Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Epidemia na Ilha Maurícia

Há alguns meses um dos nossos médiuns, o Sr. T..., que frequentemente cai em sonambulismo espontâneo sob a magnetização dos Espíritos, nos disse que a ilha Maurício era devastada, naquele momento, por uma epidemia terrível que dizimava a população. Essa previsão realizou-se, até com circunstâncias agravantes. Acabamos de receber de um dos nossos correspondentes da ilha Maurício uma carta, datada de 8 de maio, da qual extraímos as passagens seguintes:

“Vários Espíritos nos anunciaram, uns claramente, outros em termos proféticos, um flagelo destruidor prestes a nos ferir.

“Tomamos estas revelações do ponto de vista moral e não do ponto de vista físico. Subitamente uma moléstia estranha rompe nesta pobre ilha; uma febre sem nome, que reveste todas as formas, começa suavemente, hipocritamente, depois aumenta e derruba todos os que ela atinge. É agora uma verdadeira peste. Os médicos não a entendem. Todos os que foram atingidos não puderam ser curados até agora. São terríveis acessos que vos prostram e vos torturam durante pelo menos doze horas, atacando, cada um a seu turno, cada órgão importante. Depois o mal cessa durante um ou dois dias, deixando o doente abatido até o próximo acesso, e ele se vai assim, mais ou menos rapidamente, para o termo fatal.

“Para mim, vejo em tudo isto um desses flagelos anunciados, que devem retirar do mundo uma parte da geração presente, que tem como finalidade operar uma renovação que se tornou necessária. Vou dar-vos um exemplo das infâmias que aqui se passam:

“O quinino em dose muito forte detém os acessos apenas por alguns dias. É o único específico capaz de parar, ao menos momentaneamente, os progressos da cruel moléstia que nos dizima.

“Os negociantes e farmacêuticos tinham-no em certa quantidade, que lhes custava cerca de 7 francos a onça. Ora, como esse remédio era forçosamente comprado por todo mundo, aqueles senhores aproveitaram a ocasião para elevar o preço normal da poção de um indivíduo, de l para 15 francos. Depois o quinino veio a faltar, por isso aqueles que o tinham, ou que o recebiam pelo correio, vendiam ao preço fabuloso de 2,50 francos o grão, no varejo, e no atacado a 675 e 800 francos a onça. Numa poção entram pelo menos 30 grãos, o que eleva a poção para 75 francos. Assim, só os ricos podiam comprar, e aqueles negociantes viam com indiferença milhares de infelizes expirarem ao seu redor, por falta do dinheiro necessário para adquirir o medicamento.

“Que dizeis disto? Ah! É história! Ainda neste momento o quinino chega em quantidade. As farmácias regurgitam. Não obstante, os farmacêuticos não querem dar uma dose por menos de 12,50 francos. Assim, os pobres morrem sempre, olhando desolados esse tesouro que não podem alcançar!

“Eu mesmo fui atingido pela epidemia e estou na quarta recaída. Arruíno-me com o quinino. Isto prolonga-me a existência, mas se, como receio, as recaídas continuarem, palavra, caro senhor, é muito provável que em pouco tempo terei o prazer de assistir como Espírito às vossas sessões parisienses e nelas tomar parte, se Deus o permitir. Uma vez no mundo dos Espíritos, estarei mais perto de vós e da Sociedade do que estou na ilha Maurício. Num pensamento e sem fadiga transporto-me às vossas sessões, e sem temer o mau tempo. Aliás, não tenho o menor receio, eu vo-lo juro; sou muito sinceramente espírita para tanto. Todas as minhas precauções estão tomadas, e se vier a deixar este mundo, sereis avisado.

“Enquanto se espera, caro senhor, tende a bondade de pedir aos meus irmãos da Sociedade Espírita que unam as suas preces às nossas pelas infelizes vítimas da epidemia, pobres Espíritos muito vinculados à matéria, na maioria, e cujo desprendimento deve ser penoso e longo. Oremos também por aqueles, infelizes de outra maneira, que ao flagelo da moléstia acrescentam o da desumanidade.

“Nosso pequeno grupo está disperso há três meses; todos os membros foram mais ou menos atingidos, mas até agora nenhum morreu.

“Recebei, etc.”

