Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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Abril

Da revelação

No sentido litúrgico, a revelação implica uma ideia de misticismo e de maravilhoso. O materialismo a repele naturalmente, porque ela supõe a intervenção de poderes e de inteligências extra-humanas. Fora da negação absoluta, muita gente hoje faz estas perguntas: Houve ou não uma revelação? A revelação é necessária? Trazendo aos homens a verdade acabada, não teria por efeito impedi-los de fazer uso de suas faculdades, pois ela lhes pouparia o trabalho da pesquisa? Essas objeções nascem da falsa ideia que se faz da revelação. Para começar, tomemo-la na sua acepção mais simples, para segui-la até seu ponto mais alto.

Revelar é dar a conhecer uma coisa desconhecida; é ensinar a alguém aquilo que ele não sabe. Deste ponto de vista, há para nós uma revelação por assim dizer incessante. Qual o papel do professor perante os alunos, senão o de um revelador? Ele lhes ensina o que não eles sabem, o que não teriam tempo nem possibilidade de descobrirem por si mesmos, porque a Ciência é obra coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trouxeram, cada um, o seu contingente de observações de que aproveitam os que vêm depois deles. O ensino é, pois, na realidade, a revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feitas por homens que as conhecem, a outros que as ignoram, e que sem isto as teriam ignorado sempre. Seria mais lógico deixar que eles mesmos procurassem essas verdades? Esperar que eles inventassem a mecânica para lhes ensinar a servir-se do vapor? Não se poderia dizer que, em lhes revelando o que os outros acharam, impede-se o exercício de suas faculdades? Não é, ao contrário, apoiando-se no conhecimento das descobertas anteriores que eles chegam a novas descobertas? Ensinar ao maior número possível de pessoas a maior soma possível de verdades conhecidas é, então, provocar a atividade da inteligência em vez de abafá-la e impelir ao progresso. Sem isto o homem ficaria estacionário.

Mas o professor só ensina o que aprendeu; é um revelador de segunda ordem. O homem de gênio ensina o que ele próprio achou; é o revelador primitivo. Foi ele que trouxe a luz que pouco a pouco se vulgarizou. Onde estaria a Humanidade sem a revelação dos homens de gênio que aparecem de vez em quando?

Mas, que são os homens de gênio? Por que são homens de gênio? De onde eles vêm? Em que se tornam? Notemos que, em sua maioria, eles trazem, ao nascer, faculdades transcendentes e conhecimentos inatos que basta um pouco de trabalho para desenvolver. Eles pertencem realmente à Humanidade, pois nascem, vivem e morrem como nós. Onde, então, beberam esses conhecimentos que não puderam adquirir em vida? Dir-se-á, com os materialistas, que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade e melhor qualidade? Neste caso, eles não teriam mais mérito que um legume maior e mais saboroso que outro.

Dirão, com certos espiritualistas, que Deus os dotou de uma alma mais favorecida que os homens comuns? Suposição também ilógica, pois acusaria Deus de parcialidade. A única solução racional deste problema está na preexistência da alma e na pluralidade das existências. O homem de gênio é um Espírito que viveu mais tempo, que consequentemente adquiriu mais e progrediu mais que os menos adiantados. Encarnando-se, traz o que sabe, e como sabe muito mais que os outros sem ter necessidade de aprender, é o que se chama um homem de gênio. Mas o que sabe não deixa de ser fruto de um trabalho anterior e não o resultado de um privilégio. Antes de renascer ele era, portanto, um Espírito adiantado; reencarna-se para que os outros aproveitem o que ele sabe ou para adquirir mais conhecimentos.

Incontestavelmente os homens progridem por si mesmos e pelos esforços de sua inteligência; mas, entregues às suas próprias forças, esse progresso é muito lento, se não forem ajudados por homens mais adiantados, como o escolar o é por seus professores. Todos os povos têm tidos os seus homens de gênio, que vieram em diversas épocas dar um impulso e tirá-los da inércia.

Como se admite a solicitude de Deus por suas criaturas, por que não se admitiria que Espíritos capazes, por sua energia e pela superioridade de seus conhecimentos, fizessem avançar a Humanidade, encarnando-se, pela vontade de Deus, visando ajudar o progresso num determinado sentido? Que recebessem uma missão, como um embaixador a recebe de seu soberano? Tal é o papel dos grandes gênios. O que vêm eles fazer, senão ensinar aos homens verdades que estes ignoram, e que ainda teriam ignorado por longos períodos, a fim de lhes fornecer um trampolim com a ajuda do qual poderão elevarse mais rapidamente? Esses gênios, que aparecem através dos séculos, como estrelas brilhantes, e que deixam depois de si uma longa esteira luminosa sobre a Humanidade, são missionários ou, se preferirem, messias. Se não ensinassem aos homens senão o que estes sabem, sua presença seria completamente inútil. As coisas novas que eles ensinam, seja na ordem física, seja na ordem moral, são revelações.

Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, com mais forte razão pode suscitá-las para as verdades morais, que são um dos elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias atravessam os séculos.

No sentido especial da fé religiosa, os reveladores são mais geralmente designados sob o nome de profetas ou messias. Todas as religiões têm tido seus reveladores, e embora todos estejam longe de haver conhecido toda a verdade, tinham sua razão de ser providencial, porque eram apropriados ao tempo e ao meio em que viviam, ao gênio particular dos povos aos quais falavam, e aos quais eram relativamente superiores. Malgrado os erros de suas doutrinas, não deixaram de abalar os espíritos e, por isso mesmo, semearam germes do progresso que mais tarde deviam expandir-se, ou se expandirão um dia, à luz do Cristianismo. É, pois, erradamente que lhes atiram o anátema, em nome da ortodoxia, porque dia virá em que todas as crenças, tão diversas pela forma, mas que repousam realmente num mesmo princípio fundamental ─ Deus e a imortalidade da alma ─ fundir-se-ão numa grande e vasta unidade, quando a razão tiver triunfado dos preconceitos.

Infelizmente, em todos os tempos as religiões foram instrumentos de dominação. O papel de profeta tentou as ambições secundárias e viu-se surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias que, com o favor do prestígio desse nome, exploraram a credulidade em proveito de seu orgulho, de sua cupidez ou de sua preguiça, achando mais cômodo viver às custas de seus enganados. A religião cristã não esteve ao abrigo desses parasitas. A esse respeito, chamamos a atenção séria sobre o capítulo XXI de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Haverá falsos cristos e falsos profetas.” A linguagem simbólica de Jesus favoreceu singularmente as interpretações mais contraditórias; esforçando-se cada um em distorcer o sentido, julgou aí encontrar a sanção de seus pontos de vista pessoais, muitas vezes até a justificação das doutrinas mais contrárias ao espírito de caridade e de justiça, que é a sua base. Esse abuso desaparecerá pela própria força das coisas, sob o império da razão. Isto não é o de que nos temos que ocupar aqui. Apenas destacamos as duas grandes revelações sobre as quais se apoia o Cristianismo: a de Moisés e a de Jesus, porque elas tiveram uma influência decisiva na Humanidade. O Islamismo pode ser considerado como um derivado de concepção humana do Mosaísmo e do Cristianismo. Para valorizar a religião que queria fundar, Maomé teve que se apoiar sobre uma suposta revelação divina.

Há revelações diretas de Deus aos homens? É uma questão que não ousaríamos resolver nem afirmativa nem negativamente, de maneira absoluta. A coisa não é radicalmente impossível, mas nada lhe dá a prova certa. O que não poderia ser posto em dúvida é que os Espíritos mais próximos de Deus pela perfeição, se penetram de seu pensamento e podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados, segundo a ordem hierárquica a que pertencem e o grau de seu saber pessoal, eles podem colher suas instruções em seus próprios conhecimentos, ou recebê-los de Espíritos mais elevados, até mesmo de mensageiros diretos de Deus. Esses, falando em nome de Deus, por vezes podem ter sido tomados pelo próprio Deus.

Essas espécies de comunicações nada têm de estranho para quem quer que conheça os fenômenos espíritas e a maneira pela qual se estabelecem as relações entre os encarnados e os desencarnados. As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: pela inspiração pura e simples, pela audição da palavra, pela visão dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições, seja no sonho, seja no estado de vigília, como há muitos exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos. Portanto, é rigorosamente exato dizer que a maior parte dos reveladores são médiuns inspirados, auditivos ou videntes. Daí não se segue que todos os médiuns sejam reveladores e, ainda menos, intermediários diretos da Divindade ou de seus mensageiros.

Só os puros Espíritos recebem a palavra de Deus com a missão de transmiti-la. Mas agora sabe-se que os Espíritos estão longe de ser todos perfeitos, e que há os que tomam falsa aparência. Foi o que fez São João dizer: “Não creiais em todo Espírito, mas verificai antes se são de Deus.” (1ª Ep. Cap. IV, v. 4).

