Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Maio

Atmosfera Espiritual.

Ensina o Espiritismo que os Espíritos constituem a população invisível do globo; que eles estão no espaço e entre nós, vendo-nos e nos acotovelando incessantemente, de tal sorte que, quando nos julgamos sós, constantemente temos testemunhas secretas de nossas ações e de nossos pensamentos. Isto pode parecer aborrecido para certas pessoas, mas como assim é, não podemos impedir que assim seja. Cabe a cada um fazer como o sábio que não teria medo que sua casa fosse de vidro. Sem dúvida nenhuma, é a esta causa que se deve atribuir a revelação de tantas torpezas e malefícios que se pensava enterrados na sombra.

Além disto, sabemos que, numa reunião, além dos assistentes corporais, há sempre ouvintes invisíveis; que sendo a permeabilidade uma das propriedades do organismo dos Espíritos, eles podem achar-se em número ilimitado num determinado espaço. Muitas vezes nos foi dito que em certas sessões eles eram em quantidades inumeráveis. Na explicação dada ao sr. Bertrand, a propósito das comunicações coletivas que ele obteve, foi dito que o número dos Espíritos presentes era tão grande que a atmosfera estava, por assim dizer, saturada de seus fluidos. Isto não é novo para os espíritas, mas talvez não tenham sido deduzidas todas as suas consequências.

Sabe-se que os fluidos que emanam dos Espíritos são mais ou menos salutares, conforme o grau de sua depuração. Conhece-se o seu poder curativo em certos casos, bem como seus efeitos mórbidos de indivíduo a indivíduo. Ora, considerandose que o ar pode ser saturado desses fluidos, não é evidente que, conforme a natureza dos Espíritos que abundam em determinado lugar, o ar ambiente se ache carregado de elementos salutares ou malsãos, que devem exercer influências sobre a saúde física, assim como sobre a saúde moral? Quando se pensa na energia da ação que um Espírito pode exercer sobre um homem, é de admirar-se da energia que deve resultar de uma aglomeração de centenas ou de milhares de Espíritos? Esta ação será boa ou má conforme os Espíritos derramem num dado meio um fluido benéfico ou maléfico, agindo à maneira das emanações fortificantes ou dos miasmas deletérios que se espalham no ar. Assim pode-se compreender certos efeitos coletivos produzidos sobre massas de indivíduos; a sensação de bem-estar ou de mal-estar que se experimenta em certos meios, e que não têm nenhuma causa aparente conhecida; o arrastamento coletivo para o bem ou para o mal; o entusiasmo ou o desencorajamento, e por vezes a espécie de vertigem que se apodera de toda uma assembleia, de toda uma cidade, mesmo de todo um povo. Em razão do seu grau de sensibilidade, cada indivíduo sofre a influência dessa atmosfera viciada ou vivificante. Por este fato, que parece fora de dúvida, e que ao mesmo tempo a teoria e a experiência confirmam, nós encontramos nas relações do mundo espiritual com o mundo corporal um novo princípio de higiene que sem dúvida um dia a ciência levará em consideração.

Podemos, então, subtrair-nos a essas influências que emanam de uma fonte inacessível aos meios materiais? Sem dúvida nenhuma, porque, assim como saneamos os lugares insalubres, destruindo a fonte dos miasmas pestilentos, podemos sanear a atmosfera moral que nos cerca e nos subtrairmos às influências perniciosas dos fluidos espirituais malsãos, e isto mais facilmente do que podemos escapar às exalações pantanosas, pois isso depende unicamente de nossa vontade, e nisso não estará um dos menores benefícios do Espiritismo, quando ele for universalmente compreendido e sobretudo praticado.

Um princípio perfeitamente constatado por todo espírita, é que as qualidades do fluido perispiritual estão na razão direta das qualidades do Espírito encarnado ou desencarnado. Quanto mais elevados forem os seus sentimentos, e quanto mais desprendidos das influências da matéria, mais depurado será o seu fluido. Conforme os pensamentos que o dominam, o encarnado irradia fluidos impregnados desses mesmos pensamentos que os viciam ou os saneiam, fluidos realmente materiais, embora impalpáveis, invisíveis aos olhos do corpo, mas perceptíveis pelos sentidos perispirituais e visíveis pelos olhos da alma, pois impressionam fisicamente e simulam aparências muito diferentes para os que são dotados de visão espiritual.

Pelo simples fato da presença dos encarnados numa assembleia, os fluidos ambientes serão, pois, salubres ou insalubres, conforme os pensamentos dominantes forem bons ou maus. Quem quer que traga consigo pensamentos de ódio, de inveja, de ciúme, de orgulho, de egoísmo, de animosidade, de cupidez, de falsidade, de hipocrisia, de maledicência, de malevolência, numa palavra, pensamentos colhidos na fonte das más paixões, espalha em torno de si eflúvios fluídicos malsãos que reagem sobre os que o cercam. Ao contrário, numa assembleia em que cada um só trouxesse sentimentos de bondade, de caridade, de humildade, de devotamento desinteressado, de benevolência e de amor ao próximo, o ar é impregnado de emanações salubres, em meio às quais se sente viver mais à vontade.

Agora, se considerarmos que os pensamentos atraem pensamentos da mesma natureza; que os fluidos atraem fluidos similares, compreenderemos que cada indivíduo traz consigo um cortejo de Espíritos simpáticos bons ou maus, e que assim o ar é saturado de fluidos compatíveis com os pensamentos que predominam. Se os maus pensamentos forem em minoria, não impedirão que as boas influências se produzam, pois elas os paralisam. Se dominarem, enfraquecerão a radiação fluídica dos bons Espíritos, ou mesmo, por vezes, impedirão que os bons fluidos penetrem nesse meio, como o nevoeiro enfraquece ou detém os raios do sol.

Qual é, pois, o meio de se subtrair à influência dos maus fluidos? Esse meio ressalta da própria causa que produz o mal. Que fazemos quando reconhecemos que um alimento é nocivo à saúde? Rejeitamo-lo, substituindo-o por um alimento mais saudável. Levando-se em conta que são os maus pensamentos que engendram os maus fluidos e os atraem, devemo-nos esforçar para só ter pensamentos bons, repelir tudo o que é mau, como se recusa um alimento que nos torna doentes; numa palavra, trabalhar por nosso melhoramento moral e, para nos servirmos de uma comparação do Evangelho, “não só limpar o vaso por fora, mas, sobretudo, limpá-lo por dentro.”

Melhorando-se, a humanidade verá depurar-se a atmosfera fluídica em cujo meio vive, porque não lhe enviará senão bons fluidos, e estes oporão uma barreira à invasão dos maus. Se um dia a Terra chegar a ser povoada apenas por homens que entre si pratiquem as leis divinas do amor e da caridade, ninguém duvida que eles não se encontrarão em condições de higiene física e moral completamente diferentes das que existem hoje.

Sem dúvida esse tempo ainda está longe, mas, enquanto se espera, essas condições podem existir parcialmente, e é às assembleias espíritas que cabe dar o exemplo. Aqueles que tiverem conquistado a luz serão mais repreensíveis, porque terão tido em mãos os meios de se esclarecer. Eles incorrerão na responsabilidade dos retardamentos que seu exemplo e sua má vontade tiverem trazido ao melhoramento geral.

É isto uma utopia, um discurso vão? Não, é uma dedução lógica dos próprios fatos que o Espiritismo revela a cada dia. Com efeito, o Espiritismo nos prova que o elemento espiritual, que até o presente tem sido considerado como a antítese do elemento material, tem com esse último uma conexão íntima, de onde resulta uma porção de fenômenos não observados e incompreendidos. Quando a ciência tiver assimilado os elementos fornecidos pelo Espiritismo, ela aí colherá novos e importantes elementos para o próprio melhoramento material da humanidade. Assim, diariamente vemos alargar-se o círculo das aplicações da doutrina, que está longe, como alguns ainda pensam, de estar restrita ao pueril fenômeno das mesas girantes ou de outros efeitos de pura curiosidade. Realmente, o Espiritismo não tomou o seu impulso senão no momento em que entrou na via filosófica. É menos divertido para certas pessoas, que nele apenas buscam uma distração, mas é melhor apreciado pelas pessoas sérias, e o será ainda mais, à medida que for melhor compreendido em suas consequências.

Do emprego da palavra "milagre".

O jornal la Vérité, de Lyon, de 16 de setembro de 1866, num artigo intitulado Renan et son école, trazia as reflexões seguintes, a propósito da palavra milagre:

“Renan e sua escola não se dão ao trabalho de discutir os fatos. Eles os rejeitam todos a priori, qualificando-os erradamente de sobrenaturais, portanto absurdos e impossíveis; opõe-lhes um fim de não aceitação absoluto e um desdém transcendental. Renan disse em certa ocasião uma frase eminentemente verdadeira e profunda: “O sobrenatural não seria outra coisa senão o superdivino.” Aderimos com toda a nossa energia a essa grande verdade, mas fazemos observar que a própria palavra milagre (mirum, coisa admirável e até agora inexplicável) não quer dizer, é claro, interversão das leis da natureza, mas flexibilidade dessas mesmas leis ainda desconhecidas pelo espírito humano. Dizemos mesmo que haverá sempre milagres, porque sendo sempre progressiva a ascensão da humanidade para o conhecimento cada vez mais perfeito, tal conhecimento necessitará constantemente ser superado e aguilhoado por fatos que parecerão miraculosos na época em que se produzirem e só mais tarde serão compreendidos e explicados. Um escritor muito acreditado de nossa escola deixou-se tomar por essa objeção (Allan Kardec); ele repete em muitas passagens de suas obras que não há maravilhoso nem milagres; é uma inadvertência resultante do falso sentido de sobrenatural, repelido completamente pela etimologia da palavra. Dizemos nós que se a palavra milagre não existisse, para qualificar fenômenos ainda em estudo e que não são da alçada da ciência vulgar, seria preciso inventá-la, como a mais apropriada e a mais lógica.

