Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Nova sociedade espírita de Bordeaux

Desde junho de 1866, uma nova Sociedade Espírita, já numerosa, formou-se em Bordéus, em bases que atestam o zelo e a boa vontade de seus membros e uma perfeita interpretação dos verdadeiros princípios da Doutrina. Extraímos do relatório anual publicado pelo Presidente, algumas passagens que darão a conhecer o seu caráter.

Depois de haver falado das vicissitudes que o Espiritismo tem experimentado nessa cidade, circunstâncias que levaram à formação da nova sociedade e de sua organização que “permite àqueles de seus membros que sentem a sua força, desenvolver por palestras, no começo de cada sessão, os grandes princípios da Doutrina, princípios que muitos não combatem senão porque os não conhecem,” acrescenta:

“São essas conversas que até aqui atraíram numerosos ouvintes estranhos à Sociedade. Certamente não tenho a pretensão de crer que todos os nossos ouvintes vêm à nossa casa para instruir-se. Sem dúvida muitos aqui vêm esperando pegar-nos em falta. É a sua tarefa. A nossa é espalhar o Espiritismo nas massas, e a experiência nos provou que o melhor meio, depois de posta em prática a sublime moral que dele decorre, e as comunicações dos Espíritos, é fazê-lo pela palavra.

“Desde que nos constituímos, temos duas sessões semanais. Essa dupla tarefa nos foi imposta pela necessidade de consagrar uma sessão particular (a de quinta-feira) aos Espíritos obsessores e ao tratamento das doenças que eles ocasionam, e reservar uma outra sessão (a de sábado) aos estudos científicos. Acrescentarei, para justificar nossas sessões de quinta-feira, que temos a felicidade de possuir entre nós um médium curador de faculdades bem desenvolvidas, conhecido por sua caridade, sua modéstia e seu desinteresse. Ele é tão conhecido fora quanto no seio de nossa sociedade, de sorte que os doentes não lhe faltam.

“Além disto, há em Bordéus muitos casos de obsessão, e uma sessão por semana especialmente consagrada à evocação e à moralização dos obsessores está longe de ser suficiente, porquanto o médium curador, acompanhado de um médium escrevente, de um evocador e eventualmente por alguns de nossos irmãos, vai ao domicílio dos doentes, a fim de fazer contacto com os obsessores e chegar mais facilmente ao resultado.

“Ao médium curador veio juntar-se um dos nossos irmãos, magnetizador de grande força e de um devotamento a toda prova que, também ajudado pelos bons Espíritos, auxilia o primeiro, de tal sorte que podemos dizer que a Sociedade possui dois médiuns curadores, embora em graus diferentes.”

Segue o relato de várias curas, entre as quais citaremos a seguinte:

A senhorita A..., de doze anos, menina órfã, ao cargo de parentes muito pobres, nos foi apresentada num estado lamentável. Todo o seu corpo era presa de movimentos convulsivos; seu rosto incessantemente contraído fazia caretas horríveis; seus braços e pernas eram constantemente agitados, a ponto de gastar as roupas da cama no espaço de oito dias. Suas mãos, que não podiam segurar nenhum objeto, giravam incessantemente em torno dos punhos. Enfim, em consequência da doença, sua língua se havia tornado de uma espessura extrema, com o que se seguiu o mais completo mutismo.

À primeira vista compreendemos que aí havia uma obsessão, e tendo os nossos guias confirmado, agimos em consequência.

Na opinião de um médico que se achava incógnito em casa da doente enquanto lhe aplicávamos um tratamento fluídico, a doença devia traduzir-se, em três dias, na dança de São Guido e, considerando-se o estado de fraqueza em que se achava a doente, levá-la impiedosamente no máximo em oito dias.

Não detalharei aqui os inúmeros acidentes a que deu lugar esta cura. Não vos falarei dos obstáculos de toda sorte amontoados aos nossos passos, por influências contrárias que tivemos de superar. Direi apenas que dois meses após nossa entrevista com o médico, a menina falava como vós e eu, servia-se das mãos, ia à escola e estava perfeitamente curada.

Eis, acrescenta o Sr. Peyranne, os principais ensinamentos que obtivemos nas sessões consagradas aos Espíritos obsessores:

“Para agir eficazmente sobre um obsessor, é preciso que os que o moralizam e o combatem pelos fluidos, valham mais do que ele. Isto se compreende muito melhor quando nos damos conta que o poder dos fluidos está em relação direta com o adiantamento moral daquele que o emite. Um Espírito impuro chamado a uma reunião de homens morais aí não se sente à vontade; compreende a sua inferioridade, e se tentar enfrentar o evocador, como por vezes acontece, ficai persuadidos de que logo abandonará esse papel, sobretudo se as pessoas componentes do grupo onde ele se comunica se unem ao evocador pela vontade e pela fé.

“Creio que ainda não compreendemos bem tudo quanto podemos sobre os Espíritos impuros, ou melhor, que ainda não sabemos servir-nos dos tesouros que Deus nos pôs nas mãos.

“Sabemos ainda que uma descarga fluídica feita sobre um obsedado por vários espíritas, por meio da cadeia magnética, pode romper o laço fluídico que o liga ao obsessor e tornar-se para este último um remédio moral muito eficaz, provando-lhe a sua impotência.

