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Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867 > Setembro
Setembro
Caracteres da revelação espírita *
1. ─ Pode-se considerar o Espiritismo como uma
revelação? Neste caso, qual o seu caráter? Sobre o que se funda sua
autenticidade? A quem e de que maneira foi ela feita? A Doutrina Espírita é uma
revelação, no sentido litúrgico do vocábulo, isto é, é em todos os pontos
produto de um ensino oculto, vindo do alto? É absoluta, ou suscetível de
modificações? Trazendo aos homens a verdade acabada, teria a revelação o efeito
de impedi-los de fazer uso de suas faculdades, porquanto lhes poupa o trabalho
de pesquisa? Qual pode ser a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não
são infalíveis e superiores à Humanidade? Qual a utilidade da moral que eles
pregam, se essa moral não é senão a do Cristo, que é conhecida? Quais as
verdades novas que eles nos trazem? Necessita o homem de uma revelação e não
pode achar em si mesmo e em sua consciência tudo quanto lhe é necessário para
se conduzir? Tais são as perguntas sobre as quais importa fixar-se.
2.
─ Para começar, definamos o sentido do vocábulo
revelação.
Revelar, derivado
de véu ─ do latim velum ─ significa
literalmente tirar o véu; e, no
sentido figurado: descobrir, fazer conhecer uma coisa secreta ou desconhecida.
Em sua acepção vulgar mais geral, diz-se de toda coisa ignorada que é trazida à
luz, de toda ideia nova posta no caminho daquilo que não se sabia.
Deste ponto de vista, todas as ciências que nos dão a
conhecer os mistérios da Natureza são revelações, e podemos dizer que há para
nós uma revelação incessante. A Astronomia nos revelou o mundo astral, que não
conhecíamos; a Geologia, a formação da Terra; a Química, a lei das afinidades;
a Fisiologia, as funções do organismo, etc. Copérnico, Galileu, Newton,
Laplace, Lavoisier são reveladores.
3.
─ O caráter essencial de toda revelação deve ser
a verdade. Revelar um segredo é dar um fato a conhecer. Se a coisa for falsa,
não é um fato e, por consequência, não há revelação. Toda revelação desmentida
pelos fatos não é revelação; se for atribuída a Deus, e não podendo Deus nem
mentir nem enganar-se, não pode emanar dele. Há que considerá-la como produto
de uma opinião pessoal.
4.
─ Qual o papel do professor perante os alunos,
senão o de um revelador? Ele lhes ensina o que eles não sabem, o que não teriam
tempo nem possibilidade de descobrir por si mesmos, porque a ciência é a obra
coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trouxeram, cada um, seu
contingente de observações, das quais se aproveitam os que vêm depois deles. O
ensinamento é, pois, na realidade, a revelação de certas verdades científicas
ou morais, físicas ou metafísicas, feita por homens que as conhecem, a outros
que as ignoram e que, sem isto, as ignorariam sempre.
5.
─ Mas o professor só ensina o que aprendeu: é um
revelador de segunda ordem. O homem de gênio ensina o que ele próprio
encontrou: é o revelador primitivo; ele traz a luz que, pouco a pouco, se
vulgariza. Onde estaria a Humanidade sem a revelação dos homens de gênio, que
aparecem de tempos em tempos?
Mas, que são os homens de gênio? Por que são homens de
gênio? De onde vêm? Em que se tornam? Notemos que a maioria deles ao nascer
trazem faculdades transcendentes e conhecimentos inatos, para cujo
desenvolvimento basta um pouco de trabalho. Eles pertencem realmente à
Humanidade, porquanto nascem, vivem e morrem como nós. Onde, então, beberam
esses conhecimentos, que não puderam adquirir em vida? Dirão, com os
materialistas, que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade e de
melhor qualidade? Neste caso eles não teriam mais mérito do que um legume maior
e mais saboroso que outro.
Dirão, com certos espiritualistas, que Deus os dotou com
uma alma mais favorecida que a do comum dos homens? Suposição também ilógica,
porque acusaria Deus de parcialidade. A única solução racional deste problema
está na preexistência da alma e na pluralidade das existências. O homem de
gênio é um Espírito que viveu mais tempo; que consequentemente adquiriu mais
progresso do que aqueles que são menos adiantados. Encarnando-se, ele traz o
que sabe, e como sabe muito mais que os outros, sem ter necessidade de
aprender, ele é o que se chama um homem de gênio. Mas o que sabe não deixa de
ser fruto de um trabalho anterior, e não o resultado de um privilégio. Antes de
renascer ele era, pois, um Espírito adiantado; ele se reencarna, seja para que
os outros aproveitem o que ele sabe, seja para adquirir ainda mais.
Incontestavelmente os homens progridem por si mesmos e
pelos esforços de sua inteligência. Mas, entregues às suas próprias forças,
esse progresso é muito lento, se não forem ajudados por homens mais avançados,
como o estudante o é por seus professores. Todos os povos têm tido seus homens
de gênio, que vieram, em diversas épocas, dar-lhes um impulso e tirá-los de sua
inércia.
6.
─ Considerando-se que admitimos a solicitude de
Deus por suas criaturas, por que não admitiríamos que Espíritos capazes, por
sua energia e pela superioridade de seus conhecimentos, de fazer a Humanidade
avançar, se encarnem, pela vontade de Deus, visando ajudar o progresso num
determinado sentido; que recebam uma missão, como um embaixador a recebe de seu
soberano? Tal é o papel dos grandes gênios. Que vêm eles fazer senão ensinar
aos homens verdades que estes ignoram, e que teriam ainda ignorado por longos
períodos, a fim de lhes dar um degrau com cujo auxílio poderão elevar-se mais
rapidamente? Esses gênios, que surgem através dos séculos, como estrelas
brilhantes, deixando após si um longo rastro luminoso sobre a Humanidade, são
missionários, ou, se preferirem, messias. Se eles não ensinassem aos homens
nada além do que estes sabem, sua presença seria completamente inútil. As
coisas novas que eles lhes ensinam, quer da ordem física, quer da ordem
filosófica, são revelações.
Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas,
ele pode, com mais forte razão, suscitá-los para as verdades morais, que são um
dos elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias
atravessaram os séculos.
7.
─ No sentido especial da fé religiosa, a
revelação se diz mais particularmente das coisas espirituais que o homem não
pode saber por si mesmo, que não pode descobrir por meio dos sentidos, e cujo
conhecimento lhe é dado por Deus e por seus mensageiros, quer por meio da
palavra direta, quer pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a
homens privilegiados, designados sob o nome de profetas ou messias, isto é, enviados,
missionários, tendo a missão de
transmiti-la aos homens. Considerada sob este ponto de vista, a revelação
implica a passividade absoluta; é aceita sem controle, sem exame, sem
discussão.
8.
─ Todas as religiões tiveram seus reveladores, e
embora todas estejam longe de haver conhecido toda a verdade, eles tinham sua
razão de ser providencial, porque eram adequadas ao tempo e ao meio em que
viviam, ao gênio particular dos povos aos quais falavam, aos quais eram
relativamente superiores. A despeito dos erros de suas doutrinas, não deixaram
de abalar os espíritos e, por isso mesmo, semearam germes de progresso que mais
tarde deviam espalhar-se, ou se espalharão um dia, ao sol do Cristianismo. É,
pois, sem razão que lhes jogam o anátema em nome da ortodoxia, porque dia virá
em que todas essas crenças, tão diversas na forma, mas que em realidade
repousam sobre o mesmo princípio fundamental: ─ Deus e a imortalidade da alma ─
fundir-se-ão numa grande e vasta unidade, quando a razão houver triunfado dos
preconceitos.
Infelizmente, em todos os tempos, as religiões têm sido
instrumentos de dominação; o papel de profetas tentou ambições secundárias e
viram-se surgir inúmeros pretensos reveladores ou messias que, valendo-se do
prestígio desse nome, exploraram a credulidade em proveito de seu orgulho, de
sua cupidez ou de sua preguiça, achando mais cômodo viver à custa de suas
vítimas. A religião cristã não ficou ao abrigo desses parasitas. A esse
respeito, chamamos a atenção séria para o Cap. XXI de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Haverá falsos Cristos e falsos profetas.”
9.
─ Há revelações diretas de Deus aos homens? É
uma questão que não ousaríamos resolver nem afirmativa nem negativamente de
maneira absoluta. A coisa não é radicalmente impossível, mas nada lhe dá uma
prova certa. O de não poderíamos duvidar, é que os Espíritos mais próximos de
Deus pela perfeição se penetrem de seu pensamento e possam transmiti-lo. Quanto
aos reveladores encarnados, segundo a ordem hierárquica a que pertencem e ao
grau de seu saber pessoal, podem colher suas instruções em seus próprios
conhecimentos, ou recebêlas de Espíritos mais elevados, quiçá dos mensageiros
diretos de Deus. Estes, falando em nome de Deus, por vezes foram tomados como o
próprio Deus.
Essas espécies de comunicações nada têm de estranho para
quem quer que conheça os fenômenos espíritas e a maneira pela qual se
estabelecem as relações entre encarnados e desencarnados. As instruções podem
ser transmitidas por diversos meios: pela inspiração pura e simples, pela
audição da palavra, pela vista dos Espíritos instrutores nas visões e
aparições, quer em sonho, quer em vigília, como se veem muitos exemplos na
Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos. É, pois,
rigorosamente exato dizer que a maioria dos reveladores são médiuns inspirados,
auditivos ou videntes, de onde não se segue que todos os médiuns sejam
reveladores e ainda menos que sejam intermediários diretos da Divindade ou de
seus mensageiros.
10.
─ Só os puros Espíritos recebem a palavra de
Deus com a missão de retransmiti-la. Mas sabe-se agora que os Espíritos estão
longe de ser todos perfeitos, e que há Espíritos que tomam falsas aparências. É
isto que levou São João a dizer: “Não creiais em todo Espírito, mas vede antes
se os Espíritos são de Deus.” (1ª Ep. Cap. IV, vers. 1)
Pode, pois, haver revelações sérias e verdadeiras, como há
apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação manchada
de erro ou sujeita a mudança não pode emanar de Deus. É assim que a lei do
Decálogo tem todos os caracteres de sua origem, ao passo que as outras leis
mosaicas, essencialmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do
Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. Abrandando-se os
costumes do povo, essas leis por si mesmas caíram em desuso, ao passo que o
Decálogo permaneceu de pé, como o farol da Humanidade. O Cristo dele fez a base
de seu edifício, ao passo que aboliu as outras leis. Se estas tivessem sido
obra de Deus, ele teria evitado tocá-las. O Cristo e Moisés são os dois grandes
reveladores que mudaram a face do mundo, e aí está a prova de sua missão
divina. Uma obra puramente humana não teria tal poder.
11.
─ Uma importante revelação se realiza na época
atual. É a que nos mostra a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do
mundo espiritual. Esse conhecimento não é novo, sem dúvida, mas até os nossos
dias tinha ficado, de certo modo, no estado de letra morta, isto é, sem
proveito para a Humanidade. A ignorância das leis que regem essas relações as
havia abafado sob a superstição; o homem era incapaz de retirar delas qualquer
dedução salutar. Estava reservado à nossa época desembaraçá-la de seus acessórios
ridículos, de compreender o seu alcance e de fazer jorrar a luz que devia
iluminar os caminhos do futuro.
12.
─ Tendo o Espiritismo dado a conhecer o mundo
invisível que nos cerca, em cujo meio vivemos sem nos darmos conta, as leis que
o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e os estado dos seres
que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem após a morte, fez uma
verdadeira revelação, na acepção científica do vocábulo.
13.
─ Por sua natureza, a revelação espírita tem um
duplo caráter. Ela participa, ao mesmo tempo, da revelação divina e da
revelação científica. Participa da primeira porque o seu surgimento é
providencial, e não o resultado da iniciativa e de um desígnio premeditado do
homem; porque os pontos fundamentais da Doutrina são o fato do ensino dado
pelos Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens sobre coisas que
estes ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que hoje lhes importa
conhecer, pois estão amadurecidos para compreendê-las. Participa da segunda porque
esse ensino não é privilégio de nenhum indivíduo, mas é dado a todo mundo pela
mesma via; porque os que o transmitem e os que o recebem não são seres passivos, dispensados do trabalho de
observação e de pesquisa; porque eles não prescindem de seu raciocínio e de seu
livre-arbítrio; porque o controle não lhes é interdito, mas, ao contrário,
recomendado; enfim, porque a Doutrina não
foi ditada peça por peça, nem imposta à crença cega;porque ela é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos
fatos que os Espíritos põem sob os seus olhos e das instruções que lhe dão,
instruções que ele estuda, comenta, compara, e das quais ele próprio tira as
consequências e as aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é que a sua fonte é divina; que
a iniciativa pertence aos Espíritos e que a elaboração é produto do trabalho do
homem.
14.
─ Como meio de elaboração, o Espiritismo procede
exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, isto é, aplica o método
experimental. Apresentamse fatos de uma ordem nova, que não podem ser
explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara-os, analisa-os, e dos
efeitos remontando às causas, chega à lei que os rege, depois deduz as suas
consequências e busca as suas aplicações úteis. Não estabelece qualquer teoria preconcebida. Assim, não apresentou
como hipótese nem a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o
perispírito, nem a reencarnação, nem nenhum dos princípios da Doutrina. Ele
concluiu pela existência dos Espíritos quando essa existência ressaltou com
evidência da observação dos fatos, e assim com os outros princípios. Não foram
os fatos que vieram de súbito confirmar a teoria, mas a teoria que veio
subsequentemente explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato
dizer que o Espiritismo é uma ciência de observação e não o produto da
imaginação.
15.
─ Citemos um exemplo. No mundo dos Espíritos
passa-se um fato muito singular, e que seguramente ninguém teria suspeitado: é
o de Espíritos que não se julgam mortos. Ora! Os Espíritos superiores, que
sabem disso perfeitamente, não vieram dizer por antecipação: “Há Espíritos que
ainda creem viver a vida terrena; que conservaram seus gostos, seus hábitos e
seus instintos.” Mas provocaram a manifestação de Espíritos dessa categoria,
para que os observássemos. Tendo, pois, visto Espíritos incertos de seu estado,
ou afirmando que ainda estavam neste mundo e crendo entregar-se às suas
ocupações ordinárias, do exemplo deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos
análogos provou que não era uma exceção, mas uma das fases da vida espírita;
permitiu estudar todas as variedades e as causas dessa singular ilusão;
reconhecer que essa situação é própria, sobretudo dos Espíritos pouco
adiantados moralmente, e que ela é particular a certos gêneros de morte; que é
apenas temporária, mas pode durar dias, meses ou anos. Foi assim que a teoria
nasceu da observação. Deu-se o mesmo com todos os outros princípios da
Doutrina.
