Impressões de um médium inconsciente a propósito do romance do futuro
(Pelo Sr. Eug. Bonnemère)
O Sr. Bonnemère teve a gentileza de nos transmitir, sobre o jovem bretão de que se trata no prefácio do interessante livro que publicou, sob o título de Roman de l’Avenir, detalhes circunstanciados que completam os que demos a respeito na Revista de julho de 1867. Estes novos informes são do mais alto interesse e os nossos leitores serão gratos ao autor, como nós também, por havê-los posto à nossa disposição. Faremos, a respeito, algumas observações oportunas.
Senhor,
Um amigo me envia, com muito atraso, o número da Revista Espírita no qual noticiais o Roman de l’Avenir, que assinei com o meu nome. Permiti que vos dê alguns esclarecimentos a respeito de uma passagem desse artigo, na qual se acha esta reflexão: “Disseram-nos que quando escreveu este livro, o autor não conhecia o Espiritismo; isto parece difícil, etc.”
Entretanto, isto é rigorosamente exato. Confesso-o com toda sinceridade e humildade, senhor, ter cometido o erro de não vos oferecer este volume; jamais fui à vossa casa; eu nem mesmo conhecia o título da Revista Espírita, e minha biblioteca não possui nenhuma obra sobre as questões que aí são tratadas; eis por que chamei o meu jovem bretão de extático natural, ao passo que para vós é um médium.
Contei, no prefácio do Roman de l’Avenir, em consequência daquela estranha aventura, que eu, que fui um historiador na minha maturidade, ia tornar-me um romancista depois de haver ultrapassado os cinquenta anos. Os leitores aí não viram mais que um desses processos familiares aos autores para dar algo de picante ao seu relato. Atesto sob palavra que, com exceção de um detalhe que nada tem a ver com o caso, e que não me é ainda permitido revelar, tudo o que afirmo nesse prefácio é verdadeiro e, longe de exagerar, não digo tudo.
Meu jovem bretão explica em vinte passagens de seus volumosos manuscritos (perto de 18.000 páginas) as causas e os efeitos dessa espécie de condenação aos trabalhos forçados que sofreu, maldizendo-a.
“Todas as noites, escreveu ele a 24 de agosto de 1864, deito-me muito fatigado, após um dia de trabalho; adormeço; uma hora depois desperto; estou triste, parece que me envolve um crepe negro; estou sem palavras, mas não sofro. Algo de vago está em meu cérebro; é sob essa impressão que meus olhos por vezes se fecham com lágrimas no coração. Depois, pela manhã, desperto com um mutismo persistente, isto é, com intoleráveis sofrimentos no lado esquerdo e no coração, que não me permitem conciliar o sono. Experimento um estado de angústia intolerável que me força a levantar-me. Sufoco, pois há muita coisa em mim que é preciso despejar.
Então vou à minha mesa e lá sou constrangido a trabalhar.
“Quanto mais sofro, mais e melhor trabalho. Tenho então uma extrema expansão da imaginação. Quando uma obra está completa e não mais necessita senão ser passada para o papel, invento outra, sem jamais buscar, e sempre escrevendo mecanicamente aquela que chegou à maturação.
“Quando devo servir de instrumento a algum dos amigos desaparecidos, seu nome ressoa em meu ouvido. Quando escrevo, esse nome não me deixa, e experimento, mesmo em meio aos meus sofrimentos físicos, por vezes agudos, sobretudo no coração, uma espécie de doçura em escrever o que ele põe em mim. É como uma inspiração, mas involuntária. Todas as fibras de meu ser moral são postas em alerta. Então sinto mais vivamente; parece que vibro; todos os ruídos são mais fortes, mais perceptíveis; vivo vibrações intelectuais e morais ao mesmo tempo.
“Quando estou nesse estado de mutismo, sinto-me como que envolto numa rede, que estabelece uma separação entre o meu ser intelectual e a massa dos objetos materiais ou das pessoas que me rodeiam. É um isolamento absoluto em meio à multidão; minha palavra e meu espírito estão alhures. O ser inspirador que vem em mim não me deixa mais. É uma espécie de penetração íntima dele em mim; sou como uma esponja embebida de seu pensamento. Eu a pressiono e dela sai a quintessência de sua inteligência, desprendida de todas as mesquinharias de nossa vida aqui embaixo.
