrevista com o condenado, não tira o Dr. Hughes da cabeça. Ele tem incessantemente diante dos olhos, noite e dia, a toda hora, prisões, patíbulos, homens pendurados. Já não dorme, não come, não mais cuida da família e dos negócios, e ontem à noite esta visão quase o matou:
“Ele acabava de entrar no estábulo para tratar dos animais, quando viu de pé, junto de seu cavalo, o doutor Hughes, vestido com a mesma roupa preta que tinha ao deixar o nosso planeta e parecendo gozar de excelente saúde. O pobre açougueiro soltou um grito horrível, um urro do outro mundo, e caiu de costas.
“Correram e ergueram-no; tinha os olhos vagos, a face lívida, os lábios trêmulos e com uma voz ofegante perguntou, ao retomar a consciência, se o Dr. Hughes ainda estava ali. Dizia ter acabado de vê-lo e que se ele não estava mais no estábulo, não podia estar longe. Foi com todo esforço do mundo que o acalmaram e levaram para casa. A visão continuou a persegui-lo, e as últimas notícias nos dão conta que ele estava num estado de agitação que nada podia acalmar.
“Mas eis o que é ainda mais curioso. O açougueiro não é o único a quem o Dr. Hughes apareceu depois de morto. Dois dias após a execução, todos os detentos o viram, com os próprios olhos, entrar na prisão e percorrer os corredores. Ele tinha o semblante perfeitamente natural: estava vestido de preto, como no cadafalso; passava sempre a mão pelo pescoço e ao mesmo tempo deixava sair da boca um som gutural que sibilava entre os dentes. Ele subiu as escadas que levam à sua cela, entrou, sentou-se e pôs-se a escrever versos. Eis o que contaram os detentos, e nada no mundo os teria persuadido que tinham sido vítimas de uma ilusão.”
Este fato não deixa de ter o seu lado instrutivo, pelas palavras do paciente. Ele é verdadeiro, quanto ao assunto principal, mas como, em sua última alocução, ele achou que deveria falar do Espiritualismo ou Espiritismo, o narrador houve por bem rechear seu relato com casos de aparições que só existiram em sua pena, salvo a primeira, a do açougueiro, que parece ser real.
─ Tom, o cego não é um conto de fantasma, mas um incrível fenômeno de inteligência. Tom é um jovem negro de dezessete anos, cego de nascença, supostamente dotado de um maravilhoso instinto musical. O Harpers Weekly, jornal ilustrado de Nova Iorque, consagra-lhe um longo artigo, do qual extraímos as seguintes passagens:
“Há menos de dois anos ele traduzia para o canto tudo o que lhe feria o ouvido, e tal era a justeza e a facilidade com que captava um fragmento melódico que ouvindo as primeiras notas de um canto, podia executar a sua parte. Logo começou a acompanhar, fazendo a segunda voz, embora jamais a tivesse ouvido, mas um instinto natural lhe revelava que algo de semelhante devia cantar-se.
“Aos quatro anos de idade, pela primeira vez ouviu um piano. À chegada do instrumento, ele estava, como de hábito, brincando no pátio. A primeira vibração das cordas o atraiu para a sala. Permitiram-lhe passear os dedos nas teclas, apenas para satisfazer sua curiosidade e não lhe recusar o prazer inocente de fazer um pouco de ruído. Certa vez, depois da meia-noite, ele estava na sala de visitas, onde tinha aprendido a entrar. O piano não tinha sido fechado e as moças da casa despertaram pelos sons do instrumento. Para seu grande espanto, elas ouviram Tom tocando um de seus trechos, e de manhã o encontraram ainda ao piano. Então lhe permitiram tocar quanto quisesse. Ele fez progressos tão rápidos e admiráveis que o piano tornou-se o eco de tudo o que ele ouvia. Desenvolveu assim novas e prodigiosas faculdades, até então desconhecidas no mundo musical, e cujo monopólio parece que Deus tinha reservado a Tom. Ele tinha menos de cinco anos quando, depois de uma tempestade, dela fez o que denominou: O que me dizem o vento, o trovão e a chuva.