16.
─ Assim como a Ciência propriamente dita tem por
objetivo o estudo das leis do princípio material, o objetivo especial do
Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual. Ora, como este
último princípio é uma das forças da Natureza, que ele reage incessantemente
sobre o princípio material, e reciprocamente, daí resulta que o conhecimento de
um não pode ser completo sem o conhecimento do outro; que o Espiritismo e a
Ciência se completam mutuamente; que a Ciência sem o Espiritismo se acha na
impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; que é
por haver feito abstração do princípio espiritual que ela se deteve em tão
numerosos impasses; que o Espiritismo sem a Ciência estaria sem apoio e
controle e poderia acalentar ilusões. Se o Espiritismo tivesse vindo antes das
descobertas científicas, teria sido uma obra abortada, como tudo quanto vem
antes de seu tempo.
17.
─ Todas as ciências se encadeiam e se sucedem
numa ordem racional. Elas nascem umas das outras, à medida que encontram um
ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores. A Astronomia, uma das
primeiras a ser cultivada, permaneceu nos erros da infância até o momento em
que a Física veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; nada podendo
sem a Física, a Química devia sucedêla de perto, para em seguida avançar lado a
lado, apoiando-se uma na outra. A Anatomia, a Fisiologia, a Zoologia, a
Botânica, a Mineralogia só se tornaram ciências sérias com o auxílio das luzes
trazidas pela Física e pela Química. A Geologia, nascida ontem, sem a
Astronomia, a Física, a Química e todas as outras, não teria tido os seus
verdadeiros elementos de vitalidade, portanto, só poderia vir depois.
18.
─ A Ciência moderna fez justiça aos quatro
elementos primitivos dos Antigos e, de observação em observação, chegou à
concepção de um só elemento gerador de
todas as transformações da matéria. Mas a matéria, por si mesma, é inerte; ela
não tem vida nem pensamento nem sentimento; é-lhe necessária a união com o
princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu nem inventou esse princípio,
mas foi o primeiro a demonstrá-lo por provas irrefutáveis; estudou-o,
analisou-o e tornou evidente a sua ação. Ao
elemento material veio juntar o
elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual, eis, de agora em diante, os dois princípios,
as duas forças vivas da Natureza. Pela união indissolúvel desses dois
elementos, explica-se sem esforço uma porção de fatos até agora inexplicáveis.
Por sua própria essência, e como tendo por objetivo o
estudo de um dos dois elementos constitutivos do Universo, o Espiritismo
forçosamente toca na maior parte das ciências. Ele não podia vir senão após a
elaboração dessas ciências, e sobretudo depois que elas tivessem provado sua
impossibilidade de tudo explicar só pelas leis da matéria.
19.
─ Acusam o Espiritismo de aparentado com a magia
e a feitiçaria; mas esquecem que a Astronomia tem como irmã mais velha a
astrologia judiciária, que não está tão afastada de nós; que a Química é filha
da Alquimia, da qual nenhum homem sensato hoje ousaria ocupar-se. Contudo,
ninguém nega que na Astrologia e na Alquimia havia o germe das verdades de onde
saíram as ciências atuais. A despeito de suas fórmulas ridículas, a Alquimia
pôs no caminho dos corpos simples e da lei das afinidades; a Astrologia se
apoiava na posição e no movimento dos astros que ela havia estudado. Mas, na
ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo do Universo, os astros
eram para o vulgo seres misteriosos, aos quais a superstição emprestava uma
influência moral e um sentido revelador. Quando Galileu, Newton, Kepler deram a
conhecer essas leis; quando o telescópio rasgou o véu e mergulhou nas
profundezas do espaço um olhar que certas pessoas acharam indiscreto, os
planetas nos apareceram como simples mundos semelhantes ao nosso, e se
esboroaram todos os andaimes do maravilhoso.
Dá-se o mesmo com o Espiritismo em relação à magia e à
feitiçaria. Estas também se apoiavam na manifestação dos Espíritos, como a
Astrologia no movimento dos astros; mas, na ignorância das leis que regem o
mundo espiritual, a essas relações elas misturavam práticas e crenças
ridículas, às quais faz justiça o Espiritismo moderno, fruto da experiência e
da observação. Seguramente, a distância que separa o Espiritismo da magia e da
feitiçaria é maior que a que existe entre a Astronomia e a Astrologia, a
Química e a Alquimia. Querer confundi-las é provar que se ignora o á-bê-cê.
20.
─ Só o fato da possibilidade de comunicação com
os seres do mundo espiritual tem consequências incalculáveis, da mais alta
importância. É todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais
importância pelo fato de atingir todos os homens, sem exceção. Esse conhecimento
não pode deixar de trazer, generalizando-se, uma profunda modificação nos
costumes, no caráter, nos hábitos e nas crenças que têm tamanha influência nas
relações sociais. É toda uma revolução que se opera nas ideias, revolução tanto
maior e mais poderosa porque não fica circunscrita a um povo, a uma casta, mas,
pelo coração, atinge todas as classes, todas as nacionalidades, todos os
cultos.
É, pois, com razão que o Espiritismo é considerado como a
terceira grande revelação. Vejamos em que elas diferem e por quais laços elas
se ligam uma à outra.
21.
─ Como profeta, Moisés revelou aos homens o conhecimento de um Deus único, soberano
senhor e criador de todas as coisas; ele promulgou a lei do Sinai e lançou os
fundamentos da verdadeira fé; como homem, foi o legislador do povo, pelo qual
essa fé primitiva, depurando-se, devia um dia espalhar-se por toda a Terra.
22.
─ O
Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e divino, rejeitando o que
apenas era transitório, puramente disciplinar e de concepção humana,
acrescentou à revelação da vida futura, da
qual Moisés não havia falado, a das penas e recompensas que esperam o homem
depois da morte (Vide Revista Espírita
de 1861).
23.
─ A parte mais importante da revelação do
Cristo, no sentido que ela é a fonte primeira, a pedra angular de toda a sua
doutrina, é o ponto de vista inteiramente novo, sob o qual ele faz encarar a
Divindade. Não é mais o Deus terrível, ciumento e vingativo de Moisés, o Deus
cruel e impiedoso que rega a Terra com o sangue humano; que ordena o massacre e
o extermínio dos povos, sem excetuar as mulheres, as crianças e os velhos; que
castiga os que poupam as vítimas; não é mais o Deus injusto que pune todo um
povo pela falta de seu chefe; que se vinga do culpado na pessoa do inocente;
que fere os filhos pela falta de seus pais, mas um Deus clemente, soberanamente
bom e justo, cheio de mansuetude e de misericórdia, que perdoa o pecador
arrependido e dá a cada um segundo as
suas obras;não é mais o Deus de
um só povo privilegiado, o Deus dos exércitos
que preside os combates para sustentar a sua própria causa contra o Deus
dos outros povos, mas o pai comum do gênero humano, que estende a sua proteção
a todos os seus filhos e os chama todos a si; não é mais o Deus que recompensa
e castiga apenas com os bens terrenos; que faz consistir a glória e a
felicidade na escravização dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura,
mas que diz aos homens: “Vossa verdadeira pátria não é neste mundo, é no reino
celeste; é lá que os humildes de coração serão elevados e os orgulhosos
rebaixados.” Não é mais o Deus que faz da vingança uma virtude e que determina
retribuir olho por olho e dente por dente, mas o Deus de misericórdia que diz:
“Perdoai as ofensas, se quiserdes ser perdoados; fazei o bem pelo mal; não
façais a outrem o que não quereis que vos façam.” Não é mais o Deus mesquinho e
meticuloso que impõe, sob as mais rigorosas penas, a maneira pela qual quer ser
adorado; que se ofende com a inobservância de uma fórmula, mas o Deus grande,
que olha o pensamento e não se honra com a forma; enfim não é mais o Deus que
quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado.
24.
─ Sendo Deus o centro de todas as crenças
religiosas, o objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões é conforme à ideia que elas dão de Deus. As
que dele fazem um Deus vingativo e cruel, creem honrá-lo por atos de crueldade,
pelas fogueiras e pelas torturas; as que dele fazem um Deus parcial e ciumento,
são intolerantes; são mais ou menos meticulosas na forma, segundo o creem mais
ou menos maculado pelas fraquezas e pequenezas humanas.
25.
─ Toda a doutrina do Cristo está fundada no
caráter que ele atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente
justo, bom e misericordioso, ele pôde fazer do amor a Deus e da caridade para
com o próximo a condição expressa da salvação, e dizer: Aí estão toda a lei e os profetas, e não há outra. Apenas sobre
essa crença ele pôde assentar o princípio da igualdade dos homens perante Deus,
e da fraternidade universal.
Essa revelação dos verdadeiros atributos da Divindade,
acrescida pela da imortalidade da alma e da vida futura, modificava
profundamente as relações mútuas dos homens, impondo-lhes novas obrigações,
fazendo-os encarar a vida presente sob uma outra luz. Era, por isto mesmo, toda
uma revolução nas ideias, revolução que forçosamente devia reagir sobre os
costumes e as relações sociais. Por suas consequências, é incontestavelmente o
mais importante ponto da revelação do Cristo, cuja importância ainda não foi
suficientemente compreendida. É lamentável dizê-lo, mas é também aquele do qual
mais se afastavam, que mais foi desconhecido na interpretação de seus
ensinamentos.
26.
─ Contudo, o Cristo acrescenta: Muitas das
coisas que vos digo não podeis compreender agora, e eu teria muitas outras a vos
dizer que não compreenderíeis. É por isso que vos falo por parábolas, porém,
mais tarde eu vos enviarei o Consolador, o
Espírito de Verdade, que restabelecerá
todas as coisas e vo-las explicará todas.
Se o Cristo não disse tudo o que poderia ter dito, é que
ele julgou que deveria deixar certas verdades na sombra, até que os homens
estivessem em condições de compreendê-las. Por sua confissão, seu ensino,
então, era incompleto, porquanto ele anuncia a vinda daquele que deve
completá-la. Assim, ele previa que se enganassem quanto às suas palavras; que
desviassem o seu ensino; numa palavra, que desfizessem o que ele havia feito,
pois todas as coisas devem ser restabelecidas. Ora, só se restabelece o que foi desfeito.
27.
─ Por que chama ele o novo messias Consolador?Este nome significativo e
sem ambiguidade é toda uma revelação. Ele
previa, portanto, que os homens necessitariam de consolações, o que implica a
insuficiência das que eles encontrariam na crença que iam adquirir. Talvez
jamais o Cristo tenha sido mais claro e mais explícito do que nestas últimas
palavras, às quais poucas pessoas prestaram atenção, talvez porque tivessem
evitado trazê-las à luz e aprofundar o seu sentido profético.
28.
─ Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino
de maneira completa, é que faltavam aos homens conhecimentos que só com o tempo
poderiam adquirir, e sem os quais eles não podiam compreendê-lo. Há coisas que
teriam parecido insensatas, no estado dos conhecimentos de então. Completar,
pois, o seu ensino deve entender-se no sentido de explicar e desenvolver, muito
mais do que no de acrescentar verdades novas, porque ali tudo se encontra em
germe. Faltava a chave para compreender o sentido de suas palavras.
29.
─ Mas quem ousa permitir-se interpretar as
Escrituras Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as luzes necessárias
senão os teólogos? Quem o ousa? Para começar, a Ciência, que a ninguém pede
permissão para dar a conhecer as leis da Natureza, e pula por cima dos erros e
preconceitos. ─ Quem tem esse direito? No século da emancipação intelectual e
de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todos, e as
Escrituras não mais são a Arca da Aliança na qual ninguém ousa tocar sem
arriscar-se a ser fulminado. Quanto às luzes especiais necessárias, sem
contestar as dos teólogos e, por mais esclarecidos que estes fossem na Idade
Média, e em particular os Pais da Igreja, eles contudo ainda não o eram
bastante para não condenar como heresias o movimento da Terra e a crença nos
antípodas; e sem ir tão longe, os dos nossos dias não lançaram anátema aos
períodos da formação da Terra?
Os homens não puderam explicar as Escrituras senão com o
auxílio do que sabiam, das noções falsas ou incompletas que tinham sobre as
leis da Natureza, mais tarde reveladas pela Ciência. Eis por que os próprios
teólogos puderam, de muito boa-fé, equivocar-se quanto ao sentido de certas
palavras e de certos fatos do Evangelho. Querendo a todo custo aí encontrar a
confirmação de um pensamento preconcebido, andavam sempre em círculo, sem
deixar seu ponto de vista, de tal sorte que aí só viam o que queriam ver. Por
mais sábios que fossem esses teólogos, não podiam compreender as causas que
dependem de leis que eles desconheciam.
Mas quem será juiz das interpretações diversas e muitas
vezes contraditórias dadas fora da teologia? ─ O futuro, a lógica e o
bom-senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos, à medida que novos fatos e
novas leis vierem revelar-se, saberão separar os sistemas utópicos da
realidade. Ora, a Ciência dá a conhecer certas leis; o Espiritismo revela
outras; umas e outras são indispensáveis à inteligência dos textos sagrados de
todas as religiões, desde Confúcio e Buda até o Cristianismo. Quanto à
Teologia, ela não poderia judiciosamente alegar contradições da Ciência, quando
nem sempre está de acordo consigo mesma.
30.
─ Partindo o Espiritismo das próprias palavras
do Cristo, assim como o Cristo partiu das palavras de Moisés, ele é uma
consequência direta de sua doutrina.
À ideia vaga da vida futura, ele alia a revelação da
existência do mundo invisível que nos rodeia e povoa o espaço, e a partir daí
precisa a crença; dá-lhe um corpo, uma consistência, uma realidade no
pensamento.
Ele define os laços que unem alma e corpo, e ergue o véu
que ocultava aos homens os mistérios do nascimento e da morte. Por meio do Espiritismo, o homem sabe de onde vem, para onde vai, por que está na Terra,
por que aí sofre temporariamente, e por toda parte vê a justiça de Deus.
Ele sabe que a alma progride sem cessar através de uma série
existências sucessivas, até que tenha atingido o grau de perfeição que pode
aproximá-la de Deus.