Pode, pois, haver revelações sérias e verdadeiras, como as há apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação manchada de erro ou sujeita a mudança não pode emanar de Deus, porque Deus não pode enganar conscientemente nem enganar-se. É assim que a lei do Decálogo tem todos os caracteres de sua origem, ao passo que as outras leis mosaicas, essencialmente transitórias, por vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. Suavizados os costumes do povo, essas leis caíram em desuso, ao passo que o Decálogo ficou de pé, como o farol da Humanidade. O Cristo dele fez a base de seu edifício, enquanto aboliu as outras leis. Se elas tivessem sido obra de Deus, ele teria evitado nelas tocar. O Cristo e Moisés são os dois grandes reveladores que mudaram a face do mundo, e aí está a prova de sua missão divina. Uma obra puramente humana não teria tal poder.

Uma nova e importante revelação se opera na época atual. É a que nos mostra a possibilidade de comunicação com os seres do mundo espiritual. Este conhecimento não é novo, sem dúvida, mas até os nossos dias ficou de certo modo no estado de letra morta, isto é, sem proveito para a Humanidade. A ignorância das leis que regem essas relações a tinha abafado sob a superstição; o homem era incapaz de tirar dela qualquer dedução salutar; estava reservado à nossa época desembaraçá-la de seus acessórios ridículos, compreender o seu alcance e dela fazer sair a luz que devia iluminar o caminho do futuro.

Não sendo os Espíritos outra coisa senão as almas dos homens, comunicando-nos com eles não saímos da Humanidade, circunstância capital a considerar. Os homens de gênio, que foram os fachos da Humanidade, saíram, pois, do mundo dos Espíritos, como para lá voltaram ao deixar a Terra. Considerando-se que os Espíritos podem comunicar-se com os homens, esses mesmos gênios lhes podem dar instruções sob a forma espiritual, como o fizeram sob a forma corporal; podem instruir-nos após a sua morte, como o faziam em vida; são invisíveis, em vez de serem visíveis, eis toda a diferença. Sua experiência e seu saber não devem ser menores, e se, como homens, sua palavra tinha autoridade, não deve ter menos por estarem no mundo dos Espíritos.

Mas não são apenas os Espíritos superiores que se manifestam, são também os Espíritos de todas as ordens, e isto era necessário para nos iniciar no verdadeiro caráter do mundo dos Espíritos, no-lo mostrando sob todas as suas facetas. Assim, as relações entre o mundo visível e o mundo invisível são mais íntimas e a conexão é mais evidente; vemos mais claramente de onde vimos e para onde vamos. Tal o objetivo essencial dessas manifestações. Todos os Espíritos, seja qual for o grau a que tenham chegado, nos ensinam, pois, alguma coisa, mas como eles são mais ou menos esclarecidos, cabe-nos discernir o que há de bom e de mau em seus ensinamentos, e tirar o proveito que eles comportam. Ora, todos, sejam quais forem, podem nos ensinar ou revelar coisas que ignoramos e que, sem eles, não saberíamos.

Os grandes Espíritos encarnados são individualidades poderosas, sem contradita, mas cuja ação é restrita e necessariamente lenta para se propagar. Se um só dentre eles, ainda que fosse Elias ou Moisés, tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a veracidade de suas asserções, neste tempo de ceticismo? Não o teriam olhado como um sonhador ou um utopista? E admitindo que estivesse com a verdade absoluta, séculos ter-se-iam passado antes que suas ideias fossem aceitas pelas massas. Em sua sabedoria, Deus não quis que assim fosse. Ele quis que o ensino fosse dado pelos próprios Espíritos, e não pelos encarnados, a fim de convencer de sua existência e que ocorresse simultaneamente em toda a Terra, fosse para propagar mais rapidamente, fosse para que se visse na coincidência do ensino uma prova da verdade, de tal forma que cada um teria os meios de se convencer por si próprio. Tais são o objetivo e o caráter da revelação moderna.

Os Espíritos não vêm libertar o homem do trabalho, do estudo e das pesquisas; não lhe trazem nenhuma ciência acabada; naquilo que ele pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue às suas próprias forças. É o que hoje os espíritas sabem perfeitamente. Há muito tempo a experiência demonstrou o erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo conhecimento e toda a sabedoria, e que bastava dirigir-se ao primeiro Espírito que se apresentasse para conhecer todas as coisas. Saídos da Humanidade corporal, os Espíritos são uma de suas faces; como na Terra há os superiores e os vulgares, muitos sabem, pois, científica e filosoficamente, menos que certos homens. Eles dizem o que sabem, nem mais nem menos. Como entre os homens, os mais adiantados nos podem ensinar mais coisas e dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é, pois, dirigir-se às forças sobrenaturais, mas aos seus semelhantes, àqueles mesmos a que se teriam dirigido quando vivos, aos pais, aos amigos, ou a indivíduos mais esclarecidos do que nós. Eis o de que importa persuadir-se e o que ignoram os que não tendo estudado o Espiritismo fazem uma ideia completamente falsa sobre natureza do mundo dos Espíritos e das revelações de além-túmulo.

Qual é, pois, a utilidade dessas manifestações, ou, se se quiser, dessa revelação, se os Espíritos não sabem mais do que nós, ou se não nos dizem tudo o que sabem? Para começar, como dissemos, eles se abstêm de nos dar o que nós podemos adquirir pelo trabalho; em segundo lugar, há coisas que não lhes é permitido revelar, porque nosso grau de adiantamento não as comporta. Mas, isto à parte, as condições de sua nova existência estende o círculo de suas percepções; eles veem o que não viam na Terra; livres dos entraves da matéria e das preocupações da vida corpórea, julgam as coisas de um ponto de vista mais elevado e, por isto mesmo, mais corretamente; sua perspicácia abarca um horizonte mais vasto; eles compreendem os seus erros, retificam suas ideias e se desembaraçam dos preconceitos humanos. É nisto que consiste a sua superioridade sobre a Humanidade corporal e porque seus conselhos podem ser, em relação ao seu grau de progresso, mais judiciosos e mais desinteressados que os dos encarnados. O meio em que se encontram lhes permite, além disso, nos iniciar nas coisas da vida futura, que ignoramos e que não podemos aprender neste em que estamos.

Até hoje o homem só tinha feito hipóteses sobre o seu futuro, por isto suas crenças, nesse ponto, foram divididas em sistemas tão numerosos e tão divergentes, desde o niilismo até as fantásticas descrições do inferno e do paraíso. Hoje são as testemunhas oculares, os próprios atores da vida de alémtúmulo que nos vêm dizer o que a coisa é, o que só eles poderiam fazer. Assim, essas manifestações serviram para nos dar a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do qual não suspeitávamos. Só esse conhecimento seria de uma importância capital, supondo que os Espíritos fossem incapazes de algo nos ensinar a mais.

Uma simples comparação fará compreender melhor a situação.

Um navio carregado de emigrantes parte para longe; leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Sabe-se que o navio naufragou; não restou um traço, nenhuma notícia chegou sobre a sua sorte; pensa-se que todos os viajantes pereceram, e todas as famílias se cobrem de luto. Contudo, toda a equipagem, sem faltar um só homem, chegou a uma terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos vivem felizes, sob um céu clemente. Mas o ignoram. Ora, eis que certo dia outro navio aborda essa terra e encontra os náufragos sãos e salvos. A feliz notícia se espalha com a rapidez do relâmpago. Todos dizem: “Então nossos amigos não estão perdidos!” E dão graças a Deus. Eles não podem ver-se, mas se correspondem. Eles trocam testemunhos de afeição, e eis que a alegria sucede à tristeza.

Tal é a imagem da vida terrena e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna. Esta, semelhante ao segundo navio, nos traz a boa nova da sobrevivência dos que nos são caros, e a certeza de encontrá-los um dia; a dúvida sobre a sorte deles e sobre a nossa não mais existe; o desânimo se apaga ante a esperança.

Mas outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus, julgando a Humanidade madura para penetrar o mistério de seu destino e contemplar com sangue-frio novas maravilhas, permitiu que o véu que separava o mundo visível do mundo invisível fosse levantado. O fato das manifestações nada tem de extra-humano; é a Humanidade espiritual que vem conversar com a Humanidade corporal e lhe dizer:

“Nós existimos, portanto o nada não existe; observai o que somos e vede o que sereis; o futuro vos pertence, como nos pertence. Caminháveis nas trevas; nós vimos clarear a vossa rota e vos franquear o caminho; íeis ao acaso, nós mostramos a meta. A vida terrena era tudo para vós, porque nada víeis além; nós vimos dizer-vos, mostrando a vida espiritual: A vida terrena nada é. Vossa vista parava no túmulo; nós vos mostramos além um horizonte esplêndido. Não sabíeis por que sofreis na Terra; agora, no sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem não tinha frutos aparentes para o futuro; de agora em diante terá um objetivo e será uma necessidade. A fraternidade era apenas uma bela teoria; agora assenta-se numa lei da Natureza. Sob o império da crença de que tudo acaba com a vida, a imensidade é vazia, o egoísmo reina entre vós como senhor, e vossa palavra de ordem é: ‘Cada um por si’; com a certeza do futuro, os espaços infinitos se povoam ao infinito, o vazio e a solidão não estão em parte alguma, a solidariedade liga todos os seres além e aquém do túmulo; é o reino da caridade, com a divisa: ‘Um por todos e todos por um’. Enfim, no termo da vida dizíeis um eterno adeus aos que vos são caros; agora dizeis: ‘Até logo!’”

