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Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863 > Novembro
Novembro
Pelo Sr. Herrenschneider
(2º Artigo)
O PRINCIPIO DA DUALIDADE DA ESSÊNCIA DA ALMA E O SISTEMA ESPIRITUAL DO SR. COUSIN E DE SUA ESCOLA
No artigo anterior procuramos provar que se em geral os senhores livrespensadores quisessem dar-se ao trabalho de examinar os motivos que lhes permitem afirmar-se, dizer “eu”, chegariam ao conhecimento de sua dupla essência; convencer-se-iam que sua alma é constituída de maneira a existir separadamente do corpo, tanto quanto de seu envoltório, e compreenderiam a erraticidade quando, após a morte, ela tivesse deixado sua matéria terrena, de sorte que sua ciência, se fosse baseada no verdadeiro princípio da constituição da alma, confirmaria os fatos espíritas, em vez de contradizê-los com tanta persistência.
Com efeito, nossa noção do “eu” compõe-se principalmente do sentimento e do conhecimento que temos de nós mesmos, e esses dois fenômenos íntimos, evidentes para todo mundo, implicam peremptoriamente dois elementos distintos na alma: um passivo, sensível, extenso e sólido, que recebe as impressões; outro ativo, sem extensão e pensante, que as percebe. Em consequência, se possuímos, ao lado de um elemento virtual, um elemento resistente e permanente, diferente do nosso corpo, não nos podemos dissolver pela morte; nossa imortalidade está provada e nossa préexistência é uma consequência natural. Assim, nossos destinos são independentes de nossa morada terrena, e esta não passa de um episódio mais ou menos interessante para nós, conforme os acontecimentos que o preenchem.
De acordo com estas observações, a dualidade da essência de nossa alma é um princípio importante, pois que nos instrui sobre a nossa existência real e imortal. Mas é um princípio muito mais importante por ser ela a fonte única em que adquirimos plena consciência de nossa individualidade, sendo assim a origem de nossa ciência, da qual não podemos duvidar, e sobre a qual repousa todo o resto dos nossos conhecimentos.
Efetivamente, começamos todos por nos conhecer, antes de notar o que nos rodeia, e medimos por nossa medida tudo o que examinamos e julgamos. Assim, é indispensável observar, para o estudo da verdade, que nosso saber parte de nós, para voltar a nós; que é um círculo formado por nós mesmos, que nos enlaça e nos envolve fatalmente, malgrado nosso. Os filósofos atuais o ignoram e o experimentam sem se aperceberem. É ele que os ofusca, que os cega e que os impede de olhar além e acima de si próprios. Assim teremos muitas ocasiões de constatar sua cegueira. Os Antigos, ao contrário, conheciam esse círculo e sua influência misteriosa, pois simbolizavam a ciência sob a figura de uma serpente mordendo a ponta da cauda, depois de se ter dobrado sobre si mesma. Isto significava, aos seus olhos, que nosso saber parte de um ponto dado, faz a volta de nosso horizonte intelectual e volta a seu ponto de partida. Ora, se esse ponto de partida é elevado e o olhar penetrante, o horizonte é largo e a ciência é vasta. Se, ao contrário, o ponto de partida roça o chão e a visão é turva, o horizonte é restrito e a inteligência das coisas é limitada.
Assim, tais quais formos pessoalmente, tal será o conjunto e o alcance dos nossos conhecimentos. Por tal motivo torna-se evidente que a primeira condição da ciência individual é a de examinar-se a si mesmo, não só para distinguir suas qualidades, seus defeitos e seus vícios, mas para conhecer, de saída, a constituição íntima do nosso ser, e em seguida elevar o nosso espírito e formar o nosso caráter.
Portanto, a verdadeira ciência não é feita para cada um. Aquele que a aspira não só deve ter inteligência e instrução, mas, sobretudo, ser sério, sóbrio, prudente, e não se deixar levar pelo capricho de sua imaginação, por sua vaidade, por seus interesses e por sua suficiência.
O que deve guiar o verdadeiro amante da verdade é um amor desinteressado por esse objetivo venerado; é a vontade enérgica e constante de jamais parar, e separar rigorosamente do joio a boa semente.
Quanto mais o homem se possui e quanto mais é calmo e nobre, melhor saberá discernir os caminhos que o conduzirão à verdade. Quanto mais ele é leviano, presunçoso ou apaixonado, tanto mais corromperá com seu hálito impuro os frutos que colherá na árvore da vida.
A primeira condição para chegar ao conhecimento das coisas é, portanto, o caráter individual, e é por esta razão que, na Antiguidade, provas solenes precediam a toda iniciação. Hoje o saber é espalhado sem discernimento, e cada um julga poder pretendê-lo, mas também a verdade menos que nunca é bem acolhida, ao passo que as mais estranhas doutrinas encontram numerosos aderentes. É preciso convencer-se que os Espíritos indiferentes, limitados pelas ciências exatas e naturais, levados pela imaginação, ou cheios de impertinência, são impróprios à pesquisa da verdade, e que seria mais prudente reservar esse nobre labor para alguns escolhidos. Entretanto, disposições mais sensatas hoje se manifestam pelo advento do Espiritismo, e, com efeito, os espíritas são homens bem dispostos para a busca da verdade porque, separando-se do turbilhão geral que arrasta a Sociedade, eles renunciaram por si mesmos às vaidades mundanas, aos princípios dos livres-pensadores e à superstição oficial dos cultos reconhecidos. Dão prova de sadia independência, de um amor sincero à verdade e de uma tocante solicitude por seus interesses eternos. São estas as melhores disposições morais para abordar os graves problemas da alma, do mundo e da Divindade.
Para nosso bem eterno, experimentemos entender-nos e seguir juntos os sinais que nos conduzirão à via sagrada, porque necessitamos ajudar-nos reciprocamente para atingir o objetivo que todos buscamos, o de nos esclarecermos apenas sobre o que é real e durável.
Depois das disposições morais que acabamos de indicar, a coisa mais indispensável para bem se entregar à obra delicada da iniciação, é o conhecimento do princípio da dualidade da essência da alma, porque é ele que constitui uma parte do misterioso segredo da Esfinge[1]. É uma das chaves da ciência e, sem possuí-la, todos os esforços tornam-se inúteis para atingi-lo.
Esse princípio da essência da alma, por si só, encerra, como consequências, as noções consideráveis que desejamos adquirir, ao passo que todos os princípios secundários até hoje descobertos não se elevam bastante para dominar o vasto horizonte dos conhecimentos humanos e para lhe abraçar todos os detalhes.
Os princípios inferiores desviam os que deles se servem no dédalo de numerosos fatos que eles não compreendem, e é pela insuficiência de seus primeiros princípios que os filósofos se transviaram e se perderam nas sutilezas arbitrárias de suas doutrinas incompletas. Eles fatalmente levaram a confusão onde julgavam tocar a verdade.
Nessas matérias, mais delicadas do que difíceis, só o princípio verdadeiro espalha a luz, resolve facilmente todos os problemas e abre as portas secretas que conduzem ao mais secreto santuário. Ora, já sabemos que levamos conosco esse princípio, e que para descobri-lo só se trata de nos estudarmos, mas de nos estudarmos com calma e imparcialidade.
Sabemos que esse princípio é a dualidade de nossa essência anímica, de sorte que não nos resta senão dobrar com precaução o fio, do qual temos o nó mais importante. Mas, à medida que avançarmos em nosso estudo psicológico, consultaremos, nada obstante, os trabalhos de nossos mais ilustre filósofos, a fim de reconhecer onde falharam e em que suas doutrinas confirmam nossas próprias pesquisas.
Assim, como observamos acima, parece evidente que tudo quanto em nós se liga à ordem sensível depende da substância de nossa alma, porque ela é o seu elemento extenso e sólido, que recebe todas as impressões exteriores e que se ressente de nossa atividade interior. Com efeito, nossa alma não poderia ser tocada de uma maneira qualquer, sem apresentar um obstáculo, de início, às oscilações do meio ambiente e, a seguir, às vibrações das emoções que nos afetam intimamente. Portanto, é essa maneira de ser muito natural que explica as nossas relações com tudo o que existe, com o que não somos nós, com o nosso não-eu moral, intelectual e físico, visível ou invisível.
A solidez e a extensão de nossa substância evidentemente não podem ser rejeitadas, em princípio. Contudo, não é essa opinião que reina na Universidade e no Instituto. O espiritualismo a nega como absurda, sob o pretexto especioso de que a divisibilidade, que seria sua consequência, implicaria na corruptibilidade da substância. Mas isto não passa de um equívoco, porque o que importa à corruptibilidade da natureza anímica é a simplicidade química de sua fluidez corporal e não a sua indivisibilidade mecânica, em falta da qual há mil maneiras de remediar, ao passo que, para ficar na verdade científica, é preciso evitar admitir um efeito sem causa, uma impressão possível sem resistência.
Assim, a sensibilidade de nossa alma nada ensina à nossa escola espiritualista. Ela liga gratuitamente os sentimentos à razão, atribui as sensações ao organismo material e não se explica sobre a conexão dessas diversas faculdades. Eis uma das causas de tua impotência filosófica.
Quanto a nós, a sensibilidade de nossa alma é a prova irrefutável da solidez e da extensão de sua substância. E é a noção dessas propriedades que nos abre um vasto campo de observação. Assim, de início, a extensão e a solidez substancial permitem à nossa alma tomar diferentes formas e conter o tipo de todos os órgãos que constituem nosso organismo corporal. Serve, assim, de origem e sustentáculo aos nossos nervos, sentidos, cérebro, vísceras, músculos e ossos, e permite nos encarnemos por meio dessa lei da mutabilidade das moléculas corporais, tão conhecida dos modernos fisiologistas.
Nossos cientistas supõem apenas, e erradamente, em nossa opinião, que essa lei é o efeito de uma força misteriosa da matéria, que se renova, se absorve, se escoa e se forma por si mesma, porque a matéria é inerte e nada forma por sua própria iniciativa.
Evidentemente, essa mutabilidade é efeito da atividade instintiva de nossa dupla essência anímica que se acha sob nosso envoltório, e a existência dessa lei prova que a nossa encarnação está na ordem da Natureza, pois ela é contínua, e ao cabo de uma série de anos, nosso corpo se renova regularmente.
A formação de nosso revestimento material e a nossa encarnação sucessiva se explicam, desta maneira, muito naturalmente. Mas, além disso, essa substancialidade extensa de nossa alma nos faz compreender igualmente o laço existente entre ela e o corpo, porque, sendo o nosso organismo visível apenas a cobertura do nosso organismo substancial, tudo quanto é sentido por um deve repercutir no outro. As emoções da substância da alma devem abalar o corpo e o estado deste deve inevitavelmente afetar suas próprias disposições morais e intelectuais. Eis o primeiro ensinamento resultante da natureza concreta de nossa substância.
O segundo ensinamento que daí retiramos é que a parte da substância de nossa alma que não serve de tipo ao nosso organismo material deve ser a base do nosso senso íntimo, daquele que recebe todas as nossas impressões morais e intelectuais, e que nos põe um contacto com a própria substância divina, de sorte que nossa substância recebe as impressões da radiação de todas as existências e de todas as atividades possíveis, e constata que é a origem primeira de todas as nossas noções. É da mesma maneira que recebemos o conhecimento de nós mesmos, pois se perguntarmos a um céptico como ele pode afirmar-se, sem a menor reserva ele responderá: “É que eu me sinto”, porque o próprio céptico não pode duvidar de suas sensações.
Entretanto, sentir-se não é todo o nosso conhecimento: o céptico também não pode negar que sabe que se sente. Ora, a percepção do nosso sentimento é consequência de nossa atividade intelectual, o que prova não somente que nossa alma não é passiva, mas que é também ativa, que ela quer, que ela percebe, que ela pensa e que ela é causativa e livre por si mesma.
Nossos próprios órgãos funcionam sem que tenhamos consciência, de sorte que se é forçado a atribuir à nossa alma um segundo elemento, um elemento ativo, virtual, isto é, uma força essencial, que está atenta quando nossa sensibilidade está desperta; que quer por efeito de seu próprio movimento; que percebe, pensa e reflete por meio do nosso órgão cerebral; que age auxiliada por nossos membros, e que anima nosso organismo com um movimento involuntário.
É pela presença, em nossa alma, dessa dupla ordem essencial: da ordem substancial passiva e sensível, e da ordem virtual ativa e pensante, que nós nos sentimos, que nós nos sabemos e que nós temos consciência de nossa própria personalidade, sem qualquer auxílio do mundo exterior.
Nossa força anímica é o nosso elemento espiritual por excelência, porque não tem, por si mesma, nem extensão nem solidez. Nós não a conhecemos senão por sua atividade. Se ela não quer nem pensa nem age, é como se não existisse; e se nossa alma não fosse substancialmente concreta, pela virtude de um outro elemento, nosso corpo não teria consistência e não passaria de um amontoado de pó. Nossa alma não poderia nem mesmo existir na erraticidade, pois perder-se-ia no nada, a menos que se supusesse, com o espiritualismo, um mistério impenetrável, que lhe permitisse existir sem extensão nem solidez, suposição que o Espiritismo e as leis naturais tornam absolutamente inadmissível.
Entretanto, é nossa força essencial que Leibnitz considera como sendo substância, a despeito de sua natureza fugidia; e a escola espiritualista francesa o repete, a seu exemplo, sem se deter nessa confusão ilógica.
Contudo, não basta chamar força a uma substância, para que ela realmente o seja e considerar essa substância imaginária como sendo o fundo de nosso ser, para que se saia do vazio das abstrações. Uma substância não existe senão por seu estado concreto, por sua extensão e sua solidez, por mais sutil que a concebamos, e é isto que nossa escola espiritualista se compraz em passar em silêncio. Eis, assim, outra causa de sua impotência moral e filosófica.
Nossa força essencial não é senão o princípio de nossa atividade; ela nos anima, mas não nos constitui. É o princípio de nossa vida, mas não o de nossa existência. Está por toda parte em nossa substância, espalha-se com ela em todo o nosso ser e dele recebe diretamente as impressões, sem o nosso concurso voluntário. É por essa estreita união de nossos dois elementos essenciais que nosso organismo funciona espontaneamente; que nossas sensações despertam a seguir a nossa atenção e, sem outro intermediário, nos levam a perceber a causa de nossas impressões; que nossa consciência é um conjunto de sentimentos e de reflexões e que toda noção, seja qual for o seu objeto, exige que o sintamos e o saibamos. Desde então, somente nós temos certeza de sua existência. É por este mesmo processo que temos conhecimento do Ser Supremo. Temos a sensação de sua presença por nosso senso íntimo, e compreendemos essa sensação sublime por nossa razão, porque o ideal do verdadeiro, do bem e do belo está primeiramente em nosso coração, antes de nos entrar na cabeça.
Os povos selvagens nisto não se enganam. Eles não duvidam de Deus; eles o imaginam simplesmente conforme o nível de sua grosseira inteligência, ao passo que vemos entre os cientistas discutir-se a sua personalidade, porque pretendem nada admitir senão pela força de seu raciocínio e porque se debatem em abstrações, sem estabelecer seu ponto de apoio na ordem sensível.
Tal é a constituição de nossa alma. Ela se compõe de dois elementos bem distintos entre si e que, não obstante, estão indissoluvelmente unidos, porque em tempo algum e em parte alguma esses elementos são encontrados separadamente, pois toda substância tem sua força e toda força tem sua substância. Assim, esta dualidade se acha reunida na essência de tudo o que existe. Ela está na matéria, na alma, em Deus. Repetindo, essa distinção na unidade é necessariamente admissível, porque cada um desses elementos está bem caracterizado; porque têm suas propriedades respectivas e sua modalidade categórica; e porque é uma lei universal que um mesmo princípio não pode ter efeitos contrários e que qualidades que se excluem denotam outros tantos princípios particulares. Mas sua unidade não é menos peremptória, porque nenhuma função, nenhuma faculdade, nenhum fenômeno se produz em nós e fora de nós sem o concurso simultâneo desses dois elementos irredutíveis.
É essa unidade na dualidade constante de nossa alma que nos explica este fenômeno psicológico importante, a saber: a espontaneidade instintiva de todas as nossas faculdades e de todas as nossas funções, assim como a formação do nosso caráter e da nossa natureza moral íntima. Efetivamente, nossas impressões se conservam em nós e se reproduzem involuntariamente, de sorte que, como a substância é o elemento passivo e permanente de nossa alma, é preciso atribuir-lhe a propriedade de conservar nossas sensações, de nelas concretizá-las, e de transmitilas, na ocasião, à atenção de nossa força essencial.
Sendo essas impressões de toda espécie, forma-se em nós, por essa propriedade conservadora, uma ordem moral, intelectual e prática permanente, que se manifesta por nossa atividade instintiva e espontânea; que nos inspira os sentimentos e as ideias, e que guia os nossos atos sem o nosso concurso voluntário, e por vezes malgrado nosso. Ademais, esses sentimentos e essas ideias adquiridas se agrupam em nossa alma e nos produzem novas ideias e novas imagens, que estávamos longe de esperar.
As funções psicológicas de nossa substância unida à nossa força essencial, são, assim, multiplicadas, e nos formam uma natureza moral, intelectual e prática espontânea, que é o fundo do nosso caráter, a origem de nossas disposições naturais. Assim, a nossa substância encerra, em estado latente, ou em potencial, como se exprime a escola, todas as nossas qualidades, todo o nosso conhecimento e todos os nossos hábitos passados, em estado permanente em nós. Em consequência, a ela e à sua atividade instintiva é que se deve atribuir a memória, a imaginação, o espírito e os sentidos naturais, assim como a origem de nossas ideias e de nossos sentimentos.
Essa ordem substancial instintiva incontestavelmente existe em nossa alma. Cada um se reconhece uma natureza moral permanente, disposições intelectuais e hábitos próprios que lhe facilitam a carreira e a conduta, se forem bons, ou que impedem seu sucesso e o arrastam em desvios deploráveis, se forem maus. Só os nossos filósofos não o percebem, porque, não admitindo, como já dissemos, uma ordem psicológica substancial, eles se condenam a atribuir tudo o que é resistente, em nossa alma, à influência da matéria, e a confundir com a nossa inteligência tudo o que é sensível e vivo.
É verdade que Aristóteles reconhecia no homem uma ordem potencial, onde todas as nossas qualidades estão em potencial, mas ele a define mal e também a confunde com a matéria. Desde então, ninguém mais se ocupou dessa ordem especial, salvo o Sr. Cousin. Mas esse filósofo contemporâneo, não reconhecendo na alma senão a inteligência, não considerou senão a atividade espontânea, sem lhe procurar a origem no elemento permanente da nossa natureza anímica. Ele a designa como sendo a razão espontânea e instintiva, em oposição à razão refletida, sem notar a contradição existente entre o instinto e a reflexão, qualidades que se excluem e que, evidentemente, não podem pertencer ao mesmo princípio! Assim, o Sr. Cousin tira apenas consequências limitadas dessa descoberta, e é por essa razão que a sua psicologia, como a de sua escola, tornou-se uma ciência seca, ilógica e sem grande expressão.