Sabe que todas as almas, tendo o mesmo ponto de partida,
são criadas iguais, com uma mesma aptidão para progredir, em virtude de seu
livre-arbítrio; que todas são da mesma essência, e que entre elas há apenas a
diferença do progresso realizado; que todas têm o mesmo destino e atingirão o
mesmo objetivo, mais ou menos rapidamente, conforme seu trabalho e sua boa vontade.
Ele sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais
favorecidas umas que as outras; que Deus não criou umas privilegiadas e
dispensadas do trabalho imposto a outras para progredir; que não há seres
perpetuamente votados ao mal e ao sofrimento; que aqueles designados sob o nome
de demônios são Espíritos ainda
atrasados e imperfeitos, que fazem o mal no estado de Espíritos, como o faziam
no estado de homens, mas que progredirão e melhorarão; que os anjos ou puros
Espíritos não são seres à parte na criação, mas Espíritos que atingiram o
objetivo, depois de haverem seguido a fieira do progresso; que assim, não há
criações múltiplas de diferentes classes entre os seres inteligentes, mas que
toda a criação surge da grande lei de unidade que rege o Universo, e que todos
os seres gravitam para um fim comum, que é a perfeição, sem que uns sejam
favorecidos à custa de outros, pois todos são filhos de suas próprias obras.
31.
─ Pelas relações que agora o homem pode
estabelecer com os que deixaram a Terra, há não só a prova material da
existência e da individualidade da alma, mas ele compreende a solidariedade que
liga os vivos e os mortos deste mundo e os deste mundo com os de outros mundos.
Ele conhece a sua situação no mundo dos Espíritos; segue-os nas suas migrações;
é testemunha de suas alegrias e de suas penas; sabe por que são felizes ou
infelizes, e a sorte que o espera, conforme o bem ou o mal que haja feito.
Essas relações o iniciam à vida futura, que ele pode observar em todas as suas
fases, em todas as suas peripécias; o futuro não é mais uma vaga esperança: é
um fato positivo, uma certeza matemática. Então a morte nada mais tem de
apavorante, porque é para ele a libertação, a porta da verdadeira vida.
32.
─ Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem
sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau
de perfeição e de imperfeição; que cada um sofre as consequências diretas e
naturais de suas falhas, isto é, que é punido por onde pecou; que essas
consequências duram tanto quanto a causa que as produziu; que, assim, o culpado
sofreria eternamente, se eternamente persistisse no mal, mas que o sofrimento
cessa com o arrependimento e a reparação. Ora, como depende de cada um se
melhorar, cada um pode, em virtude de seu livre-arbítrio, prolongar ou abreviar
os seus sofrimentos, como o doente sofre por seus excessos até que neles ponha
um termo.
33.
─ Se a razão repele, como incompatível com a
bondade de Deus, a ideia das penas irremissíveis, perpétuas e absolutas, muitas
vezes infligidas por uma única falta; os suplícios do inferno, que não podem
ser abrandados pelo mais ardente e pelo mais sincero arrependimento, ela se
inclina ante essa justiça distributiva e imparcial que tudo leva em conta; que
jamais fecha a porta de retorno e incessantemente estende a mão ao náufrago, em
vez de empurrá-lo para o abismo.
34.
─ A pluralidade das existências, cujo princípio
o Cristo estabeleceu no Evangelho, embora sem defini-lo mais que muitos outros,
é uma das mais importantes leis reveladas pelo Espiritismo, no sentido em que
demonstra a sua realidade e a sua necessidade para o progresso. Por essa lei, o
homem compreende todas as aparentes anomalias que apresenta a vida humana; as
diferenças de posição social; as mortes prematuras que, sem a reencarnação, tornariam
inúteis para a alma as vidas abreviadas; a desigualdade das aptidões
intelectuais e morais, pela ancianidade do Espírito, que viveu mais ou menos,
mais ou menos aprendeu e progrediu, e que, renascendo, traz o que adquiriu nas
vidas anteriores. (Nº 5)
35.
─ Com a doutrina da criação da alma em cada
nascimento, cai-se no sistema das criações privilegiadas: Os homens são
estranhos uns aos outros; nada os une, e os laços de família são puramente
carnais. Eles não são solidários de um passado em que não existiam. Com o do
nada após a morte, toda relação cessa com a vida; eles não são solidários no
futuro. Pela reencarnação, eles são solidários no passado e no futuro.
Perpetuando-se as suas relações no mundo espiritual e no mundo corporal, a
fraternidade tem por base as próprias leis da Natureza; o bem tem um objetivo,
o mal as suas inevitáveis consequências.
36.
─ Com a reencarnação caem os preconceitos de
raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, nobre ou
proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos
os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra
a sujeição da mulher à lei do mais forte, não há nenhum que supere em lógica o
fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda sobre uma lei da
Natureza o princípio da fraternidade universal, funda sobre a mesma lei o da
igualdade dos direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.
Os homens não nascem inferiores e subordinados senão pelo
corpo; pelo Espírito eles são iguais e livres. Daí o dever de tratar os
inferiores com bondade, benevolência e humanidade, porque aquele que é nosso
subordinado hoje pode ter sido nosso igual ou nosso superior, talvez um parente
ou um amigo, e que, por nossa vez, poderemos vir a ser subordinado daquele a
quem comandamos.
37.
─ Tirai do homem o espírito livre, independente,
sobrevivente à matéria, e dele fazeis uma máquina organizada, sem objetivo, sem
responsabilidade, sem outro freio senão a lei civil, e boa de explorar como um animal
inteligente. Nada esperando após a morte, nada o detém para aumentar os
prazeres do presente; se sofre, não tem em perspectiva senão o desespero e o
nada como refúgio. Com a certeza do futuro, a de reencontrar aqueles a quem
amou, o medo de rever aqueles a quem
ofendeu, todas as suas ideias mudam. Se o Espiritismo não tivesse feito
senão tirar o homem da dúvida em relação à vida futura, teria feito mais por
seu melhoramento moral do que todas as leis disciplinares que por vezes o
contêm, mas não a transformam.
38.
─ Sem a preexistência da alma, a doutrina do
pecado original não só é inconciliável com a justiça de Deus, que tornaria
todos os homens responsáveis pela falta de um só, ela seria uma insensatez
muito menos justificável porque a alma não existia na época à qual se pretende
fazer remontar a sua responsabilidade. Com a preexistência e a reencarnação, ao
nascer o homem traz o germe de suas passadas imperfeições, dos defeitos de que
não se corrigiu, que se traduzem por seus instintos inatos suas propensões para
tal ou qual vício. Aí está o seu verdadeiro pecado original, do qual
naturalmente sofre todas as consequências, mas com a diferença capital que
sofre a pena de suas próprias faltas e não a da falta de outrem; e esta outra
diferença, ao mesmo tempo consoladora, encorajadora e soberanamente equitável,
que cada existência lhe oferece os meios de se resgatar pela reparação e de
progredir, quer se despojando de alguma imperfeição, quer adquirindo novos
conhecimentos, e isto até que se tendo purificado suficientemente, não mais
necessite da vida corporal e possa viver exclusivamente a vida espiritual,
eterna e bem-aventurada.
Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente traz, ao
renascer, qualidades inatas, assim como aquele que progrediu intelectualmente
traz ideias inatas; ele está identificado com o bem; pratica-o sem esforço, sem
cálculo e, por assim dizer, sem pensar. Aquele que é obrigado a combater as
suas más tendências, ainda está na luta; o primeiro já venceu, o segundo está a
caminho de vencer. A mesma causa produz o pecado original e a
virtude original.
39.
─ O Espiritismo experimental estudou as
propriedades dos fluidos espirituais e sua ação sobre a matéria. Demonstrou a
existência do perispírito, suspeitado
desde a Antiguidade, e designado por São Paulo sob o nome de Corpo Espiritual, isto é, corpo fluídico
da alma após a destruição do corpo tangível. Sabese hoje que esse envoltório é
inseparável da alma; que é um dos elementos constitutivos do ser humano; que é
o veículo de transmissão do pensamento e que, durante a vida do corpo, serve de
ligação entre o Espírito e a matéria. O perispírito exerce um papel importante
no organismo e numa porção de afecções, pelo que ele se liga tanto à Fisiologia
quanto à Psicologia.
40.
─ O estudo das propriedades do perispírito, dos
fluidos espirituais e dos atributos fisiológicos da alma, abre novos horizontes
à Ciência, e dá a chave de uma porção de fenômenos até agora incompreendidos
por falta do conhecimento da lei que os rege, fenômenos negados pelo materialismo,
porque se ligam à espiritualidade, qualificados por outros de milagres ou
sortilégios, conforme as crenças. Tais são, entre outros, os fenômenos da dupla
vista, da visão à distância, do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos
psíquicos de catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das
aparições, das transfigurações, da transmissão do pensamento, da fascinação,
das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Demonstrando que esses
fenômenos repousam em leis tão naturais quanto os fenômenos elétricos, bem como
as condições normais em que se podem reproduzir, o Espiritismo destrói o
império do maravilhoso e do sobrenatural e, por conseguinte, a fonte da maior
parte das superstições. Se enseja a crença na possibilidade de certas coisas
vistas por alguns como quiméricas, ele impede a crença em muitas outras,
demonstrando a sua impossibilidade e a sua irracionalidade.
41.
─ Longe de negar ou destruir o Evangelho, o
Espiritismo vem, ao contrário, confirmar, explicar e desenvolver, pelas novas
leis da Natureza que ele revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; projeta luz
sobre pontos obscuros de seu ensino, de tal modo que aqueles para os quais
certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem sem
esforço com o auxílio do Espiritismo, e as admitem. Eles veem melhor o seu
alcance e podem separar a realidade da alegoria. O Cristo lhes parece maior,
porque não é mais um simples filósofo, mas um Messias divino.
42.
─ Se considerarmos, além disso, o poder
moralizador do Espiritismo, pelo fim que ele assinala a todas as ações da vida,
pelas consequências do bem e do mal que ele torna palpáveis; a força moral, a
coragem, as consolações que ele dá nas aflições por uma inalterável confiança
no futuro, pelo pensamento de ter perto de si os seres que foram amados, pela
segurança de revê-los, pela possibilidade de comunicar-se com eles, enfim, pela
certeza que de tudo quanto se faz, de tudo quanto se adquire em inteligência,
em ciência, em moralidade, até a última
hora da vida, nada fica perdido; que tudo concorre para o adiantamento,
reconhecer-se-á que o Espiritismo realiza todas as promessas do Cristo a
respeito do Consolador anunciado.
Ora, como é o Espírito de Verdade que
preside ao grande movimento da regeneração, a promessa de seu advento se acha
realizada, porque, de fato, ele é o verdadeiro Consolador. [1]
43.
─ Se a esses resultados acrescentarmos a
incrível rapidez da propagação do Espiritismo, malgrado tudo quanto têm feito
para abatê-lo, não se pode discordar que sua vinda seja providencial, porquanto
ele triunfa de todas as forças e de toda má vontade humana. A facilidade com a
qual é aceito por tão grande número, e isto sem constrangimento e sem outros
recursos além do poder da ideia, prova que ele corresponde a uma necessidade: a
de crer, depois do vazio cavado pela incredulidade e que, consequentemente, veio
no devido tempo.
44.
─ Os aflitos são em grande número, portanto, não
é surpreendente que tanta gente acolha uma doutrina que consola, de preferência
às que desesperam, porque é aos deserdados, mais que aos felizes do mundo, que
se dirige o Espiritismo. O doente vê chegar o médico com mais alegria que
aquele que passa bem. Ora, os aflitos são doentes e o Consolador é o médico.
Vós que combateis o Espiritismo, se quiserdes que as
pessoas o deixem para seguir-vos, dai mais e melhor do que ele; curai mais seguramente
as feridas da alma; fazei como o negociante que, para lutar contra um
concorrente, dá mercadoria de melhor qualidade e a menor preço. Dai, pois, mais
consolações, mais satisfações do coração, esperanças mais legítimas, certezas
maiores; fazei do futuro um quadro mais racional mais sedutor, mas não penseis
em vencê-lo com o perspectiva do nada, com a alternativa das chamas do inferno
ou da beata e inútil contemplação perpétua. Que diríeis do negociante que
chamasse de loucos todos os fregueses
que não querem sua mercadoria e vão ao vizinho? Fazeis o mesmo taxando de
loucura e inépcia todos os que não querem vossas doutrinas que eles cometem o
erro de não achar de seu gosto. [2]
45.
─ A primeira revelação era personificada em
Moisés, a segunda no Cristo, a terceira não é em nenhum indivíduo. As duas
primeiras são individuais, a terceira é coletiva; eis um caráter essencial de
grande importância. Ela é coletiva no sentido que não foi feita por privilégio
a ninguém; que ninguém, consequentemente, pode dizer-se seu profeta exclusivo.
Ela foi feita simultaneamente em toda a Terra, a milhões de pessoas de todas as
idades, de todos os tempos e de todas as condições sociais, desde o primeiro
até o último degrau da escada, segundo esta predição exarada pelo autor dos
Atos dos Apóstolos: “Nos últimos tempos, diz o Senhor, eu espalharei o meu
espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos
moços terão visões e vossos velhos terão sonhos.” Ela não saiu de nenhum culto
especial, a fim de servir um dia a todos de ponto de ligação [3]
46.
─ Sendo as duas primeiras revelações produto de
um ensinamento pessoal, forçosamente foram localizadas, isto é, ocorreram num
só ponto, em torno do qual a ideia se espalhou pouco a pouco. Mas foram
precisos muitos séculos para que atingissem as extremidades do mundo, sem
invadi-lo inteiramente. A terceira tem de particular que, não estando
personificada num indivíduo, produziu-se simultaneamente em milhares de pontos
diversos, os quais se tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se
esses centros, seus raios se encontram pouco a pouco, como os círculos formados
por uma porção de pedras atiradas na água, de tal sorte que, num dado tempo,
acabarão cobrindo toda a superfície do globo.
Tal é uma das causas da rápida propagação da doutrina. Se ela tivesse surgido
num só ponto, se tivesse sido obra exclusiva de um homem, teria formado uma seita
em seu redor. Talvez mais de meio século tivesse decorrido antes que ela tivesse
atingido os limites do país onde surgiu, ao passo que em dez anos ela tem balizas
plantadas de um pólo ao outro.
47.