Tais são, em resumo, os resultados da nova revelação. Ela veio encher o vazio cavado pela incredulidade; levantar a coragem abatida pela dúvida ou pela perspectiva do nada e dar a todas as coisas uma razão de ser. Esse resultado, então, não tem importância, considerando-se que os Espíritos não vêm resolver os problemas da Ciência nem dar o saber aos ignorantes, e aos preguiçosos o meio de enriquecer sem trabalho? Entretanto, os frutos que o homem dele deve colher não são apenas para a vida futura; ele os colherá na Terra pela transformação que essas novas crenças devem necessariamente operar sobre o seu caráter, os seus gostos, as suas tendências e, por consequência, sobre os hábitos e as relações sociais. Pondo fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, elas preparam o reino do bem, que é o reino de Deus.

A revelação tem, pois, por objetivo pôr o homem na posse de certas verdades que ele não poderia adquirir por si mesmo, e isto visando ativar o progresso. Estas verdades se limitam, em geral, a princípios fundamentais destinados a pô-lo no caminho das pesquisas, e não a conduzi-lo pela mão; são balizas que lhe mostram o objetivo. Cabe-lhe a tarefa de estudá-las e deduzir-lhes as aplicações. Longe de libertá-lo do trabalho, são novos elementos fornecidos à sua atividade.


O Espiritismo sem os Espíritos.

Ultimamente vimos uma seita tentar se formar, arvorando como bandeira a negação da prece. Acolhida inicialmente por um sentimento geral de reprovação, não vingou. Os homens e os Espíritos se uniram para repelir uma doutrina que era, ao mesmo tempo, uma ingratidão e uma revolta contra a Providência. Isto não era difícil porque, chocando o sentimento íntimo da imensa maioria, ela carregava em si o seu princípio destruidor. (Revista de janeiro de 1866).

Eis agora uma outra que se ensaia num novo terreno. Tem por divisa: Nada de comunicações dos Espíritos. É muito singular que esta opinião seja preconizada por alguns daqueles que outrora exaltavam a importância e a sublimidade dos ensinamentos espíritas e que se gloriavam do que eles próprios recebiam como médiuns. Terá ela mais chance de sucesso que a precedente? É isto que vamos examinar em poucas palavras.

Essa doutrina, se podemos dar tal nome a uma opinião restrita a algumas pessoas, se fundamenta nos dados seguintes:

“Os Espíritos que se comunicam não são senão Espíritos ordinários que até hoje não nos ensinaram nenhuma verdade nova, e que provam a sua incapacidade, não saindo das banalidades da moral. O critério que pretendem estabelecer sobre a concordância de seu ensino é ilusório, por força de sua insuficiência. É ao homem que cabe sondar os grandes mistérios da natureza e submeter o que eles dizem ao controle de sua própria razão. Nada nos ensinando as suas comunicações, nós as proscrevemos de nossas reuniões. Discutiremos entre nós; buscaremos e decidiremos, em nossa sabedoria, os princípios que devem ser aceitos ou rejeitados, sem recorrer ao assentimento dos Espíritos.”

Notemos que não se trata de negar o fato das manifestações, mas de estabelecer a superioridade do julgamento do homem, ou de alguns homens, sobre o dos Espíritos; numa palavra, de separar o Espiritismo do ensino dos Espíritos, pois as instruções destes últimos estariam abaixo do que pode a inteligência dos homens.

Essa doutrina conduz a uma singular consequência, que não daria uma alta ideia da superioridade da lógica do homem sobre a dos Espíritos. Graças a estes últimos, sabemos que os da ordem mais elevada pertenceram à humanidade corporal que eles ultrapassaram há muito tempo, como o general ultrapassou a classe do soldado da qual ele saiu. Sem os Espíritos, ainda estaríamos na crença de que os anjos são criaturas privilegiadas e os demônios criaturas predestinadas ao mal para a eternidade. “Não, dirão, porque houve homens que combateram essa ideia.” Que seja, mas quem eram esses homens senão Espíritos encarnados? Que influência teve a sua opinião isolada sobre a crença das massas? Perguntai ao primeiro que chegar se conhece ao menos de nome a maioria desses grandes filósofos? Ao passo que vindo os Espíritos a todos os cantos da Terra manifestar-se ao mais humilde como ao mais poderoso, a verdade propagou-se com a rapidez do relâmpago.

Podemos dividir os Espíritos em duas grandes categorias: aqueles que, depois de terem atingido o mais alto ponto da escala, deixaram definitivamente os mundos materiais, e aqueles que, pela lei da reencarnação, ainda pertencem ao turbilhão da humanidade terrena. Admitamos que só estes últimos tenham o direito de comunicar-se com os homens, o que é uma hipótese: Entre eles há aqueles que em vida foram homens esclarecidos, cuja opinião tem autoridade, e que a gente sentir-se-ia feliz de consultar, se ainda fossem vivos. Ora, da doutrina acima resultaria que esses mesmos homens superiores tornaram-se nulidades ou mediocridades ao passar para o mundo dos Espíritos, incapazes de nos dar uma instrução de algum valor, ao passo que a gente se inclinaria respeitosamente diante deles se se apresentassem em carne e osso nas mesmas assembleias onde se recusam a escutá-los como Espíritos. Disso resulta ainda que Pascal, por exemplo, deixou de ser uma luz quando passou a ser Espírito, mas que se ele reencarnasse em Pedro ou Paulo, necessariamente com o mesmo gênio, porquanto nada teria perdido, ele seria um oráculo. Esta consequência é tão rigorosa que os partidários desse sistema admitem a reencarnação como uma das maiores verdades. Enfim, será preciso concluir que aqueles que colocam de muito boa-fé, como supomos, sua própria inteligência tão acima da dos Espíritos, serão eles próprios nulidades ou mediocridades, cuja opinião não terá valor, de sorte que seria preciso crer no que eles dizem enquanto estão vivos, e não crer amanhã, quando estiverem mortos, mesmo que viessem dizer a mesma coisa, e muito menos ainda se disserem que se enganaram.

Sei que objetam a grande dificuldade da constatação da identidade. Essa questão já foi amplamente tratada, de modo que é supérfluo a ela voltar. Certamente não podemos saber, por uma prova material, se o Espírito que se apresenta sob o nome de Pascal é realmente o do grande Pascal. Que nos importa, se ele diz boas coisas? Cabe-nos pesar o valor de suas instruções, não pela forma da linguagem, que sabemos por vezes marcada pelo cunho da inferioridade do instrumento, mas pela grandeza e pela sabedoria dos pensamentos. Um grande Espírito que se comunica por um médium pouco letrado é como um hábil calígrafo que se serve de uma pena ruim. O conjunto da escrita terá o cunho de seu talento, mas os detalhes da execução, que dele não dependem, serão imperfeitos.

Jamais o Espiritismo disse que era preciso fazer abnegação de seu julgamento e submeter-se cegamente ao dizer dos Espíritos; são os próprios Espíritos que nos dizem para submeter todas as suas palavras ao cadinho da lógica, ao passo que certos encarnados dizem: “Não creiais senão no que dizemos e não creiais no que dizem os Espíritos.” Ora, como a razão individual está sujeita ao erro, e o homem, muito geralmente, é levado a tomar sua própria razão e suas ideias como a única expressão da verdade, aquele que não tem a orgulhosa pretensão de se julgar infalível a submete à apreciação da maioria. Por isto é tido como abdicando a sua opinião? Absolutamente. Ele está perfeitamente livre de crer que só ele tem razão contra todos, mas isto não impedirá a opinião da maioria de prevalecer e de ter, em definitivo, mais autoridade que a opinião de um só ou de alguns.

Examinemos agora a questão sob outro ponto de vista. Quem fez o Espiritismo? É uma concepção humana pessoal? Todo o mundo sabe, é o contrário. O Espiritismo é o resultado do ensinamento dos Espíritos, de tal sorte que sem as comunicações dos Espíritos não haveria Espiritismo. Se a doutrina espírita fosse uma simples teoria filosófica nascida de um cérebro humano, ela não teria senão o valor de uma opinião pessoal; saída da universalidade do ensino dos Espíritos, tem o valor de uma obra coletiva, e é por isto mesmo que em tão pouco tempo se propagou por toda a Terra, cada um recebendo por si mesmo, ou por suas relações íntimas, instruções idênticas e a prova da realidade das manifestações.

Pois bem! É em presença deste resultado patente, material, que se tenta erigir em sistema a inutilidade das comunicações dos Espíritos. Convenhamos que se elas não tivessem a popularidade que adquiriram, não as atacariam, e que é a prodigiosa vulgarização dessas ideias que suscita tantos adversários ao Espiritismo. Os que hoje rejeitam as comunicações não parecem essas crianças ingratas que negam e desprezam os seus pais? Não é ingratidão para com os Espíritos, a quem devem o que sabem? Não é servir-se do que eles ensinaram para combatê-los; voltar contra eles, contra seus próprios pais, as armas que eles nos deram? Entre os Espíritos que se manifestam não está o Espírito de um pai, de uma mãe, de seres que nos são os mais caros, dos quais se recebem essas tocantes instruções que vão diretamente ao coração? Não é a eles que devemos o ter sido arrancados da incredulidade, das torturas da dúvida sobre o futuro? E é quando se goza do benefício que se desconhece a mão benfeitora?

