Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Abril

Estudos sobre os possessos de Morzine
Causas da obsessão e meios de combate
(IV artigo)

Numa segunda edição de sua brochura sobre a epidemia de Morzine[1], o Dr. Constant responde ao Sr. de Mirville, que criticou o seu cepticismo acerca dos demônios, e o censurou por não ter estado nos lugares. “Ele não passou de Thonon, certamente não por medo dos diabos, mas do caminho, e nem por isso se julga o homem menos informado. Censura-me ainda, como a outro médico, de ter partido de Paris com juízo formado. Em bom direito, se ele me permite, posso devolver a censura: Estaremos, então, ex aequo, nesse ponto.”

Não sabemos se o Sr. de Mirville lá teria ido com a ideia preestabelecida de não ver qualquer afecção física nos doentes de Morzine, mas é bem evidente que o Dr. Constant lá foi com a de não ver nenhuma causa oculta. O preconcebido, num sentido qualquer, é a pior condição para um observador, porque então tudo vê e tudo ajusta a seu ponto de vista, negligenciando o que pode haver de contrário. Certamente não é esse o meio de chegar à verdade.

A opinião bem arraigada do Sr. Constant no que concerne à negação das causas ocultas, resulta de que ele, a priori, repele como errônea qualquer observação e qualquer conclusão que se afaste de sua maneira de ver, nos relatórios feitos antes do seu. Assim, enquanto o Sr. Constant insiste com veemência sobre a constituição débil, linfática e raquítica dos habitantes, a insalubridade da região, a má qualidade e a insuficiência da alimentação, o Sr. Arthaud, médico chefe dos alienados de Lyon, que foi enviado a Morzine, diz em seu relatório que “a constituição dos habitantes é boa e as escrófulas são raras, e que a despeito de todas as suas pesquisas, só descobriu um caso de epilepsia e um de imbecilidade.” Mas, replica o Sr. Constant, “o Sr. Arthaud passou bem poucos dias nessa região. Ele não pode ter visto mais que uma pequeníssima parte da população, e é muito difícil obter informações sobre as famílias.”

Um outro relatório assim se exprime sobre o mesmo assunto:

“Nós, abaixo assinados, declaramos que tendo ouvido falar dos casos extraordinários tidos como possessão de demônios, ocorridos em Morzine, transportamo-nos para aquela paróquia, onde chegamos a 30 de setembro último (1857), para testemunhar o que se passava e examinar tudo com maturidade e prudência, esclarecendo-nos por todos os meios fornecidos pela presença no lugar, a fim de poder formar um juízo razoável em semelhante matéria.

“1º. ─ Vimos oito jovens que estão libertas e cinco em estado de crise. A mais jovem tem dez anos e a mais velha, vinte e dois.

“2º. ─ Conforme tudo quanto nos dizem e que pudemos observar, essas jovens estão no mais perfeito estado de saúde; fazem todas as obras e trabalhos peculiares à sua posição, de modo que não se vê, quanto aos outros hábitos e ocupações, nenhuma diferença entre elas e as outras jovens da montanha.

3º. ─ Vimos essas moças, as não curadas, nos momentos lúcidos. Ora, podemos assegurar que nada foi observado nelas, quer idiotia, quer predisposição para as crises atuais, por falhas de caráter ou por exaltação de espírito. Aplicamos a mesma observação às que estão curadas. Todas as pessoas que consultamos sobre os antecedentes e os primeiros anos dessas moças nos asseguraram que elas eram, do ponto de vista da inteligência, perfeitamente normais.

4º. ─ A grande maioria dessas moças pertence a famílias em situação financeira confortável.

5º. ─ Asseguramos que pertencem a famílias que gozam de boa reputação, dentre as quais algumas são de uma virtude e de uma piedade exemplares.”

Daremos oportunamente a continuação deste relatório concernente a certos fatos. Queríamos apenas constatar que nem todos viram as coisas com cores tão negras quanto o Sr. Constant, que apresenta os habitantes como na extrema miséria e dos mais cabeçudos, teimosos e mentirosos, posto que no fundo bons e sobretudo piedosos, ou antes, devotos. Ora, quem tem razão? O Sr. Constant, sozinho, ou vários outros, não menos honrados, que certificam ter bem observado? De nossa parte, não hesitamos em nos colocarmos ao lado dos últimos, em razão daquilo que vimos e em razão do que nos disseram várias autoridades médicas e administrativas da região, e em mantermos a opinião emitida em nossos artigos precedentes.

Para nós, a causa primeira não está nem na constituição nem no regime higiênico dos habitantes, porque, como fizemos notar, há muitas regiões, a começar pelo Valais, limítrofe, em que as condições de toda natureza, morais e outras, são infinitamente mais desfavoráveis e onde, entretanto, não grassou essa doença. Nós a veremos já circunscrita, não ao vale, mas apenas aos limites da comuna de Morzine. Se, como afirma o Dr. Constant, a causa é inerente à localidade, ao gênero de vida e à inferioridade moral dos habitantes, perguntamos, ainda, por que o efeito é epidêmico e não endêmico, como a papeira e o cretinismo no Valais? Por que as epidemias do mesmo gênero, de que fala a história, se produziram nas casas religiosas onde nada falta, e que se achavam nas melhores condições de salubridade? Aliás, eis o quadro que o Sr. Constant faz do caráter da gente de Morzine:

“Uma demora prolongada, visitas sucessivas e diárias a quase todas as casas, permitiram-me chegar a outras constatações.

“Os habitantes de Morzine são suaves, honestos, de grande piedade; seria talvez mais justo dizer de grande devoção.

“São cabeçudos e dificilmente renunciam à ideia que adotaram, o que, além de outros inconvenientes, acrescenta o de se tornarem teimosos, outra fonte de malestar e de miséria, porque as conciliações são raras. Mas só em exceções muito raras é que a justiça criminal encontra culpados entre eles.

“Eles têm um aspecto grave e sério, que parece um reflexo da natureza áspera que os rodeia e que lhes imprime uma espécie de cunho particular, que os faria tomar por membros de uma vasta comunidade religiosa. Com efeito, sua existência difere pouco da de um convento.

“Seriam inteligentes, se seu raciocínio não fosse obscurecido por uma porção de crenças absurdas ou exageradas, por um invencível arrastamento para o maravilhoso, legado pelos séculos passados e do que não os curou o século atual.

“Todos gostam dos contos e histórias impossíveis. Posto que fundamentalmente honestos, alguns mentem com imperturbável aprumo, para sustentar o que disseram, nesse gênero, se bem acabem, estou convicto, por mentir de boa-fé, por crer em suaspróprias mentiras, sem deixar de crer nas dos outros. Para ser justo, é preciso dizer que a maioria não mente: apenas conta inexatamente o que viu”.

Aos nossos olhos, a causa é independente das condições físicas dos homens e das coisas. Se formulamos tal opinião, não é com o propósito de ver por toda parte a ação dos Espíritos, pois ninguém admite sua intervenção com mais circunspecção do que nós, mas pela analogia que notamos entre certos efeitos e os que nos são demonstrados como resultado evidente de uma causa oculta.

Mas, ainda uma vez, como admitir essa causa quando não se acredita na existência dos Espíritos? Como admitir, com Raspail, as afecções produzidas por seres microscópicos, se se nega a existência desses animais, porque não os vimos? Antes da invenção do microscópio, Raspail teria passado por um louco, por ver animais em toda a parte. Hoje que se está um pouco mais esclarecido, não se veem Espíritos. Para isto, entretanto, só falta pôr óculos.

Não negamos que haja efeitos patológicos na afecção de que se trata, porque a experiência no-los mostra, por vezes, em casos semelhantes, mas dizemos que são consecutivos e não causais. Se um médico espírita tivesse ido a Morzine, teria visto o que outros não viram, sem, contudo, desprezar os fatos fisiológicos.

Depois de haver falado do Sr. de Mirville que, diz ele, para no caminho, acrescenta o Sr. Constant:

“O Sr. Allan Kardec fez a viagem completa. Nos números de dezembro de 1862 e janeiro de 1863 da sua Revista Espírita, já publicou dois artigos, apenas preliminares. O exame dos fatos virá no número de fevereiro. Enquanto esperamos, ele nos adverte que a epidemia de Morzine é semelhante à que caiu sobre a Judeia, ao tempo do Cristo. É bem possível.

“Com o risco de incorrer na censura de alguns leitores que acharão que eu provavelmente faria melhor se não falasse dos espíritas, aconselho aos que lerem esta brochura a ler o mesmo assunto nos autores que acabo de citar.

“Contudo, não deveriam enganar-se quanto ao meu convite. Quanto mais leitores sérios houver para as obras sobre o Espiritismo, tanto mais cedo será feita completa justiça a uma crença, a uma ciência, como dizem, sobre a qual talvez eu pudesse arriscar uma opinião, depois de tantas vezes haver verificado um de seus resultados: o contingente bastante notável que ele fornece anualmente à população dos asilos de alienados”.

