Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Julho

Sem lembrar aqui os inúmeros fenômenos que ressaltam do Espiritismo experimental e provam, com a última evidência, a independência do Espírito e da matéria, chamaremos a atenção para um fato vulgar, do qual não se tem, ao que saibamos, tirado todas as consequências, e que, entretanto, é de natureza a impressionar todo observador sério.

Queremos falar do que se passa no sonambulismo natural ou artificial; nas estranhas faculdades que se desdobram nos catalépticos; no não menos estranho fenômeno da dupla vista, hoje perfeitamente constatado até pelos incrédulos, mas cuja causa não buscaram, posto valesse a pena.

A seguinte carta, que nos dirige distinto médico do Tarn, prova por qual encadeamento de ideias um homem que reflete pode passar da incredulidade à crença, apenas ajudado pelo raciocínio e pela observação feita com boa-fé.

“Senhor,

“Confundido na massa dos dúbios e dos incrédulos, a leitura do Livro dos Espíritos me produziu vivíssima sensação. A suave satisfação que me ficou de sua leitura fez nascer em mim o desejo muito natural de crer, sem restrições, em todos os ensinos dados pelos Espíritos nesse livro.

“A fim de atingir tal objetivo, desejaria constatar por mim mesmo a realidade das comunicações. Assim, esforcei-me por me tornar médium, mas não o consegui e tive que parar as pesquisas. Cansado de viver na minha incerteza, resolvi reportarme às observações alheias. Mas como não sou, por natureza, fácil de ser persuadido, sentia a necessidade de conhecê-las a fim de poder julgar de sua realidade. Depois de percorrer os quatro primeiros anos da Revista Espírita, e sobretudo de haver notado com que precauções os numerosos fatos são ali reportados, e que as manifestações dos Espíritos e suas comunicações são sempre constatadas por pessoas respeitáveis, desinteressadas e fidedignas, não mais é possível conservar qualquer dúvida quanto à sua autenticidade.

“Entretanto, uma vez admitidas as comunicações, eu deveria fazer uma ideia do grau de confiança que se deveria conferir às revelações, sobretudo àquelas que constituem a base da filosofia espírita.

“Nessa apreciação, as chamas do inferno não me poderiam deter, a menos que negasse a bondade infinita de Deus.

“Também a diferença das religiões não criavam obstáculos à minha lógica, visto que semeando o bem, o mais simples bom-senso diz que não se pode colher o mal.

“Restava-me, contudo, o ponto capital da reencarnação. Sobre isso, o sonambulismo me foi uma ajuda valiosa, e se ele não resolve inteiramente o problema, em minha opinião o torna tão provável que se faz necessária forte dose de má vontade para não admiti-lo.

“Para começar, se a existência da alma já não estivesse suficientemente demonstrada pelas manifestações e comunicações dos Espíritos, seria claramente provada pela visão à distância e através dos corpos opacos, que não pode ser explicada senão por seu intermédio. Depois, pondo de lado as faculdades da alma desprendida da matéria, tais como a visão à distância, a transmissão do pensamento, etc., o sonambulismo leva à descoberta no sensitivo de conhecimentos muito mais extensos que os que ele possui no estado de vigília. Disto resulta que a alma deve ser mais antiga que o corpo, porque, se criada ao mesmo tempo que ele, ela não poderia ter conhecimentos além dos adquiridos durante a existência deste último.

“Mas, depois de haver constatado que a alma é mais antiga que o corpo, não se sente nenhuma repugnância em lhe conferir outras encarnações, porque se a existência atual não é o começo, nada prova que seja a última; ao contrário, tornamse muito naturais e até mesmo indispensáveis. Há mais: O sonâmbulo, em estado de vigília, geralmente não tem nenhuma lembrança do que disse ou fez durante o sono, mas, durante o sono, reencontra sem dificuldade tudo quanto fez, não só durante os sonos precedentes, mas também durante a vigília. Não é este o quadro exato da existência da alma em seus numerosos estados errantes e encarnados, com suas lembranças e seu esquecimento?

“Filho do povo, minha instrução, extremamente medíocre e adquirida por mim mesmo, remonta apenas a um terço de minha idade, que é de quarenta e dois anos. Assim, parece-me que uma pena algo mais experimentada faria ressaltar muito mais claramente, a esse propósito, as verdades que tentei descobrir. Contudo, por mais imperfeitas que sejam estas aproximações, elas bastaram para determinar minha convicção, e eu me sentiria feliz se as julgásseis dignas de poder exercer a mesma influência sobre outros.

“Posto minha convicção seja de data muito recente, começou a produzir frutos e, independentemente das felizes modificações trazidas à minha maneira de ser, é para mim a fonte de suaves consolações. Essas mudanças felizes são devidas unicamente ao conhecimento de vossas obras. Assim, senhor, eu vos peço que vos digneis receber o eterno reconhecimento daquele que no futuro deseja ser contado no número dos vossos mais fervorosos adeptos.

“G...”

A visão à distância, as impressões sentidas pelo sonâmbulo, conforme o meio que vai visitar, provam que uma parte de seu ser é transportada. Ora, se não é o seu corpo material, visível, que não mudou de lugar, não pode ser senão o corpo fluídico, invisível e sensível. Não é o mais patente fato da dupla existência corpórea e espiritual?

Mas, sem falar desta singular faculdade, que não é geral, basta observar o que se passa nos mais vulgares sonâmbulos. A dualidade se manifesta de maneira não menos evidente, como observa o nosso correspondente, no fenômeno do esquecimento ao despertar. Não há quem, tendo observado os efeitos magnéticos, não tenha observado a instantaneidade de tal esquecimento. Um sonâmbulo fala e sua conversa é perfeitamente sequencial e racional. Se o despertam de súbito, no meio de uma frase, de uma palavra que ele nem chegou a concluir e lhe perguntam o que acabou de dizer, se lhe relembram a palavra começada, responderá que nada disse.

Se o pensamento fosse produto da matéria cerebral, por que tal esquecimento, se a matéria está sempre lá e é sempre a mesma? Por que basta um instante para mudar o curso das ideias? Mas o que é ainda mais característico, é a relembrança perfeita, num novo sono, daquilo que foi dito e feito num sono precedente, por vezes a um intervalo de um ano. Só este fato provaria que, ao lado da vida do corpo, há a vida da alma, e que a alma pode agir e pensar de maneira independente. Se ela pode manifestar tal independência durante a vida do corpo, cujos entraves sempre sofre mais ou menos, com mais forte razão o pode quando goza de sua inteira liberdade.

As consequências que nosso correspondente tira desses fenômenos para provar a anterioridade da alma e a pluralidade das existências são perfeitamente lógicas.

Os fenômenos sonambúlicos, como tantos outros, parecem trazidos pela Providência para nos pôr na rota dos mistérios do pensamento. A Ciência, entretanto, não se digna considerá-los. Com o propósito de vê-los, ela não desviará os olhos de um pólipo, de um cogumelo, de um filete nervoso. É verdade que a alma não se mostra à ponta de um escalpelo, nem sob as lentes, mas como se julga a causa pelos efeitos, os efeitos da alma, a cada passo, estão sob os vossos olhos e não os olhais. Percorreríeis cem léguas para observar um fenômeno astronômico sem utilidade prática, enquanto só tendes sarcasmos e desdém quando se trata dos fenômenos da alma, que estão ao vosso alcance, e que interessam a toda a Humanidade, em seu presente e no seu futuro.

Se dificilmente a Ciência oficial renuncia a seus preconceitos, seria injusto fazer cair a responsabilidade sobre todos os cientistas. Entre eles manifesta-se um movimento de bom augúrio, em relação às ideias novas. As adesões individuais e tácitas são numerosas, mas, talvez mais que outros, ainda temem pôr-se em evidência. Bastará que algumas sumidades ergam a bandeira, para fazer calar os escrúpulos alheios, impor silêncio aos trocistas de mau gosto e fazer refletirem os agressores interesseiros. É o que não tardaremos a ver.


Como resposta a certas calúnias que os adversários do Espiritismo gostam de despejar contra a Sociedade, julgamos dever publicar os pedidos de admissão formulados nas duas cartas seguintes, sobre as quais fazemos, na sequência, algumas observações.

Ao Sr. Presidente da Sociedade de Estudos Espíritas de Paris.



“Senhor,

“Ser-me-ia permitido aspirar a ser admitido como membro da ilustre Sociedade que presidis?

“Também tive a felicidade de conhecer o Espiritismo e de experimentar, em toda a sua plenitude, a sua benéfica influência. Há tempo eu era vítima de sofrimentos físicos, e consequentemente do sofrimento moral que naturalmente deles decorre quando o pensamento não vê como compensação senão a dúvida e a incerteza. O Livro dos Espíritos entrou em minha casa como o salvador cuja mão benfeitora nos tira do abismo, como o médico que cura instantaneamente.

“Li e compreendi, e logo o sofrimento moral deu lugar a uma imensa felicidade, ante a qual morreu o sofrimento físico, porque, desde então, não mais o vejo senão como efeito da vontade e da sabedoria divinas, que só nos envia males para nosso maior bem.

“Sob a influência dessa crença benéfica, meu estado físico já melhorou sensivelmente, e espero que Deus complete sua obra, porque se hoje desejo o restabelecimento da saúde, não é mais, como outrora, para gozar a vida, mas para consagrá-la unicamente ao bem, isto é, para empregá-la exclusivamente em marchar para o futuro, trabalhando com ardor e por todos os meios ao meu alcance, para o bem de meus semelhantes e, particularmente, dedicando-me à propagação da sublime doutrina que Deus, em sua bondade infinita, envia à pobre Humanidade para regenerá-la.