─ Essa circunstância singular na história das
doutrinas dá a esta uma força excepcional e um poder de ação irresistível. Com
efeito, se a reprimirem num ponto, num país, é materialmente impossível
reprimi-la em todos os pontos, em todos os países. Para um lugar onde for
entravada, haverá mil ao lado onde ela florescerá. Ainda mais, se a atingirem
num indivíduo, não poderão atingi-la nos Espíritos, que são a sua fonte. Ora,
como os Espíritos estão em toda parte e sempre existirão, se,─ o que nos parece
impossível ─ chegassem a abafá-la em todo o globo, ela reapareceria algum tempo
depois, porque repousa sobre um fato, e
esse fato está na Natureza e não se podem suprimir as leis da Natureza. Eis
de que se devem persuadir os que sonham com o aniquilamento do Espiritismo. (Revista Espírita, fevereiro de 1865: Perpetuidade do Espiritismo).
48.
─ Entretanto, esses centros disseminados
poderiam ter ficado ainda muito tempo isolados uns dos outros, já que alguns
são confinados em regiões distantes. Era preciso entre eles um traço de união
que os pusesse em comunhão de pensamentos com seus irmãos em crença,
ensinando-lhes o que se fazia alhures. Esse traço de união, que teria faltado
ao Espiritismo na Antiguidade, acha-se nas publicações que vão a toda parte,
que condensam, sob uma forma única, concisa e metódica, o ensinamento dado em
toda parte sob formas múltiplas e em línguas diversas.
49.
─ As duas primeiras revelações não podiam ser
senão o resultado de um ensino direto; deviam impor-se à fé pela autoridade da
palavra do mestre, pois os homens não eram bastante adiantados para
participarem da sua elaboração.
Contudo, notemos entre elas uma nuança muito palpável, que
diz respeito ao progresso dos costumes e das ideias, embora tenham sido feitas
no mesmo povo e no mesmo meio, mas com cerca de dezoito séculos de intervalo. A
doutrina de Moisés é absoluta, despótica; não admite discussão e se impõe a
todo o povo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; éaceita,
livremente e não se impõe senão pela persuasão; é controvertida ainda em vida
de seu fundador, que não se recusava a discutir com os adversários.
50.
─ A terceira revelação veio numa época de
emancipação e de maturidade intelectual, em que a inteligência desenvolvida não
se pode reduzir a um papel passivo, em que o homem nada aceita cegamente, mas
quer ver aonde o conduzem, saber por que e como se dá cada coisa; devia ser, ao
mesmo tempo, o produto de um ensino e o fruto do trabalho, da pesquisa e do
livre exame. Os Espíritos só ensinam precisamente o que é necessário para
trilhar o caminho da verdade, mas se abstêm de revelar o que o homem pode
descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, de controlar e de
submeter tudo ao cadinho da razão, muitas vezes até o deixando adquirir a
experiência à própria custa. Eles lhe dão o princípio, os materiais,
cabendo-lhe deles tirar proveito e pô-los à obra (nº 15).
51.
─ Tendo os elementos da revelação espírita sido
dados simultaneamente numa porção de lugares, a homens de todas as condições
sociais e de diversos graus de instrução, é bem evidente que as observações não
podiam ser feitas em toda parte com os mesmos resultados; que as consequências
a delas tirar, a dedução das leis que regem essa ordem de fenômenos, numa
palavra, a conclusão que devia assentar as ideias, não podiam sair senão do
conjunto e da correlação dos fatos. Ora, cada centro isolado, circunscrito num
círculo restrito, o mais das vezes não vendo senão uma ordem particular de
fatos por vezes aparentemente contraditórios, geralmente não tratando senão com
uma mesma categoria de Espíritos e além disso entravado pelas influências
locais e pelo espírito de partido, achava-se na impossibilidade material de
abarcar o conjunto e, por isso mesmo, impotente para ligar as observações
isoladas a um princípio comum. Cada um apreciando os fatos do ponto de vista de
seus conhecimentos e de suas crenças anteriores, ou da opinião particular dos
Espíritos que se manifestam, em breve haveria tantas teorias e sistema quantos
centros, dos quais nenhum poderia ter sido completo, por falta de elementos de
comparação e de controle.
52.
─ É de notar, ainda, que em parte alguma o
ensinamento espírita foi dado de maneira completa. Ele compreende tão grande
número de observações, em assuntos tão diversos que tanto exigem conhecimentos
quanto aptidões mediúnicas especiais, que teria sido impossível reunir num
mesmo ponto todas as condições necessárias. Devendo o ensinamento ser coletivo
e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho disseminando os assuntos de
estudo e de observação, como em certas fábricas a confecção de cada parte de um
mesmo objeto é repartida entre diferentes operários.
Assim, a revelação se fez parcialmente, em diversos lugares
e por uma multidão de intermediários, e é desta maneira que prossegue, ainda
neste momento, porque nem tudo está revelado. Cada centro encontra nos outros
centros o complemento do que recebe, e é o conjunto, a coordenação de todos os
ensinamentos parciais que constituíram a Doutrina
Espírita.
Era, pois, necessário agrupar os fatos esparsos para ter a
sua correlação; reunir os documentos diversos, as instruções fornecidas pelos
Espíritos em todos os lugares e sobre todos os assuntos, para compará-los,
analisá-los, estudar as suas analogias e as suas diferenças. Sendo as
comunicações dadas por Espíritos de todas as ordens, mais ou menos
esclarecidos, era necessário apreciar o grau de confiança que a razão permitia
conceder-lhes; distinguir as ideias sistemáticas individuais e isoladas das que
tinham a sanção do ensino geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas;
eliminar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e
da sadia lógica; utilizar os próprios erros, as informações fornecidas por
Espíritos, mesmo da mais baixa categoria, para o conhecimento do estado do
mundo invisível, e disso formar um todo homogêneo. Numa palavra, era preciso um
centro de elaboração, independente de toda ideia preconcebida, de todo
preconceito de seita, resolvido a aceitar
a verdade tornada evidente, ainda que fosse contrária às suas opiniões
pessoais. Tal centro formou-se por si mesmo, pela força das coisas, e sem desígnio premeditado. [4]
53.
─ Desse estado de coisas resultou uma dupla
corrente de ideias: umas indo das extremidades para o centro, outras retornando
do centro para as extremidades. Foi assim que a doutrina marchou rapidamente
para a unidade, malgrado a diversidade das fontes de onde ela emanou; que os
sistemas divergentes caíram pouco a pouco, em razão do seu isolamento, ante o
ascendente da opinião da maioria, por não encontrar aí ecos simpáticos. Desde
então estabeleceu-se entre os vários centros parciais uma comunhão de
pensamentos; falando a mesma linguagem espiritual, eles se compreendem e
simpatizam de um extremo ao outro do mundo.
Os espíritas acharam-se mais fortes, lutaram com mais
coragem e marcharam com passo mais firme, quando não mais se viram isolados,
quando sentiram um ponto de apoio, um elo que os ligava à grande família. Os
fenômenos que testemunhavam já lhes não pareceram estranhos, anormais,
contraditórios, quando os puderam ligar às leis gerais de harmonia, abarcar de
um golpe de vista o edifício, e ver em todo esse conjunto um objetivo grande e
humanitário. [5]
54.
─ Não há qualquer ciência que tenha saído com
todas as peças do cérebro de um homem. Todas, sem exceção, são o produto de
observações sucessivas apoiando-se em observações precedentes, como num ponto
conhecido para chegar ao desconhecido. Foi assim que os Espíritos procederam
para com o Espiritismo. Eis por que o seu ensino é graduado. Eles não abordam
as questões senão à medida que os princípios sobre os quais elas devem
apoiar-se estejam suficientemente elaborados, e que a opinião esteja madura
para assimilá-los. É mesmo notável que todas as vezes que os centros
particulares quiseram abordar questões prematuras, só obtiveram respostas
contraditórias não concludentes. Quando, ao contrário, chega o momento
favorável, o ensinamento é idêntico em toda a linha, na quase universalidade
dos centros. Contudo, entre a marcha do Espiritismo e a das ciências há uma
diferença capital: é que estas não atingiram o ponto onde chegaram senão depois
de longos intervalos, ao passo que ao Espiritismo bastaram apenas alguns anos,
senão para atingir o ponto culminante, ao menos para recolher uma soma bastante
grande de observações próprias para constituir uma doutrina. Isto se deve à
inumerável multidão de Espíritos que, pela vontade de Deus, se manifestaram
simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus conhecimentos. Disso
resultou que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas
sucessivamente durante vários séculos, o foram mais ou menos simultaneamente em
alguns anos e que bastou agrupá-las para que formassem um todo.
Quis Deus que assim fosse, primeiro para que o edifício
chegasse mais rapidamente à cumeeira; em segundo lugar, para que pudéssemos,
pela comparação, ter um controle por assim dizer imediato e permanente na
universalidade do ensino, cada parte só tendo valor e autoridade pela conexão com o conjunto, devendo todas harmonizar-se
e cada uma chegar a seu tempo e ao seu lugar. Não confiando a um só Espírito o
cuidado da promulgação da doutrina, ele quis, além disso, que o menor, como o
maior, entre os Espíritos como entre os homens, trouxesse sua pedra ao
edifício, a fim de estabelecer entre eles o laço de solidariedade cooperativa
que faltou a todas as doutrinas que saíram de uma fonte única.
Por outro lado, cada Espírito, assim como cada homem, tendo
apenas uma soma limitada de conhecimentos, eram individualmente inábeis para
tratar exprofesso das inumeráveis
questões que o Espiritismo abrange. Eis, igualmente por que a Doutrina, para
cumprir os desígnios do Criador, não podia ser obra nem de um só Espírito nem
de um só médium; não podia sair senão da coletividade dos trabalhos controlados
uns pelos outros. (Vide O Evangelho
segundo o Espiritismo, introdução,
parte VI e Revista Espírita de abril de 1864: Autoridade da Doutrina Espírita; controle universal do ensino dos
Espíritos).
55.
─ Um último caráter da revelação espírita, e que
ressalta das próprias condições em que ela é feita, é que, apoiando-se nos
fatos, ela é, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas
as ciências de observação. Por sua essência, ela contrai aliança com a Ciência
que, sendo a exposição das leis da Natureza numa certa ordem de fatos, não pode
ser contrária à vontade de Deus, o autor dessas leis. As descobertas da Ciência glorificam Deus em vez de rebaixá-lo; elas
não destroem senão o que os homens construíram sobre as ideias falsas que
fizeram de Deus.
O Espiritismo, portanto, não estabelece como princípio
absoluto senão o que é demonstrado com evidência, ou o que ressalta logicamente
da observação. Abrangendo todos os ramos da economia social, aos quais dá o
apoio de suas próprias descobertas, ele assimilará sempre todas as doutrinas
progressivas, sejam de que ordem forem, que tenham atingido o status de verdades práticas e que tenham saído do
domínio da utopia, sem o que ele suicidar-se-ia. Deixando de ser o que é, ele
mentiria à sua origem e ao seu objetivo providencial. Marchando com o progresso, o Espiritismo
jamais será ultrapassado, porque se novas descobertas lhe demonstrassem que
está laborando em erro num ponto, modificar-se-ia nesse ponto; se uma nova
verdade se revela, ela a aceita. [6]
* Este artigo é extraído de uma nova obra que neste momento se acha
no prelo e que aparecerá antes do fim do ano. Uma razão de
oportunidade nos levou a publicar este extrato por antecipação na
Revista. Apesar de sua extensão, julgamos dever inseri-lo de uma vez,
para não interromper o encadeamento das idéias. A obra inteira será
do formato e do volume de O Céu e o Inferno.
[1] Muitos pais de família
deploram a morte prematura de filhos por cuja educação fizeram muitos
sacrifícios e dizem que foi tudo tempo perdido. Com o Espiritismo, eles não
lamentam tais sacrifícios, e estariam prontos a fazê-los, mesmo com a certeza
de verem morrer os filhos, porque sabem que se estes não tiram proveito dessa
educação no presente, ela servirá ao seu avanço como Espíritos, pois será uma
aquisição para uma nova existência, e que quando eles
voltarem, terão uma bagagem intelectual que os tornará mais aptos para adquirir novos conhecimentos. Tais são essas
crianças que ao nascerem trazem ideias inatas, e que sabem, por assim dizer, sem terem tido necessidade de aprender. Se,
como pais, eles não têm a satisfação imediata de ver seus filhos tirarem proveito dessa educação, certamente dela
gozarão mais tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez sejam novamente os pais desses mesmos filhos que
são vistos como dotados pela Natureza, e que devem suas aptidões a uma precedente educação; como também, se esses
filhos se tornam maus por força da negligência de seus pais, estes poderão ter que sofrer mais tarde, pelos
aborrecimentos e desgostos que esses mesmos filhos lhes suscitarão numa nova existência.
[2] O Espiritismo não é contrário à crença dogmática relativa à natureza do Cristo e, neste caso, pode ele dizer-se o
complemento do Evangelho, se o contradiz?
A solução desta questão toca apenas de maneira acessória o Espiritismo, que não tem que se preocupar com
dogmas particulares de tal ou qual religião. Simples doutrina filosófica, não se arvora nem em campeão nem em
adversário sistemático de nenhum culto e deixa a cada um a sua crença.
A questão de natureza do Cristo é capital do ponto de vista cristão. Ela não pode ser tratada levianamente, e não são as opiniões pessoais nem dos homens nem dos Espíritos que podem decidi-la. Em assunto semelhante, não basta afirmar ou negar. É preciso provar. Ora, de todas as razões alegadas pró ou contra, não há nenhuma que não seja mais ou menos hipotética, porque todas são controvertidas. Os materialistas não viram a coisa senão com os olhos da incredulidade e a ideia preconcebida de negação; os teólogos com os olhos da fé cega, e a ideia preconcebida da afirmação; nem uns nem outros estavam nas condições de imparcialidade necessárias; interessados em sustentar sua opinião, só viram e procuram o que a ela poderia ser favorável e fecharam os olhos ao que lhe podia ser contrário. Se a questão é a tanto tempo discutida e ainda não foi resolvida de maneira peremptória, é que faltaram os únicos elementos que lhe podiam dar a chave, absolutamente como faltava aos sábios da Antiguidade o conhecimento das leis da luz, para explicar o fenômeno do arco-íris.