Detenhamos agora nossos pensamentos sobre o conjunto de observações precedentes, pois elas nos deram a conhecer fenômenos psicológicos até hoje desconhecidos. Elas nos fizeram constatar em nossa alma a existência de duas ordens morais, intelectuais e práticas bem distintas e fortemente caracterizadas, uma relacionando-se perfeitamente com as propriedades particulares de nossa substância, que são a permanência, a extensão e a solidez; a outra, às de nossa força essencial, que são a sua causalidade, sua inextensão e sua intermitência. A primeira é passiva, sensível, conservadora; a segunda é ativa, voluntária e refletida. A união íntima dos nossos dois elementos essenciais produz em nós, além disso, nossa tríplice atividade instintiva, que é o reflexo direto do estado verdadeiro de nossas qualidades e de nossos defeitos naturais.
Com efeito, por um lado, quanto mais sensível for a nossa natureza substancial; quanto mais delicada e conservadora, e quanto mais viva e enérgica a nossa atividade instintiva, tanto mais puros e elevados serão nossas ideias e sentimentos; tanto mais justo o nosso bom-senso e tanto mais fáceis e seguras a nossa memória e a nossa imaginação.
Pelo contrário, quanto menos aperfeiçoado for o nosso estado substancial, tanto mais lentas e limitadas serão a nossa memória e a nossa imaginação, mais grosseiras as nossas ideias, mais vis os nossos sentimentos e mais obtuso o nosso senso comum.
Mas, por outro lado, quanto mais enérgica, constante e flexível for a nossa força causadora, tanto mais fortes serão nossa atenção, nossa vontade, nossa virtude e nosso domínio sobre nós mesmos; mais alcance terão nossa percepção, nosso pensamento, nosso juízo e a nossa razão e, enfim, maior será a nossa habilidade e mais honrosa a nossa conduta, porque todas essas qualidades e faculdades derivam de nosso elemento virtual.
Ao contrário, quanto mais mole, entorpecida ou pesada a nossa força essencial, tanto mais nossa brutalidade e nossa covardia moral e intelectual manifestar-se-ão em plena luz. Deste modo, nosso valor tanto depende do estado das qualidades e das propriedades de um quanto do outro elemento de nossa alma.
Tal é o quadro sumário que representa a constituição íntima de nossa essência anímica, e que nos revela a nossa dupla faculdade de nos sentir e nos saber. Esse quadro no-la mostra, de começo, em sua unidade viva, pois descobrimos o duplo princípio de sua atividade e de sua passividade; de sua permanência e de sua causalidade; de sua existência no tempo e no espaço, e de sua independência própria e distinta de Deus, do mundo e de seu envoltório material.
Ele no-la mostra, em seguida, na sua diversidade maravilhosa, pois que reconhecemos a origem de suas qualidades e de suas faculdades, de suas funções e de seu organismo, nas propriedades respectivas de nossos elementos essenciais e em seu concurso recíproco.
Entretanto, este quadro é apenas um primeiro esboço, contudo, é fácil perceber nele o método de observação rigorosa que seguimos, que é o que Bacon descobriu; que Descartes introduziu na psicologia; que a escola escocesa aplicou; que a escola espiritualista e eclética observou em toda a sua doutrina. Encontramo-nos, portanto, no mesmo terreno de toda a filosofia séria, e se por vezes não estamos de acordo com nossas ilustrações acadêmicas, é que não podemos deixar de crer que a maioria dos fatos de consciência foram mal observados e mal explicados por elas.
Com efeito, o ecletismo espiritualista reconhece em nós três faculdades principais: a vontade, a sensação e a razão. Essas faculdades se distinguem do nosso corpo, que é sólido e amplo, de sorte que possuímos necessariamente uma alma inextensa e espiritual.
Feita esta constatação, o ecletismo não se pergunta como a nossa alma deve ser constituída para ser sensível, nem se a vontade e a razão, que são ambas ativas, são duas manifestações de um mesmo princípio virtual. São perguntas que não o inquietam. Ele apenas sustenta que, destas três faculdades, só a vontade nos pertence efetivamente, porque, sozinha, ela é o resultado de uma força substancial inextensa, que é o princípio primordial do nosso eu.
A sensibilidade, aos seus olhos, não passa do efeito do choque resultante da ação que a força do mundo exterior exerce sobre a nossa por intermédio de nosso organismo. Entretanto, o ecletismo não pesquisa como a nossa força inextensa se liga ao nosso organismo, nem como, nesse isolamento inextenso, pode ela receber um choque, assim como não explicou como podemos ser sensíveis.
Estes são pequenos mistérios que não poderiam detê-lo. A razão, segundo ele,é a faculdade soberana do conhecimento, mas é impessoal, isto é, ela não nos pertence, posto que dela nos sirvamos. Dizer minha razão é, pois, segundo o Sr. Cousin, uma insensatez, pelo mesmo motivo que não se diz minha verdade. Tal motivo não nos parece muito concludente, mas, provavelmente, a falta é nossa. Com efeito, em seu sistema, a razão é o conjunto das verdades necessárias e universais, verdades tais como os princípios da causalidade, da substância, da unidade, do verdadeiro, etc. O conjunto destes princípios forma, pois, segundo ele, a razão divina, da qual participamos pela vontade inefável do Todo-Poderoso. Mas é aí que se há de crer sob palavra, pois não vemos precisamente como um conjunto de verdades, por mais universais que sejam, poderia constituir a razão divina e humana. Vulgarmente, as verdades são leis e a razão é uma faculdade. Ora, eu vejo o Sol, mas nunca a faculdade de ver foi tomada pelo Sol, nem pelo menor de seus raios.
Aí está, portanto, um novo mistério a juntar aos precedentes, de sorte que, nessa doutrina, nada se explica por si, nada se liga, e nossa alma é nela representada apenas como um conjunto heterogêneo de faculdades, de qualidades, de funções distintas, ligadas, ao acaso, como folhas esparsas que tivessem sido reunidas em volume, sob o título pomposo de Doutrina filosófica do século XIX.
O segundo prefácio da terceira edição dos Fragments philosophiques lhe trazem um resumo, interessante sob vários aspectos.
De acordo com estas considerações, podemos julgar as causas que fazem da filosofia espiritualista oficial, malgrado suas boas intenções, uma doutrina bizarra e indigesta. Estaríamos mesmo autorizado a tratá-la mais duramente, se se perdessemde vista os serviços eminentes que prestou ao espírito francês, desviando-o de um sensualismo imoral e de um cepticismo desesperador. Aí estavam, evidentemente, as principais preocupações do ilustre filósofo no começo de sua brilhante carreira. Estudando suas obras notáveis, vê-se que Condillac e Kant foram seus principais adversários.
Assim, essa luta é a parte mais importante de seus trabalhos. Seu próprio sistema, ao contrário, nos parece muito defeituoso, e sua moral, sua teodiceia e sua ontologia contêm numerosos pontos muito controvertidos.
A verdade é uma flor tão delicada! O menor sopro do erro a murcha em nossas mãos, e a reduz a um pó pernicioso e ofuscante. No calor do combate ou na emoção da ambição, é sobretudo difícil conservar a calma de espírito e a delicadeza do sentimento de evidência, de sorte que o homem preocupado é facilmente arrastado a ultrapassar os limites da verdadeira sabedoria.
Felizmente, o Criador nos proporcionou fatos, circunstâncias e acontecimentos providenciais bastante chocantes para reconduzir-nos ao bom caminho. Certamente as doutrinas e os fatos sobre os quais se funda o Espiritismo estão nesse número. Que nossos grandes e sábios filósofos não os repilam sob o fútil pretexto de superstição! Que os estudem sem prevenção! Neles reconhecerão a natureza extensa e sólida de nossa alma, sua preexistência e sua perpetuidade. Nele encontrarão uma moral suave e salutar, bem feita para reconduzir todo mundo ao bem.
Se, então, seu espírito quiser dele tomar conhecimento, que se atirem francamente à obra; que examinem cientificamente os seus princípios e as suas consequências, e então, talvez o princípio da dualidade da essência da alma lhes apareça em todo o seu esplendor e em toda a sua força, pois parece-nos que ele lança uma viva luz sobre os segredos íntimos do nosso ser. É o que examinaremos proximamente.
F. HERRENSCHNEIDER
[1] O outro princípio é a dualidade do aspecto das coisas, que encontraremos mais tarde.
Com efeito, nossa noção do “eu” compõe-se principalmente do sentimento e do conhecimento que temos de nós mesmos, e esses dois fenômenos íntimos, evidentes para todo mundo, implicam peremptoriamente dois elementos distintos na alma: um passivo, sensível, extenso e sólido, que recebe as impressões; outro ativo, sem extensão e pensante, que as percebe. Em consequência, se possuímos, ao lado de um elemento virtual, um elemento resistente e permanente, diferente do nosso corpo, não nos podemos dissolver pela morte; nossa imortalidade está provada e nossa préexistência é uma consequência natural. Assim, nossos destinos são independentes de nossa morada terrena, e esta não passa de um episódio mais ou menos interessante para nós, conforme os acontecimentos que o preenchem.
De acordo com estas observações, a dualidade da essência de nossa alma é um princípio importante, pois que nos instrui sobre a nossa existência real e imortal. Mas é um princípio muito mais importante por ser ela a fonte única em que adquirimos plena consciência de nossa individualidade, sendo assim a origem de nossa ciência, da qual não podemos duvidar, e sobre a qual repousa todo o resto dos nossos conhecimentos.
Efetivamente, começamos todos por nos conhecer, antes de notar o que nos rodeia, e medimos por nossa medida tudo o que examinamos e julgamos. Assim, é indispensável observar, para o estudo da verdade, que nosso saber parte de nós, para voltar a nós; que é um círculo formado por nós mesmos, que nos enlaça e nos envolve fatalmente, malgrado nosso. Os filósofos atuais o ignoram e o experimentam sem se aperceberem. É ele que os ofusca, que os cega e que os impede de olhar além e acima de si próprios. Assim teremos muitas ocasiões de constatar sua cegueira. Os Antigos, ao contrário, conheciam esse círculo e sua influência misteriosa, pois simbolizavam a ciência sob a figura de uma serpente mordendo a ponta da cauda, depois de se ter dobrado sobre si mesma. Isto significava, aos seus olhos, que nosso saber parte de um ponto dado, faz a volta de nosso horizonte intelectual e volta a seu ponto de partida. Ora, se esse ponto de partida é elevado e o olhar penetrante, o horizonte é largo e a ciência é vasta. Se, ao contrário, o ponto de partida roça o chão e a visão é turva, o horizonte é restrito e a inteligência das coisas é limitada.
Assim, tais quais formos pessoalmente, tal será o conjunto e o alcance dos nossos conhecimentos. Por tal motivo torna-se evidente que a primeira condição da ciência individual é a de examinar-se a si mesmo, não só para distinguir suas qualidades, seus defeitos e seus vícios, mas para conhecer, de saída, a constituição íntima do nosso ser, e em seguida elevar o nosso espírito e formar o nosso caráter.
Portanto, a verdadeira ciência não é feita para cada um. Aquele que a aspira não só deve ter inteligência e instrução, mas, sobretudo, ser sério, sóbrio, prudente, e não se deixar levar pelo capricho de sua imaginação, por sua vaidade, por seus interesses e por sua suficiência.
O que deve guiar o verdadeiro amante da verdade é um amor desinteressado por esse objetivo venerado; é a vontade enérgica e constante de jamais parar, e separar rigorosamente do joio a boa semente.
Quanto mais o homem se possui e quanto mais é calmo e nobre, melhor saberá discernir os caminhos que o conduzirão à verdade. Quanto mais ele é leviano, presunçoso ou apaixonado, tanto mais corromperá com seu hálito impuro os frutos que colherá na árvore da vida.
A primeira condição para chegar ao conhecimento das coisas é, portanto, o caráter individual, e é por esta razão que, na Antiguidade, provas solenes precediam a toda iniciação. Hoje o saber é espalhado sem discernimento, e cada um julga poder pretendê-lo, mas também a verdade menos que nunca é bem acolhida, ao passo que as mais estranhas doutrinas encontram numerosos aderentes. É preciso convencer-se que os Espíritos indiferentes, limitados pelas ciências exatas e naturais, levados pela imaginação, ou cheios de impertinência, são impróprios à pesquisa da verdade, e que seria mais prudente reservar esse nobre labor para alguns escolhidos. Entretanto, disposições mais sensatas hoje se manifestam pelo advento do Espiritismo, e, com efeito, os espíritas são homens bem dispostos para a busca da verdade porque, separando-se do turbilhão geral que arrasta a Sociedade, eles renunciaram por si mesmos às vaidades mundanas, aos princípios dos livres-pensadores e à superstição oficial dos cultos reconhecidos. Dão prova de sadia independência, de um amor sincero à verdade e de uma tocante solicitude por seus interesses eternos. São estas as melhores disposições morais para abordar os graves problemas da alma, do mundo e da Divindade.
Para nosso bem eterno, experimentemos entender-nos e seguir juntos os sinais que nos conduzirão à via sagrada, porque necessitamos ajudar-nos reciprocamente para atingir o objetivo que todos buscamos, o de nos esclarecermos apenas sobre o que é real e durável.
Depois das disposições morais que acabamos de indicar, a coisa mais indispensável para bem se entregar à obra delicada da iniciação, é o conhecimento do princípio da dualidade da essência da alma, porque é ele que constitui uma parte do misterioso segredo da Esfinge[1]. É uma das chaves da ciência e, sem possuí-la, todos os esforços tornam-se inúteis para atingi-lo.
Esse princípio da essência da alma, por si só, encerra, como consequências, as noções consideráveis que desejamos adquirir, ao passo que todos os princípios secundários até hoje descobertos não se elevam bastante para dominar o vasto horizonte dos conhecimentos humanos e para lhe abraçar todos os detalhes.
Os princípios inferiores desviam os que deles se servem no dédalo de numerosos fatos que eles não compreendem, e é pela insuficiência de seus primeiros princípios que os filósofos se transviaram e se perderam nas sutilezas arbitrárias de suas doutrinas incompletas. Eles fatalmente levaram a confusão onde julgavam tocar a verdade.
Nessas matérias, mais delicadas do que difíceis, só o princípio verdadeiro espalha a luz, resolve facilmente todos os problemas e abre as portas secretas que conduzem ao mais secreto santuário. Ora, já sabemos que levamos conosco esse princípio, e que para descobri-lo só se trata de nos estudarmos, mas de nos estudarmos com calma e imparcialidade.
Sabemos que esse princípio é a dualidade de nossa essência anímica, de sorte que não nos resta senão dobrar com precaução o fio, do qual temos o nó mais importante. Mas, à medida que avançarmos em nosso estudo psicológico, consultaremos, nada obstante, os trabalhos de nossos mais ilustre filósofos, a fim de reconhecer onde falharam e em que suas doutrinas confirmam nossas próprias pesquisas.
Assim, como observamos acima, parece evidente que tudo quanto em nós se liga à ordem sensível depende da substância de nossa alma, porque ela é o seu elemento extenso e sólido, que recebe todas as impressões exteriores e que se ressente de nossa atividade interior. Com efeito, nossa alma não poderia ser tocada de uma maneira qualquer, sem apresentar um obstáculo, de início, às oscilações do meio ambiente e, a seguir, às vibrações das emoções que nos afetam intimamente. Portanto, é essa maneira de ser muito natural que explica as nossas relações com tudo o que existe, com o que não somos nós, com o nosso não-eu moral, intelectual e físico, visível ou invisível.
A solidez e a extensão de nossa substância evidentemente não podem ser rejeitadas, em princípio. Contudo, não é essa opinião que reina na Universidade e no Instituto. O espiritualismo a nega como absurda, sob o pretexto especioso de que a divisibilidade, que seria sua consequência, implicaria na corruptibilidade da substância. Mas isto não passa de um equívoco, porque o que importa à corruptibilidade da natureza anímica é a simplicidade química de sua fluidez corporal e não a sua indivisibilidade mecânica, em falta da qual há mil maneiras de remediar, ao passo que, para ficar na verdade científica, é preciso evitar admitir um efeito sem causa, uma impressão possível sem resistência.
Assim, a sensibilidade de nossa alma nada ensina à nossa escola espiritualista. Ela liga gratuitamente os sentimentos à razão, atribui as sensações ao organismo material e não se explica sobre a conexão dessas diversas faculdades. Eis uma das causas de tua impotência filosófica.
Quanto a nós, a sensibilidade de nossa alma é a prova irrefutável da solidez e da extensão de sua substância. E é a noção dessas propriedades que nos abre um vasto campo de observação. Assim, de início, a extensão e a solidez substancial permitem à nossa alma tomar diferentes formas e conter o tipo de todos os órgãos que constituem nosso organismo corporal. Serve, assim, de origem e sustentáculo aos nossos nervos, sentidos, cérebro, vísceras, músculos e ossos, e permite nos encarnemos por meio dessa lei da mutabilidade das moléculas corporais, tão conhecida dos modernos fisiologistas.
Nossos cientistas supõem apenas, e erradamente, em nossa opinião, que essa lei é o efeito de uma força misteriosa da matéria, que se renova, se absorve, se escoa e se forma por si mesma, porque a matéria é inerte e nada forma por sua própria iniciativa.
Evidentemente, essa mutabilidade é efeito da atividade instintiva de nossa dupla essência anímica que se acha sob nosso envoltório, e a existência dessa lei prova que a nossa encarnação está na ordem da Natureza, pois ela é contínua, e ao cabo de uma série de anos, nosso corpo se renova regularmente.
A formação de nosso revestimento material e a nossa encarnação sucessiva se explicam, desta maneira, muito naturalmente. Mas, além disso, essa substancialidade extensa de nossa alma nos faz compreender igualmente o laço existente entre ela e o corpo, porque, sendo o nosso organismo visível apenas a cobertura do nosso organismo substancial, tudo quanto é sentido por um deve repercutir no outro. As emoções da substância da alma devem abalar o corpo e o estado deste deve inevitavelmente afetar suas próprias disposições morais e intelectuais. Eis o primeiro ensinamento resultante da natureza concreta de nossa substância.
O segundo ensinamento que daí retiramos é que a parte da substância de nossa alma que não serve de tipo ao nosso organismo material deve ser a base do nosso senso íntimo, daquele que recebe todas as nossas impressões morais e intelectuais, e que nos põe um contacto com a própria substância divina, de sorte que nossa substância recebe as impressões da radiação de todas as existências e de todas as atividades possíveis, e constata que é a origem primeira de todas as nossas noções. É da mesma maneira que recebemos o conhecimento de nós mesmos, pois se perguntarmos a um céptico como ele pode afirmar-se, sem a menor reserva ele responderá: “É que eu me sinto”, porque o próprio céptico não pode duvidar de suas sensações.