“Sabemos igualmente que todo encarnado, animado pelo desejo de aliviar o seu semelhante, agindo com fé, pode, por meio de passes fluídicos, senão curar, pelo menos aliviar sensivelmente um doente.

“Termino com as sessões de quinta-feira fazendo notar que nenhum Espírito obsessor continuou rebelde. Todos aqueles de que nos ocupamos terminaram reconhecendo os seus erros, abandonaram as suas vítimas e entraram em melhor caminho.”

A respeito das sessões de sábado, diz ele:

“Essas sessões são abertas, como bem sabeis, por uma palestra feita por um membro da Sociedade, sobre um assunto espírita, e terminadas por um ligeiro resumo feito pelo Presidente.

“Na palestra é deixada ao orador toda a liberdade de linguagem, desde que não saia do quadro traçado por nosso regulamento. Ele encara os diversos assuntos de que trata do seu ponto de vista pessoal; desenvolve-os como bem entende e tira as consequências que julga convenientes, mas nunca poderá com isso atribuir a responsabilidade à Sociedade.

“No fim da sessão, o Presidente resume os trabalhos, e se não estiver de acordo com o orador, contesta-o, fazendo notar ao auditório que, do mesmo modo que o primeiro, não empenha outra responsabilidade além da sua, deixando a cada um o uso do livre-arbítrio e o trabalho de julgar e decidir em sua consciência de que lado está a verdade ou, pelo menos, quem dela mais se aproxima, porque, para mim, a verdade é Deus. Quanto mais dele nos aproximarmos (o que não podemos fazer senão nos depurando e trabalhando pelo nosso progresso) mais próximos estaremos da verdade.”

Chamamos ainda a atenção para o parágrafo seguinte:

“Embora tenhamos excelentes instrumentos para os nossos estudos, compreendemos que seu número se havia tornado insuficiente, sobretudo em face da extensão sempre crescente da Sociedade. A falta de médiuns muitas vezes veio trazer obstáculos à marcha regular dos nossos trabalhos, e compreendemos que era necessário, tanto quanto possível, desenvolver as faculdades latentes na organização de muitos de nossos irmãos. É por isto que acabamos de decidir que uma sessão especial de experiências mediúnicas seria feita aos domingos, às duas da tarde, em nossa sala de reuniões. Julguei que deveria para elas convidar não só nossos irmãos em crença, mas ainda os estranhos que quisessem tornar-se úteis. Essas sessões já deram resultados que ultrapassaram a nossa expectativa. Aí fazemos escrita, tiptologia e magnetismo. Várias faculdades muito diversas foram ali descobertas e dali saíram dois sonâmbulos que parecem ser muito lúcidos.”

Não podemos senão aplaudir o programa da Sociedade de Bordéus e felicitá-la por seu devotamento e pela inteligente direção de seus trabalhos. Um dos nossos colegas, de passagem por aquela cidade, assistiu ultimamente a algumas sessões e trouxe a mais favorável impressão. Perseverando nesse caminho, ela só pode obter resultados cada vez mais satisfatórios, e jamais faltarão elementos para a sua atividade. A maneira pela qual procede para o tratamento das obsessões é ao mesmo tempo notável e instrutiva, e a melhor prova que essa maneira é boa, é que dá resultado. Nós voltaremos a isto ulteriormente, em artigo especial.

Seria supérfluo pôr em destaque a utilidade das instruções verbais que ela designa sob o simples nome de palestras. Além da vantagem de exercitar no manejo da palavra, elas têm outra, não menor, de provocar um estudo mais completo e mais sério dos princípios da Doutrina; de facilitar a sua compreensão; de ressaltar a sua importância e de trazer, pela discussão, a luz sobre pontos controvertidos. É o primeiro passo para conferências regulares que não podem deixar de ter lugar mais cedo ou mais tarde e que, vulgarizando a doutrina, contribuirão poderosamente para modificar a opinião pública, falseada pela crítica malévola ou ignorante daquilo que ela é.

Refutar as objeções e discutir os sistemas divergentes são pontos essenciais que importa não negligenciar, e que podem fornecer matéria para instruções úteis. Não é apenas um meio de dissipar os erros que poderiam ser propagados, mas é fortalecer-se pessoalmente para as discussões particulares que se pode ter que sustentar. Nessas instruções orais, sem dúvida muitos serão assistidos pelos Espíritos, e daí não podem deixar de sair médiuns falantes. Aqueles que se contêm por medo de falar em público, devem lembrar-se que Jesus dizia aos seus apóstolos: “Não vos inquieteis com o que haveis de dizer; as palavras vos serão inspiradas no momento.”

Um grupo de província, que podemos contar entre os mais sérios e melhor dirigidos, introduziu essa sistemática em suas reuniões, que igualmente se realizam duas vezes por semana. É exclusivamente composto de oficiais de um regimento. Mas aí não é uma opção deixada a cada membro; é uma obrigação que lhes é imposta pelo regulamento, de falar cada um por sua vez. Em cada sessão o orador designado para a próxima reunião deve preparar-se para desenvolver e comentar um capítulo ou um ponto da doutrina. Disso resulta para eles uma aptidão maior para fazer a propagação e defender a causa, se necessário.

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