“Nada é sobrenatural, repetimo-lo, porque fora da natureza criada e da natureza incriada não há absolutamente nada de concebível; mas o sobre-humano, isto é, fenômenos que podem ser produzidos por seres inteligentes que não os homens, segundo as leis de sua natureza, ou produzidos quer mediatamente, quer imediatamente por Deus, ainda conforme sua natureza e conforme suas relações naturais com suas criaturas.”

Philaléthès.

Graças a Deus não ignoramos o sentido etimológico do vocábulo milagre. Temo-lo provado em muitos artigos, notadamente no da Revista de setembro de 1860. Não é, pois, nem por engano nem por inadvertência que repelimos a sua aplicação aos fenômenos espíritas, por mais extraordinários que possam parecer à primeira vista, mas em perfeito conhecimento de causa e com intenção.

Na sua acepção usual, o vocábulo milagre perdeu sua significação primitiva, como tantos outros, a começar pela palavra filosofia (amor à sabedoria), da qual se servem hoje para exprimir as ideias mais diametralmente opostas, desde o mais puro espiritualismo até o mais absoluto materialismo. Ninguém duvida de que, no pensamento das massas, milagre implica a ideia de um fato extranatural. Perguntai a todos os que acreditam nos milagres se os olham como efeitos naturais. A Igreja está de tal modo fixada nesse ponto que anatematiza os que pretendem explicar os milagres pelas leis da natureza. A própria Academia assim define este vocábulo: Ato do poder divino, contrário às leis conhecidas da natureza. — Verdadeiro, falso milagre. — Milagre certificado. — Operar milagres. O dom dos milagres.

Para ser por todos compreendido, é preciso falar como todo o mundo. Ora, é evidente que se tivéssemos qualificado os fenômenos espíritas de miraculosos, o público ter-se-ia enganado quanto ao seu verdadeiro caráter, a menos que de cada vez empregássemos um circunlóquio e disséssemos que há milagres que não são milagres, como geralmente eles são entendidos. Considerando-se que a generalidade a isto liga a ideia de uma derrogação das leis naturais, e que os fenômenos espíritas não passam de aplicação dessas mesmas leis, é bem mais simples, e sobretudo mais lógico, dizer claramente: Não, o Espiritismo não faz milagres. Dessa maneira, não há engano nem falsa interpretação. Assim como o progresso das ciências físicas destruiu uma porção de preconceitos, e fez entrar na ordem dos fatos naturais um grande número de efeitos outrora considerados como miraculosos, o Espiritismo, pela revelação de novas leis, vem restringir ainda o domínio do maravilhoso; dizemos mais: dá-lhe o último golpe, e é por isso que ele não está por toda parte em odor de santidade, assim como a astronomia e a geologia.

Se os que creem nos milagres entendessem essa palavra na sua acepção etimológica (coisa admirável), admirariam o Espiritismo, em vez de lhe lançar o anátema; em vez de pôr Galileu na prisão por ter demonstrado que Josué não podia ter parado o Sol, ter-lhe-iam tecido coroas por ter revelado ao mundo coisas de outro modo admiráveis, e que atestam infinitamente melhor a grandeza e o poder de Deus.

Pelos mesmos motivos, repelimos o vocábulo sobrenatural do vocabulário espírita. Milagre ainda teria sua razão de ser em sua etimologia, salvo em determinar a sua acepção; sobrenatural é uma insensatez do ponto de vista do Espiritismo.

A palavra sobre-humano, proposta por Philaléthès é igualmente imprópria, em nossa opinião, porque os seres que são agentes primitivos dos fenômenos espíritas, embora no estado de Espíritos, não deixam de pertencer à humanidade. A palavra sobre-humano tenderia a sancionar a opinião longamente acreditada, e destruída pelo Espiritismo, que os Espíritos são criaturas à parte, fora da humanidade. Uma outra razão peremptória é que muitos desses fenômenos são o produto direto dos Espíritos encarnados, por consequência, homens, e em todo caso, requerem quase sempre o concurso de um encarnado. Então, não são mais sobre-humanos do que sobrenaturais.

Uma palavra que também se afastou completamente de sua significação primitiva é demônio. Sabe-se que entre os antigos dizia-se daimon dos Espíritos de uma certa ordem, intermediários entre os homens e aqueles que eram chamados deuses. Essa designação não implicava, na origem, nenhuma qualidade má; ao contrário, era tomada em bom sentido. O demônio de Sócrates certamente não era um mau Espírito, ao passo que, segundo a opinião moderna, saída da teologia católica, os demônios são anjos decaídos, seres à parte essencialmente e perpetuamente votados ao mal.

Para ser consequente com a opinião de Philaléthès, seria preciso que, em respeito à etimologia, o Espiritismo também conservasse a qualificação de demônios. Chamando o Espiritismo seus fenômenos de milagres e os Espíritos de demônios, seus adversários teriam todas as cartas na mão! Ele teria sido rechaçado por três quartos dos que hoje o aceitam, porque nisso teriam visto um retorno a crenças que já não são de nosso tempo. Vestir o Espiritismo com roupas velhas teria sido uma inabilidade; teria sido dar um golpe funesto na doutrina que teria tido o trabalho de dissipar as prevenções que denominações impróprias teriam alimentado.

Revista retrospectiva das ideias espíritas.

Punição do ateu.


Viagem pitoresca e sentimental ao Campo de Repouso em Montmartre e ao Père-Lachaise, por Ans. Caillot, autor da enciclopédia das jovens e das novas lições elementares da História da França.” Tal é o título de um livro publicado em Paris em 1808, e que hoje deve ser muito raro. Depois de haver contado a história e dado a descrição desses dois cemitérios, o autor cita um grande número de inscrições tumulares, sobre cada uma das quais faz reflexões filosóficas marcadas por um profundo sentimento religioso, provocadas pelo pensamento que as ditou. Inicialmente aí observamos a passagem seguinte, na qual se encontra expressa claramente a ideia da reencarnação:

“Que sábio e que homem profundamente religioso foi o primeiro a chamar de Campo de Repouso o último asilo desse ser cuja existência, até seu último suspiro, é atormentado pelos seres que o cercam e por si próprio! Aqui todos repousam no seio da mãe comum, num sono que não é senão o precursor do despertar, isto é, de uma nova existência. Esses restos veneráveis, a terra os conserva como um depósito sagrado; e se ela se apressa em dissolvê-los, é para depurar seus elementos e torná-los mais dignos da inteligência que os reanimará um dia para novos destinos.

Mais adiante ele diz:

“Oh! Quão admirado ficou o cego e audacioso mortal que ousou te expulsar de seu espírito e de seu coração (o ateu que renega a Deus) quando sua alma compareceu ante a Majestade Infinita! Como não foram vistos seus despojos agitarse e tremer de surpresa e de terror? Como sua língua gelada não se animou para exprimir o espanto de que estava ferida, quando a carne não mais se achou entre ela e teus olhares divinos! Grande Deus! Causa universal e alma da natureza! Todos os seres te reconhecem e te celebram como seu único autor. Só o homem desviaria de ti o espírito inteligente e racional que lhe dás para te glorificar? Ah! Sem dúvida, e apraz-me crê-lo, não houve um só dos quarenta mil mortais cujos corpos jazem aqui no pó, que não tivesse a convicção de tua existência e o sentimento de tuas adoráveis perfeições."

“Quando eu acabava de pronunciar com emoção estas últimas palavras, um ruído se fez ouvir ao meu lado. Lancei o olhar para o lado de onde vinha, e percebi, coisa admirável e incrível! um espectro, que, envolto em sua mortalha, tinha saído de um túmulo e avançava gravemente para mim para me falar. Essa aparição não seria um jogo de minha imaginação? É o que me é impossível assegurar, mas o diálogo seguinte, de que me lembro muito bem, me faz crer que eu não era o único interlocutor para dois papéis ao mesmo tempo.”

Aqui faremos uma pequena observação crítica, inicialmente sobre a qualificação de espectro dada pelo autor à aparição, real ou suposta. Esta palavra lembra muito as ideias lúgubres que a superstição liga ao fenômeno das aparições, hoje perfeitamente explicado, conforme o conhecimento que se tem da constituição dos seres espirituais. Em segundo lugar, porque ele faz essa aparição sair do túmulo, como se a alma dele fizesse sua morada. Mas isto é apenas um detalhe de forma, devido a preconceitos longamente arraigados; o essencial está no quadro que ele apresenta da situação moral dessa alma, situação idêntica à que hoje nos revelam as comunicações com os Espíritos.

O autor relata da seguinte forma o diálogo que teve com o ser que lhe apareceu:

“Quando o espectro aproximou-se de mim, fez-me ouvir estas palavras com uma voz tal que me era impossível especificar o som, pois jamais tinha ouvido um semelhante entre os homens:

O ESPECTRO: — Fazes bem em adorar a Deus. Guarda-te de jamais me imitar, porque fui um ateu.