“Em Filadélfia, setenta professores de música apuseram espontaneamente sua assinatura numa declaração que assim termina: ‘De fato, sob qualquer forma de exame musical, execução, composição e improvisação, ele demonstrou um poder e uma capacidade que o classifica entre os mais admiráveis fenômenos cuja lembrança tenha sido guardada pela história da música. Os abaixo assinados pensam que é impossível explicar esses prodigiosos resultados por qualquer das hipóteses que podem fornecer as leis da Arte ou da Ciência.’
“Hoje ele toca as músicas mais difíceis dos grandes autores com uma delicadeza de toque, um poder e uma expressão raramente ouvidos. Na próxima primavera ele deve ir à Europa.”
A respeito disto, eis a explicação dada por intermédio do Sr. Morin, médium, numa reunião espírita de Paris, na casa da Princesa O..., a 13 de março de 1866, onde estávamos presente. Ela pode servir de guia em todos os casos análogos.
“Não vos apresseis muito em crer na vinda do famoso músico negro cego. Suas aptidões musicais são muito exaltadas pelos grandes divulgadores de novidades, que não são avaros em fatos imaginários destinados a satisfazer a curiosidade dos assinantes. Deveis desconfiar muito das reproduções e sobretudo dos empréstimos reais ou supostos que fazem os vossos jornalistas aos seus colegas de além-mar. Muitos balões de ensaio são lançados com o fito de fazer os espíritas caírem na armadilha, e na esperança de arrastar o Espiritismo e seus adeptos pelo domínio do ridículo. Portanto, ponde-vos em guarda, e jamais comenteis um fato sem previamente estardes bem informados e sem haver pedido a opinião de vossos guias.
“Não podeis imaginar todas as astúcias empregadas pelos grandes fanfarrões das ideias novas, para chegar a surpreender um descuido, uma falta, um absurdo palpável cometido pelos Espíritos ou seus prosélitos por demais confiantes. Por todos os lados são lançadas armadilhas aos Espíritos; todos os dias para aí trazem aperfeiçoamentos; grandes e pequenos estão à espreita, e o dia em que pudessem colher o chefe em erro, as mãos no saco do ridículo, seria o mais belo de sua vida. Eles têm tal confiança em si, que se divertem por antecipação; mas há um velho provérbio que diz: ‘Não se deve vender a pele do urso antes de havê-lo matado.’ Ora, o Espiritismo, sua besta negra, ainda está de pé, e bem poderia fazê-los usar os sapatos antes de se deixar atingir. É de cabeça baixa que um dia eles virão queimar incenso ante o altar da verdade que, em tempo próximo, será reconhecida por todo mundo.
“Aconselhando-vos a vos manterdes em reserva, não pretendo que os fatos e gestos atribuídos a esse cego sejam impossíveis, mas não deveis neles acreditar antes de tê-los visto e sobretudo ouvido.”
EBELMANN
Um tal prodígio, mesmo admitindo larga margem ao exagero, seria a mais eloquente defesa em favor da reabilitação da raça negra, num país onde o preconceito de cor está tão arraigado, e se ele não pode ser explicado pelas conhecidas leis da Ciência, sê-lo-ia de maneira mais clara e mais racional pela reencarnação, não de um negro num negro, mas de branco num negro, porque uma faculdade instintiva tão precoce não poderia ser senão uma lembrança intuitiva de conhecimentos adquiridos numa existência anterior.
Mas então, perguntarão, seria uma retrogradação do Espírito, passar da raça branca à raça negra? Falência de posição social, sem dúvida, o que se vê todos os dias, quando de rico se renasce pobre ou de senhor, servo, mas não retrogradação do Espírito, pois teria conservado suas aptidões e suas aquisições. Esta posição ser-lhe-ia uma prova ou uma expiação; talvez, ainda, uma missão, a fim de provar que essa raça não está votada pela Natureza a uma inferioridade absoluta. Aqui raciocinamos na hipótese da realidade do fato e para casos análogos que pudessem surgir.
Os dois fatos seguintes são da mesma fábrica e não necessitam de outro comentário além do que acaba de ser dado. O primeiro, relatado pelo Soleil de 19 de julho, é supostamente de origem americana; o segundo, extraído do Événement de abril, é dado como parisiense. São incontestavelmente os Espíritos que se mostrarão os mais incrédulos e mais endurecidos. Quanto aos outros, a curiosidade bem poderia levar mais de um a buscar a causa que dizem produzir tantas maravilhas.