Pode-se ver por aí com que ideias o Sr. Constant foi a Morzine. Certamente não procuraremos convencê-lo de nossa opinião. Apenas lhe diremos que o resultado da leitura das obras espíritas foi demonstrado pela experiência totalmente contrário ao que ele espera, pois que essa leitura, em vez de fazer pronta justiça a essa pretensa ciência, anualmente multiplica os adeptos aos milhares; que hoje, no mundo inteiro, são cinco ou seis milhões, dos quais a décima parte só na França. Se ele objetasse que são apenas tolos e ignorantes, nós lhe perguntaríamos por que essa doutrina conta, entre seus mais firmes partidários, com tão grande número de médicos em todos os países, o que atesta nossa correspondência, o número de médicos assinantes da Revista e o dos que presidem ou fazem parte de grupos e sociedades espíritas, sem falar do número não menor de adeptos pertencentes a posições sociais às quais só se chega pela inteligência e pela instrução. Isto é um fato material que ninguém pode negar. Ora, como todo efeito tem uma causa, a causa desse efeito é que o Espiritismo não parece a todo mundo tão absurdo quando alguns se gabam de dizer.

─ Infelizmente é verdade, exclamam os adversários da doutrina. Assim, não temos mais que cobrir o rosto pela sorte da Humanidade que marcha para a decadência.

Resta a questão da loucura, o bicho-papão com o auxílio do qual procuram apavorar as criaturas, que quase não se abalam, como bem se vê. Quando esse meio estiver esgotado, certamente inventarão outro. Enquanto se espera, remeteremos o leitor para o artigo publicado no número de fevereiro último, sob o título de A Loucura Espírita.

Os primeiros sintomas da epidemia de Morzine se declaravam em março de 1857 em duas meninas de doze anos. Em novembro seguinte o número de doentes era de vinte e sete, e em 1861 atingiu o máximo de cento e vinte.

Se relatássemos os fatos com base no que vimos, poderiam dizer que vimos apenas o que quisemos ver. Além do mais, chegamos no declínio da doença e não ficamos o bastante para tudo observar. Citando as observações alheias, não nos podem acusar de somente ver por nossos olhos.

Tomamos do relatório de que acima fizemos um extrato, as seguintes observações:

“Essas moças falam francês durante a crise com uma admirável facilidade, mesmo as que, fora da crise, só sabem algumas palavras.

“Uma vez em crise, as moças perdem completamente qualquer reserva, seja para o que for, e também perdem completamente toda afeição de família.

“A resposta é sempre tão pronta e fácil, que parece vir antes da interrogação. Essa resposta é sempre ad rem[2], exceto quando quem fala responde por tolices, insultos ou uma recusa formal.

“Durante a crise o pulso fica calmo e, no maior furor, o personagem tem um ar de domínio, como alguém que tivesse a cólera sob seu comando, sem parecer nem exaltado nem tomado de um acesso de febre.

“Notamos, durante as crises, uma insolência incrível, que ultrapassa qualquer limite, em meninas que, fora daí, são delicadas e tímidas.

“Durante a crise há em todas essas meninas um caráter de impiedade permanente, levada além de todos os limites, dirigida contra tudo o que lembra Deus, os mistérios da religião, Maria, os santos, os sacramentos, a prece, etc.. O caráter dominante desses momentos terríveis é o ódio a Deus e a tudo quanto a ele se refere.

“Constatamos muito bem que essas meninas revelam coisas que chegam de longe, bem como fatos passados de que não tinham nenhum conhecimento. Também revelaram os pensamentos de várias pessoas.

“Algumas vezes anunciam o começo, a duração e o fim das crises, o que farão mais tarde e o que não farão.

“Sabemos que deram respostas exatas a perguntas feitas em línguas desconhecidas, como alemão, latim etc.

“No estado de crise as moças têm uma força desproporcional à sua idade, pois são precisos três ou quatro homens para conter, durante o exorcismo, meninas de dez anos.

“É de notar-se que, durante a crise, as meninas não se maltratam, nem pelas contrações, que parecem de natureza a deslocar os membros, nem pelas quedas, nem pelas pancadas violentas que se dão.

“Em suas respostas há sempre, invariavelmente, distinção de várias entidades: a filha e ele, o demônio e o danado.

“Fora das crises as meninas não têm qualquer lembrança do que disseram ou fizeram, quer a crise tenha durado todo o dia, quer tenham feito trabalhos prolongados ou desempenhado encargos dados no estado de crise.

“Para concluir, diremos:

“Que a nossa impressão é de que tudo isto é sobrenatural, na causa e nos efeitos, segundo as regras da lógica sã e conforme tudo quanto a teologia, a história eclesiástica e o Evangelho nos ensinam e nos contam.

“Declaramos que, em nossa opinião, há uma verdadeira possessão do demônio.

“Em fé do que, assinado: ***

“Morzine, 5 de outubro de 1857.”

Eis como o Sr. Constant descreve as crises dos doentes, segundo suas observações:

“Em meio à mais completa calma, raramente à noite, de repente sobrevêm bocejos, espreguiçamento, tremores e pequenos solavancos de aspecto coreico nos braços; pouco a pouco, em curto espaço de tempo, como por efeito de descargas sucessivas, tais movimentos se tornam mais rápidos, depois mais simples e em breve não parecem mais que exagero de movimentos fisiológicos; a pupila se dilata e se contrai sucessivamente e os olhos participam do movimento geral.

“Então as doentes, cujo aspecto a princípio parecia exprimir terror, entram num estado de furor que vai sempre crescendo, como se a ideia que as domina produzisse dois efeitos quase simultâneos: depressão e excitação logo depois.

“Elas batem sobre móveis com força e vivacidade, começam a falar, ou melhor, a vociferar; o que elas dizem, quase todas, quando não superexcitadas por perguntas, se reduz a estas palavras indefinidamente repetidas: ‘S... nome! S... c...!... s... vermelho!’ (Elas chamam vermelhos aqueles em cuja piedade elas não acreditam.) Algumas acrescentam blasfêmias.

“Se junto a elas não se acha nenhum espectador estranho; se não lhes fizerem perguntas, repetem incessantemente a mesma coisa, sem nada acrescentar. Se for o contrário, elas respondem ao que pergunta o espectador, e mesmo aos pensamentos que elas lhes incutem, às objeções que elas preveem, mas sem se afastarem de sua ideia dominante, a ela relacionando tudo o que elas dizem. É sempre assim: ‘Ah! tu crês, b... incrédulo, que nós somos loucas, que ape

nas temos devaneios! Somos danadas, s... n... de D...! Nós somos diabos do inferno!’

“E como é sempre um diabo que fala por sua boca, o suposto diabo por vezes conta o que fazia na Terra e o que fez depois, no inferno etc.

“Em minha presença acrescentavam invariavelmente:

“Não são os teus s... médicos que nos curarão! Nós nos f... perfeitamente de teus remédios! Bem podes fazer a menina tomar, elas a atormentarão, fá-la-ão sofrer; mas a nós elas nada farão, porque nós somos diabos! Nós precisamos de santos sacerdotes, de bispos etc.’

“Isso tudo não lhes impede de insultar os sacerdotes, quando estão presentes, sob o pretexto de que eles não são bastante santos para ter ação sobre os demônios.

Diante do prefeito e dos magistrados, era sempre a mesma ideia, mas com outras palavras.

“À medida que elas falam, sempre com a mesma veemência, suas fisionomias têm um só aspecto: o do furor. Por vezes o pescoço incha e a face se injeta; noutras, empalidece, como nas pessoas normais, que coram ou empalidecem, conforme a constituição, num violento acesso de cólera. Os lábios estão sempre úmidos de saliva, o que levou a dizer que as doentes espumavam.

“Limitados inicialmente às partes superiores, os movimentos vão ganhando o tronco e os membros inferiores; a respiração torna-se ofegante; as doentes redobram o furor, tornam-se agressivas, deslocam os móveis e atiram as cadeiras, os tamboretes, tudo quanto lhes cai às mãos, sobre os assistentes; precipitam-se sobre estes para lhes bater, tanto nos parentes quanto nos estranhos; jogam-se por terra, sempre com os mesmos gritos; rolam, batem as mãos no solo ou no peito, no ventre, na garganta, e procuram arrancar alguma coisa que parece incomodar nesse ponto. Viram-se e reviram-se de um salto. Eu vi duas que, levantando-se como que por uma mola, voltavam-se para trás de tal modo que a cabeça tocava o solo ao mesmo tempo que os pés.

“Esta crise dura mais ou menos dez, vinte minutos, meia hora, conforme a causa que a provocou. Se é a presença de um estranho, sobretudo de um padre, é muito raro que termine antes que a pessoa se afaste. Nesse caso, entretanto, os movimentos convulsivos não são contínuos. Depois de terem sido violentos, enfraquecem e param para recomeçar imediatamente, como se a força nervosa esgotada repousasse um momento para se refazer.

“Durante a crise, nem o pulso nem o batimento do coração se aceleram, e mais comumente se dá o contrário: o pulso se concentra, torna-se fraco, lento, e as extremidades esfriam; a despeito da violência da agitação e dos golpes furiosos desferidos por todos os lados, as mãos ficam geladas.

“Contrariamente ao que em geral se vê em casos análogos, nenhuma ideia erótica se mistura ou parece juntar-se à ideia demoníaca. Eu mesmo fiquei chocado com essa particularidade, por ser comum a todas as doentes: nenhuma diz qualquer palavra ou faz o menor gesto obsceno. Em seus mais desordenados movimentos, elas jamais se descobrem, e se seus vestidos se levantam um pouco quando rolam por terra, é muito raro que não os recomponham imediatamente.