Entretanto, sentir-se não é todo o nosso conhecimento: o céptico também não pode negar que sabe que se sente. Ora, a percepção do nosso sentimento é consequência de nossa atividade intelectual, o que prova não somente que nossa alma não é passiva, mas que é também ativa, que ela quer, que ela percebe, que ela pensa e que ela é causativa e livre por si mesma.
Nossos próprios órgãos funcionam sem que tenhamos consciência, de sorte que se é forçado a atribuir à nossa alma um segundo elemento, um elemento ativo, virtual, isto é, uma força essencial, que está atenta quando nossa sensibilidade está desperta; que quer por efeito de seu próprio movimento; que percebe, pensa e reflete por meio do nosso órgão cerebral; que age auxiliada por nossos membros, e que anima nosso organismo com um movimento involuntário.
É pela presença, em nossa alma, dessa dupla ordem essencial: da ordem substancial passiva e sensível, e da ordem virtual ativa e pensante, que nós nos sentimos, que nós nos sabemos e que nós temos consciência de nossa própria personalidade, sem qualquer auxílio do mundo exterior.
Nossa força anímica é o nosso elemento espiritual por excelência, porque não tem, por si mesma, nem extensão nem solidez. Nós não a conhecemos senão por sua atividade. Se ela não quer nem pensa nem age, é como se não existisse; e se nossa alma não fosse substancialmente concreta, pela virtude de um outro elemento, nosso corpo não teria consistência e não passaria de um amontoado de pó. Nossa alma não poderia nem mesmo existir na erraticidade, pois perder-se-ia no nada, a menos que se supusesse, com o espiritualismo, um mistério impenetrável, que lhe permitisse existir sem extensão nem solidez, suposição que o Espiritismo e as leis naturais tornam absolutamente inadmissível.
Entretanto, é nossa força essencial que Leibnitz considera como sendo substância, a despeito de sua natureza fugidia; e a escola espiritualista francesa o repete, a seu exemplo, sem se deter nessa confusão ilógica.
Contudo, não basta chamar força a uma substância, para que ela realmente o seja e considerar essa substância imaginária como sendo o fundo de nosso ser, para que se saia do vazio das abstrações. Uma substância não existe senão por seu estado concreto, por sua extensão e sua solidez, por mais sutil que a concebamos, e é isto que nossa escola espiritualista se compraz em passar em silêncio. Eis, assim, outra causa de sua impotência moral e filosófica.
Nossa força essencial não é senão o princípio de nossa atividade; ela nos anima, mas não nos constitui. É o princípio de nossa vida, mas não o de nossa existência. Está por toda parte em nossa substância, espalha-se com ela em todo o nosso ser e dele recebe diretamente as impressões, sem o nosso concurso voluntário. É por essa estreita união de nossos dois elementos essenciais que nosso organismo funciona espontaneamente; que nossas sensações despertam a seguir a nossa atenção e, sem outro intermediário, nos levam a perceber a causa de nossas impressões; que nossa consciência é um conjunto de sentimentos e de reflexões e que toda noção, seja qual for o seu objeto, exige que o sintamos e o saibamos. Desde então, somente nós temos certeza de sua existência. É por este mesmo processo que temos conhecimento do Ser Supremo. Temos a sensação de sua presença por nosso senso íntimo, e compreendemos essa sensação sublime por nossa razão, porque o ideal do verdadeiro, do bem e do belo está primeiramente em nosso coração, antes de nos entrar na cabeça.
Os povos selvagens nisto não se enganam. Eles não duvidam de Deus; eles o imaginam simplesmente conforme o nível de sua grosseira inteligência, ao passo que vemos entre os cientistas discutir-se a sua personalidade, porque pretendem nada admitir senão pela força de seu raciocínio e porque se debatem em abstrações, sem estabelecer seu ponto de apoio na ordem sensível.
Tal é a constituição de nossa alma. Ela se compõe de dois elementos bem distintos entre si e que, não obstante, estão indissoluvelmente unidos, porque em tempo algum e em parte alguma esses elementos são encontrados separadamente, pois toda substância tem sua força e toda força tem sua substância. Assim, esta dualidade se acha reunida na essência de tudo o que existe. Ela está na matéria, na alma, em Deus. Repetindo, essa distinção na unidade é necessariamente admissível, porque cada um desses elementos está bem caracterizado; porque têm suas propriedades respectivas e sua modalidade categórica; e porque é uma lei universal que um mesmo princípio não pode ter efeitos contrários e que qualidades que se excluem denotam outros tantos princípios particulares. Mas sua unidade não é menos peremptória, porque nenhuma função, nenhuma faculdade, nenhum fenômeno se produz em nós e fora de nós sem o concurso simultâneo desses dois elementos irredutíveis.
É essa unidade na dualidade constante de nossa alma que nos explica este fenômeno psicológico importante, a saber: a espontaneidade instintiva de todas as nossas faculdades e de todas as nossas funções, assim como a formação do nosso caráter e da nossa natureza moral íntima. Efetivamente, nossas impressões se conservam em nós e se reproduzem involuntariamente, de sorte que, como a substância é o elemento passivo e permanente de nossa alma, é preciso atribuir-lhe a propriedade de conservar nossas sensações, de nelas concretizá-las, e de transmitilas, na ocasião, à atenção de nossa força essencial.
Sendo essas impressões de toda espécie, forma-se em nós, por essa propriedade conservadora, uma ordem moral, intelectual e prática permanente, que se manifesta por nossa atividade instintiva e espontânea; que nos inspira os sentimentos e as ideias, e que guia os nossos atos sem o nosso concurso voluntário, e por vezes malgrado nosso. Ademais, esses sentimentos e essas ideias adquiridas se agrupam em nossa alma e nos produzem novas ideias e novas imagens, que estávamos longe de esperar.
As funções psicológicas de nossa substância unida à nossa força essencial, são, assim, multiplicadas, e nos formam uma natureza moral, intelectual e prática espontânea, que é o fundo do nosso caráter, a origem de nossas disposições naturais. Assim, a nossa substância encerra, em estado latente, ou em potencial, como se exprime a escola, todas as nossas qualidades, todo o nosso conhecimento e todos os nossos hábitos passados, em estado permanente em nós. Em consequência, a ela e à sua atividade instintiva é que se deve atribuir a memória, a imaginação, o espírito e os sentidos naturais, assim como a origem de nossas ideias e de nossos sentimentos.
Essa ordem substancial instintiva incontestavelmente existe em nossa alma. Cada um se reconhece uma natureza moral permanente, disposições intelectuais e hábitos próprios que lhe facilitam a carreira e a conduta, se forem bons, ou que impedem seu sucesso e o arrastam em desvios deploráveis, se forem maus. Só os nossos filósofos não o percebem, porque, não admitindo, como já dissemos, uma ordem psicológica substancial, eles se condenam a atribuir tudo o que é resistente, em nossa alma, à influência da matéria, e a confundir com a nossa inteligência tudo o que é sensível e vivo.
É verdade que Aristóteles reconhecia no homem uma ordem potencial, onde todas as nossas qualidades estão em potencial, mas ele a define mal e também a confunde com a matéria. Desde então, ninguém mais se ocupou dessa ordem especial, salvo o Sr. Cousin. Mas esse filósofo contemporâneo, não reconhecendo na alma senão a inteligência, não considerou senão a atividade espontânea, sem lhe procurar a origem no elemento permanente da nossa natureza anímica. Ele a designa como sendo a razão espontânea e instintiva, em oposição à razão refletida, sem notar a contradição existente entre o instinto e a reflexão, qualidades que se excluem e que, evidentemente, não podem pertencer ao mesmo princípio! Assim, o Sr. Cousin tira apenas consequências limitadas dessa descoberta, e é por essa razão que a sua psicologia, como a de sua escola, tornou-se uma ciência seca, ilógica e sem grande expressão.
Detenhamos agora nossos pensamentos sobre o conjunto de observações precedentes, pois elas nos deram a conhecer fenômenos psicológicos até hoje desconhecidos. Elas nos fizeram constatar em nossa alma a existência de duas ordens morais, intelectuais e práticas bem distintas e fortemente caracterizadas, uma relacionando-se perfeitamente com as propriedades particulares de nossa substância, que são a permanência, a extensão e a solidez; a outra, às de nossa força essencial, que são a sua causalidade, sua inextensão e sua intermitência. A primeira é passiva, sensível, conservadora; a segunda é ativa, voluntária e refletida. A união íntima dos nossos dois elementos essenciais produz em nós, além disso, nossa tríplice atividade instintiva, que é o reflexo direto do estado verdadeiro de nossas qualidades e de nossos defeitos naturais.
Com efeito, por um lado, quanto mais sensível for a nossa natureza substancial; quanto mais delicada e conservadora, e quanto mais viva e enérgica a nossa atividade instintiva, tanto mais puros e elevados serão nossas ideias e sentimentos; tanto mais justo o nosso bom-senso e tanto mais fáceis e seguras a nossa memória e a nossa imaginação.
Pelo contrário, quanto menos aperfeiçoado for o nosso estado substancial, tanto mais lentas e limitadas serão a nossa memória e a nossa imaginação, mais grosseiras as nossas ideias, mais vis os nossos sentimentos e mais obtuso o nosso senso comum.
Mas, por outro lado, quanto mais enérgica, constante e flexível for a nossa força causadora, tanto mais fortes serão nossa atenção, nossa vontade, nossa virtude e nosso domínio sobre nós mesmos; mais alcance terão nossa percepção, nosso pensamento, nosso juízo e a nossa razão e, enfim, maior será a nossa habilidade e mais honrosa a nossa conduta, porque todas essas qualidades e faculdades derivam de nosso elemento virtual.
Ao contrário, quanto mais mole, entorpecida ou pesada a nossa força essencial, tanto mais nossa brutalidade e nossa covardia moral e intelectual manifestar-se-ão em plena luz. Deste modo, nosso valor tanto depende do estado das qualidades e das propriedades de um quanto do outro elemento de nossa alma.
Tal é o quadro sumário que representa a constituição íntima de nossa essência anímica, e que nos revela a nossa dupla faculdade de nos sentir e nos saber. Esse quadro no-la mostra, de começo, em sua unidade viva, pois descobrimos o duplo princípio de sua atividade e de sua passividade; de sua permanência e de sua causalidade; de sua existência no tempo e no espaço, e de sua independência própria e distinta de Deus, do mundo e de seu envoltório material.
Ele no-la mostra, em seguida, na sua diversidade maravilhosa, pois que reconhecemos a origem de suas qualidades e de suas faculdades, de suas funções e de seu organismo, nas propriedades respectivas de nossos elementos essenciais e em seu concurso recíproco.
Entretanto, este quadro é apenas um primeiro esboço, contudo, é fácil perceber nele o método de observação rigorosa que seguimos, que é o que Bacon descobriu; que Descartes introduziu na psicologia; que a escola escocesa aplicou; que a escola espiritualista e eclética observou em toda a sua doutrina. Encontramo-nos, portanto, no mesmo terreno de toda a filosofia séria, e se por vezes não estamos de acordo com nossas ilustrações acadêmicas, é que não podemos deixar de crer que a maioria dos fatos de consciência foram mal observados e mal explicados por elas.
Com efeito, o ecletismo espiritualista reconhece em nós três faculdades principais: a vontade, a sensação e a razão. Essas faculdades se distinguem do nosso corpo, que é sólido e amplo, de sorte que possuímos necessariamente uma alma inextensa e espiritual.
Feita esta constatação, o ecletismo não se pergunta como a nossa alma deve ser constituída para ser sensível, nem se a vontade e a razão, que são ambas ativas, são duas manifestações de um mesmo princípio virtual. São perguntas que não o inquietam. Ele apenas sustenta que, destas três faculdades, só a vontade nos pertence efetivamente, porque, sozinha, ela é o resultado de uma força substancial inextensa, que é o princípio primordial do nosso eu.
A sensibilidade, aos seus olhos, não passa do efeito do choque resultante da ação que a força do mundo exterior exerce sobre a nossa por intermédio de nosso organismo. Entretanto, o ecletismo não pesquisa como a nossa força inextensa se liga ao nosso organismo, nem como, nesse isolamento inextenso, pode ela receber um choque, assim como não explicou como podemos ser sensíveis.
Estes são pequenos mistérios que não poderiam detê-lo. A razão, segundo ele,é a faculdade soberana do conhecimento, mas é impessoal, isto é, ela não nos pertence, posto que dela nos sirvamos. Dizer minha razão é, pois, segundo o Sr. Cousin, uma insensatez, pelo mesmo motivo que não se diz minha verdade. Tal motivo não nos parece muito concludente, mas, provavelmente, a falta é nossa. Com efeito, em seu sistema, a razão é o conjunto das verdades necessárias e universais, verdades tais como os princípios da causalidade, da substância, da unidade, do verdadeiro, etc. O conjunto destes princípios forma, pois, segundo ele, a razão divina, da qual participamos pela vontade inefável do Todo-Poderoso. Mas é aí que se há de crer sob palavra, pois não vemos precisamente como um conjunto de verdades, por mais universais que sejam, poderia constituir a razão divina e humana. Vulgarmente, as verdades são leis e a razão é uma faculdade. Ora, eu vejo o Sol, mas nunca a faculdade de ver foi tomada pelo Sol, nem pelo menor de seus raios.
Aí está, portanto, um novo mistério a juntar aos precedentes, de sorte que, nessa doutrina, nada se explica por si, nada se liga, e nossa alma é nela representada apenas como um conjunto heterogêneo de faculdades, de qualidades, de funções distintas, ligadas, ao acaso, como folhas esparsas que tivessem sido reunidas em volume, sob o título pomposo de Doutrina filosófica do século XIX.
O segundo prefácio da terceira edição dos Fragments philosophiques lhe trazem um resumo, interessante sob vários aspectos.
De acordo com estas considerações, podemos julgar as causas que fazem da filosofia espiritualista oficial, malgrado suas boas intenções, uma doutrina bizarra e indigesta. Estaríamos mesmo autorizado a tratá-la mais duramente, se se perdessemde vista os serviços eminentes que prestou ao espírito francês, desviando-o de um sensualismo imoral e de um cepticismo desesperador. Aí estavam, evidentemente, as principais preocupações do ilustre filósofo no começo de sua brilhante carreira. Estudando suas obras notáveis, vê-se que Condillac e Kant foram seus principais adversários.
Assim, essa luta é a parte mais importante de seus trabalhos. Seu próprio sistema, ao contrário, nos parece muito defeituoso, e sua moral, sua teodiceia e sua ontologia contêm numerosos pontos muito controvertidos.
A verdade é uma flor tão delicada! O menor sopro do erro a murcha em nossas mãos, e a reduz a um pó pernicioso e ofuscante. No calor do combate ou na emoção da ambição, é sobretudo difícil conservar a calma de espírito e a delicadeza do sentimento de evidência, de sorte que o homem preocupado é facilmente arrastado a ultrapassar os limites da verdadeira sabedoria.
Felizmente, o Criador nos proporcionou fatos, circunstâncias e acontecimentos providenciais bastante chocantes para reconduzir-nos ao bom caminho. Certamente as doutrinas e os fatos sobre os quais se funda o Espiritismo estão nesse número. Que nossos grandes e sábios filósofos não os repilam sob o fútil pretexto de superstição! Que os estudem sem prevenção! Neles reconhecerão a natureza extensa e sólida de nossa alma, sua preexistência e sua perpetuidade. Nele encontrarão uma moral suave e salutar, bem feita para reconduzir todo mundo ao bem.
Se, então, seu espírito quiser dele tomar conhecimento, que se atirem francamente à obra; que examinem cientificamente os seus princípios e as suas consequências, e então, talvez o princípio da dualidade da essência da alma lhes apareça em todo o seu esplendor e em toda a sua força, pois parece-nos que ele lança uma viva luz sobre os segredos íntimos do nosso ser. É o que examinaremos proximamente.
F. HERRENSCHNEIDER
[1] O outro princípio é a dualidade do aspecto das coisas, que encontraremos mais tarde.
O Sr. Bispo de Argel publicou, a 18 de agosto último, uma brochura dirigida aos senhores curas de sua diocese, sob o título de Carta circular e pastoral sobre a superstição dita Espiritismo. Citamos as passagens seguintes, acompanhadas de observações.
“...Tínhamos pensado em adicionar modesta página a estes luminosos anais, empalidecendo, das alturas do bom-senso e da fé, como o merece ser, o Espiritismo que, renovado da mais velha e mais grosseira idolatria, vem abater-se sobre a Argélia. Pobre colônia! Após tão cruéis provas, ainda lhe era necessária uma deste gênero!”
Pobre colônia! Com efeito, não seria ela muito mais próspera se, em vez de tolerar e proteger a religião dos indígenas, se tivessem transformado suas mesquitas e sinagogas em igrejas, e se não tivessem detido o zelo do proselitismo! É verdade que a guerra santa, guerra de extermínio como a das cruzadas, duraria ainda, se centenas de milhares de soldados tivessem perecido e se talvez tivéssemos sido forçados a abandoná-la. Mas, que é isto quando se trata da vitória da fé! Ora, eis aqui um outro flagelo: o Espiritismo que vem, em nome do Evangelho, proclamar a fraternidade entre os diferentes cultos e cimentar a união, inscrevendo em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação.
“Mas considerações diversas, senhor cura, nos detiveram até hoje. De início, hesitávamos em revelar essa vergonha nova, adicionada a tantas misérias exploradas, com amarga ironia, pelos inimigos de nossa cara e nobre Argélia. Por outro lado, sabemos que o Espiritismo quase não penetrou entre nós senão em certas cidades, onde os desocupados se contam em maior número; onde a curiosidade, incessantemente excitada, se repasta avidamente de tudo quanto se apresenta com caráter de novidade; onde a necessidade de brilhar e de se distinguir da multidão nem sempre é estranha, mesmo às inteligências de maior ou menor alcance, ao passo que o maior número de nossas pequenas cidades e do nosso campo ignoram, e por certo nada têm a perder com isto, até o nome bizarro e pretensioso de Espiritismo. Enfim, pensamos que tais práticas jamais são destinadas a uma vida longa, porque a desilusão logo vem para os escândalos de imaginação, que morrem quase sempre de sua própria vergonha. Assim aconteceu com as charlatanices de Cagliostro e de Mesmer; assim o furor das mesas girantes acalmou-se, sem deixar após si mais que o ridículo de seus arrastamentos e de suas lembranças”.
Se o próprio nome do Espiritismo é desconhecido no maior número das pequenas cidades e nos campos da Argélia, a carta circular do Sr. Bispo de Argel, espalhada em profusão, é um excelente meio de torná-lo conhecido, despertando a curiosidade que, por certo, não será detida pelo medo do diabo. Tal foi o efeito bem verificado de todos os sermões pregados contra o Espiritismo que, de notória publicidade, contribuíram poderosamente para multiplicar os seus adeptos.
A circular do Sr. Bispo de Argel terá efeito contrário? É mais que duvidoso. Lembramo-nos sempre desta palavra profética, tão bem realizada, de um Espírito a quem perguntávamos, há dois anos, por que meio o Espiritismo penetraria nos campos. Ele nos respondeu:
─ Pelos padres.