“Os Espíritos batedores e outros parece que fixaram residência em Taunton e que escolheram para teatro de suas aventuras a casa de um infeliz médico daquela cidade. O porão, os corredores, os quartos, a cozinha e até o celeiro do profissional são assombrados durante a noite pelas sombras de todos aqueles que ele enviou para um mundo melhor. São gritos, lamentos, imprecações, ironias sangrentas, conforme o espírito das sombras, que às vezes não têm sombra de espírito.
─ Tua última poção me matou, diz uma voz cavernosa.
─ Alopata, grita uma voz mais moça, tu não vales um homeopata.
─ Eu sou tua vítima número 299, a última de todas, salmodia uma outra aparição. Trata ao menos de fazer uma cruz quando chegares a 300.
“E assim por diante. A vida do infortunado médico não é mais suportável.”
A outra anedota é também espirituosa:
“É domingo à noite, durante uma pavorosa tempestade cujas devastações foram enumeradas nos jornais de ontem. Através da chuva e dos relâmpagos, um carro descia a avenida de Neuilly; nele se achavam quatro pessoas; tinham jantado juntas numa casa muito agradável e hospitaleira, perto do parque de Neuilly e, alegres pela noite agradável, os quatro viajantes, despreocupados da tempestade, entregavam-se a uma conversa um tanto leviana.
“Falavam mal das mulheres, até mesmo caluniando-as um pouco. O nome de uma jovem foi colocado na liça e alguém levantou dúvidas quanto à nacionalidade da vítima, insinuando que seguramente não tinha vindo à luz em Nanterre.
“De repente um trovão abalou as portas, um relâmpago iluminou toda a carruagem e a chuva açoitou os vidros quase os quebrando. Ao clarão do raio os quatro viajantes viram, então, de pé à sua frente, na carruagem, um quinto viajante, ou antes, uma viajante, uma mulher vestida de branco, um espectro, um anjo. A aparição desapareceu com o relâmpago, e depois, como se o fantasma quisesse protestar contra a calúnia dirigida contra a jovem ausente, uma chuva de flores de laranjeira caiu sobre os quatro companheiros de viagem e os cobriu de uma névoa embalsamada.
“Na verdade havia um médium entre os quatro viajantes.
“Nada nos obriga a crer nesta história inverossímil, a meu ver uma mentira. Foi um dos viajantes que me contou e que a considera real. Ela pareceu-me original, eis tudo!”
Cabelos embranquecidos sob a impressão de um sonho
Lê-se no Petit Journal de 14 de maio de 1866:
O Sr. Émile Gaboriau, comentando o fato atribuído àquele marido que teria assassinado a esposa sonhando, conta no Pays o dramático episódio que vamos ler:
“Mas eis que é mais forte, e devo dizer que acredito no fato, cuja autenticidade me foi atestada sob juramento, pelo herói em pessoa.
“O herói, meu camarada de colégio, é um engenheiro de uns trinta anos, homem de espírito e talento, caráter metódico e de temperamento frio.
“Como há dois anos ele percorria a Bretanha, teve que passar a noite num albergue isolado, a algumas centenas de metros de uma mina que ele pretendia visitar no dia seguinte.
“Estava cansado. Foi cedo para a cama e não tardou a dormir.
“Logo sonhou. Acabavam de colocá-lo à frente da exploração dessa mina vizinha.
“Ele fiscalizava os operários, quando chegou o proprietário.
“Esse homem, brutal e mal-educado, censurou-o por ficar fora e de braços cruzados, quando deveria estar no interior, ocupado em traçar o plano.
“─ Está bem, eu desço, respondeu o jovem engenheiro.
“Com efeito desceu, percorreu as galerias e traçou um esboço.
“Terminada a tarefa, entrou numa cesta que devia trazê-lo para cima. Um cabo enorme servia para içar esse cesto.
“A mina era extraordinariamente profunda e o engenheiro avaliou que a ascensão duraria bem um quarto de hora. Assim, instalou-se o mais comodamente possível.
“Subia há dois ou três minutos quando, erguendo os olhos por acaso, julgou ver que o cabo ao qual estava suspensa a sua vida estava cortado a alguns pés acima de sua cabeça, muito alto para que pudesse alcançar a ruptura.