“Glória seja rendida a Deus pela divina luz que, em sua misericórdia, se dignou enviar às suas criaturas cegas! E graças vos sejam dadas, senhor, a quem ele escolheu para lhes trazer o facho sagrado!

“Senhor, se vos dignardes acolher o meu pedido, eu vos serei profundamente reconhecido por sua transmissão aos vossos honrados colegas. Não tenho a honra de ser vosso conhecido pessoalmente, pois meu estado de saúde sempre me impediu de vos visitar. Mas meu amigo Sr. Canu, vosso colega, poderá responder por mim.

“Recebei, senhor e caro mestre, o preito de meus respeitosos sentimentos e de meu sincero devotamento.”

HERMANN HOBACH


“Senhor e venerado mestre,

“Confiante em vossa benevolência, venho dirigir-vos um pedido que, se ouvido, encher-me-ia de alegria. Já tive a honra de vos escrever, há tempos, com o duplo objetivo de exprimir os sentimentos, por assim dizer novos, que a leitura séria do Livro dos Espíritos havia feito nascer em mim, e obedecer ao dever sagrado de agradecer ao homem venerado que estende a mão de amparo à coragem vacilante dos fracos deste mundo, em cujo número me achava até bem pouco tempo, pela ignorância destes princípios sublimes que enfim determinam ao homem uma tarefa a cumprir, de acordo com suas forças e com as suas faculdades.

“Destes a essa carta uma resposta cheia de amenidade, convidando-me a vir, como ouvinte, assistir às sessões gerais da Sociedade. Essas sessões e a leitura do Livro dos Médiuns me deram mais e mais força e coragem e me inspiraram o desejo de participar de uma sociedade fundada sobre os mesmos princípios que acabaram de afastar a perturbação, a dispersão, o caos, que presidiam a todas as minhas ações.

“Eu havia chegado a supor que a chave do enigma da existência devia ser muito insignificante, pois meu espírito ainda não me tinha feito compreender que fora do mundo material que me rodeava havia um mundo espiritual, a marchar lado a lado com o nosso para o melhoramento.

“Assim, senhor, me reafirmo feliz, se puder demonstrar perante o mundo inteiro dos incrédulos e dos cépticos, que a doutrina espírita fez em mim tão radical mudança na maneira de ser que certamente essa mudança poderia, sem exagero, ser qualificada de milagre, porque, abrindo-me os olhos para todo o bem que se pode fazer e não se faz, percebi, para começar, uma finalidade para a nossa vida atual, e depois, carregado de faltas de toda espécie, vi, enfim, que a Providência não nos havia deixado faltar trabalho, e que ao Espírito não bastava uma existência para se aperfeiçoar, trabalhando por dominar primeiro o corpo e em seguida dominar-se a si próprio.

“Se julgardes conveniente receber-me, senhor, posto ainda seja muito moço, como um dos membros da Sociedade Espírita, rogo-vos apresenteis meu pedido ao conselho e lhe afirmar a honra que me faria a Sociedade em receber-me em seu seio, o que por mim seria apreciado com o sentimento do mais completo reconhecimento. “Recebei, senhor, o preito de minha profunda veneração.”

PAUL ALBERT


Se tais cartas honram os seus autores, também honram a Sociedade à qual são dirigidas e que vê com felicidade os que pedem para nela entrar, animados por tais sentimentos. É uma prova de que compreendem o objetivo exclusivamente moral a que a Sociedade se propõe, pois não são movidos por uma vã curiosidade que, aliás, não entraria em nossos propósitos satisfazer.

A Sociedade só acolhe gente séria, e cartas como as que acima publicamos lhe indicam o verdadeiro caráter. É entre os adeptos dessa categoria que ela se sente feliz em recrutar, e é a melhor resposta que ela pode dar aos detratores do Espiritismo, que se esforçam em apresentá-la, bem como a suas irmãs dos departamentos e do estrangeiro que marcham sob a mesma bandeira, como focos perigosos para a razão e para a ordem pública, ou como uma vasta especulação. Deus quis que o mundo não tivesse outras fontes de perturbação.

Como temos dito, o Espiritismo moderno terá a sua história, que será a das fases que tiver percorrido, de suas lutas e de seus sucessos, de seus defensores, de seus mártires e de seus adversários, pois é preciso que a posteridade saiba de que armas se serviram para atacá-lo. É preciso, sobretudo, que ela conheça os homens de coração que se devotaram à sua causa com inteira abnegação, completo desinteresse material e moral, a fim de que ela lhes possa pagar um justo tributo de reconhecimento. Para nós é uma grande alegria quando podemos inscrever um novo nome, glorioso por sua modéstia, sua coragem e suas virtudes, nesses anais onde se confundem o príncipe e o artífice, o rico e o pobre, os homens de todos os países e de todas as religiões, porque para o bem só há uma casta, uma só seita, uma só nacionalidade e uma só bandeira: a da fraternidade universal.

A Sociedade Espírita de Paris, a primeira fundada e oficialmente reconhecida; a que, pode-se dizer, deu o impulso, e sob cuja égide se formaram tantas outras sociedades e grupos; que se tornou, pela força das coisas, e por mais restrito que seja o número de seus membros, o centro do Movimento Espírita, pois seus princípios são os da quase universalidade dos adeptos, esta Sociedade, dizíamos nós, terá também seus anais para a instrução daqueles aos quais preparamos o caminho, e para a confusão de seus caluniadores.

Não é somente ao longe que a calúnia atira o seu veneno, é às nossas portas mesmo. Há poucos dias alguém nos disse que há muito tempo tinha o maior desejo de assistir a algumas sessões da Sociedade, mas que tinha sido detido porque lhe haviam afirmado que se devia pagar dez francos. Sua surpresa foi grande, e podemos dizer, também sua alegria, quando lhe dissemos que tal boato era filho da malevolência; que desde que a Sociedade existe, jamais um ouvinte pagou um cêntimo; que não se lhe impõe qualquer obrigação pecuniária, sob qualquer forma e a qualquer título que seja, nem como assinatura da Revista Espírita, nem como compra de livros; que nenhum dos nossos médiuns é remunerado, pois todos, sem exceção, dão seu concurso por puro devotamento à causa; que os membros titulares e associados são os únicos a participar nas despesas materiais, mas que os membros correspondentes e honorários não suportam nenhum encargo, limitando-se a Sociedade a prover as despesas correntes, restritas quanto possível, e não capitalizando; que o Espiritismo é uma coisa puramente moral, que não pode, assim como as coisas santas, ser objeto de uma exploração que sempre repudiamos verbalmente e por escrito; que, assim, só uma insigne malevolência é capaz de emprestar semelhantes ideias à Sociedade.

Acrescentaremos que o autor dessa informação oficiosa disse haver pago os seus dez francos, o que prova que ele não era inocente na difusão desse boato. A Sociedade Espírita de Paris, por sua posição e pelo papel que desempenha, não deixará de ter, mais tarde, uma certa repercussão. É, pois, necessário aos nossos irmãos dos tempos porvindouros, que o seu objetivo e as suas tendências não sejam desnaturados por manobras malévolas, e para isto não bastam algumas refutações individuais, que só têm efeito no presente e se perdem na multidão. As retratações que se obtêm não passam de uma satisfação momentânea, cuja lembrança logo passará. É necessário um monumento especial, autêntico e durável, e esse monumento será feito em tempo hábil. Enquanto esperamos, deixemos os adversários se desacreditarem a si mesmos pela mentira. A posteridade os julgará.


“Senhor,

“Para combater o Espiritismo, seus adversários acabam de imaginar uma nova tática, que consiste em fazer aparecerem no palco espectros e fantasmas impalpáveis, apresentados como os do Espiritismo. Tais aparições se dão todas as noites na Sala Robin, no Boulevard du Temple. Ontem assisti à segunda representação e não foi sem espanto que ouvi o Sr. Robin dizer aos seus espectadores que se havia proposto, por suas experiências, a combater a estranha crença de certas pessoas que imaginam que os Espíritos movimentam mãos e fazem as mesas girarem.

“Senhor, jamais compreendi, por meu lado, que possa haver analogia entre essas imitações criadas pela física recreativa e as manifestações espíritas que estão nas leis da Natureza. Assim, tais manobras quase não são de temer pelos adeptos do Espiritismo. Contudo, como não se deve deixar surpreender a boa-fé do público, considerei-me na obrigação de informar-vos acerca desses fatos, a fim de que lhes consagreis um artigo especial na Revista, se achardes conveniente. Como tenho o hábito de agir às claras e não na sombra, autorizo-vos a fazer desta o uso que vos aprouver.

“Recebei, etc.

“SIMOND, estudante de Direito em Paris.”

Há algum tempo se fala de uma peça fantástica, montada no Teatro du Châtelet, onde, por um processo novo e secreto, fazem aparecer em cena sombras-fantasmas impalpáveis. Parece que o segredo foi descoberto, pois o Sr. Robin o explora neste momento. Como não a vimos, nada podemos dizer quanto ao mérito da imitação. Fazemos votos que seja menos grosseira que a imaginada pelo casal Girroodd, americanos do Canadá, que alguns traduzem por Girod de Saint-Flour, para simular a transmissão do pensamento através das paredes, e que seria a morte irremediável dos médiuns e dos sonâmbulos. Fazemos votos para que sua invenção não lhe traga o mesmo desastre que trouxe a estes últimos.