“Por vezes, mesmo sem mutismo, quer esteja só, quer com outros, pouco importa, converso, rio, percebo tudo na conversação dos outros, e contudo trabalho; as ideias se acumulam, mas fugidias; eu ali estou mas não estou mais; volto a mim e não tenho mais lembrança de nada; mas o estado de mutismo faz reviver as imagens apagadas.
“Se for um romance que devo escrever, inicialmente me vem o título, depois vêm os acontecimentos; às vezes é questão de um ou dois dias para compô-lo inteirinho. Se se trata de coisas mais sérias, o título igualmente me é ditado, depois os pensamentos superabundam, até mesmo quando pareço mais distraído. A elaboração se faz a seu tempo, até o instante em que o acúmulo se derrama sobre o papel.
“Muitas vezes, depois de ter concluído um longo romance, e quando não tinha nada pronto para escrever nos meus cadernos, me aconteceu de experimentar uma estranha sensação, como se em meu cérebro houvesse um vazio. Então sofro muito mais; é um estado de completa atonia, até o momento em que a cabeça se enche de outra coisa.
“Geralmente, desde a tarde, ou de manhã, na cama, elaboro algum novo plano. Por vezes, entretanto, levanto-me sem pensar em nada do que vou fazer e sem ter nada elaborado de antemão. Acesa a vela, ponho-me diante do papel. Então escuto do lado esquerdo, no ouvido esquerdo, um nome, uma palavra, um assunto de romance em duas ou três palavras. Isto basta. As palavras se sucedem sem interrupção; os acontecimentos vêm alinhar-se por si mesmos sob a pena, sem um instante de interrupção, até que a história fique terminada. Quando as coisas se passam assim, é que não se trata senão de uma novela muito curta, que será terminada numa sessão.
“Há ainda em meu estado uma particularidade muito singular. É quando me inquieto pela saúde de alguém de quem gosto. Verdadeiramente isto se torna para mim uma doença atroz, e creio que sofro mais que o próprio doente. Durante alguns instantes sou tomado na cabeça, no estômago, no coração e nas entranhas por uma pressão cheia de angústias que vai até a dor extrema. Há um momento em que só a cabeça sofre. Então um ou vários nomes de remédios estão em mim. Não quero falar, porque duvido e temo agir mal, quando tanto gostaria de aliviar! Mas essas palavras voltam sem cessar; capitulo, cedo e as digo com esforço, ou as escrevo.
Então está acabado, não penso mais nisto e tudo se apaga.”
Não sei se me engano, mas me parece aí encontrar todos os caracteres da possessão de outrora, e creio mesmo que outrora queimaram muitos possessos que não eram mais feiticeiros do que o meu jovem extático. Evidentemente ele vive uma dupla vida, das quais nenhuma tem relação com a outra. Vi-o muitas vezes, quando uma das pessoas que a ele se confiavam vinha dizer-lhe que ela sofria; o olhar fixo, as pálpebras afastadas, a pupila dilatada, ele parecia escutar, procurar. ─ “Sim, sim!” murmurava ele como se repetisse para si mesmo o que lhe dizia uma voz interior. Então ele indicava o remédio necessário, conversava um momento sobre a natureza e a causa do mal, depois, pouco a pouco, tudo se dissipava, e ele não tinha consciência nem do instante em que começara o êxtase, nem do momento em que havia terminado. Esse rápido momento de ausência para ele não existia, e evitava-se de falar com ele sobre o caso.
“Quero e devo viver na sombra, escreveu ele alhures. Dizem-me: Estais numa sociedade desviada, devido à má direção. O bem que se faz sem interesse, emanando de uma fonte natural, mas um pouco extraordinária, parece culposo, ridículo, pelo menos indiscreto. Não é necessário expor-se à zombaria, por vezes ao desprezo, devido a uma boa ação. Conforme o velho provérbio: “Falta confessada é meio perdoada”, pode-se dizer que uma boa ação oculta está meio perdoada. Então há que fazer o bem aos outros sem que o suspeitem. É a verdadeira caridade, que dá sem esperar retribuição.”