EU: — Então não acreditavas que existia um Deus?

O ESPECTRO: — Não, ou melhor, eu fingi que não acreditava.

EU: — Que razões tinhas para não crer que o universo foi produzido e é governado por uma inteligência suprema?

O ESPECTRO: — Nenhuma. Por mais que procurasse, eu não tinha pontos sólidos e estava reduzido a repetir vãos sofismas que havia lido nas obras de alguns pretensos filósofos.

EU: — Se não tinhas boas razões para ser ateu, então tinhas motivos para o parecer?

O ESPECTRO: — Sem dúvida. Vendo todos os meus semelhantes penetrados da ideia de um Deus e do sentimento de sua existência, o orgulho que me cegava levou-me a distinguir-me da multidão, sustentando a quem quer que me quisesse ouvir que Deus não existia e que o universo era obra do acaso, ou mesmo que tinha existido sempre. Eu considerava como uma glória pensar neste grande assunto de modo diverso de todos os homens, e não achava nada mais lisonjeiro que ser considerado no mundo como um Espírito bastante forte para me insurgir contra a crença comum de todos os homens e de todos os séculos.

EU: — Não tinhas outro motivo senão o orgulho para abraçar o ateísmo?

O ESPECTRO: — Sim.

EU: — Qual era esse motivo? Dize a verdade.

O ESPECTRO: — A verdade!!. . . Sem dúvida eu a direi. Porque me é impossível, na ordem de coisas em que existo, combatê-la ou dissimulá-la.

“Como todos os meus semelhantes, nasci com o sentimento da existência de um Deus, autor e princípio de todos os seres. Esse sentimento, que inicialmente era apenas um germe, no qual meu espírito nada descobria, desenvolveu-se pouco a pouco, e quando atingi a idade da razão e adquiri a faculdade de refletir, não tive que fazer qualquer esforço para me permitir isso. Quanto as lições de meus pais e de meus mestres me agradavam! Quando Deus e suas perfeições infinitas eram o assunto! Quanto me encantava o espetáculo da natureza e que suave satisfação eu experimentava quando me falavam desse grande Deus que tudo criou por seu poder, e tudo sustenta, governa e conserva por sua sabedoria!

“Entretanto, cheguei à adolescência, e as paixões começaram a me fazer ouvir sua voz sedutora. Eu estabelecia ligações com gente moça, da minha idade. Segui seus funestos conselhos e passei a viver conforme os seus perigosos exemplos. Entrando no mundo com essas disposições culposas, não pensei mais senão em lhe fazer o sacrifício de todos os princípios de virtude e de sabedoria que a princípio me haviam inspirado. Esses princípios, diariamente atacados por minhas paixões, refugiaram-se no fundo de minha consciência e aí se transformaram em remorsos. Como esses remorsos não me permitiam nenhum repouso, resolvi aniquilar, na medida das minhas possibilidades, a causa que os tinha feito nascer. Achei que essa causa não era outra coisa senão a ideia de um Deus remunerador da virtude e vingador do crime; ataquei-o com todos os sofismas que meu Espírito pôde inventar ou descobrir nas obras destinadas a engrandecer a doutrina do ateísmo.

EU: — Ficaste mais tranquilo quando amontoaste sofismas sobre sofismas contra a existência de Deus?

O ESPECTRO: — Por mais que fizesse, o repouso me fugia incessantemente. Malgrado meu, eu estava convencido, e embora minha boca não pronunciasse uma palavra que não fosse uma blasfêmia, eu não tinha um sentimento que não combatesse contra mim, em favor de Deus.

EU: — Que se passou em ti durante a moléstia de que morreste?

O ESPECTRO: — Eu quis sustentar até o fim o caráter de espírito forte; o orgulho impedia-me de confessar o meu erro, embora sentisse interiormente a premente necessidade. Foi nessa criminosa e falsa disposição que cessei de existir.

EU: — Que te aconteceu quando teus olhos para sempre se fecharam à luz?

O ESPECTRO: — Encontrei-me totalmente envolvido pela majestade de Deus e fui tomado de um terror tão profundo que não acho um termo que possa dar-te uma justa ideia. Eu esperava muito ser rigorosamente castigado, mas o soberano juiz, cuja misericórdia suaviza a justiça, relegou-me a uma tenebrosa região, habitada pelos Espíritos que tiveram mãos inocentes e um cérebro doente.

EU: — Qual a sorte dos ateus que cometeram crimes contra a sociedade de seus semelhantes?

O ESPECTRO: — O Ser dos Seres os pune por terem sido maus e não por se terem enganado, porque ele despreza as opiniões e não recompensa ou não pune senão as ações.

EU: — Então não és castigado na morada tenebrosa onde estás exilado?

O ESPECTRO: — Eu aí sofro uma pena mais cruel do que podes imaginar. Deus, depois de me haver condenado, afastou-se de mim. Imediatamente perdi toda ideia de minha existência, e o nada apresentou-se-me em todo o seu horror.

EU: — O quê! Perdeste inteiramente a ideia da existência de Deus?

O ESPECTRO: — Sim. É o maior suplício que um Espírito imortal pode suportar, e nada pode fazer conceber o estado de abandono, de dor e de desordem em que se encontra.

EU: — Qual é, pois, a tua ocupação com os Espíritos sujeitos ao mesmo suplício?

O ESPECTRO: — Nós discutimos incessantemente, sem nos entendermos. O despropósito e a loucura presidem a todos os nossos debates, e na profunda escuridão em que se acha mergulhada nossa inteligência, não há uma opinião, um sistema que ela não adote, para logo o repelir e conceber novas extravagâncias. É, pois, a agitação perpétua desse fluxo e refluxo de ideias sem fundamento, sem continuidade, sem ligação, que consiste no castigo dos filósofos que foram ateus.

EU: — Contudo, neste momento raciocinas.

O ESPECTRO: — É porque meu suplício em breve vai terminar. Ele foi muito longo, porque embora na Terra não contem senão dois anos desde a minha morte, sofri de tal modo todas essas loucuras que disse e ouvi, que me parece já ter passado milhares de séculos na região dos sistemas e das disputas.

"Tendo assim falado, o Espectro inclinou-se, adorou a Deus e desapareceu."

"Quando me refiz da emoção que o que acabava de ver e ouvir me tinha causado, meus pensamentos foram para as coisas espantosas que o espectro me havia ensinado. O que ele me disse do primeiro ser corresponde à ideia que tão grande número de homens fizeram? O que acabo de ouvir? O quê! O próprio ateu, o horror de seus semelhantes, acabou por encontrar graça aos olhos dessa divindade que me apresentam como uma natureza vingativa e invejosa? Ah! Quem ousará agora dizer-me: Se não adotares tal ou qual opinião, serás condenado a eternos suplícios? Que bárbaro ousará dizer: Fora de minha comunhão não há salvação? Ser incompreensível e todo misericordioso, encarregaste alguém do cuidado de te vingar? Cabe a uma vil criatura dizer aos seus semelhantes: Pensa como eu, ou serás infeliz para sempre! Que limites, grande Deus, podemos nós, limitados que somos, estabelecer para a tua clemência e para a tua justiça? E com que direito eu te diria: Aqui tu recompensarás, ali tu punirás? Respondei, ó mortos que jazeis nesse pó! Possível vos foi ter todos a crença na qual eu nasci? Vossas inteligências foram todas igualmente tocadas por provas que estabelecem os mistérios que eu adoro e os dogmas nos quais creio? Ah! Como os degraus de uma crença seriam os mesmos em toda parte, bem como os degraus da convicção? Homem intolerante e cruel, vem, se tiveres coragem, sentar-te ao meu lado, e ousa dizer às vítimas da morte cujas lições escutei, ousa dizer-lhes: 'Aqui sois quarenta mil; pois bem, não há senão dez, cinquenta, cem entre vós, que o Deus vingador não destinou às chamas eternas!'"

"Se esse discurso não fosse de um insensato, para que serviria a religião dos túmulos? Por que deveria eu respeitar as cinzas daqueles que não adoram o grande Ser à minha maneira? É neste recinto, onde os inimigos de minha crença repousam, confundidos com seus sectários, que eu poderia ouvir as lições da verdadeira sabedoria? E de que impiedade tornar-me-ia culpado por comunicar-me com inteligências reprovadas, a cujos despojos venho render uma homenagem inspirada pela religião, como pela humanidade?"

Uma expiação terrestre

O jovem François

As pessoas que leram O Céu e o Inferno sem dúvida se lembram da tocante história de Marcel, o menino nº 4, relatada no Cap. VIII das Expiações terrestres. O fato seguinte apresenta um caso mais ou menos análogo e não menos instrutivo, como aplicação da soberana justiça e como explicação do que por vezes parece inexplicável em certas posições da vida.

Numa boa e honesta família morreu, eu outubro de 1866, um rapaz de doze anos, cuja vida, durante nove anos, tinha sido um sofrimento contínuo, que nem os cuidados afetuosos de que era cercado, nem os socorros da ciência tinham podido ao menos suavizar. Ele foi acometido de paralisia e de hidropisia; seu corpo estava coberto de chagas invadidas pela gangrena e suas carnes caíam aos pedaços. Muitas vezes, no paroxismo da dor, ele exclamava: “Que fiz eu, então, meu Deus, para merecer tanto sofrimento? Desde que estou no mundo, entretanto, não fiz mal a ninguém!” Instintivamente esse menino compreendia que o sofrimento devia ser uma expiação, mas, na ignorância da lei de solidariedade das existências sucessivas, não remontando o seu pensamento além da vida presente, ele não se dava conta da causa que poderia justificar nele tão cruel castigo.