Que dizer dos que, tomando sua opinião pela de todo o mundo, afirmam seriamente que agora em parte alguma se querem comunicações? Estranha ilusão que um olhar lançado em torno deles bastaria para fazer desvanecer-se. Da parte deles, que devem pensar os Espíritos que assistem às reuniões onde se discute se se deve condescender em escutá-los, se se deve ou não excepcionalmente permitir-lhes a palavra para agradar aos que têm a fraqueza de dar importância às suas instruções? Lá se encontram sem dúvida Espíritos ante os quais cairiam de joelhos se nesse momento eles se deixassem ver. Já pensaram no preço que podia ser pago por tal ingratidão?

Tendo os Espíritos a liberdade de comunicar-se, independentemente de seu grau de saber, disso resulta uma grande diversidade no valor das comunicações, como nos escritos, num povo em que todo mundo tem a liberdade de escrever, e onde, certamente, nem todas as produções literárias são obras-primas. Segundo as qualidades individuais dos Espíritos, há, pois, comunicações boas pelo fundo e pela forma, e outras, enfim, que nada valem, nem pelo fundo nem pela forma. Cabe-nos escolher. Rejeitá-las todas porque algumas são más, não seria mais racional do que proscrever todas as publicações porque há escritores que produzem vulgaridades. Os melhores escritores, os maiores gênios, não têm coisas fracas em suas obras? Não se fazem seleções do que eles produziram de melhor? Façamos o mesmo em relação à produção dos Espíritos; aproveitemos o que há de bom e rejeitemos o que é mau; mas, para arrancar o joio, não arranquemos o bom grão.

Consideremos, pois, o mundo dos Espíritos como um duplo do mundo corporal, como uma fração da humanidade e digamos que não devemos desdenhar ouvi-los, agora que estão desencarnados, pois não o teríamos feito quando encarnados. Eles estão sempre em nosso meio, como outrora; apenas estão atrás da cortina e não à frente, eis toda a diferença.

Mas, perguntarão, qual o alcance do ensino dos Espíritos, mesmo no que há de bom, se eles não ultrapassam o que os homens podem saber por si mesmos? É bem certo que eles não nos ensinam nada mais? No seu estado de Espírito, eles não veem o que não podemos ver? Sem eles, conheceríamos o seu estado, sua maneira de ser, suas sensações? Conheceríamos, como hoje conhecemos, esse mundo onde talvez estejamos amanhã? Se esse mundo não tem para nós os mesmos terrores, se encaramos sem pavor a passagem que a ele conduz, não é a eles que o devemos? Esse mundo está completamente explorado? Cada dia não nos revela uma nova face dele? E nada significa saber para onde iremos e o que poderemos ser ao sair daqui? Outrora lá entrávamos tateando e tremendo, como num abismo sem fundo; agora esse abismo é resplendente de luz e nele entramos alegres. E ousam dizer que o Espiritismo nada ensinou! (Revista espírita, agosto de 1865: “O que ensina o Espiritismo”).

Sem dúvida o ensino dos Espíritos tem limites. Não se lhe deve pedir senão o que ele pode dar, o que está na sua essência, no seu objetivo providencial; e ele dá muito a quem sabe buscar. Mas tal como ele é, já fizemos todas as suas aplicações? Antes de lhe pedir mais, sondamos as profundezas do horizonte que nos descortina? Quanto ao seu alcance, ele se afirma por um fato material, patente, gigantesco, inaudito nos fastos da história: é que ainda em sua aurora, ele já revoluciona o mundo e abala as forças da Terra. Que homem teria tido tal poder?

O Espiritismo tende para a reforma da humanidade pela caridade. Não é, pois, de admirar que os Espíritos preguem a caridade sem cessar; eles a pregarão ainda por tanto tempo quanto for necessário para desarraigar o orgulho e o egoísmo do coração do homem. Se alguns acham as comunicações inúteis, porque repetem incessantemente as lições de moral, devem ser felicitados, pois são bastante perfeitos para não mais necessitarem delas, mas eles devem pensar que os que não têm tanta confiança em seu próprio mérito e que desejam se melhorar, não se cansam de receber bons conselhos. Não busqueis, pois, tirar-lhes esse consolo.

Esta doutrina tem chance de prevalecer? Como dissemos, as comunicações dos Espíritos fundamentaram o Espiritismo. Repeli-las depois de havê-las aclamado é querer solapar o Espiritismo pela base, tirar-lhe o alicerce. Tal não pode ser o pensamento dos Espíritas sérios e devotados, porque seria absolutamente como o que se dissesse cristão negando o valor dos ensinamentos do Cristo, sob o pretexto que sua moral é idêntica à de Platão. É nessas comunicações que os espíritas encontraram a alegria, a consolação, a esperança. É por elas que compreenderam a necessidade do bem, da resignação, da submissão à vontade de Deus; é por elas que suportam com coragem as vicissitudes da vida; por elas que não há mais separação real entre eles e os objetos de suas mais ternas afeições. Não é enganar-se com o coração humano crer que ele possa renunciar a uma crença que faz a felicidade?

Repetimos aqui o que dissemos a propósito da prece: Se o Espiritismo deve ganhar em influência, é aumentando a soma de satisfações morais que proporciona. Que aqueles que o acham insuficiente tal qual é se esforcem por dar mais que ele; mas não será dando menos, tirando o que faz o seu encanto, sua força e sua popularidade que eles o suplantarão.

O Espiritismo independente

Uma carta que nos foi escrita há algum tempo falava do projeto de dar a uma publicação periódica o título de Journal du Spiritisme Indépendant. Evidentemente sendo essa ideia o corolário da do Espiritismo sem os Espíritos, vamos tentar pôr a questão em seu verdadeiro terreno.

Para começar, o que é o Espiritismo Independente? Independente de quê? Uma outra carta o diz claramente: É o Espiritismo liberto, não só da tutela dos Espíritos, mas de toda direção ou supremacia pessoal; de toda subordinação às instruções de um chefe, cuja opinião não pode fazer lei, porque não é infalível.

Isto é a coisa mais fácil do mundo, pois existe de fato, considerando-se que o Espiritismo, proclamando a absoluta liberdade de consciência, não admite nenhum constrangimento em matéria de crença, e que ele jamais contestou a ninguém o direito de crer à sua maneira em matéria de Espiritismo, como em qualquer outra coisa. Deste ponto de vista nós mesmos nos achamos perfeitamente independente, nós próprio, e pretendemos aproveitar esta independência. Se há subordinação, ela é, pois, inteiramente voluntária; mais ainda, não é subordinação a um homem, mas a uma ideia que é adotada porque convém; que sobrevive ao homem se é justa; que cai com ele ou antes dele, se é falsa.

Para nos libertarmos de ideias alheias, necessariamente devemos ter ideias próprias; naturalmente procuramos fazer que essas ideias prevaleçam, sem o que seriam guardadas para nós próprios; nós as proclamamos, as sustentamos, as defendemos, porque cremos que são a expressão da verdade, porque admitimos a boa-fé, e não o único desejo de derrubar o que existe; o objetivo é o de aliciar o maior número possível de partidários, e eis que aquele que não admite chefe se faz chefe de seita, buscando subordinar os outros às suas próprias ideias. Aquele que diz, por exemplo: “Não devemos mais receber instruções dos Espíritos”, não emite um princípio absoluto? Ele não exerce uma pressão sobre os que as querem, dissuadindo-os de recebê-las? Se ele funda uma reunião sobre essa base, deve excluir os partidários das comunicações, porque, se estes últimos constituíssem maioria, transformá-la-iam em lei. Se os admite e recusa atender aos desejos deles, atenta contra a liberdade que eles têm de reclamar. Se inscrever em seu programa: “Aqui não se dá a palavra aos Espíritos”, então, aqueles que desejam ouvi-los não ousarão contestar a ordem e ali não comparecerão.

Sempre dissemos que uma condição essencial de toda reunião espírita é a homogeneidade, sem o que haverá dissensão. Quem fundasse uma reunião com base na rejeição das comunicações estaria no seu direito; se aí só admitir os que pensam como ele, faz bem, mas não tem o direito de dizer que, porque ele não quer, ninguém deve querer. Certamente ele é livre para agir como entender, mas se quer a liberdade para si, deve querê-la para os outros. Considerando-se que ele defende suas ideias e critica as dos outros, não deverá, se for consequente consigo mesmo, achar mau que os outros defendam as próprias e critiquem as dele.

Em geral, esquecemos que acima da autoridade de um homem há outra à qual quem quer que se faça representante de uma ideia não pode subtrair-se: é a de todo o mundo. A opinião geral é a suprema jurisdição, que sanciona ou derruba o edifício dos sistemas; ninguém pode livrar-se da subordinação que ela impõe. Esta lei não é menos onipotente no Espiritismo. Quem quer que fira o sentimento da maioria e a abandone, deve esperar ser por ela abandonado. Aí está a causa do insucesso de certas teorias e de certas publicações, abstração feita do mérito intrínseco destas últimas, sobre o qual, por vezes, não se tem ilusão.

Não se deve perder de vista que o Espiritismo não está enfeudado num indivíduo, nem nalguns indivíduos, nem num círculo, nem mesmo numa cidade, mas que seus representantes estão no mundo inteiro e que entre eles há uma opinião dominante e profundamente acreditada. Julgar-se forte contra todos, porque se tem o apoio de sua roda, é expor-se a grandes decepções.