─ Voluntária ou involuntariamente?
─ A princípio, involuntariamente. Mais tarde, voluntariamente.
Lembraremo-nos ainda que, quando de nossa primeira viagem a Lyon, em 1860, os espíritas ali eram apenas algumas centenas. Naquele mesmo ano um sermão virulento foi pregado contra eles e nos escreveram: “Mais dois ou três sermões como esse e em breve seremos decuplicados.” Ora, os sermões não têm faltado naquela cidade, como se sabe, e o que todos sabem, também, é que no ano seguinte havia cinco a seis mil espíritas, e que a partir do terceiro ano, contavam-se mais de trinta mil. Pobre cidade lionesa! O que se sabe, ainda, é que o maior número de adeptos se encontra entre os operários, que nesta doutrina encontraram forças para suportar pacientemente as rudes provas que atravessaram, sem buscar na violência e na espoliação o necessário que lhes faltava. É que hoje oram e creem na justiça de Deus, já que não creem na dos homens; é que compreendem a palavra de Jesus: “Meu reino não é deste mundo.”
Dizei por que, com a vossa doutrina das penas eternas, que preconizais como um freio indispensável, jamais impedistes qualquer excesso, enquanto que a máxima “Fora da caridade não há salvação” é onipotente! Praza aos céus que jamais tenhais necessidade de vos colocardes sob sua égide! Mas se Deus ainda vos reservar dias nefastos, lembrai-vos que aqueles a quem negastes a esmola do pão, porque eles eram espíritas, serão os primeiros a repartir convosco seu pedaço de pão, porque compreendem estas palavras: “Perdoai aos vossos inimigos e fazei o bem aos que vos perseguem.”
Mas, então, o que tem o Espiritismo de tão temível, se ele não se ocupa senão dos desocupados de algumas cidades? Se tais práticas não estão nunca destinadas a uma vida longa? Se ele deve ter a sorte de Cagliostro, de Mesmer e das mesas girantes? Pelo que toca a Cagliostro, é preciso deixá-lo fora de questão, visto que o Espiritismo sempre lhe negou solidariedade, malgrado a persistência de alguns adversários em ligar o seu nome ao do Espiritismo, como fizeram com todos os charlatães e malabaristas.
Quanto a Mesmer, é preciso estar muito pouco ao corrente do que está acontecendo para ignorar que o magnetismo está mais espalhado do que nunca, e que é hoje professado por notabilidades científicas.
É verdade que atualmente pouco se ocupam das mesas girantes, mas força é convir que fizeram um belo caminho, pois foram o ponto de partida desta doutrina que causa tanta insônia e esses senhores. Elas foram o á-bê-cê do Espiritismo. Se, pois, delas não mais se ocupam, é que ninguém mais vai deletrear quando já sabe ler. Elas cresceram tanto que não mais as reconheceis.
Depois de ter falado de sua viagem à França, que teve pleno sucesso, acrescenta o Sr. Bispo de Argel:
“Nossa primeira e incessante ocupação ao voltar era publicar uma instrução pastoral contra a superstição em geral e, em particular, contra a do Espiritismo, pois o Evangelho segundo Renan só nos preocupou durante oito dias.”
Eis uma singular confissão, força é convir. A obra do Sr. Renan, que sapa o edifício por sua base, e que teve tão grande repercussão, não preocupou Sua Grandeza senão durante oito dias, ao passo que o Espiritismo lhe absorve toda a atenção. “Chego a toda a pressa”, diz ele, e posto abatido das fadigas de uma longa viagem, sem ter repouso, subo à brecha. Temos um novo e rude adversário no Sr. Renan, mas isto nos inquieta pouco. Marchemos direto contra o Espiritismo, pois é o mais urgente.” É uma grande honra para o Espiritismo, pois significa reconhecer que ele é muito mais temível, e ele não pode ser temível senão com a condição de ser lógico. Se ele não tiver qualquer base séria, como pretende o Sr. Bispo, para que esse desencadeamento de forças? Quem já viu dar tiros de canhão numa mosca que voa? Quanto mais violentos os meios de ataque, mais exaltam a sua importância. Eis por que não nos lastimamos.
“Soubemos, e disto não duvidamos, que verdadeiros cristãos, católicos sinceros, imaginaram poder associar Jesus Cristo e Belial, os mandamentos da Igreja com os processos do Espiritismo.”
É um pouco tarde para vos aperceberdes, pois há três anos o Espiritismo foi implantado e prospera na Argélia, onde não vai mal. Além disto, a brochura do Sr. Leblanc de Prébois, publicada em nome e para a defesa da Igreja, vos deve ter informado que atualmente há na França, segundo os seus cálculos, vinte milhões de espíritas, isto é, a metade da população, e que em pouco tempo a outra metade será ganha. Ora, a Argélia faz parte da França.
Diz a circular, dirigindo-se aos curas da diocese:
“Se em suas paróquias houver espíritas, seja de que condição forem, em geral os infiéis, as mulheres vaidosas, os cabeças ocas, formando sempre o grosso dos cortejos supersticiosos, que o sacerdote não hesite em lhes declarar que não há qualquer transação possível entre o Catolicismo e o Espiritismo; que, em suas experiências, não pode haver senão uma destas três coisas: charlatanismo da parte de uns; alucinação da parte de outros ou, o que é pior, uma intervenção diabólica.”
Se não há transação possível, pior para os católicos do que para os espíritas, porque se o Espiritismo ganha terreno diariamente, façam o que fizerem para detêlo, e o que fará o Catolicismo quando se realizar a previsão do Sr. Leblanc Prébois? Se ele põe todos os espíritas para fora da Igreja, quem ficará lá dentro? Mas esta não é a questão do momento. Ela virá a seu tempo e lugar. O último trecho da frase tem grande alcance da parte de um homem como o Sr. Bispo de Argel, que deve pesar o sentido de todas as suas palavras. Segundo ele, não pode haver no Espiritismo senão uma destas três coisas: charlatanismo, alucinação ou, o que é pior, intervenção diabólica. Notai que não são as três coisas juntas, mas apenas uma das três é possível. O reverendo não parece estar certo de qual delas, considerando-se que a intervenção diabólica é a pior. Ora, se é charlatanismo e alucinação, não é nada de sério, e não há intervenção do diabo. Se é obra do diabo, é algo de positivo e, então, não há nem charlatanismo nem alucinação. Na primeira hipótese, é preciso convir que fazer tanto barulho por uma simples charlatanaria ou uma ilusão é bater-se contra moinhos de vento, papel pouco digno da gravidade da Igreja; no segundo é reconhecer ao diabo um poder maior que o da Igreja, ou à Igreja uma enorme fraqueza, porque ela não pode impedir o diabo de agir, como não pôde, a despeito de todos os exorcismos, dele livrar os possessos de Morzine.
“Nós lá estávamos, senhor cura, em nosso labor apostólico, quando recebemos numerosos artigos de jornais, brochuras, livros e notadamente um discurso (do Pe. Nampon) no qual, salvo as ideias gerais, encontramos muito claramente e facilmente exposto, tudo quanto íamos dizer a seguir, a propósito do Espiritismo. Como não gostamos de refazer, desnecessariamente, o que julgamos bem feito, aconselhamovos a adquirir algumas dessas obras, e pelo menos um exemplar desse discurso, que vos esclarecerá suficientemente quanto aos processos, a doutrina e as consequências do Espiritismo.”
Estamos encantados de saber que a obra do Pe. Nampon é julgada pelos príncipes dos padres uma obra bem feita, depois da qual não há nada melhor a fazer. É uma tranquilidade para os espíritas saber que o Rev. Padre esgotou todos os argumentos e que nada pode ser acrescentado. Ora, como esses argumentos, longe de deter o avanço do Espiritismo, lhe recrutaram partidários, cabe aos seus antagonistas mostrar-se satisfeitos com o preço.
Quanto a esclarecer suficientemente os senhores curas sobre a doutrina, não pensamos que textos alterados e truncados, como aqueles que o Pe. Nampon usou sem cerimônia, como o demonstramos na Revista de junho último, sejam próprios a lhes dar uma ideia bem exata do Espiritismo. É preciso ser muito parco de boas razões para usar semelhantes meios, que desacreditam a causa de quem deles se serve.
“Antes de qualquer coisa, não seria deplorável encontrar na Argélia cristãos sérios que hesitassem em pronunciar-se energicamente contra o Espiritismo, uns sob o pretexto de que nele há alguma coisa de verdadeiro, e outros porque viram materialistas convictos voltarem à crença na outra vida através do Espiritismo? Ilógica ingenuidade dos dois lados!”
Assim, haver reconduzido à crença em Deus e na vida futura os materialistas convictos não significa nada? Por isso o Espiritismo não deixa de ser uma coisa má. Entretanto, Jesus disse que uma árvore má não pode dar bons frutos. Dar a fé a quem não a tem é um mau fruto? Se não pudestes reconduzir esses incrédulos convictos e o Espiritismo o conseguiu, qual a melhor das duas árvores? É evidente que sem o Espiritismo esses materialistas endurecidos teriam continuado materialistas.
Considerando-se que o Sr. Bispo quer à fina força destruir o Espiritismo, que reconduz as almas a Deus, é que aos seus olhos, essas almas, não tendo sido reconduzidas pela Igreja, é preferível que morram na incredulidade. Isto nos lembra aquelas palavras pronunciadas do púlpito de uma cidadezinha: “Prefiro que os incrédulos fiquem fora da Igreja do que voltarem à Igreja pelo Espiritismo.” Estas não são bem as palavras do Cristo, que disse: “Misericórdia quero e não sacrifício.” E esta outra, pronunciada alhures: “Prefiro ver os operários saindo bêbados do cabaré do que sabê-los espíritas.” Isto é demência. Não ficaríamos surpresos se um acesso de raiva contra o Espiritismo produzisse uma verdadeira loucura.
“Se, malgrado a voz da consciência, homens educados nos princípios do Cristianismo, tendo-os infelizmente esquecido, negado de coração e combatido em seus livros, tentando praticar esses princípios e admitindo uma imortalidade da alma, um purgatório e um inferno completamente diferentes da imortalidade da alma, do purgatório e do inferno dos Evangelhos, tiverem ganho, pelo Espiritismo, algo pela fé e para sua salvação, que cristão poderia imaginar-se nessa situação, considerando-se que eles apenas puseram no lugar as mais sacrílegas blasfêmias da crença!”
Em que o purgatório dos espíritas difere do purgatório dos Evangelhos, já que os Evangelhos nada dizem sobre ele? Dele falam tão pouco que os protestantes, que seguem a letra do Evangelho, não o admitem.
Quanto ao inferno, o Evangelho está longe de aí haver colocado as caldeiras ferventes que nele coloca o Catolicismo e de ter dito, como nos ensinaram na infância, e como pregaram há três ou quatro anos em Montpellier, que “Os anjos tiram as tampas dessas caldeiras, para que os eleitos se repastem com a visão dos sofrimentos dos danados.” Eis um lado original da beatitude dos bem-aventurados. Não sabíamos que Jesus havia dito uma palavra a respeito disso. O Espiritismo, na verdade, não admite tais coisas. Se isto é um motivo de reprovação, então, que ele seja reprovado!
“Far-se-lhes-á compreender igualmente que é a renovação das teorias pagãs caídas no desprezo dos sábios, antes mesmo do aparecimento do Evangelho; que introduzindo a metempsicose, ou a transmigração das almas, o Espiritismo mata a individualidade pessoal e reduz a nada a responsabilidade moral; que destruindo a ideia do purgatório e do inferno eternamente pessoal, ele abre caminho a todas as desordens, a todas as imoralidades.”
Se algo foi tomado às velhas teorias pagãs, foi certamente o quadro das torturas do inferno. Aliás, não vemos claramente como, depois de havermos admitido qualquer tipo de purgatório, neguemos a ideia do purgatório. Quanto à metempsicose dos Antigos, longe de tê-la introduzido, o Espiritismo a combateu sempre e lhe demonstrou a impossibilidade. Quando, então, cessarão de fazer o Espiritismo dizer o contrário do que diz? A pluralidade das existências, que ele admite, não como um sistema, mas como uma lei da Natureza provada pelos fatos, daquela difere essencialmente. Ora, contra uma lei da Natureza, que é essencialmente obra de Deus, não há sistema que possa prevalecer, nem anátemas que a possam anular, assim como não anularam o movimento da Terra e os períodos da criação.
A pluralidade das existências, o renascimento, se quiserem, é uma condição inerente à natureza humana, como a de dormir, e necessária ao progresso da alma. É sempre desagradável para uma religião, quando esta se obstina em ficar na retaguarda dos conhecimentos adquiridos, porque chega um momento em que, ultrapassada pela onda irresistível das ideias, ela perde o crédito e a influência sobre todos os homens instruídos. Julgar-se comprometida pelas ideias novas é confessar a fragilidade de seu ponto de apoio. É pior ainda quando se alarma ante o que chama de utopia. É uma coisa curiosa, realmente, ver os adversários do Espiritismo esgrimindo para dizer que ele é um sonho vazio sem importância nem vitalidade, e sem cessar gritando: fogo!
Segundo a máxima: “A árvore se conhece pelo fruto”, a melhor maneira de julgar as coisas é estudar os seus efeitos. Se, pois, como pretendem, a negação do inferno eternamente pessoal abre caminho a todas as desordens e a todas as imoralidades, segue-se que: 1.º ─ A crença nesse inferno abre caminho a todas as virtudes; 2.º ─ Quem quer que se entregue a atos imorais, não teme as penas eternas, e se não as teme é porque nelas não crê. Ora, quem deve nele crer melhor do que os que as ensinam? Quem deve estar mais penetrado desse medo, mais impressionado pelo quadro dos tormentos sem fim do que aqueles que noite e dia são embalados nessa crença?
Onde essa crença e esse medo deveriam estar em sua força máxima? Onde deveria haver mais contenção e moralidade, senão no próprio centro da catolicidade? Se todos os que professam esse dogma e dele fazem a condição de salvação estivessem isentos de reproches, certamente suas palavras teriam mais peso, mas quando se veem tão escandalosas desordens entre aqueles mesmos que pregam o medo do inferno, é forçoso concluir que não acreditam no que pregam. Como esperam persuadir os que se inclinam à dúvida? Eles matam o dogma por seu próprio exagero e pelo seu exemplo.
Julgado por seus frutos, o dogma das penas eternas não os dá bons, prova de que a árvore é má, e entre esses maus frutos há que colocar o imenso número de incrédulos que ele faz diariamente. A Igreja nele se pendura como numa corda de salvação, mas a corda está tão gasta, que em breve deixará o barco à deriva.
Se algum dia a Igreja devesse periclitar, seria pelo absolutismo de seus dogmas do inferno, das penas eternas e da supremacia que ela confere ao diabo neste mundo. Se não se pode ser católico sem acreditar nesse inferno e na danação eterna, é preciso convir que o número dos verdadeiros católicos é hoje muito reduzido, e mais de um Pai da Igreja pode ser considerado como manchado de heresia.
“Não será inútil acrescentar, senhor cura, que a paz das famílias é gravemente perturbada pela prática do Espiritismo; que um grande número de cabeças por ele já perderam o senso e que as casas de alienados da América, Inglaterra e França regurgitam, desde já, com suas numerosas vítimas, de tal sorte que se o Espiritismo propagasse suas conquistas, seria necessário mudar o nome dos sanatórios para hospícios.”
Se o Sr. Bispo de Argel tivesse colhido seus ensinamentos alhures que não em fontes interesseiras, teria sabido o que são esses supostos loucos, e não se teria rendido ao eco de uma história inventada de má-fé e da qual ressalta o ridículo do próprio exagero. Um primeiro jornal falou de quatro casos, ao que se dizia, constatados num hospício; outro jornal, citando o primeiro, elevou o número para quarenta; um terceiro, citando o segundo, elevou-o para quatrocentos, e acrescentou que vão aumentar o hospício, e todos os jornais hostis repetem à vontade essa história. Depois o Sr. Bispo de Argel, levado por seu zelo, retomando-a, sem demolir o edifício, ainda a amplia, dizendo que as casas de alienados da França, da Inglaterra e da América regurgitam de vítimas da nova doutrina. Coisa curiosa! Ele cita a Inglaterra, um dos países onde o Espiritismo é menos difundido e onde certamente há menos adeptos do que na Itália, na Espanha e na Rússia.
Que uma brochura efêmera e inexpressiva; que um jornal pouco preocupado com a fonte das notícias que publica asseverem um fato aventuroso por necessidade da causa, nada é de admirar, posto já não seja moral, mas um documento episcopal, com caráter oficial, só deveria conter coisas de uma autenticidade de tal modo verificada que deveria isentar-se até de suspeita de inexatidão, ainda que involuntária.
Quanto à paz das famílias, perturbada pela prática do Espiritismo, não conhecemos senão aqueles casos em que mulheres, enganadas por seus confessores, foram incitadas a abandonar o teto conjugal para se subtraírem às influências demoníacas trazidas por seus maridos espíritas.
Em compensação, são numerosos os exemplos de famílias outrora separadas, cujos membros se reaproximaram depois dos conselhos de seus Espíritos protetores e sob a influência da doutrina que, a exemplo de Jesus, prega a união, a concórdia, a doçura, a tolerância, o esquecimento das injúrias, a indulgência para com as imperfeições alheias, e traz a paz onde reinava a cizânia.
Ainda aqui é o caso de dizer que se julga a árvore por seus frutos. É um fato constatado que, quando há divisão das famílias, a cisão parte sempre do lado da intolerância religiosa.
A carta pastoral termina pela seguinte ordenação:
“Por estas causas, e invocado o Espírito Santo, temos ordenado e ordenamos o que segue:
“Art. 1º ─ A prática do Espiritismo ou invocação dos mortos é interdita a todos e a cada um na diocese de Argel.
“Art. 2º ─ Os confessores recusarão a absolvição a quem quer que não renuncie a toda participação, quer como médium, quer como adepto, ou como simples testemunha às sessões privadas ou públicas ou, enfim, a uma operação qualquer de Espiritismo.
“Art. 3º ─ Em todas as cidades da Argélia e nas paróquias rurais onde o Espiritismo se introduziu com algum brilho, os senhores curas lerão publicamente esta carta do púlpito, no primeiro domingo após o seu recebimento. Aliás, por toda parte será ela comunicada em particular, conforme as necessidades.
“Dada em Argel, a 18 de agosto de 1863.”
É a primeira ordenação lançada com o fito de interditar oficialmente o Espiritismo numa localidade. Ela é de 18 de agosto de 1863. Essa data ficará marcada nos anais do Espiritismo, como a de 9 de outubro de 1861, dia para sempre memorável do auto de fé de Barcelona, ordenado pelo bispo daquela cidade. Como os ataques, as críticas e os sermões não produziram efeito satisfatório, quiseram dar um golpe pela excomunhão oficial. Vejamos se o objetivo será melhor atingido.