Uma particularidade digna de nota foi o nascimento de uma irmã, quando ele tinha cerca de três anos. Foi nessa época que se declararam os primeiros sintomas da terrível moléstia da qual ele devia sucumbir. Desde esse momento ele concebeu pela recém-vinda uma repulsa tal que não podia suportar sua presença e à sua vista pareciam redobrar seus sofrimentos. Muitas vezes ele se reprochava esse sentimento que nada justificava, porque a pequena não o partilhava, ao contrário, ela era para ele suave e amável. Ele dizia à sua mãe: “Por que, então, a visão de minha irmãzinha me é tão penosa? Ela é boa para mim, e contra minha vontade não possa impedir-me de detestá-la.” Entretanto não podia suportar que lhe fizessem o menor mal, nem que a magoassem; longe de se alegrar com suas penas, afligia-se quando a via chorar. Era evidente que dois sentimentos nele se combatiam; ele compreendia a injustiça de sua antipatia, mas seus esforços para superá-la eram impotentes.

Que tais enfermidades sejam, em certa idade, consequência de má conduta, seria uma coisa muito natural, mas de que faltas tão graves um menino dessa idade pode ser culpado para suportar semelhante martírio? Além disso, de onde podia provir essa repulsa por um ser inofensivo? Eis problemas que se apresentam a cada instante, e que levam muita gente a duvidar da justiça de Deus, porque aí não encontram solução em nenhuma religião. Essas anomalias aparentes encontram, ao contrário, sua completa justificação na solidariedade das existências. Um observador espírita poderia dizer, então, com toda a aparência de razão, que esses dois seres eram conhecidos e tinham sido colocados um ao lado do outro na existência atual para alguma expiação e para a reparação de alguma falta. Do estado de sofrimento do irmão poderíamos concluir que ele era o culpado, e que os laços de parentesco próximo que o uniam ao objeto de sua antipatia lhe eram impostos para preparar entre eles as vias de uma reaproximação. Assim, já se vê no irmão uma tendência e esforços para superar seu afastamento, que ele reconhece injusto. Essa antipatia não tinha os caracteres do ciúme que por vezes se nota em crianças do mesmo sangue. Ela provinha, pois, conforme toda a probabilidade, de lembranças penosas, e talvez do remorso despertado pelo presença da menina. Tais são as deduções que racionalmente podem ser tiradas, por analogia, da observação dos fatos, e que foram confirmadas pelo Espírito do rapaz.

Evocado quase imediatamente após a morte, por uma amiga da família, pela qual ele tinha muita afeição, a princípio não pôde explicar-se de maneira completa e prometeu dar ulteriormente detalhes mais circunstanciados. Entre as diversas comunicações que deu, eis as duas que se referem mais particularmente à questão.

“Esperais de mim o relato, que prometi, do que fui numa existência anterior, e a explicação da causa de meus grandes sofrimentos. Será um ensinamento para todos. Bem sei que tais ensinamentos estão em toda parte; encontram-se por todos os lados, mas o relato de fatos cujas consequências nós mesmos vimos, é sempre, para os que existem, uma prova muito mais chocante.

“Eu pequei, sim, eu pequei! Sabeis o que é ter sido assassino, ter atentado contra a vida de seu semelhante? Não o fiz pela maneira que os assassinos empregam, matando rápido, com uma corda ou com uma faca ou qualquer outro instrumento. Não, não foi desta maneira. Matei, mas matei lentamente, fazendo sofrer um ser que eu detestava! Sim, detestava essa criança que eu julgava não me pertencer! Pobre inocente! Tinha ela merecido essa triste sorte? Não, meus pobres amigos, não o tinha merecido ou, pelo menos, não me cabia fazê-la sofrer esses tormentos. Entretanto, eu o fiz, e eis por que fui obrigado a sofrer como vistes.

“Eu sofri, meu Deus! É bastante? Sois muito bom, Senhor! Sim, em presença de meu crime e da expiação, acho que fostes muito misericordioso.

“Orai por mim, caros pais, caros amigos. Agora meus sofrimentos passaram. Pobre Sra. D..., eu vos faço sofrer! É que era muito penoso para mim vir fazer a confissão desse crime imenso!

“Esperança, meus bons amigos! Deus me perdoou minha falta. Agora estou na alegria e, entretanto, também na pena. Vede! É bom estar num estado melhor, ter expiado: o pensamento, a lembrança de seus crimes deixam uma tal impressão que é impossível que não se sinta ainda por muito tempo todo o horror, porque não foi somente na Terra que sofri, mas antes, nesta vida espiritual! E que sofrimento que tive para me decidir a vir sofrer esta expiação terrível! Não vos posso narrar tudo isto, pois seria muito horroroso! A visão constante de minha vítima e a outra, a pobre mãe! Enfim, meus amigos, preces por mim e graças ao Senhor! Eu vos tinha prometido este relato; era preciso que até o fim eu pagasse a minha dívida, por mais que ela me custasse.”

(Até aqui o médium havia escrito sob o império de uma viva emoção. Depois, continuou com mais calma).

“E agora, meus bons pais, uma palavra de consolação. Obrigado, oh obrigado a vós que me ajudastes nesta expiação e que carregastes uma parte; suavizastes, tanto quanto de vós dependia, o que havia de amargo em meu estado. Não vos magoeis, porque é coisa passada; estou feliz, eu vo-lo disse, sobretudo comparando o estado passado com o presente. Amo-vos a todos; agradeço-vos; beijo-vos; amai-me sempre. Encontrar-nos-emos e todos juntos continuaremos esta vida eterna, procurando que a vida futura resgate inteiramente a vida passada.

“Vosso filho, François E.”

Numa outra comunicação, o Espírito do jovem François completou as informações acima.

Pergunta. ─ Caro rapaz, não disseste de onde vinha tua antipatia por tua irmãzinha.

Resposta. ─ Não o adivinhais? Essa pobre e inocente criatura era minha vítima, que Deus tinha ligado à minha existência como um remorso vivo. Eis por que sua visão me fazia sofrer tanto.

P. ─ Entretanto não sabias quem era ela.

R. ─ Não sabia em estado de vigília, sem o que meus tormentos teriam sido cem vezes mais horríveis, tão horríveis quanto tinham sido na vida espiritual, onde eu a via incessantemente. Mas credes que meu Espírito, nos momentos em que estava desprendido, não o soubesse? Nisso estava a causa de minha repulsa; e se eu me esforçava por combatê-la, é que instintivamente sentia que era injusta. Eu não era ainda bastante forte para fazer bem àquela que eu não podia impedir-me de detestar, mas não queria que lhe fizessem mal: era um começo de reparação. Deus levou em conta esse sofrimento, por isto permitiu que cedo ficasse livre de minha vida de sofrimento, sem o que eu teria podido viver ainda longos anos na horrível situação em que me vistes.

“Bendizei, pois, minha morte, que pôs um termo à expiação, porque ela foi o preço de minha reabilitação.

P. ─ (ao guia do médium). Por que a expiação e o arrependimento na vida espiritual não bastam para a reabilitação, sem que seja necessário a isto juntar sofrimentos corporais?

R. ─ Sofrer num mundo ou no outro é sempre sofrer, e se sofre o tempo necessário para que a reabilitação seja completa.

Essa criança sofreu muito na Terra. Ora! Isto nada é em comparação com o que suportou no mundo dos Espíritos. Aqui ele tinha, em compensação, os cuidados e a afeição de que era rodeado. Há ainda esta diferença entre o sofrimento corporal e o sofrimento espiritual, que o primeiro é quase sempre voluntariamente aceito como complemento de expiação, ou como provação para adiantar-se mais rapidamente, ao passo que o outro é imposto.

Mas há outros motivos para o sofrimento corporal: inicialmente, para que a reparação se faça nas mesmas condições em que o mal foi feito; depois, para servir de exemplo aos encarnados. Vendo seus semelhantes sofrerem e sabendo a razão, eles ficam muito mais impressionados do que ao saber que são infelizes como Espíritos; podem melhor compreender a causa de seus próprios sofrimentos; a justiça divina se mostra, de certo modo, palpável aos seus olhos. Enfim, o sofrimento corporal é uma ocasião para os encarnados exercitarem a caridade entre si, uma prova para seus sentimentos de comiseração, e muitas vezes um meio de reparar erros anteriores, porque, crede-o, quando um infortunado se acha em vosso caminho, não é por efeito do acaso.

Para os pais do jovem François, era uma grande prova ter um filho nessa triste posição. Pois bem! Eles cumpriram dignamente seu mandato, e serão tanto melhor recompensados por terem agido espontaneamente, pelo próprio impulso do coração. Se os Espíritos não sofressem na encarnação, seria porque na Terra só haveria Espíritos perfeitos.