Há duas partes no Espiritismo: a dos fatos materiais e a de suas consequências morais. A primeira é necessária como prova da existência dos Espíritos, e foi por ela que os Espíritos começaram; a segunda, que dela decorre, é a única que pode levar à transformação da humanidade pelo melhoramento individual. O melhoramento é, pois, o objetivo essencial do Espiritismo. É para ele que deve tender todo espírita sério. Tendo deduzido essas consequências das instruções dos Espíritos, definimos os deveres que essa crença impõe. O primeiro inscrevemos na bandeira do Espiritismo: Fora da caridade não há salvação, máxima aclamada, em seu aparecimento, como o sol do futuro, que em breve fez a volta ao mundo, tornando-se a palavra de ligação de todos quantos veem no Espiritismo algo mais que um fato material. Por toda parte ela foi acolhida como o símbolo da fraternidade universal, como uma garantia de segurança nas relações sociais, como a aurora de uma nova era, onde devem extinguir-se os ódios e as dissensões. Compreendemos tão bem a sua importância, que já lhe colhemos os frutos; entre os que a tornaram uma regra de conduta, reinam a simpatia e a confiança que fazem o encanto da vida social; em todo espírita de coração, vemos um irmão em cuja companhia nos sentimos felizes, porque sabemos que aquele que pratica a caridade não pode fazer nem querer o mal.

Foi, então, por nossa autoridade privada que promulgamos esta máxima? E se o tivéssemos feito, quem poderia considerá-la má? Mas não; ela decorre do ensino dos Espíritos, os quais a colheram nos do Cristo, onde ela está escrita com todas as letras, como pedra angular do edifício cristão, mas onde ficou enterrada durante dezoito séculos. O egoísmo dos homens cuidava em não fazê-la sair do esquecimento para expô-la à luz plena, porque teria sido pronunciar sua própria condenação; eles preferiram buscar sua própria salvação em práticas mais cômodas e menos aborrecidas. Entretanto, todo o mundo havia lido e relido o Evangelho e, com pouquíssimas exceções, ninguém tinha visto esta grande verdade relegada a segundo plano. Ora, eis que, pelo ensino dos Espíritos, ela ficou imediatamente conhecida e compreendida por todos. Quantas outras verdades o Evangelho encerra, e que surgirão em seu devido tempo! (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XV).

Inscrevendo no frontispício do Espiritismo a suprema lei do Cristo, nós abrimos o caminho para o Espiritismo cristão; assim, dedicamo-nos a desenvolver os seus princípios, bem como os caracteres do verdadeiro espírita, sob esse ponto de vista.

Se outros puderem fazer melhor do que nós, não iremos contra, porque jamais dissemos: “Fora de nós não há verdade.” Nossas instruções, pois, são para os que as acham boas; elas são aceitas livremente e sem constrangimento; nós traçamos uma rota e a segue quem quer; damos conselhos aos que no-los pedem e não aos que julgam deles não precisar; não damos ordens a ninguém, pois não temos qualidade para tanto.

Quanto à supremacia, ela é toda moral e na adesão dos que partilham de nossa maneira de ver; como não estamos investidos, mesmo por aqueles, de nenhum poder oficial, não solicitamos nem reivindicamos nenhum privilégio; não nos conferimos nenhum título, e o único que tomaríamos com os partidários de nossas ideias é o de irmão em crença. Se eles nos consideram como seu chefe, é por força da posição que nos dão os nossos trabalhos, e não em virtude de uma decisão qualquer. Nossa posição é aquela que qualquer um poderia tomar antes de nós; nosso direito é o que tem todo mundo de trabalhar como entende e de correr o risco do julgamento do público.

De que autoridade incômoda entendem libertar-se os que querem o Espiritismo independente, porquanto não há nem poder constituído nem hierarquia fechando a porta a quem quer que seja, de vez que não temos sobre eles nenhuma jurisdição e que se lhes agrada afastar-se de nossa rota, ninguém poderá constrangê-los a aí entrar? Algum dia nos fizemos passar por profeta ou messias? Levariam eles a sério os títulos de sumo sacerdote, de soberano pontífice, mesmo de papa, com que a crítica houve por bem nos gratificar? Não só jamais os tomamos mas os espíritas jamais no-los deram. — Há ascendente em nossos escritos? O campo lhes está aberto, como a nós, para cativarem as simpatias do público. Se há pressão, ela não vem de nós, mas da opinião geral, que põe o seu veto naquilo que lhe não convém, e que sofre, ela própria, o ascendente do ensino geral dos Espíritos. É, pois, a estes últimos que se deve atribuir, em definitivo, o estado de coisas, e é talvez precisamente isso o que faz com que não queiram mais escutá-los. — Há instruções que nós damos? Mas ninguém é forçado a se submeter a elas. — Podem eles lamentar-se de nossa censura? Jamais citamos pessoas, a não ser quando devemos elogiar, e nossas instruções são dadas de forma geral, como desenvolvimento de nossos princípios, para uso de todos. Por outro lado, se elas são más, se nossas teorias são falsas, em que isto pode ofuscá-los? O ridículo, se ridículo há, será para nós. Têm eles em tal monta os interesses do Espiritismo que temem vê-los periclitar em nossas mãos? — Somos muito absoluto em nossas ideias? Somos um cabeça-dura com quem nada se pode fazer? Ah! Meu Deus! Cada um tem os seus pequenos defeitos; nós temos o de não pensar ora branco, ora preto; temos uma linha traçada e dela não nos desviamos para agradar a ninguém. É provável que sejamos assim até o fim.

É a nossa riqueza que eles invejam? Onde estão os castelos, as equipagens e os nossos lacaios? Certamente, se tivéssemos a fortuna que nos atribuem, não seria enquanto dormíamos que ela teria vindo, e muita gente amontoa milhões num labor menos rude. — Que fazemos do dinheiro que ganhamos? Como não pedimos contas a ninguém, a ninguém temos que dá-las; o que é certo é que ele não serve para os nossos prazeres. Quanto a empregá-lo para sustentar agentes e espiões, devolvemos a calúnia à sua fonte. Temos que nos ocupar de coisas mais importantes do que saber o que fazem estes ou aqueles. Se fazem bem, não devem temer qualquer investigação; se fazem mal, isso é problema deles. Se há os que ambicionam a nossa posição, é no interesse do Espiritismo ou no seu próprio? Que a tomem, pois, com todos os seus encargos, e provavelmente não acharão que seja uma sinecura tão agradável quanto supõem. Se acham que conduzimos mal o barco, quem os impedia de tomar o leme antes de nós? E quem os impede ainda hoje? — Lamentam-se de nossas restrições para fazermos partidários? Nós esperamos que venham a nós e não vamos procurar ninguém; nem mesmo corremos atrás dos que nos deixam, porque sabemos que não podem entravar a marcha das coisas; sua personalidade se apaga diante do conjunto. Por outro lado, não somos bastante vão para crer que seja por nossa pessoa que se ligam a nós; evidentemente é pela ideia de que somos o representante. É, pois, a essa ideia que reportamos os testemunhos de simpatia que têm a bondade de nos dar.

Em resumo, o Espiritismo Independente seria aos nossos olhos uma insensatez, porque a independência existe de fato e de direito, e não há disciplina imposta a ninguém. O campo de exploração está aberto a todos; o juiz supremo do torneio é o público; a palma é para quem sabe conquistá-la. Tanto pior para os que caem antes de atingir a meta.

Falar dessas opiniões divergentes que em definitivo se reduzem a algumas individualidades e em parte alguma formam corpo, não será, talvez, perguntarão algumas pessoas, ligar a isto muita importância, amedrontar os adeptos fazendo-os crer em cisões mais profundas do que realmente são? Não é, também, fornecer armas aos inimigos do Espiritismo?

É precisamente para prevenir esses inconvenientes que disto falamos. Uma explicação clara e categórica, que reduz a questão ao seu justo valor, é bem mais própria a assegurar do que a espantar os adeptos. Eles sabem como comportar-se, e aí encontram argumentos para a réplica. Quanto aos adversários, já exploraram o fato muitas vezes, e, porque exageram o seu alcance, é útil mostrar-lhes o que a coisa é. Para mais ampla resposta, remetemos ao artigo “Partida de um adversário do Espiritismo para o mundo dos Espíritos”, da Revista de outubro de 1865.

São Carlos Magno no colégio de Chartres

Este ano, no Colégio de Chartres, tiveram a ideia de juntar à solenidade do banquete de São Carlos Magno uma conferência literária. Dois alunos de filosofia sustentaram uma controvérsia cujo assunto era o Espiritismo. Eis o relato feito pelo Journal de Chartres de 11 de março de 1866:

“Para fechar a sessão, dois alunos de Filosofia, os Srs. Ernest Clément e Gustave Jumentié, colocaram em discussão, num diálogo vivo e animado, uma questão que tem o privilégio, hoje, de apaixonar muitas cabeças: queremos dizer o Espiritismo.

“J. censura em seu companheiro, sempre tão jovial, um ar sombrio e fechado que o faz parecer um autor de melodramas, e lhe pergunta de onde pode provir tão grande mudança.