“Não parece que haja aqui lesão da sensibilidade genital; assim, jamais se tratou de íncubos, de súcubos ou de cenas de Sabat. Todas as doentes pertencem, como demonômanas, ao segundo dos quatro grupos indicados pelo Sr. Macário. Algumas escutam a voz dos diabos; muito mais geralmente eles falam por sua boca.

“Depois da grande desordem, pouco a pouco os movimentos se tornam menos rápidos; certos gases se escapam pela boca, e a crise termina. A doente olha em redor com um ar meio espantado, arranja os cabelos, apanha e coloca o seu gorro, bebe uns goles d’água e retoma o seu trabalho, se executava algum ao começar a crise. Quase todas dizem que não sentem cansaço nem se lembram do que disseram ou fizeram.

“Esta última asserção nem sempre é sincera. Surpreendi algumas lembrando-se muito bem. Elas apenas acrescentavam: ‘Bem sei que ele (o diabo) disse ou fez isto ou aquilo, mas não sou eu. Se minha boca falou, se minhas mãos bateram, era ELE que as fazia falar e bater. Bem que eu queria ficar tranquila, mas ELE é mais forte que eu.’

“Esta descrição é a do estado mais frequente, mas entre os extremos existem vários graus, desde a doente que só tem crises de dores gastrálgicas, até a que chega ao último paroxismo do furor. Feita esta ressalva, em todas as doentes visitadas não encontrei diferenças dignas de nota senão nalgumas poucas.

“Uma delas, chamada Jeanne Br..., de quarenta e oito anos, não casada, histérica há muito tempo, sente animais que não passam de diabos que lhe correm pelo rosto e a mordem.

“A senhora Nicolas B..., de trinta e oito anos, doente há três anos, late durante as crises. Ela atribui sua doença a um copo de vinho que bebeu em companhia de um desses que fazem o mal.

“Jeanne G..., de trinta e sete anos, não casada, é aquela cujas crises diferem mais. Não tem movimentos clônicos gerais que se veem nas outras, e quase nunca fala. Quando sente vir a crise, vai sentar-se e se põe a balançar a cabeça para frente e para trás. Os movimentos, a princípio lentos e pouco pronunciados, vão-se acelerando e acabam fazendo a cabeça descrever um círculo cada vez mais amplo, com incrível rapidez, até vir alternativa e regularmente bater nas costas e no peito. A intervalos o movimento cessa um instante, e os músculos contraídos mantêm a cabeça fixa na posição em que se encontrava ao parar, sem que seja possível erguêla ou dobrá-la, mesmo com esforços.


“Victoire V..., de vinte anos, foi uma das primeiras a adoecer, aos dezesseis anos. Seu pai assim narra o que ela sofreu: ‘Ela jamais tinha sentido nada, quando um dia foi tomada pelo mal, na igreja. Durante os dois ou três primeiros dias, apenas saltava um pouco. Um dia me trouxe o jantar na cúria, onde eu trabalhava, e tocou o Ângelus quando ela chegava. Ela imediatamente pôs-se a saltar, atirou-se no chão, gritando e gesticulando, blasfemando junto ao sineiro. Por acaso lá se achava o cura de Montriond. Ela o injuriou, chamando-o s... ch... de Montriond. O cura de Morzine também veio para junto dela, quando a crise terminava, mas ela recomeçou no mesmo instante, porque ele fez o sinal da cruz em sua fronte. Tinham-na exorcizado várias vezes, mas vendo que nada a curava, nem exorcismos nem nada, levei-a a Genebra, ao Sr. Lafontaine, o magnetizador. Lá ela permaneceu um mês e ficou curada. Ficou tranquila cerca de três anos.

“Há seis semanas recaiu, mas já não tinha crises. Não queria ver ninguém e se trancava em casa. Só comia quando eu tinha algo de bom para lhe dar. Do contrário, não podia engolir. Não se mantinha nas pernas nem movia os braços. Várias vezes tentei pô-la de pé, mas ela não se sentia e caía se eu não a segurasse mais. Resolvi levá-la novamente ao Sr. Lafontaine. Não sabia como transportá-la. Ela me disse: ‘Quando eu estiver na comuna de Montriond eu caminharei bem.’ Ajudado por um dos meus vizinhos, carregamo-la até Montriond. Mas logo do outro lado da ponte ela andou sozinha e só se queixava de um gosto horrível na boca. Depois de duas sessões com o Sr. Lafontaine ela ficou melhor e agora está empregada como doméstica.”

“Geralmente constatou-se, diz o Sr. Constant, que se estão fora da comuna, só raramente as doentes têm crises.

“Um dia, o prefeito, que me acompanhava, foi surpreendido por uma doente e violentamente batido com uma pedra no rosto. Quase no mesmo instante outra doente se atirava sobre ele,

com um pedaço de pau, para lhe bater também. Vendo esta vir, ele mostrou a ponta ferrada de sua bengala, ameaçando-a, se avançasse. Ela parou, deixou cair o pau e contentou-se em injuriá-lo.

“A despeito das corridas, dos saltos, dos movimentos violentos e desordenados das doentes, das pancadas que dão, seus terrores e divagações, não se citam tentativas de suicídio nem acidentes graves com qualquer delas. Não perdem, pois, toda a consciência, e ao menos subsiste o instinto de conservação.

“Se no começo da crise uma mulher tem o filho nos braços, acontece muitas vezes que um diabo menos mau do que aquele que a vai trabalhar lhe diz: ‘Deixa esta criança; ele (o outro diabo) far-lhe-ia mal.’ O mesmo se dá quando têm uma faca ou outro instrumento capaz de ferir.

“Como as mulheres, os homens sofreram a influência da crença que a todos deprime em graus diversos, mas neles os efeitos foram menores e bastante diferentes. Alguns sentem realmente as mesmas dores que as mulheres; como estas sentem sufocação, uma sensação de estrangulamento e acusam a sensação da bola histérica, mas nenhum chegou às convulsões, e se houve alguns raros casos de acidentes convulsivos, quase sempre podem ser atribuídos a um estado mórbido anterior e diferente. O único representante do sexo masculino que pareceu ter tido crises da mesma natureza que as moças foi o jovem T... São geralmente as moças de quinze a vinte e cinco anos que foram atingidas. Ao contrário, no outro sexo, com exceção do jovem T..., conforme acabo de dizer, são apenas homens maduros, aos quais as vicissitudes da vida talvez tivessem trazido preocupações preexistentes ou a acrescentar às causadas pela doença.”

Depois de haver discutido a maioria dos fatos extraordinários contados a respeito das doentes de Morzine, e tentado provar o estado de degenerescência física e moral dos habitantes por força de afecções hereditárias, acrescenta o Sr. Constant:

“É, pois, necessário ter como certo que tudo quanto se diz em Morzine, uma vez reconduzido à verdade, se acha consideravelmente reduzido. Cada um arranjou a sua história e quis ultrapassar o outro contador de histórias. Tais exageros se encontram em todos os relatos de epidemias desse gênero. Mesmo que alguns fatos fossem autênticos em todos os pontos e escapassem a toda interpretação, seria esse um motivo para lhes buscar uma explicação além das leis naturais? Seria o mesmo que dizer que os agentes, cujo modo de agir ainda não foram descobertos e escapam à nossa análise, são necessàriamente sobrenaturais.

“Tudo o que se viu em Morzine, sobretudo aquilo que se conta, poderá muito bem ficar para certas pessoas como sinal manifesto de uma possessão, mas é, também, com muita certeza, o dessa moléstia complexa que recebeu o nome de hístero-demonomania.

“Em resumo, acabamos de ver uma região cujo clima é rude e a temperatura muito variável, onde a histeria em todos os tempos foi considerada endêmica; uma população cuja alimentação, sempre a mesma para todos, mais pobres ou menos pobres, e sempre má, é composta de alimentos por vezes alterados, que podem provocar, e provocam, desarranjos das funções dos órgãos da nutrição, e por aí, nevroses particulares; uma população de uma constituição pouco robusta e especial, muitas vezes marcada de predisposições hereditárias, ignorante e vivendo num isolamento quase completo; muito piedosa, mas de uma piedade que tem por base mais o medo que a esperança; muito supersticiosa e cuja superstição, essa chaga que São Tomé chamava um vício oposto à religião por excesso, tem sido mais acariciada que combatida. Embalada por histórias de feitiçaria que são, fora das cerimônias da Igreja, a única distração não impedida pela severidade religiosa exagerada; uma imaginação viva, muito impressionável, que teria necessidade de qualquer alimento, e que não tem outro senão essas mesmas cerimônias.”

Resta-nos examinar as relações que podem existir entre os fenômenos acima descritos e os que se produzem nos casos de obsessão e subjugação bem constatados, o que cada um sem dúvida já terá notado; o efeito dos meios curativos empregados; as causas da ineficácia do exorcismo e as condições nas quais podem ser úteis. É o que faremos num próximo e último artigo.

Enquanto isto, diremos com o Sr. Constant que não há necessidade de buscar no sobrenatural a explicação dos efeitos desconhecidos. Nós estamos perfeitamente de acordo com ele neste ponto. Para nós os fenômenos espíritas nada têm de sobrenatural. Eles nos revelam uma das leis, uma das forças da Natureza que não conhecíamos e que produz efeitos até agora não explicados. Essa lei, que brota dos fatos e da observação, é mais desarrazoada porque tem como promotores seres inteligentes em vez de animais ou da matéria bruta? Será tão insensato crer em inteligências ativas além do túmulo, sobretudo quando elas se manifestam de maneira ostensiva? O conhecimento dessa lei, levando certos efeitos à sua causa verdadeira, simples e natural, é o melhor antídoto às ideias supersticiosas.