Tudo isto não se realiza sem lutas. Por vezes ele se revolta contra essa obsessão tirânica. Vi-o resistir, debater-se com cólera, depois, dominado por uma vontade superior à sua, entregar-se ao trabalho.
Ele tinha anunciado um grande e extenso trabalho sobre a liberdade. Declaravase incapaz de fazê-lo, e protestava que não o faria. Uma manhã escreveu:
“Não, quero lutar ainda hoje. Sinto que a forma ainda não veio bastante clara... Quando, pois, me deixareis em repouso?... Estou arrebentado!... Ah! Chamais a isto uma liberdade de pensamento, que infundis em mim! Mas é a escravidão aos vossos pensamentos, que se devia dizer! Pretendeis que eu tenha o seu germe, e que é prestar-me um imenso serviço desenvolvê-la, a ela ajuntando o que podeis incluir! “Começarei por esta questão já tratada: “Que é a vida?”
Uma espécie de anúncio de programa a ser desenvolvido continuava por dez páginas de sua escrita, e era escrito em quarenta minutos.
Todas essas coisas, que me pareceram muito estranhas, sê-lo-ão menos para vós, Senhor. Em suma, tenho fé em seu poder misterioso, porque ele me curou de mais de uma afecção que talvez tivesse embaraçado a Faculdade. Jamais alguém está doente junto a ele, sem que ele escreva sua receitazinha. Muitas vezes o faz a despeito de sua vontade, percebendo que não ligarão para as suas prescrições. Um dia ele terminava por estas linhas uma consulta a propósito de uma pessoa doente do peito e da qual cuidavam mal, em sua opinião, e que ele acreditava que ainda poderia salvar:
“Eis o que posso dizer. Façam o que julgarem conveniente. Estas são as minhas observações, eis tudo. Não terei que me censurar por tê-las deixado dormir em mim.
Nada deve ser feito sem o conselho do médico. Com naturezas como são todos, isto só pode servir como indicação. Que ninguem fale comigo sobre isso; que ninguem me agradeca. Eu não sou um homem, mas uma alma que desperta ao grito do sofrimento, e que não mais se recorda, depois que chegou o alívio.”
Quando ele não tinha doentes à mão, prescrevia remédios gerais para afecções que a ciência oficial ainda não sabe curar. Que valor têm essas prescrições? Ignoro. Contudo, o que vi, o que pude experimentar, me leva a crer que talvez pudessem abrir caminho para novos processos curativos.
Se um indivíduo que jamais abriu um livro de medicina prescreve, sem ter consciência disso, remédios que podem curar, em muitos casos, a maioria dos males atualmente considerados incuráveis, parece-me incontestável que tais coisas lhe são reveladas por uma força desconhecida e misteriosa. Em presença de semelhante fato, a questão me parece resolvida. Deve-se aceitar como demonstrado que existem sensitivos aos quais é concedido servir de intermediários dos amigos desaparecidos que, não mais tendo órgãos ao serviço de sua vontade, vêm usar a voz ou a mão desses seres privilegiados, quando querem curar o nosso corpo ou firmar a nossa alma, esclarecendo-a sobre coisas que lhes é permitido nos dar a conhecer.
É possível arriscar uma experiência in anima vili, sobre os bichos da seda, por exemplo, que quase não servem mais senão para serem atirados aos vermes dos túmulos, tão doentes que eles estão. A questão é séria, porque as perdas causadas pela moléstia que os afeta eleva-se anualmente a centenas de milhões de francos. O resultado a obter vale a pena que se tente esta primeira experiência que, em todo caso, se não der resultado, não agravará a situação.
Aqui pode haver um mistério, mas afirmo que não há mistificação. Se sou mistificado, restar-me-ão sempre os cento e tantos romances e novelas desse romancista sem o saber, cuja publicação vai ocupar agradavelmente os lazeres dos últimos anos de minha vida, e dos quais deixarei a maior parte para outros depois de mim.
Neste inverno publicarei outro romance de meu jovem extático bretão. No prefácio transcreverei textualmente tudo quanto ele escreveu sobre a cura dos bichos da seda; acrescentarei até mesmo, se quiserem, suas receitas para prevenir e para curar a cólera e as doenças do peito.