“C. responde que deitou a cabeça numa doutrina sublime, o Espiritismo, que veio confirmar de maneira irrefutável a imortalidade da alma e outras concepções da filosofia espiritualista. Não é uma quimera, como pretende o seu interlocutor; é um sistema apoiado em fatos autênticos, tais como as mesas girantes, os médiuns, etc.

“─ Certamente, responde J., não serei tão insensato, meu pobre amigo, a ponto de discutir contigo sobre sonhos loucos com os quais todo mundo hoje está completamente desiludido. E quando não se faz mais do que rir na cara dos espíritas, não irei, por uma vã disputa, dar às vossas ideias mais peso do que merecem e lhes fazer a honra de uma refutação séria. As admiráveis experiências dos Davenport demonstraram qual era a vossa força e a fé que era preciso ter em vossos milagres. Mas felizmente elas receberam a justa punição de sua velhacaria. Após alguns dias de um triunfo usurpado, eles foram forçados a voltar à sua pátria, e nós provamos, mais uma vez, que há apenas um passo do Capitólio à Rocha Tarpeia.

“─ Bem vejo, diz C..., por sua vez, que não és partidário do progresso. Ao contrário, deverias ter pena da sorte desses infortunados. Todas as ciências, no começo, tiveram os seus detratores. Não vimos Fulton repelido pela ignorância e tratado como um louco? Não vimos também Lebon desconhecido em sua pátria, morrer miseravelmente sem ter desfrutado de seus trabalhos? Entretanto, hoje a superfície dos mares é sulcada por barcos a vapor, e o gás por toda parte espalha sua viva luz.

“J. ─ Sim, mas essas invenções repousavam em bases sólidas; a Ciência era o guia desses gênios e devia forçar a posteridade esclarecida a reparar os erros de seus contemporâneos. Mas quais são as invenções dos espíritas? Qual o segredo de sua ciência? Todo mundo pôde admirá-la, todo o mundo pôde aplaudir o engenhoso mecanismo de sua varinha...

“C. ─ Ainda piadas? Entretanto, eu te disse que há entre os adeptos do Espiritismo gente muito honesta, gente cuja convicção é profunda.

“J. ─ É verdade, mas o que isso prova? Que o bom-senso não é uma coisa tão comum quanto se pensa, e que, como disse o poeta da Razão: Um tolo sempre acha um mais tolo que o admira.

“C. ─ Boileau não teria falado assim se tivesse visto as mesas girantes. Que dizes contra isto?

“J. ─ Que jamais consegui mover a menor mesinha.

“C. ─ É porque és um profano. A mim, jamais uma mesa resistiu. Fiz girar uma que pesava 200 quilos, com os pratos, as travessas, as garrafas...

“J. ─ Tu me farias tremer a mesa de São Carlos Magno, se o apetite dos convivas não a tivesse tão prudentemente desguarnecido...

“C. ─ Não te falo dos chapéus. Mas eu lhes imprimiria uma poderosa rotação ao mais leve contato.

“J. ─ Não me admiro que tua pobre cabeça tenha virado para eles.

“C. ─ Mas, enfim, piadas não são razões; são o argumento da impotência. Tu não provas nada, nada refutas.

“J. ─ É que tua doutrina não passa de um nada, de uma quimera, de um gás incolor, impalpável ─ eu prefiro o gás de iluminação ─ uma exalação, um vapor, uma fumaça. Palavra, minha escolha está feita, eu prefiro a do champagne. Oh! Miguel de Cervantes! por que nasceste dois séculos mais cedo? É ao teu imortal Dom Quixote que cabia reduzir o Espiritismo a pó. Ele brandiu sua lança valorosa contra os moinhos de vento. Entretanto, bem que eles giravam! Como teria rachado de alto a baixo os armários falantes e sonantes! E tu, seu fiel escudeiro, ilustre Sancho Pança, é a tua filosofia profunda, é a tua moral sublime que seria a única capaz de desnudar essas graves teorias.

“C. ─ Por mais que digais, senhores filósofos, negais o Espiritismo porque não sabeis o que fazer com ele, porque ele vos embaraça.

“J. ─ Oh! Ele não me causa nenhum embaraço, e bem sei o que faria se tivesse voz no capítulo. Espíritas, magnetistas, sonâmbulos, armários, mesas falantes, chapéus girantes com as cabeças que eles sombreiam, eu os mandaria todos passar uma temporada... no hospício.”

“Algumas pessoas ficarão admiradas, talvez escandalizadas de ver os alunos do colégio de Chartres abordarem, sem outras armas além da troça, uma questão que se intitula a mais séria dos tempos modernos. Francamente, depois da aventura recentíssima dos irmãos Davenport, pode censurar-se a gente moça por se divertir com essa mistificação? Essa idade não tem piedade.

“Poderíamos, sem dúvida, voltando a uma de suas frases de empréstimo, ensinar a esses rapazes espertalhões que as grandes descobertas muitas vezes passam pela Rocha Tarpeia antes de chegar ao Capitólio, e que, para o Espiritismo, o dia da reabilitação talvez não esteja longe. Já os jornais nos anunciam que um músico de Bruxelas, que é também espírita, afirma estar em contato com os Espíritos de todos os compositores mortos; que nos vai transmitir suas inspirações, e que dentro em pouco teremos obras realmente póstumas dos Beethoven, dos Mozart, dos Weber, dos Mendelssohn! ... Pois bem! Que seja. Os estudantes são muito condescendentes: quiseram rir, riram; quando for tempo de pedir desculpas, pedirão.”

Ignoramos com que propósito permitiram fosse tratada essa questão numa solenidade de colégio. Contudo, duvidamos que seja por simpatia pelo Espiritismo e visando propagá-lo entre os alunos. Alguém, falando a respeito, dizia que isto se parecia com certas conferências em uso em Roma, nas quais há o advogado de Deus e o advogado do diabo. Seja como for, há que convir que nenhum dos dois campeões era muito forte; sem dúvida teriam sido mais eloquentes se conhecessem melhor o assunto, que não estudaram, como se vê, senão nos artigos de jornais a propósito dos irmãos Davenport.

O fato não deixa de ter sua importância, e se o objetivo foi desviar a mocidade do estudo do Espiritismo, duvidamos muito que tenha sido atingido, porque a juventude é curiosa. Até agora o nome do Espiritismo não tinha transposto senão clandestinamente a porta dos colégios e aí só era pronunciado aos cochichos. Ei-lo agora oficialmente instalado nos bancos, onde irá longe. Considerando-se que a discussão é permitida, será preciso estudar. É tudo o que pedimos. A esse propósito, as reflexões do jornal são muito judiciosas.


Uma visão de Paulo I

O czar Paulo I, que era então apenas o grão-duque Paulo, achando-se em Bruxelas, numa reunião de amigos, onde falavam de fenômenos tidos como sobrenaturais, contou o fato seguinte[1]:

“Uma tarde, ou melhor, uma noite, eu estava nas ruas de São Petersburgo, com Kourakin e dois criados. Tínhamos ficado muito tempo conversando e fumando e nos veio a ideia de sair do palácio incógnitos, para ver a cidade ao luar. Não fazia frio, os dias se alongavam; era um desses momentos mais suaves de nossa primavera, tão pálida em comparação com a do Sul. Estávamos alegres; não pensávamos em nada de religioso nem mesmo de sério, e Kourakin me dizia mil pilhérias sobre os raros transeuntes que encontrávamos. Eu ia à frente; não obstante, um dos nossos me precedia; Kourakin ficava alguns passos atrás e o outro criado nos seguia um pouco mais longe. A lua estava clara a ponto de se poder ler uma carta; as sombras, por oposição, eram longas e espessas.

“Ao dobrar uma rua, percebi, no vão de uma porta, um homem grande e magro, envolto num manto, como um espanhol, com um chapéu militar muito enterrado sobre os olhos. Ele parecia esperar, e quando passamos à sua frente, saiu de seu esconderijo e se colocou à minha esquerda, sem dizer uma palavra, sem fazer um gesto. Era impossível distinguir seus traços; apenas os seus passos, tocando as lajes, emitiam um som estranho, semelhante ao de uma pedra que bate em outra. A princípio fiquei admirado desse encontro; depois pareceu-me que todo o lado que ele quase tocava esfriava pouco a pouco. Senti um frio glacial penetrar-me os membros e, voltando-me para Kourakin, lhe disse:

“─ Eis um singular companheiro que temos!

“─ Que companheiro? Perguntou-me ele.

“─ Ora, este que caminha à minha esquerda e que faz muito ruído, ao que me parece.

“Kourakin abriu os olhos espantados e garantiu-me que não via ninguém à minha esquerda.

“─ Como? Não vês à minha esquerda um homem com um manto, entre mim e a parede? “─ Vossa Alteza toca a própria parede e não há lugar para ninguém entre vós e a parede.

“Estirei um pouco o braço e, com efeito, senti a pedra. Contudo, o homem ali estava, sempre caminhando com o mesmo passo de martelo, regulado pelo meu. Então examinei-o atentamente e vi brilhar sob aquele chapéu de forma singular, como disse, o olho mais brilhante que jamais havia encontrado. Esse olho me olhava e me fascinava; eu não podia fugir de seu raio.