Galileu

(Fragmentos do drama do Sr. Ponsard)

(Vide o nº precedente)

Um século antes de Galileu, Copérnico tinha concebido o sistema astronômico que traz o seu nome[1], Com o auxílio do telescópio que havia inventado, e juntando a observação à teoria, Galileu completou as ideias de Copérnico e demonstrou sua verdade pelo cálculo. Com seu instrumento, ele pôde estudar a natureza dos planetas e sua similitude com a Terra. Ele concluiu pela sua habitabilidade. Igualmente tinha reconhecido que as estrelas são outros tantos sóis, disseminados no espaço sem limites, e pensou que cada uma devia ser o centro do movimento de um sistema planetário. Ele acabava de descobrir os quatro satélites de Júpiter, e esse acontecimento abalou o mundo científico e o mundo religioso.

O poeta se dedica, no seu drama, a pintar a diversidade dos sentimentos que ele excitou, conforme o caráter e os preconceitos dos indivíduos.

Dois estudantes da Universidade conversam sobre a descoberta de Galileu, e como não estão de acordo, aconselham-se com um professor de renome.

ALBERTO
Sobre certo ponto, doutor, estamos em desacordo.
E queríamos saber o que pensais.

POMPEU
Ele concorda em pedir conselho a gente sensata.
─ Bem, de que se trata?

VIVIAN
De quatro satélites
Em redor de Júpiter descrevendo suas órbitas.

POMPEU
Eles não existem.

VIVIAN
Mas...

POMPEU
Não poderiam existir.

VIVIAN
Entretanto podem ser vistos e contados.

POMPEU
Não podem ser contados, de vez que não existem.

ALBERTO
Tu ouves,Vivian?

VIVIAN
E por que isto, mestre?

POMPEU
Porque sustentar que Deus pode ter feito
Quatro globos, além dos sete que se sabe,
É afirmação má, um tema quimérico, Antirreligioso, antifilosófico.

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(Percebendo Galileu acompanhado por muitos estudantes)
Basbaques tolos! e charlatão infame!

ALBERTO a VIVIAN
Tu vês que o doutor Pompeu é contra ti.

VIVIAN
Tanto melhor para a doutrina na qual tenho fé;
A marcha natural de toda verdade
É logo contra ela amotinar todos os pedantes.


Aí está claramente a força do raciocínio de certos negadores das ideias novas: Isto não é porque não pode ser. Perguntava-se a um cientista: Que diríeis se vísseis uma mesa elevar-se sem ponto de apoio? ─ Não acreditaria, respondeu ele, porque sei que isto não pode ser.

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UM MONGE, falando à multidão
Escutai o que diz o Apóstolo: Por que, Galileu,
Passeais os olhos pelos céus?
Assim, de antemão, lançava o anátema
Contra ti, Galileu, e contra teu sistema.
Nós mesmos hoje vemos claramente
Que horror tem o céu a esse ensinamento,
E o Arno transbordado e o granizo em nossas vinhas,
São lamentáveis sinais da cólera divina.
─ Meus irmãos, desprezai essas mentiras grosseiras;
Para que a Terra ande, ela tem pés?
Se a lua se move, é que um anjo a guia;
Porque a cada planeta um condutor preside;
Mas a Terra, onde estaria seu anjo? ─ Nos montes?
A gente o veria. ─ No centro? Este aloja os demônios.

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Lívia, mulher de Galileu, é o tipo das criaturas de espírito estreito, mais preocupadas com a vida material do que com a glória e a verdade.

LÍVIA, a Galileu

... Por que esquentais as cabeças,
Derramando uma porção de máximas novas?
Todas essas novidades são, para dizer de uma vez,
Invenções do diabo e cheiram a mentiras.
Pela maneira por que cada um já vos olha,
Isto vai acabar mal, se não vos resguardardes.
Oh! Por que não imitais os dignos professores
Que dizem o que disseram os seus predecessores?
São pessoas nas quais reinam a ordem e o bom-senso;
Ensinam sem barulho o que querem que ensinem,
E sem se meterem a debater em público
Se se deve crer em Aristóteles ou em Copérnico.
Sabiamente sustentam que a opinião verdadeira
Deve ser aquela para a qual se lhes paga
E que, se Aristóteles abre o cofre forte,
Aristóteles está certo e Copérnico errado.
Assim com ninguém se desentendem
E embolsam em paz os florins que lhes dão;
Prosperam, moram bem e estão bem nutridos;
Suas filhas têm dotes e encontram maridos;
Seu auditório é suave e jamais se exalta;
Voltam para casa à hora do jantar;
Mas vós, vós fazeis raiva e vos aplaudem,
E durante esse tempo o jantar fica frio.

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Fragmentos do monólogo de Galileu, no começo do segundo ato:

Não, não mais os tempos são aqueles em que, rainha solitária,
Sobre seu trono imóvel assentavam a Terra;
Não, o carro veloz, levando o astro do dia,
Da aurora ao poente não mais faz o seu giro;
O firmamento já não é abóbada cristalina
Que, como teto azul, de lustres se ilumina;
Não é mais só para nós que Deus fez o Universo;
Mas longe de nos humilharmos, rejubilemo-nos
Porque se abdicamos a uma falsa realeza,
Ao reino da verdade a Ciência nos eleva;
Quando se apequena o corpo, o espírito se agiganta;
Nossa nobreza cresce, ou nosso nível decai.
É mais belo para o homem, ínfima criatura,
Penetrar os segredos velados pela Natureza,
E ousar abarcar, em sua concepção,
A lei universal da Criação,
Que ser, como nos dias de vaidades mentirosas,
Rei de uma ilusão e detentor de um sonho,
Centro inculto de um todo que acredita ser sua obra,
E que pelo pensamento ele hoje conquista.
Sol, globo de fogo, gigantesca fornalha,
Caos incandescente onde tudo começa,
Furioso oceano onde furiosos se agitam
Líquidos granitos e matais fundidos,
Ferindo, quebrando, misturando suas vagas inflamadas
Sob negras explosões de fumo carregadas,
Vagalhão ardente onde uma ilha vermelha nada,
Hoje labéu, amanhã crosta solar;
Ao teu redor se move, ó braseiro fecundo,
A Terra, nossa mãe, há pouco resfriada,
E como ela resfriados, e como ela habitados,
Marte sanguíneo, e Vênus, de brancas claridades;
Vizinho aos teus esplendores, Mercúrio neles se banha,
E Saturno, exilado nos confins de teu reino;
E por Deus, depois por mim, no éter coroado
Por quádruplo diadema de luas, Júpiter.
Porém, astro soberano, centro desses mundos todos,
Muito além de teu império, nos limites profundos,
Milhões de sóis, tão numerosos, tão densos,
Que são incontáveis e em grupos confusos,
Prolongam, como tu, suas grandes crateras,
Fazem mover, como tu, mundos planetários,
Que giram em torno deles, fazendo a sua corte
E recebem de seu rei o calor e o dia.
Oh! sim, sois melhores que lâmpadas noturnas,
Que iluminariam por nós veladores taciturnos,
Inumeráveis clarões, estrelas que empoais,
Com poeira de ouro os caminhos azulados;
Em vós também palpita a vida universal,
Grandes focos onde nosso olhar apenas vê uma centelha.

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Em toda parte a ação, o movimento e a alma!
Por toda parte, rolando em torno de seus centros em chamas,
Globos habitados, cujos seres pensantes,
Vivem como eu vivo, sentem como eu sinto,
Uns mais rebaixados, outros talvez
Mais elevados que nós nos degraus do ser!
Como é grande e belo! Em que culto profundo
O espírito, estupefato, se abisma e se confunde!
Inesgotável autor, que tua onipotência
Aí se mostra em sua glória e magnificência!
Que a vida espalhada em ondas no infinito,
Vastamente proclame teu nome em toda parte abençoado!
Ide, perseguidores! Lançai vossos anátemas!
Sou muito mais religioso do que vós mesmos.
Deus, que invocais, melhor que vós eu sirvo:
Este pequeno monte de lama é o Universo para ti,
Para mim brilha em todos os pontos a obra divina;
Vós a reduzis e eu a dilato;
Como se punham reis em carros triunfais,
Eu ponho universos aos pés do Criador.

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Fragmentos do diálogo entre o Inquisidor e Galileu.


O INQUISIDOR
Não há verdade senão nas Escrituras;
Tudo o mais são erros, visões, imposturas;
O que se acredita contrário ao seu ensino
Não é uma claridade, é uma cegueira.

GALILEU
A fé do cristão é regida pela regra;
Sua única autoridade reina na Teologia,
E a adoração deve curvar os espíritos
Sob os dogmas divinos que aí são inscritos;
Mas o mundo físico escapa a seu domínio;
Deus o entrega por inteiro à discussão humana;
Como se trata de objetos que caem sob os sentidos,
Os sentidos e a razão aí se mostram onipotentes;
A autoridade se cala; nenhuma ordem pode fazer
Raios desiguais no centro da esfera,
Ninguém pode acusar o compasso de heresia,
Nem decretar que um corpo que gira não gire.
O olho é juiz, numa palavra, do Universo visível.
Se o dogma imutável é fixado pela Bíblia,
À Ciência repugna a imortalidade,
E, morrendo nos ferros, vive para a liberdade.


O INQUISIDOR
Ora, não vês, então, que teu novo sistema,
Perturbando a Astronomia, abala a própria fé?
O erro material admitido sobre um ponto
Torna suspeito o testemunho de todo o Testamento;
Quem pode ter falhado não é mais infalível;
A dúvida é permitida e o exame é possível,
E em breve se conclui, desde que se ouse julgar,
Da falsa Física o dogma mentiroso.