Pouco importa que riam de mim durante alguns dias, mas é muito importante que esses segredos dos quais o acaso me faz depositário, não morram comigo, se contiverem algo de sério, e que se saiba se existem relações possíveis entre as inteligências superiores do outro lado da vida e as inteligências dóceis deste lado de cá. Creio que seria muito importante para nós estabelecer relações cada vez mais seguidas com esses mortos de boa vontade que parecem dispostos a prestar-nos semelhantes serviços.
Aceitai, etc...
E. BONNEMÈRE
O quadro das impressões desse jovem, traçado por ele próprio, é tanto mais notável quanto, tendo sido escrito na ausência de qualquer conhecimento espírita, não pode ser o reflexo de ideias colhidas num estudo qualquer, que lhe tivesse exaltado a imaginação. É a impressão espontânea de suas sensações, de onde ressaltam, com a maior evidência, todos os caracteres de uma mediunidade inconsciente; a intervenção de inteligências ocultas ai é expressa sem ambiguidades; a resistência que ele opõe, a própria contrariedade que ele sente, provam sobejamente que ele age sob o império de uma vontade que não é a sua. Esse jovem é, pois, um médium em toda a acepção da palavra, e, além disto, dotado de faculdades múltiplas, porquanto é ao mesmo tempo médium escrevente, falante, vidente, auditivo, mecânico, intuitivo, inspirado, impressivo, sonâmbulo, médico, literato, filósofo, moralista, etc. Mas, nos fenômenos descritos, não há nenhum dos caracteres do êxtase. É, pois, impropriamente que o Sr. Bonnemère o qualifica de extático, pois é precisamente uma das faculdades que lhe faltam. O êxtase é um estado particular bem definido, que não se apresentou no caso de que se trata. Também não parece dotado da mediunidade de efeitos físicos, nem da mediunidade curadora.
Há médiuns naturais, como há sonâmbulos naturais, que agem espontaneamente e inconscientemente; em outros, nos quais os fenômenos mediúnicos são provocados pela vontade, a faculdade é desenvolvida pelo exercício, como em certos indivíduos o sonambulismo é provocado e desenvolvido pela ação magnética.
Há, pois, os médiuns inconscientes e os médiuns conscientes. A primeira categoria, à qual pertence o jovem bretão, é a mais numerosa; é quase geral e podemos dizer, sem exagero, que em cem indivíduos, noventa são dotados dessa aptidão em graus mais ou menos ostensivos. Se cada um se estudasse, encontrar-seia neste gênero de mediunidade, que reveste as mais diversas aparências, a razão de uma porção de efeitos que não se explicam por nenhuma das leis conhecidas da matéria.
Esses efeitos, quer sejam materiais ou não, aparentes ou ocultos, para ter essa origem, não são menos naturais. O Espiritismo nada admite de sobrenatural nem de maravilhoso; segundo ele, tudo entra na ordem das leis da Natureza. Quando a causa de um efeito é desconhecida, há que buscá-la na realização dessas leis, e não em sua perturbação provocada pelo ato de uma vontade qualquer, o que seria o verdadeiro milagre. Um homem investido do dom de milagres teria o poder de suspender o curso das leis que Deus estabeleceu, o que não é admissível. Mas sendo o elemento espiritual uma das forças ativas da Natureza, dá lugar a fenômenos especiais que não parecem naturais senão porque se obstinam em buscar a sua causa apenas nas leis da matéria. Eis por que os espíritas não fazem milagres, e jamais tiveram a pretensão defazê-los. A qualificação de taumaturgos, que a crítica lhes dá por ironia, prova que ela fala de uma coisa da qual ignora a primeira palavra, pois que chama de fazedores de milagres àqueles mesmos que vêm destruí-los.