“─ Ah! ─ disse eu a Kourakin, ─ não sei o que experimento, mas é estranho!

“Eu tremia, não de medo, mas de frio. Pouco a pouco sentia o coração tomado por uma impressão que nada pode descrever. O sangue gelava em minhas veias. De repente uma voz cavernosa e melancólica saiu desse manto que ocultava a sua boca e me chamou por meu nome:

“─ Paulo!

“Respondi maquinalmente, levado não sei por que força:

“─ Que queres?

“─ Paulo! repetiu ele. E desta vez o acento era mais afetuoso e mais triste ainda. Nada repliquei, esperei, ele me chamou de novo e em seguida parou de súbito. Fui forçado a fazer o mesmo. “─ Paulo! Pobre Paulo! Pobre príncipe!

“Virei-me para Kourakin, que também havia parado.

“─ Ouves? ─ perguntei-lhe.

“─ Nada absolutamente, meu senhor, e vós?

“Quanto a mim, eu escutava; o lamento ainda soava em meus ouvidos. Fiz um esforço imenso e perguntei a esse ser misterioso quem era ele e o que queria.

“─ Pobre Paulo! Quem sou eu? Sou aquele que se interessa por ti. O que eu quero? Quero que não te ligues muito a este mundo, pois aqui não ficarás muito tempo. Vive como justo, se desejas morrer em paz, e não desprezes o remorso, que é o suplício mais pungente das grandes almas.

“Retomou seu caminho, olhando-me sempre com aquele olho que parecia destacar-se da cabeça, e assim como eu tinha sido forçado a parar como ele, fui forçado a andar como ele. Não me falou mais, nem senti vontade de lhe dirigir a palavra. Eu o seguia, pois era ele que dirigia a marcha, e essa caminhada durou ainda mais de uma hora, em silêncio, sem que eu possa dizer por onde passei. Kourakin e os lacaios não chegavam. Olhai-o, sorrindo: ele ainda pensa que eu sonhei tudo isto.

“Enfim nós nos aproximamos da Praça Grande, entre a ponte do Neva e o Palácio dos Senadores. O homem foi direto para um ponto dessa praça, aonde eu o segui, bem entendido, e ali ele parou novamente. “─ Paulo, adeus. Tu me verás aqui e também em outros lugares.

“Depois, como se ele o tivesse tocado, seu chapéu ergueu-se sozinho, e então eu distingui facilmente o seu rosto. Recuei, malgrado meu: era o olho de águia, era a fronte trigueira, o sorriso severo de meu avô Pedro, o Grande. Antes que eu voltasse da minha surpresa, do meu terror, ele havia desaparecido.

“É neste mesmo lugar que a imperatriz ergue o monumento célebre que em breve vai causar admiração a toda a Europa, e que representa o czar Pedro a cavalo. Um imenso bloco de granito é a base dessa estátua. Não fui eu quem designou à minha mãe aquele lugar, escolhido, ou melhor, adivinhado pelo fantasma. E confesso que aí encontrando essa estátua, não sei que sentimento apoderou-se de mim. Tenho medo de ter medo, a despeito do príncipe Kourakin querer persuadir-me que eu sonhei acordado, passeando pelas ruas. Lembro-me dos mínimos detalhes dessa visão, pois foi uma visão, persisto em sustentar. Parece-me que lá estou ainda. Voltei ao palácio, quebrado, como se tivesse feito uma longa caminhada e literalmente gelado do lado esquerdo. Foram-me necessárias várias horas para me aquecer num leito escaldante e debaixo de cobertores.”

Mais tarde o grão-duque Paulo lamentou ter falado dessa aventura, e procurou pô-la à conta de pilhéria, mas as preocupações que ela lhe causou fizeram pensar que ela encerrava algo de sério.

Lido esse relato na Sociedade de Paris, mas sem intenção de fazer qualquer pergunta a respeito, um dos médiuns recebeu espontaneamente e sem evocação a comunicação seguinte:

(Sociedade de Paris, 9 de março de 1866 – Médium: Sr. Morin)

Na fase nova em que entrastes, com a chave dada pelo Espiritismo, ou revelação dos Espíritos, tudo deve explicar-se, pelo menos o que estais aptos a entender.

A existência da mediunidade vidente foi a primeira de todas as faculdades dadas ao homem para se corresponder com o mundo invisível, causa de tantos fatos até hoje deixados sem explicação racional. Com efeito, lançai um olhar sobre as diferentes Idades da Humanidade, e observai com atenção todas as tradições que chegaram até vós, e por toda parte, nos que vos precederam, encontrareis seres que, pela visão, foram postos em relação com o mundo dos Espíritos.

Desde o início dos tempos, em todos os povos, as crenças religiosas se estabeleceram sobre revelações de visionários ou médiuns videntes.

Muito pequenos por si mesmos, os homens sempre foram assistidos pelos invisíveis que os tinham precedido na erraticidade e que, obedientes à lei de reciprocidade universal, vinham trazer-lhes, por comunicações às vezes inconscientes, os conhecimentos por eles adquiridos e traçar-lhes a conduta a seguir para descobrir a verdade.

A primeira das faculdades mediúnicas, como disse, foi a visão. Quantos adversários não encontrou ela entre os interessados de todos os tempos! Mas não se deveria inferir de minha linguagem que todas as visões são resultado de comunicações reais; muitas são devidas a alucinações de cérebros enfraquecidos, ou o resultado de um plano urdido para servir a um cálculo ou satisfazer ao orgulho.

Crede-me, o médium vidente é de todos o mais impressionável; o que ele viu grava-se melhor no espírito. A partir do instante em que o vosso grão-duque[2], fanfarrão e vão como a maior parte dos de sua raça, viu aparecer-lhe o seu avô, pois era de fato uma visão que tinha sua razão de ser na missão que Pedro o Grande havia aceito em favor de seu neto, e que consistia em conduzi-lo e inspirá-lo, a mediunidade foi permanente no duque e só o medo do ridículo o impediu de contar todas as visões ao seu amigo.

A mediunidade vidente não era a única que ele possuía. Ele também tinha a intuição e a audição. No entanto, muito imbuído dos princípios de sua primeira educação, recusou-se a tirar proveito das sábias advertências que lhe davam seus guias. Foi pela audição que teve a revelação do seu fim trágico. A partir de então, seu Espírito progrediu muito. Hoje não mais temeria o ridículo de crer na visão, por isto vos vem dizer:

“Graças aos meus caros instrutores espirituais e à observação dos fatos, creio na manifestação dos Espíritos, na sobrevivência da alma, na eterna onipotência de Deus, na progressão constante para o bem dos homens e dos povos, e me tenho por muito honrado que uma de minhas puerilidades tenha dado lugar a uma dissertação onde tenho tudo a ganhar e vós nada a perder.

“PAULO.”

[1] Extraído do Grand Journal de 3 de março de 1866 e tirado de uma obra do Sr. Hortensius de Saint Albin, intitulada Le Culte de Satan.


[2] Vários russos assistiam à sessão na qual esta comunicação foi dada. Sem dúvida foi o que motivou a expressão: Vosso grão-duque.



O despertar do senhor de Cosnac

Nosso colega da Sociedade de Paris, Sr. Leymarie, tendo ido há pouco tempo fazer uma viagem a Corrèze, aí se entretinha frequentemente sobre Espiritismo, e recebeu várias comunicações mediúnicas, entre outras a que damos abaixo, e que certamente não podia estar em seu pensamento, pois ele ignorava que jamais tivesse existido no mundo um indivíduo chamado Cosnac. Essa comunicação é notável porque mostra a posição singular de um Espírito que, dois séculos e meio depois de falecido, não se julgava vivo, mas se achava sob a impressão das ideias e da visão das coisas de seu tempo, sem se aperceber quanto tudo tinha mudado desde então.

(Tulle, 7 de março de 1866)

Há dois séculos e meio, inconsciente de minha posição, vejo sem cessar o castelo-forte de meus antepassados, os fossos profundos, o senhor de Cosnac sempre ligado ao seu rei, ao seu nome, às suas lembranças de grandeza; há pajens e valetes por toda parte; homens de armas partindo para uma expedição secreta. Sigo todos esses movimentos, todo esse ruído; ouço os lamentos dos prisioneiros e dos colonos, dos servos temerosos que passam humildemente em frente à casa do senhor; ...e tudo isto não passa de um sonho!...

Meus olhos se abriram hoje para ver tudo ao contrário de meu sonho secular! Vejo uma grande habitação burguesa, mas sem linhas de defesa; tudo está calmo. As grandes árvores desapareceram; dirse-ia que uma mão de fada transformou a morada feudal e a paisagem agreste que a cerca. Por que essa mudança?... Então o nome que trago desapareceu e com ele os bons velhos tempos?... Ah! É preciso perder os meus sonhos, os meus desejos, as minhas ficções, porque um novo mundo acaba de me ser revelado. Outrora bispo, orgulhoso de meus títulos, de minhas alianças, conselheiro de um rei, eu só admitia nossas personalidades, um Deus criando raças privilegiadas, a quem o mundo pertencia de direito, um nome que devia perpetuar-se e, como base desse sistema, a tirania e o sofrimento para o servo e para o artesão.