“Logo de início seu pavor foi tamanho que ele quase desmaiou. Depois tentou recompor-se, reanimar-se. Não se teria enganado e visto mal? Teve necessidade de fazer um enérgico apelo a toda a sua coragem para ousar olhar de novo.
“Não, ele não estava enganado. O cabo tinha sido danificado pelo atrito na rocha e lentamente, mas visivelmente, se desenrolava. Naquele ponto não tinha mais que uma polegada de diâmetro.
“O infortunado sentiu-se perdido. Um frio mortal o gelou até a medula. Quis gritar, impossível. Além do mais, para quê? Ele estava, então, a meio caminho.
“No fundo, a uma profundidade vertiginosa, percebia, menos brilhantes que vermes luzindo na grama, as lâmpadas dos operários.
“No alto, ele via a abertura do poço, tão apertada que parecia não ter o diâmetro do gargalo de uma garrafa.
“Ele subia sempre, e um a um os fios de cânhamo se rompiam.
“E nenhum meio de evitar a queda horrível porque, ele via, ele sentia, o cabo romper-se-ia muito antes que o cesto tivesse atingido o alto.
“Tal era a sua angústia mortal que ele teve a ideia de abreviar o suplício, precipitando-se.
“Hesitava, quando o cesto chegou à flor da terra. Estava salvo. Foi soltando um grito formidável que saltou para a terra.
“O grito o acordou. A horrível aventura não passara de um sonho. Mas estava num estado horroroso, banhado de suor, respirando com dificuldade, incapaz do menor movimento.
“Enfim, pôde tocar a campainha e lhe vieram em socorro. Mas as pessoas do albergue quase se recusavam a reconhecê-lo. Seus cabelos negros estavam grisalhos.
“Ao pé da cama se achava, esboçada por ele, a planta dessa mina que ele não conhecia. A planta era de uma exatidão maravilhosa.”
Não temos outra garantia de autenticidade desse fato senão o relato acima. Sem nada prejulgar a respeito, diremos que tudo quanto relata está dentro do possível. A planta da mina, traçada pelo engenheiro durante o sono, não é mais surpreendente que os trabalhos que executam certos sonâmbulos.
Para fazê-la exata, ele teve que ver. Considerando-se que ele não a viu com os olhos do corpo, viu-a com os olhos da alma. Durante o sono, seu Espírito explorou a mina; a planta é a prova material. Quanto ao perigo, é evidente que nada havia de real; não passara de um pesadelo. O que é mais singular é que, sob a impressão de um perigo imaginário, seus cabelos tenham encanecido.
Este fenômeno se explica pelos laços fluídicos que as impressões da alma transmitem ao corpo, quando esta dele está afastada. A alma não se dava conta dessa separação; seu corpo perispiritual lhe fazia o efeito de seu corpo material, como acontece muitas vezes após a morte com certos Espíritos que ainda se julgam vivos e se imaginam ocupados em seus afazeres habituais. O Espírito do engenheiro, embora vivo, se achava numa situação análoga; tudo era tão real, em seu pensamento, como se ele estivesse em seu corpo de carne e osso. Daí o sentimento de pavor que experimentou vendo-se perto de ser precipitado no abismo.
De onde veio essa imagem fantástica? Ele mesmo criou, por pensamento, um quadro fluídico, uma cena da qual era o ator, exatamente como a senhora Cantianille e a irmã Elmérich de que falamos no número precedente. A diferença provém das ocupações habituais. Naturalmente o engenheiro pensava nas minas, ao passo que a senhora Cantianille, em seu convento, pensava no inferno. Sem dúvida ela se acreditava em estado de pecado mortal, por alguma infração à regra, cometida por instigação dos demônios; exagerando as suas consequências, ela já se via em seu poder. As palavras: “Eu apenas consegui muito bem merecer a sua confiança” provam que sua consciência não estava tranquila. De resto, o quadro que ela faz do inferno tem algo de sedutor para certas pessoas, porquanto aqueles que consentem em blasfemar contra Deus e louvar o diabo, e que têm coragem de desafiar as chamas, são recompensados por prazeres inteiramente mundanos. Nesse quadro foi possível notar-se um reflexo das provas maçônicas, que lhe tinham mostrado como o vestíbulo do inferno. Quanto à irmã Elmérich, suas preocupações são mais suaves. Ela se compraz na beatitude e na veneração das coisas santas; assim, as suas visões são a sua reprodução.