GALILEU
Eu, destruir a fé, quando o culto engrandeço!
Mostrar Deus em sua obra será insultá-lo?
Ah! Compreendê-la melhor é melhor adorá-la,
E honrá-la mal é desfigurá-la.
Os céus, segundo a Bíblia, na qual devemos crer,
Os céus nos contam a glória de seu autor;
Então, mais que ninguém, escutei seu relato
E o repeti, como os céus o disseram.

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Pode-se barrar o curso de uma verdade nova?
Parar uma gota, será deter um rio?
Crede-me, respeitai estas aspirações,
Elas têm muito impulso e muitas expansões
Para suportar que um carcereiro possa mantê-las presas;
Deixai-lhes campo livre, ou desgraça às barreiras!
─ Ah! Roma, nos primeiros dias de teu proscrito culto,
Dizias não opor à clava senão o espírito;
Então só triunfaste para trocar de papel,
E tu mesma opor a clava à palavra?
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ANTÔNIA, filha de Galileu, vendo o pai proscrito, lhe diz:
Eis a tua Antígona. Sim, meu amor piedoso
Conduzirá o proscrito, vencedor da esfinge dos céus.
Dirigindo teu bastão de vale em vale,
Direi: “Dai-me pão para Galileu,
Para aquele que, privado de teto pelos cristãos,
Teria tido altares entre os povos pagãos.”


Galileu sondou as profundezas dos céus e revelou a pluralidade dos mundos materiais. Como dissemos, foi toda uma revolução nas ideias; um novo campo de exploração foi aberto à Ciência. O Espiritismo vem operar outra não menor, revelando a existência do mundo espiritual que nos rodeia. Graças a ele, o homem conhece seu passado e seu verdadeiro destino. Galileu derrubou as barreiras que circunscreviam o Universo. O Espiritismo o povoa e enche o vazio dos espaços infinitos. Embora mais de dois séculos nos separem das descobertas de Galileu, muitos preconceitos ainda estão vivos; a nova doutrina emancipadora encontra os mesmos obstáculos; atacam-na com as mesmas armas, opõem-lhe os mesmos argumentos. Lendo o drama do Sr. Ponsard, poderíamos dar nomes próprios modernos a cada um de seus personagens. Entretanto, a má vontade e a perseguição não impediram que a doutrina de Galileu triunfasse, porque ela era a verdade. Darse-á o mesmo com o Espiritismo, porque também ele é uma verdade. Seus detratores serão olhados pela geração futura com os mesmos olhos com que olhamos os de Galileu.

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[1] Copérnico, astrônomo polonês nascido em Thorn (Estados Prussianos) em 1473, falecido em 1543. ─ Galileu, nascido em Florença em 1564, condenado em 1633, morreu cego em 1644. O sistema de Copérnico já estava condenado pela Igreja.



Lumen

(Por Camille Flammarion) (2º Artigo. Vide Revista Espírita de março, último.)

Deixamos Lumen em Capela, ocupado em considerar a Terra, que ele acabara de deixar. Estando esse mundo situado a 170 trilhões e 392 bilhões de léguas da Terra, e percorrendo a luz 70.000 léguas por segundo, esta não pode chegar de um ao outro senão em 71 anos, 8 meses e 24 dias, ou seja, cerca de 72 anos. Disso resulta que o raio luminoso que leva a imagem da Terra só chega aos habitantes de Capela ao cabo de 72 anos. Tendo Lumen morrido em 1864 e lançando o olhar sobre Paris, a viu tal qual era 72 anos antes, isto é, em 1793, ano de seu nascimento.

Inicialmente ele ficou muito surpreendido por encontrar tudo diferente do que tinha visto, de ver ruelas, conventos, jardins e campos, em vez de avenidas, novos bulevares, estações de estrada de ferro, etc. Viu a Praça da Concórdia ocupada por uma imensa multidão e foi testemunha ocular do acontecimento de 21 de janeiro. A teoria da luz lhe deu a chave desse estranho fenômeno. Eis a solução de algumas dificuldades que ele levanta[1].

"Sitiens. ─ Mas, então, se o passado pode, assim, confundir-se com o presente; se a realidade e a visão se casam do mesmo modo; se personagens falecidas há muito tempo podem ser vistas representando em cena; se as construções novas e as metamorfoses de uma cidade como Paris podem desaparecer e deixar ver em seu lugar a cidade de outrora; se, enfim, o presente pode apagar-se para a ressurreição do passado, sobre que certeza, daqui para o futuro, nos podemos confiar? Em que se tornam a ciência e a observação? Em que se tornam as deduções e as teorias? Em que se fundamentam nossos conhecimentos, que nos parecem os mais sólidos? E se essas coisas são verdadeiras, não devemos de agora em diante duvidar de tudo ou crer em tudo?"

"Lúmen. ─ Estas e muitas outras considerações, meu amigo, me absorveram e atormentaram, mas não impediram de ser a realidade que eu observava. Quando tive a certeza que tínhamos presente, sob os nossos olhos, o ano de 1793, pensei imediatamente que a própria Ciência, em vez de combater essa realidade (porque duas verdades não podem opor-se uma à outra), devia me dar a sua explicação. Assim, interroguei a Física e esperei sua resposta." (Segue a demonstração científica do fenômeno).

"Sitiens. ─ Assim, o raio luminoso é como um correio que nos traz notícias do estado do país que o envia, e que, se levar 72 anos para chegar até nós, dá-nos o estado desse país no momento de sua partida, isto é, 72 anos antes do momento em que o recebemos."

"Lumen. ─ Adivinhastes o mistério. Para falar com mais exatidão ainda, o raio luminoso seria um correio que nos traria, não notícias escritas, mas a fotografia, ou mais rigorosamente ainda, o próprio aspecto do país de onde ele saiu. Assim, pois, quando examinamos ao telescópio a superfície de um astro, não vemos essa superfície tal qual é no momento exato em que o observamos, mas tal qual era no momento em que a luz que nos chega foi emitida por essa superfície."

"Sitiens. ─ De sorte que se uma estrela cuja luz leva, suponhamos, dez anos par nos chegar, fosse subitamente aniquilada hoje, nós a veríamos ainda durante dez anos, porquanto seu último raio só nos chegaria dez anos depois."

"Lumen. ─ É precisamente isto. Há, pois, aí, uma surpreendente transformação do passado em presente. Para o astro observado, é o passado já desaparecido; para o observador é o presente, o atual. O passado do astro é rigorosa e positivamente o presente do observador."

Mais tarde, Lumen se vê a si próprio, menino, com seis anos, brincando e discutindo com um grupo de outros meninos, na Praça do Panthéon.

"Sitiens. ─ Confesso que me parece impossível que se possa ver assim a si próprio. Não podeis ser duas pessoas. Considerando-se que tínheis 72 anos quando morrestes, vosso estado de infância tinha passado, desaparecido, estava extinto há muito tempo. Não podeis ver uma coisa que não mais existe. Não podemos ver-nos em duplicidade, menino e velho."

"Lumen. ─ Não refletis bastante, meu amigo. Compreendestes muito bem ó fato geral para admiti-lo, mas não observastes suficientemente para perceber que este último fato particular se enquadra absolutamente no primeiro. Admitis que o aspecto da Terra leva 72 anos para vir a mim, não é? Que os acontecimentos não me chegam senão com esse intervalo de tempo depois de sua atualidade? Numa palavra, que eu veja o mundo tal qual era naquela época. Admitis igualmente que, vendo as ruas daquela época, eu veja, ao mesmo tempo, os meninos que corriam naquelas ruas? Então! Se eu vejo esse grupo de crianças, e se eu fazia parte desse grupo, por que quereis que não me veja tão bem quanto vejo os outros?"

"Sitiens. Mas não estais mais naquele grupo."

"Lumen. ─ Ainda uma vez, esse grupo, na verdade, não existe mais agora, mas eu o vejo tal qual existia no instante em que partiu o raio luminoso que hoje me chega, e se eu distingo os quinze ou dezoito meninos que o compunham, não há razão para que o menino que era eu desapareça porque sou eu quem olha. Outros observadores o veriam em companhia de seus camaradas. Por que quereis que haja uma exceção quando sou eu quem olha? Eu os vejo a todos, e me vejo com eles."

Lumen passa em revista a série dos principais acontecimentos políticos acontecidos desde 1793 até 1864, quando ele próprio se vê no leito de morte.

"Sitiens. ─ Estes acontecimentos passaram rapidamente sob os vossos olhos?"

"Lumen. ─ Eu não poderia apreciar a medida do tempo, mas todo esse panorama retrospectivo se sucedeu certamente em menos de um dia... talvez nalgumas horas."

"Sitiens. ─ Então não compreendo mais. Se 72 anos terrestres passaram sob vossos olhos, deveriam ter gasto exatamente 72 anos para vos aparecer, e não algumas horas. Se o ano de 1793 só vos aparecia em 1864, o de 1864, em compensação, não vos deveria aparecer senão em 1936?"

"Lumen. ─ Vossa objeção é fundada e me prova que compreendestes bem a teoria do fato. Assim, vou explicar-vos como não me foi necessário esperar 72 novos anos para rever minha vida, e como, sob o impulso de uma força inconsciente, efetivamente a revi em menos de um dia."