A questão de natureza do Cristo é capital do ponto de vista cristão. Ela não pode ser tratada levianamente, e não são as opiniões pessoais nem dos homens nem dos Espíritos que podem decidi-la. Em assunto semelhante, não basta afirmar ou negar. É preciso provar. Ora, de todas as razões alegadas pró ou contra, não há nenhuma que não seja mais ou menos hipotética, porque todas são controvertidas. Os materialistas não viram a coisa senão com os olhos da incredulidade e a ideia preconcebida de negação; os teólogos com os olhos da fé cega, e a ideia preconcebida da afirmação; nem uns nem outros estavam nas condições de imparcialidade necessárias; interessados em sustentar sua opinião, só viram e procuram o que a ela poderia ser favorável e fecharam os olhos ao que lhe podia ser contrário. Se a questão é a tanto tempo discutida e ainda não foi resolvida de maneira peremptória, é que faltaram os únicos elementos que lhe podiam dar a chave, absolutamente como faltava aos sábios da Antiguidade o conhecimento das leis da luz, para explicar o fenômeno do arco-íris.
O Espiritismo é neutro na questão; ele não está mais interessado numa solução do que na outra; ele avançou sem
isto e continuará avançando, seja qual for o resultado; colocado fora dos dogmas particulares, não é para ele uma questão
de vida ou morte. Quando ele a abordar, apoiando todas as suas teorias nos fatos, resolvê-la-á pelos fatos, e isso em
tempo oportuno. Se tivesse urgência, ela já estaria resolvida. Os elementos de uma solução hoje estão completos, mas o
terreno ainda não está preparado para receber a semente. Uma solução prematura, fosse qual fosse, encontraria muita
oposição de parte a parte, e afastaria do Espiritismo mais partidários do que conquistaria. Eis por que a prudência nos
impõe o dever de nos abstermos de toda polêmica sobre este assunto, até que estejamos certo de poder pôr o pé em
terreno sólido. Enquanto se espera, deixamos que discutam pró e contra, fora do Espiritismo, sem nisto tomar parte,
deixando que os dois partidos esgotem os argumentos. Quando o momento for propício, levaremos para a balança, não a
nossa opinião pessoal, que não tem nenhum peso nem pode fazer lei, mas fatos até este momento não observados, e
então cada um poderá julgar com conhecimento de causa. Tudo quanto podemos dizer, sem prejulgar a questão, é que a
solução, em qualquer sentido em que for dada, não contradirá nem os atos nem as palavras do Cristo, mas, ao contrário, os confirmará, elucidando-os.
Assim, àqueles que nos perguntam o que diz o Espiritismo sobre a natureza de Cristo, respondemos
invariavelmente: “É uma questão de dogma estranha ao objetivo da Doutrina.” O objetivo que todo Espírita deve ter em mira, se quiser merecer esse título, é seu próprio melhoramento moral. Eu sou melhor do que o era? Corrigi-me de algum defeito? Fiz o bem ou o mal ao próximo? Eis o que todo Espírita sincero e convicto deve perguntar. Que importa saber se o Cristo era Deus ou não, se continuo sendo egoísta, orgulhoso, ciumento, invejoso, colérico, maledicente, caluniador? A melhor maneira de honrar o Cristo é imitá-lo em sua conduta. Quanto mais o elevamos no pensamento, menos somos dignos dele e mais o insultamos e profanamos, fazendo o contrário do que ele diz. O Espiritismo diz aos seus adeptos: “Praticai as virtudes recomendadas pelo Cristo e sereis mais cristãos que muitos dos que tal se dizem.” Aos católicos, protestantes e outros, ele diz: “Se temeis que o Espiritismo perturbe a vossa consciência, não vos ocupeis dele.” Ele não se dirige senão aos que a ele vêm livremente, e que dele necessitam. Ele não se dirige àqueles que têm uma fé qualquer e aos quais essa fé basta, mas aos que não têm ou que duvidam, e lhes dá a crença que lhes falta, não mais particularmente a do Catolicismo que a do Protestantismo, do Judaísmo ou do Islamismo, mas a crença fundamental, base indispensável de toda religião. Aí termina o seu papel. Estabelecida esta base, cada um fica livre de seguir a rota que melhor satisfaça à sua razão.
invariavelmente: “É uma questão de dogma estranha ao objetivo da Doutrina.” O objetivo que todo Espírita deve ter em mira, se quiser merecer esse título, é seu próprio melhoramento moral. Eu sou melhor do que o era? Corrigi-me de algum defeito? Fiz o bem ou o mal ao próximo? Eis o que todo Espírita sincero e convicto deve perguntar. Que importa saber se o Cristo era Deus ou não, se continuo sendo egoísta, orgulhoso, ciumento, invejoso, colérico, maledicente, caluniador? A melhor maneira de honrar o Cristo é imitá-lo em sua conduta. Quanto mais o elevamos no pensamento, menos somos dignos dele e mais o insultamos e profanamos, fazendo o contrário do que ele diz. O Espiritismo diz aos seus adeptos: “Praticai as virtudes recomendadas pelo Cristo e sereis mais cristãos que muitos dos que tal se dizem.” Aos católicos, protestantes e outros, ele diz: “Se temeis que o Espiritismo perturbe a vossa consciência, não vos ocupeis dele.” Ele não se dirige senão aos que a ele vêm livremente, e que dele necessitam. Ele não se dirige àqueles que têm uma fé qualquer e aos quais essa fé basta, mas aos que não têm ou que duvidam, e lhes dá a crença que lhes falta, não mais particularmente a do Catolicismo que a do Protestantismo, do Judaísmo ou do Islamismo, mas a crença fundamental, base indispensável de toda religião. Aí termina o seu papel. Estabelecida esta base, cada um fica livre de seguir a rota que melhor satisfaça à sua razão.
[3] Nosso papel pessoal no
grande movimento de ideias que se prepara pelo Espiritismo, e que já começa a
se operar, é o de um observador atento que estuda os fatos para lhes buscar as
causas e tirar as suas consequências. Confrontamos todos os que nos foi
possível reunir; comparamos e comentamos as instruções dadas pelos Espíritos em
todos os pontos da Terra, depois coordenamos tudo metodicamente. Numa palavra,
estudamos e tornamos público o fruto de nossas pesquisas, sem atribuir aos
nossos trabalhos outro valor senão o de uma obra filosófica deduzida da
observação e da experiência, sem jamais nos termos arvorado em chefe de
Doutrina, nem ter querido impor nossas ideias a ninguém. Publicando-os, fizemos
uso de um direito comum, e aqueles que os aceitaram fizeram-no livremente. Se
essas ideias encontraram numerosas simpatias, é que elas tiveram a vantagem de
corresponder às aspirações de um grande número, do que não poderíamos tirar
vantagem, porquanto a origem não nos pertence. Nosso maior mérito é o da
perseverança e do devotamento à causa que abraçamos. Em tudo isto temos feito o
que outros poderiam ter feito como nós. Eis por que jamais tivemos a pretensão
de nos crer profeta ou messias e, ainda menos, de nos considerarmos como tal.
Sem
ter nenhuma das qualidades exteriores da mediunidade efetiva, não contestamos
em ser assistidos pelos Espíritos em nossos trabalhos, pois temos provas muito
evidentes para não duvidar, o que sem dúvida devemos à nossa boa vontade, e o
que é dado a cada um merecer. Além das ideias que reconhecemos nos serem
sugeridas, é notável que assuntos de estudo e de observação, numa palavra, tudo
quanto pode ser útil à realização da obra, sempre nos chega a propósito. ─
Noutros tempos diriam: como por encanto, ─ de sorte que os materiais e
documentos do trabalho jamais nos faltam. Se tivermos que tratar de um assunto,
estamos certos que, sem o pedir, os elementos necessários à sua elaboração nos
são fornecidos, e isso por meios que são absolutamente naturais, mas que sem
dúvida são provocados por nossos colaboradores invisíveis, como tantas coisas
que o mundo atribui ao acaso.
[4] O Livro dos Espíritos, a primeira obra que fez o Espiritismo entrar
e via filosófica, pela dedução das consequências morais dos fatos, que abordou
todas as partes da Doutrina, tocando nas mais importantes questões que ela
levanta, foi, desde o seu aparecimento, o ponto de ligação para o qual
espontaneamente convergiram os trabalhos individuais. É notório que, da
publicação desse livro, data a era do Espiritismo filosófico, até então no
domínio das experiências de curiosidade. Se esse livro conquistou as simpatias
da maioria, é que ele era a expressão dos sentimentos dessa mesma maioria, e respondia
às suas aspirações; é, também, porque cada um aí encontrava a confirmação ou
uma explicação racional do que obtinha em particular. Se ele estivesse em
desacordo com o ensino geral dos Espíritos, não teria tido nenhum crédito e
prontamente teria caído no esquecimento. Ora, a quem se ligou? Não foi ao
homem, que por si mesmo nada é, cavilha mestra que morre e desaparece, mas à
ideia, que não perece quando emana de uma fonte superior ao homem.
Essa concentração espontânea das forças esparsas deu lugar a
uma correspondência imensa, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira
história do Espiritismo moderno, onde se refletem, ao mesmo tempo, os trabalhos
parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados
morais, os devotamentos e os as falências; arquivos preciosos para a
posterioridade, que poderá julgar os homens e as coisas em peças autênticas. Em
presença destes testemunhos irrecusáveis, em que se tornarão, em consequência,
todas as falsas alegações, as difamações da inveja e do ciúme?
[5] Um testemunho
significativo, tão notável quão tocante dessa comunhão de pensamentos que se
estabeleceu entre os espíritas pela conformidade das crenças, são os pedidos de
preces que nos vêm das mais remotas paragens, desde o Peru até os extremos da
Ásia, de parte de pessoas de religiões e nacionalidades diversas, e que jamais
vimos. Não é isto o prelúdio da grande unificação que se prepara, a prova das
raízes sérias que por toda parte o Espiritismo lança?
É notável que, de todos os grupos que se formaram com a
intenção premeditada de fazer cisão, proclamando princípios divergentes, assim
como os que, em razão do amor-próprio ou por outros motivos, não querendo ter a
aparência de submissão à lei comum, julgaram-se bastante fortes para marchar
sós, com bastante luzes para dispensar conselhos, nenhum chegou a constituir
uma unidade preponderante e viável; todos se extinguiram ou vegetaram na
sombra. Como poderia ser de outro modo, desde que, para se distinguir, em vez
de se esforçar para dar uma maior soma de satisfações, eles rejeitavam
princípios da Doutrina, precisamente o que constitui seu mais poderoso
atrativo, o que há de mais conciliador, de mais encorajador e de mais racional?
Se eles tivessem compreendido o poder dos elementos morais que constituíram a
unidade, não se teriam embalado em ilusões quiméricas, mas tomando o seu
pequeno círculo pelo Universo, não viram nos aderentes mais que uma camarilha
que facilmente poderia ser derrubada por uma contracamarilha. Era equivocar-se
estranhamente sobre os caracteres essenciais da doutrina, e esse erro só
poderia trazer decepções, porque não se fere impunemente o sentimento de uma
massa que tem convicções assentadas em bases sólidas. Em vez de romper a unidade,
eles quebraram o único elo que lhes poderia dar força e vida. (Vide Revista Espírita de abril de 1866: O Espiritismo
sem os Espíritos; o Espiritismo
independente).
[6] Ante declarações tão claras e categóricas quanto as contidas neste capítulo, caem todas as alegações de tendência para o absolutismo e para a autocracia dos princípios, todas as falsas assimilações que criaturas prevenidas ou mal informadas atribuem à Doutrina. Ademais, essas declarações não são novas: nós as repetimos muitas vezes em nossos escritos, para não deixar qualquer dúvida a esse respeito. Além disso, elas nos sinalizam nosso verdadeiro papel, o único que ambicionamos: o de trabalhador.
[6] Ante declarações tão claras e categóricas quanto as contidas neste capítulo, caem todas as alegações de tendência para o absolutismo e para a autocracia dos princípios, todas as falsas assimilações que criaturas prevenidas ou mal informadas atribuem à Doutrina. Ademais, essas declarações não são novas: nós as repetimos muitas vezes em nossos escritos, para não deixar qualquer dúvida a esse respeito. Além disso, elas nos sinalizam nosso verdadeiro papel, o único que ambicionamos: o de trabalhador.
Robinson Crusoé espírita
(Continuação)
Na Revista Espírita de março de 1867 citamos algumas passagens das aventuras de Robinson, marcadas por um pensamento evidentemente espírita. Devemos à gentileza de um dos nossos correspondentes de Antuérpia o conhecimento do complemento dessa história, na qual os princípios do Espiritismo são expressos e afirmados de forma muito mais explícita e não se encontram em nenhuma das edições modernas. A obra completa, traduzida da edição original inglesa, compreende três volumes e faz parte de uma coleção em trinta e tantos volumes, intitulada: Viagens imaginárias, sonhos, visões e romances cabalísticos, impressa em Amsterdã em 1787. O título indica que também se encontra em Paris, rue et hotel Serpente.
Os dois primeiros volumes dessa coleção contém as viagens propriamente ditas de Robinson; o terceiro volume, que o nosso correspondente nos quis confiar, tem por título: Reflexões sérias e importantes de Robinson Crusoé. O tradutor diz no seu prefácio:
“Eis enfim o enigma das aventuras de Robinson Crusoé; é uma espécie de Telêmaco Burguês, cujo objetivo é levar os homens comuns à virtude e à sabedoria, por acontecimentos acompanhados de reflexões. Há, entretanto, algo a mais na história de Robinson do que nas aventuras de Telêmaco; não é um simples romance, é antes uma história alegórica, na qual cada incidente é um emblema de algumas particularidades da vida do nosso autor. Não digo mais sobre este artigo, porque ele próprio o tratou a fundo em seu prefácio, que traduzi do inglês, e cuja leitura aconselho insistentemente a todos esses homens bruscos que adquiriram o hábito ridículo de pular todos os discursos preliminares dos livros."
“A obra que aqui se dá ao público, e que constitui o terceiro volume de Robinson Crusoé, é completamente diferente das duas partes precedentes, embora tenda para o mesmo fim. O autor aí dá, por assim dizer, a última demão em seu projeto de reformar os homens e de induzi-los a conduzir-se de uma maneira digna da excelência de sua natureza. Ele não está contente de lhes haver dado instruções envoltas em fábulas; ele acha bom estender os seus preceitos e os dar de maneira direta, a fim de que nada escape à penetração do grande número de leitores que não têm bastante argúcia para separar a essência da alegoria, do corpo que a envolve.”