Outro fato que ressalta das explicações dadas na carta acima é que o Roman de l’Avenir é efetivamente uma obra mediúnica do jovem bretão, e não podemos deixar de ser grato ao Sr. Bonnemère por ter declinado a sua paternidade. Pensamentos tão elevados e tão profundos nada tinham que pudessem causar-nos admiração, vindos de sua parte, por isso não tínhamos hesitado em atribuí-los a ele, e estimamos ainda mais seu caráter e seu talento de escritor, que já era de nosso conhecimento. No entanto, eles haurem uma importância particular da fonte de onde emanam. Por mais estranha que pareça essa fonte, à primeira vista, ela nada tem de surpreendente para quem quer que conheça o Espiritismo. Fatos desse gênero se veem frequentemente, e não há um só espírita um pouco esclarecido que deles não se dê conta perfeitamente, sem recorrer aos milagres.
Assim, atribuindo a obra ao Sr. Bonnemère, e aí encontrando fatos e pensamentos que parecem hauridos da própria Doutrina, parecia-nos difícil que o autor a ignorasse. Considerando-se que ele afirma o contrário, acreditamo-lo sem esforço e encontramos em seu próprio desconhecimento a confirmação do fato, tantas vezes repetido em nossos escritos, que as ideias espíritas de tal modo estão na Natureza, que elas germinam fora do ensinamento do Espiritismo, e que uma multidão de criaturas são ou se tornam espíritas sem o saber e por intuição. Às suas ideias apenas falta o nome. O Espiritismo é como essas plantas cujas sementes são levadas pelo vento e brotam sem cultivo. Ele nasce espontaneamente no pensamento, sem estudo prévio. O que podem, então, contra ele aqueles que sonham com o seu aniquilamento, ferindo o tronco materno?
Assim, eis um médium completo, notável, e um observador, que não temem, nem um nem outro, o que seja o Espiritismo, e o observador, por uma dedução lógica do que vê, chega por si mesmo a todas as consequências do Espiritismo. O que ele constata, de saída, é que os fatos que ele tem sob os olhos lhe apresentam, no mesmo indivíduo, uma dupla vida, da qual uma não tem qualquer relação com a outra. Evidentemente, essas duas vidas, nas quais se manifestam pensamentos divergentes, estão submetidas a condições diferentes. Elas não podem ambas provir da matéria; é a constatação da vida espiritual; é a alma que se vê agir fora do organismo. Este fenômeno é muito vulgar; produz-se diariamente durante o sono do corpo, nos sonhos, no sonambulismo natural ou provocado, na catalepsia, na letargia, na dupla vista, no êxtase. O princípio inteligente isolado do organismo é um fato capital, porque é a prova de sua individualidade. A existência, a independência e a individualidade da alma podem, assim, ser resultado da observação. Se, durante a vida do corpo, a alma pode agir sem o concurso dos órgãos materiais, é porque ela tem existência própria; a extinção da vida corpórea não arrasta, pois, forçosamente, a da vida espiritual. Vemos, por aí, onde se chega, de consequência em consequência, por uma dedução lógica.
O Sr. Bonnemère não chegou a esse resultado por uma teoria preconcebida, mas pela observação. O Espiritismo não procedeu de modo diverso. O estudo dos fatos precedeu a Doutrina, e os princípios não foram formulados, como em todas as ciências de observação, senão à medida que eram deduzidas da experiência. O Sr. Bonnemère fez o que pode fazer todo observador sério, porque os fenômenos espontâneos que ressaltam do mesmo princípio são numerosos e vulgares. Apenas, não tendo o Sr. Bonnemère visto senão um ponto, só pôde chegar a uma conclusão parcial, ao passo que o Espiritismo, tendo abarcado o conjunto desses fenômenos tão complexos e tão variados, pôde analisá-los, compará-los, controlar uns pelos outros, e aí encontrar a solução de um maior número de problemas.
Levando-se em conta que o Espiritismo é um resultado de observações, quem tivesse olhos para ver, razão para raciocinar, paciência e perseverança para ir até o fim, poderia chegar a constituir o Espiritismo, assim como poder-se-ão reconstituir todas as ciências; mas, estando feito o trabalho, é tempo ganho e esforço poupado. Se fosse necessário recomeçar incessantemente, não haveria progresso possível.
Como os fenômenos espíritas estão na Natureza, eles ocorreram em todas as épocas, e precisamente porque tocam a espiritualidade de maneira mais direta, eles estão misturados em todas as teogonias. Vindo numa época menos acessível aos preconceitos, esclarecido pelo progresso das ciências naturais que faltavam aos primeiros homens, e por uma razão mais desenvolvida, o Espiritismo pôde observar melhor do que se fazia outrora. Ele vem hoje separar o que é verdadeiro da mistura introduzida pelas crenças supersticiosas, filhas da ignorância.