Pelo primeiro artigo, a ordenação é dirigida a todos e a cada um na diocese de Argel, isto é, a proibição de ocupar-se do Espiritismo é feita a todos os indivíduos, sem exceção. Mas a população não é apenas de católicos fervorosos. Sem falar dos judeus, dos protestantes e dos muçulmanos, ela compreende todos os materialistas, panteístas, incrédulos, livres-pensadores, cépticos e indiferentes, cujo número é incalculável. Eles figuram no contingente nominal do Catolicismo porque nasceram e foram batizados nessa religião, mas, na realidade, eles próprios saíram da Igreja. Nestes termos, o Sr. Renan e tantos outros figuram na população católica. Assim, a ordenação não alcança todos os indivíduos que não estejam na estrita ortodoxia. O mesmo acontecerá em toda parte onde for feita semelhante proibição. Sendo, pois, materialmente impossível que uma proibição dessa natureza, venha de onde vier, atinja todo mundo, para um que dele for afastado, haverá cem que continuarão dele se ocupando.
Depois, eles põem de lado os Espíritos que vêm sem serem chamados, mesmo junto àqueles que foram proibidos de recebê-los; que falam aos que não querem escutar; que passam através das paredes quando lhes fecham as portas. Aí está a maior dificuldade, para a qual falta um artigo na ordenação acima.
Essa ordenação não atinge senão os católicos fervorosos. Ora, nós temos repetido muitas vezes que o Espiritismo vem dar a fé aos que em nada creem ou que estão em dúvida. Aos que têm uma fé bem estabelecida e aos quais basta essa fé, ele diz: “Guardai-a”, e não procura dela desviá-los.
Ele a ninguém diz: “Deixai vossa crença para vir a mim”, pois ele tem bastante a colher no campo dos incrédulos.
Assim, a proibição não pode atingir aqueles aos quais o Espiritismo se dirige, e só atinge aqueles a quem ele não se dirige. Jesus disse: “Não são os que têm saúde que necessitam de médico”. Se estes últimos vêm a ele, sem que ele os busque, é que nele encontram consolações e certezas que não encontram alhures, e neste caso desprezarão a proibição.
Há cerca de três meses foi dada esta ordenação, e já podemos apreciar os seus efeitos. Desde o seu aparecimento, mais de vinte cartas nos foram mandadas da Argélia, todas confirmando os resultados previstos.
No próximo número, veremos o que está acontecendo.
“...Tínhamos pensado em adicionar modesta página a estes luminosos anais, empalidecendo, das alturas do bom-senso e da fé, como o merece ser, o Espiritismo que, renovado da mais velha e mais grosseira idolatria, vem abater-se sobre a Argélia. Pobre colônia! Após tão cruéis provas, ainda lhe era necessária uma deste gênero!”
Pobre colônia! Com efeito, não seria ela muito mais próspera se, em vez de tolerar e proteger a religião dos indígenas, se tivessem transformado suas mesquitas e sinagogas em igrejas, e se não tivessem detido o zelo do proselitismo! É verdade que a guerra santa, guerra de extermínio como a das cruzadas, duraria ainda, se centenas de milhares de soldados tivessem perecido e se talvez tivéssemos sido forçados a abandoná-la. Mas, que é isto quando se trata da vitória da fé! Ora, eis aqui um outro flagelo: o Espiritismo que vem, em nome do Evangelho, proclamar a fraternidade entre os diferentes cultos e cimentar a união, inscrevendo em sua bandeira: Fora da caridade não há salvação.
“Mas considerações diversas, senhor cura, nos detiveram até hoje. De início, hesitávamos em revelar essa vergonha nova, adicionada a tantas misérias exploradas, com amarga ironia, pelos inimigos de nossa cara e nobre Argélia. Por outro lado, sabemos que o Espiritismo quase não penetrou entre nós senão em certas cidades, onde os desocupados se contam em maior número; onde a curiosidade, incessantemente excitada, se repasta avidamente de tudo quanto se apresenta com caráter de novidade; onde a necessidade de brilhar e de se distinguir da multidão nem sempre é estranha, mesmo às inteligências de maior ou menor alcance, ao passo que o maior número de nossas pequenas cidades e do nosso campo ignoram, e por certo nada têm a perder com isto, até o nome bizarro e pretensioso de Espiritismo. Enfim, pensamos que tais práticas jamais são destinadas a uma vida longa, porque a desilusão logo vem para os escândalos de imaginação, que morrem quase sempre de sua própria vergonha. Assim aconteceu com as charlatanices de Cagliostro e de Mesmer; assim o furor das mesas girantes acalmou-se, sem deixar após si mais que o ridículo de seus arrastamentos e de suas lembranças”.
Se o próprio nome do Espiritismo é desconhecido no maior número das pequenas cidades e nos campos da Argélia, a carta circular do Sr. Bispo de Argel, espalhada em profusão, é um excelente meio de torná-lo conhecido, despertando a curiosidade que, por certo, não será detida pelo medo do diabo. Tal foi o efeito bem verificado de todos os sermões pregados contra o Espiritismo que, de notória publicidade, contribuíram poderosamente para multiplicar os seus adeptos.
A circular do Sr. Bispo de Argel terá efeito contrário? É mais que duvidoso. Lembramo-nos sempre desta palavra profética, tão bem realizada, de um Espírito a quem perguntávamos, há dois anos, por que meio o Espiritismo penetraria nos campos. Ele nos respondeu:
─ Pelos padres.
─ Voluntária ou involuntariamente?
─ A princípio, involuntariamente. Mais tarde, voluntariamente.
Lembraremo-nos ainda que, quando de nossa primeira viagem a Lyon, em 1860, os espíritas ali eram apenas algumas centenas. Naquele mesmo ano um sermão virulento foi pregado contra eles e nos escreveram: “Mais dois ou três sermões como esse e em breve seremos decuplicados.” Ora, os sermões não têm faltado naquela cidade, como se sabe, e o que todos sabem, também, é que no ano seguinte havia cinco a seis mil espíritas, e que a partir do terceiro ano, contavam-se mais de trinta mil. Pobre cidade lionesa! O que se sabe, ainda, é que o maior número de adeptos se encontra entre os operários, que nesta doutrina encontraram forças para suportar pacientemente as rudes provas que atravessaram, sem buscar na violência e na espoliação o necessário que lhes faltava. É que hoje oram e creem na justiça de Deus, já que não creem na dos homens; é que compreendem a palavra de Jesus: “Meu reino não é deste mundo.”
Dizei por que, com a vossa doutrina das penas eternas, que preconizais como um freio indispensável, jamais impedistes qualquer excesso, enquanto que a máxima “Fora da caridade não há salvação” é onipotente! Praza aos céus que jamais tenhais necessidade de vos colocardes sob sua égide! Mas se Deus ainda vos reservar dias nefastos, lembrai-vos que aqueles a quem negastes a esmola do pão, porque eles eram espíritas, serão os primeiros a repartir convosco seu pedaço de pão, porque compreendem estas palavras: “Perdoai aos vossos inimigos e fazei o bem aos que vos perseguem.”
Mas, então, o que tem o Espiritismo de tão temível, se ele não se ocupa senão dos desocupados de algumas cidades? Se tais práticas não estão nunca destinadas a uma vida longa? Se ele deve ter a sorte de Cagliostro, de Mesmer e das mesas girantes? Pelo que toca a Cagliostro, é preciso deixá-lo fora de questão, visto que o Espiritismo sempre lhe negou solidariedade, malgrado a persistência de alguns adversários em ligar o seu nome ao do Espiritismo, como fizeram com todos os charlatães e malabaristas.
Quanto a Mesmer, é preciso estar muito pouco ao corrente do que está acontecendo para ignorar que o magnetismo está mais espalhado do que nunca, e que é hoje professado por notabilidades científicas.
É verdade que atualmente pouco se ocupam das mesas girantes, mas força é convir que fizeram um belo caminho, pois foram o ponto de partida desta doutrina que causa tanta insônia e esses senhores. Elas foram o á-bê-cê do Espiritismo. Se, pois, delas não mais se ocupam, é que ninguém mais vai deletrear quando já sabe ler. Elas cresceram tanto que não mais as reconheceis.
Depois de ter falado de sua viagem à França, que teve pleno sucesso, acrescenta o Sr. Bispo de Argel:
“Nossa primeira e incessante ocupação ao voltar era publicar uma instrução pastoral contra a superstição em geral e, em particular, contra a do Espiritismo, pois o Evangelho segundo Renan só nos preocupou durante oito dias.”
Eis uma singular confissão, força é convir. A obra do Sr. Renan, que sapa o edifício por sua base, e que teve tão grande repercussão, não preocupou Sua Grandeza senão durante oito dias, ao passo que o Espiritismo lhe absorve toda a atenção. “Chego a toda a pressa”, diz ele, e posto abatido das fadigas de uma longa viagem, sem ter repouso, subo à brecha. Temos um novo e rude adversário no Sr. Renan, mas isto nos inquieta pouco. Marchemos direto contra o Espiritismo, pois é o mais urgente.” É uma grande honra para o Espiritismo, pois significa reconhecer que ele é muito mais temível, e ele não pode ser temível senão com a condição de ser lógico. Se ele não tiver qualquer base séria, como pretende o Sr. Bispo, para que esse desencadeamento de forças? Quem já viu dar tiros de canhão numa mosca que voa? Quanto mais violentos os meios de ataque, mais exaltam a sua importância. Eis por que não nos lastimamos.
“Soubemos, e disto não duvidamos, que verdadeiros cristãos, católicos sinceros, imaginaram poder associar Jesus Cristo e Belial, os mandamentos da Igreja com os processos do Espiritismo.”
É um pouco tarde para vos aperceberdes, pois há três anos o Espiritismo foi implantado e prospera na Argélia, onde não vai mal. Além disto, a brochura do Sr. Leblanc de Prébois, publicada em nome e para a defesa da Igreja, vos deve ter informado que atualmente há na França, segundo os seus cálculos, vinte milhões de espíritas, isto é, a metade da população, e que em pouco tempo a outra metade será ganha. Ora, a Argélia faz parte da França.
Diz a circular, dirigindo-se aos curas da diocese:
“Se em suas paróquias houver espíritas, seja de que condição forem, em geral os infiéis, as mulheres vaidosas, os cabeças ocas, formando sempre o grosso dos cortejos supersticiosos, que o sacerdote não hesite em lhes declarar que não há qualquer transação possível entre o Catolicismo e o Espiritismo; que, em suas experiências, não pode haver senão uma destas três coisas: charlatanismo da parte de uns; alucinação da parte de outros ou, o que é pior, uma intervenção diabólica.”
Se não há transação possível, pior para os católicos do que para os espíritas, porque se o Espiritismo ganha terreno diariamente, façam o que fizerem para detêlo, e o que fará o Catolicismo quando se realizar a previsão do Sr. Leblanc Prébois? Se ele põe todos os espíritas para fora da Igreja, quem ficará lá dentro? Mas esta não é a questão do momento. Ela virá a seu tempo e lugar. O último trecho da frase tem grande alcance da parte de um homem como o Sr. Bispo de Argel, que deve pesar o sentido de todas as suas palavras. Segundo ele, não pode haver no Espiritismo senão uma destas três coisas: charlatanismo, alucinação ou, o que é pior, intervenção diabólica. Notai que não são as três coisas juntas, mas apenas uma das três é possível. O reverendo não parece estar certo de qual delas, considerando-se que a intervenção diabólica é a pior. Ora, se é charlatanismo e alucinação, não é nada de sério, e não há intervenção do diabo. Se é obra do diabo, é algo de positivo e, então, não há nem charlatanismo nem alucinação. Na primeira hipótese, é preciso convir que fazer tanto barulho por uma simples charlatanaria ou uma ilusão é bater-se contra moinhos de vento, papel pouco digno da gravidade da Igreja; no segundo é reconhecer ao diabo um poder maior que o da Igreja, ou à Igreja uma enorme fraqueza, porque ela não pode impedir o diabo de agir, como não pôde, a despeito de todos os exorcismos, dele livrar os possessos de Morzine.
“Nós lá estávamos, senhor cura, em nosso labor apostólico, quando recebemos numerosos artigos de jornais, brochuras, livros e notadamente um discurso (do Pe. Nampon) no qual, salvo as ideias gerais, encontramos muito claramente e facilmente exposto, tudo quanto íamos dizer a seguir, a propósito do Espiritismo. Como não gostamos de refazer, desnecessariamente, o que julgamos bem feito, aconselhamovos a adquirir algumas dessas obras, e pelo menos um exemplar desse discurso, que vos esclarecerá suficientemente quanto aos processos, a doutrina e as consequências do Espiritismo.”
Estamos encantados de saber que a obra do Pe. Nampon é julgada pelos príncipes dos padres uma obra bem feita, depois da qual não há nada melhor a fazer. É uma tranquilidade para os espíritas saber que o Rev. Padre esgotou todos os argumentos e que nada pode ser acrescentado. Ora, como esses argumentos, longe de deter o avanço do Espiritismo, lhe recrutaram partidários, cabe aos seus antagonistas mostrar-se satisfeitos com o preço.
Quanto a esclarecer suficientemente os senhores curas sobre a doutrina, não pensamos que textos alterados e truncados, como aqueles que o Pe. Nampon usou sem cerimônia, como o demonstramos na Revista de junho último, sejam próprios a lhes dar uma ideia bem exata do Espiritismo. É preciso ser muito parco de boas razões para usar semelhantes meios, que desacreditam a causa de quem deles se serve.
“Antes de qualquer coisa, não seria deplorável encontrar na Argélia cristãos sérios que hesitassem em pronunciar-se energicamente contra o Espiritismo, uns sob o pretexto de que nele há alguma coisa de verdadeiro, e outros porque viram materialistas convictos voltarem à crença na outra vida através do Espiritismo? Ilógica ingenuidade dos dois lados!”
Assim, haver reconduzido à crença em Deus e na vida futura os materialistas convictos não significa nada? Por isso o Espiritismo não deixa de ser uma coisa má. Entretanto, Jesus disse que uma árvore má não pode dar bons frutos. Dar a fé a quem não a tem é um mau fruto? Se não pudestes reconduzir esses incrédulos convictos e o Espiritismo o conseguiu, qual a melhor das duas árvores? É evidente que sem o Espiritismo esses materialistas endurecidos teriam continuado materialistas.
Considerando-se que o Sr. Bispo quer à fina força destruir o Espiritismo, que reconduz as almas a Deus, é que aos seus olhos, essas almas, não tendo sido reconduzidas pela Igreja, é preferível que morram na incredulidade. Isto nos lembra aquelas palavras pronunciadas do púlpito de uma cidadezinha: “Prefiro que os incrédulos fiquem fora da Igreja do que voltarem à Igreja pelo Espiritismo.” Estas não são bem as palavras do Cristo, que disse: “Misericórdia quero e não sacrifício.” E esta outra, pronunciada alhures: “Prefiro ver os operários saindo bêbados do cabaré do que sabê-los espíritas.” Isto é demência. Não ficaríamos surpresos se um acesso de raiva contra o Espiritismo produzisse uma verdadeira loucura.
“Se, malgrado a voz da consciência, homens educados nos princípios do Cristianismo, tendo-os infelizmente esquecido, negado de coração e combatido em seus livros, tentando praticar esses princípios e admitindo uma imortalidade da alma, um purgatório e um inferno completamente diferentes da imortalidade da alma, do purgatório e do inferno dos Evangelhos, tiverem ganho, pelo Espiritismo, algo pela fé e para sua salvação, que cristão poderia imaginar-se nessa situação, considerando-se que eles apenas puseram no lugar as mais sacrílegas blasfêmias da crença!”
Em que o purgatório dos espíritas difere do purgatório dos Evangelhos, já que os Evangelhos nada dizem sobre ele? Dele falam tão pouco que os protestantes, que seguem a letra do Evangelho, não o admitem.
Quanto ao inferno, o Evangelho está longe de aí haver colocado as caldeiras ferventes que nele coloca o Catolicismo e de ter dito, como nos ensinaram na infância, e como pregaram há três ou quatro anos em Montpellier, que “Os anjos tiram as tampas dessas caldeiras, para que os eleitos se repastem com a visão dos sofrimentos dos danados.” Eis um lado original da beatitude dos bem-aventurados. Não sabíamos que Jesus havia dito uma palavra a respeito disso. O Espiritismo, na verdade, não admite tais coisas. Se isto é um motivo de reprovação, então, que ele seja reprovado!
“Far-se-lhes-á compreender igualmente que é a renovação das teorias pagãs caídas no desprezo dos sábios, antes mesmo do aparecimento do Evangelho; que introduzindo a metempsicose, ou a transmigração das almas, o Espiritismo mata a individualidade pessoal e reduz a nada a responsabilidade moral; que destruindo a ideia do purgatório e do inferno eternamente pessoal, ele abre caminho a todas as desordens, a todas as imoralidades.”
Se algo foi tomado às velhas teorias pagãs, foi certamente o quadro das torturas do inferno. Aliás, não vemos claramente como, depois de havermos admitido qualquer tipo de purgatório, neguemos a ideia do purgatório. Quanto à metempsicose dos Antigos, longe de tê-la introduzido, o Espiritismo a combateu sempre e lhe demonstrou a impossibilidade. Quando, então, cessarão de fazer o Espiritismo dizer o contrário do que diz? A pluralidade das existências, que ele admite, não como um sistema, mas como uma lei da Natureza provada pelos fatos, daquela difere essencialmente. Ora, contra uma lei da Natureza, que é essencialmente obra de Deus, não há sistema que possa prevalecer, nem anátemas que a possam anular, assim como não anularam o movimento da Terra e os períodos da criação.
A pluralidade das existências, o renascimento, se quiserem, é uma condição inerente à natureza humana, como a de dormir, e necessária ao progresso da alma. É sempre desagradável para uma religião, quando esta se obstina em ficar na retaguarda dos conhecimentos adquiridos, porque chega um momento em que, ultrapassada pela onda irresistível das ideias, ela perde o crédito e a influência sobre todos os homens instruídos. Julgar-se comprometida pelas ideias novas é confessar a fragilidade de seu ponto de apoio. É pior ainda quando se alarma ante o que chama de utopia. É uma coisa curiosa, realmente, ver os adversários do Espiritismo esgrimindo para dizer que ele é um sonho vazio sem importância nem vitalidade, e sem cessar gritando: fogo!
Segundo a máxima: “A árvore se conhece pelo fruto”, a melhor maneira de julgar as coisas é estudar os seus efeitos. Se, pois, como pretendem, a negação do inferno eternamente pessoal abre caminho a todas as desordens e a todas as imoralidades, segue-se que: 1.º ─ A crença nesse inferno abre caminho a todas as virtudes; 2.º ─ Quem quer que se entregue a atos imorais, não teme as penas eternas, e se não as teme é porque nelas não crê. Ora, quem deve nele crer melhor do que os que as ensinam? Quem deve estar mais penetrado desse medo, mais impressionado pelo quadro dos tormentos sem fim do que aqueles que noite e dia são embalados nessa crença?