Esse volume compreende duas partes. Na primeira parte, voltando Robinson à vida calma do lar, entrega-se a meditações sugeridas pelas peripécias de sua agitada existência. Essas reflexões são marcadas por uma alta moralidade e um profundo sentimento religioso, no gênero das seguintes:
Pg. 301. ─ “Confessemos, se quiserem, que não podemos compreender a imutabilidade da natureza e das ações de Deus, e que nos é absolutamente impossível conciliá-la com essa variedade da Providência que, em todas as suas ações, nos aparece numa completa e perfeita liberdade de formar todos os dias novos desígnios, de mudar os acontecimentos para este ou aquele lado, como apraz à soberana sabedoria. Porque não podemos conciliar estas coisas, podemos concluir que sejam absolutamente incompatíveis? Seria o mesmo que sustentar que a natureza de Deus é inteiramente incompreensível porque não o compreendemos, e que, na Natureza, todo fenômeno em que não penetramos é impenetrável. Onde está o filósofo que ousa gabar-se de compreender a causa que faz girar para o polo uma agulha imantada, e a maneira pela qual a força magnética é transmitida por um simples toque? Quem me dirá por que essa força não pode ser transmitida senão ao ferro, e por que a agulha não é atraída pelo ouro, pela prata e por outros metais? Que comércio secreto há entre o ímã e o polo norte e por qual força misteriosa a agulha que friccionamos se volta para o polo sul, desde que atravessamos a linha equinocial? Nada compreendemos destas operações da Natureza, contudo nossos sentidos nos asseguram da realidade dessas operações, da maneira mais incontestável do mundo. A menos que levemos o ceticismo até o mais alto grau do absurdo, devemos confessar que nada há de contraditório nesses fenômenos, embora nos seja impossível conciliá-los em conjunto, e que eles sejam compreensíveis, embora não os compreendamos."
“Por que a nossa sabedoria não nos impele a seguir o mesmo método de raciocinar em relação ao objeto da questão? É natural crer que, malgrado essa aparente mudança que descobrirmos nos atos da Providência, malgrado esses desígnios que parecem destruir-se mutuamente e erguer-se um sobre as ruínas do outro, nada é mais certo e mais real que a imutabilidade da Natureza e dos decretos de Deus. O que há de mais temerário do que alegar a fraqueza e a pequena extensão da razão como uma prova contra a existência das coisas? Nada é mais bizarro do que raciocinar justamente nos limites do nosso espírito, em relação aos objetos finitos da física, e de não prestar atenção à natureza de nossa alma, quando se trata das operações de um ser infinito, tão superior às nossas fracas luzes."
“Portanto, se é razoável acreditar que a Providência divina é livre em suas ações, e que, dirigida por sua própria soberania, ela segue, no curso ordinário das coisas humanas, esses métodos que julga adequados, é nosso dever ligar um comércio estreito com essa parte ativa da providência, que influi diretamente em nossa conduta, sem nos embaraçar o espírito em vãs discussões sobre a maneira pela qual essa providência influi em nossos negócios, e sobre o objetivo que ela se propõe."
“Entrando nessa correspondência com aquela virtude ativa da sabedoria de Deus, devemos examinar os seus caminhos, enquanto pareçam acessíveis à nossa penetração e às nossas pesquisas; devemos prestar a mesma atenção à voz secreta que já tive o cuidado de descrever, que a essa voz clara e forte que nos fala nos acontecimentos mais próprios a nos ferir."
“Quem quer que não faça um estudo sério para penetrar no sentido dessa voz secreta que se oferece à sua intenção, deliberadamente se priva de um grande número de conselhos úteis e de fortes consolações, dos quais por vezes sente necessidade na carreira que deve percorrer neste mundo."
“Que consolação não é para os que escutam essa voz, ver a cada momento que um poder invisível e infinitamente poderoso se empenha em conservar e orientar os seus interesses! Com essa atenção religiosa, não é possível não se aperceber dessa proteção; não é possível refletir sobre as soluções imprevistas que todo homem encontra na variedade dos incidentes da vida humana, evidentemente sem ver que não o deve à sua própria prudência, mas unicamente ao socorro eficaz de um poder infinito que o favorece porque o ama.”
─ A segunda parte, intitulada Visão do mundo angelical, contém o relato de fatos que pertencem mais particularmente à ordem dos fatos espíritas, da qual tomamos as seguintes passagens:
Pg. 359. ─ “Em minha opinião, o Espírito que apareceu a Saul devia ser um bom Espírito, que se chamava o anjo de um homem, como parece pelo que dizia aquela serva dos Atos dos Apóstolos, vendo diante da porta Pedro, que havia saído miraculosamente da prisão. Se tomarmos a coisa desta maneira, ela confirma a minha ideia relativa ao comércio dos Espíritos puros com os Espíritos encerrados em corpos no que se refere às vantagens que os homens podem ter de tal comércio. ─ Aqueles que pretendem que foi um mau Espírito, devem supor ao mesmo tempo que Deus pode servir-se do diabo como de um profeta, pôr na boca mentirosa as verdades que ele acha bom revelar aos homens, e suportar que ele pregue aos transgressores de suas leis, a justiça dos castigos que ele resolveu infligir-lhes. Não sei de que subterfúgio esses intérpretes se serviriam para salvar todos os inconvenientes de tal opinião. Em minha opinião, não vejo que convenha à sua majestade divina emprestar a Satã o seu Espírito de Verdade e dele fazer um pregador e um profeta.”
Pg. 365. ─ “Os efeitos mais diretos de nosso comércio com as inteligências puras, que me parecem tão sensíveis que é impossível negá-las, são: sonhos, certas vozes, certos ruídos, avisos, pressentimentos, apreensões, uma tristeza involuntária.”
Pg. 380. ─ “Parece-me que examinais com muita atenção a natureza dos sonhos e as provas que deles podem ser tiradas da realidade do mundo dos Espíritos. Mas peço-vos que me digais o que pensais dos sonhos que nos vêm em plena vigília, transportes, êxtases, visões, ruídos, vozes, pressentimentos. Não vedes que são provas ainda mais fortes da mesma verdade, porquanto elas nos afetam nos mesmos momentos em que nossa razão é senhora de si, e que sua luz não está envolta nos vapores do sonho?”
Pg. 393. ─ “Eu vi ainda, como num golpe de vista, a maneira pela qual esses maus Espíritos exercem o seu poder; até que ponto ele se estende; que obstáculos eles devem superar, e que outros Espíritos se opõem ao êxito de seus abomináveis desígnios..."
“...Embora o diabo tenha a seu serviço um número infinito de ministros fiéis, que nada negligenciam para executar os seus projetos, não há apenas um número igual, mas infinitamente maior de Anjos e de bons Espíritos que, armados de um poder superior, velam de um lugar muito mais elevado, sobre a sua conduta, e fazem todos os esforços para fazer fracassarem as suas maquinações. Esta descoberta faz ver ainda mais claramente que ele nada poderia fazer senão pela sutileza e pela astúcia, mantidas por uma vigilância e uma atenção extraordinárias, porquanto ele tem a mortificação de se ver a todo momento detido e contrariado em seus desígnios pela prudente atividade dos bons Espíritos, que têm o poder de castigá-lo e de repreendê-lo, como faz o homem a um cão malvado que espreita os transeuntes para se atirar sobre eles.”
Pg. 397. ─ “Em minha opinião, as inspirações não passam de discursos que imperceptivelmente nos são soprados ao ouvido, ou por bons anjos que nos favorecem, ou por esses diabos insinuantes que nos espreitam continuamente para nos fazerem cair em alguma armadilha. A única maneira de distinguir os autores desses discursos é guardar-se quanto à natureza dessas inspirações, e examinar se tendem a nos levar ao bem ou ao mal.”
Pg. 401. ─ “É infinitamente melhor para nós que um espesso véu nos oculte esse mundo invisível, tanto quanto a conduta da Providência em relação ao futuro. A bondade divina se manifesta mesmo no fato do comércio dos Espíritos e os avisos que estes nos dão serem efetuados de maneira alegórica, por inspirações e por sonhos, e não de maneira direta, clara, evidente. Aqueles que desejam uma visão mais distinta das coisas futuras, não sabem o que almejam, e se seus anseios fossem atendidos, talvez tivessem a sua curiosidade cruelmente castigada.”
Pg. 408. ─ “Uma manhã, quando ela estava desperta e uma porção de pensamentos dolorosos entravam em seu espírito, ela sentiu com força, em sua alma, uma espécie de voz que lhe dizia: Escreve-lhes uma carta. A voz era tão inteligível e tão natural que, se não tivesse a certeza de estar só, ela teria pensado que essas palavras tinham sido pronunciadas por uma criatura humana. Durante vários dias elas lhe foram repetidas a cada momento; enfim, passeando no quarto onde se havia recolhido, cheia de pensamentos sombrios e melancólicos, ela as ouviu novamente e respondeu em voz alta: A quem quereis, pois, que eu escreva? E a voz lhe replicou imediatamente: Escreva ao juiz. Estas palavras ainda lhe foram repetidas várias vezes e, enfim, levaram-na a tomar da pena e preparar-se para escrever, sem ter no espírito qualquer ideia necessária ao seu desígnio; mas, dabitur in hoec hora, etc. Os pensamentos e as expressões não lhe faltaram; eles corriam de sua pena com tanta abundância e tão grande facilidade que ela ficou com a maior admiração e alimentou as mais fortes esperanças de um feliz sucesso.”
Pg. 413. ─ “Entretanto, o que se pode imaginar de mais razoável sobre isto, é que esses Espíritos nos dão, nessas ocasiões, todas as luzes que estão em condições de nos dar, e que nos dizem o que sabem ou, pelo menos, tudo quanto seu mestre e o nosso lhes permitem que nos comuniquem. Se eles não tivessem um desígnio real e sincero de nos favorecer e nos garantir contra a infelicidade que pende sobre a nossa cabeça, não diriam absolutamente nada e, consequentemente, se seus avisos não são mais extensos e melhor executados, é certo que não deve estar em seu poder dar-nos outros mais úteis.”
Pg. 416. ─ “Considerando-se que temos pressentimentos que são verificados pela experiência, é necessário que haja Espíritos instruídos quanto ao futuro; que haja um lugar para os Espíritos onde as coisas futuras se desenvolvem à sua penetração e nada melhor teríamos a fazer do que acreditar nas notícias que nos vêm de lá."
Os dois primeiros volumes dessa coleção contém as viagens propriamente ditas de Robinson; o terceiro volume, que o nosso correspondente nos quis confiar, tem por título: Reflexões sérias e importantes de Robinson Crusoé. O tradutor diz no seu prefácio:
“Eis enfim o enigma das aventuras de Robinson Crusoé; é uma espécie de Telêmaco Burguês, cujo objetivo é levar os homens comuns à virtude e à sabedoria, por acontecimentos acompanhados de reflexões. Há, entretanto, algo a mais na história de Robinson do que nas aventuras de Telêmaco; não é um simples romance, é antes uma história alegórica, na qual cada incidente é um emblema de algumas particularidades da vida do nosso autor. Não digo mais sobre este artigo, porque ele próprio o tratou a fundo em seu prefácio, que traduzi do inglês, e cuja leitura aconselho insistentemente a todos esses homens bruscos que adquiriram o hábito ridículo de pular todos os discursos preliminares dos livros."
“A obra que aqui se dá ao público, e que constitui o terceiro volume de Robinson Crusoé, é completamente diferente das duas partes precedentes, embora tenda para o mesmo fim. O autor aí dá, por assim dizer, a última demão em seu projeto de reformar os homens e de induzi-los a conduzir-se de uma maneira digna da excelência de sua natureza. Ele não está contente de lhes haver dado instruções envoltas em fábulas; ele acha bom estender os seus preceitos e os dar de maneira direta, a fim de que nada escape à penetração do grande número de leitores que não têm bastante argúcia para separar a essência da alegoria, do corpo que a envolve.”
Esse volume compreende duas partes. Na primeira parte, voltando Robinson à vida calma do lar, entrega-se a meditações sugeridas pelas peripécias de sua agitada existência. Essas reflexões são marcadas por uma alta moralidade e um profundo sentimento religioso, no gênero das seguintes:
Pg. 301. ─ “Confessemos, se quiserem, que não podemos compreender a imutabilidade da natureza e das ações de Deus, e que nos é absolutamente impossível conciliá-la com essa variedade da Providência que, em todas as suas ações, nos aparece numa completa e perfeita liberdade de formar todos os dias novos desígnios, de mudar os acontecimentos para este ou aquele lado, como apraz à soberana sabedoria. Porque não podemos conciliar estas coisas, podemos concluir que sejam absolutamente incompatíveis? Seria o mesmo que sustentar que a natureza de Deus é inteiramente incompreensível porque não o compreendemos, e que, na Natureza, todo fenômeno em que não penetramos é impenetrável. Onde está o filósofo que ousa gabar-se de compreender a causa que faz girar para o polo uma agulha imantada, e a maneira pela qual a força magnética é transmitida por um simples toque? Quem me dirá por que essa força não pode ser transmitida senão ao ferro, e por que a agulha não é atraída pelo ouro, pela prata e por outros metais? Que comércio secreto há entre o ímã e o polo norte e por qual força misteriosa a agulha que friccionamos se volta para o polo sul, desde que atravessamos a linha equinocial? Nada compreendemos destas operações da Natureza, contudo nossos sentidos nos asseguram da realidade dessas operações, da maneira mais incontestável do mundo. A menos que levemos o ceticismo até o mais alto grau do absurdo, devemos confessar que nada há de contraditório nesses fenômenos, embora nos seja impossível conciliá-los em conjunto, e que eles sejam compreensíveis, embora não os compreendamos."
“Por que a nossa sabedoria não nos impele a seguir o mesmo método de raciocinar em relação ao objeto da questão? É natural crer que, malgrado essa aparente mudança que descobrirmos nos atos da Providência, malgrado esses desígnios que parecem destruir-se mutuamente e erguer-se um sobre as ruínas do outro, nada é mais certo e mais real que a imutabilidade da Natureza e dos decretos de Deus. O que há de mais temerário do que alegar a fraqueza e a pequena extensão da razão como uma prova contra a existência das coisas? Nada é mais bizarro do que raciocinar justamente nos limites do nosso espírito, em relação aos objetos finitos da física, e de não prestar atenção à natureza de nossa alma, quando se trata das operações de um ser infinito, tão superior às nossas fracas luzes."