O Sr. Bonnemère se felicita pelo acaso, que lhe pôs em mãos os documentos fornecidos pelo jovem bretão. O Espiritismo não admite o acaso mais do que o sobrenatural nos acontecimentos da vida. O acaso, que por sua natureza é cego, mostrar-se-ia por vezes singularmente inteligente. Então, pensamos que foi intencionalmente que tais documentos vieram à sua posse, depois que ele foi posto em condições de constatar a sua origem. Nas mãos de um jovem, teriam ficado perdidos, e é sem dúvida o que não devia acontecer. Era preciso, pois, que alguém se encarregasse de tirá-los da obscuridade, e parece que coube ao Sr. Bonnemère essa missão.
Quanto ao valor desses documentos, a julgar pela amostra dos pensamentos contidos no Roman de l’Avenir, certamente ali deve haver coisas excelentes. Serão todas boas? É outra questão. Sob este ponto de vista, sua origem não é uma garantia de infalibilidade, visto que os Espíritos, não passando de almas dos mortos, não têm a ciência soberana. Sendo seu adiantamento relativo, há uns mais esclarecidos que outros; se há uns que sabem mais que os homens, também há homens que sabem mais que certos Espíritos. Até hoje os Espíritos foram considerados como seres fora da Humanidade, e dotados de faculdades excepcionais. Eis um erro capital, que gerou tantas superstições e que o Espiritismo veio retificar. Os Espíritos fazem parte da Humanidade, e até que tenham atingido o ponto culminante da perfeição, para o qual gravitam, estão sujeitos a enganar-se. Eis por que jamais se deve fazer abnegação do livre-arbítrio e do raciocínio, mesmo em relação ao que vem do mundo dos Espíritos. Jamais devemos aceitar qualquer coisa de olhos fechados e sem o controle severo da lógica. Sem nada prejulgar sobre os documentos em questão, eles poderiam conter coisas boas e más, verdadeiras e falsas, e, por consequência, teríamos que fazer uma escolha judiciosa, para a qual os princípios da Doutrina podem fornecer úteis indicações.
Entre esses princípios, há um que importa não perder de vista: é o objetivo providencial da manifestação dos Espíritos. Eles vêm para atestar a sua existência e para provar ao homem que nem tudo acaba para ele com a vida corporal; vêm instruí-lo sobre sua condição futura, excitá-lo a adquirir o que é útil ao seu futuro e o que ele pode levar, isto é, as qualidades morais, mas não para lhe dar meios de se enriquecer. O cuidado de sua fortuna e da melhoria de seu bem-estar material deve ser coisa de sua própria inteligência, de sua atividade, de seu trabalho e de suas buscas. Se assim não fosse, o preguiçoso e o ignorante poderiam enriquecer-se sem esforço, pois bastaria dirigir-se aos Espíritos para obter uma invenção lucrativa, descobrir tesouros, ganhar na bolsa ou na loteria. Assim, todas as esperanças de fortuna baseadas no concurso dos Espíritos falharam deploravelmente.
É o que nos inspira algumas dúvidas sobre a eficácia do processo para os bichos da seda, processo que teria por efeito fazer ganhar milhões, e endossar a ideia que os Espíritos podem dar os meios de enriquecer, ideia que perverteria a própria essência do Espiritismo. Seria, pois, imprudente criar quimeras a esse respeito, porque poderia aqui se dar como com certas receitas que deviam fazer correr o Pactolo em certas mãos, e que só conseguiram ridículas mistificações. Não é, entretanto, uma razão para calar o processo e para desprezá-lo. Se o sucesso deve ter um resultado mais importante e mais sério que a fortuna, talvez semelhante revelação seja permitida. Mas, na incerteza, é bom não embalar esperanças que poderiam ser desfeitas. Aprovamos, pois, o projeto do Sr. Bonnemère de publicar as receitas que foram dadas ao seu jovem bretão, porque entre elas podemos encontrar algumas úteis, sobretudo para as doenças.