Na visão do engenheiro, há, pois, duas partes distintas: a primeira real e positiva, constatada pela exatidão da planta da mina; a segunda puramente fantástica: a do perigo que ele correu. Esta talvez seja efeito da lembrança de um acidente real dessa natureza no qual ele teria sido vítima em sua precedente existência. Ela pode ter sido provocada como uma advertência para tomar as precauções necessárias. Estando encarregado da direção da mina, depois de semelhante alerta, não terá negligenciado as medidas de prudência.
Eis um exemplo da impressão que se pode conservar das sensações experimentadas numa outra existência. Não sabemos se já o citamos algures; sem tempo para rebuscá-lo, recordamo-lo com risco de repetir, em apoio àquilo que acabamos de dizer.
Uma senhora do nosso conhecimento tinha sido educada num pensionato em Ruão. Quando as alunas saíam para ir à igreja ou a passeio, num certo ponto da rua ela era tomada por uma ideia e uma apreensão extraordinárias: parecia-lhe que ia ser precipitada num abismo, e isso se repetia cada vez que ela passava por aquele lugar, durante todo o período em que esteve no pensionato. Ela havia deixado Ruão há mais de vinte anos, e tendo voltado há poucos anos, teve a curiosidade de ir rever a casa onde tinha morado. Ao passar pela mesma rua, experimentou a mesma sensação. Mais tarde, tendo-se tornado espírita, tendo esse fato voltado à sua memória, pediu uma explicação e lhe foi dito que outrora, naquele lugar, havia barrancos com fossos profundos cheios de água; que ela fazia parte de um grupo de senhoras que concorreram para a defesa da cidade contra os ingleses e que todas tinham sido precipitadas nesses fossos, onde haviam perecido. Esse fato é relatado na história de Ruão.
Assim, muitos séculos depois, a terrível impressão dessa catástrofe ainda não se havia apagado de seu Espírito. Se não tinha mais o mesmo corpo carnal, tinha ainda o mesmo corpo fluídico ou perispiritual que havia recebido a primeira impressão e reagia em seu corpo atual. Assim, um sonho poderia lhe retraçar a imagem e produzir uma emoção semelhante à do engenheiro.
Quantas coisas nos ensina o grande princípio da perpetuidade do Espírito e do laço que une o Espírito à matéria! Talvez jamais os jornais, negando o Espiritismo, relataram tantos fatos em apoio às verdades que ele proclama.
O Sr. Émile Gaboriau, comentando o fato atribuído àquele marido que teria assassinado a esposa sonhando, conta no Pays o dramático episódio que vamos ler:
“Mas eis que é mais forte, e devo dizer que acredito no fato, cuja autenticidade me foi atestada sob juramento, pelo herói em pessoa.
“O herói, meu camarada de colégio, é um engenheiro de uns trinta anos, homem de espírito e talento, caráter metódico e de temperamento frio.
“Como há dois anos ele percorria a Bretanha, teve que passar a noite num albergue isolado, a algumas centenas de metros de uma mina que ele pretendia visitar no dia seguinte.
“Estava cansado. Foi cedo para a cama e não tardou a dormir.
“Logo sonhou. Acabavam de colocá-lo à frente da exploração dessa mina vizinha.
“Ele fiscalizava os operários, quando chegou o proprietário.
“Esse homem, brutal e mal-educado, censurou-o por ficar fora e de braços cruzados, quando deveria estar no interior, ocupado em traçar o plano.
“─ Está bem, eu desço, respondeu o jovem engenheiro.
“Com efeito desceu, percorreu as galerias e traçou um esboço.
“Terminada a tarefa, entrou numa cesta que devia trazê-lo para cima. Um cabo enorme servia para içar esse cesto.
“A mina era extraordinariamente profunda e o engenheiro avaliou que a ascensão duraria bem um quarto de hora. Assim, instalou-se o mais comodamente possível.