[1] Broch. in-8º. Adrien Delahaye, praça da Escola de Medicina. Preço 2 fr.


[2] Ad rem, expressão latina que significa à coisa – afirmativa direta à coisa. (N. equipe revisoara)

Resultados da leitura das obras espíritas

CARTAS DOS SRS. MICHEL, DE LYON E D..., D’ALBI


Como resposta à opinião do Dr. Constant relativa ao efeito que deve produzir a leitura das obras espíritas, publicamos a seguir duas cartas, entre milhares da mesma natureza que nos são enviadas. Como vimos no artigo precedente, sua opinião é que esse efeito deve ser inevitavelmente o de fazer pronta justiça à pretensa ciência espírita, e é com esse propósito que ele recomenda a leitura. Ora, há mais de seis anos que essas obras são lidas e, coisa lamentável para a sua perspicácia, a justiça ainda não foi feita!

Albi, 06 de março de 1863.

Sr. Allan Kardec,

...Sei que não devo abusar do vosso tempo precioso. Também me privo da felicidade do entreter-me longamente convosco. Direi que lamento amargamente não ter conhecido mais cedo vossa admirável doutrina, pois sinto que teria sido um outro homem. Contudo, não sou médium, nem procuro sê-lo, pois tenho graves aborrecimentos que incessantemente me obsidiam. Tenho um passado de deplorável negligência. Cheguei aos quarenta e nove anos sem saber uma única prece. Depois que vos li, oro todas as noites, às vezes pela manhã, e sobretudo por meus inimigos. Vossa doutrina me salvou de muitas coisas e me faz suportar os revezes com resignação.

Quanto seria reconhecido, caro senhor, se orásseis algumas vezes por mim!

Recebei, etc.

..

Lyon, 09 de março de 1863.

Meu caro mestre,

Devo começar pedindo um duplo perdão, primeiro, por haver retardado muito o cumprimento de um dever desta natureza; segundo, pela liberdade que tomo, sem ter a honra de ser vosso conhecido, de tratar convosco de coisas que me são, de certo modo, inteiramente pessoais.

Esta consideração me obriga a ser tão breve quanto possível, para não abusar de vossa bondade, nem vos fazer perder apenas comigo um tempo que podereis empregar utilmente no bem geral.

Depois de seis meses que tenho a felicidade de ser iniciado na Doutrina Espírita, senti nascer em mim um vivo sentimento de reconhecimento. Aliás, tal sentimento não passa de uma consequência muito natural da crença no Espiritismo. E, desde que tem sua razão de ser, deve igualmente manifestar-se. Em minha opinião, deve dividir-se em três partes, da qual a primeira é Deus, a quem diariamente cada espírita deve agradecer esta nova prova de sua infinita misericórdia; a segunda pertence de direito ao próprio Espiritismo, isto é, aos bons Espíritos e seus sublimes ensinamentos; enfim, a terceira, àquele que nos guia em nossa nova estrada, e que nos sentimos felizes ao reconhecê-lo como nosso mestre venerado.

Assim compreendido o reconhecimento espírita, três deveres distintos se impõem: para com Deus, para com os bons Espíritos e para com o propagador de seus ensinamentos. Tenho esperança de me desobrigar para com Deus, pedindo-lhe perdão de meus erros passados e continuando a orar diariamente. Tentarei pagar minha dívida ao Espiritismo, espalhando em meu redor, tanto quanto esteja em minha pouca força, os benefícios da instrução espírita. E o fim desta carta é vos testemunhar, senhor, o vivo desejo que sentia de me desobrigar para convosco, o que me acuso de fazer tão tardiamente. Apelo, pois, à vossa caridade e vos peço aceiteis esta sincera homenagem de um reconhecimento sem limites.

Associando-me de coração aos que me precederam, venho dizer-vos: Obrigado a vós que nos haveis tirado do erro, fazendo brilhar sobre nós o facho da verdade; obrigado a vós que nos destes a conhecer os meios de chegar à verdadeira felicidade pela prática do bem; obrigado a vós, que não temeis ser o primeiro a entrar na luta.

O surgimento do Espiritismo no século dezenove, numa época em que o egoísmo e o materialismo parecem dividir o domínio do mundo, é um fato muito importante e muito extraordinário para não provocar a admiração e o espanto das pessoas sérias e dos espíritos observadores. Tal fato é completamente inexplicável para os que recusam reconhecer a intervenção divina na marcha dos grandes acontecimentos que se realizam entre nós e, muitas vezes, malgrado nosso.

Mas, um fato não menos surpreendente, é que se tenha encontrado, nesta época de incredulidade, um homem bastante crente, bastante corajoso, para sair da multidão, abandonar a corrente e anunciar uma doutrina que devia pô-lo em desacordo com o maior número de pessoas, pois seu objetivo é combater e derrubar os preconceitos, os abusos e os erros da massa, e, enfim, pregar a fé aos materialistas, a caridade aos egoístas, a moderação aos fanáticos, a verdade a todos.

Esse fato está hoje realizado, portanto, não era impossível. Mas, para realizá-lo, era necessária uma coragem que só a fé pode dar. Eis o que causa a nossa admiração.

Semelhante devotamento, meu caro mestre, não podia ficar infrutífero. Assim, desde já, podeis começar a receber a recompensa de vosso labor, contemplando o triunfo da doutrina que ensinastes.

Sem vos preocupar com o número e a força dos vossos adversários, descestes sozinho à arena, e vos opusestes às facécias injuriosas com uma serenidade inalterável, e aos ataques e calúnias, com a moderação. Assim, em pouco tempo, o Espiritismo propagou-se por todas as partes do mundo. Hoje seus adeptos se contam aos milhões e, o que é mais satisfatório, se recrutam em todos os graus da escala social. Ricos e pobres, ignorantes e letrados, livres-pensadores e puritanos, todos responderam ao apelo do Espiritismo, e cada classe empenhou-se em fornecer seu contingente nesta grande cruzada da inteligência... Luta sublime, onde o vencido tem orgulho de proclamar sua derrota, e mais orgulho ainda de combater sob a bandeira dos vencedores.

Esta vitória não só honra aquele que a conquistou, mas também atesta a justeza da causa, isto é, a superioridade da Doutrina Espírita sobre todas as que a precederam e, consequentemente, sua origem divina. Para o adepto fervoroso, o fato não pode ser posto em dúvida, e o Espiritismo não pode ser obra de alguns cérebros dementes, como seus detratores tentaram demonstrar. É impossível que o Espiritismo seja uma obra humana. Deve ser, e é, com efeito, uma revelação divina. Se assim não fosse, já teria sucumbido e teria ficado impotente perante a indiferença e o materialismo.

Toda ciência humana é sistemática em sua essência e, por isso mesmo, sujeita a erro. Eis por que não pode ser admitida senão por um pequeno número de indivíduos que, por ignorância ou por cálculo, propagam crenças errôneas que caem por si mesmas depois de algum tempo de prova. O tempo e a razão sempre têm feito justiça às doutrinas abusivas e despidas de fundamento. Nenhuma ciência, nenhuma doutrina pode pretender estabilidade se não possuir, no seu conjunto, como nos menores detalhes, essa emanação pura e divina a que chamamos verdade, porque só a verdade é imutável como o Criador, que é a sua fonte.

Disto encontramos um exemplo muito consolador nas divinas palavras do Cristo, que o santo Evangelho, a despeito de sua longa e aventurosa peregrinação, nos transmitiu tão suaves, tão puras quanto ao caírem da boca do divino Renovador.

Depois de dezoito séculos de existência, a doutrina do Cristo nos parece tão luminosa quanto no momento de seu nascimento. Malgrado as falsas interpretações de uns e as perseguições de outros, e posto que pouco praticada em nossos dias, nem por isso ficou menos enraizada na lembrança dos homens. A doutrina do Cristo é, pois, uma base indestrutível, contra a qual se vêm quebrar incessantemente as paixões humanas. Como a vaga impotente que se arrebenta contra o rochedo, as tempestades do erro se esgotam em vãos esforços contra o farol da verdade. Sendo o Espiritismo a confirmação e o complemento dessa doutrina, é portanto justo dizer-se que se transformará num monumento indestrutível, porque tem Deus como princípio e a verdade como base.

Assim como nos sentimos felizes predizendo seu longo destino, entrevemos com felicidade o momento em que será crença universal. Esse momento não está muito distante, porque os homens não tardarão a compreender que aqui em baixo não há felicidade possível sem fraternidade. Eles compreenderão, também, que a palavra virtude não deve apenas errar sobre os lábios, mas gravar-se profundamente nos corações. Compreenderão, enfim, que aquele que toma a tarefa de pregar a moral deve, antes de tudo e sobretudo, pregá-la pelo exemplo.

Eu paro, meu caro mestre, pois a grandeza do assunto arrasta-me para alturas onde não me posso manter. Mãos mais hábeis que as minhas já pintaram com vivas cores o quadro tocante que em vão minha pena ignorante tenta esboçar. Peço-vos me perdoeis por ter-vos distraído tanto tempo com meus próprios sentimentos, mas eu sentia um desejo invencível de me expandir no seio daquele que havia dado calma a minha alma, substituindo a dúvida que a torturava há quinze anos por uma consoladora certeza!