É preciso ser verdadeiramente espírita para encarar a morte com esse sangue frio e essa indiferença, quando ela estende seus estragos em redor de nós e quando se sentem os seus ataques. É que, em semelhantes casos, a fé séria no futuro, tal qual só o Espiritismo pode dar, proporciona uma força moral que é, ela própria, um poderoso preservativo, assim como foi dito a propósito da cólera. (Revista de novembro de 1865). Isto não quer dizer que nas epidemias os espíritas sejam necessariamente poupados, mas não há dúvida que em tais casos, até agora eles têm sido os menos atingidos. É preciso dizer que se trata de espíritas de coração, e não dos que são espíritas apenas em aparência.

Os flagelos destruidores que devem punir a Humanidade, não sobre um ponto, mas por toda superfície do globo terrestre, são pressentidos em toda parte pelos Espíritos.

A comunicação que segue, verbal e espontânea, foi dada a esse respeito e após a leitura da carta acima.

(Sociedade de Paris, 21 de junho de 1867.) (Médium, Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo)

“Aproxima-se a hora, a hora marcada no grande e perpétuo quadrante do infinito, a hora na qual vai começar a operar-se a transformação do vosso globo, para fazê-lo gravitar para a perfeição. Muitas vezes vos foi dito que os mais terríveis flagelos dizimariam as populações. Não é preciso que tudo morra para se regenerar? Mas, o que é isto? A morte não é senão a transformação da matéria. O Espírito não morre, apenas muda de habitação. Observai, e vereis começar a realização de todas essas previsões. Oh! Como são felizes aqueles que nessas terríveis provações foram tocados pela fé espírita! Eles ficam calmos no meio da tormenta, como o marinheiro aguerrido em meio à tempestade.

“Eu, neste momento personalidade espiritual, muitas vezes fui acusado por personalidades terrestres de brutalidade, de dureza, de insensibilidade!... É verdade, contemplo com calma todos esses flagelos destruidores, todos esses terríveis sofrimentos físicos. Sim, atravesso, sem me emocionar, todas essas planícies devastadas, juncadas de restos humanos! Mas se posso fazê-lo, é que minha visão espiritual vai além desses sofrimentos; é que, antecipando-se sobre o futuro, ela se apoia no bem-estar geral, que será a consequência desses males passageiros para a geração futura, para vós mesmos que fazeis parte dessa geração, e que então recolhereis os frutos que tiverdes semeado.

“Espírito de conjunto, olhando do alto de uma esfera onde morava (muitas vezes fala de si na terceira pessoa), seu olhar fica enxuto. Contudo, sua alma palpita, seu coração sangra em face de todas as misérias que a Humanidade deve atravessar, mas a visão espiritual repousa do outro lado do horizonte, contemplando o resultado que será a sua consequência certa.

“A grande emigração é útil, e aproxima-se a hora em que se deve efetuar... ela já começa... A quem será ela fatal ou proveitosa? Olhai bem, observadores; considerai os atos desses exploradores dos flagelos humanos, e distinguireis, mesmo com os olhos do corpo, os homens predestinados à falência. Vede-os ávidos à carniça, duros no ganho, presos como à sua vida a todas as posses terrenas, e sofrendo mil mortes quando perdem uma parcela do que, entretanto, ser-lhes-á preciso deixar... Como será terrível para eles a pena de talião, porque no exílio que os aguarda, verão ser-lhes recusado um copo d’água para estancar a sede!... Olhai-os, e neles reconhecereis, sob as riquezas que acumulam à custa dos infelizes, os futuros humanos decaídos! Considerai seus trabalhos, e vossa consciência vos dirá se esses trabalhos devem ser pagos lá no alto, ou embaixo! Olhai-os bem, homens de boa vontade, e vereis que o joio começa, desde esta Terra, a ser separado do bom grão.

“Minha alma é forte, minha vontade é grande! ─ Minha alma é forte porque sua força é o resultado de um trabalho coletivo de alma a alma; minha vontade é grande porque tem como ponto de apoio a imensa coluna formada por todos os sentimentos de justiça e de bem, de amor e de caridade. Eis por que sou forte, eis por que sou calmo para olhar; eis por que seu coração, que bate como se fosse estourar dentro do peito não se comove. Se a decomposição é o instrumento necessário à transformação, assiste, ó minha alma, calma e impassível, a essa destruição!”

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