“Subia há dois ou três minutos quando, erguendo os olhos por acaso, julgou ver que o cabo ao qual estava suspensa a sua vida estava cortado a alguns pés acima de sua cabeça, muito alto para que pudesse alcançar a ruptura.
“Logo de início seu pavor foi tamanho que ele quase desmaiou. Depois tentou recompor-se, reanimar-se. Não se teria enganado e visto mal? Teve necessidade de fazer um enérgico apelo a toda a sua coragem para ousar olhar de novo.
“Não, ele não estava enganado. O cabo tinha sido danificado pelo atrito na rocha e lentamente, mas visivelmente, se desenrolava. Naquele ponto não tinha mais que uma polegada de diâmetro.
“O infortunado sentiu-se perdido. Um frio mortal o gelou até a medula. Quis gritar, impossível. Além do mais, para quê? Ele estava, então, a meio caminho.
“No fundo, a uma profundidade vertiginosa, percebia, menos brilhantes que vermes luzindo na grama, as lâmpadas dos operários.
“No alto, ele via a abertura do poço, tão apertada que parecia não ter o diâmetro do gargalo de uma garrafa.
“Ele subia sempre, e um a um os fios de cânhamo se rompiam.
“E nenhum meio de evitar a queda horrível porque, ele via, ele sentia, o cabo romper-se-ia muito antes que o cesto tivesse atingido o alto.
“Tal era a sua angústia mortal que ele teve a ideia de abreviar o suplício, precipitando-se.
“Hesitava, quando o cesto chegou à flor da terra. Estava salvo. Foi soltando um grito formidável que saltou para a terra.
“O grito o acordou. A horrível aventura não passara de um sonho. Mas estava num estado horroroso, banhado de suor, respirando com dificuldade, incapaz do menor movimento.
“Enfim, pôde tocar a campainha e lhe vieram em socorro. Mas as pessoas do albergue quase se recusavam a reconhecê-lo. Seus cabelos negros estavam grisalhos.
“Ao pé da cama se achava, esboçada por ele, a planta dessa mina que ele não conhecia. A planta era de uma exatidão maravilhosa.”
Não temos outra garantia de autenticidade desse fato senão o relato acima. Sem nada prejulgar a respeito, diremos que tudo quanto relata está dentro do possível. A planta da mina, traçada pelo engenheiro durante o sono, não é mais surpreendente que os trabalhos que executam certos sonâmbulos.
Para fazê-la exata, ele teve que ver. Considerando-se que ele não a viu com os olhos do corpo, viu-a com os olhos da alma. Durante o sono, seu Espírito explorou a mina; a planta é a prova material. Quanto ao perigo, é evidente que nada havia de real; não passara de um pesadelo. O que é mais singular é que, sob a impressão de um perigo imaginário, seus cabelos tenham encanecido.
Este fenômeno se explica pelos laços fluídicos que as impressões da alma transmitem ao corpo, quando esta dele está afastada. A alma não se dava conta dessa separação; seu corpo perispiritual lhe fazia o efeito de seu corpo material, como acontece muitas vezes após a morte com certos Espíritos que ainda se julgam vivos e se imaginam ocupados em seus afazeres habituais. O Espírito do engenheiro, embora vivo, se achava numa situação análoga; tudo era tão real, em seu pensamento, como se ele estivesse em seu corpo de carne e osso. Daí o sentimento de pavor que experimentou vendo-se perto de ser precipitado no abismo.
De onde veio essa imagem fantástica? Ele mesmo criou, por pensamento, um quadro fluídico, uma cena da qual era o ator, exatamente como a senhora Cantianille e a irmã Elmérich de que falamos no número precedente. A diferença provém das ocupações habituais. Naturalmente o engenheiro pensava nas minas, ao passo que a senhora Cantianille, em seu convento, pensava no inferno. Sem dúvida ela se acreditava em estado de pecado mortal, por alguma infração à regra, cometida por instigação dos demônios; exagerando as suas consequências, ela já se via em seu poder. As palavras: “Eu apenas consegui muito bem merecer a sua confiança” provam que sua consciência não estava tranquila. De resto, o quadro que ela faz do inferno tem algo de sedutor para certas pessoas, porquanto aqueles que consentem em blasfemar contra Deus e louvar o diabo, e que têm coragem de desafiar as chamas, são recompensados por prazeres inteiramente mundanos. Nesse quadro foi possível notar-se um reflexo das provas maçônicas, que lhe tinham mostrado como o vestíbulo do inferno. Quanto à irmã Elmérich, suas preocupações são mais suaves. Ela se compraz na beatitude e na veneração das coisas santas; assim, as suas visões são a sua reprodução.