“Portanto, se é razoável acreditar que a Providência divina é livre em suas ações, e que, dirigida por sua própria soberania, ela segue, no curso ordinário das coisas humanas, esses métodos que julga adequados, é nosso dever ligar um comércio estreito com essa parte ativa da providência, que influi diretamente em nossa conduta, sem nos embaraçar o espírito em vãs discussões sobre a maneira pela qual essa providência influi em nossos negócios, e sobre o objetivo que ela se propõe."
“Entrando nessa correspondência com aquela virtude ativa da sabedoria de Deus, devemos examinar os seus caminhos, enquanto pareçam acessíveis à nossa penetração e às nossas pesquisas; devemos prestar a mesma atenção à voz secreta que já tive o cuidado de descrever, que a essa voz clara e forte que nos fala nos acontecimentos mais próprios a nos ferir."
“Quem quer que não faça um estudo sério para penetrar no sentido dessa voz secreta que se oferece à sua intenção, deliberadamente se priva de um grande número de conselhos úteis e de fortes consolações, dos quais por vezes sente necessidade na carreira que deve percorrer neste mundo."
“Que consolação não é para os que escutam essa voz, ver a cada momento que um poder invisível e infinitamente poderoso se empenha em conservar e orientar os seus interesses! Com essa atenção religiosa, não é possível não se aperceber dessa proteção; não é possível refletir sobre as soluções imprevistas que todo homem encontra na variedade dos incidentes da vida humana, evidentemente sem ver que não o deve à sua própria prudência, mas unicamente ao socorro eficaz de um poder infinito que o favorece porque o ama.”
─ A segunda parte, intitulada Visão do mundo angelical, contém o relato de fatos que pertencem mais particularmente à ordem dos fatos espíritas, da qual tomamos as seguintes passagens:
Pg. 359. ─ “Em minha opinião, o Espírito que apareceu a Saul devia ser um bom Espírito, que se chamava o anjo de um homem, como parece pelo que dizia aquela serva dos Atos dos Apóstolos, vendo diante da porta Pedro, que havia saído miraculosamente da prisão. Se tomarmos a coisa desta maneira, ela confirma a minha ideia relativa ao comércio dos Espíritos puros com os Espíritos encerrados em corpos no que se refere às vantagens que os homens podem ter de tal comércio. ─ Aqueles que pretendem que foi um mau Espírito, devem supor ao mesmo tempo que Deus pode servir-se do diabo como de um profeta, pôr na boca mentirosa as verdades que ele acha bom revelar aos homens, e suportar que ele pregue aos transgressores de suas leis, a justiça dos castigos que ele resolveu infligir-lhes. Não sei de que subterfúgio esses intérpretes se serviriam para salvar todos os inconvenientes de tal opinião. Em minha opinião, não vejo que convenha à sua majestade divina emprestar a Satã o seu Espírito de Verdade e dele fazer um pregador e um profeta.”
Pg. 365. ─ “Os efeitos mais diretos de nosso comércio com as inteligências puras, que me parecem tão sensíveis que é impossível negá-las, são: sonhos, certas vozes, certos ruídos, avisos, pressentimentos, apreensões, uma tristeza involuntária.”
Pg. 380. ─ “Parece-me que examinais com muita atenção a natureza dos sonhos e as provas que deles podem ser tiradas da realidade do mundo dos Espíritos. Mas peço-vos que me digais o que pensais dos sonhos que nos vêm em plena vigília, transportes, êxtases, visões, ruídos, vozes, pressentimentos. Não vedes que são provas ainda mais fortes da mesma verdade, porquanto elas nos afetam nos mesmos momentos em que nossa razão é senhora de si, e que sua luz não está envolta nos vapores do sonho?”
Pg. 393. ─ “Eu vi ainda, como num golpe de vista, a maneira pela qual esses maus Espíritos exercem o seu poder; até que ponto ele se estende; que obstáculos eles devem superar, e que outros Espíritos se opõem ao êxito de seus abomináveis desígnios..."
“...Embora o diabo tenha a seu serviço um número infinito de ministros fiéis, que nada negligenciam para executar os seus projetos, não há apenas um número igual, mas infinitamente maior de Anjos e de bons Espíritos que, armados de um poder superior, velam de um lugar muito mais elevado, sobre a sua conduta, e fazem todos os esforços para fazer fracassarem as suas maquinações. Esta descoberta faz ver ainda mais claramente que ele nada poderia fazer senão pela sutileza e pela astúcia, mantidas por uma vigilância e uma atenção extraordinárias, porquanto ele tem a mortificação de se ver a todo momento detido e contrariado em seus desígnios pela prudente atividade dos bons Espíritos, que têm o poder de castigá-lo e de repreendê-lo, como faz o homem a um cão malvado que espreita os transeuntes para se atirar sobre eles.”
Pg. 397. ─ “Em minha opinião, as inspirações não passam de discursos que imperceptivelmente nos são soprados ao ouvido, ou por bons anjos que nos favorecem, ou por esses diabos insinuantes que nos espreitam continuamente para nos fazerem cair em alguma armadilha. A única maneira de distinguir os autores desses discursos é guardar-se quanto à natureza dessas inspirações, e examinar se tendem a nos levar ao bem ou ao mal.”
Pg. 401. ─ “É infinitamente melhor para nós que um espesso véu nos oculte esse mundo invisível, tanto quanto a conduta da Providência em relação ao futuro. A bondade divina se manifesta mesmo no fato do comércio dos Espíritos e os avisos que estes nos dão serem efetuados de maneira alegórica, por inspirações e por sonhos, e não de maneira direta, clara, evidente. Aqueles que desejam uma visão mais distinta das coisas futuras, não sabem o que almejam, e se seus anseios fossem atendidos, talvez tivessem a sua curiosidade cruelmente castigada.”
Pg. 408. ─ “Uma manhã, quando ela estava desperta e uma porção de pensamentos dolorosos entravam em seu espírito, ela sentiu com força, em sua alma, uma espécie de voz que lhe dizia: Escreve-lhes uma carta. A voz era tão inteligível e tão natural que, se não tivesse a certeza de estar só, ela teria pensado que essas palavras tinham sido pronunciadas por uma criatura humana. Durante vários dias elas lhe foram repetidas a cada momento; enfim, passeando no quarto onde se havia recolhido, cheia de pensamentos sombrios e melancólicos, ela as ouviu novamente e respondeu em voz alta: A quem quereis, pois, que eu escreva? E a voz lhe replicou imediatamente: Escreva ao juiz. Estas palavras ainda lhe foram repetidas várias vezes e, enfim, levaram-na a tomar da pena e preparar-se para escrever, sem ter no espírito qualquer ideia necessária ao seu desígnio; mas, dabitur in hoec hora, etc. Os pensamentos e as expressões não lhe faltaram; eles corriam de sua pena com tanta abundância e tão grande facilidade que ela ficou com a maior admiração e alimentou as mais fortes esperanças de um feliz sucesso.”
Pg. 413. ─ “Entretanto, o que se pode imaginar de mais razoável sobre isto, é que esses Espíritos nos dão, nessas ocasiões, todas as luzes que estão em condições de nos dar, e que nos dizem o que sabem ou, pelo menos, tudo quanto seu mestre e o nosso lhes permitem que nos comuniquem. Se eles não tivessem um desígnio real e sincero de nos favorecer e nos garantir contra a infelicidade que pende sobre a nossa cabeça, não diriam absolutamente nada e, consequentemente, se seus avisos não são mais extensos e melhor executados, é certo que não deve estar em seu poder dar-nos outros mais úteis.”
Pg. 416. ─ “Considerando-se que temos pressentimentos que são verificados pela experiência, é necessário que haja Espíritos instruídos quanto ao futuro; que haja um lugar para os Espíritos onde as coisas futuras se desenvolvem à sua penetração e nada melhor teríamos a fazer do que acreditar nas notícias que nos vêm de lá."
"O dever de prestar atenção a esses pressentimentos não é a única consequência que possamos tirar desta verdade; há outras que nos podem ser de uma utilidade muito considerável:"
“1º ─ Ela nos explica a natureza do mundo dos Espíritos e nos prova a certeza de nossa alma após a morte;"
“2º ─ Ela nos faz ver que a direção da Providência, em relação aos homens e aos conhecimentos futuros, não está tão oculta aos habitantes do mundo espiritual quanto está para nós;"
“3º ─ Daí podemos concluir que a penetração dos Espíritos desprendidos da matéria é de uma extensão muito maior que a dos Espíritos encerrados em corpos, porquanto os primeiros sabem o que nos deve acontecer, ao passo que nós mesmos o ignoramos."
“A persuasão da existência do mundo dos Espíritos pode ser-nos útil de muitas maneiras diferentes. Cabe sobretudo a nós tirar grandes vantagens da certeza que temos de que eles sabem desvendar o futuro e nos comunicar as luzes que eles possuem lá em cima, de tal modo que nos enseja vigiar nossa conduta, evitar desgraças, pensar em nossos interesses e até esperar a morte com a alma firme e o espírito preparado para recebê-la com constância e com uma firmeza cristã. Seria, também, um meio seguro de ampliar a esfera de nossas luzes e de nos levar a raciocinar com justeza sobre o verdadeiro valor das coisas."
Pg. 427. ─ “Se fizéssemos semelhante uso (arrependimento e reforma de uma conduta má) das aparições reais do diabo, estou convencido que seria o meio de expulsá-lo para sempre do mundo invisível. É muito natural crer que nos fizesse visitas muito raras, se estivesse persuadido, por sua experiência, que elas nos levariam à virtude, bem longe de nos fazer cair em armadilhas. Pelo menos jamais viria ver-nos por sua própria iniciativa e necessitaria de uma força superior para a isso se resolver.”
Pg. 457. ─ “Minha conversão vem diretamente do Céu. A luz que cercou São Paulo no caminho de Damasco não o feriu mais vivamente do que a que me deslumbrou. É verdade que não era acompanhada por qualquer voz do Céu, mas tenho certeza que uma voz secreta falou eficazmente à minha alma; ela fez-me compreender que eu estava exposto à cólera desse poder, dessa majestade, desse Deus que eu antes reneguei com toda a impiedade imaginável.”
Pg. 462. ─ “Numa palavra, acidentes semelhantes são de grande força para convencer-nos da influência da Providência divina nos negócios humanos, por menores que sejam em aparência; da existência de um mundo invisível e da realidade do comércio de inteligências puras com os Espíritos encerrados em corpos. Espero nada haver dito sobre este delicado assunto que seja próprio a levar os meus leitores a fantasias absurdas e ridículas. Pelo menos posso protestar que não tive tal desígnio, e que minha intenção foi unicamente excitar no coração dos homens sentimentos respeitosos pela divindade e de docilidade aos avisos dos bons Espíritos que se interessam pelo que nos diz respeito.”
OBSERVAÇÃO: Faz quase um século que Daniel de Foë, autor de Robinson, escreveu estas coisas que dir-se-iam hauridas, até nas expressões, na moderna Doutrina Espírita. Numa segunda comunicação, dada na Sociedade de Paris após a leitura destes fragmentos, ele explicou suas crenças sobre este ponto, dizendo que pertencia à seita dos teósofos, seita que, com efeito, professava esses mesmos princípios. Por que, então, essa doutrina não tomou, nessa oportunidade, a extensão que hoje tem? Há várias razões para isto:
1º) Os teósofos mantinham suas doutrinas quase secretas;
2º) A opinião das massas não estava madura para as assimilar;
3º) Era preciso que uma sucessão de acontecimentos desse outro curso às ideias;
4º) Era necessário que a incredulidade preparasse os caminhos e que, por seu desenvolvimento, fizesse sentir o vazio que ela cava sob os passos da Humanidade, e a necessidade de algo para enchê-lo;
5º) Enfim, a Providência não havia julgado que já era tempo de tornar gerais as manifestações dos Espíritos. Foi a generalização dessa ordem de fenômenos que vulgarizou a crença nos Espíritos, e a doutrina que é o seu corolário.
Se as manifestações tivessem sido mantidas como privilégio de alguns indivíduos, o Espiritismo ainda não teria saído da fonte em que teria tido a sua origem; ainda estaria, para as massas, no estado de teoria, de opinião pessoal, sem consistência. Foi a sanção prática que, de um extremo a outro do mundo, e quase instantaneamente, cada um encontrou nas manifestações, provocadas ou espontâneas, que a doutrina vulgarizou e que lhe deram uma força irresistível, a despeito dos que a combatem.
Embora os teósofos tenham tido pouca repercussão e mal tenham saído da obscuridade, seus trabalhos não foram perdidos para a causa. Eles semearam germes que só deveriam frutificar mais tarde, mas que formaram homens predispostos à aceitação das ideias espíritas, como fez a seita dos swedenborgianos, e mais tarde a dos fourrieristas. É de notar que uma ideia de certa magnitude nunca surge bruscamente no mundo. Muitas vezes ela lança os seus balões de ensaio alguns séculos antes de sua eclosão definitiva; é o trabalho do parto.
“1º ─ Ela nos explica a natureza do mundo dos Espíritos e nos prova a certeza de nossa alma após a morte;"
“2º ─ Ela nos faz ver que a direção da Providência, em relação aos homens e aos conhecimentos futuros, não está tão oculta aos habitantes do mundo espiritual quanto está para nós;"
“3º ─ Daí podemos concluir que a penetração dos Espíritos desprendidos da matéria é de uma extensão muito maior que a dos Espíritos encerrados em corpos, porquanto os primeiros sabem o que nos deve acontecer, ao passo que nós mesmos o ignoramos."
“A persuasão da existência do mundo dos Espíritos pode ser-nos útil de muitas maneiras diferentes. Cabe sobretudo a nós tirar grandes vantagens da certeza que temos de que eles sabem desvendar o futuro e nos comunicar as luzes que eles possuem lá em cima, de tal modo que nos enseja vigiar nossa conduta, evitar desgraças, pensar em nossos interesses e até esperar a morte com a alma firme e o espírito preparado para recebê-la com constância e com uma firmeza cristã. Seria, também, um meio seguro de ampliar a esfera de nossas luzes e de nos levar a raciocinar com justeza sobre o verdadeiro valor das coisas."