Seja como for, o Sr. Simond tem toda razão de pensar que tais manobras não são absolutamente temíveis porque, pelo fato de se poder imitar uma coisa, não se segue que a coisa não exista. Os falsos diamantes nada tiram do valor dos brilhantes finos, e as flores artificiais não impedem que haja flores naturais. Pretender provar que certos fenômenos não existem porque podem ser imitados, seria inegavelmente como se aquele que fabrica o champanhe com água de Seltz pretendesse provar com isso que o champanhe e o bicho preguiça só existem na imaginação.

Jamais a imitação foi mais engenhosa, mais perfeita e mais espirituosa que a da dupla vista pelo Sr. Robert Houdin. Contudo, isso absolutamente não desacreditou o sonambulismo. Ao contrário, porque, tendo visto a pintura, quiseram ver o original.

O Sr. e a Sra. Girroodd tinham a pretensão de matar os médiuns fazendo passar todos os fenômenos espíritas por escamoteações. Ora, como esses fenômenos são o pesadelo de certas pessoas, tinham colhido as adesões, publicadas em seus prospectos, de vários padres e bispos espiritófobos, encantados com essa cacetada aplicada no Espiritismo. Mas, em sua alegria, tais senhores não tinham refletido que os fenômenos espíritas vêm demonstrar a possibilidade dos fatos miraculosos e que provar, se fosse possível provar, que esses fenômenos não são golpes de mágica, seria provar que o mesmo pode dar-se com os milagres; que, consequentemente, desacreditar uns, seria desacreditar os outros. Jamais se pensa em tudo. Estando um pouco gastas as mágicas do Sr. Girroodd, ele fará agora acordo com o Sr. Robin para as suas aparições?

O Indépendence Belge, que não gosta do Espiritismo, não sabemos bem por quê, pois ele nunca lhe fez mal, falando desse novo truque cênico, em um número de junho, exclamava: “Eis a religião do Sr. Allan Kardec metida a pique. Como vai o Espiritismo sair-se desta?” Notai que essa pergunta tem sido feita muitas vezes, por todos quantos lhe pretenderam dar golpes fatais, sem excetuar o Sr. Pe. Marouzeau, e o Espiritismo não saiu deles pior. Diremos ao Indépendence que supor que ele repouse em aparições é prova de ignorância completa da base do Espiritismo e que se essa base for subtraída subtraem-lhe a alma.

Se fosse comprovado que o fato das aparições é uma farsa, a religião sofreria mais que o Espiritismo, pois três quartas partes dos mais importantes milagres não têm outro fundamento.

A arte cênica é a arte da imitação por excelência, desde o frango de papelão até as mais sublimes virtudes, e disso não se deduz que não se deva crer nos frangos verdadeiros nem nas virtudes.

Esse novo gênero de espetáculo, por sua originalidade, vai aguçar a curiosidade pública, e será repetido em todos os teatros, pois dará dinheiro; fará falar do Espiritismo talvez ainda mais que os sermões, precisamente devido à analogia que os jornais tentarão estabelecer. É mesmo preciso persuadir-se de que tudo o que tende a preocupar a opinião, forçosamente leva ao exame, ainda quando não fosse por curiosidade, e é de tal exame que saem os adeptos.

Os sermões o apresentam sob um aspecto sério e terrível, como um monstro invasor do mundo e ameaçador da Igreja até os seus alicerces. Os teatros vão dirigirse à multidão dos curiosos, de sorte que os que não frequentam os sermões dele ouvirão falar no teatro, e os que não vão ao teatro ouvirão falar no sermão. Como se vê, há para todos.

É realmente uma coisa admirável ver por que meios as forças ocultas que dirigem esse movimento chegam a fazê-lo penetrar em toda parte, servindo-se dos mesmos que o querem derrubar. É bem certo que, sem os sermões de um lado e as facécias dos jornais do outro, a população espírita seria hoje dez vezes menor do que é.

Assim, dizemos que as imitações, mesmo supondo-as tão perfeitas quanto possível, não podem causar qualquer prejuízo. Dizemos, até, que são úteis. Com efeito, eis o Sr. Robin que, por meio de um processo qualquer, produz coisas admiráveis ante os espectadores, afirmando serem as mesmas do Espiritismo, produzidas pelos médiuns. Ora, entre os assistentes, alguns dirão: “Já que com o Espiritismo é possível fazer o mesmo, estudemo-lo, aprendamos a ser médium e poderemos ver em casa, tanto quanto quisermos e sem pagar, aquilo que se vê aqui.” Entre estes, muitos reconhecerão o lado sério da questão e é assim que, sem o querer, eles servem aos que querem prejudicar.

O que temem as pessoas sérias é que essas palhaçadas enganem certas criaturas sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo. Aí, sem dúvida, está o lado mau, mas o inconveniente não tem importância, porque o número dos que se deixam enganar é ínfimo. Aqueles que dissessem: “É apenas isto!” mais cedo ou mais tarde terão ocasião de reconhecer que é outra coisa. E, enquanto esperam, a ideia se espalha, a gente se familiariza com a palavra que, sob o manto burlesco, tudo penetra; pronunciam-no sem desconfiança e quando a palavra está por toda parte, a coisa está bem próxima de aí estar.

Quer seja isto uma manobra dos adversários do Espiritismo, quer simples combinação pessoal para reforçar a receita, é forçoso convir que é inepta.

Haveria mais habilidade da parte dos senhores Robin e consortes em negar qualquer analogia com o Espiritismo ou o magnetismo, porque proclamar tal paridade é reconhecer uma concorrência ─ falamos de seu ponto de vista comercial ─ é proporcionar a vontade de ver essa concorrência e confessar que ambos podem ser postos de lado.

Já que estamos no capítulo das inépcias, eis uma, como já houve tantas outras. Lamentamos fazê-la figurar ao lado da dos Srs. Robin e Girroodd, mas é a analogia do resultado que a isto nos força. Aliás, considerando-se que os dignitários da Igreja não julgaram que se rebaixavam patrocinando um prestidigitador contra o Espiritismo, não poderão escandalizar-se encontrando um sermão neste capítulo.


Escreve-nos um correspondente de Bordeaux:

“Caro mestre, acabo de receber uma carta de minha irmã, que mora na cidadezinha de B... Ela se desesperava por não encontrar ninguém com quem conversar sobre o Espiritismo, quando os adversários de nossa cara doutrina vieram tirá-la do embaraço.

“Tendo dele ouvido falar vagamente, algumas pessoas se dirigiram aos carmelitas para saber o que era. Estes, não contentes em desviá-los, pregaram quatro sermões a respeito, cujas principais conclusões são as seguintes: “Os médiuns são possessos do demônio. Eles só agem com objetivos interesseiros e não se servem de seu poder senão para encontrar tesouros e objetos preciosos perdidos, mas, ao contacto de uma santa relíquia, vê-los-eis esticar-se e torcer-se em horríveis convulsões.

“Os tempos preditos pelos Evangelhos são chegados. Os médiuns não passam dos falsos profetas anunciados pelo Cristo. Em breve todos terão por chefe o Anticristo. Farão milagres e prodígios admiráveis, e por tal meio ganharão para a sua causa três quartos da população do globo, o que será sinal do fim dos tempos, porque Jesus descerá sobre uma nuvem celeste e, de um sopro, os precipitará nas chamas eternas.”

“O resultado foi que toda a cidade ficou abalada. Por toda parte se fala do Espiritismo. As pessoas não se contentam com a explicação do padre e querem saber mais, e minha irmã, que não via ninguém, certos dias recebe mais de trinta visitas. Ela os remete sempre ao Livro dos Espíritos, que em pouco estará em todas as mãos, e muitos dos que já o têm dizem que isto em nada se parece com o quadro feito pelo pregador, porque ele disse tudo ao contrário. Assim, agora contamos com vários adeptos sérios, graças a esses sermões, sem os quais o Espiritismo não teria penetrado há tanto tempo naquelas paragens remotas.”

Não tínhamos razão de dizer que é ainda uma inépcia? E não teríamos razão de bem-querer a adversários que trabalham tão bem por nós? Mas esta não é a última. Esperamos a maior delas, que coroará a obra. Há um ano eles engendram uma muito grave, que evitamos revelar, porque é preciso que ela vá até o fim, mas cujas consequências veremos um dia. Há cerca de dois anos perguntávamos a um dos nossos guias espirituais por que meio poderia o Espiritismo penetrar no campo. A resposta foi:

─ Pelos curas.

─ Dar-se-á isso voluntária ou involuntàriamente, da parte deles?

─ A princípio involuntariamente, depois voluntariamente. Em breve farão uma propaganda cujo alcance não podeis avaliar. Não vos inquieteis com coisa alguma e deixai a coisa andar. Os Espíritos velam e sabem o que fazem.

A primeira parte da predição, como se vê, realiza-se o melhor possível. Aliás, todas as fases pelas quais passou o Espiritismo nos têm sido anunciadas e todas as que deve ainda percorrer até o seu estabelecimento definitivo no-lo são igualmente, e cada dia verifica o acontecimento.