Na visão do engenheiro, há, pois, duas partes distintas: a primeira real e positiva, constatada pela exatidão da planta da mina; a segunda puramente fantástica: a do perigo que ele correu. Esta talvez seja efeito da lembrança de um acidente real dessa natureza no qual ele teria sido vítima em sua precedente existência. Ela pode ter sido provocada como uma advertência para tomar as precauções necessárias. Estando encarregado da direção da mina, depois de semelhante alerta, não terá negligenciado as medidas de prudência.
Eis um exemplo da impressão que se pode conservar das sensações experimentadas numa outra existência. Não sabemos se já o citamos algures; sem tempo para rebuscá-lo, recordamo-lo com risco de repetir, em apoio àquilo que acabamos de dizer.
Uma senhora do nosso conhecimento tinha sido educada num pensionato em Ruão. Quando as alunas saíam para ir à igreja ou a passeio, num certo ponto da rua ela era tomada por uma ideia e uma apreensão extraordinárias: parecia-lhe que ia ser precipitada num abismo, e isso se repetia cada vez que ela passava por aquele lugar, durante todo o período em que esteve no pensionato. Ela havia deixado Ruão há mais de vinte anos, e tendo voltado há poucos anos, teve a curiosidade de ir rever a casa onde tinha morado. Ao passar pela mesma rua, experimentou a mesma sensação. Mais tarde, tendo-se tornado espírita, tendo esse fato voltado à sua memória, pediu uma explicação e lhe foi dito que outrora, naquele lugar, havia barrancos com fossos profundos cheios de água; que ela fazia parte de um grupo de senhoras que concorreram para a defesa da cidade contra os ingleses e que todas tinham sido precipitadas nesses fossos, onde haviam perecido. Esse fato é relatado na história de Ruão.
Assim, muitos séculos depois, a terrível impressão dessa catástrofe ainda não se havia apagado de seu Espírito. Se não tinha mais o mesmo corpo carnal, tinha ainda o mesmo corpo fluídico ou perispiritual que havia recebido a primeira impressão e reagia em seu corpo atual. Assim, um sonho poderia lhe retraçar a imagem e produzir uma emoção semelhante à do engenheiro.
Quantas coisas nos ensina o grande princípio da perpetuidade do Espírito e do laço que une o Espírito à matéria! Talvez jamais os jornais, negando o Espiritismo, relataram tantos fatos em apoio às verdades que ele proclama.
Variedades
Mediunidade de vidência nas crianças
De Caen escreve um dos nossos correspondentes:
“Há alguns dias eu estava no hotel São Pedro, em Caen. Tomava um copo de cerveja, lendo um jornal. A filhinha da casa, de aproximadamente quatro anos, estava sentada na escadaria e comia cerejas. Ela não notava que eu a via, e parecia inteiramente envolvida numa conversa com seres invisíveis aos quais oferecia cerejas. Tudo o indicava: a fisionomia, os gestos, as inflexões da voz. Logo ela se voltava bruscamente dizendo:
─ Tu, tu não as terás, porque não és boazinha.
─ Eis para ti! dizia ela a uma outra.
─ Então, o que é que me atiras? perguntava a uma terceira.
Dir-se-ia que ela estava rodeada por outras crianças. Ora estendia as mãos oferecendo o que tinha, ora seus olhos seguiam objetos invisíveis para mim, que a entristeciam ou faziam gargalhar. Essa pequena cena durou mais de meia hora e a conversa só terminou quando a menina percebeu que eu a observava. Sei que muitas vezes as crianças se divertem em apartes deste gênero, mas aqui era completamente diferente; o rosto e as maneiras refletiam impressões reais que não eram as de uma representação. Eu pensava que sem dúvida se tratava de uma médium vidente em seu nascedouro, e dizia, de mim para mim, que se todas as mães de família fossem iniciadas nas leis do Espiritismo, aí colheriam numerosos casos de observação e compreenderiam muitos fatos que passam desapercebidos, cujo conhecimento lhes seria útil para a direção de seus filhos.”