"Continuando a seguir minha existência, cheguei aos últimos anos notáveis pela transformação radical que sofreu Paris; vi meus últimos amigos e a vós mesmo; minha família e meu círculo de amizades; enfim, chegou o momento em que me vi deitado no leito de morte e onde assisti à última cena."

"É dizer-vos que tinha voltado à Terra."

"Atraída pela contemplação que a absorvia, rapidamente minha alma tinha esquecido a montanha dos velhos e Capela. Como a gente sente, às vezes, em sonho, ela se evolava na direção do objetivo de seus olhares. A princípio não me apercebi, tanto a estranha visão dominava todas as minhas faculdades. Não vos posso dizer nem por que lei, nem por que força as almas podem transportar-se tão rapidamente de um a outro lugar, mas a verdade é que eu tinha voltado à Terra em menos de um dia, e que eu penetrava em meu quarto justo no momento de meu enterro."

"Sendo que nessa viagem de volta eu ia à frente dos raios luminosos, eu diminuía incessantemente a distância que me separava da Terra; a luz tinha cada vez menos caminho a percorrer e acelerava assim a sucessão dos acontecimentos. No meio do caminho, quando estava a apenas de 36 anos, eles não me mostravam mais a Terra de 72 anos antes, mas de 36. A três quartos do caminho, os aspectos eram atrasados apenas 18 anos. Na metade do último quarto, chegavam-me apenas após passados 9 anos, e assim por diante, de sorte que a série inteira de minha existência se achou condensada em menos de um dia, devido à rápida volta de minha alma, indo à frente dos raios luminosos."

Quando Lumen chegou a Capela, viu um grupo de velhos ocupados em considerações sobre a Terra, dissertando sobre o acontecimento de 1793. Um deles disse aos companheiros:

"«De joelhos, meus irmãos, peçamos indulgência ao Deus universal. Esse mundo, essa nação, essa cidade manchou-se por um grande crime; a cabeça de um rei inocente acaba de cair.»"

"Aproximei-me do ancião, disse Lumen, e lhe pedi que me fizesse o relato de suas observações."

"Ele informou-me que pela intuição de que são dotados os Espíritos do grau dos que habitam esse mundo, e pela faculdade íntima de percepção que receberam em partilha, eles possuem uma espécie de relação magnética com as estrelas vizinhas. Essas estrelas são em número de doze ou quinze; são as mais próximas; fora dessa região, a percepção torna-se confusa."

"Nosso Sol é uma dessas estrelas vizinhas[2]. Eles conhecem, pois, vagamente mas sensivelmente, o estado das Humanidades que habitam os planetas dependentes desse sol, e o seu relativo grau de elevação intelectual e moral."

"Além disto, quando uma grande perturbação atravessa uma dessas Humanidades, quer na ordem física, quer na ordem moral, eles sofrem uma espécie de comoção íntima, como acontece quando uma corda vibra e faz entrar em vibração uma outra corda situada à distância."

"Há um ano (o ano desse mundo é igual a dez nos nossos), eles se tinham sentido atraídos por uma emoção particular para o planeta terrestre, e os observadores tinham seguido com interesse e inquietude a marcha deste mundo."

Laboraríamos em erro se deduzíssemos do que precede que os habitantes das diversas esferas, do ponto onde estão, lançam um olhar investigador sobre o que se passa em outros mundos, e que os acontecimentos que aí se realizam passam sob seus olhos como no campo de uma luneta. Ademais, cada mundo tem suas preocupações especiais, que cativam a atenção de seus habitantes, conforme suas próprias necessidades, seus costumes completamente diferentes, e seu grau de adiantamento. Quando os Espíritos encarnados num planeta têm motivos para se interessarem pelo que se passa num outro mundo, ou por alguns dos que o habitam, sua alma para lá se transporta, como fez a de Lumen, em estado de desprendimento, e então se tornam momentaneamente, por assim dizer, habitantes espirituais desse mundo, ou aí se encarnam em missão. Eis, pelo menos, o que resulta do ensinamento dos Espíritos.

Esta última parte do relato de Lumen carece, pois, de exatidão, mas não se deve perder de vista que esta história não passa de uma hipótese destinada a tornar mais acessíveis à inteligência, e de certo modo palpáveis pela entrada em ação, da demonstração de uma teoria científica, como fizemos observar em nosso artigo precedente.

Chamamos a atenção para o parágrafo acima, no qual é dito que: "As grandes perturbações físicas e morais de um mundo produzem sobre os mundos vizinhos uma espécie de comoção íntima, como acontece quando uma corda vibra e faz entrar em vibração uma outra corda situada à distância." O autor, que em matéria de Ciência não fala levianamente, anuncia aí um princípio que um dia bem poderia ser convertido em lei. A Ciência já admite, como resultado da observação, a ação recíproca material dos astros. Se, como se começa a suspeitar, esta ação, aumentada por certas circunstâncias, pode ocasionar perturbações e cataclismos, nada haveria de impossível que essas mesmas perturbações tivessem seu contragolpe. Até o presente a Ciência considerou apenas o princípio material, entretanto, se levarmos em conta o princípio espiritual como elemento ativo do Universo, e se pensarmos que esse princípio é tão geral e tão essencial quanto o princípio material, conceberemos que uma grande efervescência desse elemento e das modificações que ele sofre num ponto dado, possam ter sua reação, por força da correlação necessária que existe entre a matéria e o espírito. Há certamente nesta ideia o germe de um princípio fecundo e de um estudo sério para o qual o Espiritismo abre caminho.



[1] Segundo o cálculo, e em razão da distância do Sol, que é de 38.230.000 léguas de 4 quilômetros, a luz desse astro nos chega em 8 minutos e 13 segundos. Disso resulta que um fenômeno que se passasse em sua superfície só nos chegaria 8 minutos e 13 segundos mais tarde, e que se o fenômeno fosse instantâneo, já não mais existiria quando o víssemos. Sendo a distância da Lua apenas de 85.000 léguas, sua luz nos chega mais ou menos em um segundo e um quarto; consequentemente, as perturbações que aí pudessem ocorrer nos apareceriam pouco depois do momento em que ocorressem. Se Lumen estivesse na Lua, teria visto Paris de 1864 e não de 1793; se estivesse num mundo duas vezes mais afastado do que Capela, teria visto a Regência.


[2] 170 trilhões e 892 bilhões de léguas! Pela distância que separa as estrelas vizinhas, podemos imaginar a extensão ocupada pelo conjunto das que, entretanto, nos parecem à vista tão perto umas das outras, sem contar o número infinitamente maior das que só são perceptíveis com o auxílio do telescópio, e que não são, elas próprias, senão uma ínfima fração daquelas que, perdidas nas profundezas do infinito, escapam a todos os nossos meios de investigação. Se considerarmos que cada estrela é um sol, centro de um turbilhão planetário, compreenderemos que o nosso próprio turbilhão não passa de um ponto nessa imensidão. O que, então, nosso globo de 3.000 léguas de diâmetro, entre esses bilhões de mundos? Que são esses habitantes que durante muito tempo acreditaram que seu pequeno mundo é o ponto central do Universo, e eles próprios se crerem os únicos seres vivos da criação, concentrando apenas neles próprios as preocupações da solicitude do Eterno, e crendo de boa fé que o espetáculo dos céus não tinha sido feito senão para lhes recrear a vista? Todo esse sistema egoístico e mesquinho que durante longos séculos constituiu o fundamento da fé religiosa, esboroou-se diante das descobertas de Galileu.





Dissertações espíritas

A vida espiritual


(Grupo Lampérière, 9 de janeiro de 1867 - Médium: Sr. Delanne)

Aqui estou, feliz por vir saudar-vos, encorajar-vos e vos dizer:

Irmãos, Deus vos cumula de benefícios, prometendo-vos nestes tempos de incredulidade, respirar a plenos pulmões o ar da vida espiritual que sopra com vigor através das massas compactas.

Crede em vosso antigo associado, crede em vosso amigo íntimo, vosso irmão pelo coração, pelo pensamento e pela fé; crede nas verdades ensinadas. Elas são tão seguras quanto lógicas; crede em mim que, há alguns dias, me contentava, como vós, em crer e esperar, ao passo que hoje a doce ficção é para mim uma imensa e profunda verdade. Eu toco, eu vejo, eu sigo, eu possuo; então, isso existe. Analiso minhas impressões de hoje e as comparo com as ainda frescas, da véspera.

Não só me é permitido comparar, sintetizar, pesar minhas ações, meus pensamentos, minhas reflexões, julgá-las pelo critério do bom-senso, mas eu as vejo, eu as sinto, eu sou testemunha ocular, sou a coisa realizada. Não são mais consoladoras hipóteses, sonhos dourados, esperanças; é mais que uma certeza moral: é o fato real, palpável, o fato material que se toca, que vos toma sob sua forma tangível, e que nos diz: isto é.

Aqui tudo respira calma, sabedoria, felicidade; tudo é harmonia; tudo diz: Eis o suprassumo do senso íntimo; não mais quimeras, falsas alegrias, não mais temores pueris, não mais falsa vergonha, não mais dúvidas, não mais angústias, não mais perjúrios, nada desse cortejo vil de fabulosas dores, de erros grosseiros, como se vê diariamente na Terra.