É em vão que procuram dissuadir do Espiritismo, apresentando-o sob cores horrorosas. Como se vê, o efeito é bem diverso do que esperam. Para dez pessoas desviadas, há cem ligadas. Isto prova que há, por si mesmo, uma irresistível atração, sem falar da do fruto proibido. Isto nos trás à memória a seguinte anedota:

Um dia um proprietário trouxe para casa um barril de vinho excelente, mas como ele temia a infidelidade dos criados, colou uma etiqueta em letras garrafais: Vinagre Horroroso. Ora, vazando um pouco o barril, um deles teve a curiosidade de experimentá-lo com a ponta do dedo, e achou que o vinagre era bom. À coisa passou de boca em boca, de maneira que, cada um vindo apanhar um pouco, ao cabo de algum tempo o barril estava vazio. Como o proprietário dava zurrapa para sua gente beber, diziam uns para os outros: “Isto não vale o vinagre horroroso.”

Por mais que digam que o Espiritismo é vinagre, não levarão os que o provarem a não achar que ele é suave. Ora, os que o provarem dirão aos outros, e todos quererão bebê-lo.


O presidente da Sociedade Espírita de Constantinopla, membro honorário da Sociedade Espírita de Paris, escreve-nos o que segue, em data de 22 de maio último:

“Caro senhor Allan Kardec e irmão espírita,

“Há muito tempo me proponho dar-vos notícias minhas, mas não creiais que por isso haja descanso na propaganda espírita. Ao contrário, há mais atividade do que nunca. Crede que neste país inteiramente fanatizado e arregimentado nas seitas, por toda parte o Espiritismo encontra obstáculos que talvez não existam em parte alguma, mas suas raízes são tão vivazes e tão produtivas que, malgrado tudo, penetram pouco a pouco e acabarão por lançar brotos vigorosos, que nenhum poder humano poderá destruir.

“Constantinopla já conta com numerosos adeptos do Espiritismo e, posso afirmar, nas classes mais elevadas da Sociedade. Apenas notei que cada um se fecha em si, por medo de se comprometer.

“Permiti-me citar um fato que aqui se passa, e que denota até que ponto o Espiritismo se inculca: é que vários livreiros que importaram livros espíritas, notadamente o Livro dos Espíritos e o Livro dos Médiuns, os vendem imediatamente, e a quem? Nós, espíritas conhecidos e confessos aos olhos de todos, o ignoramos. Temos certeza do fato, para o qual chamo a vossa atenção, porque, quando alguns dentre nós quer comprar vossas obras, o livreiro responde: ‘Eu as recebi e as vendi imediatamente.’ Nós nos perguntamos quem monopoliza essas obras, assim que são desembaladas, a ponto tal que os nossos, quando as querem comprar, não as encontram.........

“Eis agora outra notícia que certamente não vos interessará menos:

“Nosso amigo e irmão espírita Paul Lombardo, médium desenhista, do qual vos mandei algumas flores, executou uma pintura em aquarela representando um belo buquê de flores, entre as quais os amadores destacam uma dália-papoula aveludada de um efeito magnífico; todas as outras flores, como rosas, cravos, tulipas, lírios, camélias, margaridas, dormideiras, escovinhas, amores-perfeitos, etc., são de uma finura e naturalidade perfeitas.

“Levei-o a apresentar o quadro à Exposição Nacional Otomana, agora aberta, e o quadro foi ali admitido com esta inscrição:



Executado pelo Sr. Paul Lombardo, de Constantinopla, que desconhece as artes do desenho e da pintura

“A esta hora o quadro figura de maneira notável no Palácio da Exposição, à direita do lugar reservado aos quadros e gravuras. O preço foi fixado em 20 libras turcas ou 460 francos. Notai tratar-se de um fato que milhares de pessoas podem constatar autenticamente.

“Recebo cartas de vários pontos da Europa, da Ásia e da África, mas sou sóbrio de respostas, a não ser para encorajar o estudo sério e profundo de nossa grande e bela ciência. Depois eu os remeto sempre às vossas excelentes obras, os livros dos Espíritos e o dos médiuns.

“Temos sempre reuniões para as experiências físicas e para estudos psicológicos. Posto as primeiras quase sempre nos fatiguem, não podemos abandoná-las completamente, pois servem para convencer certos incrédulos, que querem ver e tocar.

“Peço apresenteis à Sociedade Espírita de Paris os respeitosos e fraternos cumprimentos dos nossos irmãos espíritas de Constantinopla e, em particular, deste que também se diz vosso mui devotado irmão,

“REPOS FILHO Advogado



O fato significativo da exposição do quadro do Sr. Lombardo em Constantinopla, posto que admitido, apresentado ostensivamente como produto mediúnico, é a réplica das fábulas espíritas, coroadas nos Jogos Florais de Toulouse.

Foi dito alhures que se a Academia de Toulouse tivesse conhecido a origem dessas fábulas, tê-las-ia repelido. É fazer-lhe a mais grosseira injúria; é, além disso, esquecer que os assuntos enviados a essa espécie de concursos não devem levar assinatura nem qualquer sinal que pudesse revelar o autor, sob pena de exclusão. O Sr. Jaubert não podia, assim, apor nem a sua nem a de um Espírito, nem mesmo dizer que procediam de um Espírito, pois teria violado a lei do concurso, que exige o mais absoluto segredo. É a resposta aos que acusam o Sr. Jaubert de haver usado uma trapaça guardando silêncio sobre a proveniência das fábulas. Seja como for, nos dois extremos da Europa uma sanção oficial é dada a produções de além-túmulo.

Semelhantes fatos bastariam para demonstrar a força irresistível do Espiritismo se, aliás, ela se não tivesse tornado evidente por tudo quanto se passa aos nossos olhos, de alguns anos para cá, e pela inutilidade dos esforços feitos para combatê-lo. E por que são inúteis tais esforços? Porque, como temos dito, ele tem um caráter que o distingue de todas as doutrinas filosóficas, o de não ter um foco único e de não depender da vida de nenhum homem. Seu foco está por toda parte, na terra e no espaço, e se o prejudicam aqui, ele surge ali. Como diz a Sociedade Espírita de Palermo, ele se afirma pelos fatos, que cada um pode experimentar, e por uma teoria que tem suas raízes no senso íntimo de cada um. Para abafá-lo, não se teria que comprimir um ponto do globo, uma aldeia, uma cidade, nem mesmo um país, mas o globo inteiro. Ainda assim, seria uma parada momentânea, pois a geração que surge trás em si a intuição das ideias novas que, mais cedo ou mais tarde, fará prevalecer. Vede o que se passa num país vizinho, onde põem sobre essas ideias uma tampa de chumbo e de onde, entretanto, elas escapam por todas as fissuras.


Temos a satisfação de assinalar o aparecimento de um novo órgão do Espiritismo em Palermo, na Sicília, publicado em italiano, sob o título de O Espiritismo, jornal de Psicologia Experimental.

A multiplicação de jornais especializados nesta matéria é um indício inequívoco do terreno que conquistam as ideias novas, a despeito, ou antes, em razão mesmo dos ataques de que são objeto. Essas ideias, que em poucos anos se implantaram em todas as partes do mundo, contam na Itália com numerosos e sérios representantes. É que, nessa pátria da inteligência, como em toda parte, quem quer que lhe sonde o alcance, compreende que elas encerram todos os elementos do progresso; que elas são a bandeira sob a qual abrigar-se-ão um dia todos os povos; que só elas resolvem os temíveis problemas do futuro, de maneira a satisfazer a razão.

Nosso concurso simpático é naturalmente extensivo a todas as publicações dessa natureza, próprios a secundar nossos esforços na grande e laboriosa tarefa que empreendemos.

A carta seguinte, que acompanhou esse jornal, anuncia, ao mesmo tempo, a constituição de uma Sociedade Espírita em Palermo, sob o título de Società Spiritista di Palermo.

“Senhor,

“Uma nova sociedade espírita acaba de ser constituída aqui em Palermo, sob a presidência do cavaleiro Sr. Joseph Vassallo Paleologo. Ela já tem o seu órgão de publicidade: O Espiritismo, ou Jornal de Psicologia Experimental, cujas duas primeiras edições acabam de surgir. Aceitai um exemplar que me permito vos oferecer, como aquele que tão bem mereceu da Humanidade pelo progresso das ideias morais sob o impulso providencial do Espiritismo.

“Aceitai, etc.

“PAOLO MORELLO
“Professor de História e de Filosofia na Universidade de Palermo.”


Cada número do jornal começa pela citação de alguns aforismos, em forma de epígrafe, tirados do Livro dos Espíritos ou do Livro dos médiuns, como, por exemplo:

“Se o Espiritismo é um erro, ele cairá por si mesmo; se for uma verdade, nem todas as diatribes do mundo poderão transformá-lo numa mentira.”

“É erro crer que a certas classes de incrédulos baste ver fenômenos extraordinários para se convencerem. Os que não admitem a alma ou o Espírito no homem não podem admiti-lo fora do homem. Eis por que, negando a causa, negam o efeito.”

“As reuniões frívolas têm grave inconveniente para os noviços que as assistem, pois lhes dão uma falsa ideia do Espiritismo.”

Acrescentamos: e que, sem ser frívolas, não são conduzidas com a ordem e a dignidade convenientes.

O primeiro número contém uma exposição de princípios, em forma de manifesto, do qual extraímos as seguintes passagens:

“Toda ciência repousa em dois pontos: os fatos e a teoria. Ora, conforme o que temos lido e visto, estamos em condições de afirmar que o Espiritismo possui os materiais e as qualidades de uma ciência, porque de um lado se afirma por fatos que lhe são peculiares e que resultam da observação e da experiência, absolutamente como qualquer outra ciência experimental, e por outro lado se afirma por sua teoria, deduzida logicamente da observação dos fatos.