Eu fui, sucessivamente, católico fervoroso, fatalista, materialista, filósofo resignado. Mas dou graças a Deus por não ter sido ateu. Eu praguejava contra a Providência, sem contudo negar Deus.

Para mim, de há muito, as chamas do inferno estavam extintas, contudo, meu espírito não estava tranquilo quanto ao futuro. Os prazeres celestes preconizados pela Igreja não tinham atrativos suficientes para exortar-me à virtude, entretanto, raramente minha consciência aprovava minha conduta. Estava em contínua dúvida.

Apropriando-me do pensamento de um grande filósofo de que “A consciência foi dada ao homem para o vexar”, eu tinha chegado à conclusão de que o homem deve evitar tudo quanto possa confundir sua consciência. Assim, teria evitado cometer uma grande falta, porque minha consciência a isso se opunha; teria praticado algumas boas obras para experimentar a satisfação que elas provocavam, mas eu nada via além. A Natureza me havia tirado do nada; a morte devia levar-me ao nada! Este pensamento por vezes me mergulhava numa profunda tristeza, mas, por mais que consultasse, que buscasse, nada me dava a chave do enigma. As disposições sociais me chocavam, e muitas vezes eu indagava por que havia nascido no sopé da escada, onde me achava tão mal colocado. Não podendo dar a resposta, dizia: o acaso!

Uma consideração de outro gênero me fazia sentir horror do nada! De que valia instruir-se? Para brilhar num salão?... é preciso fortuna. Para se tornar um poeta, um grande escritor?... é preciso um talento natural. Mas para mim, simples artesão, talvez destinado a morrer sobre o banco de trabalho, ao qual me liguei por necessidade de ganhar o pão diário... para que instruir-me?...

Eu não sei quase nada e isso já é muito, pois nada me serve em vida e tudo deve apagar-se com a morte. Tal pensamento apresentou-se muitas vezes em meu espírito. Eu tinha chegado a maldizer essa instrução que é dada gratuitamente ao filho do operário. Posto que muito exígua, muito incompleta, essa instrução me parecia supérflua e não só nociva à felicidade do pobre, mas incompatível com as exigências de sua condição. Em minha opinião, era uma calamidade a mais para o pobre, pois lhe dava a compreender a importância do mal, sem lhe indicar o remédio. É fácil explicar os sofrimentos morais de um homem que, sentindo bater no peito um coração nobre, é obrigado a curvar a sua inteligência à vontade de um indivíduo do qual um punhado de escudos, por vezes mal adquiridos, constitui todo o mérito e todo o saber.

É então que se precisa apelar para a filosofia. Olhando o topo da escada, a gente diz: O dinheiro não faz a felicidade. Depois, olhando para baixo, veem-se criaturas numa posição inferior à sua e se acrescenta: Tenhamos paciência, há outras a lamentar mais que nós. Mas, se por vezes essa filosofia dá resignação, jamais produz a felicidade.

Eu estava nessa situação quando o Espiritismo veio tirar-me do atoleiro de provas e de incertezas onde me afundava cada vez mais, a despeito dos esforços para sair.

Durante dois anos ouvi falar do Espiritismo sem lhe dar atenção séria. Julgava, como diziam seus adversários, tratar-se de mais uma palhaçada. Mas, enfim, fatigado de ouvir falar de uma coisa da qual apenas sabia o nome, resolvi instruir-me. Adquiri O livro dos Espíritos e O livro dos médiuns. Li, ou melhor, devorei essas duas obras com uma avidez e uma satisfação impossível de definir. Qual não foi minha surpresa, lançando os olhos sobre as primeiras páginas, ao ver que se tratava de filosofia moral e religiosa, quando eu esperava ler um tratado de magia acompanhado de histórias maravilhosas! Logo a surpresa deu lugar à convicção e ao reconhecimento. Quando terminei a leitura, percebi com felicidade que era espírita há muito tempo. Agradeci a Deus que me concedia este insigne favor. De agora em diante poderei orar sem temer que minhas preces se percam no espaço, e suportarei com alegria as tribulações desta curta existência, sabendo que a minha miséria atual não passa de justa consequência de um passado culposo ou de um período de prova para alcançar um futuro melhor. Não mais a dúvida. A justiça e a lógica nos desvendam a verdade. E nós aclamamos com felicidade esta benfeitora da Humanidade.

É quase inútil dizer-vos, meu caro mestre, quanto era grande o meu desejo de ser médium. Assim, estudei com grande perseverança. Após alguns dias de observação, reconheci que era médium intuitivo. Meu desejo se realizava a meio, pois desejava muito ser médium mecânico.

A mediunidade intuitiva deixa por muito tempo a dúvida no espírito de quem a possui. Para dissipar todos os escrúpulos a respeito, tive que assistir a algumas sessões de Espiritismo, a fim de poder fazer uma comparação entre a minha mediunidade e a de outros médiuns. Foi então que compreendi a justeza de vossa recomendação que prescreve ler antes de ver, se se quiser ficar convencido. Porque, posso dizer-vos francamente, nada vi de convincente para um incrédulo. Eu daria tudo para ter sido colocado pela Providência sob a direção imediata de nosso bemamado chefe, porque pensava que as provas deviam ser mais palpáveis e frequentes na sociedade que presidis. Não obstante, não me detive aí, e convidei alguns médiuns escreventes, videntes e desenhistas a se reunirem comigo para trabalharmos juntos. Foi então que tive a sorte de testemunhar fatos surpreendentes e as provas mais evidentes da bondade e virtude do Espiritismo. Pela segunda vez, eu estava convencido!

Junto a esta carta, já bem longa, algumas das minhas comunicações. Serei feliz, meu caro mestre, se vos for possível dar-lhes uma olhada e julgar de seu valor. Do ponto de vista moral eu as julgo irreprocháveis, mas do ponto de vista literário... não estando apto para julgar, abstenho-me de qualquer apreciação. Se, contra minhaexpectativa, encontrardes alguns fragmentos capazes de serem dados à publicidade, peço-vos deles dispor à vontade. Para mim seria uma grande felicidade haver contribuído com uma pedrinha para a construção do edifício.

Daria um grande valor a uma resposta de vosso próprio punho, meu caro mestre, mas não ouso solicitá-lo, pois sei da impossibilidade material em que vos achais de responder a todas as cartas que vos são dirigidas. Termino vos rogando perdoeis esta extrema liberdade, esperando creiais na sinceridade daquele que tem a honra de se dizer um dos vossos fervorosos admiradores e vosso muito humilde servo.


MICHEL
Rua Bouteille, 25, Lyon

Os sermões continuam, mas não se assemelham

Em data de 7 de março de 1863, escrevem-nos de Chauny:

“Senhor,

“Vou tentar vos dar uma análise do sermão que nos foi pregado ontem pelo Padre X..., estranho à nossa paróquia. Esse sacerdote, aliás bom pregador, explicou, até onde podia fazê-lo, o que é Deus e o que são os Espíritos. Não deveria ignorar que havia grande número de espíritas no auditório, de modo que tivemos viva satisfação de ouvir falar dos Espíritos e de suas relações com os vivos.

“Não compreendo de outra maneira, disse ele, todos os fatos miraculosos, todas as visões, todos os pressentimentos, senão pelo contato dos que nos são caros e nos precederam no túmulo. E, se não temesse levantar um véu muito misterioso, ou vos falar de coisas que não seriam compreendidas por todos, eu me alongaria muito mais sobre este assunto. Sinto-me inspirado e, obedecendo à voz da minha consciência, não seria demasiada a recomendação de que guardeis boa lembrança de minhas palavras: Crer nesse Deus do qual emanam todos os Espíritos e no qual todos deveremos reunir-nos um dia.

“Esse sermão, senhor, pronunciado num tom de doçura, de benevolência e de convicção, ia muito mais ao coração que os discursos furibundos, nos quais em vão procuramos a caridade pregada pelo Cristo. Ele estava ao alcance de todas as inteligências. Assim, todos o compreenderam e saíram reconfortados, em vez de ficarem tristes e desencorajados pelos quadros do inferno e das penas eternas e tantos outros assuntos em contradição com a sã razão.

“Aceitai etc.

V...”

Graças a Deus este sermão não é único do gênero. Relatam-nos vários outros no mesmo sentido, mais ou menos acentuados, que foram pregados em Paris e nos departamentos. E, coisa bizarra, num sentido diametralmente oposto, pregados no mesmo dia, na mesma cidade e quase à mesma hora. Isto nada tem de surpreendente, porque há muitos eclesiásticos esclarecidos, que compreendem que a religião só terá a perder em autoridade tomando posição errada contra a irresistível marcha das coisas e que, como todas as instituições, deve seguir o progresso das ideias, sob pena de receber, mais tarde, o desmentido dos fatos constatados.

Ora, quanto ao Espiritismo, é impossível que muitos desses senhores não se tenham convencido por si mesmos da realidade das coisas. Pessoalmente conhecemos mais de um neste caso. Um deles dizia-nos outro dia: “Podem proibirme de falar em favor do Espiritismo, mas obrigar-me a falar contra minha convicção, a dizer que tudo isto é obra do demônio, quando tenho a prova material em contrário, é o que jamais farei”.