Onde essa crença e esse medo deveriam estar em sua força máxima? Onde deveria haver mais contenção e moralidade, senão no próprio centro da catolicidade? Se todos os que professam esse dogma e dele fazem a condição de salvação estivessem isentos de reproches, certamente suas palavras teriam mais peso, mas quando se veem tão escandalosas desordens entre aqueles mesmos que pregam o medo do inferno, é forçoso concluir que não acreditam no que pregam. Como esperam persuadir os que se inclinam à dúvida? Eles matam o dogma por seu próprio exagero e pelo seu exemplo.
Julgado por seus frutos, o dogma das penas eternas não os dá bons, prova de que a árvore é má, e entre esses maus frutos há que colocar o imenso número de incrédulos que ele faz diariamente. A Igreja nele se pendura como numa corda de salvação, mas a corda está tão gasta, que em breve deixará o barco à deriva.
Se algum dia a Igreja devesse periclitar, seria pelo absolutismo de seus dogmas do inferno, das penas eternas e da supremacia que ela confere ao diabo neste mundo. Se não se pode ser católico sem acreditar nesse inferno e na danação eterna, é preciso convir que o número dos verdadeiros católicos é hoje muito reduzido, e mais de um Pai da Igreja pode ser considerado como manchado de heresia.
“Não será inútil acrescentar, senhor cura, que a paz das famílias é gravemente perturbada pela prática do Espiritismo; que um grande número de cabeças por ele já perderam o senso e que as casas de alienados da América, Inglaterra e França regurgitam, desde já, com suas numerosas vítimas, de tal sorte que se o Espiritismo propagasse suas conquistas, seria necessário mudar o nome dos sanatórios para hospícios.”
Se o Sr. Bispo de Argel tivesse colhido seus ensinamentos alhures que não em fontes interesseiras, teria sabido o que são esses supostos loucos, e não se teria rendido ao eco de uma história inventada de má-fé e da qual ressalta o ridículo do próprio exagero. Um primeiro jornal falou de quatro casos, ao que se dizia, constatados num hospício; outro jornal, citando o primeiro, elevou o número para quarenta; um terceiro, citando o segundo, elevou-o para quatrocentos, e acrescentou que vão aumentar o hospício, e todos os jornais hostis repetem à vontade essa história. Depois o Sr. Bispo de Argel, levado por seu zelo, retomando-a, sem demolir o edifício, ainda a amplia, dizendo que as casas de alienados da França, da Inglaterra e da América regurgitam de vítimas da nova doutrina. Coisa curiosa! Ele cita a Inglaterra, um dos países onde o Espiritismo é menos difundido e onde certamente há menos adeptos do que na Itália, na Espanha e na Rússia.
Que uma brochura efêmera e inexpressiva; que um jornal pouco preocupado com a fonte das notícias que publica asseverem um fato aventuroso por necessidade da causa, nada é de admirar, posto já não seja moral, mas um documento episcopal, com caráter oficial, só deveria conter coisas de uma autenticidade de tal modo verificada que deveria isentar-se até de suspeita de inexatidão, ainda que involuntária.
Quanto à paz das famílias, perturbada pela prática do Espiritismo, não conhecemos senão aqueles casos em que mulheres, enganadas por seus confessores, foram incitadas a abandonar o teto conjugal para se subtraírem às influências demoníacas trazidas por seus maridos espíritas.
Em compensação, são numerosos os exemplos de famílias outrora separadas, cujos membros se reaproximaram depois dos conselhos de seus Espíritos protetores e sob a influência da doutrina que, a exemplo de Jesus, prega a união, a concórdia, a doçura, a tolerância, o esquecimento das injúrias, a indulgência para com as imperfeições alheias, e traz a paz onde reinava a cizânia.
Ainda aqui é o caso de dizer que se julga a árvore por seus frutos. É um fato constatado que, quando há divisão das famílias, a cisão parte sempre do lado da intolerância religiosa.
A carta pastoral termina pela seguinte ordenação:
“Por estas causas, e invocado o Espírito Santo, temos ordenado e ordenamos o que segue:
“Art. 1º ─ A prática do Espiritismo ou invocação dos mortos é interdita a todos e a cada um na diocese de Argel.
“Art. 2º ─ Os confessores recusarão a absolvição a quem quer que não renuncie a toda participação, quer como médium, quer como adepto, ou como simples testemunha às sessões privadas ou públicas ou, enfim, a uma operação qualquer de Espiritismo.
“Art. 3º ─ Em todas as cidades da Argélia e nas paróquias rurais onde o Espiritismo se introduziu com algum brilho, os senhores curas lerão publicamente esta carta do púlpito, no primeiro domingo após o seu recebimento. Aliás, por toda parte será ela comunicada em particular, conforme as necessidades.
“Dada em Argel, a 18 de agosto de 1863.”
É a primeira ordenação lançada com o fito de interditar oficialmente o Espiritismo numa localidade. Ela é de 18 de agosto de 1863. Essa data ficará marcada nos anais do Espiritismo, como a de 9 de outubro de 1861, dia para sempre memorável do auto de fé de Barcelona, ordenado pelo bispo daquela cidade. Como os ataques, as críticas e os sermões não produziram efeito satisfatório, quiseram dar um golpe pela excomunhão oficial. Vejamos se o objetivo será melhor atingido.
Pelo primeiro artigo, a ordenação é dirigida a todos e a cada um na diocese de Argel, isto é, a proibição de ocupar-se do Espiritismo é feita a todos os indivíduos, sem exceção. Mas a população não é apenas de católicos fervorosos. Sem falar dos judeus, dos protestantes e dos muçulmanos, ela compreende todos os materialistas, panteístas, incrédulos, livres-pensadores, cépticos e indiferentes, cujo número é incalculável. Eles figuram no contingente nominal do Catolicismo porque nasceram e foram batizados nessa religião, mas, na realidade, eles próprios saíram da Igreja. Nestes termos, o Sr. Renan e tantos outros figuram na população católica. Assim, a ordenação não alcança todos os indivíduos que não estejam na estrita ortodoxia. O mesmo acontecerá em toda parte onde for feita semelhante proibição. Sendo, pois, materialmente impossível que uma proibição dessa natureza, venha de onde vier, atinja todo mundo, para um que dele for afastado, haverá cem que continuarão dele se ocupando.
Depois, eles põem de lado os Espíritos que vêm sem serem chamados, mesmo junto àqueles que foram proibidos de recebê-los; que falam aos que não querem escutar; que passam através das paredes quando lhes fecham as portas. Aí está a maior dificuldade, para a qual falta um artigo na ordenação acima.
Essa ordenação não atinge senão os católicos fervorosos. Ora, nós temos repetido muitas vezes que o Espiritismo vem dar a fé aos que em nada creem ou que estão em dúvida. Aos que têm uma fé bem estabelecida e aos quais basta essa fé, ele diz: “Guardai-a”, e não procura dela desviá-los.
Ele a ninguém diz: “Deixai vossa crença para vir a mim”, pois ele tem bastante a colher no campo dos incrédulos.
Assim, a proibição não pode atingir aqueles aos quais o Espiritismo se dirige, e só atinge aqueles a quem ele não se dirige. Jesus disse: “Não são os que têm saúde que necessitam de médico”. Se estes últimos vêm a ele, sem que ele os busque, é que nele encontram consolações e certezas que não encontram alhures, e neste caso desprezarão a proibição.
Há cerca de três meses foi dada esta ordenação, e já podemos apreciar os seus efeitos. Desde o seu aparecimento, mais de vinte cartas nos foram mandadas da Argélia, todas confirmando os resultados previstos.
No próximo número, veremos o que está acontecendo.
Para as cartas que seguem chamamos a atenção dos que pretendem que, sem o medo das penas eternas, a Humanidade não teria mais freio, e que a negação do inferno eternamente pessoal abre caminho a todas as desordens e a todas as imoralidades:
“Montreuil, 23 de agosto de 1863.
“Em março último eu ainda era o que se pode dizer, com toda a força do termo, incrustado de ateísmo e de materialismo. Não poupava o chefe do grupo espírita de nossa pequena cidade, meu parente, de pilhérias e sarcasmos; até lhe aconselhava o hospício! Mas ele opunha às minhas troças uma paciência estoica.
“Ao mesmo tempo, durante a quaresma, um pregador falou do púlpito contra o Espiritismo. A circunstância excitou-me a curiosidade, pois não percebia muito bem o que a igreja poderia ter que ver com o Espiritismo. Então li o livrinho O que é o Espiritismo? prometendo a mim mesmo não ceder tão facilmente quanto o haviam feito certos materialistas convertidos, e armei-me com todas as peças, persuadido de que nada poderia destruir a força de meus argumentos, não duvidando absolutamente de uma vitória completa.
“Mas, ó prodígio! Ainda não havia chegado à página cinquenta e já havia reconhecido a inanidade de minha pobre bateria argumentativa. Durante alguns minutos fiquei como que iluminado;
uma súbita revolução operou-se em mim e eis o que eu escrevia a meu irmão a 18 de junho:
“Sim, como dizes, minha conversão foi providencial; é a Deus que devo este sinal de grande benevolência. Sim, creio em Deus, em minha alma, em sua imortalidade após a morte. Antes disso tinha como filosofia uma certa firmeza de espírito, pela qual me punha acima das tribulações e dos acidentes da vida, mas me dobrei ante as numerosas torturas morais que me haviam infringido os pretensos amigos. A amargura de tais lembranças me haviam envenenado o coração. Eu ruminava mil projetos de vingança, e se não tivesse temido para mim e para os meus a maldição pública, talvez tivesse dado aos meus projetos uma funesta execução. Mas Deus me salvou. O Espiritismo levou-me prontamente a crer nas verdades fundamentais da religião, das quais a Igreja me havia afastado pelo horrível quadro das chamas eternas e por me querer impor, como artigos de fé, dogmas que estão em manifesta contradição com os atributos infinitos de Deus. Lembro-me ainda do pavor experimentado em 1814, aos sete anos de idade, quando da leitura desta bela passagem dos Pensées chrétiennes: “E quando um danado tiver sofrido tantos anos quantos são os átomos no ar, as folhas das florestas e os grãos de areia às bordas do mar, tudo isto será contado como nada!!!” E foi a Igreja que ousou proferir semelhante blasfêmia! Que Deus lha perdoe!”
“Continuo minha carta, caro Eugênio, deixando à Igreja a propriedade do império infernal sobre a qual nada tenho a reivindicar.
“A ideia que tinha feito de minha alma foi substituída pela dada pelos Espíritos. A pluralidade dos mundos, como a pluralidade das existências, não mais constituindo dúvidas para mim, causam-me agora uma indefinível satisfação moral. A perspectiva de um nada frio e lúgubre outrora me gelava o sangue nas veias; hoje me vejo, por antecipação, habitando um desses mundos mais adiantados moralmente, intelectualmente e fisicamente que o nosso planeta, esperando atingir o estado de puro Espírito.
“Para gozar dos benefícios de Deus e deles tornar-me inteiramente digno, perdoei com solicitude aos meus inimigos, àqueles que me fizeram sofrer duras torturas morais, a todos, enfim, que me ofenderam, e abjurei qualquer pensamento de vingança. Todos os dias agradeço a Deus a alta benevolência que me testemunhou, fazendo-me rapidamente sair do mau caminho onde me haviam lançado o ateísmo e o materialismo, e lhe peço conceda o mesmo favor a todos os que, como eu, dele duvidaram e o negaram. Também lhe peço fazer que minha mulher, meus filhos, o próximo, os parentes, os amigos e os inimigos, possam gozar das doçuras do Espiritismo. Enfim, peço por todos, por todas as almas sofredoras, para que Deus lhes deixe entrever que a sua bondade infinita não lhes fechou a porta do arrependimento. Também peço a Deus o perdão de minhas faltas e a graça de praticar a caridade em toda a sua extensão.
“Assim, agora me encontro num estado de perfeita calma e tranquilidade quanto ao futuro. A ideia da morte não mais me apavora, porque tenho a convicção inabalável que minha alma sobreviverá ao meu corpo, e tenho inteira fé na vida futura. Contudo, um só pensamento me faz mal, o de abandonar na Terra seres que me são caros, com o receio de vê-los infelizes.
“Ah! Esse medo que comporta sua dor é muito natural, em face do egoísmo de que a maioria de nosso pobre mundo está impregnada. Mas Deus me compreende. Ele sabe que toda a minha confiança está depositada apenas nele. Já experimentei a felicidade de rever nossa cara Laura, em dezembro último, alguns dias após a sua morte. Certamente é um efeito antecipado de sua bondade para comigo”.
“Depois da data desta carta, meu caro senhor, meu bem-estar aumentou. Outrora a menor contrariedade me irritava. Hoje minha paciência é realmente notável, e sucedeu à violência e à impulsividade. A vitória que ela conquistou nestes dias, em prova bastante rude, vem em apoio à minha asserção. Certamente não teria sido assim em março último. É precisamente em tais circunstâncias que a Doutrina Espírita exerce sua suave influência. Os que a criticam dizem que ela está cheia de seduções, e eu não creio atenuar esse belo elogio achando-a cheia de volúpias.
“Minha volta à religião causou aqui uma surpresa, tanto maior porque eu era até agora ligado ao mais desenfreado materialismo. Por uma consequência muito lógica sou, por minha vez, vítima das troças e dos sarcasmos, mas fico insensível, e, como dizeis muito judiciosamente, tudo isto desliza sobre o verdadeiro Espiritismo, como a água sobre o mármore.
“Meu caro senhor, vou terminar minha carta, cuja prolixidade poderia vos fazer perder um tempo precioso. Aceitai a expressão de minha viva gratidão pela satisfação moral, pela esperança consoladora e pelo bem-estar que me proporcionastes.
“Continuai vossa santa missão, pois Deus vos abençoou, senhor!
“ROUSSEL (Adolphe) “Escrevente juramentado, antigo empresário de leilões.
“P. S. No interesse do Espiritismo, podeis fazer desta carta, no todo ou em parte, o uso que melhor vos aprouver”.
OBSERVAÇÃO: Já publicamos várias cartas deste teor, mas seriam necessários volumes para publicar todas as que recebemos no mesmo sentido e, o que não é menos notável, é que a maior parte delas vem de pessoas inteiramente desconhecidas, e não foram solicitadas por outra influência senão a ascendência da doutrina.
Eis, pois, um dos homens atingidos pelo anátema do Sr. Bispo de Argel, um homem que, sem a Doutrina Espírita, teria morrido no ateísmo e no materialismo; que, se se apresentasse para receber os sacramentos da Igreja, seria impiedosamente repelido. Quem o trouxe a Deus? O medo das penas eternas? Não, porque foi a teoria dessas penas que o afastou dela. Quem, pois, teve o poder de acalmar a sua impulsividade e dele fazer um homem suave e inofensivo; de fazê-lo abjurar suas ideias de vingança para perdoar os inimigos? Só o Espiritismo, porque nele auferiu uma fé inabalável no futuro.
É essa doutrina que quereis extirpar de vossa diocese, onde certamente se acham muitos indivíduos no mesmo caso e que, em vossa opinião, são vergonhosa chaga para a colônia. A quem persuadirão que para esse homem teria sido melhor ficar onde estava? Se se objetasse que é uma exceção, responderíamos com milhares de casos semelhantes, e mesmo que fosse uma exceção, responderíamos pela parábola das cem ovelhas, das quais uma se tresmalhou e à sua procura corre o pastor.
Recusando-lhe o Espiritismo, o que lhe teríeis dado em substituição, para nele operar semelhante transformação? Sempre a perspectiva da danação eterna, a única, em vossa opinião, capaz de dominar a desordem e a imoralidade. Enfim, quem o levou a estudar o Espiritismo? Uma quadrilha de espíritas? Não, porque ele fugia dos espíritas. Foi um sermão pregado contra o Espiritismo. Por que, então, foi convertido pelo Espiritismo e não pelo sermão? É que, aparentemente, os argumentos do Espiritismo eram mais convincentes que os do sermão.
Assim tem sido com todas as pregações análogas. Assim será com a ordenação episcopal de Argel, que terá, predizemos, um resultado muito diferente daquele que dela esperam.
Ao autor desta carta diremos: “Irmão, esta espécie de confissão que fazeis perante homens é um grande ato de humildade. Jamais há vergonha, mas há grandeza em reconhecer que se enganou e confessar os seus erros. Deus ama os humildes, porque é a eles que pertence o reino dos céus.”
A carta seguinte é um exemplo não menos tocante dos milagres que o Espiritismo pode operar nas consciências, e aqui o resultado é muito mais admirável, porque não se trata de um homem do mundo, vivendo num meio esclarecido, cujas más inclinações podem ser contidas, senão pelo medo da vida futura, ao menos pelo da opinião, mas de um homem ferido pela justiça, de um condenado à reclusão numa penitenciária.
“20 de setembro de 1863.
“Senhor,
“Tive a felicidade de ler, de estudar algumas de vossas excelentes obras tratando do Espiritismo, e o efeito dessa leitura foi tal sobre o meu ser, que julgo dever com isso tomar-vos a atenção, mas, para que me possais bem compreender, penso que é necessário dar-vos a conhecer as circunstâncias em que me acho colocado.
“Tenho a infelicidade de ter sido condenado a seis anos de reclusão, justa consequência de minha conduta passada, por isso, não tenho direito de me queixar. Assim, é a bem da ordem que faço o relato.
“Há apenas um mês eu me julgava perdido para sempre. Por que hoje penso o contrário e por que a esperança brilha em meu coração? Não será porque o Espiritismo, desvendando-me a sublimidade de suas máximas, fez-me compreender que os bens terrenos nada são; que a felicidade só existe realmente para os que praticam as virtudes ensinadas por Jesus Cristo, virtudes que nos aproximam de Deus, nosso pai comum? Não é também porque, embora caído num estado de abjeção, embora aviltado pela Sociedade, posso esperar renascer de alguma sorte, e assim preparar minha alma para uma vida melhor, pela prática das virtudes e meu amor a Deus e ao próximo?
“Não sei se são bem estas as verdadeiras causas da mudança que em mim se operou. O que sei é que em todo o meu ser se passa algo que não posso definir. Estou com melhores disposições diante dos infelizes que, como eu, estão colocados sob a férula da Sociedade. Tenho certa autoridade sobre uma centena deles, e estou bem decidido a só usá-la para o bem. Minha posição moral parece-me menos penosa. Considero meus sofrimentos como uma justa expiação, e esta ideia me ajuda a suportá-la. Enfim, não é mais com sentimentos de ódio que considero a Sociedade: rendo-lhe a justiça que lhe é devida.
“Eis ─ estou certo disto ─ as causas que reagiram sobre o meu espírito, e que farão de mim, no futuro, ─ tenho uma suave esperança ─ um homem que ama e que serve a Deus e ao próximo, praticando a caridade e seus deveres.
“A quem deverei render graças por esta feliz metamorfose que de um homem mau terá feito um homem amante da virtude? Inicialmente a Deus, a que devemos tudo reportar, e em seguida aos vossos excelentes escritos.
“Assim, senhor, permiti que vo-lo diga, esta carta tem por objetivo vos assinalar toda a minha gratidão.