“Considerado do ponto de vista dos fatos ou da teoria, o Espiritismo não saiu do cérebro humano, mas decorre da própria natureza das coisas. Dada a criação das inteligências, assim como a existência espiritual, aquilo que recebeu o nome de Espiritismo apresenta-se como uma necessidade, da qual, nas condições atuais da Ciência e da Humanidade, a gente pode ser testemunha antes que juiz, necessidade da qual resulta um fato complexo que demanda ser estudado seriamente, antes de poder ser julgado. Cada um é livre de não estudá-lo, se tal lhe agrada, mas isto não dá a ninguém o direito de escarnecer dos que o estudam.

“A sociedade fundadora deste jornal não pretende emitir nem uma crença, nem uma doutrina sua. Como, na sua convicção, nada pertence menos à invenção humana que o Espiritismo, ela se propõe expor a doutrina espírita, mas não a impôla. Aliás, ela se reserva inteira liberdade de exame e a mais completa independência de consciência na apreciação dos fatos, sem se deixar influenciar pela opinião de qualquer indivíduo ou de qualquer corporação que seja. É apenas pela sinceridade dos fatos que ela se torna responsável perante sua consciência, perante Deus e perante os homens.”

A comunicação seguinte, que traz como assinatura O Dante, extraída do segundo número, testemunha a natureza dos ensinos dados a essa sociedade.


Ninguém poderá tornar-se bom médium se não conseguir despojar-se dos vícios que degradam a Humanidade. Todos esses vícios se originam do egoísmo, e como a negação do egoísmo é o amor, toda virtude se resume nesta palavra: Caridade.

A caridade é ensinada pelo preceito: Quod tibi non vis, etc. Deus não só a gravou de modo indelével no coração do homem, mas a sancionou por seu próprio fato, dando-nos o seu Filho por modelo de caridade e de abnegação. Se ela deve ser o guia de cada um, seja qual for a sua condição social, é sobretudo a condição sine qua non de todo bom médium.

Todo homem pode tornar-se médium, mas a questão não é ser médium, é ser bom médium, o que depende das qualidades morais. É verdade que os Espíritos se comunicam com homens de todas as condições, mas com a missão de aperfeiçoálos, se suas qualidades forem boas, e eles operam esse aperfeiçoamento submetendoos às mais duras provas para purificá-los, provas que o homem de bem suporta sem desmentir o sentimento moral de sua consciência e sem se deixar desviar do bom caminho pela tentação. Os Espíritos se comunicam com aqueles cujas qualidades são más, para guiá-los pela mão e levá-los a uma conduta mais conforme à razão e mais em harmonia com o objetivo para o qual deve tender todo homem persuadido de que sua existência neste mundo não é senão expiação. Quando há mistura de bem e de mal, os Espíritos provocam a melhora por processos intermediários.

Muitos serão abandonados por seus Espíritos, por não quererem compreender que a caridade é o único meio de progredir. E então, infeliz daquele que não tiver querido ouvir a voz da verdade! Deus perdoa à ignorância, mas não ao que faz o mal conscientemente. O objetivo de nossa missão é a vossa melhora moral e o vosso dever é igualmente o vosso melhoramento, mas não espereis melhora de qualquer sorte sem a caridade.


(Extrato dos trabalhos da sociedade espírita de Paris)


Um jovem de vinte e três anos, o Sr. A..., de Paris, iniciado no Espiritismo apenas há dois meses, com tal rapidez assimilou o seu alcance que, sem nada ter visto, o aceitou em todas as suas consequências morais. Dirão que isto não é de admirar da parte de um moço, e só uma coisa prova: a leviandade e um entusiasmo irrefletido. Seja. Mas continuemos. Esse jovem irrefletido tinha, como ele próprio reconhece, um grande número de defeitos, dos quais o mais saliente era uma irresistível disposição para a cólera, desde sua infância. Pela menor contrariedade, pelas causas mais fúteis, quando entrava em casa e não encontrava imediatamente o que queria; se uma coisa não estivesse em seu lugar habitual; se o que tivesse pedido não estivesse pronto em um minuto, entrava em furores, a ponto de tudo arrebentar. Chegava a tal ponto que um dia, no paroxismo da cólera, atirando-se contra a mãe, lhe disse: “Vai-te embora, ou eu te mato!” Depois, esgotado pela superexcitação, caía sem consciência. Acrescente-se que nem os conselhos dos pais nem as exortações da religião tinham podido vencer esse caráter indomável, aliás compensado por vasta inteligência, uma instrução cuidada e os mais nobres sentimentos.

Dirão que é o efeito de um temperamento bilioso-sanguíneo-nervoso, resultado do organismo e, consequentemente, arrastamento irresistível. Resulta de tal sistema que se, em seus desatinos, tivesse cometido um assassinato, seria perfeitamente desculpável, porque teria tido por causa um excesso de bile. Disso ainda resulta que, a menos que modificasse o temperamento, que mudasse o estado normal do fígado e dos nervos, esse moço estaria predestinado a todas as funestas consequências da cólera.

─ Conheceis um remédio para tal estado patológico?

─ Nenhum, a não ser que, com o tempo, a idade possa atenuar a abundância de secreções mórbidas.

─ Ora, o que não pode a Ciência, o Espiritismo faz, não lentamente e por força de um esforço contínuo, mas instantaneamente. Alguns dias bastaram para fazer desse jovem um ser suave e paciente. A certeza adquirida da vida futura; o conhecimento do objetivo da vida terrena; o sentimento da dignidade do homem, revelada pelo livre-arbítrio, que o coloca acima do animal; a responsabilidade daí decorrente; o pensamento de que a maior parte dos males terrenos são a consequência de nossos atos; todas estas ideias, bebidas num estudo sério do Espiritismo, produziram em seu cérebro uma súbita revolução. Pareceu-lhe que um véu se erguera acima de seus olhos e a vida se lhe apresentou sob outra face. Certo de que tinha em si um ser inteligente, independente da matéria, se disse: “Este ser deve ter uma vontade, ao passo que a matéria não a tem. Então, ele pode dominar a matéria.” Daí este outro raciocínio: “O resultado de minha cólera foi tornar-me doente e infeliz, e ela não me dá o que me falta, portanto é inútil, porque assim não progredi. Ela me produz o mal e nenhum bem me dá em troca. Além disto, ela pode impelir-me a atos censuráveis e até criminosos.”

Ele quis vencer, e venceu. Desde então, mil ocasiões surgiram que antes o teriam enfurecido, mas ante elas ficou impassível e indiferente, com grande estupefação de sua mãe. Ele sentia o sangue ferver e subir à cabeça, mas, por sua vontade, o recalcava e o forçava a descer.

Um milagre não teria feito melhor, mas o Espiritismo fez muitos outros, que nossa Revista não bastaria para registrá-los, se quiséssemos relatar todos os que são do nosso conhecimento pessoal, relativos a reformas morais dos mais inveterados hábitos. Citamos este como um notável exemplo do poder da vontade e, além disso, porque levanta um importante problema que só o Espiritismo pode resolver.

A propósito perguntava-nos o Sr. A... se seu Espírito era responsável por seus arrastamentos, ou se apenas sofria a influência da matéria. Eis a nossa resposta:

Vosso Espírito é de tal modo responsável que, quando o quisestes seriamente, detivestes o movimento sanguíneo. Assim, se tivésseis querido antes, os acessos teriam cessado mais cedo e não teríeis ameaçado a vossa mãe. Além disso, quem é que se encoleriza? É o corpo ou o Espírito? Se os acessos viessem sem motivo, poderiam ser atribuídos ao afluxo sanguíneo, mas, fútil ou não, tinham por causa uma contrariedade. Ora, é evidente que contrariado não era o corpo, mas o Espírito, muito suscetível. Contrariado, o Espírito reagia sobre um sistema orgânico irritável, que teria ficado em repouso, se não tivesse sido provocado.

Façamos uma comparação. Tendes um cavalo fogoso. Se souberdes dirigi-lo, ele se submete. Se o maltratardes, ele dispara e vos derruba. De quem a falta? Vossa ou do cavalo?

Para mim, é evidente que vosso Espírito é naturalmente irascível, mas, como cada um trás consigo o seu pecado original, isto é, um resto das antigas inclinações, não é menos evidente que, em vossa existência precedente, deveis ter sido um homem de uma extrema violência que provavelmente tivestes que pagar muito caro, talvez com a própria vida. Na erraticidade, vossas boas qualidades vos ajudaram a compreender os erros. Tomastes a resolução de vos vencer, e para isto lutar em nova existência. Mas, se tivésseis escolhido um corpo mole e linfático, não encontrando qualquer dificuldade, vosso Espírito nada teria ganho, o que resultaria na necessidade de recomeçar. Foi com esse objetivo que escolhestes um corpo bilioso, a fim de ter o mérito da luta. Agora a vitória está ganha. Vencestes o inimigo do vosso repouso e nada pode entravar o livre exercício de vossas boas qualidades.