Dessa divergência de opinião ressalta um fato capital: é que a doutrina exclusiva do diabo é uma opinião individual, que necessariamente terá de curvar-se ante a experiência e a opinião geral. Que alguns persistem em suas ideias in extremis, é possível, mas eles passarão, e com eles suas palavras.


Suícidio falsamente atribuído ao Espiritismo

O ardor dos adversários em recolher e sobretudo em desnaturar os fatos que julgam comprometer o Espiritismo, é verdadeiramente incrível. Está num ponto em que em breve não haverá mais nenhum acidente pelo qual ele não seja responsabilizado.

Um fato lamentável passou-se ultimamente em Tours, que não podia deixar de ser explorado pela crítica: o suicídio de duas criaturas, que se esforçam por atribuir ao Espiritismo.

O Jornal Le Monde, (antigo Univers Religieux), e com ele vários jornais, publicaram a respeito um artigo, do qual extraímos as seguintes passagens:

“Um casal em idade avançada, o Sr. e Sra. F..., ainda bem dispostos e desfrutando uma renda que lhes permitia viver à vontade, de dois anos para cá entregava-se a operações do Espiritismo. Quase todas as noites reunia-se em sua casa um certo número de operários, homens e mulheres, e jovens de ambos os sexos, perante os quais os dois espíritas faziam suas evocações, ou ao menos pretendiam fazê-las.

“Não falaremos das questões de toda espécie, cuja solução era pedida aos Espíritos naquela casa. Os que conhecem essas duas pessoas de longa data e os seus sentimentos sobre religião jamais ficaram surpresos com as cenas que ali podiam produzir-se. Estranhos a toda ideia cristã, tinham-se atirado à magia, passando por mestres hábeis e consumados.

. . . . . . . . . . . . . . . . .

“Um e outro estavam convencidos, desde algum tempo, que os Espíritos os induziam vivamente a deixar a Terra, a fim de gozarem uma grande soma de delícias num outro mundo, o mundo supraterrestre. Não duvidando que assim fosse, consumaram o suicídio com o maior sangue frio e um grande escândalo na cidade de Tours.

. . . . . . . . . . . . . . .

“Assim é hoje o suicídio que temos a constatar como resultado do Espiritismo e de sua doutrina. Ontem eram os casos de loucura, sem falar nas desordens domésticas e de outras desordens tão comumente ocasionadas pelo Espiritismo. Isto não basta para que os homens compreendam - esses não querem escutar a voz da religião ─ a que perigos se expõem, entregando-se a essas práticas tenebrosas e estúpidas?”

Notemos de começo que se os dois indivíduos pretendiam fazer evocações, é que realmente não as faziam; que abusavam dos outros ou enganavam-se a si mesmos. Portanto, se não faziam evocações reais, era uma quimera, e os Espíritos não lhes podem ter dado maus conselhos.

Eram espíritas, isto é, espíritas de coração ou de nome? O artigo constata que eram estranhos a toda ideia cristã, e mais, que passavam por mestres hábeis e consumados na magia. Ora, é sabido que o Espiritismo é inseparável das ideias religiosas e sobretudo cristãs; que a negação destas é a negação do Espiritismo; que condena as práticas de magia, com as quais nada tem de comum; que denuncia como supersticiosa a crença na virtude dos talismãs, fórmulas, sinais cabalísticos e palavras sacramentais. Portanto, aquelas pessoas não eram espíritas, pois estavam em contradição com os princípios do Espiritismo. Em homenagem à verdade, diremos que, das informações obtidas, ressalta que aquelas pessoas não se ocupavam de magia e que, sem dúvida, quiseram aproveitar a circunstância para ligar esse nome ao Espiritismo.

Além disso, diz o artigo que em casa deles faziam aos Espíritos perguntas de toda espécie. O Espiritismo diz expressamente que não se podem dirigir aos Espíritos toda sorte de perguntas; que eles vêm para nos instruir e nos tornar melhores, e não para se ocuparem de interesses materiais; que é um engano ver nas manifestações um meio de conhecer o futuro, descobrir tesouros ou heranças, fazer invenções ou descobertas científicas para ilustrar-se ou enriquecer sem trabalho. Numa palavra, que os Espíritos não vêm dizer a buena-dicha. Assim, fazendo aos Espíritos perguntas de toda espécie, o que é muito real, esses indivíduos provavam sua ignorância quanto aos fins do Espiritismo.

O artigo não diz que disso fizessem profissão. Com efeito não faziam. Do contrário, lembraríamos o que foi dito centenas de vezes a respeito desta exploração e suas consequências, de que o Espiritismo sério não pode assumir a responsabilidade legal ou outra, como não assume pelas excentricidades dos que não o compreendem. Ele não toma a defesa dos abusos que pudessem ser cometidos em seu nome, por aqueles que tomassem a forma ou a máscara sem lhe assimilar os princípios.

Outra prova de que aqueles indivíduos ignoravam um dos pontos fundamentais da Doutrina Espírita é que o Espiritismo prova, não por simples teoria moral, mas por exemplos numerosos e terríveis, que o suicídio é severamente castigado; que aquele que julga escapar às misérias da vida por uma morte voluntária antecipada aos desígnios de Deus, cai num estado muito mais infeliz. Sabe, pois, o espírita, sem sombra de dúvida, que pelo suicídio troca-se um mau estado passageiro por outro pior e mais duradouro. É o que teriam sabido aquelas criaturas se tivessem conhecido o Espiritismo. O autor do artigo, afirmando que essa doutrina conduz ao suicídio, falou de uma coisa que ele próprio ignora.

De modo algum nos surpreendemos com o resultado da repercussão deste caso. Apresentando-o como consequência da Doutrina Espírita, despertaram a curiosidade, e cada um quis conhecer essa doutrina por si mesmo, livre de a repelir se ela fosse tal qual a apresentavam. Ora, reconheceram que ela dizia tudo ao contrário do que pretendiam que dissesse. Assim, pois, ela só tem a ganhar em ser conhecida, coisa de que os nossos adversários parecem encarregar-se com um ardor pelo qual lhes somos gratos, salvo, todavia, quanto às suas intenções. Se por suas diatribes produzem uma pequena perturbação local e momentânea, ela não tarda a ser seguida por uma recrudescência do número dos adeptos. É o que se vê por toda parte.

Escrevem-nos de Tours:

“Se, portanto, esses indivíduos acreditaram que deveriam envolver os Espíritos em sua fatal resolução e a suas excentricidades bem conhecidas, é evidente que nada haviam compreendido do Espiritismo, e que desse fato nenhuma conclusão pode ser tirada contra a doutrina. Do contrário, seria preciso responsabilizar as doutrinas mais sérias e mais sagradas pelos abusos e até crimes em seu nome cometidos por pobres insensatos ou fanáticos. A Sra. F... pretendia ser médium, mas todos quantos a ouviram jamais puderam levá-la a sério. As ideias muito batidas, os exageros e as excentricidades dos dois esposos e, sobretudo, da mulher, levaram a que lhes fossem fechadas as portas do círculo espírita de Tours, onde não foram admitidos a uma única sessão.

O jornal precipitado não foi melhor informado sobre as causas do suicídio. Nós a tomamos de peças autênticas, do escrivão de Tours, bem como de uma carta a respeito, que nos escreveu o Sr. X..., promotor desta cidade.

O casal F..., a mulher com sessenta e dois anos e o marido com oitenta, longe de estarem bem, foram levados ao suicídio apenas pela perspectiva única da miséria. Eles tinham amealhado uma pequena fortuna no comércio de tecidos, em Nova Orleans, mas, arruinados por falência, vieram para Nantes, depois para Tours, com os restos do naufrágio. Um usufruto de 480 francos, que era seu principal recurso, cessou em 1856, em consequência da outra falência. Já por três vezes, e antes que tratassem de Espiritismo, tinham tentado o suicídio. Nestes últimos tempos, perseguidos por antigos credores, um processo infeliz tinha conseguido arruiná-los e fazê-los perder a coragem e a razão.

A carta que segue, escrita pela senhora F... antes de morrer, e que se acha entre as peças referidas, assinadas pelo presidente do tribunal, ne varietur, revela o verdadeiro motivo. Nós a transcrevemos textualmente, na grafia original:

“Senhor e senhora B..., antes de ir ao céu, quero entender-me convosco mais uma vez, aceitai meus último adeuses, espero muito entretanto que nos veremos, como parto antes de vós, vou guardar vosso endereço para quando vier o momento, quero comunicar nosso projeto, desde nossas adversidades temos alimentado no coração, uma mágoa que não se apagou, é mais que um aborrecimento, tudo se torna num peso, tenho sempre o coração cheio de amargura, é preciso que eu diga que há seis anos que o negócio da casa não termina, talvez seja preciso gastar mais dois mil francos como vemos que não podemos sair disso senão com grandes privações que é preciso sempre recomeçar sem ver o fim, é preciso acabar com isso, agora estamos velhos as forças começam a nos abandonar, a coragem falta, a partida não é mais igual, é preciso acabar com isto e nos decidimos parar. Peço que aceiteis meus votos sinceros. Fe. e F...”

Hoje sabe-se em Tours o que pensar das verdadeiras causas de tal acontecimento, e o ruído feito a respeito se volta em favor do Espiritismo porque, diz o nosso correspondente, fala-se a respeito dele em toda parte, e querem saber efetivamente o que ele é, e desde então as livrarias da cidade têm vendido mais livros espíritas que nunca.