Pg. 427. ─ “Se fizéssemos semelhante uso (arrependimento e reforma de uma conduta má) das aparições reais do diabo, estou convencido que seria o meio de expulsá-lo para sempre do mundo invisível. É muito natural crer que nos fizesse visitas muito raras, se estivesse persuadido, por sua experiência, que elas nos levariam à virtude, bem longe de nos fazer cair em armadilhas. Pelo menos jamais viria ver-nos por sua própria iniciativa e necessitaria de uma força superior para a isso se resolver.”
Pg. 457. ─ “Minha conversão vem diretamente do Céu. A luz que cercou São Paulo no caminho de Damasco não o feriu mais vivamente do que a que me deslumbrou. É verdade que não era acompanhada por qualquer voz do Céu, mas tenho certeza que uma voz secreta falou eficazmente à minha alma; ela fez-me compreender que eu estava exposto à cólera desse poder, dessa majestade, desse Deus que eu antes reneguei com toda a impiedade imaginável.”
Pg. 462. ─ “Numa palavra, acidentes semelhantes são de grande força para convencer-nos da influência da Providência divina nos negócios humanos, por menores que sejam em aparência; da existência de um mundo invisível e da realidade do comércio de inteligências puras com os Espíritos encerrados em corpos. Espero nada haver dito sobre este delicado assunto que seja próprio a levar os meus leitores a fantasias absurdas e ridículas. Pelo menos posso protestar que não tive tal desígnio, e que minha intenção foi unicamente excitar no coração dos homens sentimentos respeitosos pela divindade e de docilidade aos avisos dos bons Espíritos que se interessam pelo que nos diz respeito.”
OBSERVAÇÃO: Faz quase um século que Daniel de Foë, autor de Robinson, escreveu estas coisas que dir-se-iam hauridas, até nas expressões, na moderna Doutrina Espírita. Numa segunda comunicação, dada na Sociedade de Paris após a leitura destes fragmentos, ele explicou suas crenças sobre este ponto, dizendo que pertencia à seita dos teósofos, seita que, com efeito, professava esses mesmos princípios. Por que, então, essa doutrina não tomou, nessa oportunidade, a extensão que hoje tem? Há várias razões para isto:
1º) Os teósofos mantinham suas doutrinas quase secretas;
2º) A opinião das massas não estava madura para as assimilar;
3º) Era preciso que uma sucessão de acontecimentos desse outro curso às ideias;
4º) Era necessário que a incredulidade preparasse os caminhos e que, por seu desenvolvimento, fizesse sentir o vazio que ela cava sob os passos da Humanidade, e a necessidade de algo para enchê-lo;
5º) Enfim, a Providência não havia julgado que já era tempo de tornar gerais as manifestações dos Espíritos. Foi a generalização dessa ordem de fenômenos que vulgarizou a crença nos Espíritos, e a doutrina que é o seu corolário.
Se as manifestações tivessem sido mantidas como privilégio de alguns indivíduos, o Espiritismo ainda não teria saído da fonte em que teria tido a sua origem; ainda estaria, para as massas, no estado de teoria, de opinião pessoal, sem consistência. Foi a sanção prática que, de um extremo a outro do mundo, e quase instantaneamente, cada um encontrou nas manifestações, provocadas ou espontâneas, que a doutrina vulgarizou e que lhe deram uma força irresistível, a despeito dos que a combatem.
Embora os teósofos tenham tido pouca repercussão e mal tenham saído da obscuridade, seus trabalhos não foram perdidos para a causa. Eles semearam germes que só deveriam frutificar mais tarde, mas que formaram homens predispostos à aceitação das ideias espíritas, como fez a seita dos swedenborgianos, e mais tarde a dos fourrieristas. É de notar que uma ideia de certa magnitude nunca surge bruscamente no mundo. Muitas vezes ela lança os seus balões de ensaio alguns séculos antes de sua eclosão definitiva; é o trabalho do parto.
Noticia bibliográfica
Deus na natureza
(Por Camille Flammarion) *
Como se sabe, depois de haver tratado, do ponto de vista científico, da questão da habitabilidade dos mundos, que se liga intimamente ao Espiritismo, o Sr. Flammarion hoje aborda a demonstração de uma outra verdade, sem contradita a mais importante, porque é a pedra angular do edifício social, e ainda aquela sem a qual o Espiritismo não teria razão de ser: A existência de Deus. O título de sua obra ─ Deus na Natureza ─ resume tudo; ele diz, antes de mais nada, que não é um livro litúrgico nem místico, mas filosófico.
Do ceticismo de um grande número de sábios, concluiu-se erradamente que, por si mesma, a Ciência é ateísta, ou conduz fatalmente ao ateísmo. É um erro que o Sr. Flammarion cuida de refutar, demonstrando que se os sábios não viram Deus em suas pesquisas, foi porque não quiseram vê-lo. Ademais, estão longe de ser ateus todos os sábios, mas muitas vezes se confunde o ceticismo relativo aos dogmas particulares de tal ou qual culto com o ateísmo. O Sr. Flammarion se dirige especialmente à classe dos filósofos que abertamente fazem profissão de materialismo.
"O homem, diz ele, traz em sua natureza uma tão imperiosa necessidade de se deter numa convicção, particularmente do ponto de vista da existência de um ordenador do mundo e do destino dos seres, que se nenhuma fé o satisfaz, ele sente necessidade de demonstrar a si mesmo que Deus não existe, e busca o repouso de sua alma no ateísmo e na doutrina do nada. Assim, a questão atual que nos apaixona não é mais saber qual a forma do Criador, o caráter da mediação, a influência da graça, nem discutir o valor dos argumentos teológicos. A verdadeira questão é saber se Deus existe ou não existe."
Nesse trabalho o autor procedeu da mesma maneira que na sua Pluralidade dos Mundos Habitados; colocou-se no próprio terreno de seus adversários. Se ele tivesse buscado seus argumentos na Teologia, no Espiritismo ou em doutrinas espiritualistas quaisquer, teria estabelecido premissas que teriam sido rejeitadas. Eis por que toma as dos negadores e demonstra, pelos próprios fatos, que se chega a uma conclusão diametralmente oposta; ele não invoca novos argumentos controversíveis; ele não se perde nas nuvens da metafísica, do subjetivo e do objetivo, nas argúcias da dialética, mas fica no terreno do positivismo. Ele combate os ateus com suas próprias armas. Tomando seus argumentos um a um, os destrói com o auxílio da mesma ciência que eles invocam. Não se apoia na opinião de homens; sua autoridade é a Natureza e aí mostra Deus em tudo e por toda parte.
“A Natureza explicada pela Ciência, diz ele, no-la mostrou num caráter particular. Ele lá está, visível, como a força íntima de todas as coisas. Nenhuma poesia humana nos pareceu comparável à verdade natural, e o verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza do que o homem nos seus mais pomposos cantos.”
Dissemos os motivos que levaram o Sr. Flammarion a colocar-se fora do Espiritismo, e não podemos senão aplaudi-lo. Se algumas pessoas pensaram que foi por antagonismo à Doutrina, bastaria, para desiludi-lo, citar a passagem seguinte:
“Poderíamos acrescentar, para fechar o capítulo da personalidade humana, algumas reflexões sobre certos assuntos de estudo ainda misteriosos, mas não insignificantes. O sonambulismo natural, o magnetismo, o Espiritismo, oferecem aos experimentadores sérios que sabem examiná-los cientificamente, fatos característicos que bastariam para demonstrar a insuficiência das teorias materialistas. Confessamos que é triste, para o observador consciencioso, ver o charlatanismo desavergonhado deslizar sua avidez pérfida em causas que deveriam ser respeitadas; é triste constatar que noventa e nove fatos em cem podem ser falsos ou imitados; mas um único fato bem constatado derruba todas as negações. Ora, que partido tomam certos doutos personagens diante desses fatos? Simplesmente os negam. 'A Ciência não duvida, disse em particular o Sr. Buchner, que todos os casos de pretensa clarividência não sejam efeitos de charlatanice e de conluio. A lucidez é, por razões naturais, uma impossibilidade. Está nas leis da Natureza que os efeitos dos sentidos sejam limitados a certa extensão do espaço que eles não podem transpor. Ninguém tem a faculdade de adivinhar os pensamentos, nem de ver com os olhos fechados o que se passa em torno de si. Estas verdades são baseadas nas leis naturais, que são imutáveis e sem exceção.' Ora, senhor juiz, então vós conheceis bem as leis naturais?"
Do ceticismo de um grande número de sábios, concluiu-se erradamente que, por si mesma, a Ciência é ateísta, ou conduz fatalmente ao ateísmo. É um erro que o Sr. Flammarion cuida de refutar, demonstrando que se os sábios não viram Deus em suas pesquisas, foi porque não quiseram vê-lo. Ademais, estão longe de ser ateus todos os sábios, mas muitas vezes se confunde o ceticismo relativo aos dogmas particulares de tal ou qual culto com o ateísmo. O Sr. Flammarion se dirige especialmente à classe dos filósofos que abertamente fazem profissão de materialismo.
"O homem, diz ele, traz em sua natureza uma tão imperiosa necessidade de se deter numa convicção, particularmente do ponto de vista da existência de um ordenador do mundo e do destino dos seres, que se nenhuma fé o satisfaz, ele sente necessidade de demonstrar a si mesmo que Deus não existe, e busca o repouso de sua alma no ateísmo e na doutrina do nada. Assim, a questão atual que nos apaixona não é mais saber qual a forma do Criador, o caráter da mediação, a influência da graça, nem discutir o valor dos argumentos teológicos. A verdadeira questão é saber se Deus existe ou não existe."
Nesse trabalho o autor procedeu da mesma maneira que na sua Pluralidade dos Mundos Habitados; colocou-se no próprio terreno de seus adversários. Se ele tivesse buscado seus argumentos na Teologia, no Espiritismo ou em doutrinas espiritualistas quaisquer, teria estabelecido premissas que teriam sido rejeitadas. Eis por que toma as dos negadores e demonstra, pelos próprios fatos, que se chega a uma conclusão diametralmente oposta; ele não invoca novos argumentos controversíveis; ele não se perde nas nuvens da metafísica, do subjetivo e do objetivo, nas argúcias da dialética, mas fica no terreno do positivismo. Ele combate os ateus com suas próprias armas. Tomando seus argumentos um a um, os destrói com o auxílio da mesma ciência que eles invocam. Não se apoia na opinião de homens; sua autoridade é a Natureza e aí mostra Deus em tudo e por toda parte.
“A Natureza explicada pela Ciência, diz ele, no-la mostrou num caráter particular. Ele lá está, visível, como a força íntima de todas as coisas. Nenhuma poesia humana nos pareceu comparável à verdade natural, e o verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza do que o homem nos seus mais pomposos cantos.”
Dissemos os motivos que levaram o Sr. Flammarion a colocar-se fora do Espiritismo, e não podemos senão aplaudi-lo. Se algumas pessoas pensaram que foi por antagonismo à Doutrina, bastaria, para desiludi-lo, citar a passagem seguinte:
“Poderíamos acrescentar, para fechar o capítulo da personalidade humana, algumas reflexões sobre certos assuntos de estudo ainda misteriosos, mas não insignificantes. O sonambulismo natural, o magnetismo, o Espiritismo, oferecem aos experimentadores sérios que sabem examiná-los cientificamente, fatos característicos que bastariam para demonstrar a insuficiência das teorias materialistas. Confessamos que é triste, para o observador consciencioso, ver o charlatanismo desavergonhado deslizar sua avidez pérfida em causas que deveriam ser respeitadas; é triste constatar que noventa e nove fatos em cem podem ser falsos ou imitados; mas um único fato bem constatado derruba todas as negações. Ora, que partido tomam certos doutos personagens diante desses fatos? Simplesmente os negam. 'A Ciência não duvida, disse em particular o Sr. Buchner, que todos os casos de pretensa clarividência não sejam efeitos de charlatanice e de conluio. A lucidez é, por razões naturais, uma impossibilidade. Está nas leis da Natureza que os efeitos dos sentidos sejam limitados a certa extensão do espaço que eles não podem transpor. Ninguém tem a faculdade de adivinhar os pensamentos, nem de ver com os olhos fechados o que se passa em torno de si. Estas verdades são baseadas nas leis naturais, que são imutáveis e sem exceção.' Ora, senhor juiz, então vós conheceis bem as leis naturais?"
"Homem feliz! Como sucumbis sob o excesso de vossa ciência! Mas, que? Volto duas páginas e eis o que leio: 'O sonambulismo é um fenômeno do qual infelizmente não temos senão observações muito inexatas, conquanto fosse desejável que dele tivéssemos noções precisas, por força de sua importância para a Ciência. Contudo, sem ter dele dados certos (escutai!) podemos relegar entre as fábulas todos os fatos maravilhosos que se contam dos sonâmbulos. Não é dado a um sonâmbulo escalar muros, etc.' Ah! senhor, como raciocinais com sabedoria, e como vos teria feito bem, antes de escrever, saber um pouco o que pensais!”
Um relato analítico da obra exigiria desenvolvimentos que a falta de espaço nos interdiz e, aliás, seria supérfluo. Bastaria mostrar o ponto de vista em que se colocou o autor para compreendermos a sua utilidade. Reconciliar a Ciência com as ideias espiritualistas é aplainar as vias de sua aliança com o Espiritismo. O autor fala em nome da ciência pura e não de uma ciência fantasista ou superficial, e o faz com a autoridade que lhe dá seu saber pessoal. Seu livro é um desses que têm um lugar marcado nas bibliotecas espíritas, porque é uma monografia de uma das partes constituintes da doutrina, onde o crente encontra para se instruir tanto quanto o incrédulo. Teremos mais de uma vez ocasião de a ele voltar.
Um relato analítico da obra exigiria desenvolvimentos que a falta de espaço nos interdiz e, aliás, seria supérfluo. Bastaria mostrar o ponto de vista em que se colocou o autor para compreendermos a sua utilidade. Reconciliar a Ciência com as ideias espiritualistas é aplainar as vias de sua aliança com o Espiritismo. O autor fala em nome da ciência pura e não de uma ciência fantasista ou superficial, e o faz com a autoridade que lhe dá seu saber pessoal. Seu livro é um desses que têm um lugar marcado nas bibliotecas espíritas, porque é uma monografia de uma das partes constituintes da doutrina, onde o crente encontra para se instruir tanto quanto o incrédulo. Teremos mais de uma vez ocasião de a ele voltar.
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* Um grosso volume in-12. Preço, 4 francos. Paris Didier & Comp. Quai des Grands-Augustins, 35.