Quanto à facilidade com que aceitastes e compreendestes o Espiritismo, ela se explica pela mesma causa. Éreis espírita há muito tempo. Esta crença era inata em vós, e o materialismo foi apenas o resultado da falsa direção dada às vossas ideias. A princípio abafada, a ideia espírita ficou em estado latente e bastou uma centelha para despertá-la. Bendizei a Providência que permitiu que esta centelha chegasse em boa hora para deter uma inclinação que talvez vos tivesse causado amargos desgostos, ao passo que vos resta uma longa carreira a percorrer na via do bem.

Todas as filosofias se chocaram contra esses mistérios da vida humana, que pareciam insondáveis até que o Espiritismo lhes trouxe o seu facho.

Em presença de tais fatos, ainda se pode perguntar para que ele serve? Não estamos em condições de emitir bons augúrios cerca do futuro moral da Humanidade quando ele for compreendido e praticado por todo mundo?


Senhor cura,

Admirai-vos que depois de dois anos não tenha respondido à vossa brochura contra o Espiritismo. Enganai-vos, pois desde a sua aparição tenho tratado, em vários artigos em minha Revista, da maioria das questões que levantais. Bem sei que teríeis desejado uma resposta pessoal, uma contra-brochura; que tivesse tomado vossos argumentos, um a um, para vos dar o prazer da réplica. Ora, eu cometi o erro irreparável de nem mesmo vos citar, mas tenho certeza que a vossa modéstia não considera isto um crime. Reparo hoje esta omissão, mas não penseis que seja para convosco entreter uma polêmica; não, limito-me a algumas reflexões simples e a vos explicar os meus motivos.

Para começar, dir-vos-ei que se não respondi diretamente à vossa brochura, foi porque anunciastes que ela deveria enterrar-nos vivos. Quis esperar o acontecimento e constato com prazer que não estamos mortos; que até o Espiritismo está um pouco mais vivaz que antes; que o número das sociedades se multiplica em todos os países; que em toda parte onde pregaram contra ele, cresceu o número de adeptos; que tal crescimento está na razão da violência dos ataques. Não são hipóteses, mas fatos autênticos que, na minha posição e pela extensão de minhas relações, estou melhor do que ninguém em condições de verificar. Além disto constato que os indigentes aos quais os padres zelosos tinham proibido de receber dádivas de pão dos espíritas caridosos, porque era o pão do diabo, não morreram por havê-lo comido; que os padeiros, aos quais tinham dito para não recebê-los, porque o diabo lhos roubaria, não perderam um só; que os industriais aos quais, sempre por zelo evangélico, quiseram cortar os víveres, roubando-lhes as suas práticas, acharam uma compensação nos novos fregueses, que lhes valeram o aumento do número de adeptos. Não duvido que desaproveis esta maneira de atacar o Espiritismo, mas os fatos, nem por isso, deixam de ser os fatos. Convireis que tais meios não são muito próprios a trazer de volta à religião os que dela se afastam. O medo pode deter momentaneamente, mas é um laço frágil, que se parte no primeiro momento; os únicos laços sólidos são os do coração, cimentados pela convicção. Ora, a convicção não se impõe pela força.

Sabeis, senhor cura, que a vossa brochura foi seguida de grande número de outras. Sobre muitas a vossa tem um mérito, o da perfeita urbanidade. Vós nos quereis matar polidamente e vos sou grato, mas em toda parte os argumentos são os mesmos, enunciados mais ou menos polidamente e em francês mais ou menos correto. Para refutá-los todos, artigo por artigo, teria tido que me repetir sem cessar, e, francamente, tenho coisas mais importantes a fazer. Isto, aliás, não tem utilidade, e ireis compreendê-lo.

Sou um homem positivo, sem entusiasmo, que tudo julga friamente; raciocino de acordo com os fatos e digo: Considerando-se que os espíritas são mais numerosos do que nunca, a despeito da brochura do padre Marouzeau e de todas as outras, a despeito de todos os sermões e mandamentos, é que os argumentos aí apresentados não persuadiram as massas, mas tiveram efeito contrário. Ora, julgar o valor da causa por seus efeitos, creio que é lógica elementar. Assim, para que refutá-los? Se eles nos servem em vez de prejudicar-nos, devemos evitar opor-lhes obstáculos. Vejo as coisas de um ponto de vista diverso do vosso, senhor padre. Como um general que observa o movimento da batalha, julgo a força dos golpes, não o ruído que fazem, mas o efeito que produzem. É o conjunto que vejo. Ora, o conjunto é satisfatório, eis tudo o que é preciso. Assim, as respostas individuais não teriam utilidade.

Quando trato de maneira geral as questões levantadas por algum adversário, não é para convencê-lo, pois isto não me preocupa, absolutamente, e ainda menos para fazê-lo renunciar à sua crença, que respeito quando sincera. É unicamente para a instrução dos espíritas, e porque encontro um ponto a desenvolver ou esclarecer. Refuto os princípios e não os indivíduos, porque os princípios ficam e os indivíduos desaparecem. É por isto que pouco me inquieto com personalidades que amanhã talvez não mais existam e das quais não mais se fale, seja qual for a importância que se dão.

Vejo muito mais o futuro que o presente; o conjunto e as coisas importantes mais que os fatos isolados e secundários. Reconduzir ao bem é, aos nossos olhos, a verdadeira conversão. Um homem arrancado às suas más inclinações e reconduzido a Deus e à caridade para com todos pelo Espiritismo é para nós a mais útil vitória; é a que nos causa a maior alegria, e agradecemos a Deus por no-la dar tantas vezes.

Para nós, a mais honrosa vitória não está em afastar um indivíduo deste ou daquele culto, de tal ou qual crença, pela violência ou pelo medo, mas em desviá-lo do mal pela persuasão. Nós apreciamos todas as convicções sinceras e não as obtidas pela força ou que apenas são aparentes.

É assim, por exemplo, que, em vossa brochura, perguntais quais os milagres que o Espiritismo pode invocar em seu favor. Respondi a essa questão pela Revista de fevereiro de 1862, no artigo intitulado O Espiritismo é provado pelos milagres? E, no mesmo golpe, respondi a todos os que fizeram a mesma pergunta.

Pedis milagres do Espiritismo, mas haverá um maior que sua incrível propagação, a despeito de tudo e contra tudo, malgrado os ataques de que é objeto; malgrado sobretudo os golpes tão terríveis que lhe haveis assestado? Não está aí um fato da vontade de Deus? “Não, direis vós, é a vontade do diabo.” Então concordais que a vontade do diabo é mais poderosa que a de Deus, e que é mais forte que a Igreja, pois a Igreja não pode detê-la. Mas este não é o único milagre que faz o Espiritismo. Ele os faz todos os dias, trazendo os incrédulos a Deus e convertendo ao bem os que se dão ao mal, dando-lhes a força de vencer as paixões más.

─ Vós lhe pedis milagres! Mas o fato relatado acima, do jovem A... não é um?

Por que não o fez a religião, deixando que o fizesse o Espiritismo, isto é, o diabo?

─ Não está aí o que se chama um milagre.

─ Mas a Igreja não qualifica certas conversões de miraculosas?

─ Sim, mas são conversões de heréticos à fé católica.

─ De sorte que a conversão do mal ao bem, em vossa opinião, não é um milagre. Preferiríeis um sinal material: a liquefação do sangue de São Januário; a cabeça de uma estátua que se move numa igreja; uma aparição no céu, como a cruz de Migné. O Espiritismo não faz estas espécies de milagres. Os únicos aos quais liga um preço infinito e uma glória, são as transformações morais que opera.

Senhor Padre, o tempo me pressiona e o espaço me falta. De outra vez direi ainda algumas palavras que vos poderão servir para a nova obra que preparais e que deve aniquilar para sempre o Espiritismo e os espíritas. A essa desejo melhor sorte que à primeira. Algumas passagens deste número talvez vos possam esclarecer quanto às dificuldades que tereis de superar para vencer.

Recebei, etc.

ALLAN KARDEC


Pelo ano de 1850, morreu, numa aldeia da Baviera, um velho quase centenário, conhecido como Pai Max. Ninguém sabia, ao certo, a sua origem, pois não tinha família. Há quase meio século, abatido por enfermidades que o impossibilitavam de ganhar a vida pelo trabalho, ele não tinha outro recurso senão a caridade pública, que ele dissimulava indo vender nas fazendas e castelos, almanaques e pequenos objetos.

Tinham-lhe dado o apelido de Conde Max, e as crianças só o chamavam de Senhor Conde, com o que ele sorria sem ofender-se. Por que tal título? Ninguém saberia dizer, pois já era hábito. Talvez fosse por causa da fisionomia e das maneiras, cuja distinção contrastava com seus trapos.

Vários anos após sua morte, apareceu em sonho à filha do dono de um dos castelos onde era hospedado na cavalariça, pois ele não tinha domicílio. Ele lhe disse: “Obrigado por vos terdes lembrado do pobre Max em vossas preces, pois foram ouvidas pelo Senhor. Desejais saber quem sou eu, alma caridosa que vos interessastes pelo infeliz mendigo. Vou satisfazer-vos. Será para todos uma grande instrução.”

Então fez o relato que segue, mais ou menos nestes termos:

“Há mais ou menos um século e meio eu era um rico e poderoso senhor desta região, mas vão, orgulhoso e enfatuado de minha nobreza. Minha imensa fortuna jamais serviu senão para os meus prazeres, e apenas bastava, porque eu era jogador, debochado, e passava a vida em orgias. Meus vassalos, que julgava criados para meu uso como animais de fazenda, eram oprimidos e maltratados para contribuir para as minhas prodigalidades. Eu ficava surdo às suas lamentações, como às de todos os infelizes e, em minha opinião, deviam sentir-se muito honrados de servir aos meus caprichos.