É realmente curioso ver o tom lamentável de uns, a cólera furibunda de outros, e, em meio a tudo isto, o Espiritismo seguir sua marcha ascendente, como um soldado que sobe ao assalto sem se inquietar com a metralha. Vendo a zombaria impotente, depois de haverem dito que era um fogo-fátuo, agora os adversários dizem que é um cão danado.


Variedades

Lê-se em o Siècle de 23 de março de 1862:

O casal C..., residente na Rua Notre-Dame de Nazareth, tinha dois filhos, um garoto de quinze meses e uma menina de cinco anos, que nunca eram vistos, pois ninguém ia à casa deles. Só uma vez a viram, amarrada pelas axilas e pendurada numa porta, e com frequência ouviam gemidos saindo do apartamento. Correu o boato de que ela sofria um tratamento odioso. O comissário de polícia foi até lá e teve que usar da força para entrar.

Aos olhos das pessoas que entraram apresentou-se um espetáculo horroroso. A pobre menina estava sem camisa e sem meias, apenas com um vestidinho indiano de uma sujeira repugnante. A carne dos pés havia aderido ao couro dos sapatos. Ela estava sentada num urinol, apoiada numa caixa amarrada com cordas que passavam pelas alças. Ressalta do inquérito que há vários meses ela estava nessa posição, o que havia produzido uma hérnia do reto; que os pais se levantavam à noite para atormentar a vítima; que a despertavam com pancadas, a mulher com tenazes e o cabo do espanador, e o marido com uma corda. Às perguntas do comissário, o marido respondeu: “Senhor, eu sou muito religioso. Minha filha fazia mal as preces, por isso quis corrigi-la.”

Que diria o autor do artigo supracitado sobre os suicidas de Tours, se se imputasse à religião esta barbaridade de gente que se diz muito religiosa? O ato daquela mãe que matou seus cinco filhos para mandá-los mais cedo ao Céu? O da jovem criada que, tomando ao pé da letra o ensino do Cristo: “Se tua mão direita te escandaliza, corta-a”, cortou a mão a golpes de machado? Ele responderia que não basta dizer-se religioso, mas que é preciso sê-lo na boa acepção; que não se deve tirar uma consequência geral de um fato isolado. Nós somos desta opinião, e lhe mandamos esta resposta a respeito de suas imputações contra o Espiritismo, a propósito de pessoas que dele tomam apenas o nome.


Os Espíritos e o Espiritismo - Pelo Sr. Fammarion (Extraído da Revue Française)

Sob esse título, o Sr. Flammarion, autor da brochura sobre a Pluralidade dos mundos habitados, da qual demos notícia em nosso número de janeiro último, acaba de publicar na Revue Française de fevereiro de 1863[1], um primeiro artigo muito interessante, do qual a seguir damos o começo. O trabalho, que lhe foi pedido pela direção do jornal, resumo literário importante e muito difundido, é uma exposição da história e dos princípios do Espiritismo. Sua extensão lhe dá, quase, a importância de uma obra especial, pois o primeiro artigo não tem menos de 23 páginas grandes in-8º. Até certo ponto, o autor achou que deveria fazer abstração de sua opinião pessoal sobre o assunto e ficar num terreno de certo modo neutro, limitando-se a uma exposição imparcial dos fatos, de maneira a deixar ao leitor a inteira liberdade de apreciação.

Ele assim começa:

“Num século em que a Metafísica caiu de seu alto pedestal; no qual a ideia religiosa quis libertar-se de todo dogma e de todo culto especial; no qual a própria Filosofia mudou seu modo de raciocinar para ligar-se ao positivismo da ciência experimental, uma doutrina espiritualista veio se oferecer aos homens, e estes a receberam. Ela lhes propôs um símbolo de crença e eles o adotaram. Ela lhes mostrou uma nova via que conduz a regiões inexploradas e eles a ela se engajaram, e eis que essa doutrina, baseada nas manifestações dos seres invisíveis, elevou-se, apenas saída do berço, acima das nuanças ordinárias da vida, e propagouse universalmente entre os povos do antigo e do novo mundo. O que é, pois, esse sopro potente, sob cujo impulso tantas cabeças pensantes olharam o mesmo ponto do céu?

“Vã utopia ou ciência real; engodo fantástico ou verdade profunda, o acontecimento lá está aos nossos olhos e nos mostra o estandarte do Espiritismo reunindo ao seu redor grande número de campeões, contando hoje defensores aos milhões. E esse número prodigioso formou-se no curto lapso de dez anos.

“Temos, pois, um evento novo sob os nossos olhos: é um fato incontestável. Ora, seja qual for, aliás, a frivolidade ou a importância desse fato, não será inútil estudá-lo em si mesmo, a fim de saber se tem direito de nascimento entre os filhos do progresso; se sua marcha é paralela ao movimento das ideias progressivas, ou se não tenderia, como pretendem alguns, a nos fazer retroceder para crenças caducas, pouco dignas de consideração.

“E como para raciocinar sobre um assunto qualquer importa, antes de tudo, conhecê-lo bem, a fim de não nos expormos a apreciações errôneas, vamos examinar sucessivamente sobre quais fatos repousa o Espiritismo; sobre que base foi construída a teoria de seu ensino, e em que consiste sumariamente essa ciência.

Observemos que se trata aqui de fatos e não de sistemas especulativos, de opiniões aventuradas, porque, por mais maravilhosa que seja a questão que nos ocupa, o Espiritismo nem por isso deixa de basear-se pura e simplesmente na observação dos fatos. Se assim não fosse, se não se tratasse senão de uma nova seita religiosa, de uma nova escola de filosofia, temos como certo que o acontecimento perderia muito de sua importância e que os homens sérios da época presente, na maioria discípulos do método baconiano, não teriam passado o tempo a examinar uma pura questão de teoria. Muitas utopias se inscreveram no livro da fraqueza humana, para que não se queira mais recolher os sonhos que cérebros exaltados concebem e proclamam diariamente.

“Vamos agora, francamente e sem segunda intenção, abordar esta ciência doutrinária, da qual se disse muito bem e muito mal, talvez sem havê-la estudado suficientemente. Nesta exposição começaremos pela origem de sua história moderna ─ porque o Espiritismo tem sua história antiga ─ e daremos a conhecer os fenômenos sucessivos que a estabeleceram definitivamente. Seguindo a ordem natural das coisas, examinaremos o efeito antes de remontar à causa.”

Segue o histórico das primeiras manifestações na América, sua introdução na Europa, sua conversão em doutrina filosófica.



[1] Revue française, Rua d'Amsterdam, 35 - 20 fr. Assinatura mensal, 120 francos por ano.





Dissertações espíritas

Cartão de visita do Sr. Jobard

(Sociedade Espírita de Paris, 9 de janeiro de 1863 - Médium, Sr D'Ambel)

Venho hoje fazer-vos minha visita de confraternização e, ao mesmo tempo, apresentar-vos um velho camarada de colégio, com que acabam de enriquecer-se as nossas legiões etéreas. Recebei-o, pois, como um novo e zeloso partidário da verdade nova. Se em vida não foi um espírita autêntico, pode afirmar-se que jamais se pronunciou abertamente contra as nossas crenças. Direi mesmo que no fundo de sua consciência ele via nelas, no futuro, a salvaguarda de todas as religiões. Mais de uma vez em sua vida ele teve a insigne ventura de sentir a iluminação interior que lhe mostrava o caminho da verdade, quando a incerteza estava a ponto de invadir sua alma. Assim, quando, há apenas algumas horas, trocamos fraterno aperto de mãos, ele me disse com suave sorriso:

─ Amigo, você tinha razão!

Se ele não se prestou ao desenvolvimento de nossas ideias, é que a intuição mediúnica que nele agia lhe deu a entender que nem a hora nem o momento eram chegados, e que ele teria corrido perigo em fazê-lo no meio das graves complicações de seu ministério e entre um rebanho tão difícil de dirigir quanto o seu.

Hoje, liberto das preocupações da vida terrena, ele está felicíssimo por assistir a uma das vossas sessões, pois há muito tempo tinha ele o desejo de vir sentar-se em vosso meio. Muitas vezes desejou visitar nosso presidente, pelo qual tinha uma estima muito particular, apreciando quanto seus livros e seus ensinos convocavam almas, senão para o seio da Igreja, pelo menos à crença e ao respeito a Deus e à certeza da imortalidade. Devo, contudo, dizer-lhe que quando fui visitá-lo, recebendo-me com a efusão de um antigo condiscípulo, ele tinha oposto ao meu zelo, talvez exagerado, de convertê-lo, a famosa razão de Estado, ante a qual tive que me inclinar. Nada obstante, acompanhando-me, disse estas palavras simpáticas: Si non è vero è bene trovato!

Agora que veio juntar-se às nossas falanges e que não é retido pelos mesmos escrúpulos, ele faz votos pelo sucesso de nossa obra e encara com alegria o futuro que ela promete à Humanidade. Contempla com alegria inefável a terra prometida às novas gerações, ou antes, às velhas gerações que tanto lutaram, e prevê a hora abençoada em que seus sucessores erguerão resolutamente a nova bandeira da fé galicana: o Espiritismo!