Aqui somos penetrados de uma quietude inefável; admiramos, oramos, adoramos, rendemos ações de graças ao sublime autor de tantos benefícios; estudamos e entrevemos todas as potências infinitas; vemos o movimento das leis que regem a Natureza. Cada obra tem uma finalidade, que conduz ao amor, diapasão da harmonia geral. Vemos o progresso presidir a todas as transformações físicas e morais, porque o progresso é infinito como Deus que o criou. Tudo é compreensível; tudo é claro, preciso; nada de abstrações, porque tocamos com o dedo e a razão o porquê das coisas humanas. As legiões espirituais adiantadas só têm um objetivo, o de se tornarem úteis a seus irmãos atrasados, para elevá-los para elas.

Trabalhai, pois, sem cessar, conforme vossas forças, meus bons irmãos, para vos melhorardes e serdes úteis aos vossos semelhantes; não só fareis a doutrina, que é vossa alegria, dar um passo, mas tereis contribuído poderosamente para o progresso do vosso planeta; a exemplo do grande legislador cristão, sereis homens, homens de amor, e concorrereis para implantar o reino de Deus sobre a Terra. Este que é ainda e mais que nunca vosso condiscípulo,

LECLERC.

OBSERVAÇÃO: Com efeito, tal ó o caráter da vida espiritual; mas seria um erro crer que basta ser Espírito para encará-la deste ponto de vista. Dá-se com o mundo espiritual como com o mundo corporal: Para apreciar as coisas de uma ordem elevada, é necessário um desenvolvimento intelectual e moral que não é peculiar senão a Espíritos adiantados; os Espíritos atrasados ignoram o que se passa nas altas esferas espirituais, como o eram na Terra em relação ao que constitui a admiração dos homens esclarecidos, porque não podem compreendê-lo. Não podendo seu pensamento, circunscrito num horizonte limitado, abarcar o Infinito, eles não podem ter os prazeres resultantes do alargamento da esfera de atividade espiritual. A soma de felicidades, no mundo dos Espíritos, ali é, portanto, por força das coisas, proporcional ao desenvolvimento do senso moral, de onde resulta que trabalhando aqui em baixo por nosso melhoramento e nossa instrução, aumentamos as fontes de felicidade para a vida futura. Para o materialista, o trabalho só tem um resultado limitado à vida presente, que pode acabar de um instante para outro. O espírita, ao contrário, sabe que nada do que ele adquire, mesmo à última hora, fica perdido, e que todo progresso realizado lhe será proveitoso.

As profundas considerações de nosso antigo colega, Sr. Leclerc, sobre a vida espiritual, são, pois, uma prova de seu adiantamento na hierarquia dos Espíritos, pelo que o felicitamos.


Provas terrestres dos homens em missão

(Douay, 8 de março de 1867 - Médium: Sra. M...)

...Meus filhos, é preciso que o sangue depure a Terra. Luta terrível, ainda mais horrível pelo esplendor da civilização em cujo meio ela rebenta. Oh, Senhor! Quando tudo se prepara para apertar os laços dos povos de um a outro extremo do mundo! Quando na aurora da fraternidade material se veem as linhas de demarcação de raças, de costumes e de linguagem tenderem para a unidade, a guerra chega, a guerra com seu cortejo de ruínas, de conflagrações, de divisões profundas, de ódios religiosos. Sim, tudo isto porque nada, em nosso progresso, aconteceu segundo o espírito de Deus; porque vossos laços não foram apertados pela bondade nem pela lealdade, mas apenas pelo interesse; porque não é a verdadeira caridade que impõe silêncio aos ódios religiosos, mas a indiferença; porque as barreiras não foram eliminadas em vossas fronteiras pelo amor de todos, mas pelos cálculos mercantis; porque, enfim, a visão é humana e instintiva, e não espiritual e caridosa; porque os governantes só buscam os seus interesse, e cada um, entre os povos, faz o mesmo.

Sublime desinteresse de Jesus e de seus apóstolos, onde estás? ─ Meus filhos, ficais tristes ao pensar, algumas vezes, na rude missão desses Espíritos sublimes que vêm levantar a coragem da Humanidade e morrer na tarefa, depois de ter esvaziado a taça das ingratidões humanas. Gemeis por ver que o Senhor, que os enviou, parece abandoná-los no momento em que sua proteção parece mais necessária. Não vos falaram das provas que sofrem os Espíritos elevados no momento de transpor um degrau mais alto na iniciativa espiritual? Não vos disseram que cada grau da hierarquia celeste se adquire pelo mérito, pelo devotamento, como entre vós, no exército, pelo sangue derramado e pelos serviços prestados? Então! É o caso em que se encontram os Messias nessa terra de dores. Eles são sustentados enquanto dura sua obra humanitária, enquanto trabalham pelo homem e para Deus, mas, quando só eles estão em jogo, quando sua prova se torna individual, o socorro visível se afasta e a luta se mostra tão acerba e rude quanto o homem deve suportá-la.

Eis a explicação desse aparente abandono que vos aflige na vida dos missionários de todos os graus de vossa Humanidade. Não penseis que Deus abandone jamais a sua criatura por capricho ou impotência; não, mas, no interesse de seu adiantamento, ele a deixa entregue às suas próprias forças, ao completo emprego de seu livre-arbítrio.

CURA D’ARS


O gênio

(Douay, 13 de março de 1867 - Médium: Sra. M...)

Pergunta
. ─ O gênio é conferido a cada Espírito conforme sua conquista, ou conforme uma lei divina, em relação com as necessidades de um povo ou de uma Humanidade?

Resposta. ─ O gênio, caros filhos, é a radiação das conquistas anteriores. Essa radiação é o estado do Espírito no desprendimento ou nas encarnações superiores. Há, pois, duas distinções a fazer.

O gênio mais comum entre vós é simplesmente o estado de um Espírito, do qual uma ou duas faculdades ficaram descobertas e em estado de agir livremente; ele recebeu um corpo que permite sua expansão na plenitude adquirida. A outra espécie de gênio é o Espírito que vem dos mundos felizes e adiantados, onde a aquisição é universal sobre todos os pontos; onde todas as faculdades da alma chegaram a um grau eminente, desconhecido na Terra. Estas espécies de gênio se distinguem dos primeiros por uma excepcional aptidão para todos os talentos, para todos os estudos. Eles concebem todas as coisas por uma intuição segura que confunde a Ciência ensinada pelos mais sábios. Eles se destacam em bondade, em grandeza de alma, em verdadeira nobreza, em obras excelentes. Eles são faróis, iniciadores, exemplos, São homens de outras terras, vindos para fazer resplandecer a luz do Alto num mundo obscuro, assim como se enviam entre os bárbaros, para instruí-los, alguns sábios de uma capital civilizada. Tais foram, entre vós, os homens que em diversas épocas fizeram avançar a Humanidade, os sábios que ampliaram os limites dos conhecimentos e dissiparam as trevas da ignorância. Eles viram e pressentiram o destino terrestre, por mais longe que estivessem da realização desse destino. Todos lançaram os fundamentos de alguma ciência, ou foram o seu ponto culminante.

O gênio, portanto, não é gratuito e não está subordinado a uma lei; ele sai do próprio homem e de seus antecedentes. Refleti que os antecedentes são todo o homem. O criminoso o é por seus antecedentes; o homem de mérito, o homem de gênio, são superiores pela mesma causa. Nem tudo é velado na encarnação a ponto de nada penetrar nosso ser interior. A inteligência e a bondade são luzes muito vivas, focos muito ardentes para que a vida terrena os reduza à obscuridade.

As provas a sofrer bem podem velar, atenuar algumas de nossas faculdades, adormecê-las, mas se elas tiverem chegado a um alto grau, o Espírito não pode perder inteiramente a sua posse e exercício. Ele guarda em si a certeza de que as mantém sempre à sua disposição; muitas vezes mesmo, ele não pode consentir em delas privar-se. Eis o que causa as vidas tão dolorosas de certos homens adiantados que preferiram sofrer por suas altas faculdades do que deixar que estas se apagassem por algum tempo.

Sim, todos nós somos pela esperança, e alguns pela lembrança, cidadãos dessas altas esferas celestes, onde o pensamento irradia puro e poderoso. Sim, todos nós seremos Platões, Aristóteles, Erasmos; nosso Espírito não verá mais empalidecer suas aquisições sob o peso da vida do corpo, ou extinguir-se sob o peso da velhice e das enfermidades.

Amigos, eis verdadeiramente a mais sublime esperança. Que são junto a tudo isto as dignidades e os tesouros que eram postos aos pés desses homens? Os soberanos mendigavam suas obras, eles disputavam sua presença. ─ Credes que essas honras vãs os lisonjeavam? Não. A lembrança de sua gloriosa pátria era muito viva. Eles voltaram felizes sobre o brilho de sua glória aos mundos que seus Espíritos desejavam incessantemente.

Terra! Terra! Região fria, obscura, agitada; Terra cega, ingrata e rebelde! Tu não lhes podias fazer esquecer a pátria celeste onde viveram, onde voltariam a viver.

Adeus, amigos! Ficai certos de que todo homem de bem tornar-se-á cidadão desses mundos felizes, dessas Jerusaléns esplêndidas, onde o Espírito vive livre num corpo etéreo, possuindo sem nuvens e sem véus todas as suas conquistas. Então conhecereis tudo quanto aspirais conhecer, compreendereis tudo quanto procurais compreender, mesmo o meu nome, caro médium, que não te quero dizer.

UM ESPÍRITO.




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