“Mas por que é preciso que minha educação espírita fique inacabada? Sem dúvida, Deus assim o quer. Que se faça a sua vontade!
“Não vos deixarei ignorar, senhor, o nome da excelente pessoa a quem devo o que sei agora: é o Sr. Benoît, que, tendo notado em mim um desejo de refazer o meu passado, quis iniciar-me na Doutrina Espírita. Infelizmente vou perdê-lo, pois sua nova posição não mais permitirá que me venha ver. É uma grande infelicidade para mim, e não vo-la oculto, porque aos conselhos ele junta o exemplo. Ele também deve seu melhoramento à doutrina. Dizia-me ele: ‘Até ser esclarecido pelo espírito espírita, terminada a minha refeição, eu ia para o café, e lá muitas vezes me esquecia, não só dos deveres para com a minha pequena família, mas ainda para com o meu patrão. O tempo que assim passava, hoje emprego na leitura de livros espíritas, leitura que faço em voz alta, para que minha família aproveite. E crede-me, acrescentava o Sr. Benoît, isto vale mais, porque é o começo da verdadeira, da única felicidade’.
“Peço-vos perdoeis a minha temeridade e, sobretudo, a extensão desta carta, e crede-me, etc.
“D...” Esse Sr. Benoît é um simples operário. Ele tinha sido instruído no Espiritismo por uma senhora da cidade, da qual havia falado ao prisioneiro. Este último, antes da partida de seu instrutor, a ela mandou a seguinte carta:
“Senhora,
“Certamente sou muito temerário ousando vos dirigir estas palavras, mas espero que vossa bondade me perdoe, sobretudo em razão das causas que me levam a agir. Para começar, agradeço-vos, senhora, mas agradeço do mais profundo do coração, de toda a minha alma, pelo bem que me fizestes, permitindo que o Sr. Benoît me instruísse no Espiritismo, esta sublime doutrina chamada a regenerar o mundo, e que sabe tão bem demonstrar ao homem o que deve a Deus, à sua família, à Sociedade e a si mesmo; que, provando-lhe que nem tudo acaba nesta vida, o estimula e lhe dá os meios de se preparar para uma outra vida. Creio ter aproveitado os úteis ensinamentos que recebi, porque experimento um sentimento que me deixa mais bem disposto em relação aos meus semelhantes, e me faz ter sempre o pensamento voltado para o Céu. É um começo de fé? Eu o espero. Infelizmente, o Sr. Benoît vai partir, e com ele a esperança de me instruir.
“Sei que sois boa, e que tendes pensado em continuar a dar-me os meios de me esclarecer. Eu vos rogo de joelhos que continueis a obra tão bem começada. Ela vos será contada por Deus, pois tendes a esperança de fazer de um infeliz perdido nos vícios do mundo um homem virtuoso, um homem digno desse nome, de sua família e da Sociedade.
“Esperando o dia em que, livre, poderei dar minhas provas, eu vos bendirei como meu Espírito nesta Terra; eu vos associarei às minhas preces, e dia virá em que também poderei ensinar à minha família a vos bendizer, a vos venerar, pois lhe tereis devolvido um filho, um irmão honesto. É impossível ser diferente, quando se serve a Deus sinceramente.
“Assim, concluo, senhora, pedindo sejais na Terra meu bom Espírito, e que medirijais no bom caminho. O que fizerdes será contado como uma boa obra. Quanto a mim, prometo-vos ser dócil aos vossos ensinamentos.
“Termino, etc.”
“Montreuil, 23 de agosto de 1863.
“Em março último eu ainda era o que se pode dizer, com toda a força do termo, incrustado de ateísmo e de materialismo. Não poupava o chefe do grupo espírita de nossa pequena cidade, meu parente, de pilhérias e sarcasmos; até lhe aconselhava o hospício! Mas ele opunha às minhas troças uma paciência estoica.
“Ao mesmo tempo, durante a quaresma, um pregador falou do púlpito contra o Espiritismo. A circunstância excitou-me a curiosidade, pois não percebia muito bem o que a igreja poderia ter que ver com o Espiritismo. Então li o livrinho O que é o Espiritismo? prometendo a mim mesmo não ceder tão facilmente quanto o haviam feito certos materialistas convertidos, e armei-me com todas as peças, persuadido de que nada poderia destruir a força de meus argumentos, não duvidando absolutamente de uma vitória completa.
“Mas, ó prodígio! Ainda não havia chegado à página cinquenta e já havia reconhecido a inanidade de minha pobre bateria argumentativa. Durante alguns minutos fiquei como que iluminado;
uma súbita revolução operou-se em mim e eis o que eu escrevia a meu irmão a 18 de junho:
“Sim, como dizes, minha conversão foi providencial; é a Deus que devo este sinal de grande benevolência. Sim, creio em Deus, em minha alma, em sua imortalidade após a morte. Antes disso tinha como filosofia uma certa firmeza de espírito, pela qual me punha acima das tribulações e dos acidentes da vida, mas me dobrei ante as numerosas torturas morais que me haviam infringido os pretensos amigos. A amargura de tais lembranças me haviam envenenado o coração. Eu ruminava mil projetos de vingança, e se não tivesse temido para mim e para os meus a maldição pública, talvez tivesse dado aos meus projetos uma funesta execução. Mas Deus me salvou. O Espiritismo levou-me prontamente a crer nas verdades fundamentais da religião, das quais a Igreja me havia afastado pelo horrível quadro das chamas eternas e por me querer impor, como artigos de fé, dogmas que estão em manifesta contradição com os atributos infinitos de Deus. Lembro-me ainda do pavor experimentado em 1814, aos sete anos de idade, quando da leitura desta bela passagem dos Pensées chrétiennes: “E quando um danado tiver sofrido tantos anos quantos são os átomos no ar, as folhas das florestas e os grãos de areia às bordas do mar, tudo isto será contado como nada!!!” E foi a Igreja que ousou proferir semelhante blasfêmia! Que Deus lha perdoe!”
“Continuo minha carta, caro Eugênio, deixando à Igreja a propriedade do império infernal sobre a qual nada tenho a reivindicar.
“A ideia que tinha feito de minha alma foi substituída pela dada pelos Espíritos. A pluralidade dos mundos, como a pluralidade das existências, não mais constituindo dúvidas para mim, causam-me agora uma indefinível satisfação moral. A perspectiva de um nada frio e lúgubre outrora me gelava o sangue nas veias; hoje me vejo, por antecipação, habitando um desses mundos mais adiantados moralmente, intelectualmente e fisicamente que o nosso planeta, esperando atingir o estado de puro Espírito.
“Para gozar dos benefícios de Deus e deles tornar-me inteiramente digno, perdoei com solicitude aos meus inimigos, àqueles que me fizeram sofrer duras torturas morais, a todos, enfim, que me ofenderam, e abjurei qualquer pensamento de vingança. Todos os dias agradeço a Deus a alta benevolência que me testemunhou, fazendo-me rapidamente sair do mau caminho onde me haviam lançado o ateísmo e o materialismo, e lhe peço conceda o mesmo favor a todos os que, como eu, dele duvidaram e o negaram. Também lhe peço fazer que minha mulher, meus filhos, o próximo, os parentes, os amigos e os inimigos, possam gozar das doçuras do Espiritismo. Enfim, peço por todos, por todas as almas sofredoras, para que Deus lhes deixe entrever que a sua bondade infinita não lhes fechou a porta do arrependimento. Também peço a Deus o perdão de minhas faltas e a graça de praticar a caridade em toda a sua extensão.
“Assim, agora me encontro num estado de perfeita calma e tranquilidade quanto ao futuro. A ideia da morte não mais me apavora, porque tenho a convicção inabalável que minha alma sobreviverá ao meu corpo, e tenho inteira fé na vida futura. Contudo, um só pensamento me faz mal, o de abandonar na Terra seres que me são caros, com o receio de vê-los infelizes.
“Ah! Esse medo que comporta sua dor é muito natural, em face do egoísmo de que a maioria de nosso pobre mundo está impregnada. Mas Deus me compreende. Ele sabe que toda a minha confiança está depositada apenas nele. Já experimentei a felicidade de rever nossa cara Laura, em dezembro último, alguns dias após a sua morte. Certamente é um efeito antecipado de sua bondade para comigo”.
“Depois da data desta carta, meu caro senhor, meu bem-estar aumentou. Outrora a menor contrariedade me irritava. Hoje minha paciência é realmente notável, e sucedeu à violência e à impulsividade. A vitória que ela conquistou nestes dias, em prova bastante rude, vem em apoio à minha asserção. Certamente não teria sido assim em março último. É precisamente em tais circunstâncias que a Doutrina Espírita exerce sua suave influência. Os que a criticam dizem que ela está cheia de seduções, e eu não creio atenuar esse belo elogio achando-a cheia de volúpias.
“Minha volta à religião causou aqui uma surpresa, tanto maior porque eu era até agora ligado ao mais desenfreado materialismo. Por uma consequência muito lógica sou, por minha vez, vítima das troças e dos sarcasmos, mas fico insensível, e, como dizeis muito judiciosamente, tudo isto desliza sobre o verdadeiro Espiritismo, como a água sobre o mármore.
“Meu caro senhor, vou terminar minha carta, cuja prolixidade poderia vos fazer perder um tempo precioso. Aceitai a expressão de minha viva gratidão pela satisfação moral, pela esperança consoladora e pelo bem-estar que me proporcionastes.
“Continuai vossa santa missão, pois Deus vos abençoou, senhor!
“ROUSSEL (Adolphe) “Escrevente juramentado, antigo empresário de leilões.
“P. S. No interesse do Espiritismo, podeis fazer desta carta, no todo ou em parte, o uso que melhor vos aprouver”.
OBSERVAÇÃO: Já publicamos várias cartas deste teor, mas seriam necessários volumes para publicar todas as que recebemos no mesmo sentido e, o que não é menos notável, é que a maior parte delas vem de pessoas inteiramente desconhecidas, e não foram solicitadas por outra influência senão a ascendência da doutrina.
Eis, pois, um dos homens atingidos pelo anátema do Sr. Bispo de Argel, um homem que, sem a Doutrina Espírita, teria morrido no ateísmo e no materialismo; que, se se apresentasse para receber os sacramentos da Igreja, seria impiedosamente repelido. Quem o trouxe a Deus? O medo das penas eternas? Não, porque foi a teoria dessas penas que o afastou dela. Quem, pois, teve o poder de acalmar a sua impulsividade e dele fazer um homem suave e inofensivo; de fazê-lo abjurar suas ideias de vingança para perdoar os inimigos? Só o Espiritismo, porque nele auferiu uma fé inabalável no futuro.
É essa doutrina que quereis extirpar de vossa diocese, onde certamente se acham muitos indivíduos no mesmo caso e que, em vossa opinião, são vergonhosa chaga para a colônia. A quem persuadirão que para esse homem teria sido melhor ficar onde estava? Se se objetasse que é uma exceção, responderíamos com milhares de casos semelhantes, e mesmo que fosse uma exceção, responderíamos pela parábola das cem ovelhas, das quais uma se tresmalhou e à sua procura corre o pastor.
Recusando-lhe o Espiritismo, o que lhe teríeis dado em substituição, para nele operar semelhante transformação? Sempre a perspectiva da danação eterna, a única, em vossa opinião, capaz de dominar a desordem e a imoralidade. Enfim, quem o levou a estudar o Espiritismo? Uma quadrilha de espíritas? Não, porque ele fugia dos espíritas. Foi um sermão pregado contra o Espiritismo. Por que, então, foi convertido pelo Espiritismo e não pelo sermão? É que, aparentemente, os argumentos do Espiritismo eram mais convincentes que os do sermão.
Assim tem sido com todas as pregações análogas. Assim será com a ordenação episcopal de Argel, que terá, predizemos, um resultado muito diferente daquele que dela esperam.
Ao autor desta carta diremos: “Irmão, esta espécie de confissão que fazeis perante homens é um grande ato de humildade. Jamais há vergonha, mas há grandeza em reconhecer que se enganou e confessar os seus erros. Deus ama os humildes, porque é a eles que pertence o reino dos céus.”
A carta seguinte é um exemplo não menos tocante dos milagres que o Espiritismo pode operar nas consciências, e aqui o resultado é muito mais admirável, porque não se trata de um homem do mundo, vivendo num meio esclarecido, cujas más inclinações podem ser contidas, senão pelo medo da vida futura, ao menos pelo da opinião, mas de um homem ferido pela justiça, de um condenado à reclusão numa penitenciária.
“20 de setembro de 1863.
“Senhor,
“Tive a felicidade de ler, de estudar algumas de vossas excelentes obras tratando do Espiritismo, e o efeito dessa leitura foi tal sobre o meu ser, que julgo dever com isso tomar-vos a atenção, mas, para que me possais bem compreender, penso que é necessário dar-vos a conhecer as circunstâncias em que me acho colocado.
“Tenho a infelicidade de ter sido condenado a seis anos de reclusão, justa consequência de minha conduta passada, por isso, não tenho direito de me queixar. Assim, é a bem da ordem que faço o relato.
“Há apenas um mês eu me julgava perdido para sempre. Por que hoje penso o contrário e por que a esperança brilha em meu coração? Não será porque o Espiritismo, desvendando-me a sublimidade de suas máximas, fez-me compreender que os bens terrenos nada são; que a felicidade só existe realmente para os que praticam as virtudes ensinadas por Jesus Cristo, virtudes que nos aproximam de Deus, nosso pai comum? Não é também porque, embora caído num estado de abjeção, embora aviltado pela Sociedade, posso esperar renascer de alguma sorte, e assim preparar minha alma para uma vida melhor, pela prática das virtudes e meu amor a Deus e ao próximo?
“Não sei se são bem estas as verdadeiras causas da mudança que em mim se operou. O que sei é que em todo o meu ser se passa algo que não posso definir. Estou com melhores disposições diante dos infelizes que, como eu, estão colocados sob a férula da Sociedade. Tenho certa autoridade sobre uma centena deles, e estou bem decidido a só usá-la para o bem. Minha posição moral parece-me menos penosa. Considero meus sofrimentos como uma justa expiação, e esta ideia me ajuda a suportá-la. Enfim, não é mais com sentimentos de ódio que considero a Sociedade: rendo-lhe a justiça que lhe é devida.
“Eis ─ estou certo disto ─ as causas que reagiram sobre o meu espírito, e que farão de mim, no futuro, ─ tenho uma suave esperança ─ um homem que ama e que serve a Deus e ao próximo, praticando a caridade e seus deveres.
“A quem deverei render graças por esta feliz metamorfose que de um homem mau terá feito um homem amante da virtude? Inicialmente a Deus, a que devemos tudo reportar, e em seguida aos vossos excelentes escritos.
“Assim, senhor, permiti que vo-lo diga, esta carta tem por objetivo vos assinalar toda a minha gratidão.
“Mas por que é preciso que minha educação espírita fique inacabada? Sem dúvida, Deus assim o quer. Que se faça a sua vontade!
“Não vos deixarei ignorar, senhor, o nome da excelente pessoa a quem devo o que sei agora: é o Sr. Benoît, que, tendo notado em mim um desejo de refazer o meu passado, quis iniciar-me na Doutrina Espírita. Infelizmente vou perdê-lo, pois sua nova posição não mais permitirá que me venha ver. É uma grande infelicidade para mim, e não vo-la oculto, porque aos conselhos ele junta o exemplo. Ele também deve seu melhoramento à doutrina. Dizia-me ele: ‘Até ser esclarecido pelo espírito espírita, terminada a minha refeição, eu ia para o café, e lá muitas vezes me esquecia, não só dos deveres para com a minha pequena família, mas ainda para com o meu patrão. O tempo que assim passava, hoje emprego na leitura de livros espíritas, leitura que faço em voz alta, para que minha família aproveite. E crede-me, acrescentava o Sr. Benoît, isto vale mais, porque é o começo da verdadeira, da única felicidade’.
“Peço-vos perdoeis a minha temeridade e, sobretudo, a extensão desta carta, e crede-me, etc.
“D...” Esse Sr. Benoît é um simples operário. Ele tinha sido instruído no Espiritismo por uma senhora da cidade, da qual havia falado ao prisioneiro. Este último, antes da partida de seu instrutor, a ela mandou a seguinte carta:
“Senhora,
“Certamente sou muito temerário ousando vos dirigir estas palavras, mas espero que vossa bondade me perdoe, sobretudo em razão das causas que me levam a agir. Para começar, agradeço-vos, senhora, mas agradeço do mais profundo do coração, de toda a minha alma, pelo bem que me fizestes, permitindo que o Sr. Benoît me instruísse no Espiritismo, esta sublime doutrina chamada a regenerar o mundo, e que sabe tão bem demonstrar ao homem o que deve a Deus, à sua família, à Sociedade e a si mesmo; que, provando-lhe que nem tudo acaba nesta vida, o estimula e lhe dá os meios de se preparar para uma outra vida. Creio ter aproveitado os úteis ensinamentos que recebi, porque experimento um sentimento que me deixa mais bem disposto em relação aos meus semelhantes, e me faz ter sempre o pensamento voltado para o Céu. É um começo de fé? Eu o espero. Infelizmente, o Sr. Benoît vai partir, e com ele a esperança de me instruir.
“Sei que sois boa, e que tendes pensado em continuar a dar-me os meios de me esclarecer. Eu vos rogo de joelhos que continueis a obra tão bem começada. Ela vos será contada por Deus, pois tendes a esperança de fazer de um infeliz perdido nos vícios do mundo um homem virtuoso, um homem digno desse nome, de sua família e da Sociedade.
“Esperando o dia em que, livre, poderei dar minhas provas, eu vos bendirei como meu Espírito nesta Terra; eu vos associarei às minhas preces, e dia virá em que também poderei ensinar à minha família a vos bendizer, a vos venerar, pois lhe tereis devolvido um filho, um irmão honesto. É impossível ser diferente, quando se serve a Deus sinceramente.
“Assim, concluo, senhora, pedindo sejais na Terra meu bom Espírito, e que medirijais no bom caminho. O que fizerdes será contado como uma boa obra. Quanto a mim, prometo-vos ser dócil aos vossos ensinamentos.
“Termino, etc.”
OBSERVAÇÃO: Assim, esse Sr. Benoît, simples operário, era um exemplo recente do efeito moralizador do Espiritismo e, por sua vez, já traz ao bom caminho uma alma desviada; devolve à família e à Sociedade um homem honesto em vez de um criminoso, boa obra para a qual concorreu uma senhora caridosa, estranha a ambos, mas animada do único desejo de fazer o bem. E tudo isto é feito na sombra, sem fausto, sem ostentação, e com o testemunho apenas da consciência.
Espíritas, eis desses milagres de que vos deveis orgulhar, que todos podeis operar, e para os quais não necessitais de nenhuma faculdade excepcional, porque basta o desejo de fazer o bem.
Se o Espiritismo tem tal poder sobre as almas manchadas, o que não se deve esperar para a regeneração da Humanidade, quando ele se tiver convertido em crença comum, e cada um empregá-lo na sua esfera de ação!