Algumas palavras puderam despertar-me! ... Uma atração involuntária (outrora eu teria dito diabólica) atraiu-me para aquele que escreve. Ele discutiu com um padre que emprega, para defesa da Igreja, todos os argumentos que outrora eu repetia, ao passo que ele se serve de palavras novas, que explica com simplicidade e, confessá-lo-ei? É seu raciocínio que permite que meus olhos vejam e os meus ouvidos escutem.

Por ele, eu percebo as coisas tais quais são e, o que é mais estranho, depois de tê-lo seguido em mais de um lugar onde ele defende o Espiritismo, eu volto ao sentimento de minha existência como Espírito; aprecio melhor, defino melhor as grandes leis da verdade e da justiça; rebaixo o meu orgulho, causa da catarata que confundiu minha razão, meu juízo, durante dois séculos e meio, entretanto, vede a força do hábito, do orgulho de raça! A despeito da mudança radical operada nos bens de meus avós, nos costumes, nas leis e no governo; malgrado as conversas do médium que transmite meu pensamento; malgrado minha visita aos grupos espíritas de Paris, e mesmo aos Espíritos que se preparam para a emigração para mundos adiantados, ou para reencarnações terrenas, foram-me precisos oito dias de reflexão para me render à evidência.

Nesse longo combate entre um passado desaparecido e o presente que nos arrasta para as grandes esperanças, minhas resistências caíram, uma a uma, como as velhas armaduras quebradas de nossos antigos cavaleiros. Venho fazer ato de fé ante a evidência e eu, de Cosnac, antigo bispo, afirmo que eu vivo, que eu sinto, que eu julgo. Esperando minha reencarnação, preparo minhas armas espirituais; sinto Deus por toda parte e em tudo; não sou um demônio, abjuro meu orgulho de casta, e em meu envoltório fluídico rendo homenagem ao Deus criador, ao Deus de harmonia que chama a si todos os seus filhos, a fim de que depois de vidas mais ou menos acidentadas, eles cheguem purificados às esferas etéreas onde esse Deus tão magnânimo os fará gozar da suprema sabedoria.

DE COSNAC

NOTA: O penúltimo arcebispo de Sens chamava-se Jean-Joseph-Marie-Victoire de Cosnac. Ele tinha nascido em 1764, no Castelo de Cosnac, no Limousin, e aí morreu em 1843. O Boletim da Sociedade Arqueológica de Sens, volume 7, página 301, diz que ele era o décimo primeiro prelado que sua família tinha dado à Igreja. Não é impossível que um bispo com esse nome tenha existido no começo do século dezessete.


Pensamentos Espíritas - Poesia do Sr. Eugêne Nus

As estrofes seguintes são tiradas da obra Os Dogmas Novos, do Sr. Eugène Nus. Embora não seja uma obra mediúnica, certamente irão agradecer-nos a sua reprodução, dados os pensamentos tão graciosamente expressos. Sob o título de Os Grandes Mistérios, o mesmo autor publicou uma outra obra notável, a que faremos referência, e na qual se acham todos os princípios fundamentais da Doutrina Espírita, como solução racional.


Ó mortos amados, que esta Terra

Viu passar conosco misturados,

Revelai-nos o grande mistério:

Onde viveis, mortos amados?

Globos coruscantes, que povoais o espaço,

Irmãs de nossa Terra, estrelas dos céus,

Qual de vós me prepara um lugar,

E me guarda uma sorte sombria ou gloriosa?

Qual de vós recebeu as almas

Dos que eu amava e que perdi?

Num branco raio de vossa luz suave

Desceram em minha fronte sonhadora?

Ou então, presos à sorte da Terra

Pelo destino e pelo amor,

São levados em nossa atmosfera

Lá no alto esperando a hora de voltar?

Ou, ainda mais perto, Espíritos invisíveis,

Estão entre nós, metidos em nossos dias,

Pregando a concórdia aos corações sensíveis

E chorando baixinho, ao encontrá-los surdos?

Ó mistério profundo da alma infinita!

Há quanto tempo em vão eu te procuro.

Já empalideci a fronte, tanto cavei a vida

Sem jamais encontrar o segredo divino.

Mas, ó mortos queridos, que importa onde estejais!

Quer de longe ou de perto, a mim, certo, vireis;

Quantas vezes cedi à vossa voz secreta,

E o vosso calor aqueceu minha fé.

Ó mortos amados, que esta Terra

Viu passar, conosco misturados,

Revelai-nos o grande mistério:

Onde viveis, mortos amados?

Carta do Sr. F. Blanchard ao jornal La Libertè

Pedem-nos a publicação da carta seguinte, dirigida ao senhor redator-chefe do jornal La Liberté.

“Senhor,

“Na verdade é preciso encher as colunas de um jornal, mas quando esse adorno está cheio de insultos dirigidos aos que não pensam como os vossos redatores, pelo menos como o que escreveu essa vulgaridade a respeito dos irmãos Davenport, número de segunda-feira, é permitido achar ruim dar o seu dinheiro aos que não temem tratá-lo de tolo, ignorante, etc. Ora, eu sou espírita e dou graças a Deus. Assim, quando minha assinatura de vosso jornal terminar, tende a certeza de que não será renovada.

“Vossa folha traz um título sublime; não mintais, pois, a esse título, e sabei que esse vocábulo implica o respeito às opiniões de cada um. Sobretudo não esqueçais que Liberdade e Espiritismo são absolutamente a mesma coisa. Essa sinonímia vos espanta? Lede, estudai essa doutrina que vos parece tão negra, e então podereis prestar um serviço à Verdade e à Liberdade, que ergueis tão alto, mas que ofendeis.

“FLORENTIN BLANCHARD

“Livreiro, em Marennes.”

P.S. Se minha assinatura não for muito legível, a chancela que fecha a carta vos esclarecerá.”


Notícias bibliográficas

Sou ESPÍRITA? Por Sylvain Alquié, de Toulouse; broc. in 12, pr. 50 c. Toulouse, chez Caillol et Baylac, 34, rue de la Pomme.

O autor, novo adepto, só conhecia o Espiritismo pelas diatribes dos jornais a propósito dos irmãos Davenport, quando o primeiro artigo publicado por La Discusssion (Revista de fevereiro de 1866), lhe tendo caído às mãos, a o café, fê-lo ver sob outra luz e o levou a estudar. São essas impressões que descreve em sua brochura; passa em revista os raciocínios que o levaram à crença, a cada um dos quais pergunta: Sou espírita? Sua conclusão é resumida no último capítulo por estas simples palavras: eu sou Espírita. A brochura, escrita com elegância, clareza e convicção, é uma profissão de fé sabiamente raciocinada; merece as simpatias de todos os adeptos sinceros, aos quais consideramos um dever a recomendar, lamentando que por falta de espaço estejamos impedidos de justificar a nossa apreciação por algumas citações.


CARTA AOS Srs. DIRETORES E REDATORES DOS JORNAIS ANTIESPÍRITAS, por A. Grelez, oficial de administração aposentado. Broch. in 8.0; pr. 50 c. Paris, Bordeaux.

Esta carta, ou melhor, estas cartas datadas de Sétif, Argélia, foram publicadas pela Union Spirite Bordelaise, em seus números 34, 35 e 36. É uma exposição clara e sucinta dos princípios da doutrina, em resposta às diatribes de certos jornalistas, cujas falsas e injustas apreciações o autor releva com conveniência, Ele não se gaba de os converter, certamente, mas essas refutações, multiplicadas nas brochuras baratas, têm a vantagem de esclarecer as massas sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo, e de mostrar que por toda a parte ele encontra defensores sérios, que não necessitam senão do raciocínio para combater os seus adversários. Devemos, pois, agradecimentos ao Sr. Grelez e felicitações a Union Spirite Bordelaise por haver tomado a iniciativa desta publicação.

FILOSOFIA ESPÍRITA extraída do divino Livro dos Espíritos, por Allan Kardec, por Augustin Babin, de Cognac, l vol. in 12, de 200 pg.; pr. l fr.

O GULA DA FELICIDADE, ou Deveres gerais do homem por amor a Deus; pelo mesmo. Broch. in 12, de 100 pg. pr. boc.

NOÇÕES DE ASTRONOMIA científica, psicológica e moral, pelo mesmo. Broch. in 12 de 100 pg. pr. 75 c. Angaulême, Nadaud et Cie.

Faremos notar que o epíteto de divino é dado ao Livro dos Espíritos, pelo autor e não por nós. Caracteriza a maneira pela qual ele encara a questão. O Sr. Babin é um Espírita de velha data, que leva a doutrina a sério, ao ponto de vista moral. Estas três obras são fruto de uma convicção profunda, inalterável e ao abrigo de toda flutuação. Não é um entusiasta, mas um homem que colheu no Espiritismo tantas forças, consolações e felicidade, que considera como um dever ajudar a propagar uma crença que lhe é cara. Seu zelo é tanto mais meritório quanto totalmente desinteressado. Declara pôr os seus livros ao domínio público, com a condição de ai nada mudar nem aumentar o preço. Ele teve a bondade de pôr uma centena de exemplares à nossa disposição, para distribuição gratuita, pelo que lhe rogamos aceitar aqui os nossos agradecimentos muito sinceros.


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