É lamentável que o nosso correspondente não tenha tido a ideia de interrogar essa menina quanto às pessoas com quem conversava. Teria podido assegurar-se se a conversa realmente tinha sido com seres invisíveis. Nesse caso, daí poderia ter saído uma instrução tanto mais importante quanto, sendo espírita o nosso correspondente, e muito esclarecido, poderia dirigir utilmente essas perguntas. Seja como for, muitos outros fatos provam que a mediunidade vidente, se não é geral, é pelo menos muito comum nas crianças, e isto é providencial. Quando a criança sai da vida espiritual, seus guias vêm conduzi-la ao porto de desembarque para o mundo terreno, como vêm buscá-la em seu retorno. Eles se mostram a ela nos primeiros tempos, para que não haja transição muito brusca; depois se apagam pouco a pouco, à medida que a criança cresce e pode agir em virtude de seu livre-arbítrio. Então a deixam às suas próprias forças, desaparecendo de seus olhos, mas sem perdê-la de vista. A menina em questão, em vez de ser, como pensa o nosso correspondente, médium vidente nascente, bem poderia estar em seu declínio, e não mais gozar dessa faculdade para o resto da vida. (Vide a Revista de fevereiro de 1865: Espíritos instrutores da infância).
ALLAN KARDEC
“Há alguns dias eu estava no hotel São Pedro, em Caen. Tomava um copo de cerveja, lendo um jornal. A filhinha da casa, de aproximadamente quatro anos, estava sentada na escadaria e comia cerejas. Ela não notava que eu a via, e parecia inteiramente envolvida numa conversa com seres invisíveis aos quais oferecia cerejas. Tudo o indicava: a fisionomia, os gestos, as inflexões da voz. Logo ela se voltava bruscamente dizendo:
─ Tu, tu não as terás, porque não és boazinha.
─ Eis para ti! dizia ela a uma outra.
─ Então, o que é que me atiras? perguntava a uma terceira.
Dir-se-ia que ela estava rodeada por outras crianças. Ora estendia as mãos oferecendo o que tinha, ora seus olhos seguiam objetos invisíveis para mim, que a entristeciam ou faziam gargalhar. Essa pequena cena durou mais de meia hora e a conversa só terminou quando a menina percebeu que eu a observava. Sei que muitas vezes as crianças se divertem em apartes deste gênero, mas aqui era completamente diferente; o rosto e as maneiras refletiam impressões reais que não eram as de uma representação. Eu pensava que sem dúvida se tratava de uma médium vidente em seu nascedouro, e dizia, de mim para mim, que se todas as mães de família fossem iniciadas nas leis do Espiritismo, aí colheriam numerosos casos de observação e compreenderiam muitos fatos que passam desapercebidos, cujo conhecimento lhes seria útil para a direção de seus filhos.”
É lamentável que o nosso correspondente não tenha tido a ideia de interrogar essa menina quanto às pessoas com quem conversava. Teria podido assegurar-se se a conversa realmente tinha sido com seres invisíveis. Nesse caso, daí poderia ter saído uma instrução tanto mais importante quanto, sendo espírita o nosso correspondente, e muito esclarecido, poderia dirigir utilmente essas perguntas. Seja como for, muitos outros fatos provam que a mediunidade vidente, se não é geral, é pelo menos muito comum nas crianças, e isto é providencial. Quando a criança sai da vida espiritual, seus guias vêm conduzi-la ao porto de desembarque para o mundo terreno, como vêm buscá-la em seu retorno. Eles se mostram a ela nos primeiros tempos, para que não haja transição muito brusca; depois se apagam pouco a pouco, à medida que a criança cresce e pode agir em virtude de seu livre-arbítrio. Então a deixam às suas próprias forças, desaparecendo de seus olhos, mas sem perdê-la de vista. A menina em questão, em vez de ser, como pensa o nosso correspondente, médium vidente nascente, bem poderia estar em seu declínio, e não mais gozar dessa faculdade para o resto da vida. (Vide a Revista de fevereiro de 1865: Espíritos instrutores da infância).
ALLAN KARDEC