Seja como for, meu caro presidente e meus caros confrades, tive a honra de receber às portas da vida este venerável amigo e tenho orgulho de apresentá-lo ao vosso meio. Ele me encarrega de vos assegurar toda a sua simpatia e vos dizer que seguirá com muito interesse vossos trabalhos e estudos. À felicidade de ser seu intérprete junto a vós, alio a de vos apresentar as felicitações de uma legião de grandes Espíritos que acompanham vossas sessões com assiduidade. Trago-vos, pois, em meu nome e no deles, o tributo de nossa estima e os votos, que formulamos, pelo sucesso da grande causa.

Vamos! Em pouco tempo a Terra não contará mais entre os seus habitantes senão alguns raros humanimais.

Aperto a mão de Allan Kardec em nome de todos os vossos amigos de alémtúmulo, em cujo número peço que me conteis como um dos mais dedicados.

JOBARD

Sede severos para convosco e indulgentes para com os outros (1º Homilia)

(Sociedade Espírita de Paris, 9 de janeiro de 1863 - Médium: Sr. D'Ambel)

É a primeira vez que venho entreter-me convosco, meus caros filhos. Desejava escolher outro médium, mais simpático aos sentimentos que foram o móvel de toda a minha vida terrena e mais apto a me prestar um concurso religioso, mas já que há muito tempo Santo Agostinho tomou conta do médium cujas matérias cerebrais me teriam sido mais úteis, e para o qual me sentia arrastado, dirijo-me a vós por este, de quem se servia meu excelente condiscípulo Jobard, para me apresentar à vossa sociedade filosófica. Terei, pois, muita dificuldade em exprimir, hoje, o que vos quero dizer, primeiro em razão da dificuldade que experimento em manipular a matéria mediana, pois ainda não tenho o hábito desta propriedade de meu ser desencarnado, de pois, porque devo fazer jorrarem minhas ideias de um cérebro que não as admite todas. Dito isto, vamos ao assunto.

Um corcunda espirituoso da antiguidade dizia que os homens de seu tempo carregavam um duplo alforje, em cuja parte traseira estavam os defeitos e imperfeições, enquanto que a dianteira recebia todos os defeitos alheios. É o que lembraria mais tarde o Evangelho, na alegoria da palha e da trave no olho. Meu Deus! meus filhos, já era tempo de que os sacos do alforje mudassem de lugar. Cabe aos espíritas sinceros operar essa modificação, levando à frente o saco que contém suas próprias imperfeições, a fim de que, tendo-as de contínuo sob os olhos, delas se corrijam, e o que contém os defeitos alheios do outro lado, a fim de não mais ligar a eles inveja e maledicência. Ah! Como será digno da doutrina que confessais, e que deve regenerar a Humanidade, ver seus adeptos sinceros e convictos agirem com essa caridade que proclamam e que lhes ordena não mais verem a palha que embaraça o olho de seu irmão, e, ao contrário, de se ocupar com ardor por desembaraçar-se da trave que os cega a eles próprios. Ah! meus caros filhos, essa trave é constituída pelo feixe de vossas tendências egoísticas, das vossas más inclinações e de vossas faltas acumuladas pelas quais tendes, até o presente, como todos os homens, professado uma tolerância paternal muito grande, ao passo que, na maior parte do tempo, só tendes intolerância e severidade para com as fraquezas do próximo. Eu queria tanto vos ver a todos libertos dessa enfermidade moral do resto dos homens, ó meu caros espíritas, que vos concito, com todas as minhas forças, a entrardes na via que vos indico. Bem sei que de vossas tendências veniais, muitas já se modificaram no sentido da verdade, mas vejo ainda tanta moleza e tanta indecisão em vós para o bem absoluto, que a distância que vos separa do rebanho dos pecadores endurecidos e dos materialistas não é tão grande que a torrente não possa vos arrastar ainda. Ah! Resta-vos uma rude etapa a percorrer para atingirdes a altura da santa e consoladora doutrina que os Espíritos meus irmãos vos revelam há vários anos.

Na vida militante da qual, graças sejam dadas ao Senhor, acabo de sair, vi tantas mentiras se afirmarem como verdades; tantos vícios se alçarem como virtudes, que me sinto feliz por haver deixado um meio onde quase sempre a hipocrisia revestia com seu manto as tristezas e as misérias morais que me rodearam. Não posso senão vos felicitar por ver que vossas fileiras não se abrem facilmente para os sectários dessa hipocrisia mentirosa.

Meus amigos, jamais vos deixeis prender pelas palavras douradas. Vede e sondai os atos antes de abrir vossas fileiras aos que solicitam essa honra, porque muitos falsos irmãos procurarão misturar-se convosco, a fim de levar a perturbação e sutilmente semear a divisão. Minha consciência ordena-me vos esclareça, e o faço com toda a sinceridade de meu coração, sem me preocupar com ninguém. Estais advertidos. Doravante, agi coerentemente.

Para terminar como comecei, peço-vos encarecidamente, meus bem-amados filhos, que vos ocupeis seriamente convosco; que expilais de vossos corações todos os germes impuros que ainda podem estar a eles vinculados; que vos reformeis pouco a pouco, mas sem interrupção, segundo a sã moral espírita; que sejais, enfim, tão severos para convosco quanto deveis ser indulgentes para com as fraquezas dos vossos irmãos.

Se esta primeira homilia deixa algo a desejar, quanto à forma, não a atribuais senão à minha inexperiência da mediunidade. Farei melhor, na primeira vez que me for permitido comunicar-me em vosso meio, onde agradeço ao meu amigo Jobard por me haver apadrinhado.

Adeus, meus filhos, eu vos abençoo.

FRANÇOIS-NICOLAS MADELEINE

Festa de natal

(Sociedade Espírita de Tours, 24 de dezembro de 1862 - Médium: Sr. N.)

É nesta noite que, no mundo cristão, se festeja o nascimento do Menino Jesus. Mas vós, meus irmãos, deveis também alegrar-vos e festejar o nascimento da nova Doutrina Espírita. Vê-la-eis crescer como essa criança. Ela virá, como ele, esclarecer os homens e lhes mostrar o caminho que devem percorrer. Em breve vereis os reis, como os magos, virem pessoalmente a esta doutrina pedir o socorro que não encontram nas ideias antigas. Eles não vos trarão incenso e mirra, mas prosternar-seão de coração ante as ideias novas do Espiritismo. Já não vedes brilhar a estrela que deve guiá-los? Coragem, pois, meus irmãos! Coragem! Em breve, com o mundo inteiro, podereis celebrar a grande festa da regeneração da Humanidade.

Meus irmãos, durante muito tempo encerrastes no coração o germe desta doutrina. Eis, porém, que hoje ele surge em plena luz, com o apoio de um tutor solidamente plantado e que não deixará que verguem seus galhos tenros. Com esse sustentáculo providencial, ele crescerá dia a dia e tornar-se-á a árvore da criação divina. Dessa árvore colhereis frutos dos quais não conservareis a exclusividade para vós, mas para os vossos irmãos que tiverem fome e sede da fé sagrada. Oh! Então apresentai-lhes esse fruto, e gritai-lhes do fundo do vosso coração: “Vinde, vinde partilhar conosco o que alimenta o nosso espírito e alivia as nossas dores físicas e morais.”

Mas não esqueçais, meus irmãos, que Deus vos fez fermentar o primeiro germe; que esse germe cresceu e já se tornou uma árvore capaz de dar o seu fruto. Restar-vos-á algo a utilizar: os galhos que podereis transplantar. Mas, antes, vede se o terreno, ao qual confiais esse germe, não oculta sob sua camada aparente algum verme roedor, que poderia devorar aquilo que o Mestre vos confiou.


SÃO LUÍS.



Encerramento da subscrição ruanesa

Montante da lista publicada no número de março: 2.722,05 francos.

Sr. V. Fourrier (Versalhes), 10 fr.; Sr. Lux (Dôle), 2,50 fr.; Sra. D... (Paris) 5 fr.; Sr. C. L... (Paris), 30 fr.; Sr. Blin, cap. (Marselha) l5 fr.; Sr. Derivis, pelo 2.º grupo espírita de Albi, 16 fr.; Sr. Berger (Cahors) 2 fr.; Sr. Cuvier (Ambroise) l4 fr.; Sr. V... (Bayonne) 10 fr.; Sr. L. D... (Versalhes) 2 fr.; Sra. Borreau (Niort) 2 fr.; Sr. D...

(Paris) 3 fr. TOTAL: 111,50 francos.

TOTAL GERAL: 2.833,55 francos.
Aos leitores da Revista

De algum tempo para cá as circunstâncias nos forçaram a dar maior desenvolvimento aos artigos de fundo e a registrar as comunicações espíritas, pela necessidade de certas refutações de atualidade. Em breve poderemos restabelecer o equilíbrio.

Procuramos com empenho dar tanta variedade quanto possível ao nosso jornal, para satisfazer a todos os gostos e um pouco a todas as pretensões; mas há coisas que tem primazia. Sentimo-nos felizes por ver que somos geralmente compreendidos e que nos levam em conta as complicações de trabalho resultantes da luta a sustentar e da extensão incessante da doutrina, estando no centro onde chegam todas as ramificações e os inúmeros fios desse feixe que hoje abarca o mundo inteiro. Graças a Deus, nossos esforços são coroados de sucesso e, como compensação às nossas fadigas, não nos faltam as satisfações morais.

ALLAN KARDEC




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