Vós todos que atirais pedras contra o Espiritismo e dizeis que ele enche as casas de alienados, dai, pois, em seu lugar, algo que produza mais do que ele produz. Pelo fruto se reconhece a qualidade da árvore. Julgai, pois, o Espiritismo, por seus frutos, e tratai de produzir frutos melhores. Então sereis seguidos.
Ainda alguns anos e vereis muitos outros prodígios, não sinais no Céu, para ferir os olhos, como pediam os fariseus, mas prodígios no coração dos homens, dos quais o maior será o de fechar a boca dos detratores e de abrir os olhos dos cegos, pois é preciso que se realizem as predições do Cristo, e elas todas realizar-se-ão.
Espíritas, eis desses milagres de que vos deveis orgulhar, que todos podeis operar, e para os quais não necessitais de nenhuma faculdade excepcional, porque basta o desejo de fazer o bem.
Se o Espiritismo tem tal poder sobre as almas manchadas, o que não se deve esperar para a regeneração da Humanidade, quando ele se tiver convertido em crença comum, e cada um empregá-lo na sua esfera de ação!
Vós todos que atirais pedras contra o Espiritismo e dizeis que ele enche as casas de alienados, dai, pois, em seu lugar, algo que produza mais do que ele produz. Pelo fruto se reconhece a qualidade da árvore. Julgai, pois, o Espiritismo, por seus frutos, e tratai de produzir frutos melhores. Então sereis seguidos.
Ainda alguns anos e vereis muitos outros prodígios, não sinais no Céu, para ferir os olhos, como pediam os fariseus, mas prodígios no coração dos homens, dos quais o maior será o de fechar a boca dos detratores e de abrir os olhos dos cegos, pois é preciso que se realizem as predições do Cristo, e elas todas realizar-se-ão.
O Espírito tiptólogo de Carcassonne mantém sua reputação e prova pelos sucessos que alcança nos diversos concursos em que se apresenta como candidato, o incontestável mérito de suas excelentes fábulas e poesias. Depois de haver conquistado o primeiro prêmio, a Eglantina de Ouro, na Academia dos Jogos Florais de Toulouse, acaba de obter uma medalha de bronze no concurso de Nîmes. O Courrier de l’Aude diz a respeito: “Essa distinção é tanto mais lisonjeira quando o concurso não se restringia a fábulas e poesias, mas abarcava todas as obras literárias.”
Esse novo triunfo certamente pressagia outros para o futuro, pois é provável que esse Espírito não se afaste. Decididamente torna-se um sério concorrente.
Que dirão os incrédulos? O que já disseram quando do sucesso de Toulouse: que o Sr. Jobert é um poeta que tem a fantasia de se esconder sob o manto de umEspírito. Entretanto, aqueles que conhecem o Sr. Jobert sabem que ele não é poeta. Além disto, se ele fosse poeta, o modo de obtenção, pela tiptologia, em presença de testemunhas, afasta qualquer resquício dúvida, a menos que se suponha que ele se oculta, não sob a mesa, mas na mesa.
Seja como for, os fatos desta natureza não deixam de chamar a atenção da gente séria e de apressar o momento em que as relações entre o mundo visível e o invisível serão admitidas como uma das leis da Natureza. Reconhecida essa lei, a Filosofia e a Ciência necessariamente entrarão em nova via.
A Providência, que quer a vitória do Espiritismo, porque o Espiritismo é uma das grandes etapas do progresso humano, emprega diversos meios para fazê-lo penetrar no espírito das massas, meios apropriados aos gostos e às disposições de cada um, considerando-se que aquilo que convence a uns não convence a outros. Aqui são os sucessos acadêmicos de um Espírito poeta; ali são fenômenos tangíveis provocados, ou manifestações espontâneas; além, são efeitos puramente morais; depois, curas que outrora teriam passado por miraculosas e que desafiam a ciência vulgar; produções artísticas por pessoas estranhas às artes. Há os casos de obsessão e de subjugação que, provando a impotência da Ciência nessas espécies de afecções, conduzirão os cientistas a reconhecerem uma ação fora da matéria.
Enfim, teremos necessidade de acrescentar que os adversários da ideia espírita são, nas mãos da Providência, um dos mais poderosos meios de vulgarização? É evidente que sem a repercussão de seus ataques o Espiritismo estaria menos espalhado do que está. Em os convencendo de sua impotência, quis Deus que eles próprios servissem ao seu triunfo. (Ver Revista de junho de 1863).
Esse novo triunfo certamente pressagia outros para o futuro, pois é provável que esse Espírito não se afaste. Decididamente torna-se um sério concorrente.
Que dirão os incrédulos? O que já disseram quando do sucesso de Toulouse: que o Sr. Jobert é um poeta que tem a fantasia de se esconder sob o manto de umEspírito. Entretanto, aqueles que conhecem o Sr. Jobert sabem que ele não é poeta. Além disto, se ele fosse poeta, o modo de obtenção, pela tiptologia, em presença de testemunhas, afasta qualquer resquício dúvida, a menos que se suponha que ele se oculta, não sob a mesa, mas na mesa.
Seja como for, os fatos desta natureza não deixam de chamar a atenção da gente séria e de apressar o momento em que as relações entre o mundo visível e o invisível serão admitidas como uma das leis da Natureza. Reconhecida essa lei, a Filosofia e a Ciência necessariamente entrarão em nova via.
A Providência, que quer a vitória do Espiritismo, porque o Espiritismo é uma das grandes etapas do progresso humano, emprega diversos meios para fazê-lo penetrar no espírito das massas, meios apropriados aos gostos e às disposições de cada um, considerando-se que aquilo que convence a uns não convence a outros. Aqui são os sucessos acadêmicos de um Espírito poeta; ali são fenômenos tangíveis provocados, ou manifestações espontâneas; além, são efeitos puramente morais; depois, curas que outrora teriam passado por miraculosas e que desafiam a ciência vulgar; produções artísticas por pessoas estranhas às artes. Há os casos de obsessão e de subjugação que, provando a impotência da Ciência nessas espécies de afecções, conduzirão os cientistas a reconhecerem uma ação fora da matéria.
Enfim, teremos necessidade de acrescentar que os adversários da ideia espírita são, nas mãos da Providência, um dos mais poderosos meios de vulgarização? É evidente que sem a repercussão de seus ataques o Espiritismo estaria menos espalhado do que está. Em os convencendo de sua impotência, quis Deus que eles próprios servissem ao seu triunfo. (Ver Revista de junho de 1863).
Devemos à gentileza de um dos nossos correspondentes de Bordeaux a interessante passagem que se segue, extraída de uma obra intitulada Exposé de la grandeur de la création universelle[1], pelo Dr. Gelpke, publicada em Leipzig em 1817.
“...Se, pois, a construção de todos os mundos que brilham acima de nós pudesse ser submetida ao nosso exame, de que admiração não seríamos tomados, vendo a diversidade desses globos, cada um dos quais organizado de modo diverso do seu mais próximo vizinho na ordem da criação! E, como eu já disse, sendo incalculável o número dos mundos, sua construção também deve ser infinitamente diferente.
“Além disso, como da organização de cada mundo depende a dos seres que o habitam, estes devem, tanto interna quanto externamente, diferir essencialmente em cada globo. Agora, se considerarmos a multiplicidade e imensa variedade das criaturas em nossa Terra, onde uma simples folha não se assemelha a outra, e se admitirmos uma tão grande variedade de criaturas em cada mundo, quão prodigiosa nos parecerá a sua multidão no imensurável reino de Deus!
“Qual será, um dia, a plenitude de nossa felicidade, quando, sob envoltórios cada vez mais perfeitos, penetrarmos sucessivamente mais adiante nos mistérios da criação, e encontrarmos mundos sem fim, povoando um espaço sem fim! Então, quanto Deus não nos parecerá ainda mais adorável, ele que tirou tudo isso do nada; ele, cuja bondade sem limites não criou tudo isto senão para a satisfação dos seres vivos e cuja sabedoria ordenou isto tudo de maneira tão admirável!
“Mas nossa morada e nossa conformação atuais podem proporcionar-nos tal felicidade? Para isto não necessitamos de outra morada, que nos colocará mais à frente, no domínio da criação, e de um envoltório muito mais sutil e mais perfeito, que não entravará o nosso espírito em seu progresso para a perfeição, e por meio do qual ele poderá ver, sem auxílio, no todo universal, muito além do que podemos ver daqui com os nossos melhores instrumentos?
“Mas, por que o Criador não nos daria, após vários degraus de existência, um envoltório que, semelhante ao relâmpago, poderia elevar-se de mundos a mundos, permitindo-nos assim, ao mesmo tempo, olhar tudo mais de perto, e abarcar melhor o conjunto pelo pensamento? Quem ousaria disto duvidar, quando vemos a brilhante borboleta nascer da lagarta e a árvore ofuscante de flores provir de uma semente!? Se Deus assim desenvolve pouco a pouco a lagarta e no-la mostra esplendidamente transformada; se também desenvolve o germe por graus, quanto não nos fará progredir a nós, os homens, reis da Terra, e avançar na criação!”
Pluralidade dos mundos habitados, pluralidade das existências, perispírito, progresso sucessivo e indefinido da alma, tudo aí está.
[1] Exposição da grandeza da criação universal. Via de regra mantemos no texto o título original, quando a obra não tem tradução em português. N. do T.
“...Se, pois, a construção de todos os mundos que brilham acima de nós pudesse ser submetida ao nosso exame, de que admiração não seríamos tomados, vendo a diversidade desses globos, cada um dos quais organizado de modo diverso do seu mais próximo vizinho na ordem da criação! E, como eu já disse, sendo incalculável o número dos mundos, sua construção também deve ser infinitamente diferente.
“Além disso, como da organização de cada mundo depende a dos seres que o habitam, estes devem, tanto interna quanto externamente, diferir essencialmente em cada globo. Agora, se considerarmos a multiplicidade e imensa variedade das criaturas em nossa Terra, onde uma simples folha não se assemelha a outra, e se admitirmos uma tão grande variedade de criaturas em cada mundo, quão prodigiosa nos parecerá a sua multidão no imensurável reino de Deus!
“Qual será, um dia, a plenitude de nossa felicidade, quando, sob envoltórios cada vez mais perfeitos, penetrarmos sucessivamente mais adiante nos mistérios da criação, e encontrarmos mundos sem fim, povoando um espaço sem fim! Então, quanto Deus não nos parecerá ainda mais adorável, ele que tirou tudo isso do nada; ele, cuja bondade sem limites não criou tudo isto senão para a satisfação dos seres vivos e cuja sabedoria ordenou isto tudo de maneira tão admirável!
“Mas nossa morada e nossa conformação atuais podem proporcionar-nos tal felicidade? Para isto não necessitamos de outra morada, que nos colocará mais à frente, no domínio da criação, e de um envoltório muito mais sutil e mais perfeito, que não entravará o nosso espírito em seu progresso para a perfeição, e por meio do qual ele poderá ver, sem auxílio, no todo universal, muito além do que podemos ver daqui com os nossos melhores instrumentos?
“Mas, por que o Criador não nos daria, após vários degraus de existência, um envoltório que, semelhante ao relâmpago, poderia elevar-se de mundos a mundos, permitindo-nos assim, ao mesmo tempo, olhar tudo mais de perto, e abarcar melhor o conjunto pelo pensamento? Quem ousaria disto duvidar, quando vemos a brilhante borboleta nascer da lagarta e a árvore ofuscante de flores provir de uma semente!? Se Deus assim desenvolve pouco a pouco a lagarta e no-la mostra esplendidamente transformada; se também desenvolve o germe por graus, quanto não nos fará progredir a nós, os homens, reis da Terra, e avançar na criação!”
Pluralidade dos mundos habitados, pluralidade das existências, perispírito, progresso sucessivo e indefinido da alma, tudo aí está.
[1] Exposição da grandeza da criação universal. Via de regra mantemos no texto o título original, quando a obra não tem tradução em português. N. do T.
Dissertações espíritas
(Sociedade de Paris, 6 de fevereiro de 1863 - Médium: Sra. Costel)
O Espiritismo é o Cristianismo da Idade Moderna. Ele deve restituir às tradições o seu sentido espiritualista.
Outrora o Espírito se fez carne; hoje a carne se faz Espírito, para desenvolver a ideia gigantesca que deve renovar a face do mundo. Mas à festa da criação espírita sucederão a perturbação e o orgulho dos diversos sistemas que, desprezando sábios ensinamentos, armarão uma nova torre de Babel, obra de confusão, em breve reduzida a nada, porque as obras do passado são o penhor do futuro, e nada se dissipa do tesouro de experiências acumuladas pelos séculos.
Espíritas, formai uma tribo intelectual. Segui vossos guias mais docilmente do que o fizeram os Hebreus. Nós também vimos livrar-vos do jugo dos filisteus e vos conduzir à Terra Prometida. Às trevas das primeiras idades sucederá a aurora, e ficareis maravilhados ao compreender o lento reflexo das idades anteriores sobre o presente. As lendas reviverão, enérgicas como a realidade, e obtereis a prova da admirável unidade, penhor da aliança contraída por Deus com suas criaturas.
São Luís
Outrora o Espírito se fez carne; hoje a carne se faz Espírito, para desenvolver a ideia gigantesca que deve renovar a face do mundo. Mas à festa da criação espírita sucederão a perturbação e o orgulho dos diversos sistemas que, desprezando sábios ensinamentos, armarão uma nova torre de Babel, obra de confusão, em breve reduzida a nada, porque as obras do passado são o penhor do futuro, e nada se dissipa do tesouro de experiências acumuladas pelos séculos.
Espíritas, formai uma tribo intelectual. Segui vossos guias mais docilmente do que o fizeram os Hebreus. Nós também vimos livrar-vos do jugo dos filisteus e vos conduzir à Terra Prometida. Às trevas das primeiras idades sucederá a aurora, e ficareis maravilhados ao compreender o lento reflexo das idades anteriores sobre o presente. As lendas reviverão, enérgicas como a realidade, e obtereis a prova da admirável unidade, penhor da aliança contraída por Deus com suas criaturas.
São Luís
(Sétif, Agélia, 15 de outubro de 1863)
Abri as escrituras sagradas e a cada página encontrareis predições ou alegorias incompreensíveis para quem quer que não esteja ao corrente das relações novas e que, para a maioria, foram interpretadas pelos comentadores em conformidade com a sua opinião e muitas vezes ao seu interesse. Mas, tomando como guia a ciência que começastes a adquirir, podereis facilmente descobrir o sentido oculto que elas encerram.
Os antigos profetas eram todos inspirados por Espíritos elevados, mas que não lhes davam, em suas revelações, senão ensinamentos de natureza a não serem compreendidos senão por inteligências de escol, e cujo sentido não estivesse em oposição muito patente com o estado dos conhecimentos e dos preconceitos daquela época. Era preciso que fosse possível interpretá-los de maneira adequada à compreensão das massas, para que estas não as rejeitassem, como não teriam deixado de fazer, se essas predições estivessem em oposição muito formal com as ideias gerais.
Hoje o nosso cuidado deve ser de vos esclarecer completamente e, ao mesmo tempo, vos fazer compreender as aproximações existentes entre as nossas revelações e as dos Antigos. Nós temos outra tarefa a desempenhar, a de combater a mentira, a hipocrisia e o erro, tarefa muito difícil e muito árdua, mas cujo fim alcançaremos, pois tal é a vontade de Deus.
Tende fé e coragem. Jamais Deus encontra um obstáculo irresistível à sua vontade. Meios imprevistos serão empregados, por suas ordens, para vencer o gênio do mal, personificado agora pelos que deveriam marchar à frente do progresso e propagar a verdade, em vez de a ela pôr entraves pelo orgulho ou pelo interesse.
É preciso, pois, anunciar por toda parte, com confiança e segurança, o fim próximo da escravidão, da injustiça e da mentira. Digo o fim próximo, porque os acontecimentos, posto devendo realizar-se com a sábia lentidão que a Providência traz em suas reformas, para evitar as desgraças inseparáveis de uma grande precipitação, terão seu curso num espaço de tempo menor do que o esperam os que se amedrontam com os obstáculos que preveem, e que não o esperam também os que, por medo ou egoísmo, estão interessados na manutenção indefinida do estado de coisas.
Sede, pois, ardentes na propaganda, mas prudentes ante os ouvintes, para não apavorar as consciências timoratas e ignorantes. Só os egoístas não exigem qualquer habilidade e não vos devem meter medo. Tendes a ajuda de Deus. Sua resistência será impotente contra vós. É preciso lhes mostrar sem equívoco o futuro terrível que os espera, por sua própria causa e por causa dos que se deixarem perverter por seu exemplo, pois cada um é responsável pelo mal que faz e por aquele de que for causa.
SANTO AGOSTINHO
Os antigos profetas eram todos inspirados por Espíritos elevados, mas que não lhes davam, em suas revelações, senão ensinamentos de natureza a não serem compreendidos senão por inteligências de escol, e cujo sentido não estivesse em oposição muito patente com o estado dos conhecimentos e dos preconceitos daquela época. Era preciso que fosse possível interpretá-los de maneira adequada à compreensão das massas, para que estas não as rejeitassem, como não teriam deixado de fazer, se essas predições estivessem em oposição muito formal com as ideias gerais.
Hoje o nosso cuidado deve ser de vos esclarecer completamente e, ao mesmo tempo, vos fazer compreender as aproximações existentes entre as nossas revelações e as dos Antigos. Nós temos outra tarefa a desempenhar, a de combater a mentira, a hipocrisia e o erro, tarefa muito difícil e muito árdua, mas cujo fim alcançaremos, pois tal é a vontade de Deus.
Tende fé e coragem. Jamais Deus encontra um obstáculo irresistível à sua vontade. Meios imprevistos serão empregados, por suas ordens, para vencer o gênio do mal, personificado agora pelos que deveriam marchar à frente do progresso e propagar a verdade, em vez de a ela pôr entraves pelo orgulho ou pelo interesse.
É preciso, pois, anunciar por toda parte, com confiança e segurança, o fim próximo da escravidão, da injustiça e da mentira. Digo o fim próximo, porque os acontecimentos, posto devendo realizar-se com a sábia lentidão que a Providência traz em suas reformas, para evitar as desgraças inseparáveis de uma grande precipitação, terão seu curso num espaço de tempo menor do que o esperam os que se amedrontam com os obstáculos que preveem, e que não o esperam também os que, por medo ou egoísmo, estão interessados na manutenção indefinida do estado de coisas.
Sede, pois, ardentes na propaganda, mas prudentes ante os ouvintes, para não apavorar as consciências timoratas e ignorantes. Só os egoístas não exigem qualquer habilidade e não vos devem meter medo. Tendes a ajuda de Deus. Sua resistência será impotente contra vós. É preciso lhes mostrar sem equívoco o futuro terrível que os espera, por sua própria causa e por causa dos que se deixarem perverter por seu exemplo, pois cada um é responsável pelo mal que faz e por aquele de que for causa.
SANTO AGOSTINHO