“Morri em idade pouco avançada, esgotado pelos excessos, mas sem haver experimentado nenhuma verdadeira desgraça. Ao contrário, tudo parecia sorrir-me, de sorte que, aos olhos de todos, eu era um dos felizes do mundo. Minha classe me valeu funerais suntuosos; os folgazões lamentaram em mim o faustoso senhor, mas nenhuma lágrima caiu em minha sepultura; nenhuma prece de coração subiu a Deus por mim, e minha memória foi maldita por todos aqueles cuja miséria eu havia agravado. Ah! Como é terrível a maldição dos que tornamos infelizes! Ela não cessou de retinir em meus ouvidos durante longos anos, que me pareciam uma eternidade! E, à morte de cada uma de minhas vítimas, era uma nova figura ameaçadora ou irônica que se erguia à minha frente e me perseguia sem tréguas, sem que eu pudesse encontrar um recanto escuro para me subtrair à sua vista. Nenhum olhar amigo! Meus antigos companheiros de deboche, infelizes como eu, me fugiam e pareciam dizer com desdém: ‘Não podes mais pagar os nossos prazeres.’ Oh! Como eu teria pago caro um instante de repouso, um copo d’água para estancar a sede causticante que me devorava! Mas eu não possuía mais nada e todo o ouro que havia semeado a mancheias na Terra não havia produzido uma só bênção! Uma só, ouvis, minha filha!

“Por fim, abatido pela fadiga e esgotado como um viajante tresmalhado que não vê o termo de sua rota, exclamei:

“─ Meu Deus! tende piedade de mim! Quando terminará esta horrível situação?

“Então uma voz, a primeira que eu ouvia desde que deixara a Terra, me disse:

“─ Quando quiseres.

“─ Que devo fazer, grande Deus? respondi. Dizei! Eu me submeto a tudo.

“─ É preciso que te arrependas; que te humilhes ante aqueles que humilhaste; que lhes peças que intercedam por ti, porque a prece do ofendido que perdoa é sempre agradável ao Senhor.

“Humilhei-me e pedi aos meus vassalos, meus servos que estavam ali à minha frente, e cujos rostos, cada vez mais benevolentes, acabavam desaparecendo. Foi então para mim como uma nova vida. A esperança substituiu o desespero e agradeci a Deus com todas as forças de minha alma. A voz me disse então:

“─ Príncipe!

“E eu respondi:

“─ Aqui não há outro príncipe senão o Deus Todo-Poderoso, que humilha os soberbos. Perdoai-me, Senhor, porque pequei; fazei de mim um servo de meus servos, se tal for a vossa vontade.

“Alguns anos depois nasci de novo, mas dessa vez numa família de pobres camponeses. Meus pais morreram deixando-me criança, e fiquei só no mundo, sem apoio. Ganhei a vida como pude, ora como trabalhador, ora como criado de fazenda, mas sempre honestamente, porque desta vez acreditava em Deus. Aos quarenta anos, uma moléstia me tornou entrevado de todos os membros e tive que mendigar por mais de cinquenta anos nas mesmas terras das quais tinha sido o dono absoluto; receber um pedaço de pão nas fazendas que tinham sido minhas e onde, por amarga ironia, me tinham apelidado Senhor Conde; sentir-me feliz, muitas vezes, com um abrigo na escuderia do castelo que fora meu.

“Em meu sonho eu me comprazia em percorrer esse mesmo castelo onde mandara como déspota. Quantas vezes, em meus sonhos, me revi em meio a minha antiga fortuna! Essas visões me deixavam, ao despertar, um indefinível sentimento de amargura e de pesar, mas nunca um lamento me escapou da boca, e quando aprouve a Deus me chamar, eu o bendisse por ter-me dado coragem para sofrer sem murmurar nessa longa e penosa prova, cuja recompensa hoje recebo. E vós, minha filha, eu vos abençoo por haverdes orado por mim.

OBSERVAÇÃO: Recomendamos o caso aos que pretendem que os homens não teriam mais freio se não tivessem à frente o espantalho das penas eternas, e perguntamos se a perspectiva de um castigo como o do Pai Max é menos apta para estacar na via do mal do que as torturas sem fim, nas quais não mais acreditam.



Dissertações espíritas

(Sociedade Espírita de Paris, 19 de junho de 1863 - Médium: Sr. Vézy)

NOTA:Esta comunicaç&o foi dada a propósito de uma senhora cega, presente à sessão.


Meus bons amigos, não venho muito ao vosso meio, mas hoje eis-me aqui. Por isso dou graças a Deus e aos bons Espíritos que vêm ajudar-vos a marchar pelo novo caminho. Porque me chamastes? Para impor as mãos sobre a pobre sofredora que aqui está e curá-la? E que sofrimento, bom Deus! Ela perdeu a visão e as trevas se fizeram para ela!... Pobre filha! Que ore e espere! Não sei fazer milagres sem a vontade do bom Deus. Todas as curas que pude obter, e que vos foram relatadas, só as atribuais àquele que é pai de todos. Nas vossas aflições, olhai sempre para o céu e dizei do fundo do coração: “Meu pai, curai-me, mas fazei que minha alma seja curada antes das enfermidades do corpo. Que minha carne seja castigada, se preciso, para que minha alma se eleve para vós com a alvura que tinha quando a criastes!” Depois dessa prece, meus boníssimos amigos, que o bom Deus ouvirá sempre, a força e a coragem vos serão dadas, e talvez também a cura que pedistes timidamente, em recompensa de vossa abnegação carnal.

Mas, já que aqui estou, numa assembleia onde se trata, antes de tudo, de estudar, dir-vos-ei que os privados da visão deveriam considerar-se como bemaventurados da expiação. Lembrai-vos que o Cristo disse ser preciso arrancar o vosso olho, se fosse mau, e que mais valia lançá-lo ao fogo do que ser causa de vossa danação. Então! Quantos há em vossa Terra que um dia, nas trevas, maldirão terem visto a luz! Oh! sim, como são felizes os que são feridos na expiação pela visão! Seu olho não lhes será motivo de escândalo e de queda. Eles podem viver inteiramente a vida da alma. Eles podem ver mais que vós que vedes claro... Quando Deus me permite abrir as pálpebras de alguns desses pobres sofredores e lhes dar a vossa luz, eu me digo: “Querida alma, por que ela não conhece todas as delícias do Espírito que vive de contemplação e de amor? Ela não pediria para ver imagens menos puras e menos suaves que aquelas que lhe é dado ver em sua cegueira.”

Oh! sim, bem-aventurado o cego que quer viver com Deus! Mais feliz que vós que aqui estais, ele sente a felicidade e a toca. Ele vê as almas e com elas pode lançar-se às esferas espíritas, que nem os predestinados de vossa Terra podem ver.

O olho aberto está sempre pronto a fazer a alma falir. O olho fechado, ao contrário, está sempre pronto a fazê-la subir para Deus. Crede-me, meus bons e caros amigos, a cegueira dos olhos é, muitas vezes, a verdadeira luz do coração, ao passo que a visão é, por vezes, o anjo tenebroso que conduz à morte.

E agora, algumas palavras a ti, minha pobre sofredora. Espera e tem coragem! Se eu te dissesse: “Minha filha, teus olhos vão se abrir”, como ficarias contente! E quem sabe se essa alegria não te perderia? Tem confiança no bom Deus que fez a felicidade e permite a tristeza. Farei tudo quanto me for permitido por ti, mas, por tua vez, ora e sobretudo pensa em tudo quanto acabo de dizer.

Antes de me afastar, vós que aqui estais, recebei minha bênção, meus bons amigos. Eu a dou a todos: aos loucos, aos sábios, aos crentes e aos infiéis desta assembleia. Que ela sirva a cada um de vós.

VIANNEY, cura d’Ars.



OBSERVAÇÃO: Perguntamos se esta é a linguagem do demônio e se se ofende ao cura d’Ars atribuindo-lhe tais pensamentos. Uma camponesa sem instrução, sonâmbula natural, que vê os Espíritos muito bem, tinha vindo à sessão e estava em sonambulismo. Ela não conhecia o cura d’Ars, nem mesmo de nome, entretanto o viu ao lado do médium e fez o seu retrato perfeitamente exato.


(SOCIEDADE ESPÍRITA DE PARIS. MÉDIUM: SRA. COSTEL)

O arrependimento sobe a Deus; e lhe é mais agradável que o fumo dos sacricios e mais precioso que o incenso espalhado nos recintos sagrados. Semelhante às tempestades que varam o ar, purificando-o, o arrependimento é um sofrimento fecundo, uma força reativa e atuante. Jesus santificou sua virtude, e as lágrimas de Madalena se espalharam como orvalho sobre os corações endurecidos que ignoravam a graça do perdão. A soberana virtude proclamou o poder do arrependimento e os séculos repercutiram, enfraquecendo-o, a palavra do Cristo.

E chegada a hora em que o Espiritismo deve rejuvenescer e vivificar a essência mesma do cristianismo. Assim, por toda parte e para sempre, apagai a cruel sentença que despoja a alma culpada de toda esperança. O arrependimento é uma virtude militante, uma virtude viril, que só os Espíritos adiantados ou os corações ternos podem sentir. O pesarmomentâneo e causticante de uma falta não arrasta consigo a expiação que dá o conhecimento da justiça de Deus, justiça rigorosa em suas conclusões, que aplica a lei de Talião à vida moral e física do homem e o castiga pela lógica dos fatos, todos decorrentes do bom ou mau uso do livre arbítrio.

Amai aos que sofrem e assisti o arrependimento, que é a expressão e o sinal que Deus imprimiu na sua criatura inteligente, para a elevar e aproximar de. si.


João, Discípulo




(Sociedade Espírita de Paris, 26 de dezembro de 1862 - Médium: Sr. D'Ambel)

NOTA: Esta comunicação foi dada a propósito de um relatório feito à Sociedade sobre as novas sociedades espíritas, que se formam em toda a parte, na França e no estrangeiro.

Hoje o progresso se manifesta de maneira muito estrepitosa na crença nas doutrinas regeneradoras que trazemos ao vosso mundo, para que doravante seja necessário comprová-lo. Cego é quem não vê a marcha triunfante de nossas ideias! Quando os homens eminentes, pertencentes às funções mais liberais, gente de ciência e de estudo, médicos, filósofos e jurisconsultos se lançam resolutamente à busca da verdade nas novas vias abertas pelo Espiritismo; quando a classe militante aí vem buscar consolações e novas forças, quem, entre os humanos, julgar-se-ia bastante forte para opor uma barreira ao desenvolvimento desta nova ciência filosófica? Ultimamente dizia Lamennais, nesse estilo conciso e eloquente a que vos habituastes, que o futuro estava no Espiritismo. Hoje tenho o direito de exclamar: Não está aí um fato consumado?

Com efeito, a estrada torna-se larga; o regato de ontem transforma-se em rio e, a partir dos vales transpostos, seu curso majestoso rir-se-á das magras comportas e das tardias barricadas que alguns ribeirinhos atrasados procurarão construir a fim de entravar a sua marcha para o grande oceano do Infinito. Pobre gente! A corrente vos arrastará, e em breve vos ouviremos gritar, também vós: “É verdade! A Terra gira!” Se as ondas de sangue derramado nas Américas não chamassem a atenção de todos os pensadores sérios e de todos os amigos da paz cujo coração sangra ao relato dessas lutas sangrentas e fratricidas; se as nações mal estabelecidas não buscassem em todo o seu território encontrar sua base normal; se as aspirações de todos, enfim, não tendessem para o melhoramento moral e material há tanto tempo procurado, poder-se-ia negar a utilidade dos cataclismos morais anunciados por alguns Espíritos iniciadores. Mas todos esses sinais característicos são muito evidentes para que se não reconheça a necessidade, a urgência de um novo farol que ainda possa salvar o mundo em perigo.

Outrora, quando o mundo pagão, minado pela mais completa desmoralização, vacilava em sua base, de todos os lados vozes proféticas anunciavam a próxima vinda de um redentor. Desde alguns anos não tendes ouvido, ó espíritas, as mesmas vozes proféticas? Ah! Eu sei. Nenhum dentre vós esqueceu. Então, tende certeza de que o tempo é chegado, e gritemos juntos, como outrora na Judeia: “Glória a Deus no mais alto dos céus!”

“ERASTO''

(Sociedade Espírita de Paris, 19 de junho de 1863 - Médium: Sr. Alfred)


Os séculos de transição na História da Humanidade assemelham-se a vastas planícies semeadas de monumentos misturados confusamente, sem harmonia, e a harmonia mais pura, mais justa, está no detalhe, e não no conjunto. Os séculos abandonados pela fé e pela esperança são páginas sombrias em que a Humanidade, trabalhada pela dúvida, se consome surdamente em civilizações refinadas, para chegar a uma reação que as mais das vezes as arrastava para substituí-las por outras civilizações.

Os pesquisadores do pensamento, mais que os cientistas, em nossa época e num ecletismo racional, aprofundam esses misteriosos encadeamentos da História, essas trevas, essa uniformidade, lançadas como nevoeiro e nuvens espessas sobre civilizações ainda há pouco férteis e vivazes. Estranho destino dos povos! É quase ao nascer do Cristianismo, é nas cidades mais opulentas, sedes dos maiores bispados do Oriente e do Ocidente, que começam as devastações da decadência. É em meio à própria civilização, ao esplendor inteligente das Artes, das Ciências, da Literatura e dos sublimes ensinamentos do Cristo, que começa a confusão de ideias e as dissensões religiosas. É no próprio berço da Igreja romana, orgulhosa e ensoberbecida com o sangue dos mártires, que a heresia gerada pelos dogmas supersticiosos e pelas hierarquias eclesiásticas desliza como serpe iminente, para morder o coração da Humanidade e lhe infiltrar nas veias, em meio às desordens políticas e sociais, o mais terrível e o mais profundo de todos os flagelos: a dúvida.

Desta vez a queda é imensa. A apatia religiosa dos padres, unida aos heresiarcas fanáticos, tira toda a força à política, todo amor ao país, e a Igreja do Cristo torna-se humana, mas não mais humanitária. É inútil aqui, creio eu, comparar os relatos apavorantes dessa época com a nossa. Vivendo simultaneamente com as tradições do Cristianismo e com a esperança do futuro, as mesmas comoções sacodem a nossa velha civilização; as mesmas ideias se dividem, e a mesma dúvida atormenta a Humanidade, sinais precursores da renovação social e moral que se prepara.

Ah! Orai, espíritas. Vossa época atormentada e blasfema é uma rude época, que os Espíritos vêm instruir e encorajar.

LAMENNAIS

(Grupo espíritas de Sétif, Argélia)

Muitas vezes vos admirais ao ver faculdades mediúnicas, físicas ou morais que em vossa opinião deveriam ser prova de mérito pessoal, em criaturas que, pelo caráter moral, estão colocadas abaixo de semelhante favor. Isto se deve à falsa ideia que fazeis das leis que regem tais coisas, e que quereis considerar como invariáveis. O que é invariável é o objetivo. Os meios variam ao infinito, para que seja respeitada a vossa liberdade. Este possui uma faculdade; aquele, outra; um é levado pelo orgulho, outro pela cupidez, e um terceiro pela fraternidade. Deus emprega as faculdades e as paixões de cada um, utiliza-as em suas esferas respectivas, e do próprio mal sabe fazer sair o bem. Os atos dos homens, que vos parecem tão importantes, para ele nada são. É a intenção que, aos seus olhos, faz o mérito ou o demérito. Feliz, pois, aquele que é guiado pelo amor fraterno.

A Providência não criou o mal. Tudo foi feito em vista do bem. O mal só existe pela ignorância do homem e pelo mau uso que este faz das paixões, das tendências, dos instintos adquiridos no contato com a matéria. Grande Deus! Quando tu lhe tiveres inspirado a sabedoria para ter em mãos a direção desse poderoso móvel ─ a paixão ─ quantos males desaparecerão! Quanto bem resultará dessa força, da qual hoje ele não conhece senão o lado mau, que é sua obra! Oh! Continuai ardentemente a vossa obra, meus amigos! Que, enfim, a Humanidade entreveja a rota na qual deve pôr o pé, a fim de atingir a felicidade que lhe é dado adquirir nesta Terra!

Não vos admireis se as comunicações que vos dão os Espíritos elevados, inteiramente apoiadas na moral do Salvador, vo-la confirmando e a desenvolvendo, vos oferecem tantos pontos de contacto e de similitude com os mistérios dos Antigos. É que os Antigos tinham a intuição das coisas do mundo invisível e do que deveria acontecer e que diversos tinham por missão preparar os caminhos.

Observai e estudai com cuidado as comunicações que recebeis; aceitai o que a razão não recusa; repeli o que a choca; pedi esclarecimentos sobre as que vos deixam na dúvida. Tendes aqui a marcha a seguir para transmitir às gerações futuras, sem medo de vê-las desnaturadas, as verdades que separareis sem esforço de seu cortejo inevitável de erros.

Trabalhai, tornai-vos úteis aos vossos irmãos e a vós próprios. Não podeis prever a felicidade que o futuro vos reserva pela contemplação de vossa obra.

SANTO AGOSTINHO

OBSERVAÇÃO: Esta comunicação foi obtida por um jovem, médium sonâmbulo iletrado. Foi-nos enviada pelo Sr. Dumas, negociante em Sétif, membro da Sociedade Espírita de Paris, que informa que o sensitivo ignora o sentido da maioria das palavras e nos transmite o nome de dez pessoas notáveis, presentes à sessão. Os médiunsiletrados que recebem comunicações acima de seu alcance intelectual são muito numerosos. Mostraram-nos há pouco uma página verdadeiramente notável, recebida em Lyon, por uma senhora que não sabe ler nem escrever e não sabe uma palavra do que escreve; seu marido, que é quase como ela, o decifra por intuição, no correr da sessão, mas no dia seguinte isto lhe é impossível. As outras pessoas a lêem sem muita dificuldade. Não está aí a aplicação das palavras do Cristo: “Vossas mulheres e vossas filhas profetizarão e farão prodígios?Não é um prodígio escrever, pintar, desenhar, fazer música e poesia que não se o sabe? Pedis sinais materiais? Ei-los. Dirão os incrédulos que é efeito da imaginação? Se o fosse, haveria que convir que tais pessoas têm a imaginação na mão e não no cérebro. Ainda uma vez, uma teoria só é boa com a condição de explicar todos os fatos. Se um só a contradisser, é que é falsa ou incompleta.





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